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Uma Breve Revisão Da Noção de Perversão
Uma Breve Revisão Da Noção de Perversão
Artigos 5
O artigo faz uma revisão da noção de perversão na obra de Freud, definindo três mo-
mentos distintos do uso deste termo por ele: o dos Três ensaios sobre a teoria da sexuali-
dade, de 1905, em que a perversão aparece como “negativo da neurose”, sendo compre-
endida como falha do recalque; o de “Uma criança é espancada”, de 1919, em que a
perversão se relaciona com a teoria do complexo de Édipo, ligando-se à questão da identi-
dade e à produção de fantasias; e o do Fetichismo, de 1927, quando a figura da recusa da
castração ganha a cena, associando-se à conseqüente noção de clivagem do ego, e a per-
versão pode ser encarada como estrutura psíquica. O trabalho sustenta o ponto de vista
de que a compreensão da perversão não pode se dar de modo circunscrito a apenas um
destes modelos, mas sim a partir de uma integração entre eles.
Palavras-chave: Perversão, sexualidade, recusa (da castração), clivagem (do ego)
T his paper reviews the conception of perversion in Freud’s work, defining three distinct
moments of this notion employement: first on Three essays on the theory of sexuality, of
1905, where perversion is seen as the “neurose opposite”, understood as a suppression
failure; then on “A child is being beaten”, of 1919, where perversion is related to the
Oedipus complex theory, connected to the identity issue and to the fantasy production, and
last, the Fetishism, of 1927, where appears the notion of castration disavowal, relating
itself to the consequent concept of ego splitting, and perversion may be seen as a psychic
structure. The paper aims to support the idea that to understand the conception of perversion
it is necessary to integrate all of the former models, not being restricted to just one of them.
Key words: Perversion, sexuality, disavowal, splitting
caminha esta discussão para uma abor- em parafilia, palavra que designa algo
dagem propriamente psicológica, isto é, como o “gosto pelo acessório” ou por
dá a entender que seria no campo do aquilo que não é o principal, o que vem
psíquico que se encontram os determi- a ser, na prática, o não genital. Uma mu-
nantes da sexualidade, qualquer que seja dança no vocabulário, portanto, nem
a configuração que ela venha a assumir. sempre altera o essencial. A suposta van-
É deste modo específico de conceber tagem ética de uma troca de palavras se-
a formação da identidade sexual que de- ria a eliminação do juízo de valor desfa-
corre um dos pilares da ética psicanalí- vorável contido na palavra perversão na-
tica, que é a concepção do objeto se- quilo que a associa à idéia de perversi-
xual como contingente, e não natural1. dade. Alguns analistas franceses, por
Muita confusão é feita, na própria lite- exemplo, tendem a reservar o termo per-
ratura psicanalítica, sobre as relações versão para designar os tipos de prática
entre homossexualidade e perversão. em que se força alguém a manter uma
Não é raro que o homoerotismo seja su- relação contra sua própria vontade, como
mariamente incluído no rol das perver- nos casos de abuso sexual, ou em que
sões. Freud colaborou para a manuten- se escolhe um objeto incapaz de decidir
ção desta confusão pela forma ambígua por si mesmo, como no caso da pedofi-
e contraditória com que tratou a ques- lia. Joyce McDougall (1997) adota este
tão, ora afirmando a radicalidade de sua ponto de vista, tendo também proposto
tese da contingência do objeto sexual, o nome de “soluções neo-sexuais” para
ora simplesmente mencionando a ho- o que se chama de perversão. Com isto,
mossexualidade (ou inversão, como apa- a autora visa a contornar a conotação
rece nos Três ensaios...) como exemplo depreciativa da palavra.
de perversão, sem maiores explicações. Não creio que este seja um critério to-
Em função do peso que o termo perver- talmente eficaz, pois considero como ti-
são traz consigo, muitas vezes mais as- picamente perversos certos atos ou ri-
sociado a uma forma de julgamento mo- tuais praticados com o consentimento
ral do que a uma estrutura psíquica es- formal do parceiro. É evidente que algu-
pecífica, muito já se discutiu sobre a mas condutas sexuais perversas podem
conveniência de mantê-lo no vocabulá- encaminhar-se para uma forma psicopá-
rio psicanalítico. O D.S.M. (Diagnostic tica de relação objetal. Melitta Schmide-
and statistical manual of mental berg (1956) contribuiu para o esclareci-
disorders, da Associação Psiquiátrica mento desta intrincada relação entre per-
Americana) não fala em perversão, mas versão e delinqüência: para ela, a prática
1. Trato desta questão, com mais pormenores, em meu livro A eternidade da maçã – Freud e a ética
(Ferraz, 1994), parte II, capítulo “Histeria, fantasia e norma – A ética da psicanálise” (pp. 55-64).
