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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

MARCIO GOLDMAN

A POSSESSÃO E A CONSTRUÇÃO RITUAL

DA PESSOA NO CANDOMBLÉ

RIO DE JANEIRO

1984
MARCIO GOLDMAN

A POSSESSÃO E A CONSTRUÇÃO RITUAL

DA PESSOA NO CANDOMBLÉ

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social do Museu Nacional

da Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

RIO DE JANEIRO

1984
RESUMO

Este trabalho visa desenvolver, em esboço, os princípios de


uma teoria antropológica da possessão. Para isto, toma como
referência empírica o modo de manifestação do êxtase nos chamados
cultos afro-brasileiros, especialmente no Candomblé, e tenta a
partir daí estabelecer qual é a estrutura básica do transe, bem
como sua posição no campo dos fenômenos ditos religiosos. O
primeiro capítulo é uma revisão bibliográfica das diversas
abordagens sobre a possessão na teoria antropológica geral. Adota-
se uma perspectiva histórica e o recorte é efetuado em termos de
“escolas” do pensamento antropológico. O segundo capítulo cerra
mais a questão, abordando as diferentes teorias elaboradas sobre o
êxtase pelos estudiosos dos cultos afro-brasileiros. A partir de
uma crítica de todas as abordagens da possessão, tanto das mais
gerais quanto daquelas desenvolvidas no Brasil, pretende-se propor
um modelo teórico que não incorra nas principais dificuldades
detectadas nos esquemas analisados. Para isto, apresenta-se no
terceiro capítulo um “esquema etnográfico” dos fatos relativos à
possessão no Candomblé, esquema produzido a partir do confronto
entre a experiência de campo do autor com aquelas fornecidas por
outros estudiosos do tema. Finalmente, o quarto capítulo é
dedicado à tentativa de elaborar uma antropologia da possessão,
tentando ao mesmo tempo definir estruturalmente o Candomblé,
encontrar o lugar do transe em tal estrutura e extrair algumas
conclusões de caráter mais abrangente acerca dos mecanismos de
funcionamento dos sistemas religiosos.
AGRADECIMENTOS

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq) tornou possível minha primeira experiência de
campo com o Candomblé através de uma série de bolsas de pesquisa
que financiaram meu trabalho em Tribobó. A Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal (CAPES) do MEC possibilitou
materialmente a conclusão dos créditos do Mestrado através da
concessão de bolsas de estudo. A Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (juntamente com a
Fundação Ford) forneceu a Dotação de Pesquisa essencial para o
trabalho de campo em Ilhéus. O Gay-Lussac Instituto de Ensino
Superior (GLIESP) assumiu as despesas relativas à datilografia e à
reprodução deste trabalho. A todos estes órgãos e instituições,
bem como ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, devo portanto o suporte material que tornou
exeqüível esta dissertação. Agradeço também à Marisa pela
cuidadosa datilografia dos originais.
Versões preliminares do primeiro e do quarto capítulos foram
apresentadas em cursos dos professores Gilberto Velho e Luís
Fernando Dias Duarte, respectivamente; a eles agradeço portanto a
oportunidade para determinar, de modo abrangente, o objeto teórico
e o ponto de vista adotados nessa dissertação. Foram contudo, sem
dúvida, as inúmeras conversas com Ovídio Abreu Filho que
alargaram, esclareceram e precisaram este objeto e este ponto de
vista, fornecendo, em parte, a este trabalho sua forma e postura
finais. É preciso também registrar minha enorme gratidão ao Dr.
Roberto Augusto da Matta, pela atenção amiga com que me honrou;
infelizmente não me foi possível dedicar aqui a devida atenção a
seus trabalhos, reconhecidamente importantes, sobre ritual e
pessoa. E isso, sem dúvida, devido às óbvias diferenças existentes
ii

entre o nível em que eles se situam e aquele, muito mais limitado,


que me contentei em adotar aqui. Agradeço também ao Dr. Peter Fry
por ter aceito participar da banca examinadora desta dissertação.
A meu orientador de curso e de dissertação, Eduardo Viveiros
de Castro, agradeço não apenas indicações e sugestões importantes
para a realização desta dissertação, mas também, e acima de tudo,
o fato de ter me oferecido um elemento essencial para o
desenvolvimento de qualquer trabalho intelectual — a liberdade de
pensar e, consequentemente, de errar, no duplo sentido da palavra,
sozinho; virtude que o exime, evidentemente, de qualquer
responsabilidade pelas hipóteses aqui levantadas.
Nivaldo Pereira Bastos, Camuluaji, zelador-de-santo do Ilê
de Obaluaiê em Tribobó, ofereceu meu primeiro acesso ao complexo
universo simbólico do Candomblé, sendo um dos responsáveis diretos
pelo fato de eu ter por ele me interessado teoricamente. Depois
dele, Dona Ilza Rodrigues, Mametu Mucalê, mãe-de-santo do terreiro
Tombenci de Euá, em Ilhéus, mostrou-me que o Candomblé é muito
mais que um sistema cosmológico ou mesmo uma religião, mostrou-me
que ele é também uma prática e um modo de vida. A estes dois
Vodunsis que me honraram com seu saber, sua dedicação, sua
paciência e, sobretudo, com sua amizade, devo o pouco que conheço
de sua religião.
Em Ilhéus, foi imprescindível o apoio de Líscia Martins e de
toda sua família, bem como o de Mário Gusmão e Valdir Silva que me
conduziram ao Tombenci. Também foi inestimável o auxílio e a
amizade dos membros deste terreiro, especialmente a de Gilmar e
Gilvan. A todos eles é difícil agradecer, pelo muito que fizeram.
A Wagner Neves Rocha devo, além de uma amizade profunda, o
interesse teórico pelos cultos afro-brasileiros. Durante três anos
fui seu assistente de pesquisa, e quase tudo do que é dito nesta
dissertação foi por ele sugerido. No entanto minha incapacidade
para desenvolver suas idéias e sugestões com a sofisticação
iii

teórica com que foram propostas me faz lamentar que este trabalho
não faça, nem de perto, justiça ao que ele me ensinou.
Finalmente, há alguém que, ao lado das instituições citadas,
também contribuiu materialmente para este trabalho; que, junto às
pessoas mencionadas, me ajudou a entender a Antropologia e o
próprio pensamento teórico; que, melhor do que eu, captou junto
aos informantes o sentido do Candomblé. Por tudo isso, eu deveria
também agradecer a ela. Mas porque ela me ofereceu muito mais do
que isso, este trabalho é a ela dedicado.
Para Tânia, portanto.
APRESENTAÇÃO E INTRODUÇÃO

Kuba ki kutexi ê,
Kuenda ki kujimbirilê1

Se é verdade, como disse Lévi-Strauss, que o modo particular


como cada investigador pensa e escreve pode abrir novas
perspectivas de estudo, creio ser importante no início deste
trabalho precisar este meu “modo de pensar”, bem como as
contingências pessoais e intelectuais que conduziram à elaboração
desta dissertação. Desse modo será possível esclarecer
preliminarmente uma série de questões que o desenrolar do trabalho
inevitavelmente colocará. Daí “apresentação” e “introdução” virem
juntas.
O ponto de partida desta dissertação está localizado numa
pesquisa efetuada entre 1978 e 1980, sob orientação e coordenação
de Wagner Neves Rocha, num pequeno terreiro de Candomblé de nação
Angola situado em Tribobó, nos arredores de Niterói — o Ilê do
Obaluaiê. Havendo três assistentes de pesquisa, o trabalho foi
dividido, de modo mais ou menos aleatório, entre nós, tendo tocado
a mim a coleta e análise de dados relativos ao transe e à
possessão, bem como daqueles relacionados a estes fenômenos.
Assim, comecei a me interessar por esta questão e dediquei um bom
tempo à leitura das teorias antropológicas sobre o tema, e também
aos trabalhos relativos aos cultos afro-brasileiros e ao lugar da
possessão em seu interior. Esta leitura, que acabou gerando os
dois primeiros capítulos deste trabalho, teve simultaneamente o
efeito de demonstrar a existência de um rico universo simbólico

1 Dar não é desperdiçar; andar não é perder-se (dito do


Candomblé).
2

conectado ao êxtase, e a produção de uma sensação de insatisfação


generalizada. Insatisfação devida basicamente à disparidade que
parecia existir entre os dados relativos à possessão — de uma
riqueza extraordinária — e as teorias básicas simplificadoras que
procuravam deles dar conta. Assim, acabei constatando a existência
de não mais de dois modelos explicativos para o êxtase, seja entre
os autores que estudaram especificamente os cultos afro-
brasileiros, seja entre aqueles que dedicados à análise do
fenômeno em outros grupos e sociedades, ou mesmo interessados no
desenvolvimento de um modelo geral de explicação.
O primeiro modelo reduzia a possessão à doença, ora tratando-
a diretamente como enfermidade mesmo (geralmente doença mental),
ora concedendo-lhe o estatuto de forma de tratamento “pré-médico”
para perturbações psico-fisiológicas. Já a segunda via explicativa
buscava antes dar conta do êxtase tentando vê-lo, e ao culto que o
encerra, como um reflexo — direto ou invertido, dependendo do
autor em questão — da “estrutura social” abrangente. Os dois
modelos me pareceram bastante decepcionantes. Não, certamente,
porque estivessem intrinsecamente errados: eu conhecia
concretamente, em minha experiência de campo, as ligações entre
possessão, doença e manipulação sócio-política. A questão parecia
ser antes, como eu havia aprendido na obra de Lévi-Strauss, que
estas abordagens apenas contornam o fenômeno visado. Ora, eu
também havia aprendido como este autor que a análise das
implicações, históricas ou sociológicas, de um fato social devia
ser precedida pela determinação de sua estrutura última. Era
justamente isto que as teorias propostas não conseguiam atingir.
O problema me parecia teoricamente ainda mais grave na medida
em que era possível constatar que, no que diz respeito aos estudos
afro-brasileiros, uma espécie de bifurcação teórica havia se
produzido, com o tempo, em seu direcionamento. Pois se os autores
mais antigos, a despeito do evolucionismo e do racismo contidos em
3

seu modo de estudar os cultos, ainda pareciam crer na


possibilidade de uma análise teórica do material coletado, isto
não parecia ocorrer mais a partir da década de 70. Alguns
pesquisadores contentavam-se em descrever o sistema da melhor
maneira possível, chegando mesmo a sustentar a impossibilidade de
um trabalho teórico que não “violentasse” a riqueza e a
especificidade do universo estudado. Tratava-se então do que se
convencionou chamar uma “visão de dentro”. Por outro lado, os
estudos de caráter mais sociológico ou micro-sociológico (estudos
de federações, dramas, acusações etc.) só se interessavam pelas
ligações exteriores do culto sem se preocupar muito com sua
sistematicidade específica. Pareceu-me assim que faltava uma
abordagem antropológica da questão, na medida em que a
Antropologia moderna se caracteriza, creio, justamente em unir o
que as duas perspectivas mencionadas separam: dar conta
teoricamente, isto é, num plano distinto do vivido pelos
informantes, de um conjunto de dados que devem contudo ser
integralmente respeitados em sua particularidade. Em outros
termos, trata-se sempre de fundir “explicação” e “compreensão”.
A pesquisa no Ilê de Obaluaiê levou-me primeiramente a supor
que a chave explicativa do Candomblé, de um ponto de vista
estritamente antropológico, poderia ser encontrada no sistema de
classificação e na cosmologia adotados no culto. Para isso
contribuíram certamente alguns caracteres pessoais do pai-de-santo
do terreiro, nosso principal informante, e homem dedicado a
elucubrações místicas e à construção de intrincados sistemas
cosmológicos. Não que ele os tivesse prontos, ou que se tratasse
de pura invenção pessoal: os esquemas eram flagrantemente
construídos ao longo das entrevistas e conversas, e
progressivamente aperfeiçoados. Por outro lado, não se deve supor
que isto retire de tais esquemas todo valor etnográfico. Ao
contrário, são documentos importantes na medida em que, embora
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sintetizados individualmente, são “bricolados” a partir de um


conjunto e de uma estrutura tradicionais. Não sendo o Candomblé
uma religião codificada, eles fornecem uma das únicas vias de
acesso possíveis a seu sistema de pensamento. É inclusive com este
espírito que eles são utilizados no terceiro capítulo deste
trabalho. No entanto, esta peculiaridade demonstrava — o que só
fui perceber bem depois — a quase inexistência de grandes sistemas
cosmológicos prontos e acabados no Candomblé, ponto freqüentemente
desconhecido ou mal interpretado pelos pesquisadores que trabalham
com os pouquíssimos centros de culto onde tais esquemas parecem de
fato existir e desempenhar uma função importante. E, apesar disto,
trata-se, como veremos, de ponto fundamental para a compreensão de
todo o sistema.
Esta impressão só foi de fato confirmada quando de minha
segunda experiência de campo, no terreiro Tombenci de Euá, em
Ilhéus, no sul da Bahia. Tendo permanecido ali apenas três meses
(contra os quatro anos no Ilê de Obaluaiê), o contato com o grupo
foi muito mais intensivo do que na pesquisa anterior, o que tornou
possível compreender que a essência última do Candomblé devia ser
buscada em outra parte que não sem sua cosmologia ou mitologia. O
Tombenci é um terreiro muito diferente do Ilê de Obaluaiê. Trata-
se de um centro “familiar” cuja mãe-de-santo já faz parte da
terceira geração no comando, e cuja organização repousa sobre os
quatorze filhos carnais da chefe do terreiro e em sua parentela.
Assim, em Ilhéus ressaltava muito mais o aspecto vivido do
Candomblé, enquanto em Tribobó sua faceta litúrgica era muito mais
pronunciada. Além disso, e de modo talvez coerente com sua ênfase
no vivido, a mãe-de-santo do Tombenci não parecia muito preocupada
com detalhes de doutrina ou cosmologia; seu interesse se voltava
marcadamente para o lado ritual do culto. Isto começou a me fazer
levar a sério a afirmativa, ouvida por todo pesquisador de
Candomblé, de que o importante nesta religião é o “saber fazer” os
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rituais, saber secretíssimo a que só têm acesso os iniciados, e


que as informações dadas aos estudiosos — relativas geralmente à
cosmologia, mitologia e classificação de animais, plantas, etc. —
não passam de superfície visível de realidades muito mais
profundas.
Assim, se minha primeira experiência de campo muniu-me de
informações essenciais para a compreensão da estrutura do culto, a
segunda funcionou antes fazendo-me experimentar a realidade vivida
do Candomblé, consistindo portanto muito mais num “trabalho de
campo” no sentido clássico do termo. Foi este trabalho então que,
ao produzir, em escala minorada, este “choque cultural” de que
falam os etnógrafos, me permitiu a leitura crítica de outras
etnografias acerca desta religião. Pois ainda que não haja termo
de comparação entre a pesquisa em sociedades indígenas e a
experiência com o Candomblé, esta última é também a única forma de
ensinar uma perspectiva crítica na consideração de dados
fornecidos por outros pesquisadores. Deste modo, e ainda que este
trabalho não seja uma “etnografia”, a pesquisa de campo foi
essencial para sua elaboração.
Através do confronto entre minhas próprias experiências de
campo e as leituras teóricas e etnográficas que eu efetuava
paralelamente, o plano desta dissertação foi então sendo
precisado. A primeira intenção foi basicamente produzir uma
etnografia do terreiro de Ilhéus e tentar analisá-la da melhor
forma possível. Esta possibilidade contudo logo se afigurou
desanimadora. Em parte, é preciso confessá-lo, devido a uma certa
resistência pessoal a um trabalho estritamente empírico; mas em
parte também, e principalmente espero, em função de uma sensação
de certa inutilidade que este tipo de trabalho provocava. Durante
as leituras acerca dos cultos afro-brasileiros, impressionou-me
sempre a insistência dos autores em apontar a enorme diversidade
que marcaria as manifestações empíricas destas religiões.
6

Sustenta-se que a cosmologia e o ritual variam enormemente de tipo


de culto a tipo de culto, e mesmo de terreiro a terreiro. Ora,
minha experiência em Ilhéus, bem como a consulta às etnografias,
causou-me a impressão de que o inverso parecia mais verdadeiro.
Pois o que impressiona de fato é que uma religião não codificada
formalmente e que, estruturalmente, dá margem a uma enorme gama de
sínteses específicas, pudesse ser tão semelhante no Rio de
Janeiro, em Ilhéus, em Salvador, e em tantas outras partes. Deste
modo, compreendi que uma etnografia corria o risco de não passar
de pura repetição, acrescentada de alguns dados novos, daquilo que
tantos outros já haviam feito — e certamente bem melhor do que eu.
O segundo plano de elaboração do trabalho foi então imaginado
no extremo oposto do precedente. Pretendi neste momento elaborar
uma “análise estrutural” do Candomblé: tomar os sistemas de
classificação aí em vigor como estruturas lógicas e desvendar as
leis ocultas que presidiriam a manifestação concreta de tais
sistemas. A leitura do importante trabalho de Claude Lépine
(Lépine, 1978 — este trabalho será analisado no Capítulo IV)
colocou contudo uma série de dúvidas a respeito da viabilidade de
um tal empreendimento. Não que, teoricamente, ele não seja
possível, e Lépine consegue mesmo alguns resultados admiráveis. No
entanto, e é o próprio Lévi-Strauss que o sustenta, a despeito dos
críticos cegos para este ponto, o que distingue o estruturalismo
do puro formalismo é o rigoroso respeito que o primeiro é obrigado
a demonstrar frente aos dados empíricos e etnográficos. Isto
porque é só o texto etnográfico que pode fornecer a posição
semântica de símbolos que, por possuírem por definição um
significado estritamente relacional, apenas aí podem ter seu
sentido último desvendado. Neste caso, para legitimar uma
abordagem estruturalista do Candomblé, seríamos obrigados a
indagar qual é seu “contexto etnográfico”. Seria ele africano?
Brasileiro? E neste caso, qual? Baiano; Carioca, etc.? A pergunta
7

assume um ar tão estranho que é fácil perceber que a resposta é


obviamente impossível porque, submetido, a partir do processo de
escravização, a um complexo jogo histórico, o Candomblé consiste
de fato numa síntese de diversos elementos de procedências
díspares. Assim, para que uma verdadeira análise estrutural — e
não formal — desse sistema seja possível um longo trabalho
histórico teria antes que ser efetuado, através do estudo
cuidadoso das formas de manifestação das religiões de origem
africana em seu solo natal, das transformações introduzidas pela
escravização, daquelas produzidas com a abolição, com a
industrialização, etc. E ainda assim seria preciso distinguir
níveis, regiões de proveniência e de adaptação, misturas com
outros sistemas, e assim por diante. Só desse modo um “contexto”
poderia ser reestabelecido sem jamais termos a certeza de que as
coisas teriam se passado efetivamente desta maneira e não de outra
qualquer. O célebre trabalho de Roger Bastide (Bastide, 1960)
demonstra, para além de suas virtudes incontestáveis, a
dificuldade empírica — devida fundamentalmente a uma generalizada
escassez de documentos — de um tal empreendimento.
Finalmente, após estas duas tentativas, o plano do trabalho
se precisou. Situei-o num nível intermediário aos dois
precedentes, decidindo que seria mais proveitoso tomar um traço
específico do culto — o transe, traço central — e elaborá-lo o
máximo possível no sentido de conectá-lo com um teoria
antropológica. Esta dissertação não é portanto nem uma etnografia
nem uma etnologia, no sentido dado por Lévi-Strauss a estes
termos. Ou seja, não se trata nem da coleta e descrição de dados
relativos a um terreiro de Candomblé particular (muito menos ao
Candomblé em geral), nem da análise particular de tais dados.
Tenho de fato a pretensão de ter escrito um trabalho de
Antropologia, no sentido da construção de uma teoria geral de
determinada instituição cultural. Esta teoria geral, é verdade,
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está apenas esboçada, mas creio que esta dissertação só pode ser
compreendida se este pressuposto for levado em consideração. Caso
contrário, correrá o risco de ser julgada não pelo que pretende
ser, mas pelo que “deveria” ter feito, o que não seria muito justo
ou proveitoso.
Sendo assim, e embora a influência da obra de Lévi-Strauss
seja aqui evidente, seria errôneo, e mesmo, até certo ponto,
ridículo, rotular como “estruturalista” este trabalho. Ele se
situa muitíssimo aquém de uma tal ambição e visa simplesmente
esclarecer, do ponto de vista da Antropologia, a questão do êxtase
religioso, e, ao mesmo tempo, utilizar as manifestações concretas
do transe para repensar algumas questões chaves da Antropologia.
Eis tudo.
Estas colocações explicam, creio, o plano concreto desta
dissertação que procura seguir o mais próximo possível a ordem de
constituição de minhas hipóteses acerca do fenômeno investigado. O
primeiro capítulo é uma resenha, bastante abrangente, das
diferentes teorias antropológicas a respeito da possessão. O
recorte foi conscientemente efetuado em termos de “escolas” do
pensamento antropológico, colocadas segundo uma ordenação
histórica simples. Esta perspectiva, ainda que tenha alguns
inconvenientes, serviu para isolar os temas básicos que têm, de
Tylor a Luc de Heusch, direcionado os estudos antropológicos sobre
o êxtase religioso em suas diferentes formas de manifestação.
A partir da caracterização de duas vertentes básicas de
explicação — uma “medicalizante” e outra “sociologizante” — o
segundo capítulo procura investigar se e como estes dois modelos
se manifestam no caso das análises acerca do transe nos chamados
cultos afro-brasileiros. Constatando que estas análises
correspondem exatamente às teorias mais gerais sobre o fenômeno,
uma tentativa de crítica é elaborada, crítica que leva a precisar
o tipo de abordagem que se pretende adotar bem como o alvo visado.
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Isto significa que estes dois primeiros capítulos não são nem uma
análise de “campo intelectual”, nem uma simples “história das
idéias”, nem mesmo uma “arqueologia” desta área do saber. Trata-se
apenas de, através de uma leitura crítica de autores clássicos
(que me parece imprescindível numa dissertação de Mestrado),
determinar o objeto teórico a ser investigado e o tipo de análise
a ser utilizado em tal investigação2.
Mas para que a análise teórica, esboçada no Capítulo IV,
ficasse clara e pudesse ser compreendida, o terceiro capítulo teve
de ser elaborado para fornecer os dados essenciais a partir dos
quais foram formuladas as hipóteses do capítulo seguinte. Não se
trata portanto — e este ponto é importante — de uma etnografia,
mas do que se poderia chamar um “esquema etnográfico” visando
ilustrar uma análise teórica. Os dados aí utilizados foram
coletados basicamente no Ilê de Obaluaiê porque, como já foi dito,
o material doutrinário daí proveniente é mais abundante e rico em
detalhes. Acredito, apesar disto, que as conclusões teóricas

