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Uma breve revisão da noção de perversão na obra de Freud 5

Artigos 5

Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 131, 5-19

Uma breve revisão da noção de


perversão na obra de Freud

Flávio Carvalho Ferraz

O artigo faz uma revisão da noção de perversão na obra de Freud, definindo três mo-
mentos distintos do uso deste termo por ele: o dos Três ensaios sobre a teoria da sexuali-
dade, de 1905, em que a perversão aparece como “negativo da neurose”, sendo compre-
endida como falha do recalque; o de “Uma criança é espancada”, de 1919, em que a
perversão se relaciona com a teoria do complexo de Édipo, ligando-se à questão da identi-
dade e à produção de fantasias; e o do Fetichismo, de 1927, quando a figura da recusa da
castração ganha a cena, associando-se à conseqüente noção de clivagem do ego, e a per-
versão pode ser encarada como estrutura psíquica. O trabalho sustenta o ponto de vista
de que a compreensão da perversão não pode se dar de modo circunscrito a apenas um
destes modelos, mas sim a partir de uma integração entre eles.
Palavras-chave: Perversão, sexualidade, recusa (da castração), clivagem (do ego)

T his paper reviews the conception of perversion in Freud’s work, defining three distinct
moments of this notion employement: first on Three essays on the theory of sexuality, of
1905, where perversion is seen as the “neurose opposite”, understood as a suppression
failure; then on “A child is being beaten”, of 1919, where perversion is related to the
Oedipus complex theory, connected to the identity issue and to the fantasy production, and
last, the Fetishism, of 1927, where appears the notion of castration disavowal, relating
itself to the consequent concept of ego splitting, and perversion may be seen as a psychic
structure. The paper aims to support the idea that to understand the conception of perversion
it is necessary to integrate all of the former models, not being restricted to just one of them.
Key words: Perversion, sexuality, disavowal, splitting

PREÂMBULO nica psicanalíticas, não apenas no que con-


cerne ao seu status diagnóstico, mas tam-
A figura da perversão tem gerado bém no que toca à própria procedência éti-
controvérsias no seio da teoria e da clí- ca e ideológica do uso deste termo. Freud
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empregou-o em alguns momentos dis- Embora o sentido – mesmo o inicial –


tintos de sua obra, delineando com ele, que a psicanálise tenha dado a este ter-
inicialmente, uma forma de conduta se- mo guarde diferenças em relação a seu
xual em que as fantasias ligadas à sexua- emprego pela sexologia do século XIX,
lidade pré-genital eram atuadas e não de onde foi retirado, não se pode afir-
mantidas sob recalque. Mais tarde, a mar, como muitas vezes o discurso
perversão foi ganhando um contorno psicanalítico tende a fazer, que não haja
mais nítido como categoria psicopatoló- semelhanças quanto à compreensão do
gica e diagnóstica, ao lado daquelas da significado e do alcance da palavra per-
neurose e da psicose, sem, no entanto, versão nestas duas diferentes tradições
ter sido circunscrita e definida com a de pensamento. Não convém tampar o
mesma precisão com que o foram es- sol com a peneira em nome de uma idea-
tas últimas. Freud pouco ou nada refe- lização do legado de Freud, que, aliás,
riu-se à clínica da perversão. conseguia superar-se a si mesmo por
Freud, em seu primeiro modelo teórico meio de seus próprios dotes. As classi-
da perversão, ainda se mantinha, de cer- ficações e as descrições que Krafft-Ebing
to modo, atrelado a uma concepção im- e Havelock Ellis faziam das mais diver-
pregnada pelas descrições das perver- sas formas de perversões sexuais foram
sões sexuais do século XIX. Mas, a par- cuidadosamente examinadas por Freud
tir dos anos 20, ao elucidar o funciona- (1905a) e adotadas na descrição das
mento psíquico e as defesas próprias da “aberrações sexuais”, tema e título do
perversão, abriu fronteiras fundamentais primeiro dos Três ensaios sobre a teoria
para que a psicanálise deslanchasse da sexualidade. Freud reconhece, em
rumo à compreensão de uma série de uma nota de rodapé adicionada logo no
fenômenos psicopatológicos e clínicos início deste texto, que as informações
que escapavam daquilo que se conven- em que se baseava ali foram retiradas
cionara chamar de neurose e psicose, dos trabalhos de Krafft-Ebing, Moll,
modalidades clássicas do adoecer psí- Moebius, Havelock Ellis, Scherenck-
quico. As figuras conceituais da recusa Notzing, Löwenfeld, Eulenburg, Bloch e
(Verleugnung) e da clivagem (Spaltung) Hirschfeld.
do ego possibilitaram à psicanálise pós- A psicanálise sofreu diversas críticas por
freudiana encaminhar-se com maior se- ter buscado nesta fonte a noção de per-
gurança para a exploração não apenas da versão. Até mesmo Lacan (1959-60)
perversão, mas também dos fenômenos alertou para o perigo de uma compreen-
não-neuróticos em geral, tais como são estereotipada da noção freudiana de
aqueles observados no funcionamento genitalidade como índice de maturação.
mental dos psicóticos, dos pacientes Insistindo sobre a dimensão da contin-
borderlines, dos psicopatas, dos droga- gência do objeto do desejo (em oposi-
dictos e dos somatizadores. ção à idéia de que este objeto é natural
Uma breve revisão da noção de perversão na obra de Freud 7