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3. Donald Meltzer (1989) afirma, quase ironicamente, não compreender como Freud pôde concluir
pela freqüência da fantasia “uma criança é espancada”, da forma impessoal como ela vem à
mente. Meltzer diz que jamais a encontrou, sob este formato, em sua clínica.
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é mantido em sua forma infantil. Se este terrorífico nas perversões, tema consa-
componente passa, depois, por um pro- grado, em 1924, no artigo “O problema
cesso de recalcamento, sublimação ou for- econômico do masoquismo”. Se ligar-
mação reativa, a perversão infantil não mos, então, a compreensão da fantasia
persiste na vida adulta. Caso contrário, masoquista do “Homem dos lobos” à
ela se consolida. Freud, enfrentando a di- fantasia de uma criança sendo espanca-
ficuldade de precisar os motivos pelos da, esta última pode ser lida como: “...
quais uma ou outra saída se dava, não des- eu sou aquela criança e meu pai está me
cartava a presença de um fator consti- copulando desta maneira em que me es-
tucional nesta determinação etiológica. panca tão dolorosamente porque ele me
Ainda que não tenha colocado o com- ama” (Meltzer, 1989, p.159). Para
plexo de Édipo em evidência no artigo Chasseguet-Smirgel (1991), é neste pon-
de 1919, Freud procurou tomá-lo como to que podemos começar a ver que a
fundamento para a gênese das perver- perversão se constitui como uma tenta-
sões, tal como para as neuroses. Afinal, tiva de se erguer uma barreira contra a
o jogo masoquista põe em cena o papel psicose, deixando um pouco para trás a
que as diferenças sexuais têm para o figura conceitual de mero “negativo da
mundo psíquico, bem como a importân- neurose”.
cia da complexidade estonteante das Nos textos dos anos 20 sobre o com-
identificações parentais que se produ- plexo de Édipo, encontramos algumas
zem. É no jogo sadomasoquista que elas indicações dos mecanismos que dão ori-
mostram seu alto grau de complexida- gem à perversão, numa antecipação do
de, quando se pode gozar o gozo do ou- que viria a ser o terceiro e definitivo tra-
tro por identificação. A perversão herda tamento que Freud daria a este assunto
a carga libidinal que pertencia ao com- em 1927. No artigo “A organização ge-
plexo de Édipo, podendo ainda, como nital infantil”, Freud (1923) apresentou,
ocorre no caso do masoquismo, onerar- já em sua plena configuração teórica, o
se pela culpa a que está ligada, o que ex- mecanismo da recusa (Verleugnung) da
plica o gozo obtido a partir de fustiga- castração, essencial à formulação ulte-
ções e sofrimento. No caso do “Homem rior da perversão:
dos lobos” (Freud, 1918), encontramos
Sabemos como as crianças reagem às pri-
exatamente o terror de sucumbir aos de-
meiras impressões da ausência de um pê-
sejos passivos e femininos, decorrentes
nis. Rejeitam o fato e acreditam que elas
de uma identificação com a mãe na cena realmente, ainda assim, vêem um pênis. En-
primária. É interessante salientar que, cobrem a contradição entre a observação
neste momento intermediário da teoriza- e a preconcepção dizendo-se que o pênis
ção sobre a perversão na obra de Freud, ainda é pequeno e ficará maior dentro em
vai se tornando visível a estranha lógica pouco, e depois chegam à conclusão emo-
existente na ligação entre o erótico e o cionalmente significativa de que, afinal de
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contas, o pênis pelo menos estivera lá, an- portanto, na dependência da definição do
tes, e fora retirado depois. A falta de um predomínio de um modelo defensivo
pênis é vista como resultado da castração básico, articulado, naturalmente, com toda
e, agora, a criança se defronta com a tare- a experiência pregressa pré-edípica.