2 Notar-se-á uma diferença de estilo na apresentação das teses


mais gerais acerca da possessão, efetuada no Capítulo I, e aquela
das teorias desenvolvidas sobre os cultos afro-brasileiros
especificamente, desenvolvida no capítulo seguinte. Neste último
caso, com efeito, as citações diretas serão mais freqüentes e mais
extensas, enquanto no primeiro será privilegiada uma forma mais
direta de exposição. Isto se deve a um duplo motivo: em primeiro
lugar porque há um esforço de aproximação no segundo capítulo, uma
tentativa de tratar mais de perto a questão do transe; em segundo,
porque — e isto não constitui a meu ver nenhum demérito — os
autores que trataram do êxtase no Brasil não apresentam nem a
sistematicidade nem o caráter explicitamente teórico daqueles que
tentaram esboçar uma teoria geral da possessão, o que se explica,
evidentemente, pela própria diferença de nível de abstração que se
pretende atingir em cada caso.
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apresentadas no Capítulo IV possuem uma validade bem mais ampla do


que a estreita base empírica apresentada. Pois embora possa haver,
e haja efetivamente, diferenças importantes de terreiro para
terreiro, tais diferenças não passam de manifestações concretas de
um esquema básico que permeia todas estas realizações empíricas. A
experiência no Tombenci de Ilhéus e a leitura das monografias
sobre vários terreiros convenceram-me que o modo pelo qual a
possessão foi encarada tem uma aplicabilidade bastante abrangente,
desde que se o aplique num nível mais profundo do que a pura
superfície dos dados brutos.
Estas últimas observações conduzem diretamente a um dos temas
recorrentes na literatura acerca dos cultos afro-brasileiros, a
questão da “pureza” dos terreiros investigados e do material
coletado. Por “pureza” entende-se geralmente uma maior ortodoxia
em relação à tradição africana, e neste sentido os centros por mim
investigados seriam considerados “impuros” por serem, ambos, de
nação Angola (vista tradicionalmente como sincrética, em oposição
à pureza Nagô e, em menor escala, Gêge) e por conterem elementos
nitidamente extraídos de cultos como a Umbanda e mesmo o
Kardecismo.
No entanto, se aceitarmos que o critério distintivo entre o
Candomblé e os demais cultos de procedência africana, ou a eles
mesclados, é a possessão por divindades ligadas à natureza (os
Orixás), e não por espíritos de mortos ou “encantados”, os
terreiros aqui em questão são de Candomblé e se opõem, explícita e
conscientemente à Umbanda, por exemplo. A partir deste ponto
contudo as coisas começam a ficar mais confusas. Como determinar
como isenção o que é “puro” ou “impuro”? E ainda que isto seja
possível, através de um confronto — sempre parcial e suspeito,
aliás — com realidades africanas, qual a utilidade teórica de uma
tal distinção? Não seria ela apenas uma certa forma de
etnocentrismo, praticada meio às avessas? Uma recente polêmica
11

opondo Juana Elbein dos Santos e Pierre Verger, dois guardiães da


ortodoxia afro-brasileira, pôs a nu o caráter falacioso de uma tal
questão. Pois percebe-se claramente aí que neste ponto, para
retomar literalmente uma expressão popular, cada um faz sua
África. A partir daí não é difícil reivindicar, sempre de modo
legítimo então, uma maior proximidade em relação a ela. Talvez
estas reivindicações possam apresentar um interesse político
qualquer, o que ainda é duvidoso. Mas para quem pretende uma
abordagem teórica elas não possuem, é evidente, qualquer sentido
ou utilidade.
Este é o motivo pelo qual não me preocupei aqui com
transcrições fonéticas precisas. Os Orixás e seu culto fazem parte
certamente da realidade brasileira, e seus nomes e conceitos a
eles ligados estão inteiramente integrados à língua portuguesa. As
especificidades aí existentes são as mesmas observáveis em
qualquer dialeto regional, com a diferença de possuírem um sentido
eminentemente religioso. Grafo tais nomes e conceitos portanto
utilizando a transcrição clássica utilizada desde Nina Rodrigues.
Outra sutileza que não causará preocupação aqui é a distinção
entre termos como “possessão”, “transe”, “êxtase”, etc. Existe uma
série de tipologias, variáveis aliás de autor para autor (a mais
detalhada pode ser encontrada, creio, em Rouget, 1980: 25-102), e
elas são certamente válidas na medida em que distinguem realidades
que não se justapõem com exatidão. Como a pretensão aqui não é
taxonômica, mas analítica, deixei de lado estas sofisticações e
utilizei os termos do mesmo modo que os fiéis do culto o fazem, ou
seja, como denominações intercambiáveis.
Vê-se então que este trabalho situa-se no cruzamento de uma
série de experiências bastante pessoais: trabalhos de campo
específicos, preferências teóricas, certa forma de entender o que
é a Antropologia e qual sua tarefa teórica, etc. Desse modo, as
várias críticas aqui propostas contra visões teóricas e autores
12

não têm evidentemente um sentido pejorativo, nem mesmo pretendem


desqualificar o ponto de vista visado. Trata-se antes de um
exercício para tentar pensar a possessão, o Candomblé e, de um
modo ínfimo, a própria Antropologia, de uma maneira alternativa.
Trata-se então de utilizar certas predisposições pessoais para
tentar esboçar uma nova perspectiva de abordagem sobre a possessão
e sobre todo o mundo do Candomblé.
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CAPÍTULO I

A POSSESSÃO NA ANTROPOLOGIA

1. Introdução

Em 1655, dois missionários capuchinhos italianos, os padres


Giovanni Antonio Cavazzi da Montecaccolo e Antonio de Gaeta, são
capturados pela então rainha de Angola, conhecida por Nzinga,
nascida em 1582 e convertida ao cristianismo em 1622, no curso de
uma tentativa de negociação com os portugueses levada a cabo por
seu irmão e antecessor no trono, Ngola Mbandi. Negociação
fracassada, o rei angolano prossegue sua guerra contra Portugal
até 1627, ano de sua morte. Nzinga assume então o poder, renega a
fé cristã e segue guerreando os portugueses de forma ainda mais
encarniçada que seu irmão. Adere mesmo ao clã “antropofágico” dos
Jagga, cujos membros professam um culto aos antepassados que se
manifestam possuindo feiticeiros conhecidos como singhilli. Nzinga
dedica especial devoção ao espírito de seu irmão morto, de quem
ela conserva os ossos em uma caixa de prata.
Ao receber os capuchinhos italianos capturados, Nzinga
decide, devido a uma mistura de fé religiosa e razões de Estado,
tornar-se cristã novamente. Para isso, contudo, crê dever
consultar cinco feiticeiros singhilli através de quem cinco
antepassados deverão dizer se lhe é permitido ou não abolir a lei
dos Jagga. Os quatro primeiros espíritos (Kasa, Casange, Chinda,
Calanda) afirmam pouco lhes importar a rainha tornar-se cristã
novamente e deixar de honrá-los, tais honrarias não lhes estariam
fazendo qualquer falta. De qualquer forma, sustentam eles, os
demais Jagga continuariam adorando-os. Mas a última palavra cabe
ao quinto dos espíritos, justamente Ngola Mbandi, irmão e
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predecessor da rainha no trono. Este, para o espanto final dos


missionários, autoriza Nzinga a fazer o que lhe aprouver e,
inclusive, a abandonar seu esqueleto e a adoração a ele dedicada
por ela, que poderia mesmo desfazer-se da caixa de prata.
Três anos mais tarde, um novo caso de possessão pelos
antepassados confirmará para os padres aquilo de que já
suspeitavam. Em 1656, o padre Antonio de Gaeta retorna à corte da
rainha Nzinga, realiza sua segunda conversão e, junto a ela,
começa a introduzir a vida cristã na aldeia: igrejas e cemitérios
são construídos, um tratado de paz com os portugueses é concluído.
Em 1658, contudo, a rainha faz trazer à presença do missionário um
feiticeiro singhilli que, possuído, estaria provocando enormes
distúrbios na aldeia. O capuchinho o enfrenta de modo inequívoco —
através do exorcismo. Instigado, o possesso sustenta que seu nome
é Ngola Mbandi, o irmão morto de Nzinga. Esta deseja matá-lo como
farsante, mas o padre, querendo demonstrar o poder da fé e a força
da Igreja, proíbe a execução e procede aos rituais de exorcismo. O
feiticeiro se debate, atirando-se ao solo, rugindo, reafirmando
sua pretensa identidade, até que num arremate final escapa da
igreja mergulhando em uma profunda fossa, queda que o mataria
algumas horas mais tarde.
Ao padre Gaeta não resta nenhuma dúvida sobre o acontecido.
Os dois episódios por ele presenciados, o de 1655 com os cinco
singhilli e o de 1658 com o possesso suicida, nada mais teriam
consistido, em sua interpretação, do que em conflitos entre a
verdadeira e a falsa fé, entre Deus e o Demônio. Este último, para
atingir seus objetivos, assume as mais variadas formas, entre elas
as falsas divindades cultuadas pelos primitivos. Forçado pelo
representante de Deus, não tem outra alternativa: diz a Verdade
curvando-se aos poderes sagrados, ou, ao recusá-lo, termina por
15

aniquilar o corpo que o abriga. Tal teria ocorrido respectivamente


em 1655 e em 16583.
Cerca de meio século antes destes acontecimentos africanos,
a pequena cidade de Loudun, na França, havia sido palco de um
teatro semelhante embora, sem dúvida, muito mais espetacular. Uma
dezena de irmãs ursulinas do convento da cidade são consideradas
possuídas pelos demônios e resistem a todas as tentativas de
exorcismo que se estendem por nove longos anos, de 1632 a 1640.
Durante estes anos, o cura da aldeia será queimado como
feiticeiro, a Igreja voltará toda sua atenção para o estranho
fenômeno, e, finalmente, a principal das possuídas, Madre Joana
dos Anjos, liberta da influência satânica pelo exorcista Surin,
encontrará a glória como visionária mística, vagando e se
mostrando por todas as paróquias francesas e, depois, por toda a
Europa (cf. Certeau, 1970).
Estes dois acontecimentos, tão próximos no tempo quanto
afastados no espaço, não são evidentemente estranhos um ao outro.
Seu confronto pode nos sugerir algo. A “possessão de Loudun” não
foi nem o primeiro nem o último ato de um enorme ciclo místico que
varre a Europa nos séculos XVI e XVII. Feiticeiros e possessos,
bem como seus algozes e exorcistas, marcam profundamente estes
duzentos anos da história européia. Mas estes personagens não são
tampouco os iniciadores desta longa e equívoca cumplicidade que o
Ocidente demonstra frente aos fenômenos extáticos. Dois mil anos
antes de Loudun, os sacerdotes levitas, em seu esforço pela
centralização do culto de Yahvé, se dedicavam a um combate contra
videntes, profetas, orgiásticos, todos aqueles enfim que se

3 A estória da rainha Nzinga, seu irmão e seus catequistas, foi


publicada de forma independente pelos padres Gaeta e Cavazzi em
1669 e 1690, respectivamente. O resumo aqui utilizado é o do padre
Laurent Kilger (cf. Kilger, 1948: 122-129).
16

atreviam a um contato direto, não mediatizado pelas instituições


sagradas, com as potências divinas (cf. Weber, 1970: cap. I).
Nesta mesma época, e ainda na bacia mediterrânea, o controle da
verdade passava, na Grécia Antiga, das mãos dos místicos, poetas e
videntes para aquelas do homem sóbrio, com domínio pleno de sua
vontade, o filósofo (cf. Cornford, 1975: 1a parte; Detienne, 1967:
caps. I e IV).
Os conflitos envolvendo a possessão na Judéia e na Grécia
antigas podem ilustrar em boa medida algumas das razões da
exclusão que o Ocidente tem imposto, ao longo dos tempos, àqueles
que buscam a experiência direta do sagrado, tendo como único
intermediário seu próprio corpo. Em primeiro lugar, o exemplo
judaico demonstra que a forma específica de desenvolvimento das
instituições religiosas ocidentais, através de uma centralização
progressiva, faz com que o monopólio da relação com as forças
sagradas se encontre irremediavelmente ameaçado pelo simples
reconhecimento de que esta relação poderia se efetuar por outros
meios que não aqueles institucionalmente previstos e recomendados.
E, mais do que isso, correr-se-ia o risco de ver a palavra divina
apresentada diretamente, quando sua legitimidade só é reconhecida
quando representada por um corpo sacerdotal institucionalizado e
hierarquizado. De fato, na tradição judaico-cristã, a revelação se
faz apenas uma vez, ou no máximo algumas vezes e sempre nos tempos
bíblicos, e a partir deste momento só pode ser (re)transmitida por
quem possui o direito de fazê-lo. As revelações trazidas pela
possessão, ao contrário, são contínuas, repetem-se
indefinidamente, podem variar, e seus portadores podem ser, ao
menos virtualmente, qualquer um.
Por outro lado, o caso grego ilustra uma outra antinomia
básica entre certos valores centrais do mundo ocidental e a
experiência do transe. De fato, o possuído é, evidentemente, um
ser unitário e, no entanto, de modo paradoxal, ele é mais do que
17

um. O que fazer então desta “unidade do eu”, tão cara ao Ocidente
e que tem na Grécia, sem dúvida, um de seus focos de origem? Como
aceitar que o “sujeito” possa se colocar fora do domínio de sua
consciência, sem enxergar aí uma manifestação de um estado
“selvagem”, de uma natureza maligna, ou mesmo a irrupção de um
processo patológico? O “energoumenos” grego, o “mente captus”
latino são decididamente colocados do lado da anormalidade, pois
constituem o signo visível de uma impossível, ou inaceitável,
transformação do homem em “outro” (cf. Foucault, 1979: 88).
As formas de êxtase reconhecidas como mais ou menos
legítimas no Ocidente, longe de questionarem essas constatações,
podem, ao contrário, reforçá-las. Pois, de um lado, o possesso
demoníaco está obviamente “fora de si”, “inconsciente”, as faltas
por ele cometidas neste estado não sendo consideradas pecados, e
sendo preciso “salvar sua alma”, ou seja, restituir a unidade
perdida de seu eu. Por outro lado, o místico cristão cuja alma
busca ascender até Deus encara sua trajetória ao mesmo tempo como
ascese e como “mergulho no interior de si”, já que é apenas aí —
São João da Cruz é claro sobre este ponto — que a verdadeira
unidade (com Deus) pode ser encontrada (cf. Saint-Joseph, 1948:
86-87).
A tradição cristã reunirá então as lições provenientes dos
dois universos paralelos, o judaico e o greco-latino. A vidência,
o desdobramento do eu, a possessão, serão codificados sob o signo
do demoníaco e constituirão, ao mesmo tempo, um desafio e um
instrumento para os poderes da Igreja. Desafio porque é imperativo
dar combate, sem tréguas, às manifestações do demônio no mundo;
instrumento porque através deste combate a vontade de Deus é
reafirmada perante os homens:

“Deus permite as possessões, diz São


Boaventura, com a finalidade de manifestar
sua glória, seja através da punição do
18

pecado, da correção do pecador ou para


nossa instrução” (Foucault, 1979: 88-89).

Eis porque o padre Gaeta não pode permitir à rainha Nzinga


executar o feiticeiro singhilli possuído que blasfema contra a fé
cristã. Seu exorcismo lhe servirá, crê o missionário, para mais
uma vez reafirmar a crença verdadeira frente aos pagãos. Assim
havia acontecido três anos antes com os cinco singhilli que acabam
autorizando a conversão da rainha; assim deveria acontecer
novamente. Pois o Demônio é impotente face aos imperativos do
exorcista: acuado, fustigado, termina por ceder e confessar a
verdade, verdade que nada mais é do que seu próprio caráter
ilusório e enganador. É esta também a inevitável conclusão de
Monsenhor Anouilh, missionário francês que visita a China em 1862:

“Le croiriez-vous? Dix villages se sont


convertis. Le diable est furieux et fuit
les cent coups. Il y a eu, pendant les
quinze jours que je viens de prêcher, cinq
ou six possessions. J’ai vu des choses
merveillheuses. Le diable m’est d’un grand
secours pour convertir les païens” (citado
em Tylor, 1913, vol. II: 141 — os grifos
são meus e o trecho encontra-se em francês
no original).