e, portanto, definido biologicamente), para que se eliminem as condutas peri-


Lacan criticou qualquer tentativa de se gosas no encontro sexual. Em linguagem
impor como escopo para o processo psicanalítica, a normalidade implica na
analítico a obtenção do estádio genital da integração das fantasias primitivas e das
teoria do desenvolvimento de Freud. atividades pré-genitais (sádicas, maso-
Para ele, isto não passaria de uma “mo- quistas, voyeuristas, exibicionistas e fe-
ralização racionalizante”. Lantéri-Laura tichistas, próprias da sexualidade infan-
(1979), por sua vez, acusou Freud e til perverso-polimorfa) com as ativida-
seus discípulos de terem promovido a des genitais. A normalidade implica, ain-
restituição do moralismo e da normati- da, na capacidade de excitação e orgas-
vidade, próprios da sexologia médica do mo no ato sexual e na possibilidade de
século XIX, por meio da patologização um relacionamento terno e amoroso, em
da perversão, que tinha como critério a que a gratificação emocional seja reas-
noção de acesso à “genitalidade”. segurada pelo encontro sexual, da qual
Otto Kernberg (1998) preocupou-se em resulte uma conquista de liberdade psi-
discutir este problema do intrincamento cológica. Kernberg procurou, para tan-
entre a abordagem psicanalítica da per- to, excluir de seu critério as intervenções
versão e o inevitável julgamento de va- mais incisivas e pontuais da cultura e da
lores que a cultura e as ideologias pro- moral, tais como a questão da exclusi-
movem sobre tudo o que diz respeito às vidade e da duração dos relacionamen-
manifestações sexuais humanas. Seria tos e do gênero do objeto sexual, área
possível, pergunta-se ele, uma visão ob- em que, como ressalta o autor, “a abor-
jetiva e científica sobre estas questões? dagem científica é particularmente vul-
Não seriam as ciências humanas inexo- nerável à contaminação por preconcei-
ravelmente contaminadas por conven- tos ideológicos e culturais” (p. 69).
ções e vieses culturais? Mesmo levando Quanto a este aspecto moral, talvez pos-
em conta esta limitação, Kernberg não samos enxergar em Freud, mesmo que
se furtou à tarefa de buscar um critério ele se situasse de uma forma um tanto
mais geral para designar a normalidade, ambígua em relação a esta problemáti-
para ele definida pela capacidade de usu- ca, um posicionamento diferente daquele
fruir de uma ampla gama de atividades da sexologia que lhe precedia, ainda mui-
e fantasias sexuais e de compatibilizar o to presa às implicações morais e jurídi-
envolvimento sexual com uma relação cas dos chamados desvios sexuais.
terna e amorosa, na qual prevaleça o pra- Quando, nos Três ensaios..., rejeita a teo-
zer sexual mútuo. Tais critérios, que se- ria da degenerescência para a explicação
guem as linhas gerais daquilo que Freud causal das condutas sexuais desviantes
(1905a) definiu nos Três ensaios..., pres- e, da mesma maneira, mostra-se bastan-
supõem o controle sobre os componen- te cauteloso quanto à adoção da expli-
tes agressivos e hostis da sexualidade, cação pelo “caráter congênito”, ele en-
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caminha esta discussão para uma abor- em parafilia, palavra que designa algo
dagem propriamente psicológica, isto é, como o “gosto pelo acessório” ou por
dá a entender que seria no campo do aquilo que não é o principal, o que vem
psíquico que se encontram os determi- a ser, na prática, o não genital. Uma mu-
nantes da sexualidade, qualquer que seja dança no vocabulário, portanto, nem
a configuração que ela venha a assumir. sempre altera o essencial. A suposta van-
É deste modo específico de conceber tagem ética de uma troca de palavras se-
a formação da identidade sexual que de- ria a eliminação do juízo de valor desfa-
corre um dos pilares da ética psicanalí- vorável contido na palavra perversão na-
tica, que é a concepção do objeto se- quilo que a associa à idéia de perversi-
xual como contingente, e não natural1. dade. Alguns analistas franceses, por
Muita confusão é feita, na própria lite- exemplo, tendem a reservar o termo per-
ratura psicanalítica, sobre as relações versão para designar os tipos de prática
entre homossexualidade e perversão. em que se força alguém a manter uma
Não é raro que o homoerotismo seja su- relação contra sua própria vontade, como
mariamente incluído no rol das perver- nos casos de abuso sexual, ou em que
sões. Freud colaborou para a manuten- se escolhe um objeto incapaz de decidir
ção desta confusão pela forma ambígua por si mesmo, como no caso da pedofi-
e contraditória com que tratou a ques- lia. Joyce McDougall (1997) adota este
tão, ora afirmando a radicalidade de sua ponto de vista, tendo também proposto
tese da contingência do objeto sexual, o nome de “soluções neo-sexuais” para
ora simplesmente mencionando a ho- o que se chama de perversão. Com isto,
mossexualidade (ou inversão, como apa- a autora visa a contornar a conotação
rece nos Três ensaios...) como exemplo depreciativa da palavra.
de perversão, sem maiores explicações. Não creio que este seja um critério to-
Em função do peso que o termo perver- talmente eficaz, pois considero como ti-
são traz consigo, muitas vezes mais as- picamente perversos certos atos ou ri-
sociado a uma forma de julgamento mo- tuais praticados com o consentimento
ral do que a uma estrutura psíquica es- formal do parceiro. É evidente que algu-
pecífica, muito já se discutiu sobre a mas condutas sexuais perversas podem
conveniência de mantê-lo no vocabulá- encaminhar-se para uma forma psicopá-
rio psicanalítico. O D.S.M. (Diagnostic tica de relação objetal. Melitta Schmide-
and statistical manual of mental berg (1956) contribuiu para o esclareci-
disorders, da Associação Psiquiátrica mento desta intrincada relação entre per-
Americana) não fala em perversão, mas versão e delinqüência: para ela, a prática