fa de chegar a um acordo com a castração Myrta Casas de Pereda (1996) discorre
em relação a si própria. (pp. 182-183) sobre este problema do status da recu-
No artigo posterior “A dissolução do sa, mostrando quando e como ela assu-
complexo de Édipo”, Freud (1924b) me uma dimensão patogênica, que se-
mostrou como o menino reluta em acei- ria, para a autora, diferente de seu efei-
tar a ameaça da castração. A experiên- to estrutural. O efeito estrutural seria
cia da visão dos órgãos genitais femini- produto do trabalho de recusa sobre a
nos é, então, a prova definitiva da reali- dialética presença-ausência, pelo qual “a
dade da castração, evidenciando, de criança apreende a realidade através da
modo terrorífico, uma verdade que ele recusa da ausência do outro (recusa da
insistia em recusar. Portanto, a renún- morte) e da ausência do pênis materno
cia ao objeto edípico não se dá facilmen- (castração)” (p. 540). Ou seja, este tra-
te: trata-se de um processo sujeito a balho de recusa sustenta a ilusão e as
marchas e contramarchas, que terá fim crenças infantis que expressam o dese-
apenas com uma ameaça suficientemen- jo inconsciente e a função de idealização
te forte. Grosso modo, o complexo de peculiar aos processos de identificação:
Édipo deverá sucumbir a um recalca- “... esta recusa estrutural permite
mento de tal maneira eficaz que merece compreender o efeito simbólico na or-
mesmo o nome de dissolução. No en- ganização subjetiva; é necessário recu-
tanto, uma saída possível para este im- sar morte e castração no contexto do in-
passe é exatamente a consolidação de defensável” (pp. 540-541). Trata-se,
uma defesa psíquica diferente do recal- portanto, daquela recusa inerente à cons-
que, que vem a ser a recusa peculiar à tituição das fantasias infantis que têm a
perversão. A saída encontrada na forma- função de responder às necessidades
ção da estrutura perversa nada mais é engendradas pela pulsão epistemofílica,
que um meio de contornar a realidade detalhadas por Freud (1908b) no artigo
inelutável da castração. Seria impreciso sobre as teorias sexuais infantis. Neste
afirmar que a recusa é um mecanismo artigo, ele já falava da fantasia de uni-
exclusivo da estruturação de uma per- versalidade do pênis como tentativa que
versão. Se seguirmos as indicações de a criança faz de elaborar a excitação pro-
Freud, veremos como se trata de um veniente do enigma da sexualidade. Já se
mecanismo defensivo geral que concor- encontrava, aí, a base do conceito de re-
re, até um certo ponto, com o recalque. cusa da castração.
A estruturação da personalidade a par- A patologia da recusa, por sua vez, pos-
tir do desfecho do conflito edípico fica, sui uma outra significação. Pereda a de-
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4. A palavra fetiche vem do português feitiço, tendo retornado à sua língua original através do
francês (Ferreira, 1986). Freud retirou o conceito de fetiche da sexologia do século XIX, mas
este termo já era usado no campo da etnologia desde a segunda metade do século XVIII, com
o significado de uma espécie de crença religiosa. Marx também utilizou este termo, transpondo-
o do terreno da etnologia para o da economia. Assoun (1995), em seu livro sobre o fetichismo,
discute detalhadamente os vários empregos desta palavra, dentro e fora do campo psicanalítico.
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castração? Para que tal contradição seja isso Lacan preferiu cunhar o termo for-
mantida, há que se processar uma divi- clusão, cujo correspondente melhor em
são do ego, de modo que este funcione português seria, na minha opinião, rejei-
em dois registros diferentes e antagôni- ção, para traduzir o alemão Verwerfung,
cos, sem que um anule ou influencie o utilizado por Freud no “Homem dos lo-
outro. Devem ser mantidas, lado a lado, bos”, reservando-o para a designação do
duas atitudes psíquicas excludentes se mecanismo de defesa psicótico por ex-
consideradas simplesmente pela lógica celência. No caso do fetiche não se tra-
da consciência: uma atitude que se ajus- ta de um transtorno da percepção, mas
ta ao desejo e outra que se ajusta à rea- sim da crença. A base perceptiva fica
lidade. Esta forma de funcionamento registrada no psiquismo, como assinala
mental só pode se manter se houver Bleichmar ao comentar as razões pelas
uma alteração no ego, já que uma parte quais Freud, no artigo sobre o fetichis-
deste deverá desligar-se de um fragmen- mo, rechaçou o uso do termo escotomi-
to da realidade, ou seja, da castração. É zação, proposto por Laforgue, para re-
por isso que, ao compararmos a perver- ferir-se ao processo psíquico em ques-
são com a neurose, na qual prevalece o tão. Escotomização pressuporia a elimi-
mecanismo do recalque, temos de levar nação integral da percepção, e não era
em conta a existência necessária, na se- este o caso. Na perversão, o que está
gunda, de uma patologia do ego, de em relevo é o papel desempenhado pela
modo semelhante ao que se passa na psi- ilusão na vida psíquica. Por isso, acres-
cose. Semelhante, mas não igual: como centa Bleichmar, “... podemos dizer que
esclarece Bleichmar (1984), o fetiche é o conteúdo renegado é o de uma per-
uma presença que substitui uma ausên- cepção, embora a operação da renega-
cia, significando, portanto, a realização ção não ocorra no ato perceptivo pro-
de um desejo que não coincide, entre- priamente dito e sim na manipulação do
tanto, com uma alucinação do falo, vestígio mnêmico que é produto daque-
como ocorre na experiência psicótica da le” (p. 74).