Neste sentido, a partir do que foi sumariamente aqui


colocado, pode-se perceber claramente que o contato, cada vez mais
freqüente a partir do século XVI, entre o Ocidente e as novas
sociedades que a expansão européia põe em seu alcance, está
submetido desde o início a uma codificação mais ou menos precisa.
O encontro como o Outro jamais é inocente; somos conduzidos
através dele por esquemas mentais e culturais pré-existentes que
invariavelmente buscam reduzi-lo a uma manifestação do Mesmo, ou
então a alguma forma de alteridade menos radical e ameaçadora. É
19

exatamente o que parece ocorrer quando o Ocidente se defronta com


sociedades, inúmeras e espalhadas por todo o mundo, onde o transe
e a possessão são fatos, normativa e até estatisticamente,
“normais”. A constatação progressiva de que quase todas as
culturas apresentavam algo de semelhante às “possessões
demoníacas” abria evidentemente a teórica possibilidade do
reconhecimento deste tipo de experiência como inscrita, enquanto
virtualidade, na natureza humana e, por conseguinte, podia levar a
admitir sua normalidade potencial. No entanto, é fácil perceber
que os esquemas mentais ocidentais, culturalmente determinados, só
poderiam conduzir a um resultado diametralmente oposto, atribuindo
estes fenômenos a um tipo de natureza pré-social ou mesmo “pré-
humana”. Assim, como se acreditava que os possuídos pelo Demônio
no Ocidente eram aqueles que não possuíam o controle de si
próprios, ou seja, aqueles que não eram capazes de assumir
plenamente sua cultura — daí a predileção demoníaca pelas
mulheres, “melancólicos” e “insensatos”, aqueles em quem a
“vontade e a piedade” são menos fortes (cf. Foucault, 1968: 20-
21), seres situados então nos limiares da cultura, lá onde esta se
mescla e se confunde perigosamente com a natureza — acreditou-se
também que povos inteiros que se supunha viverem em pleno estado
de natureza estariam, com muito mais razão ainda já que não
dispunham sequer virtualmente dos mecanismos salvadores do
cristianismo, à mercê dos ataques do diabo e de suas incontáveis
falanges.
Ora, é exatamente neste contexto que o saber antropológico é
forjado e se desenvolve num primeiro momento. Não que ele seja
simplesmente o herdeiro da tradição cristã ou mesmo colonial; ou
ainda, que consista numa ciência desenvolvida como justificativa
ideológica da expansão européia, ao mesmo tempo um efeito e um
instrumento seu. Tudo isso já foi repetido inúmeras vezes e é
simplista demais, as coisas se passando, como sempre, de modo um
20

pouco mais complexo. A expansão ocidental, o colonialismo, a


catequese “descobrem” e produzem um objeto particular sobre o qual
se constituirá a futura ciência antropológica. Esta não resulta
portanto de um confronto direto com um objeto real e inerte que
estaria pronto à sua espera, mas sim de um diálogo complexo e
equívoco do qual participam as sociedades “primitivas”, os vários
discursos que o Ocidente vai produzindo a seu respeito e a
respeito de suas diferenças em relação a ele (o discurso do
conquistador, o do colonizador, do administrador, do missionário,
etc.) e a nascente ciência da sociedade. Num tal contexto
histórico e ideológico, não será surpreendente constatar que
muitos dos temas analisados pelos primeiros antropólogos sociais —
alguns deles tendo se tornado objetos “clássicos” para a reflexão
antropológica posterior — provenham não das sociedades que
pretendem analisar, como eles certamente o supõem, mas do
confronto entre estas sociedades e aquela mesma de onde provêm os
cientistas. Estes terminam assim por projetar sobre outros panos
de fundo culturais fenômenos inerentes a seu próprio sistema
social, fenômenos que acabam então por sofrer uma espécie de
difração deformante.
Assim, quando marinheiros portugueses, observando a
“veneração” demonstrada por certas populações africanas face a
determinados objetos inanimados, aproximaram estes objetos dos
talismãs que eles próprios utilizavam e que chamavam de
“feitiços”, teve início a longa história do “conceito” de
fetichismo, alvo de tantos debates no decorrer do desenvolvimento
da Antropologia, e cuja utilização no caso dos cultos afro-
brasileiros é bem conhecida (cf. Tylor, 1913, vol. II: 143). É
óbvio que os navegadores portugueses não estavam apenas projetando
um nome, mas fundamentalmente noções e princípios. É exatamente a
mesma coisa que ocorre quando, após dois séculos de perseguições e
21

fogueiras, os europeus passam a encontrar bruxos, feiticeiras e


possessos entre os “selvagens”.
Esta situação coloca um problema para as investigações da
Antropologia moderna, especialmente no campo da chamada
Antropologia da Religião, já que é nesta área (mas não somente
nela) que este tipo de projeção parece ocorrer com mais
freqüência. Pois é sempre essencial saber se estamos lidando com
objetos dotados de algum grau de realidade, ou se estamos apenas
às voltas com sombras projetadas por nossas próprias luzes sobre
outras telas. Sem dúvida, a dissolução do “conceito” de totemismo
levada a cabo por Lévi-Strauss é o melhor exemplo de denúncia,
crítica e esclarecimento de uma tal perspectiva que pode ser
chamada, com exatidão, de etnocêntrica. Demonstrando que a
substantivação e a particularização da noção de totemismo
desempenhava uma função ideológica ao projetar

“na ordem da natureza modos de cultura que,


se tivessem sido reconhecidos como tais,
teriam logo determinado a particularização
de outros aos quais se atribuía um valor
universal” (Lévi-Strauss, 1975: 14),

Lévi-Strauss acaba por chegar à conclusão de que o pretenso


totemismo não é nada mais do que um caso particular de uma
universal classificatória onipresente nas sociedades humanas, não
podendo servir portanto para individualizar aqueles que o adotam
no seio da humanidade.
Sucederia então, talvez, com a possessão o mesmo que com o
totemismo? Estaríamos condenados irremediavelmente a vê-la se
desvanecer como objeto no momento mesmo em que a isolamos? Seria
possível tratá-la como algo menos brutal do que uma força selvagem
que individualiza e põe à parte aqueles que a experimentam?
Estaríamos às voltas enfim com uma espécie de “ilusão extática”?
Responder a estas questões significa, creio, colocar-se na via de
22

uma explicação verdadeiramente antropológica para o transe.


Observamos anteriormente, de modo excessivamente sumário, como não
poderia deixar de ser aqui, que a possessão exerce um estranho
fascínio, misto de atração e repugnância, sobre a cultura
ocidental; vimos também, rapidamente, que num primeiro momento ela
foi interpretada de acordo com a concepção cristã da possessão
demoníaca. Gostaria agora de interrogar os efeitos que este tipo
de relação e este tipo de interpretação primeiras do transe
exerceram sobre a constituição de um saber antropológico a
respeito deste fenômeno. Para isto, apresentarei como as
principais “correntes” de pensamento antropológico refletiram e
teorizaram acerca da possessão.

2. O Evolucionismo e a Possessão

É por demais sabido que a Antropologia Social ou Cultural se


constitui em torno de um debate entre a natureza biológica do
Homem e suas modalidades de existência cultural. A articulação
entre o reconhecimento da unidade da primeira e a constatação da
diversidade da segunda constitui, em última análise, o solo
epistemológico desta ciência. Neste sentido, pode-se supor que as
diferentes maneiras de fazer funcionar esta articulação entre
unidade bio-psicológica da espécie e diversidade cultural
constituem a base de diferenciação das diversas tradições e
teorias antropológicas.
Até meados do século XIX, os filósofos contentavam-se em
explicar a diversidade cultural através do postulado da existência
de uma diversidade paralela no plano biológico ou geográfico, ou
então, admitindo a unidade última destes planos, em aceitar o fato
das diferenças sociais sem se preocupar muito com sua
fundamentação e explicação teóricas. Foi basicamente com Morgan e
23

Tylor, a partir de 1860, que uma Antropologia que se pretende


científica começa a se esboçar, sob o signo, sabe-se, de um
problemático conceito de “evolução social”. Pressupondo que a
diversidade cultural empírica não passasse de uma máscara que
ocultava a verdadeira unidade da “Humanidade”, não constituindo
mais que uma defasagem no tempo entre as várias sociedades, os
autores evolucionistas buscavam não apenas classificar estas
sociedades de acordo com alguns esquemas evolutivos, mas
fundamentalmente tentavam construir estes esquemas. Ora, construir
uma escala, qualquer que ela seja, supõe um padrão, padrão que não
poderia deixar de ser constituído pelos valores e ideais próprios
à sociedade ocidental do final do século XIX, mais
especificamente, à Europa vitoriana. Assim, um autor como Morgan,
que trata de esboçar a evolução global da humanidade de uma “idade
étnica” a outra, adota como critérios decisivos para marcar a
passagem de um estágio ao seguinte alguns aperfeiçoamentos
técnicos ou tecnológicos que assegurariam ao homem um maior
controle do meio natural, ou uma capacidade de transformação da
natureza mais ampla. É óbvio, hoje, que se este tipo de critério
corresponde a um certo ideal socialmente valorizado no Ocidente
especialmente a partir da Revolução Industrial, ele se mostra
totalmente desprovido de valor objetivo para a quase totalidade
das culturas que se pretende classificar justamente através dele.
Na verdade, parece que os diferentes critérios utilizados
pelos vários evolucionistas na classificação evolutiva das
sociedades podem sempre ser reduzidos a este ideal de controle da
natureza. Para Morgan, preocupado com fenômenos mais “objetivos”
tais como o parentesco e a tecnologia, este domínio sobre o meio
ambiente aparece de forma clara e direta como capacidade real para
transformá-lo. Na obra de outros autores, mais interessados em
fatos “ideológicos” ou de ordem mental, o critério aparecerá na
forma de uma espécie de controle cognitivo sobre a natureza. Ou
24

seja, uma sociedade seria considerada tanto mais evoluída quanto


melhor parece conhecer a realidade objetiva. É claro que este
“melhor” se refere ao grau de semelhança entre os conhecimentos de
uma sociedade qualquer e aqueles tidos por verdadeiros pela
ciência ocidental da época.
Este ponto é bastante claro na “lei dos três estágios de
Comte”, no esquema “magia-religião-ciência” de Frazer e,
especialmente, nos trabalhos de Tylor que, entre os
evolucionistas, parece ter sido sem dúvida quem mais se dedicou ao
estudo dos fenômenos religiosos. Dos dezenove capítulos de sua
principal obra (Tylor, 1913), nada menos que onze são consagrados
a fatos deste tipo (mitologia, ritual e religião propriamente
dita). Ao contrário de Morgan, que acreditava ser a religião
alguma coisa completamente destituída de sentido, atribuindo-a
mesmo a um estágio inferior de desenvolvimento do próprio cérebro
humano4, Tylor sustenta a plena racionalidade das crenças e
práticas religiosas, acreditando que o antropólogo tem como missão
própria à sua disciplina buscar

“the reasonable thought which once gave


life to observances now become in seeming
the most abject and superstitious folly.
The reward of these enquires will be a more
rational comprehension of the faiths in
whose midst they dwell...” (Tylor, 1913,
vol. I: 421).

4 “O desenvolvimento das idéias religiosas é tão difícil de seguir


que, provavelmente, nunca poderá constituir matéria de uma
exposição perfeitamente satisfatória. As crenças religiosas estão
a tal ponto imbuídas de imaginação e afetividade e assentam por
conseguinte em conhecimentos tão incertos que todas as religiões
primitivas são grotescas e, em certa medida, ininteligíveis”
(Morgan, 1976, vol. I: 15).
25

Em outros termos, Tylor parece crer que a diferença


primordial entre “primitivos” e “civilizados” não consiste na
ausência de racionalidade por parte dos primeiros, mas
simplesmente no fato de que eles não teriam tido “ainda” tempo
suficiente e necessário para organizar corretamente suas
observações sobre a realidade. Ou seja, haveria ao longo da
evolução da “Humanidade” uma acumulação de experiências que, por
sua própria seqüência, corrigiriam progressivamente as explicações
esboçadas a seu respeito. Este “progresso” dos conhecimentos
conduziria o homem desde as primeiras formas de pensamento
religioso (cuja função seria então fornecer estas explicações) até
a ciência moderna. Subjacente a esta evolução, e às modificações
por ela produzidas nas teorias sobre a realidade, permaneceria,
desde sempre, uma racionalidade absolutamente intemporal que se
modificaria apenas quantitativamente e que permitiria, no fundo,
que as crenças primitivas, por mais estranhas que sejam, possam
ser explicadas nos termos do pensamento científico.
Para isso, bastaria reduzi-las a juízos promulgados acerca
do mundo objetivo, juízos certamente inadequados e errôneos quando
comparados aos modernos, mas nem por isso menos racionais ou
objetivos. A evolução da humanidade consistiria então, em suma, no
progressivo refinamento quantitativo de uma racionalidade que, em
estado bruto, existiria desde o início. Para Tylor, a época
vitoriana estaria assistindo ao derradeiro capítulo desta vitória
da razão superior, quando as últimas formas de pensamento
supersticioso — aí compreendida a própria religião cristã que,
mesmo sendo a mais “evoluída” das religiões, conteria ainda muitos
traços “primitivos” — estariam cedendo frente ao inexorável avanço
do pensamento científico. Desse modo, o trabalho do evolucionista
era também encarado como um importante momento deste combate ao
funcionar como denúncia destes últimos resquícios irracionais,
destas “sobrevivências” (termo cujo radical coincide com
26

“superstição) e contribuir para sua superação definitiva. É pois


com este duplo espírito que a investigação acerca da religião é
levada a cabo por Tylor: demonstração da racionalidade, entendida
como observação inadequada porém razoável da realidade, presente
no pensamento primitivo, e denúncia simultânea de suas
sobrevivências no mundo moderno no intuito de ultrapassar tais
superstições e instaurar o domínio absoluto das idéias claras e
positivas, do pensamento científico enfim. Acompanhemos então,
resumidamente esta “démarche”.
De início, Tylor preocupa-se em encontrar para a religião
uma definição suficientemente abrangente, capaz de conter as
diversas espécies do gênero e não se restringir a um ou outro tipo
de crença religiosa. Esta é aliás sua principal crítica aos
autores que negavam a existência de vida religiosa entre os povos
ditos primitivos: terem utilizado uma definição demasiado restrita
que acabava fazendo com que só fosse considerado “religioso”
aquilo que coincidia com as próprias crenças do investigador.
Sendo assim, propõe como “definição mínima de religião” a crença
em Seres Espirituais (cf. Tylor, 1913, vol. I: 424). É justamente
esta crença que recebe o nome de “Animismo”. Este,
consequentemente, não consiste para Tylor, como alguns autores
chegaram a interpretar, erroneamente, numa etapa primitiva e
original da religião que tenderia a ser ultrapassada ao longo da
evolução. Ao contrário, trata-se para ele da própria essência do
pensamento religioso, de seu traço característico, e que,
portanto, estaria presente em todas as modalidades que a vida
religiosa teria assumido ao longo do tempo.
A forma mais elementar — e então mais primitiva e original —
que o Animismo (isto é, a religião) assume é vista como sendo a
crença na “alma” (“Doutrina das Almas”), entendida pelo primitivo
como um princípio misterioso que anima o corpo que habita mas que,
por ser distinta dele, pode afastar-se em certas ocasiões. Esta
27

“Doutrina” não teria aparecido contudo como obra do acaso ou da


difusão, mas derivaria inevitavelmente, como resposta lógica e
racional, dado o baixo nível de desenvolvimento da humanidade
nascente, de um duplo problema colocado ao homem por sua própria
natureza: de um lado, a crença na alma explicaria a diferença
entre a vida e a morte (bem como estágios intermediários como a
doença, por exemplo); de outro, forneceria uma satisfação
intelectual ao enigma proposto pelas figuras humanas e paisagens
naturais que aparecem nos sonhos e nas visões. A morte, em
primeiro lugar, poderia ser explicada como a separação total e
definitiva entre o corpo e a alma que o animava (quando a
separação é parcial e provisória ter-se-ia as enfermidades); os
sonhos e as visões, por seu turno, nada mais seriam do que
afastamentos temporários da alma, período durante o qual ela
visitaria outras regiões e encontraria outras pessoas, vivas ou
mortas, regiões e pessoas que comporiam justamente as aparições
que se percebem nos sonhos e visões (cf. Tylor, 1913, vol. I: 428-
429).
Esta Doutrina das Almas, primeira manifestação do Animismo e
da vida religiosa, é encarada como se ampliando e complexificando
progressivamente, atravessando estágios como a Doutrina dos
Espíritos, o Fetichismo, o Culto aos Antepassados, Naturismo,
Politeísmo, Dualismo e, finalmente, o Monoteísmo, forma mais
avançada da religião, mas nem por isso menos presa nas malhas das
ilusões animistas na medida em que seu deus único não passa do
resultado da generalização e da abstração lineares das idéias de
alma e espírito. Para Tylor, apenas o materialismo científico
poderia nos libertar de nossos últimos devaneios.
Para os objetivos deste trabalho, no entanto, não é preciso
acompanhar o pensamento de nosso autor até tão longe. Basta deter-
se no ponto em que uma explicação para o transe e a possessão é
deduzida de sua teoria geral da religião. Este ponto situa-se no
28

momento em que a “Doutrina das Almas” original seria ampliada numa


generalizada “Doutrina dos Espíritos”:

“Spirits are simply personified causes. As


men’s ordinary life and actions were hold
to be caused by souls, so the happy ou
disastrous events which affect mankind, as
well as the manifold physical operations of
the other-world, were accounted for as
caused by soul-like beings, spirits whose
essential similarity of origin is evident
through all their wondrous variety of power
and function” (Tylor, 1913, vol. II: 108-
109).

Ora, do mesmo modo como sustentavam que as almas podiam existir


por si próprias, encarnando-se nos corpos para dar-lhes vida
(“embodiment of souls”), os primitivos creriam também que os
espíritos — espécie de almas hiperbólicas de existência paralela
às almas comuns — poderiam perturbar a alma normal de alguém, seja
tomando seu lugar no corpo que anima, seja influenciando seu
comportamento por aproximação. No segundo caso estaríamos às
voltas com uma obsessão; no primeiro com uma possessão (cf. Tylor,
1913, vol. II: 123-124). Estas seriam as duas modalidades básicas
de “possessão demoníaca”, nome dado por Tylor aos fenômenos
relativos ao transe e ao êxtase religioso. Trata-se certamente,
ele não tem dúvidas sobre o assunto, de crença totalmente falsa
mas que no entanto, de acordo com os pressupostos positivistas do
evolucionismo acima mencionados, deve cumprir alguma função útil
para o desenvolvimento da humanidade. Para Tylor a função das
crenças na “possessão demoníaca” seria fundamentalmente fornecer
uma explicação, falsa e provisória é claro, para o fenômeno
universal da doença:
29

“it provides na explanation to the


phenomena of morbid exaltation and
derangement, especially as connected with
abnormal utterance, and this view is so far
extended as to produce an almost general
doctrine os disease” (Tylor, 1913, vol. II:
123).

A possessão consistiria dessa maneira numa interpretação


cuja existência corresponderia a uma primeira etapa dessa “teoria
geral das doenças”. Com o progresso do saber médico-científico
esta explicação se retrairia primeiramente para o campo das
perturbações mentais fornecendo um quadro explicativo para
distúrbios como a epilepsia, a histeria, etc., para, finalmente,
desaparecer, cedendo frente ao avanço da medicina positiva também
neste setor (cf. Tylor, 1913, vol. II: 135). Neste sentido, Tylor
acha-se então em condições de concluir que:

“It has to be thoroughly understood that


the changed aspect of the subject in modern
opinion is not due to disappearence of the
actual manifestations which early
philosophy attributed to demoniacal
influence. Hysteria and epilepsy delirium
and mania, and such like bodily and mental
derangement, still exist. Not only do they
still exist, but among the lower races, and
in superstitious districts among the
higher, they are still explained and
treated as of old (...). It is in the
civilized world, under the influence of the
medicine doctrines which have been
developing since classic times, that the
early animistic theory of these morbid
phenomena has been gradually superseded by
views more in accordance with modern
science, to the great gain of our health
30

and happiness” (Tylor, 1913, vol. II: 142-


143).