1. Trato desta questão, com mais pormenores, em meu livro A eternidade da maçã – Freud e a ética
(Ferraz, 1994), parte II, capítulo “Histeria, fantasia e norma – A ética da psicanálise” (pp. 55-64).
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perversa não é obrigatoriamente delin- exaustiva pesquisa sobre este assunto,


qüente, mas determinados atos delinqüen- distingue três momentos essenciais da
ciais, ou parte deles, podem ser vis- teorização da perversão por Freud. O
tos sob este prisma, isto é, alastram-se primeiro deles, baseado no axioma “a
em direção ao campo das práticas sexuais. neurose é o negativo da perversão”, en-
Kernberg (1995) não vê grandes ganhos contra-se formulado nos Três ensaios
práticos na substituição do termo perver- sobre a teoria da sexualidade, de 1905,
são por um equivalente que seja supos- com reverberações em artigos subse-
tamente mais palatável sob o ponto de qüentes, como a Conferência XXI das
vista ético. Afinal, este termo já era uti- Conferências introdutórias à psicanáli-
lizado por Freud e seu uso encontra-se se (“O desenvolvimento da libido e as
consagrado na psicanálise. Quando exa- organizações sexuais”), de 1917. O se-
minamos a forma como a tradição psi- gundo momento relaciona-se com a teo-
canalítica passou a compreender o sen- ria do complexo de Édipo, núcleo não
tido da palavra perversão, vemos que é apenas das neuroses, mas também das
possível encará-la como designação de perversões. Este modelo está presente no
uma estrutura psíquica particular não artigo “Uma criança é espancada: uma
necessariamente ligada à perversidade contribuição ao estudo da origem das
manifesta, mas também muitas vezes – perversões sexuais”, de 1919, aprofun-
por que não dizê-lo? – caracterizada por dando-se nos artigos sobre o complexo
uma relação com os objetos na qual es- de Édipo dos anos 20, como “A orga-
tes são manipulados de modo a serem nização genital infantil: uma interpolação
usados, na pior das acepções do termo. na teoria da sexualidade”, de 1923 e “A
É o próprio Kernberg (1995) que res- dissolução do complexo de Édipo”, de
salta o fato de que perversidade não é o 1924. Finalmente, o terceiro momento,
mesmo que perversão, muito embora, onde muitos autores – particularmente
nos casos mais graves de perversão – os lacanianos – vêem a verdadeira es-
em pacientes a quem ele atribui a pre- sência da perversão, foi formulado no
sença de um “narcisismo maligno” – po- artigo “Fetichismo”, de 1927, quando a
dem-se detectar evidências da perversi- figura da recusa da castração ganha a
dade tanto na transferência como nas cena, associando-se à conseqüente no-
demais relações objetais. ção de clivagem do ego.
O primeiro modelo, em que fica marca-
A PERVERSÃO NA OBRA DE FREUD
da uma relação de negativo/positivo en-
Ao rastrearmos as aparições do tema da tre perversão e neurose, mostra-se ain-
perversão na obra de Freud, constata- da bastante impregnado pela sexologia
mos que ele foi passando por sucessi- do século XIX, da qual, aliás, o próprio
vas e significativas alterações. Janine termo perversão foi retirado. Freud des-
Chasseguet-Smirgel (1991), em sua creve-a, nos Três ensaios..., sob a ru-
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brica das “aberrações” e da “inversão” A perversão decorreria, justamente, da