alucinação de desejos. Segundo o autor, Foi no artigo inacabado “A divisão do
“... a diferença é que a ausência na rea- ego no processo de defesa” que Freud
lização alucinatória de desejos é a de um (1940) desenvolveu a idéia de um ego
objeto real; no caso do fetichismo, é clivado ou cindido, que funciona em
uma ausência vivida sobre a base de dois registros não só diferentes, mas
uma presença ilusória” (p. 69). contraditórios, fato que põe em xeque
A utilização indiscriminada do termo re- sua idéia anterior da existência de uma
cusa (Verleugnung) por Freud, com função sintética do ego, condizente com
efeito, pode dar margem a uma certa a saída neurótica para o conflito edípi-
confusão entre os mecanismos caracte- co, quando o menino cede à evidência
rísticos da psicose e da perversão. Por da castração e aceita a proibição que dela
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o livra. Isto pressupõe que, por oposi- bre este fenômeno já adivinhavam o que
ção, o perverso deverá compor um ce- ele viria a constatar e definir posterior-
nário para sua vida sexual em que a cas- mente em outros termos, deparamo-nos
tração seja constantemente negada. com formulações fundamentais, tal como
Mas qual seria a diferença entre o psi- a de que a analidade e o narcisismo do-
cótico e o perverso no que toca ao me- minam a solução perversa. Esta atitude
canismo da clivagem? Freud não se de- de valorização dos escritos mais antigos
teve sobre este pormenor, que é, afinal, sobre a perversão, no entanto, contra-
da maior importância. Se para ele a cli- põe-se a uma tendência de certos desen-
vagem do ego é um mecanismo geral e volvimentos psicanalíticos que conside-
corrente, presente em um grau normal ram aquela primeira abordagem freudiana
mesmo na organização neurótica da per- como praticamente caduca, procurando
sonalidade, tudo indica, então, que existe entronizar o artigo sobre o fetichismo,
uma diferença quantitativa: na psicose, de 1927, como a única e verdadeira ela-
a maior parte do ego se desliga da reali- boração teórica da perversão na sua
dade mesmo que, em um canto recôn- obra.
dito, ele mantenha o vínculo com ela. No Sustento, ao lado de autores como Ja-
perverso, a coexistência de duas atitu- nine Chasseguet-Smirgel – para ficar em
des opostas em relação à castração, du- um só exemplo – que o quadro geral da
rante toda a sua existência, seria a ca- perversão, sob o prisma freudiano, não
racterística marcante. pode ser formado quando ficamos cir-
COMENTÁRIO FINAL cunscritos ao modelo do fetichismo,
como querem alguns. O modelo inicial
Para se compreender o pensamento de proposto por Freud não é descartável em
Freud sobre a perversão há que se res- função de sua abordagem posterior.
gatar o núcleo de seu primeiro modelo Como ocorre com todos os conceitos
conceitual para integrá-lo a um modo importantes por ele formulados, uma re-
global de concebê-la, onde também se ferência não anula a outra, mas soma-
incluam as peculiaridades do conflito se a ela de modo a produzir um concei-
edípico e os mecanismos presentes na to mais amplo e geral, ainda que possa
formação do fetiche, traçando, assim, haver sempre algumas reformulações
um corpo teórico que organize coeren- cabíveis.
temente os três modelos que se encon-
tram em sua obra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Do primeiro modelo freudiano é impor- ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA. Cri-
tante recuperar o papel da regressão sá- térios diagnósticos do DSM-IV: refe-
dico-anal na formação da perversão. Re- rência rápida. Porto Alegre, Artes
correndo aos textos mais antigos de Médicas, 1995.
Freud, em que suas intuições iniciais so- ASSOUN, P.-L. Introdução à epistemologia
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