Deste modo, assim como os fenômenos reais do sonho e da


morte teriam a capacidade de gerar a ilusória idéia de “alma”, que
no entanto, num estágio evolutivo primitivo, funcionaria
adequadamente ao fornecer uma explicação intelectualmente
satisfatória para os mistérios levantados por essas duas
realidades, também o fenômeno, igualmente real, da doença poderia
ser plenamente explicado através da idéia de espírito e das
perturbações, obsessão ou possessão, que este poderia causar. É
evidente não ser aqui necessário tornar a levantar todas as
críticas de que a visão evolucionista pode e tem sido objeto. Seu
intelectualismo e positivismo ingênuos, bem como seu etnocentrismo
não tão ingênuo, têm sido denunciados repetidamente já há quase um
século e seria mais ou menos inútil retomar aqui estas denúncias.
Dentro do espírito desta revisão bibliográfica acerca das teorias
antropológicas sobre a possessão — tentar determinar a natureza
geral destas teorias e, a partir daí tratar de esboçar uma visão
alternativa — basta evocar algumas características importantes do
pensamento de Tylor relacionadas com os desenvolvimentos teóricos
posteriores e que podem mesmo ajudar a compreendê-los.
Em primeiro lugar, fundar a própria definição de religião na
adoração de “seres espirituais” e, simultaneamente, estabelecer
sua origem em torno da dicotomia corpo/alma, parece bastante
cristão, demasiado cristão mesmo. Isto só pode ser confirmado e
reforçado quando o transe é “classificado” em obsessão e
possessão, justamente as duas categorias utilizadas pelo
cristianismo para catalogar e combater as influências do Demônio
sobre os homens. Em outros termos, tudo indica que Tylor, que no
final das contas pretende elaborar uma crítica materialista da
religião que fira o próprio universo cristão, utiliza na
construção desta crítica termos e conceitos forjados por este
31

sistema de crenças. É talvez para ultrapassar este paradoxo que


ele se vê obrigado a enraizar essas “falsas teorias” mentais na
realidade material do corpo, da morte e da enfermidade. E ele não
está sozinho neste empreendimento. Toda a segunda metade do século
XIX, da Filosofia à Psiquiatria, passando pela nascente ciência
social, se une nesse esforço reducionista e positivista que,
entretanto, não se esgotará com o final do século. Ao contrário,
este tipo de visão fundará todo um modo de tratar a possessão que
irá permear as mais variadas perspectivas teóricas, e isto até
hoje.
No campo propriamente antropológico, Tylor, ao inverter
simplesmente a perspectiva teológica anterior — pois, como vimos,
os temas e problemas básicos são mantidos — instaura todo um campo
para as análises científicas do transe. Este campo se encontra,
parece, balizado por dois marcos essenciais: a possessão como
enfermidade real (re)conhecida através de uma falsa explicação. O
preço a ser pago então para se atingir uma perspectiva considerada
científica a respeito do transe é a dissociação deste fenômeno
sobre dois planos qualitativamente distintos. De um lado, a
verdade de uma realidade objetiva enraizada na natureza biológica
do homem — a doença, mental ou não; de outro, a falácia de uma
explicação subjetiva, embora racional, originada no
desconhecimento parcial e temporário da verdade última do mundo
real.
Esta dissociação teórica do fenômeno estudado, bem como o
duplo reducionismo, biologizante (a “realidade” da doença) e
psicologizante (a “falsidade” da explicação), que a acompanha
invariavelmente, permanecerá de forma direta ou transformada em
praticamente todas as tentativas teóricas de dar conta do êxtase
religioso, mesmo nos modelos explicativos mais recentes.
32

3. A Explicação Funcionalista e o Transe

Admite-se correntemente hoje em dia que a história de uma


disciplina científica não consiste em um processo único e contínuo
de redefinições e aperfeiçoamentos constantes e progressivos. Os
discursos ditos científicos parecem apresentar inflexões, pontos
de rompimento, descontinuidades, “rupturas epistemológicas” enfim.
Também as ciências humanas refletem deste modo acerca de seu
processo de desenvolvimento histórico. Que ele tenha efetivamente
se dado assim ou que os cortes tidos como fundamentais realmente o
sejam é uma outra questão que não cabe tratar aqui. O importante é
somente lembrar que, no caso da Antropologia Social ou Cultural, o
grande ponto de ruptura que a teria desligado finalmente de seu
passado filosófico e especulativo, costuma ser usualmente situado
no início deste século em torno de dois desenvolvimentos teóricos
paralelos: de um lado a obra de Franz Boas na América do Norte; de
outro, o surgimento do funcionalismo britânico.
Não é difícil perceber o que há de comum entre esses dois
estilos, de resto tão diferentes, de fazer Antropologia: tanto
Boas quanto Malinowski opõem-se radicalmente às elucubrações
reconstrutivistas do evolucionismo, bem como do difusionismo,
vitorianos. A este tipo de história, “conjectural” como foi
pejorativa e justamente denominada, estes dois pensadores passam a
opor uma exigência estrita de dados concretos confiáveis que
possibilitem induções seguras e generalizações legítimas. Ora,
sabendo-se que as sociedades estudadas preferencialmente pelo
antropólogo encontram-se, em sua imensa maioria, desprovidas de
praticamente qualquer registro histórico de seu passado, esse tipo
de exigência só poderia vir a ser preenchido através do recurso às
técnicas de trabalho de campo e observação participante. É
justamente aqui que se costuma localizar o nascimento da moderna
Antropologia, ou seja, no contato direto, longo e intensivo
33

estabelecido pelo pesquisador com a sociedade estudada. Boas e


Malinowski forneceriam assim os paradigmas desse “corte
epistemológico” que fundaria as bases de uma disciplina
verdadeiramente científica. A questão que se poderia colocar a
esta pretensão é a de saber se uma descontinuidade no plano
metodológico, ou antes, ao nível das técnicas de pesquisa, de uma
ciência pode de fato ser considerada como uma ruptura tão radical.
Cumpriria antes indagar acerca de possíveis cortes no plano
teórico, isto é, não nos processos de coleta de material empírico,
e sim na forma de procedimento das generalizações analíticas.
Deste ponto de vista a posição de Boas (a que retornarei mais
adiante) parece mais sólida do que a de Malinowski, embora
paradoxalmente termine numa negação quase total do verdadeiro
trabalho antropológico, a construção de teorias gerais sobre as
culturas e sociedades humanas. Tudo se passa como se, pressentindo
sua incapacidade para transpor de modo positivo para o nível
teórico as inovações obtidas em termos de métodos e técnicas de
pesquisa, bem como o grau de rigor exigido, Boas terminasse por
evitar cuidadosamente toda e qualquer tentativa de abstração
teórica e mesmo de generalização empírica.
Malinowski, ao contrário, procederá de modo bastante
diferente. Recusando, como Boas, o “método comparativo” que
caracterizava para ambos as fracassadas tentativas teóricas do
evolucionismo e do difusionismo, ele não se furta contudo às
generalizações e abstrações teóricas. O problema é que quando a
base empírica, essencial para essas operações intelectuais, foi
reduzida desde o início a apenas uma sociedade, ainda que
pesquisada de forma intensa e extensiva, fica muito difícil
generalizar e abstrair sem cair em armadilhas epistemológicas
comprometedoras.
A saída funcionalista para este dilema é o recurso à idéia
de “natureza humana” que, na antropologia malinowskiana, longe de
34

corresponder a um virtual ponto terminal da análise aparece, bem


ao contrário, como seu pressuposto inicial e foco de resolução de
todos os problemas teóricos. Esta “natureza humana” é encarada
primeiramente de um ponto de vista quase biológico como o conjunto
de processos vitais que caracterizam o homem enquanto ser vivo e
que, portanto, geram determinadas necessidades que têm que ser
preenchidas. Num tal contexto, a cultura (bem como qualquer
cultura particular) é reduzida a um conjunto de respostas
instrumentais dadas pelo homem a certos problemas colocados por
sua própria natureza (as “necessidades”). Num primeiro momento
estes problemas são puramente biológicos, adaptativos,
correspondendo ao que Malinowski denominava “necessidades básicas”
(“metabolismo”, “reprodução”, “saúde”, etc.), necessidades que
engendrariam “respostas culturais” na forma de instituições
(“aprovisionamento”, “parentesco”, “higiene” e assim por diante).
O preenchimento cultural dessas necessidades básicas produz
contudo um efeito de geração de novas necessidades, chamadas
conseqüentemente de “derivadas”. Assim, por exemplo, o
“aprovisionamento”, instituição que funciona como resposta
cultural para a necessidade básica “metabolismo” se transforma em
novo “imperativo” (na forma de “necessidade derivada”) porque
exige uma “aparelhagem” cultural de implementos e bens de consumo,
ou seja, a instituição da “economia”. Nesse sentido, para
Malinowski, explicar uma instituição ou costume significa
exclusivamente indagar a respeito de sua “função”, isto é,
determinar que “necessidade”, básica ou derivada não importa, esta
instituição ou costume contribui para satisfazer5.

5 A posição teórica de Malinowski sobre a “teoria das


necessidades” está explicitada em Malinowski, 1941: passim. Para
uma crítica radical desta perspectiva, cf. Sahlins, 1976: 73-91.
35

É a partir desses pressupostos que deve ser entendida a


abordagem funcionalista dos fenômenos que aqui nos interessam,
“religião” e “magia” (já que Malinowski, influenciado certamente
pelas colocações de Frazer, trata sempre destas duas instituições
em conjunto). Seria certamente difícil considerar os fenômenos
mágico-religiosos como respostas diretas a necessidades básicas,
ou mesmo derivadas. Para se compreender perfeitamente a posição de
Malinowski em relação a este tipo de fenômenos, é preciso
acrescentar que sua concepção de “natureza humana” não se esgota
nos componentes biológicos desta, englobando também uma dimensão
psicológica. Isto porque é o indivíduo que experimenta as
necessidades; é ele que tem que se adaptar a um determinado meio-
ambiente, a cultura não sendo vista mais do que como um
instrumento a serviço desta adaptação, instrumento do qual o ser
humano detém o monopólio certamente, mas que não difere
substantivamente, fazendo-o apenas em grau, dos diferentes
mecanismos adaptativos encontrados na natureza entre os animais.
Ora, quando os processos culturais não asseguram uma adaptação
perfeita, quando a incerteza se interpõe entre o indivíduo e o
meio, aquele experimentaria uma sensação de temor e angústia
frente ao desconhecido e àquilo que não consegue controlar
materialmente. A magia e a religião são consideradas então
justamente como mecanismos culturais destinados a minimizar estes
sentimentos, porque forneceriam ao indivíduo tanto uma ilusão de
que o que é incontrolável por meios técnicos objetivos poderia sê-
lo por meios mágicos, quanto um canal através do qual ele pode
manifestar legitimamente sua angústia e assim exorcizá-la — os
comportamentos e atitudes rituais (cf. Malinowski, 1974; Nadel,
1957).
Deste ponto de vista acabamos por nos encontrar estranha e
espantosamente próximos às teses evolucionistas sobre a religião.
De fato, para Malinowski, esta continua sendo uma falsa explicação
36

sobre fenômenos reais. A diferença essencial é que aqui o


intelectualismo vitoriano é substituído por uma perspectiva
afetivista que privilegia os sentimentos, as emoções, e não o
raciocínio. Para Tylor a falsa explicação imaginada pelo primitivo
possuía a virtude de lhe proporcionar uma satisfação intelectual
acerca do sentido do mundo e de abrir o caminho para o progresso
constante do saber e da razão; para Malinowski, as ilusões mágico-
religiosas do “selvagem” impediriam um “stress” emocional frente
ao misterioso e ao incontrolável, não sendo contudo dotadas de
qualquer caráter lógico ou racional. Com o avanço da ciência e o
aumento dos conhecimentos sobre o mundo objetivo, os procedimentos
religiosos tenderiam, para ambos os autores, a diminuir
progressivamente. Para o primeiro, devido a uma superioridade
natural dos conhecimentos mais recentes sobre os anteriores; para
o segundo, porque cada vez menos situações apareceriam como
desconhecidas e/ou incontroláveis, diminuindo conseqüentemente o
número de momentos angustiantes para o homem. Neste contexto, as
diferenças realmente básicas distinguindo Malinowski dos
evolucionistas que ele tanto criticava, parecem muito menores do
que se costuma crer. Na verdade, elas praticamente se reduzem ao
fato de que Malinowski não pretendia reconstruir o processo
evolutivo da humanidade. E isso não porque discordasse
teoricamente da utilidade ou da validade desta reconstrução, mas
simplesmente porque acreditava não dispor de informações e dados
seguros que permitissem fazê-lo. Ele não deixava contudo de tomar
a idéia de evolução, se não como pressuposto teórico, ao menos
como evidência material. Eis porque, talvez, um método tão
diferente do comparatismo tyloriano podia conduzi-lo a resultados
bastante semelhantes àqueles obtidos pelo pensamento
evolucionista. Algumas análises do transe extático direta ou
indiretamente influenciadas pela teoria malinowskiana sobre
religião e magia permitirão aprofundar esta estranha aproximação.
37

Malinowski parece jamais ter se interessado diretamente pelo


estudo da possessão, mas alguns de seus discípulos e seguidores
tentaram algumas incursões neste campo de trabalho. Assim, Raymond
Firth, cuja teoria sobre a religião pretende estar diretamente
vinculada às teses funcionalistas (cf. Firth, 1951), e que afirma
ter se interessado pelo transe ao presenciar diversas sessões
mediúnicas durante seu trabalho de campo em Tikopia, esboça uma
análise do êxtase completamente deduzida das principais hipóteses
da antropologia da religião de Malinowski. Trata-se, como sempre,
de descobrir a “função” do transe:

“For societies lacking modern psychological


medicine, spirit medium treatment of
patients can be an extremely interesting
instance of self help” (Firth, 1969: XI).

E, de modo ainda mais explícito, algumas páginas adiante no


mesmo texto:

“But the most important social function is


to provide treatment for sick people. This
the cult do by operating a set of extra-
normal behavious in speech and gesture.
They offer to the sick person, who is
himself behaving in an abnormal way, a
framework of ideas and practices which is
very different from that of normal,
everyday life. For the more purely physical
ills the therapeutic effect of spirit
medium practices may be no more than
reassurance. But for the mentally ill (the
‘possessed’), the conceptualization in
spirit idiom gives diagnosis and prognosis
in terms of the patient’s own fantasies.
Such a mode of fighting fire with fire
often seems to have great stress-reducing
effect, for both patient and audience”
38

(Firth, 1969: XIII-XIV; os grifos são


meus).

O esquema explicativo é portanto, a despeito das diferenças


de doutrina, rigorosamente paralelo ao de Tylor. A doença é aqui
também tomada como uma realidade substantiva que introduziria um
elemento exógeno, perturbador e disruptivo, na vida social normal.
Tylor se contentava em acreditar que uma explicação, ainda que
falsa, desse elemento seria suficiente para conjugar a ameaça que
ele traria para a sociedade. Já Firth supõe que o mais importante
não consiste numa solução intelectual para o problema, mas sim que
haja um controle cultural sobre a enfermidade que beneficie todo o
grupo ao impedir que a ansiedade causada pela doença influa
negativamente na estrutura social. Que este controle seja encarado
como relativamente eficaz (no caso das doenças mentais) ou apenas
forneça “segurança simbólica” (no caso de doenças físicas) não é a
questão essencial. O importante é que em ambos os casos atingir-
se-ia aquilo que Firth denomina “stress-reducing effect”. Em suma:
existiria um impulso natural (a doença, especialmente mental) que
deve provocar necessariamente uma resposta cultural que minimize
seus efeitos negativos sobre a vida social — a crença no transe e
os rituais de possessão. A explicação de Firth para o êxtase é
perfeitamente congruente então com a “teoria das necessidades” de
Malinowski: a possessão apareceria como instituição cultural
derivando de uma necessidade fundamental, a cura das enfermidades
(ou, ao menos, seu controle simbólico). Neste sentido parece que o
transe está relacionado com um tipo de necessidade que se poderia
considerar como básica, uma vez que na doença joga-se
simultaneamente com a vida e a morte. Mas por outro lado, Firth
apresenta uma outra “função social” da possessão que a encara mais
como resultante de processos relacionados com necessidades
derivadas:
39

“But in many societies spirit possession


and spirit medium cults offer a field for
some degree of individual self-expression,
may be of a fantasy order, going well
beyond the convention of tradition (...).
Spirit possession allows an individual to
throw off ordinary restraints and, in
speech or in non-verbal behaviour, to act
in ways not sanctioned by his ordinary role
in society (...). Whatever be the physical
and psychological difficulties entailed by
the ‘possession syndrome’, some personal
benefits may at times accrue. Redress or
enhacement of status is one such
compensation...” (Firth, 1969: XI-XII).

Na Introdução à mesma coletânea sobre cultos de possessão


africanos (Beattie e Middleton, 1969), em cujo prefácio Raymond
Firth efetua as observações citadas, os organizadores do livro
retomam várias de suas colocações, concluindo que esses cultos
extáticos podem funcionar ora reforçando a estrutura social (ponto
que nos leva a uma outra vertente do funcionalismo que será
abordada mais adiante), ora fornecendo uma via de “letting off
steam”, ou seja, exercendo uma função catártica ao permitir que:

“behaviour which would not be tolerated in


everyday life may be permitted, even
expected, in possessed persons (...). It
would appear that the relief of anxiety
thus brought about may be definitely
therapeutic” (Beattie e Middleton, 1969:
XXVIII).

Esta última “função” do transe agiria então como estratégia


de alívio de ansiedades e como modo de exprimir tensões sociais
ligadas a fenômenos como a mudança social, por exemplo. Neste
sentido então, a sociedade ou cultura aparece nitidamente em
40

confronto com o indivíduo, assim como a natureza o estava na


primeira forma de explicação. Isto porque embora os mecanismos
culturais sejam basicamente respostas aos imperativos naturais,
eles passariam, uma vez instituídos, a exercer sobre o indivíduo
uma pressão semelhante àquela exercida por esses últimos,
provocando conseqüentemente angústia e tensão que devem também ser
aliviadas para a satisfação individual e perfeito funcionamento
social. Este aspecto das teorias sobre a possessão de inspiração
malinowskiana é fundamental, pois irá informar, ao se cruzar com
modelos derivados da vertente estruturalista do funcionalismo, a
maior parte das análises contemporâneas sobre o êxtase. Antes
contudo de chegarmos até elas convém uma rápida passagem por uma
outra tradição teórica que, de alguma forma, possui uma série de
princípios e pontos em comum com as teses de Malinowski, apesar
das aparências em contrário.

4. Cultura e Possessão

De fato, não parece haver nada superficialmente mais


distinto do que o brutal reducionismo malinowskiano de um lado e o
chamado princípio de relativismo cultural, postulado pelos
culturalistas, de outro. Lá onde Malinowski supunha sempre o peso
dos imperativos naturais determinando respostas culturais, os
culturalistas norte-americanos privilegiariam justamente a imensa
diversidade de tais respostas, e a apontariam como sinal da
infinita riqueza e complexidade da natureza humana. Na verdade, a
questão é mais complicada e esta oposição pode não ser tão nítida
quanto parece.
A chamada escola de “cultura e personalidade” representa
nitidamente um desenvolvimento transformado das idéias de Boas.
Este, como foi dito acima, recusava toda e qualquer tentativa de
41

generalização teórica por acreditar não dispor de base empírica


suficiente para isso, base que só seria obtida quando todas as
sociedades — ou, para ser mais exato, um número excepcionalmente
elevado delas — tivessem sido pesquisadas e analisadas com o rigor
e a profundidade almejadas por ele próprio em seu estudo dos
Kwakiutl, estudo que após meio século de investigação empírica
Boas continuava considerando incompleto e portanto inadequado para
o trabalho teórico. Como disse Lévi-Strauss, as exigências de Boas
eram tão rigorosas que, no caso de seguidas à risca, terminariam
por paralisar todo o trabalho antropológico.
Seus discípulos, consciente ou inconscientemente, parecem
ter pressentido esta armadilha e, como que para escapar dela,
restringiram suas análises às interações entre o meio social e os
indivíduos que nele vivem, ou, em seus próprios termos, entre a
cultura e a personalidade. Este tipo de abordagem é perfeitamente
coerente com as posições de Boas, e já está sem dúvida presente em
sua obra, especialmente em seus últimos escritos. Pois quando nos
colocamos como tarefa essencial a descrição completa de uma
sociedade ou cultura antes que qualquer abstração possa ser
efetuada, esta termina por aparecer como um aglomerado de
instituições, valores e símbolos que só podem encontrar alguma
unidade e substância no modo pelo qual um indivíduo concreto os
absorve e sintetiza, já que desde o início o investigador condenou
a si próprio a não observar as leis de ligação entre os diversos
componentes do todo social (sobre todos esses pontos, cf. Boas,
1966).
A partir desses pressupostos, o culturalismo se vê
constrangido a imaginar a existência de uma base bio-psicológica
para o comportamento humano. O que caracterizaria esta base seria
sua extrema fluidez e diversificação, constituindo um “leque”
sobre o qual cada cultura executará uma escolha e procurará a
partir daí impor a todos os seus membros a “personalidade”
42

(pensada então como inscrita virtualmente na natureza humana)


eleita como sendo a ideal. O problema, óbvio, é que nem mesmo a
mais simples e “indiferenciada” das sociedades apresenta uma
homogeneidade integral nos padrões de personalidade de seus
membros. Para contornar esta dificuldade empírica os culturalistas
pressupõem que a base bio-psicológica individual, inata, exerce
uma certa resistência ao trabalho de seleção e moldagem executado
pela cultura. Em outros termos, existiria uma personalidade
substantiva individual anterior ao processo de socialização e, no
caso desta “personalidade original” ser diferente demais daquela
culturalmente escolhida como adequada, o indivíduo portador desta
personalidade jamais poderia ser plenamente integrado à sociedade,
convertendo-se inevitavelmente em um desviante, ou como preferem
os culturalistas, num “inadaptado”.
O culturalismo adere então a uma certa concepção de
realidade que remonta ao positivismo e que talvez tenha sido
totalmente explicitada na idéia de “superorgânico” proposta por
Kroeber. Esta concepção supõe uma estratificação do real em níveis
de complexidade crescente: do inorgânico ao cultural, passando
pelo orgânico e pelo psicológico (individual). Cada nível é
pensado como englobando o anterior, sendo mais complexo e, de
algum modo, distinto dele. Neste sentido, a cultura é encarada
como uma modalidade de tratamento de fenômenos integralmente
constituídos em outros níveis, sendo sua tarefa exclusiva a
seleção entre as diversas possibilidades oferecidas em cada plano
e sua difusão homogênea através de todos os membros da sociedade.
Esta é a razão última do fascínio exercido sobre os culturalistas
pelas ciências do comportamento individual, psiquiatria (Ruth
Benedict), psicologia (Margareth Mead), psicanálise (Abram
Kardiner). Pois tais ciências pareciam poder fornecer a eles os
elementos substantivos sobre os quais seria exercida a seleção
cultural, ainda que um efeito de “retorno” pudesse também ser
43

observado (a posição culturalista fica evidenciada com nitidez em


Kroeber, 1948).
Deste ponto de vista, as posições da escola de cultura e
personalidade é extremamente próxima à de Malinowski que, como
vimos, também encarava a cultura como um conjunto de respostas a
questões formuladas e produzidas a outros níveis, biológicos e
psicológicos. A diferença entre essas duas correntes se reduz ao
fato de que o funcionalismo se dedicou mais — no momento de
refletir teoricamente, e não nos trabalhos etnográficos — a
apontar os elementos bio-psicológicos aos quais toda cultura
particular poderia ser reduzida, sem conceder muita atenção à
variação de respostas que um mesmo problema pode comportar. Os
culturalistas, por outro lado, sempre gostaram de enfatizar a
infinita variedade e diversidade das elaborações culturais, mas
jamais se preocuparam em explicar nem o porquê destas variações,
nem um possível caráter sistemático delas, contentando-se em
atribuí-las a alguma forma de acaso totalmente estranho aos
procedimentos científicos de pesquisa, e terminando assim por
repousar sobre o mesmo solo teórico que sustenta Malinowski.
Neste contexto, alguns recentes estudos acerca do transe e
da possessão derivados, direta ou indiretamente, dos esquemas
culturalistas são ao mesmo tempo esclarecedores deste esquema e
podem ser perfeitamente compreendidos à sua luz. Num trabalho
datado de 1972, Sheila Walker se propõe apresentar uma visão
“multidimensional” do êxtase, pretendendo encará-lo sob vários
pontos de vista, única forma segundo ela para que uma explicação
adequada para o fenômeno possa ser atingida:

“The phenomenon of spirit possession has


existed in most areas of the world down
through history. The form and
interpretation of the experience vary from
culture to culture but there is a common
44

substratum. Possession, to be really


understood, must be studied from various
points of view because no simple
explanation appears adequate to it (...).
My aim in this book is to consider the
various elements involved in possession,
such as neurophisiology, hypnosis,
socialization and culture determinism, to
see how each one junctions and what its
role is alone and in relationship to the
others (...). I am concerned with what
possession is on various levels, from
physiological to cultural, and what general
role it plays in societies and in
individuals” (Walker, 1972: 1).