sexuais. A formação de uma perversão impossibilidade de a corrente genital da
resultaria de uma fixação infantil num es- sexualidade impor-se perante as demais,
tágio pré-genital da organização libidinal. em função de uma fixação, ocorrida na
Na criança, ser perverso-polimorfo por infância, que elevaria uma corrente pré-
excelência, as diversas correntes da se- genital à condição de eixo organizador da
xualidade pré-genital coexistem sem um vida sexual, isto é, de toda a gama de
eixo ordenador que as aglutine e subor- fantasias e atos sexuais de um indivíduo.
dine em torno de si. Na sexualidade As fantasias de tipo pré-genital, que
“normal”, esta operação seria feita, na vêm, na prática, a ser as fantasias per-
puberdade, pela corrente genital da libi- versas, coexistem tanto no neurótico e
do. Aí, então, todas as formas pré-ge- no perverso. Elas desempenham, aliás,
nitais da sexualidade seriam dominadas um papel central na formação do sinto-
pela corrente principal, e os atos delas ma neurótico, sendo um dos lados do
decorrentes se tornariam acessórios ou conflito entre os apelos pulsionais e a
preparatórios para o coito normal, isto censura. Se sobrevém o recalcamento,
é, genital. Assim, o beijo, por exemplo, então o cenário da neurose está desenha-
seria uma manifestação remanescente do do. Mas, salienta Freud, nem sempre é
erotismo oral. Laplanche & Pontalis assim. O perverso, não se sujeitando às
(1967) exprimem esta concepção inicial forças que no neurótico prevalecem, põe
de Freud sobre a perversão, que se tra- em prática as fantasias pré-genitais; não
ta, assim, de um as utiliza apenas como acessório para
Desvio em relação ao ato sexual “normal”, sua excitação, mas faz delas o centro
definido este como coito que visa a obten- mesmo de sua vida sexual. Assim, o
ção do orgasmo por penetração genital, perverso seria tudo aquilo que o neuró-
com uma pessoa do sexo oposto. tico almeja ser, mas não encontra per-
Diz-se que existe perversão quando o or- missão para tal. Esta postulação de
gasmo é obtido por outros objetos sexuais Freud teve uma importância decisiva
(homossexualidade, pedofilia, bestialidade para a compreensão da sexualidade em
etc.), ou por outras zonas corporais (coito geral, pois demonstrou que o perverso
anal, por exemplo) e quando o orgasmo é não porta uma aberração ausente nos ou-
subordinado de forma imperiosa a certas tros seres humanos, mas que ele sim-
condições extrínsecas (fetichismo, trans-
plesmente atua aquilo que se encontra,
vestismo, escoptofilia e exibicionismo, sa-
de forma latente e potencial, em todas
domasoquismo); estas podem proporcio-
nar, por si sós, o prazer sexual. as pessoas.
De forma mais englobante, designa-se por A perversão seria, em uma palavra, a
perversão o conjunto do comportamento manutenção da sexualidade infantil per-
psicossexual que acompanha tais atipias verso-polimorfa na vida adulta. O que
na obtenção do prazer sexual. (p. 432) diferencia a sexualidade infantil daquela
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do perverso é o fato de que, na criança, de pervertida como a normal surgiram da


tudo ainda é apenas potencialidade. Ne- sexualidade infantil. (p. 378)
nhum eixo organizador, tirânico, domi- A sexualidade normal significa, portan-
nou a cena sexual. No adulto perverso, to, a primazia da genitalidade. Mas seria
ao contrário, a sexualidade está definida esta uma descoberta científica de Freud?
e cristalizada: um eixo pré-genital presi- Muito já se falou, no seio da psicanálise
de a vida sexual, tão despoticamente sobre este problema epistemológico. Não
quanto a genitalidade o faz na vida se- estaria Freud impregnado pela moral vi-
xual “normal”. Vejamos um trecho da gente à sua época, para descobrir, após
Conferência XXI, “O desenvolvimento tantos volteios, o mesmo que aquela já
da libido e as organizações sexuais”, na apregoava? Trata-se de um assunto es-
qual Freud (1917a) desenvolve, de for- pinhoso. É em meio a esta problemáti-
ma didática, este raciocínio: ca que entrevemos um Freud ambíguo
Antes de utilizarmos nosso conhecimento e dividido, capaz de formular juízos pre-
das perversões, para nos atirarmos nova- conceituosos por um lado, e, por outro,
mente ao estudo da sexualidade infantil, de produzir um discurso antimoralista de
devo chamar a atenção dos senhores para uma veemência incomum para o seu
uma importante diferença entre elas. A se- tempo, particularmente no que concer-
xualidade pervertida é, via de regra, muito nia à moral sexual. Embora não seja ob-
bem centrada: todas as suas ações se diri- jetivo deste trabalho demorar-me sobre
gem para um fim – geralmente um único fim:
esta questão específica, vale a pena lem-
uma das pulsões componentes assumiu a
brar dois momentos em que Freud as-
predominância e, ou é a única pulsão ob-
servável, ou submeteu as outras a seus sumiu um posicionamento genuinamen-
propósitos. Nesse aspecto, não há diferen- te libertário no tocante à sexualidade.
ça alguma entre sexualidade pervertida e No “caso Dora” (1905b), ele afirmou
normal, a não ser o fato de que suas pul- que não conhecemos os limites da vida
sões componentes dominantes e, conse- sexual normal e que, portanto, não de-
qüentemente, seus fins sexuais, são dife- veríamos nos referir com indignação
rentes. Em ambas, pode-se dizer, estabele- às perversões sexuais, já que até os gre-
ceu-se uma bem organizada tirania, mas, em gos, cuja civilização era superior à nos-
cada uma das duas, uma família diferente sa, promoviam o amor sensual de um
tomou as rédeas do poder. À sexualidade homem por outro. Em outro momento,
infantil, por outro lado, falando generica-
no artigo “Moral sexual ‘civilizada’ e
mente, falta essa centralização; suas pul-
sões componentes separadas possuem doença nervosa moderna”, Freud
iguais direitos, cada uma das quais seguin- (1908a) praticamente saiu em defesa
do seus próprios rumos na busca do pra- do direito dos homossexuais a uma feli-
zer. Naturalmente, tanto a ausência como cidade sexual, dizendo que eles são ví-
a presença de centralização harmonizam-se timas da moral sexual corrente, que im-
bem com o fato de que tanto a sexualida- põe a todos os mesmos padrões, sem
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considerar as suas diferentes constituições. aponta para diferença da abordagem das