Em termos mais teóricos, poder-se-ia dizer então que Walker


supõe a existência de uma base neurofisiológica e psicológica para
a possessão, base que algumas culturas selecionariam como
comportamento adequado a certas ocasiões e imporiam a seus membros
através de processos de socialização. Em outros meios culturais,
esta mesma base poderia originar formas de doença mental, como a
histeria por exemplo. O fato de que, jamais, todos os membros de
uma sociedade sejam possessos, nem mesmo em potência, é explicado
a partir de possíveis diferenças genéticas entre os indivíduos que
experimentam o transe e aqueles que nunca o fazem. A possessão é
encarada então como uma reação neurofisiológica normal a situações
de “stress”, seja este artificialmente provocado (através de
drogas, toque de tambores, danças e cânticos, que compõem os
rituais onde ela tem lugar) ou não. Assim, as variáveis culturais
não fazem mais do que estimular ou reprimir um comportamento dado
a nível psicofisiológico (cf. Walker, 1972: 25).
Erika Bourguignon, teórica da chamada “antropologia
psicológica” que deriva em linha direta do culturalismo, propõe um
modelo similar ao de Walker, advogando também uma “abordagem
45

multidimensional” que encare todos os aspectos do fenômeno do


transe (cf. Bourguignon, 1972: 429). Para isto, seu primeiro passo
é estabelecer um plano de identificação entre o sonho e a
possessão, imaginando a existência, entre ambos, de um continuum.
Ora, como o sonho é considerado uma característica universal do
homem (enquanto ser natural mesmo, já que compartilharia esta
propriedade com todos os mamíferos), o trabalho da cultura fica
reduzido à produção de algum “grau de institucionalização” tanto
para o sonho quanto para o transe, estando aqui a raiz da
diversidade de modos de tratamento a que ambos estes fenômenos
estão submetidos em distintas sociedades.
Desse modo, tanto Sheila Walker quanto Erika Bourguignon
pressupõem então a existência de uma base biológica invariável
que, diferentemente trabalhada por cada cultura, pode dar origem
ao que ambas denominam “altered states of consciousness”,
categoria que abarca, entre outras manifestações de “dissociação
da personalidade”, o transe e a possessão. O esquema se aproxima
bastante, como pode ser facilmente percebido, daquele proposto por
Raymond Firth, inspirado no funcionalismo malinowskiano, para dar
conta do êxtase religioso.
Subsiste contudo uma diferença entre os dois modelos, o
funcionalista e o culturalista: enquanto Firth (assim como Beattie
e Middleton) supõe que a crença na possessão por espíritos pode
funcionar ao mesmo tempo como explicação simbólica e terapia para
doenças mentais, Walker e Bourguignon enfatizam sistematicamente o
caráter normal dos processos fisiológicos e psicológicos
envolvidos no transe, aproximando-o de estados hipnóticos e do
sonho, respectivamente. Esta diferença é contudo, do ponto de
vista em que procuro me colocar aqui, bastante superficial. O que
importa é que tanto funcionalistas quanto culturalistas imaginam,
ao tratar da possessão, estarem às voltas com simples explicações
ou vestimentas culturais para fenômenos (patológicos ou não)
46

integralmente constituídos em esferas não sociais, biológicas ou


psicológicas.
Tanto isto é verdadeiro que alguns autores podem considerar,
ao mesmo tempo, o transe como ligado ou não a distúrbios
patológicos. Assim, Vincent Crapanzano em uma excelente monografia
sobre o culto marroquino do Hamadsha, combina as duas perspectivas
e encara a possessão como fruto de distúrbios neurofisiológicos ou
psicanalíticos e, simultaneamente, como terapêutica para estes
problemas (cf. Crapanzano, 1973). O mesmo ocorre com Edward Foulks
que analisa o xamanismo esquimó (juntamente com a “histeria
ártica”, o que já é significativo), seja como conseqüência
patológica, seja como alívio terapêutico, de múltiplas influências
negativas provenientes do meio ambiente (hostilidade e monotonia),
substrato biológico (carência alimentar), características
psicológicas (inadaptação à sociedade), e traços culturais
(tradicionalismo) (cf. Foulks, 1972).

5. Estrutura e Função do Êxtase Religioso

Criticando as explicações de fenômenos religiosos que tendem


a reduzi-los a soluções culturalmente inconscientes, embora
satisfatórias na prática, de problemas higiênicos e de saúde, Mary
Douglas as denomina pejorativamente, utilizando uma expressão de
William James, de “materialismo médico” (cf. Douglas, 1976: 43-
46). Poderíamos também utilizar este termo para designar a
primeira vertente antropológica de explicação para o transe, que
acaba de ser apresentada. Isso porque tanto no evolucionismo de
Tylor, quanto no funcionalismo malinowskiano e na chamada escola
de cultura e personalidade (e seus seguidores contemporâneos que
adotam a significativa rubrica de Antropologia Psicológica), este
fenômeno é analisado ora como o “disfarce” cultural de
47

enfermidades reais, ora como procedimento “clínico” para


tratamentos destas enfermidades, correspondendo tanto num caso
quanto no outro a elaborações secundárias sobre fatos totalmente
constituídos a nível fisiológico ou psicológico (patológicos ou
não, pouco importa) dos quais — cumpre assinalar — apenas a
ciência contemporânea (Neurofisiologia ou Psiquiatria)
reconheceria a verdadeira natureza.
Existe contudo uma outra modalidade de teorização acerca do
êxtase da qual a própria Mary Douglas é um dos principais
expoentes. Esta outra vertente — que possui, veremos, inúmeras
conexões com a outra — encontra suas raízes e bases
epistemológicas num desenvolvimento teórico paralelo ao
funcionalismo malinowskiano e ao culturalismo norte-americano.
Desde 1887, Durkheim advertia que a atividade social só poderia
ser compreendida como visando finalidades também sociais, e ano
aquelas do indivíduo (cf. Sahlins, 1976: 109-110). Apesar desta
profissão de fé na importância das funções sociais das
instituições, Durkheim parece jamais ter acreditado que as
primeiras pudessem explicar integralmente as segundas, sustentando
ser necessário o conhecimento de sua “morfologia” (e não apenas de
sua “fisiologia”) para sua justa compreensão. Radcliffe-Brown, o
grande inspirador de todo o estrutural-funcionalismo, tomou como
ponto de partida a primeira idéia de Durkheim, mas não a segunda.
Ou seja, ao contrário de Malinowski, ao falar em “função social”
ele tem em mente a contribuição que uma dada instituição presta
para a manutenção da sociedade como um todo. Mas também ao
contrário de Durkheim, Radcliffe-Brown reduz o sentido total desta
instituição a essa função em benefício da totalidade, sem se
interessar muito pelo aspecto morfológico da questão.
A explicação estrutural-funcionalista consiste então,
invariavelmente, em tentar captar a relação entre a parte e o todo
manifesta na função desempenhada pelo elemento analisado para a
48

manutenção da estrutura da totalidade. Levado até as últimas


conseqüências, o modelo acaba por desembocar num raciocínio
psicologizante mais ou menos tautológico: qualquer uso ou
instituição sociais contribuem para a criação, reforço e
manutenção dos sentimentos de solidariedade que mantêm agregados
os membros do grupo. Ou seja, a preservação da “forma estrutural”
(esqueleto da “estrutura social”, entendida significativamente
como a totalidade das relações sociais diádicas interpessoais)
acaba sendo atribuída à criação e manutenção de difusos
sentimentos psicológicos individuais.
A partir dessa perspectiva teórica, Radcliffe-Brown pode
concluir a respeito dos sistemas de crenças que:

“a religião desenvolve na humanidade o que


se pode chamar de senso de dependência”
(Radcliffe-Brown, 1945: 217),

proposição que, neste nível, não se importa com qualquer espécie


de particularidade do fenômeno religioso assimilando-o, através de
sua “função” (comum a todas as instituições sociais) à totalidade
dos fatos sociológicos. Radcliffe-Brown sugere contudo que a
especificidade das funções desempenhadas pela religião tanto na
amplitude tomada pelos laços de dependência criados, alcançando os
mortos, os antepassados, as divindades e a natureza, quanto na
“sobre-autoridade” que adquirem na medida em que, do ponto de
vista do fiel, atuam de fora, a partir do sobrenatural, sobre a
totalidade social (cf. Radcliffe-Brown, 1945: 218).
Neste sentido, é verdade, a religião deixa de ser tratada
como simples preenchimento de uma necessidade bio-psicológica do
homem enquanto indivíduo isolado (como em Malinowski ou no
culturalismo) e passa a ser encarada como atendendo a pré-
requisitos sociológicos. No entanto, como mostrou Marshall Sahlins
(1976: 109), isto só é possível porque a própria sociedade passa a
49

ser vista como uma espécie de “super-indivíduo”, dotada de


necessidades e exigências. Por causa disto, as pretensas
“necessidades sociais” acabam reduzidas a alguns indefinidos
sentimentos individuais (no sentido próprio) de simpatia, atração,
solidariedade e auto-preservação.
Ora, este esquema de interpretação da religião frutificou na
antropologia britânica: trata-se sempre de estabelecer as
presumíveis conexões entre o sub-sistema religioso (conjunto de
crenças e ritos pertencentes ao universo simbólico da “cultura”) e
o sistema social “concreto” (a “sociedade” propriamente dita,
entendida como conjunto de relações inter-individuais), tentando
demonstrar como o primeiro reflete o segundo e, ao mesmo tempo,
contribui para sua manutenção. Na área dos estudos sobre os
fenômenos extáticos parece que as duas contribuições estrutural-
funcionalistas mais importantes consistem, sem dúvida, nos
trabalhos de Mary Douglas (1982) e de Ioan Lewis (1970; 1977).
Lewis parte da questão estrutural-funcionalista clássica:
como estabelecer uma “sociologia do êxtase”? Ou seja, sendo o
êxtase um fenômeno religioso e sendo que a religião, como conjunto
de símbolos e valores, se situa a nível da “cultura”, como reduzir
o transe às “relações concretas entre os homens”? Para responder a
essas questões seria preciso primeiramente notar, de acordo com
Lewis, que a possessão consiste em um mecanismo cultural que não
pode deixar de exprimir a estrutura última da sociedade em que ela
se processa. Neste sentido, o êxtase tanto pode ser

“um agudo grito de protesto contra os


membros mais afortunados da sociedade”
(Lewis, 1977: 256),

quanto pode expressar

“uma estentórea voz de comando, a linguagem


da autoridade legítima em termos da qual o
50

homem de substância compete pelo poder”


(Lewis, 1977: 256).

A evidente contradição entre as duas “funções sociais” da


possessão seria superada, segundo Lewis, se se admitisse que cada
uma dessas funções corresponderia a um determinado tipo de
segmento social envolvido no grupo, bem como a um certo padrão de
estrutura social. Assim, os segmentos de uma sociedade — escravos,
servos, mulheres, e todo tipo de “inferiores estruturais” —
tenderiam a se organizar em grupos de cultos específicos: os
“cultos periféricos”, onde indivíduos situados em posições
socialmente inferiores, dentro de dada estrutura, incorporariam
espíritos igualmente “marginais” (inconstantes, rebeldes, etc).
Este tipo de culto funcionaria, pois, invertendo as posições
sociais ordinárias, ao colocar como agentes e pacientes principais
do culto pessoas e espíritos social ou religiosamente
marginalizados. Aqui, portanto, alguém tornar-se-ia xamã ou
possesso como compensação por sua baixa situação cotidiana.
Quando o culto de possessão não inverte a ordem social mas,
ao contrário, parece reforçá-la, não estaríamos mais,
evidentemente, diante de “cultos periféricos”, mas sim frente às
“religiões de moralidade principal” praticadas pelos segmentos
superiores e dominantes da sociedade e da qual participariam
apenas espíritos ancestrais, divindades também dotadas, num certo
sentido, de moralidade e de status elevados. Assim, as “religiões
de moralidade principal” contribuiriam para a manutenção da ordem
social abrangente na medida em que, deslocando da esfera dos
homens para aquela dos deuses as decisões tomadas e as ordens
proferidas, reforçariam a subordinação e a obediência das camadas
sociais inferiores e, consequentemente, o grau de integração
social. Isto não quer dizer, em hipótese alguma, como se poderia
imaginar, que os “cultos periféricos”, constituam alguma espécie
de ameaça contra a ordem estabelecida. Ao contrário, ao inverterem
51

apenas “simbolicamente” (isto é, ilusoriamente) as posições


sociais dos indivíduos estruturalmente inferiores, esses cultos
também estariam contribuindo para o reforço dela na medida em que
forneceriam a estas pessoas uma espécie de “válvula de escape”
para a pressão social a que elas estariam submetidas. Vê-se logo
quão próximas estas teses se encontram daquelas elaboradas por
Raymond Firth a partir do funcionalismo malinowskiano.
Paralelamente, Lewis tece algumas considerações a respeito
das condições psicofisiológicas adequadas para a possessão,
questão respondida em consonância com a análise sociológica
resumida acima. Nos “cultos periféricos”, o transe seria possível
devido à própria posição social inferior de seus participantes,
posição que os tornaria extremamente vulneráveis a “crises
histéricas” (cf. Lewis, 1977: 247). Já no caso das “religiões de
moralidade principal”, seus praticantes — os membros das camadas
superiores da sociedade — estariam, de acordo com uma proposta de
Yap aceita sem restrições por Lewis, ao abrigo dessas “crises
histéricas”, fruto de pressões sócio-políticas fortes. Neste caso,
o autor sustenta então que a possessão deve aparecer como resposta
a condições sócio-econômicas altamente instáveis, transferindo
consequentemente o foco das pressões da estrutura social para o
meio-ambiente (cf. Lewis, 1977: 250-251). Em síntese, o transe
derivaria da submissão dos indivíduos seja a sistemas sociais
opressores (nos “cultos periféricos”), seja a realidades naturais
hostis (no caso das “religiões de moralidade principal”).
As hipóteses de Ioan Lewis a respeito das “religiões
extáticas” correspondem então, sem dúvida, a um certo tipo de
“teoria de compensação”, que, considerando essas religiões como
“deprivation cults”, se dedica a demonstrar a que “privações” elas
respondem simbolicamente. Ora, a outra grande teórica
funcionalista da possessão, Mary Douglas, dirige a essa modalidade
de explicação uma crítica incisiva:
52

“The theory is couched in vague


psychoanalytical terms, made to include too
much and too many contradictory cases in
its scope (...). Compensation theory treats
the symbolic order as a secondary result of
the social order, as purely expressive”
(Douglas, 1982: XIII-XIV).

Como alternativa a este tipo de teoria “compensatória”, Mary


Douglas propõe o que ela denomina “replication hypothesis” — a
suposição de que o ritual, assim como todo sistema de símbolos,
consiste em um “código restrito” que não inverte ou compensa o
“código abrangente” (a sociedade), mas, basicamente, tende a
repeti-lo a outro nível e com outra eficácia (cf. Douglas, 1982:
XIV). Em outros termos, o tipo de estrutura social e o tipo de
sistema simbólico (e ritual) encontrado em seu interior seriam
sempre congruentes. Assim, as sociedades rigidamente estruturadas
(seja em termos de grupos exclusivos fortemente marcados ou de
códigos de relações interpessoais restritivos — “group” e “grid”
como os chama respectivamente Douglas) corresponderiam rituais
ligados a proibições alimentares, sacrifícios, purificações,
proteção de orifícios corporais, etc. Isto porque nesse tipo de
sistema social o corpo humano funcionaria como metáfora adequada,
devido a seu alto grau de estruturação e a seus limites bem
marcados, características homólogas àquelas desse tipo de
estrutura social. Ao contrário, em sociedades ou grupos de
estrutura mais fluida, menos submetida portanto aos
constrangimentos do “group” ou do “grid”, o corpo só poderia
funcionar de maneira inversa, como metáfora de negatividade,
devendo portanto ser negado em sua ordem e sistematicidade. É por
isto que os cultos de possessão (ao menos aqueles que encaram o
transe como positivo) encontram seu substrato propício nesse tipo
de ordem social, frouxa e instável, da qual eles “repetiriam” a
estrutura (ou a falta dela) no momento em que promovem a
53

dissociação da personalidade e do próprio corpo: o transe


reproduziria então a nível ritual e simbólico um certo tipo de
padrão real de relações sociais vigentes (cf. Douglas, 1982: 74).
Assim, apesar de discordâncias aparentes e de críticas
explícitas, o esquema de interpretação proposto por Mary Douglas
para a possessão é rigorosamente paralelo àquele apresentado por
Ioan Lewis, correspondendo apenas, por uma simples diferença de
ênfase, a duas vertentes possíveis dentro do mesmo arcabouço
estrutural-funcionalista. De fato, a questão de base de ambos é
exatamente a mesma: como relacionar um fenômeno de ordem
“religiosa” com o nível “sociológico”. Tanto um quanto o outro
admitirão tratar-se de uma relação de “reforço” (Lewis) ou de
“repetição simbólica” (Douglas) da estrutura social por parte da
religião. A diferença é que Lewis pressupõe que, em alguns casos
(“cultos periféricos”), a modalidade de relacionamento
cultura/sociedade pode deixar de ser a de reflexo direto passando
a constituir uma inversão simbólica do segundo termo efetuada pelo
primeiro. Mas esta diferença é superficial. Mary Douglas que, como
vimos, critica este tipo de posição por não reconhecer o poder
específico dos símbolos, argumenta entretanto, justamente para
defender esta força do simbólico, que

“The symbols themselves lash back at the


people and divert their attempts to change
their lot into channels which do more to
symbolise than to improve it” (Douglas,
1982: XIV),

chegando assim, paradoxalmente, à mesma posição de Lewis, para


quem os símbolos apenas fornecem falsos meios de compensação para
os desprivilegiados, sem que a harmonia, a unidade, e a
estabilidade da estrutura social fiquem por isso comprometidas. Em
suma, pode-se dizer que o teórico da inversão e da compensação
admite a reprodução direta da estrutura social ao menos nas
54

“religiões de moralidade principal”, e que a defensora da


“replication hypothesis” aceita, ao menos implicitamente, a
inversão ao sustentar que ao proceder simbolicamente os agentes
sociais terminam por abandonar a ação social real.
Essa concordância entre estes dois autores deriva
evidentemente dos postulados básicos do estrutural funcionalismo
que ambos adotam explicitamente. Firmemente ancorada na tradição
durkheimiana, essa corrente de pensamento antropológico começa por
recusar todo reducionismo de tipo bio-psicologizante a que chegam,
como vimos, tanto o evolucionismo quanto o culturalismo e o
funcionalismo de inspiração malinowskiana. Para isso, contudo,
termina por transpor este reducionismo externo para um plano
interno, pressupondo que todo o “social” não passa de expressão,
direta ou invertida, da estrutura social, entidade que em tal
sistema não pode deixar de ser definida, em termos quase
psicológicos, como o somatório das relações pessoa a pessoa. Tudo
se passa como se, de modo evidentemente absurdo, houvesse “dentro”
da sociedade uma sociedade mais real do que ela, e da qual a
primeira não passaria de projeção. Os funcionalistas tentam
resolver a óbvia contradição apelando para a tradicional dicotomia
sociedade/cultura, mas, ao fazê-lo, terminam por restringir o
simbolismo ao segundo destes domínios, reduzindo-o no mesmo golpe
a uma espécie de elaboração secundária efetuada sobre a realidade
(não-simbólica) das relações sociais concretas (para uma
elaboração refinada em torno deste ponto, cf. Sahlins, 1976: 117-
120).
É possível então, neste ponto tentar resumir as principais
posições do funcionalismo em relação à questão da possessão. Dos
quatro pontos abaixo, os dois primeiros são enfatizados pelos
autores de influência malinowskiana, enquanto os dois últimos
aparecem com mais nitidez naqueles seguidores da vertente
estrutural-funcionalista. Isto não significa uma exclusividade,
55

uma vez que os quatro temas aparecem em praticamente todos os


autores funcionalistas, bem como, de alguma forma, também nas
análises evolucionistas e culturalistas do transe:
a) A “ideologia” da possessão fornece uma explicação para
fenômenos psico-fisiológicos (mórbidos ou não) e provê a
sociedade com um mecanismo simbólico para lidar com as
enfermidade, especialmente com as doenças mentais.
b) A possessão é uma estratégia de alívio de tensões,
seja a nível das relações da sociedade com o meio-ambiente,
seja a nível das relações do indivíduo com a sociedade.
c) A possessão fornece um meio pelo qual indivíduos
socialmente desprivilegiados manipulam sua situação buscando
atingir status mais elevados e obter maior prestígio e poder.
d) A possessão possibilita a manutenção da ordem social:
seja porque transfere para os deuses decisões tomadas pelos
homens — impedindo assim um conflito entre grupos com
interesses opostos — seja porque, invertendo apenas
simbolicamente as posições sociais, evita uma inversão real que
transformaria a própria estrutura da sociedade.

6. As Estruturas Elementares do Xamanismo e da Possessão

O estruturalismo antropológico, talvez mais do que qualquer


outra corrente de pensamento nesta disciplina, é acima de tudo
obra de um autor. Aplicando à análise etnológica princípios
desenvolvidos em outros campos científicos, especialmente na
Lingüística estrutural, e transformando-os de acordo com as
necessidades, Claude Lévi-Strauss tentou explicitamente forjar
para a Antropologia um método de análise que evitasse e superasse
os principais impasses e dificuldades contidos nas abordagens
anteriores. E se existisse algum traço marcante na perspectiva
56

estruturalista, que paira, creio, acima das inúmeras discussões


por ela levantadas, é seu caráter essencialmente anti-
reducionista. Trata-se sempre, no caso do estruturalismo, de
estudar um fenômeno a partir de sua estrutura, definida aqui como
o jogo de transformações lógicas internas ao campo enfocado. Em
outros termos, qualquer que seja o fenômeno em questão —
parentesco, totemismo, mitologia, etc. — o estudo parte sempre do
pressuposto de que cada nível da realidade social é definível e
compreensível através de relações que lhe são imanentes, evitando-
se consequentemente reduzi-lo a alguma outra instância do real
tida, aprioristicamente, como mais substantiva ou determinante. É
verdade que Lévi-Strauss, em seus últimos escritos, tende a
pressupor a existência de um tipo de redução cientificamente
legítimo mas, como veremos mais adiante, ele não tem nada em comum
com o tipo de reducionismo que temos tratado até aqui.
Os fenômenos de transe e possessão são tratados apenas
marginalmente não obra do próprio Lévi-Strauss. Apenas três
artigos (Lévi-Strauss, 1949a; 1949b; 1950) de sua extensa produção
científica referem-se de uma forma mais direta ao assunto,
abordando-o principalmente pelo lado do xamanismo. Os dois artigos
de 1949 não se preocupam muito com a questão do êxtase
propriamente dito, consistindo antes, o primeiro numa tentativa de
explicação psico-sociológica para o recrutamento e a conversão de
xamãs, e o segundo, numa análise das condições simbólicas de
possibilidade para a eficácia fisiológica da cura xamanística. Já
na famosa “Introdução à Obra de Marcel Mauss” (Lévi-Strauss, 1950)
o tema é abordado de mais perto. E muito embora Lévi-Strauss
sugira a existência de algumas semelhanças estruturais entre os
fenômenos extáticos e as chamadas doenças mentais, o que convém
por ora (já que este ponto será retomado) é chamar a atenção para
a advertência feita por ele contra a apressada assimilação destes
57

fenômenos seja a perturbações psicológicas, seja a técnicas


“médicas” para seu tratamento:

“Cela ne signifie pas que les sociétés


dites primitives se placent sous l’autorité
de fous; mais plutôt que nou-mêmes traitons
à l’aveugle des phénomènes sociologiques
comme s’ils relevaient de la pathologie,
alors qu’ils n’ont rien à voir avec elle,
ou tout au moins, que les deux aspects
doivent être rigoureusement dissociés. En
fait, c’est la notion même de maladie
mentale que est en cause” (Lévi-Strauss,
1950: XXII).

A análise estrutural da possessão permanece então apenas em


estado de esboço na obra de Lévi-Strauss, e será preciso talvez um
dia completá-la. Enquanto isso devemos constatar que a tentativa
de elaboração desta teoria se encontra, de forma mais acabada, nas
mãos de Luc de Heusch que em três artigos, datados respectivamente
de 1964, 1971 e 1974, procura encontrar o sentido subjacente às
diferentes formas de manifestação empírica do transe nas várias
sociedades humanas. Autores como Gilbert Rouget (1980) ou Jean
Pouillon (1975) que, implícita ou explicitamente, pretendem
assumir um ponto de vista estruturalista, limitam-se, no que diz
respeito especificamente ao tratamento teórico da possessão, a
retomar as teses de Luc de Heusch, analisando sua conexão com
fenômenos marginais aos objetivos deste trabalho (música no caso
de Rouget; relações entre medicina, psicanálise e possessão no
trabalho de Pouillon). Para o que aqui interessa, o texto central
é sem dúvida o artigo de Heusch de 1971 que, retomando as
principais colocações de 1964, pretende oferecer uma visão
sintética do fenômeno em questão. Parece conveniente, pois, seguir
as idéias deste artigo, na medida em que elas indicam, por suas
58

virtudes, o caminho a ser seguido na busca de uma teoria


antropológica da possessão, como também mostram, por seus
defeitos, as armadilhas a serem evitadas num tal empreendimento.
Em primeiro lugar, Heusch busca definir logicamente um campo
estrutural próprio aos fenômenos extáticos. Para fazê-lo, sugere
que este campo estaria composto por quatro tipos de manifestação
extática que formariam, devido ao jogo de seus afastamentos
diferenciais internos, um “grupo de transformação”: xamanismo e
possessão se oporiam globalmente entre si, pois enquanto o
primeiro consiste numa ascensão dos homens até os deuses, a
segunda é sobretudo uma “descida” das divindades até o mundo e o
corpo humanos. Por outro lado, cada uma dessas duas modalidades de
transe se subdividiria em duas formas de manifestação: o xamã
tanto pode operar através da recuperação de almas perdidas pelos
homens — e temos aqui o que Heusch denomina de adorcismo, ou seja,
a cura através da introdução de alguma coisa no corpo do enfermo;
ou, para ser mais preciso neste primeiro caso, a reintrodução de
sua alma perdida — como através da extração de um suposto corpo
estranho que haveria se introduzido em alguém causando-lhe uma
doença — estaríamos às voltas então com um exorcismo, cura através
de extração.
Por seu turno, a possessão também apresentaria esses dois
tipos de manifestação, o adorcismo e o exorcismo. O primeiro
ocorreria no que Heusch denomina “possessão benéfica”, ou seja,
naqueles casos em que o próprio objetivo do culto é provocar a
incorporação das divindades nos fiéis; já o segundo tipo de
possessão seria encontrado nas “possessões maléficas”, casos em
que a incorporação ou influência espiritual é diagnosticada como
causa de uma enfermidade, devendo então proceder-se à expulsão do
espírito responsável. Existiriam portanto os quatro tipos
seguintes de manifestação extática:
59

a) o “xamanismo adorcista”, representado pelas práticas


siberianas classicamente estudadas por historiadores da
religião e antropólogos, onde o xamã viaja pelos espaços
míticos em busca da alma perdida do enfermo;
b) o “xamanismo exorcista”, que encontra seu exemplo na
prática terapêutica do xamã cuna descrita por Lévi-Strauss
(1949a), onde a cura depende da “extração” de uma criança que
se recusa a nascer, obstruída que está por determinada entidade
espiritual;
c) a “possessão adorcista”, caso clássico dos cultos
afro-brasileiros, entre outros, onde a intenção das práticas
rituais é provocar a descida dos deuses para que estes se
encarnem no corpo dos homens; e
d) a “possessão exorcista”, da qual poder-se-ia citar
como exemplo o tratamento dado à “possessão demoníaca” na
tradição judaico-cristã, e que consiste na expulsão de um
espírito cuja encarnação é pensada como causa de perturbações
físicas e mentais.
Estes quatro tipos de manifestação extática mantêm complexas
relações lógicas entre si, constituindo o que Luc de Heusch chama
de uma “geometria da alma”, e que ele sintetiza no seguinte
diagrama caracterizado, em seus próprios termos, por uma “dupla
simetria”, horizontal e vertical ao mesmo tempo:

ADORCISMO EXORCISMO
Xamanismo A Xamanismo B
(retorno da alma) (extração de uma presença estranha a si
mesmo)

Possessão A Possessão B
(injeção de uma nova (extração de uma alma estranha a si mesmo)
alma)
60

(Heusch, 1964: 266)

Teríamos assim nas linhas verticais adorcismo e exorcismo, que se


opõem logicamente termo a termo, e nas horizontais, ascensão (os
dois casos de xamanismo) e descenso (as duas formas de possessão),
que também estão opostos em bloco: completar-se-ia portanto o
“grupo de transformação” esboçado por Luc de Heusch e
característico, sabe-se, do método estrutural.
No entanto, e conforme o próprio Lévi-Strauss o sustentou
(cf. Lévi-Strauss, 1975: 26), a constituição de um grupo de
transformação não corresponde ao objetivo último da análise
estrutural mas, ao contrário, pretende fornecer apenas seu ponto
de partida ao corresponder ao momento de construção de seu objeto
teórico, objeto que deve então ser exaustivamente analisado. Ora,
é aqui justamente que se encontra o ponto cego do trabalho de Luc
de Heusch, uma vez que, ao invés de buscar esgotar as
determinações internas a seu objeto, ele se dedica apressadamente
a explicá-lo através de uma comprometedora redução a outro nível
de realidade, esquecendo, parece, a lição levistraussiana de que a
explicação se encontra já, de forma imanente, nas relações lógicas
entretidas pelos componentes do grupo, não havendo portanto nem
necessidade nem sentido em buscá-la em outra parte.
Heusch, por sua vez, pretende fundar a razão última do
transe, seja ele de possessão ou xamanístico, na experiência
“universal” da infelicidade e da desgraça, representada da forma
mais pura, segundo ele, pela enfermidade:

“A prática religiosa universal das


sociedades chamadas arcaicas mostra
suficientemente que no plano individual o
rito é, muito freqüentemente, resposta à
desgraça e ao fracasso. E sem dúvida a
experiência pessoal mais dolorosa da
61

desgraça não cessou de ser a da


enfermidade. Nosologia e religião se acham
sempre estreitamente soldadas; nas culturas
pré-científicas esses domínios não chegaram
a se separar completamente nem no próprio
seio do cristianismo” (Heusch, 1971: 280).

A primeira redução operada por Heusch conduz portanto da religião


à angústia experimentada frente à “desgraça e ao fracasso”; a
segunda leva da infelicidade à enfermidade. Finalmente, a terceira
conduzirá da enfermidade em geral até sua forma específica de
“doença mental”:

“Pode-se inclusive dizer que a doença


mental é a doença por excelência, já que a
propriedade ‘sobrenatural’ de toda doença
se afirma nela com o máximo de notoriedade.
Nela é onde se expressa em estado puro o
vínculo entre doença e religião,
substituindo o ser do espírito, momentânea,
periódica ou definitivamente, ao ser do
homem, na mais inquietante das epifanias”
(Heusch, 1971: 284).

A partir dessa tríplice redução fica bastante fácil


“explicar” o transe. Este consistira então num mecanismo
universalmente apto a funcionar como uma “resposta para a
enfermidade”; os diversos tipos de possessão e xamanismo isolados
(poder-se-ia talvez perguntar para que) trabalhariam e utilizariam
um dado natural — a doença, especialmente a mental — construindo
intrincados sistemas simbólicos cuja única função, parece, seria a
de se oporem à angústia sentida em relação à degradação do próprio
corpo (cf. Heusch, 1971: 283). Assim, alguns sistemas investiriam
nas doenças fisiológicas, outros nas mentais, seja arrebanhando
62

entre os enfermos seus xamãs e/ou possessos, seja encontrando


entre eles os pacientes adequados para seus sacerdotes-médicos,
seja, finalmente, fazendo uma coisa e outra:

“o transe pode aparecer como o aspecto


cultural da doença mental (...) ou, pelo
contrário, em virtude de uma inversão
radical que fundamenta o campo estrutural,
como o instrumento generalizado da ação
terapêutica” (Heusch, 1971: 294).

Procedendo desta maneira Luc de Heusch afasta-se do


estruturalismo que pretende praticar, dirigindo-se aos terrenos
menos sólidos do culturalismo e do funcionalismo (especialmente
malinowskiano) e, atrás deles, do evolucionismo vitoriano. Um
estudo verdadeiramente estruturalista deveria adotar uma
perspectiva muito diferente. Criticando aqueles que pretendem
explicar determinados tipos de ordem através de sua redução a
conteúdos de outra natureza, Lévi-Strauss escrevia em 1971:

“Le structuralisme authentique cherche, au


contraire, à saisir avant tout, les
propriétés instrinseques de certains types
d’ordres. Ces propriétés n’expriment rien
qui leur soit extérieur” (Lévi-Strauss,
1971: 561).

O estruturalismo autêntico se opõe então diametralmente ao


reducionismo e é esta, vale repetir, uma das inúmeras novidades
introduzidas na Antropologia por Lévi-Strauss, na medida em que,
como vimos, todas as correntes anteriores estão marcadas por um
reducionismo global que assume em cada autor uma feição
particular. Deste ponto de vista, a teoria de Luc de Heusch
somente se acrescenta às anteriormente resumidas sem apresentar
63

qualquer novidade. Uma explicação “autenticamente” estruturalista


para a possessão deveria, ao contrário, ser construída a partir de
certas observações de Lévi-Strauss acerca da religião em geral
(especialmente em Lévi-Strauss, 1971; 1975; 1976) e do transe (cf.
Lévi-Strauss, 1950). Por ora, contudo, convém abandonar esta
discussão teórica mais geral que será retomada e desenvolvida no
último capítulo deste trabalho.

A partir do que foi exposto acima então, creio ser possível


isolar dois temas recorrentes no discurso antropológico a respeito
da possessão, temas que fornecem para os diferentes autores
supostas chaves explicativas para dar conta deste complexo
fenômeno. Em primeiro lugar, a conexão postulada entre possessão e
enfermidade (ou, ao menos, certas formas às vezes consideradas
como não-patológicas de “dissociação da personalidade”, o que não
altera em nada a questão): ora considerando o êxtase como doença,
e mais especificamente como doença mental, ora tomando-o como
forma de tratamento “pré-científico” para perturbações
psicofisiológicas, a Antropologia tem sustentado desde Tylor que
transe e doença transcorrem sobre um mesmo plano lógico. O outro
tema presente nas análises antropológicas da possessão é o de seu
caráter político, funcionando como canal de manifestação para
segmentos sociais oprimidos ou como estratégia de manutenção da
ordem social, tratando-se então nestes casos de um terreno aberto
para manipulações individuais que procurariam alterar o equilíbrio
do poder em seu próprio benefício. Duplo reducionismo pois: ao
bio-psicológico no primeiro caso; ao sócio-político no segundo.
Tentarei mostrar mais adiante as razões pelas quais
considero inadequadas, de um ponto de vista estritamente
antropológico, essas duas concepções fundamentais acerca do
transe, tentando elaborar sua crítica e indagando a respeito da
possibilidade de construção de uma teoria antropológica da
64

possessão que escape a esses dilemas. Antes disso contudo, parece


conveniente tentar perceber como princípios teóricos gerais operam
quando aplicados a realidades etnográficas concretas. Para isso
procederei a uma revisão das diversas modalidades de explicação do
transe geradas a partir das análises de manifestação deste
fenômeno nos quadros dos chamados “cultos afro-brasileiros”.
Perceber-se-á então que os temas básicos isolados acima aparecerão
aí também, de forma ainda mais explícita, e nesse ponto será
possível elaborar uma crítica e tentar seguir adiante.
65

CAPÍTULO II

A POSSESSÃO NO BRASIL

1. Introdução

Vimos no capítulo anterior que o tipo de interesse


manifestado pelo Ocidente em relação aos fenômenos extáticos
observáveis nas “outras” sociedades com quem a aventura colonial o
colocava em contato pode ser entendido, ao menos em parte, como
resultado de uma projeção da relação que a própria sociedade
ocidental tem mantido com o transe e a possessão em seu próprio
interior. Ora, sendo esta relação marcada fundamentalmente por uma
exclusão e pela recusa do êxtase como resultante de uma natureza
patológica, e sendo que as sociedades “primitivas” ofereciam uma
espécie de imagem invertida desta situação, por localizarem
freqüentemente a possessão no centro de suas atividades “normais”,
a observação do transe e de seu lugar nessas sociedades não
poderia deixar de provocar um certo questionamento, implícito, de
alguns dogmas ocidentais. Este questionamento, contudo, não foi
evidentemente levado adiante, ao menos nesse primeiro momento,
tendo-se produzido ao contrário uma tentativa de neutralização
desta ameaça lógica. Para esta tentativa, a recente “ciência da
sociedade” parece ter contribuído de alguma forma, ao buscar
reduzir os fenômenos extáticos a formas de patologia ou de poder
bastante conhecidos pela sociedade ocidental.
Ora, se esse violento processo etnocêntrico de rejeição
ocorre quando de um contato com sociedades “exóticas” e distantes,
próximas apenas em função de contingências políticas e econômicas
derivadas da exploração colonial, pode-se imaginar o que
aconteceria quando os fenômenos sujeitos a esse processo se
66

encontram no seio, ou ao menos ao lado, da própria cultura que


busca rejeitá-los. É claro que algo assim também se passa na
Europa vitoriana, na medida em que o nascimento da Antropologia
Social e de sua preocupação com o êxtase, preocupação aliás
compartilhada com fervor pela psiquiatria da época, coincidem com
a formação de um culto extático, o espiritismo “científico”
europeu. Mas não pode haver termo de comparação entre este
processo e o que ocorre numa sociedade onde convivem, lado a lado,
as ambições cientificistas do século XIX ocidental, e
manifestações religiosas de transe e possessão oriundas de
“primitivas” sociedades africanas. É exatamente isto que ocorre no
final do século XIX no Brasil, onde o segmento branco dominante
busca afirmar e reafirmar seu alto grau de “civilização” e
libertar-se das amarras de um passado visto como obscurantista e
inferior.
Neste sentido, quando começam a surgir no Brasil os esboços
de uma ciência social, é exatamente para este problema, mais
sócio-político do que teórico, da convivência entre uma sociedade
civilizada, branca e “européia”, com uma outra, primitiva, negra
ou indígena, que as atenções se voltam. E se, num primeiro
momento, são as populações indígenas e sua assimilação que
constituem o foco das preocupações, já a partir de 1873 com Silvio
Romero a questão negra começa a ser encarada no contexto de uma
problemática geral com a formação étnica e cultural da sociedade
brasileira (cf. Pereira de Queiroz, 1978: 101-102). Mas será
apenas com Nina Rodrigues, a partir da última década do século
XIX, que o “negro” passa a ser um objeto de investigação em si
mesmo, investigação incitada por um problema central, aquele da
“integração do negro” na sociedade abrangente a partir da
Abolição: como pensar a coexistência igualitária de duas raças
intelectual e culturalmente desiguais sem pôr em risco a harmonia,
o ordem e o desenvolvimento do país (cf. Rocha, 1973)? Os autores
67

que se sucedem — Euclides da Cunha, Manuel Querino, Oliveira


Vianna, Gilberto Freyre, Arthur Ramos — permanecerão todos dentro
desta questão “dualista” básica, variando apenas o “pessimismo” ou
o “otimismo” respectivo de cada um deles, desde o temor de Nina
Rodrigues pelo “enegrecimento” da civilização branca brasileira
com sua conseqüente e inevitável queda na barbárie e na
selvageria, até a apologia integracionista de Gilberto Freyre. Em
outros termos, como sustenta Maria Isaura Pereira de Queiroz, a
noção central a todos esses autores é:
“a noção de que a integração só é possível quando há
harmonia entre as diversas partes que constituem o conjunto —
harmonia que para alguns resultaria da semelhança indiscutível
entre estas partes (...) e para outros se basearia na indiscutível
dominação de uma raça superior sobre as raças inferiores” (Pereira
de Queiroz, 1978: 110).