Em 1917, Freud publicou o artigo “As pulsões por Freud nestes dois momen-
transformações da pulsão exemplificadas tos, explorando a diferença entre os dois
no erotismo anal”. Embora não fosse um termos utilizados: destinos e transforma-
trabalho dedicado propriamente ao tema ções. Para ele, não se trata da nomea-
da perversão, ele abriu caminho para os ção de mecanismos distintos, mas sim
movimentos teóricos subseqüentes acer- de um modo novo de conceber a pul-
ca desta questão. Donald Meltzer (1989) são. Com a introdução da noção de equa-
vê neste artigo um verdadeiro ponto de ções simbólicas, as pulsões deixaram de
inflexão na forma de pensar de Freud. ser pensadas como meras tensões cor-
No artigo “A pulsão e seus destinos”, porais que exigem satisfação para se ins-
Freud (1915) preocupava-se com as for- creverem em um sistema conceitual no
mas de manipulação da libido. O que qual se considera que a função primor-
aconteceria com as organizações pré- dial da mente é a manipulação de signi-
genitais quando o desenvolvimento do ficações. Meltzer considera este mo-
sujeito se encaminhava para a organiza- mento como o sepultamento da dimen-
ção genital? Freud propunha quatro saí- são do econômico no sistema teórico
das para este impasse, isto é, quatro des- freudiano: seria o fim de um modelo
tinos, de acordo com sua terminologia epistemológico tomado de empréstimo
de então: reversão no oposto, retorno em do energetismo que marcou as ciências
direção a si mesmo, recalcamento e su- na segunda metade do século XIX, para
blimação. a entrada em uma psicologia do ego e
No artigo sobre as transformações da das relações objetais2. Mas, para tanto,
pulsão, Freud (1917b) examinou a pul- o que fazer com todo o arsenal teórico
são anal para, a partir daí, estender para que revitalizou a dimensão econômica da
as pulsões parciais em geral os seus me- metapsicologia com a publicação de
canismos de funcionamento. Meltzer Além do princípio do prazer, em 1920?

2. Estamos, aqui, diante de um complicado problema epistemológico que acompanha a obra de


Freud do início ao fim. Como mostra magistralmente Paul-Laurent Assoun (1983), em sua obra
sobre a epistemologia freudiana, a fidelidade de Freud a um modelo de ciência que lhe precedeu
fazia com que ele perpetrasse sucessivos discursos de inclusão da psicanálise nos parâmetros
do energetismo que deveria embasar toda e qualquer investigação que se pretendesse científica,
nos quais estava presente também o imperativo da medida. Freud se esforçava por caracterizar
a psicanálise como uma Naturwissenschaft, temendo que sua classificação como uma ciência
da alma (Geisteswissenschaft) significasse um rebaixamento. No entanto, quando deixa que a
busca do sentido prevaleça, em sua obra, sobre o quantitativo – tal como na atribuição de
sentido aos sonhos e aos sintomas – ele se desdiz e avança sobre seu próprio modelo de
ciência, que, como podemos ver a posteriori, o aprisionava (não o suficiente para imobilizá-lo,
como o conjunto de sua obra atesta).
Uma breve revisão da noção de perversão na obra de Freud 13

Isto fica sem resposta. Deixando de lado O segundo momento da perversão na


toda e qualquer visão sectarista sobre a obra de Freud, já impregnado pelas aqui-
obra de Freud, quero, no entanto, ficar sições que acabamos de examinar, rela-
com a contribuição de Meltzer, que apon- ciona-se com a formulação do comple-
ta como o movimento conceitual pre- xo do Édipo e com a dinâmica das iden-
sente na idéia de equações simbólicas foi tificações. No artigo “Uma criança é es-
fundamental para a elaboração posterior pancada”, Freud (1919) descreveu uma
do complexo de Édipo e para a compre- fantasia sadomasoquista impessoal que
ensão da dinâmica das identificações. A ouvira de alguns de seus pacientes, na
hipótese de Freud sobre a resolução do qual uma criança estava sendo espancada
complexo edípico feminino encontra-se por um adulto, e procurou traçar sua ar-
na dependência deste achado teórico que queologia na vida mental. Não entrarei
foram as equações simbólicas, por meio aqui nos meandros deste trabalho, bas-
das quais o bebê vem a ser o substituto tante complexo e controvertido3, mas le-
do pênis desejado pela menina. varei em conta algumas de suas conclu-
Tal como procedia ao perseguir, a todo sões. Apenas lembrarei mais uma vez
custo, o sentido contido em todas as Meltzer, que recorre à complexidade da
manifestações da vida psíquica – como formação de fantasias a partir dos pro-
na interpretação dos sonhos e na eluci- cessos de identificação e das equações
dação dos sintomas neuróticos – Freud simbólicas para justificar a conclusão
passou a encarar a vida sexual, a partir sobre a gênese e a formação desta fan-
da noção de equações simbólicas, não tasia nos pacientes de Freud: “... estou
mais como uma mecânica voltada à ob- identificado com uma criança que está
tenção de satisfação para as tensões, sendo espancada por meu pai porque ele
mas como algo pleno de significação e me ama e odeia esta outra criança” (p.
simbolismo. A complexidade das fanta- 159).
sias sexuais presentes em toda forma de Este texto reforça, por um lado, a idéia
ato sexual fica aí evidenciada, o que mar- da perversão como decorrente de uma
cou, por extensão, a compreensão das fixação da libido, como nos Três en-
perversões como estruturas altamente saios...: um dos componentes da sexua-
complicadas. Para Meltzer (1989), ape- lidade teria sofrido um desenvolvimento
nas com um raciocínio deste tipo foi prematuro, isto é, teria passado à frente
possível a Freud destrinchar a estranheza dos outros. Tal independência precoce
da fantasia impessoal “uma criança é es- afasta-o dos processos posteriores de
pancada”, como veremos a seguir. desenvolvimento e, por isso mesmo, ele