É assim num tal contexto, simultaneamente teórico e político,


que surge o interesse nos chamados cultos africanos no Brasil.
Afinal, estes não poderiam deixar de ser vistos como prova e
exemplo claros da “heterogeneidade dos espíritos” para retomar uma
expressão significativa de Nina Rodrigues: cultos “bárbaros e
primitivos” no próprio coração de uma moderna sociedade cristã e
científica. E é bastante evidente que no interior dos estudos
sobre tais cultos a possessão ocupará um lugar central compondo,
como um de seus traços mais aberrantes, o quadro primitivo e
aterrorizante que se imaginava poder pintar da cultura negra no
Brasil. Roger Bastide, um tanto ingenuamente, parece acreditar que
a ênfase obstinada com que a possessão foi estudada pelos
primeiros pesquisadores dos cultos afro-brasileiros se deveria ao
fato de que, em sua maioria, estes pesquisadores eram médicos de
formação. Ora, parece óbvio, ao contrário, que, além da questão
central da “eugenia” (seja em sua forma diretamente biológica da
mestiçagem racial e dos males por ela pretensamente causados, seja
em sua transformação antropológica com o “sincretismo religioso”,
esta “mestiçagem do espírito” como a chamava Nina Rodrigues — cf.
68

Rocha, 1973: 08), são exatamente esses estados “mórbidos” do


transe que parecem ter feito com que médicos-legistas e
psiquiatras tivessem se dedicado ao estudo de um objeto tão
distante de suas preocupações cotidianas. A partir de tais
pressupostos, o destino do transe nos cultos afro-brasileiros só
poderia ser mesmo o gabinete médico, e o diagnóstico que lá o
espera será, inevitavelmente, o de “enfermidade mental”. É
justamente esta a posição dos primeiros estudiosos do assunto.

2. As Explicações Médico-Psiquiátricas

Foi então Raimundo Nina Rodrigues o primeiro a se interessar


de forma mais direta pela posição ocupada pelos negros africanos
trazidos como escravos e por seus descendentes no seio da
sociedade brasileira. Seus primeiros trabalhos sobre este tema são
explicitamente médicos, ou de medicina “social” talvez. Consistem
eles numa série de artigos escritos entre 1883 e 1898, publicados
por Arthur Ramos meio século mais tarde (cf. Nina Rodrigues,
1939). Estes artigos tratavam basicamente dos problemas
patológicos, tanto individuais quanto sociais, causados pela
mestiçagem racial, desde sublevações populares como Canudos
(episódio classificado como “loucura epidêmica”) até bárbaros
assassinatos como aqueles praticados por Lucas da Feira (cf.
também Rocha, 1973: 05-07). A partir desses estudos, Nina
Rodrigues projeta um grande trabalho a respeito do “problema da
raça negra na América Portuguesa”, trabalho do qual o estudo dos
fenômenos religiosos deveria constituir apenas uma parte, mas que
terminou por ser a única coisa publicada pelo próprio autor,
primeiramente em 1896 na “Revista Brazileira” e depois, quatro
anos mais tarde, como livro editado na Bahia em francês. Tratava-
se, de seu ponto de vista, de contribuir para a solução dos
problemas raciais e sociais levantados pela formação do povo
69

brasileiro, de estudar ao mesmo tempo as mestiçagens “racial e


espiritual” às quais ele estaria submetido, tudo isso sem jamais
perder de vista sua condição de médico, tal como afirma na
Introdução de sua principal obra:

“Je suis médecin, j’ai à peine besoin


de le dire et n’ai pas d’autre ambition.
Les excursions de la médicine dans le
domaine de l’amélioration ou du
perfectionnement des peuples ont inspiré
ces pages consacrées au service — petit
sans doute, car je ne saurait faire mieux —
de ma chére patrie” (Nina Rodrigues, 1900:
VI-VII)6.

Dentro deste projeto global bastante ambicioso, o estudo dos


fenômenos religiosos de procedência africana possuía um duplo
objetivo, objetivos igualmente importantes para a demonstração da
tese geral: em primeiro lugar estabelecer a própria realidade das
“sobrevivências africanas”, negando que a catequese a que tinham
sido submetidos os escravos, bem como o catolicismo que eles
haviam aparentemente adotado, fossem mais do que um simples verniz
encobrindo o segredo de tradicionais práticas mágico-religiosas (e
nesse ponto Nina Rodrigues se considera um inovador lutando contra
os “lugares-comuns da ciência oficial”). Além disso, tratava-se de
demonstrar que, por sua existência mesmo, essas “sobrevivências”
eram prova cabal de uma inferioridade mental da raça negra que a

6 Nina Rodrigues abre a edição em francês de “O Animismo


Fetichista” (publicada contudo em Salvador) com uma “Advertência”
que chama a atenção para a “ignorância dos nossos tipógrafos” em
relação à língua francesa, o que explicaria os inúmeros erros
ortográficos da edição. As citações aqui utilizadas mantêm a forma
original da impressão do texto.
70

tornava incapaz de absorver plenamente as “altas abstrações do


monoteísmo cristão”. É com esse intuito, para provar esta tese
básica, que Nina Rodrigues passa cinco anos visitando e estudando
os terreiros de Candomblé de Salvador e do Recôncavo Baiano (cf.
Nina Rodrigues, 1900: 03-04).
A hipótese de Nina Rodrigues é pois, desde o início,
biologizante, na medida em que atribui um determinado tipo de
religião a um certo grupo racial. Mas, de uma forma um tanto
curiosa este biologismo racista se encontra mesclado com uma série
de concepções extraídas do “evolucionismo social”, especialmente
de Tylor e de Andrew Lang. Curiosa porque, sabe-se, o
evolucionismo social vitoriano tendeu sempre, explícita ou
implicitamente, a colocar-se em oposição ao determinismo racial,
ao admitir como princípio fundamental uma “unidade do espírito
humano” formalmente invariável, sendo o progresso considerado
antes como função do acúmulo e aperfeiçoamento de experiências e
conhecimentos do que de transformações de ordem biológica. Nina
Rodrigues, num primeiro momento, cruza estas duas concepções,
sustentando que as “leis da evolução psicológica” seriam as mesmas
em todas as raças, e não em todas as sociedades ou culturas como
tendia a dizer o evolucionismo social clássico (cf. Nina
Rodrigues, 1900: 135). Procedendo assim, ele transforma a analogia
darwinista presente no pensamento evolucionista numa verdadeira
homologia, tratando os diferentes ramos da humanidade como
verdadeiras espécies biológicas substantivamente distintas umas
das outras. Deste modo, a catequese e a conversão, e de modo mais
geral a própria integração do negro na sociedade brasileira teriam
que esperar que este atingisse um certo grau de maturidade
intelectual, fruto direto de sua lenta evolução racial. Só então,
acreditava ele, a integração teria alguma possibilidade de sucesso
e, enquanto isso não acontecia, o mais indicado e o mais saudável
71

seria manter as duas “raças” totalmente separadas, evitando assim


os perigos da miscigenação racial e intelectual.
Uma segunda etapa do pensamento de Nina Rodrigues consiste
então em tentar classificar, numa escala de tipo evolucionista, a
religião afro-brasileira. A tarefa não parece muito fácil já que a
seus olhos coexistiriam em tais cultos elementos oriundos de
diferentes estágios evolutivos, indo desde
“le fétichisme le plus étroit et le plus nuancé aux bornes
des généralistions polythéistes...” (Nina Rodrigues, 1900: 11).
Finalmente, após uma série de considerações ele termina por
considerá-la uma manifestação de “animismo difuso” de um
“fetichismo” global, tomando de empréstimo a André Lefèvre essas
expressões. Isto significa, para simplificar, que, para Nina
Rodrigues, os negros afro-brasileiros atribuiriam vida a seres
inanimados (o que corresponderia ao “fetichismo”) e, de modo mais
específico, emprestariam a cada ser ou coisa um “duplo”
independente de seu corpo (o que caracterizaria o “animismo
difuso”). Essas religiões ocupariam portanto uma posição bastante
baixa na escala evolutiva dos sistemas de crenças, posição tida
como congruente ao parco nível de desenvolvimento mental da “raça
negra”, inferior mesmo para nosso autor àquele atingido pelo
indígenas brasileiros (cf. Nina Rodrigues, 1900: 14). Ora, é
dentro deste quadro de referências, ao mesmo tempo evolucionista e
biologizante, que uma explicação para o transe e a possessão será
buscada.
A esse respeito, pode-se dizer talvez que existe um certo
exagero na afirmativa de Roger Bastide de que Nina Rodrigues — por
sua condição de médico, novamente — teria centralizado todo o
culto do Candomblé no transe extático, negligenciando outros
aspectos fundamentais do ritual e da mitologia. Na verdade, menos
de um quarto do “Animismo Fetichista” é consagrado à possessão, e
temas como o sistema mitológico, o panteão divino, os sacrifícios,
72

os ritos fúnebres, a divinação, etc., ocupam também uma porção


significativa do trabalho. No entanto, é certo que o autor
localiza no transe um dos pontos capitais dos cultos afro-
brasileiros, e isto não devido a sua profissão, mas basicamente
porque Nina Rodrigues acreditava que, tanto para o fiel quanto
para o cientista, estava aí, na possessão, a prova definitiva seja
da eficácia, seja da especificidade última desse tipo de culto.
Para o fiel, em primeiro lugar, porque:

“La meilleure prouve de la sincérité


et de la conviction des nègres fétichistes
— simples croyants, prêtres ou pontifes —
c’est précisément cette manifestation de
phénomènes étranges et anormaux, cette
aliénation passagère, mais vraie,
incontestable, dont ils ignorent les causes
et qu’ils attribuent à l’intervention
surnatureelle du fétiche” (Nina Rodrigues,
1900: 78).

Ou seja, tudo se passa como se a possessão, encarnando o


deus no homem, materializando sua existência invisível e abstrata,
criasse no fiel, que ignora as verdadeiras causas do fenômeno em
questão, a certeza de sua presença e de sua eficácia.
Mas a possessão também é essencial para o cientista que
busca justamente descobrir as “verdadeiras causas” do fenômeno.
Estas serão encontradas, sem muita dificuldade, no estreito
parentesco presumivelmente existente entre o transe e certos tipos
de distúrbios e perturbações psicológicas:

“D’aprés ce que j’ai entendu, d’aprés


les cas que j’ai observé et les examens aux
quels je me suis livré, je suis porté a
croire que les oracles fétichistes possédés
de saint ne sont autre chose que des états
73

de somnambulisme provoqués avec


dédoublement et substitution de la
personnalité” (Nina Rodrigues, 1900: 81)7.

Tais distúrbios e transformações seriam provocados por uma


série de técnicas em ação durante os rituais do culto: ingestão de
ervas alucinógenas, abstinência alimentar e sexual, esgotamento
causado pelas danças, efeito hipnótico da música, e assim por
diante. Seriam também em tudo homólogos àqueles estados e
comportamentos observáveis nas crises histéricas, e é dessa
semelhança de forma que Nina Rodrigues extrai a causa última da
possessão. Esta consistiria simplesmente numa determinada forma
cultural de que é investida a perturbação de origem histérica8:

“Quel que soit d’ailleurs le procédé


employé, l’état de somnambulisme une fois
provoqué, la création de la forme
psychologique est toujours affaire de la
suggestion ambiante” (Nina Rodrigues, 1900:
84).

Extraindo então de Pierre Janet e de seus estudos sobre o


mediunismo os conceitos de “histeria”, “sonambulismo” e
“desdobramento da personalidade”, Nina Rodrigues faz do transe o
reflexo direto destas perturbações psicológicas, atribuindo ao

7 É interessante observar como a explicação de Nina Rodrigues,


apesar de tudo, se aproxima do modelo nativo. A primeira iniciada
em cada grupo de noviças é chamada “Dofona”, palavra Yoruba que
significa literalmente “tornar-se vazio em primeiro lugar”.
8 Essa combinação, tantas vezes efetuada, entre possessão e
histeria, é significativa. Sabe-se que com Freud a noção de
histeria foi desubstantivada e privada de toda realidade
discriminadora. Aconteceria então com a possessão o mesmo que com
a histeria (e, evidentemente, com o totemismo — cf. Lévi-Strauss,
1975: 13)?
74

“meio social” apenas a capacidade de direcionar essas


manifestações. Mas restava ainda uma “última” dificuldade: os
psiquiatras da época tendiam a negar a existência da histeria
entre os membros raça negra. Ora, se isto fosse verdade, como
explicar então o êxtase pela histeria se as “vítimas” mais
constantes do primeiro eram imunes à segunda? Para contornar a
objeção, Nina Rodrigues começa por tentar comprovar a existência
de crises histéricas entre os “negros baianos”, embora admitindo
que sua freqüência seria aí muito menor do que aquela observável
entre brancos ou mesmo entre mestiços. Por fim, ele concorda em
admitir, seguindo Janet, que outras causas poderiam gerar o
“desdobramento da personalidade”, causas entre as quais estariam a
“alienação”, a “neurastenia”, a “estupidez”, a “imbecilidade” e a
“idiotia”, entre outras formas de perturbação:

“Or, étant donné le faible


développement intellectuel des nègres
africains et la néurasthérie devant être la
conséquence de l’épuisement où les plongent
toutes ces pratiques ne constitueraient-
elles pas, par hasard, les conditions de ce
dédoublement de personnalité avec état de
possession sugestive, que nous avons
étudiées sous la dénomination d’état de
saint (...). Le faible développement
intellectuel du nègre primitive, aidé par
les pratiques épuisantes des superstitions
religieuses, envisagé comme facteur de
l’état de possession de saint, équivaut
donc à l’hystérie qui, pour les nègres plus
intelligents, constitue ce facteur” (Nina
Rodrigues, 1900: 105-106).

Em suma, uma dimensão biológica é acrescentada à explicação


psico-social esboçada de início, já que a causa do “desdobramento
75

da personalidade” entre brancos, mestiços e “negros mais


inteligentes” — a histeria — teria como equivalente entre os
“negros primitivos” uma característica racial sua, seu “fraco
desenvolvimento intelectual”. Pode-se então resumir esta primeira
posição acerca do êxtase nos cultos afro-brasileiros dizendo-se
que, para Nina Rodrigues, a possessão é um estado patológico
provocado por uma histeria individual associada a um fraco
desenvolvimento de uma certa raça e a um impulso social do meio
que fornece tão somente as direções que o comportamento desta
personalidade patológica tomará: psiquiatria, biologia e
antropologia mesclam-se então através da ação solvente de um
evolucionismo global extremamente bem marcado.

Cerca de trinta anos depois de Nina Rodrigues, o estudo


sistemático dos cultos afro-brasileiros será retomado por Arthur
Ramos. Seu ponto de partida não é muito diferente daquele de quem
ele se considera um discípulo direto. Também médico-legista e
psiquiatra, seu primeiro livro, datado de 1926, intitula-se
significativamente “Primitivo e Loucura”, mas, apesar disto,
procurará marcar alguns pontos de discordância e ruptura em
relação a seu predecessor e mestre. A principal censura dirigida
por Arthur Ramos a Nina Rodrigues diz respeito ao fato de este
último ter baseado, como acabamos de ver, seus estudos e suas
explicações num pretenso estado mental inferior, próprio ao negro
enquanto raça, estado que explicaria desde o sincretismo religioso
(pela incapacidade de compreensão do monoteísmo cristão) até a
possessão (por gerar, ao lado da histeria, os “estados de
sonambulismo com desdobramento da personalidade”). Ramos, ao
contrário, deslocará a ênfase da psiquiatria para a psicanálise e
da antropologia evolucionista intelectualista para os estudos de
“mentalidade primitiva” de Lucien Lévy-Bruhl. Neste sentido, as
particularidades dos cultos afro-brasileiros deveriam ser buscadas
76

e explicadas não através de possíveis caracteres biológicos, mas


nas estruturas “psico-sociológicas” de uma “mentalidade primitiva”
que, longe de constituírem apanágio dos negros como raça, seriam
encontradas também entre as crianças, entre os neuróticos, e nas
obras de arte e sonhos de qualquer grupo racial, inclusive entre
os “brancos civilizados” (cf. Ramos, 1940: 27-31).
Assim, por exemplo, ao invés de explicar o sincretismo
religioso pela suposta incapacidade negra em absorver a abstrata
teologia cristã, como havia feito Nina Rodrigues, Ramos atribuirá
tal sincretismo a uma analogia entre os “inconscientes coletivos”
do branco e do negro, analogia que teria feito corresponderem
santos católicos e orixás africanos precisamente naqueles pontos
em que ambos corresponderiam aos mesmos “complexos” fundamentais.
Deste modo, a equivalência entre a mãe d’água européia, a Iara
indígena e a Iemanjá africana repousaria sobre similitudes
inconscientes relacionadas a um certo arquétipo materno; os Orixás
masculinos seriam “fálicos”, a adoração dos gêmeos corresponderia
a uma manifestação do narcisismo primário através da duplicação do
“eu”, e assim por diante (cf. Ramos, 1940: 2a Parte). Vê-se assim
como a psiquiatria de Janet tão utilizada por Nina Rodrigues cede
terreno à psicanálise dos arquétipos de Jung.
A segunda modificação da teoria de Nina Rodrigues por parte
de Arthur Ramos — a passagem de Tylor e do evolucionismo para a
teoria de Lévy-Bruhl — pode bem ser ilustrada pela interpretação
por ele construída para dar conta dos fenômenos de transe e
possessão nos cultos afro-brasileiros. À primeira vista, sua
abordagem dessa questão poderia mesmo chegar a fornecer uma falsa
impressão de afastamento em relação ao modelo médico-psiquiátrico
de seu predecessor. A objeção levantada contra a assimilação do
transe às perturbações histéricas poderia de fato conduzir a um
entendimento desse tipo:
77

“Como argumenta Oesterreich, se o


parentesco das crises histéricas com os
casos de possessão é evidente, estes
estados não são idênticos. Encarados
exteriormente, a semelhança é perfeita
entre estas contorsões, esta excitação
motora que tanta atenção despertam. A
diferença é, antes de tudo, no domínio
psíquico” (Ramos, 1940: 274).

Ou melhor ainda:

“Vê-se desta maneira que os fenômenos


de possessão não podem ser identificados
somente à histeria como pregou a escola de
Charcot. São muito mais complexos (Ramos,
1940: 282).

Mas, se Arthur Ramos nega a existência de uma conexão direta


entre possessão e histeria, isso não é feito de forma alguma para
retirar o êxtase religioso do quadro etiológico das perturbações
mentais. O que ele censura nessa assimilação não é, como se
poderia imaginar, seu reducionismo extremado mas, bem ao
contrário, sua estreita timidez. Para ele o parentesco entre
histeria e possessão é apenas uma das possibilidades de
enraizamento do transe no domínio do patológico, na medida em que
ele se assemelharia também a todo um complexo quadro, bastante
variado, de distúrbios psicológicos:

“Sintetizando: a possessão espírito-


fetichista é um fenômeno muito complexo,
ligado a vários estados mórbidos. Pode ser
aguda ou crônica. No primeiro caso, nas
formas paroxísticas, transitórias, temos
aqueles processos, afins da histeria, onde
78

se verificam os mecanismos motores de


reação ancestral: ‘tempestade de movimento’
e ‘reflexo de imobilização’, e formas
hiponóicas de pensamento mágico-catártico,
comuns da histeria, dos estados
sonambúlicos, hipnóticos, oníricos,
esquizofrênicos, com modificações da
consciência e da personalidade. Nos casos
sub-agudos e crônicos, as perturbações
demonopáticas e mediumnopáticas dos
possessos, acham-se ligadas ao automatismo
mental, e vão desde os fenômenos
xenopáticos simples, até aos delírios mais
complexos, à base da influência” (Ramos,
1940: 284).