3. Donald Meltzer (1989) afirma, quase ironicamente, não compreender como Freud pôde concluir
pela freqüência da fantasia “uma criança é espancada”, da forma impessoal como ela vem à
mente. Meltzer diz que jamais a encontrou, sob este formato, em sua clínica.
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é mantido em sua forma infantil. Se este terrorífico nas perversões, tema consa-
componente passa, depois, por um pro- grado, em 1924, no artigo “O problema
cesso de recalcamento, sublimação ou for- econômico do masoquismo”. Se ligar-
mação reativa, a perversão infantil não mos, então, a compreensão da fantasia
persiste na vida adulta. Caso contrário, masoquista do “Homem dos lobos” à
ela se consolida. Freud, enfrentando a di- fantasia de uma criança sendo espanca-
ficuldade de precisar os motivos pelos da, esta última pode ser lida como: “...
quais uma ou outra saída se dava, não des- eu sou aquela criança e meu pai está me
cartava a presença de um fator consti- copulando desta maneira em que me es-
tucional nesta determinação etiológica. panca tão dolorosamente porque ele me
Ainda que não tenha colocado o com- ama” (Meltzer, 1989, p.159). Para
plexo de Édipo em evidência no artigo Chasseguet-Smirgel (1991), é neste pon-
de 1919, Freud procurou tomá-lo como to que podemos começar a ver que a
fundamento para a gênese das perver- perversão se constitui como uma tenta-
sões, tal como para as neuroses. Afinal, tiva de se erguer uma barreira contra a
o jogo masoquista põe em cena o papel psicose, deixando um pouco para trás a
que as diferenças sexuais têm para o figura conceitual de mero “negativo da
mundo psíquico, bem como a importân- neurose”.
cia da complexidade estonteante das Nos textos dos anos 20 sobre o com-
identificações parentais que se produ- plexo de Édipo, encontramos algumas
zem. É no jogo sadomasoquista que elas indicações dos mecanismos que dão ori-
mostram seu alto grau de complexida- gem à perversão, numa antecipação do
de, quando se pode gozar o gozo do ou- que viria a ser o terceiro e definitivo tra-
tro por identificação. A perversão herda tamento que Freud daria a este assunto
a carga libidinal que pertencia ao com- em 1927. No artigo “A organização ge-
plexo de Édipo, podendo ainda, como nital infantil”, Freud (1923) apresentou,
ocorre no caso do masoquismo, onerar- já em sua plena configuração teórica, o
se pela culpa a que está ligada, o que ex- mecanismo da recusa (Verleugnung) da
plica o gozo obtido a partir de fustiga- castração, essencial à formulação ulte-
ções e sofrimento. No caso do “Homem rior da perversão:
dos lobos” (Freud, 1918), encontramos
Sabemos como as crianças reagem às pri-
exatamente o terror de sucumbir aos de-
meiras impressões da ausência de um pê-
sejos passivos e femininos, decorrentes
nis. Rejeitam o fato e acreditam que elas
de uma identificação com a mãe na cena realmente, ainda assim, vêem um pênis. En-
primária. É interessante salientar que, cobrem a contradição entre a observação
neste momento intermediário da teoriza- e a preconcepção dizendo-se que o pênis
ção sobre a perversão na obra de Freud, ainda é pequeno e ficará maior dentro em
vai se tornando visível a estranha lógica pouco, e depois chegam à conclusão emo-
existente na ligação entre o erótico e o cionalmente significativa de que, afinal de
Uma breve revisão da noção de perversão na obra de Freud 15

contas, o pênis pelo menos estivera lá, an- portanto, na dependência da definição do
tes, e fora retirado depois. A falta de um predomínio de um modelo defensivo
pênis é vista como resultado da castração básico, articulado, naturalmente, com toda
e, agora, a criança se defronta com a tare- a experiência pregressa pré-edípica.
fa de chegar a um acordo com a castração Myrta Casas de Pereda (1996) discorre
em relação a si própria. (pp. 182-183) sobre este problema do status da recu-
No artigo posterior “A dissolução do sa, mostrando quando e como ela assu-
complexo de Édipo”, Freud (1924b) me uma dimensão patogênica, que se-
mostrou como o menino reluta em acei- ria, para a autora, diferente de seu efei-
tar a ameaça da castração. A experiên- to estrutural. O efeito estrutural seria
cia da visão dos órgãos genitais femini- produto do trabalho de recusa sobre a
nos é, então, a prova definitiva da reali- dialética presença-ausência, pelo qual “a
dade da castração, evidenciando, de criança apreende a realidade através da
modo terrorífico, uma verdade que ele recusa da ausência do outro (recusa da
insistia em recusar. Portanto, a renún- morte) e da ausência do pênis materno
cia ao objeto edípico não se dá facilmen- (castração)” (p. 540). Ou seja, este tra-
te: trata-se de um processo sujeito a balho de recusa sustenta a ilusão e as
marchas e contramarchas, que terá fim crenças infantis que expressam o dese-
apenas com uma ameaça suficientemen- jo inconsciente e a função de idealização
te forte. Grosso modo, o complexo de peculiar aos processos de identificação:
Édipo deverá sucumbir a um recalca- “... esta recusa estrutural permite
mento de tal maneira eficaz que merece compreender o efeito simbólico na or-
mesmo o nome de dissolução. No en- ganização subjetiva; é necessário recu-
tanto, uma saída possível para este im- sar morte e castração no contexto do in-
passe é exatamente a consolidação de defensável” (pp. 540-541). Trata-se,
uma defesa psíquica diferente do recal- portanto, daquela recusa inerente à cons-
que, que vem a ser a recusa peculiar à tituição das fantasias infantis que têm a
perversão. A saída encontrada na forma- função de responder às necessidades
ção da estrutura perversa nada mais é engendradas pela pulsão epistemofílica,
que um meio de contornar a realidade detalhadas por Freud (1908b) no artigo
inelutável da castração. Seria impreciso sobre as teorias sexuais infantis. Neste
afirmar que a recusa é um mecanismo artigo, ele já falava da fantasia de uni-
exclusivo da estruturação de uma per- versalidade do pênis como tentativa que
versão. Se seguirmos as indicações de a criança faz de elaborar a excitação pro-
Freud, veremos como se trata de um veniente do enigma da sexualidade. Já se
mecanismo defensivo geral que concor- encontrava, aí, a base do conceito de re-
re, até um certo ponto, com o recalque. cusa da castração.
A estruturação da personalidade a par- A patologia da recusa, por sua vez, pos-
tir do desfecho do conflito edípico fica, sui uma outra significação. Pereda a de-
16 Pulsional Revista de Psicanálise

fine como “... a persistência da recusa substitui o pênis da mulher, isto é, da


da ausência (que) dificulta todo trabalho mãe, em cuja existência o menino acre-
de separação e tem como corolário a di- ditou um dia, até deparar-se com a rea-
ficuldade de simbolização, que conduz lidade da castração. Aquela crença na
ao predomínio do ato sobre o pensamen- universalidade do pênis não pode, no en-
to” (p. 541). É interessante como, na de- tanto, ser assim tão facilmente abando-
monstração que a autora faz desta dife- nada, ainda que uma percepção real a
rença, pode-se entrever que a recusa é, desminta.
em um momento, condição mesma para Deste modo, diante de uma percepção
a simbolização, sendo que sua persistên- chocante que adverte o menino de que
cia para além do momento infantil, isto sua onipotência corre risco, este pode
é, sua cristalização como mecanismo de empreender uma “ação muito enérgica”
defesa predominante, conduz a um efei- que a ela venha contrapor-se: trata-se do
to contrário. No caso da perversão, o mecanismo da recusa. Portanto, a per-
predomínio da recusa representa uma cepção é mantida, mas a afirmação in-
obstrução ao trabalho do recalque, com consciente de que o pênis continua a
a respectiva perturbação da trama edí- existir faz com que a representação des-
pica, o que favorece a confusão entre te se desloque para um outro objeto, a
os papéis e contornos sexuais. Desapa- saber, o fetiche. O fetiche significa, por-
recem as diferenças, limites e normas, tanto, o triunfo sobre a ameaça da cas-
visto que a função paterna fica enfraque- tração e permanece, na vida sexual do
cida e os impulsos incestuosos não en- fetichista, cumprindo o papel de prote-
contram delimitação clara. tor contra ela. Torna-se condição impres-
Temos aqui, assim, todos os ingredien- cindível ao gozo e recebe a carga de va-
tes conceituais necessários para aden- lorização antes orientada ao genital. Daí
trarmos o terceiro momento da teoriza- o alto grau da idealização de que ele é
ção de Freud sobre a perversão, que se objeto.
dá no artigo “Fetichismo”, de 1927. A noção freudiana de recusa colocou,
A tese central deste artigo pode ser re- para a metapsicologia, um problema, de
sumida na idéia expressa por Freud de ordem quase que lógica, a ser resolvi-
que o fetiche4 é um substituto para o pê- do: como se torna possível reconhecer
nis. Mas não para qualquer pênis: ele e negar, simultaneamente, a realidade da

4. A palavra fetiche vem do português feitiço, tendo retornado à sua língua original através do
francês (Ferreira, 1986). Freud retirou o conceito de fetiche da sexologia do século XIX, mas
este termo já era usado no campo da etnologia desde a segunda metade do século XVIII, com
o significado de uma espécie de crença religiosa. Marx também utilizou este termo, transpondo-
o do terreno da etnologia para o da economia. Assoun (1995), em seu livro sobre o fetichismo,
discute detalhadamente os vários empregos desta palavra, dentro e fora do campo psicanalítico.
Uma breve revisão da noção de perversão na obra de Freud 17

castração? Para que tal contradição seja isso Lacan preferiu cunhar o termo for-
mantida, há que se processar uma divi- clusão, cujo correspondente melhor em
são do ego, de modo que este funcione português seria, na minha opinião, rejei-
em dois registros diferentes e antagôni- ção, para traduzir o alemão Verwerfung,
cos, sem que um anule ou influencie o utilizado por Freud no “Homem dos lo-
outro. Devem ser mantidas, lado a lado, bos”, reservando-o para a designação do
duas atitudes psíquicas excludentes se mecanismo de defesa psicótico por ex-
consideradas simplesmente pela lógica celência. No caso do fetiche não se tra-
da consciência: uma atitude que se ajus- ta de um transtorno da percepção, mas
ta ao desejo e outra que se ajusta à rea- sim da crença. A base perceptiva fica
lidade. Esta forma de funcionamento registrada no psiquismo, como assinala
mental só pode se manter se houver Bleichmar ao comentar as razões pelas
uma alteração no ego, já que uma parte quais Freud, no artigo sobre o fetichis-
deste deverá desligar-se de um fragmen- mo, rechaçou o uso do termo escotomi-
to da realidade, ou seja, da castração. É zação, proposto por Laforgue, para re-
por isso que, ao compararmos a perver- ferir-se ao processo psíquico em ques-
são com a neurose, na qual prevalece o tão. Escotomização pressuporia a elimi-
mecanismo do recalque, temos de levar nação integral da percepção, e não era
em conta a existência necessária, na se- este o caso. Na perversão, o que está
gunda, de uma patologia do ego, de em relevo é o papel desempenhado pela
modo semelhante ao que se passa na psi- ilusão na vida psíquica. Por isso, acres-
cose. Semelhante, mas não igual: como centa Bleichmar, “... podemos dizer que
esclarece Bleichmar (1984), o fetiche é o conteúdo renegado é o de uma per-
uma presença que substitui uma ausên- cepção, embora a operação da renega-
cia, significando, portanto, a realização ção não ocorra no ato perceptivo pro-
de um desejo que não coincide, entre- priamente dito e sim na manipulação do
tanto, com uma alucinação do falo, vestígio mnêmico que é produto daque-
como ocorre na experiência psicótica da le” (p. 74).
alucinação de desejos. Segundo o autor, Foi no artigo inacabado “A divisão do
“... a diferença é que a ausência na rea- ego no processo de defesa” que Freud
lização alucinatória de desejos é a de um (1940) desenvolveu a idéia de um ego
objeto real; no caso do fetichismo, é clivado ou cindido, que funciona em
uma ausência vivida sobre a base de dois registros não só diferentes, mas
uma presença ilusória” (p. 69). contraditórios, fato que põe em xeque
A utilização indiscriminada do termo re- sua idéia anterior da existência de uma
cusa (Verleugnung) por Freud, com função sintética do ego, condizente com
efeito, pode dar margem a uma certa a saída neurótica para o conflito edípi-
confusão entre os mecanismos caracte- co, quando o menino cede à evidência
rísticos da psicose e da perversão. Por da castração e aceita a proibição que dela
18 Pulsional Revista de Psicanálise

o livra. Isto pressupõe que, por oposi- bre este fenômeno já adivinhavam o que
ção, o perverso deverá compor um ce- ele viria a constatar e definir posterior-
nário para sua vida sexual em que a cas- mente em outros termos, deparamo-nos
tração seja constantemente negada. com formulações fundamentais, tal como
Mas qual seria a diferença entre o psi- a de que a analidade e o narcisismo do-
cótico e o perverso no que toca ao me- minam a solução perversa. Esta atitude
canismo da clivagem? Freud não se de- de valorização dos escritos mais antigos
teve sobre este pormenor, que é, afinal, sobre a perversão, no entanto, contra-
da maior importância. Se para ele a cli- põe-se a uma tendência de certos desen-
vagem do ego é um mecanismo geral e volvimentos psicanalíticos que conside-
corrente, presente em um grau normal ram aquela primeira abordagem freudiana
mesmo na organização neurótica da per- como praticamente caduca, procurando
sonalidade, tudo indica, então, que existe entronizar o artigo sobre o fetichismo,
uma diferença quantitativa: na psicose, de 1927, como a única e verdadeira ela-
a maior parte do ego se desliga da reali- boração teórica da perversão na sua
dade mesmo que, em um canto recôn- obra.
dito, ele mantenha o vínculo com ela. No Sustento, ao lado de autores como Ja-
perverso, a coexistência de duas atitu- nine Chasseguet-Smirgel – para ficar em
des opostas em relação à castração, du- um só exemplo – que o quadro geral da
rante toda a sua existência, seria a ca- perversão, sob o prisma freudiano, não
racterística marcante. pode ser formado quando ficamos cir-
COMENTÁRIO FINAL cunscritos ao modelo do fetichismo,
como querem alguns. O modelo inicial
Para se compreender o pensamento de proposto por Freud não é descartável em
Freud sobre a perversão há que se res- função de sua abordagem posterior.
gatar o núcleo de seu primeiro modelo Como ocorre com todos os conceitos
conceitual para integrá-lo a um modo importantes por ele formulados, uma re-
global de concebê-la, onde também se ferência não anula a outra, mas soma-
incluam as peculiaridades do conflito se a ela de modo a produzir um concei-
edípico e os mecanismos presentes na to mais amplo e geral, ainda que possa
formação do fetiche, traçando, assim, haver sempre algumas reformulações
um corpo teórico que organize coeren- cabíveis. „
temente os três modelos que se encon-
tram em sua obra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Do primeiro modelo freudiano é impor- ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA. Cri-
tante recuperar o papel da regressão sá- térios diagnósticos do DSM-IV: refe-
dico-anal na formação da perversão. Re- rência rápida. Porto Alegre, Artes
correndo aos textos mais antigos de Médicas, 1995.
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