Todo este arrazoado que parece extraído diretamente de um


manual de nosologia psiquiátrica significa simplesmente que Arthur
Ramos busca dissolver a possessão num vasto campo etiológico de
perturbações mentais. O que haveria de comum entre essas
manifestações patológicas todas seria seu caráter “regressivo”, na
medida em que fariam atuar

“esses estratos afetivos profundos,


arcaicos, resto hereditário de um primitivo
estágio da vida, daquela esfera mágico
catártica das reações afetivas” (Ramos,
1940: 283).

Em outro termos, não apenas a possessão é uma “doença


mental”, como várias doenças mentais conduziriam, na ordem
ontogenética, até ela, por gerarem regressões a estágios
evolutivos ultrapassados, representados filogeneticamente pelos
próprios cultos de possessão.
79

Até aqui, nada de antropologia social. No entanto, assim


como para Nina Rodrigues a assimilação do transe à histeria não
bastava para dar conta de sua manifestação nos cultos afro-
brasileiros — pois era preciso manifestamente explicar o tipo de
religião que concedia um lugar a tais processos — também Arthur
Ramos se vê obrigado a acrescentar uma dimensão “etnológica” para
sua explicação. Esta dimensão será encontrada justamente na
estrutura “pré-lógica” da “mentalidade primitiva” negra. Para
Lévy-Bruhl, de quem tais conceitos são diretamente extraídos, o
específico dessa “lógica primitiva” seriam as “participações” que
ela supõe existir entre todos os elementos e compartimentos do
universo, uma “confusão mística” onde

“o eu se confunde com o não-eu, onde


o microcosmo não se separa do macrocosmo e
onde o real não conhece limitação com o
irreal” (Ramos, 1940: 296).

A partir daí, não fica difícil explicar as razões pelas


quais a possessão tenderia a ocupar um lugar privilegiado nas
religiões “primitivas”:

“Torna-se evidente que, nas proto-


religiões selvagens, o essencial do culto é
o contato com as divindades, que o
primitivo provoca em várias práticas da sua
liturgia simbólica. É a busca desta
‘consciência da presença dos espíritos’
(...). Daí, a universalidade, entre os
primitivos, dos fenômenos de possessão,
verdadeiramente a mais perfeita forma desta
fusão mística com a divindade” (Ramos,
1940: 260).

Em síntese, para Arthur Ramos, os cultos afro-brasileiros em


geral representariam a persistência de um certo tipo de
80

mentalidade característica de uma dada fase de desenvolvimento


sócio-cultural, mentalidade que, transplantada para outros
ambientes, passa a conviver com formas mentais mais avançadas,
tendendo neste processo a evoluir ao assimilar alguns elementos
destas formas. Neste contexto, a possessão é encarada como um dos
procedimentos mais adequados para atualizar as estruturas desse
tipo de mentalidade primitiva, ou seja, como uma técnica que
asseguraria (de modo ilusório, é claro) a “participação mística”
entre homens e deuses. Finalmente, a natureza última desta técnica
deveria ser buscada em seu estreito parentesco com todo um quadro
de perturbações mentais que possuiriam em comum o fato de
consistirem em regressões a estados arcaicos do psiquismo
individual que coincidem com primitivos modos de vida da espécie.

Se uma relativa atenção foi aqui dedicada às contribuições


de Nina Rodrigues e Arthur Ramos para o estudo dos cultos afro-
brasileiros em geral e do lugar da possessão em seu interior em
particular, isso não se deve, evidentemente, a possíveis grandes
méritos teóricos de suas análises. Efetuadas há mais de meio
século, encontram-se de tal modo comprometidas pela evolução do
pensamento antropológico que sua desconstrução crítica pode passar
mesmo por um certo anacronismo. Acontece contudo que estes dois
autores balizaram um certo espaço, delimitaram um determinado
campo teórico que, com raríssimas exceções, continuou sendo
durante muito tempo o locus clássico de análise dessas religiões.
Isto é mesmo verdadeiro não somente para aqueles que seguiram
explicitamente seus postulados básicos, mas também para os autores
cujas pesquisas se desenvolveram contra suas hipóteses. Ou seja,
parece-me que Nina Rodrigues e Arthur Ramos definiram uma certa
problemática teórica com a qual se tem, desde há muito, ora
concordado ora discordado violentamente, mas da qual ainda não se
conseguiu escapar completamente. Esta problemática fundamental
81

consiste basicamente numa indagação acerca da estranha permanência


dos cultos afro-brasileiros numa sociedade que se moderniza
velozmente, e dentro desta questão global é que se tem colocado
usualmente o problema teórico do transe e da possessão. Mais
adiante, no contexto de uma crítica global a esta problemática,
retornarei a essas observações. Por ora, convém continuar
esboçando o quadro de desenvolvimento das pesquisas sobre as
religiões africanas no Brasil e sobre o lugar do êxtase em seu
interior.
Acabamos de ver que o que caracteriza a primeira forma de
abordagem desses temas é uma tentativa de reduzir o transe a uma
psico-fisiológica em relação à qual o “meio social”, como dizia
Nina Rodrigues, atua apenas fornecendo uma vestimenta cultural ou
a encaminhando numa dada direção. É esta também, basicamente, a
posição de uma série de outros autores. Manuel Querino, por
exemplo, muito embora critique a visão racista e preconceituosa de
seu contemporâneo Nina Rodrigues, e não adote a tese de ser a
possessão um distúrbio mental, acaba reduzindo-a a um efeito de
dissociação da personalidade produzido pela ingestão de drogas
fabricadas a partir de ervas tradicionais e catalizado pela ação
das danças e das músicas acompanhadas pelo toque dos atabaques,
processos que engendrariam a “auto-sugestão” responsável pelo
transe (cf. Querino, 1938). Mais recentemente, Donald Pierson, em
1942, e Edison Carneiro, em 1948, retomarão sem modificações essas
idéias (cf. Pierson, 1971; cf. Carneiro, 1961; 1981). É também
esta a perspectiva de Gonçalves Fernandes, com a diferença de que
onde Manuel Querino enxergava uma saudável manifestação
folclórica, Fernandes pretende ver rituais primitivos e
envergonhantes, acrescentando ainda que o alcoolismo “disseminado”
nestes “redutos de marginais” estaria também entre as causas da
possessão (cf. Gonçalves, 1937). Antes deles, o padre Etienne
Brazil reproduzirá diretamente as teses de Nina Rodrigues,
82

considerando o transe uma manifestação patológica específica de


uma determinada “raça” sub-desenvolvida (cf. Brazil, 1912). Existe
contudo uma outra forma de tratar a possessão nos cultos afro-
brasileiros.

3. Os Modelos Sócio-Culturais

Os estudos sobre os cultos afro-brasileiros sofrerão uma


primeira torção teórica durante o período da II Guerra Mundial com
a vinda ao Brasil de Melville Herskovits. Interessado nos estudos
de “aculturação” este autor virá a dedicar grande atenção às
religiões de origem africana tentando comparar sua estrutura e seu
funcionamento àqueles, observados por ele mesmo no Daomé, dos
cultos africanos originários. Sua primeira objeção contra o tipo
de pesquisa efetuada até então acerca do Candomblé é que ele não
deveria ser encarada apenas como sistema religioso, mas sim como
verdadeiro “modo de vida”, ou seja, como unidade cultural
integrada, dotada portanto de organização social, econômica,
política, etc., e onde a religião seria apenas mais uma instância
a ser observada, não importando se os membros do grupo em questão
a considerem conscientemente como o único nível pertinente. A
partir deste pressuposto, a técnica de pesquisa só poderia mesmo
consistir em “estudos de comunidade”, isto é, deveria proceder
através da observação participante duradoura e intensiva em
terreiros de Candomblé completamente constituídos. Já a
metodologia a ser utilizada deveria ser um tipo de análise
funcional que permitiria compreender e explicar a coexistência dos
vários níveis culturais dentro da comunidade pesquisada, bem como
a relação desta unidade com outras da mesma natureza e também com
toda a sociedade abrangente. Esta transformação teórica e
metodológica é fundamental e estabelecerá um plano de trabalho que
83

passará a ser seguido por todos os estudiosos do assunto a partir


deste momento (cf. Herskovits, 1943; cf. Bastide, 1971: 37-38).
No que diz respeito aos fenômenos extáticos, este tipo de
perspectiva terá a inegável virtude de extrair a possessão do
domínio psicopatológico, já que, ao situá-la no contexto ritual e
sociológico onde ela se processa, seu caráter de comportamento
normal, estatística e normativamente falando, se manifestará
imediatamente. Herskovits procurará então interpretar o transe
como fato cultural normal, a partir de uma concepção behaviorista
do processo estímulo-resposta. Para ele, a iniciação — que passa a
constituir o foco central de preocupação do pesquisador, na medida
em que nela é possível perceber a integração do indivíduo à
comunidade — e a convivência grupal acabariam por criar um
“reflexo condicionado” ligado a um certo comportamento (a
possessão) que seria detonado a partir de sinais tradicionais,
tais como a música, as danças, a prece, etc. A possessão passa a
ser vista como integrando um complexo cultural que, dentro da
tradição culturalista norte-americana, será encarado como fator de
estabilização da personalidade individual e de sua adaptação tanto
ao meio social quanto ao meio-ambiente natural (cf. Herskovits,
1943; Ribeiro, 1955: 163-164). Este modelo será integralmente
adotado por dois discípulos brasileiros de Herskovits, Octavio da
Costa Eduardo, que estudará desta perspectiva os Voduns do
Maranhão em 1948 (cf. Eduardo, 1948), e Renê Ribeiro, que a
utilizará na pesquisa dos Xangôs do Nordeste em 1952, e cujas
teses sobre a possessão fornecem sem dúvida o melhor exemplo de
como opera este novo quadro teórico (cf. Ribeiro, 1955; 1978).
O ponto central das teses de Ribeiro é exatamente o mesmo de
Herskovits, a saber, considerar os terreiros de Xangô (nome
recebido pelas religiões de procedência africana em Pernambuco,
Sergipe e Alagoas) como unidades culturais totais onde o indivíduo
é ressocializado e onde encontra um verdadeiro “grupo de
84

referência”. Neste sentido, eles poderiam ser analisados como


verdadeiras “estruturas sociais”, no sentido funcionalista
clássico, ou seja, como sistemas compostos por posições (status) a
que correspondem papéis sociais a serem desempenhados pelos
indivíduos compelidos a isso pela pressão exercida por normas e
sanções culturais específicas. A característica essencial desses
sistemas, no quadro da estrutura social abrangente, seria a
alternativa por eles oferecida a indivíduos socialmente
desprivilegiados — ocupando portanto status inferiores e
desempenhando papéis indesejáveis na sociedade inclusiva — e a
conseqüente possibilidade de satisfação de seus objetivos e
necessidades, não preenchidos por seu lugar no meio social
externos aos cultos. Uma longa citação pode deixar bastante clara
esta posição:

“Normas e sanções culturais


representam modelos tradicionais de
ajustamento do indivíduo, indicando-lhe uma
conduta adequada às solicitações e
imposições do seu ambiente natural e do
sistema de relações que ele tem de
estabelecer por sua participação no grupo
social. No caso dos grupos de cultos afro-
brasileiros, constituem-se estes não
somente em unidades de convivência
particulares, dentro de nossa sociedade
geral, como em vetores de um sistema de
valores e de patterns freqüentemente
diversos daqueles adotados nos outros
grupos dessa sociedade. Eles fornecem ainda
aos indivíduos que deles participam, sem
que lhes seja necessário repudiar os demais
valores e estilos da cultura luso-
brasileira, um sistema de crenças e um tipo
novo de relações interpessoais amplamente
85

favorável à redução de tensões. Pessoas


cujas posições e papéis na sociedade global
não lhes oferecem chance para colimarem
seus objetivos ou pelo menos, para um
compromisso entre as realidades da vida
cotidiana e os seus objetivos idealmente
fixados ou seus impulsos culturalmente
condicionados, encontram aí um sistema de
crenças, de relações interpessoais, de
hierarquia, bem como um tipo de relação com
o sobrenatural e de aparente controle do
acidente que lhe permitem a satisfação das
necessidades psicológicas indispensáveis a
seu ajustamento ao mundo em que vivem.
Participação nesses grupos, organizados
diferentemente daqueles outros que se
contam em nossa sociedade urbana, bem como
a obtenção aí de posições e de prestígio
(implicando em novo status, freqüentemente
superior), constituem experiências mais
satisfatórias do que quaisquer outras que
lhes possam ser proporcionadas em nossa
sociedade” (Ribeiro, 1978: 144-145).

É esta de fato a conclusão central do principal trabalho de


Renê Ribeiro: os cultos afro-brasileiros deveriam ser explicados a
partir da tradicional questão das relações entre cultura e
personalidade, na medida em que eles constituiriam alternativas
culturais para indivíduos cuja personalidade não encontra canais
de realização pelos meios sociais ordinários. Assim, este tipo de
religião forneceria os elementos para uma compensação por uma
posição social inferior: grupo de sociabilidade, possibilidade de
ascensão social, controle do acaso, etc. É fundamental aqui
perceber o esboço de uma nova concepção sobre as religiões afro-
brasileiras, que de sobrevivências primitivas ou pré-lógicas
86

passam a ser encaradas como realidades vivas desempenhando uma


função atual no contexto da sociedade em que se inserem. Isto
porque será esta a perspectiva adotada deste momento em diante,
até hoje, por quase todos os pesquisadores do tema.
Ora, é dentro desse amplo quadro de funções sociais
desempenhadas pelos cultos que o fenômeno da possessão deverá ser
analisado. Em outros termos, a questão a ser indagada a respeito
do transe se relaciona também à função por ele preenchida nesse
processo global de ajustamento do indivíduo ao grupo e à sociedade
abrangente. A partir de um tal pressuposto, é manifestamente
impossível considerar a possessão como uma forma de distúrbio
mental. Ou seja, a partir do momento em que se considera este
problema de uma perspectiva funcionalista é-se obrigado a indagar
e descobrir em que o êxtase contribuiria na manutenção do
equilíbrio grupal e individual, na medida em que o funcionalismo
de Renê Ribeiro está intrinsecamente ligado a uma postura
culturalista. De perturbação médica, a possessão passará então a
ser vista como uma técnica de ajustamento psicológico, seja por
promover um importante alívio de tensões:

“A possessão tem papel dramático e


saliente nas principais cerimônias, os
indivíduos que experimentam tal estado
derivando dele particular satisfação
emocional, decorrente da sua intimidade com
o sobrenatural e da libertação de tensões
psicológicas simultaneamente à aprovação do
grupo, que constituem os elementos
essenciais nesse tipo de experiência
religiosa” (Ribeiro, 1978: 143).

seja por fornecer ao indivíduo um conjunto de status e


papéis bastante desejáveis (o de divindades) que compensariam os
status e papéis inferiores ocupados e desempenhados por ele na
87

vida cotidiana (cf. Ribeiro, 1955: 169). A partir desses


postulados, Renê Ribeiro aplicará testes projetivos de
personalidade sobre um grande número de fiéis dos Xangôs de
Recife, e ao se confrontar com alguns resultados indicativos de
anormalidades psicológicas cujos portadores, contudo, mantinham um
comportamento cotidiano perfeitamente anormal, ele terminará por
concluir que são justamente o pertencimento ao grupo de culto, bem
como a descarga emocional de tensões resultante da possessão, os
responsáveis pelo equilíbrio desses indivíduos que, caso
contrário, dariam sinais de distúrbio em sua vida ordinária. Para
funcionar dessa maneira, o transe é visto como momento de
manifestação de uma série de aspectos psicológicos recalcados e
reprimidos durante a vida cotidiana e que, se não viessem à tona
durante a possessão, poderiam funcionar como agentes patogênicos
(cf. Ribeiro, 1955: 180-182).
Mais ou menos na mesma época em que Herskovits empreende sua
crítica dos modelos analíticos vigentes nos estudos sobre os
cultos afro-brasileiros, esboçando simultaneamente uma nova
interpretação dessas manifestações religiosas a partir de
referenciais teóricos culturalistas e funcionalistas, Roger
Bastide inicia sua gigantesca exploração neste domínio, movido
tanto por um interesse análogo ao do etnólogo norte-americano —
compreender os fenômenos por denominados de “interpenetração de
civilizações” — quanto pelo objetivo de construir uma “sociologia
do transe” (cf. Bastide, 1972: 55). Seus trabalhos me parecem ser,
sem sombra de dúvida possível, a mais completa e melhor abordagem
já efetuada a respeito do “mundo dos Candomblés”, e mesmo os
estudos posteriores estão muito longe do alcance, da qualidade e
das virtudes da obra de Bastide. Sua inspiração teórica é,
confessadamente, a Escola Sociológica Francesa, de Durkheim e
Mauss a Lévy-Bruhl e Griaule, e é a partir deste ponto de
88

referência que ele critica severamente seus predecessores no


estudo das “religiões africanas no Brasil”.
Suas objeções coincidem também com as de Herskovits, ao
ressaltar o fato de que autores como Nina Rodrigues e Arthur
Ramos, entre outros, pecavam por não enxergar no Candomblé mais do
que sobrevivências de um passado a ser abolido pelo progresso da
cultura, arvorando-se então em colecionadores de antigüidades — ao
coletarem material relativo ao culto — ou em reformadores sociais,
ao tentarem entender as razões dessa resistência à mudança,
propondo ao mesmo tempo meios de ultrapassá-la. Bastide, ao
contrário, deseja estudar essas religiões como realidade viva,
inserida na sociedade brasileira abrangente. Mas, apesar disto,
Herskovits e seus discípulos também são visados pela crítica
bastidiana: o postulado culturalista desses autores é posto em
questão na medida em que não saberia dar conta da inserção das
comunidades minuciosamente estudadas no seio da sociedade
inclusiva (cf. Bastide, 1971: 38); a hipótese funcionalista é
descartada porque acabaria por reduzir-se a um truísmo desprovido
de valor informativo ao afirmar que a função do Candomblé é
idêntica a de qualquer instituição social, satisfazendo
determinadas necessidades sociais e/ou individuais (cf. Bastide,
1971: 39).
Bastide propõe então que a análise dos cultos afro-
brasileiros seja efetuada nos quadros de uma “sociologia causal e
histórica” que leve em consideração as origens africanas destes
cultos e as transformações a que foram submetidos quando em
contato com a nova realidade brasileira. Em outros termos, tratar-
se-ia de superar simultaneamente tanto a visão dos primeiros
pesquisadores, que situam o Candomblé sempre no passado e de lá
buscam extrair seu sentido, quanto a dos funcionalistas, que,
omitindo a história dessas religiões, tenta explicá-la apenas a
partir de suas supostas funções atuais (cf. Bastide, 1971: 39).
89

A solução proposta por ele para integrar os “aspectos”


africano e brasileiro dessas religiões encontra seu ponto focal no
importante conceito
de “internalização”. Na África, a “super-
estrutura” religiosa9 estaria inextrincavelmente soldada a sua
“infra-estrutura” sociológica. Assim, a religião bantu (que teria
originado o Candomblé Angola no Brasil) consistiria basicamente
num culto aos antepassados familiares, espíritos de mortos que
possuiriam determinados membros da unidade familiar durante os
rituais religiosos (cf. Bastide, 1971: 85-86); já no caso Gêge e
Yoruba (origens respectivas das “nações” gêge e nagô do
Candomblé), as divindades representariam forças da natureza,
existindo confrarias de iniciados e sacerdotes especiais que
serviriam a cada deus em benefício do grupo como um todo; mas, ao
mesmo tempo, cada divindade parece dirigir uma família humana da
qual é visto como ancestral e que lhe rende culto, culto este
transmitido em linha masculina (cf. Bastide, 1971: 87). Ora, a
escravidão destrói inevitavelmente toda a estrutura familiar,
clânica e tribal sobre a qual repousavam os cultos religiosos.
Isto no entanto não significa que os valores culturais
constitutivos destes cultos tenham se abolido no mesmo golpe. Tudo
se passa então como se um abismo se abrisse entre infra e super-
estrutura, entre morfologia social e o universo dos valores
culturais;

“a ruptura que a escravidão


ocasionaria entre o mundo dos valores e o
mundo das estruturas sociais africanas
expôs, fazendo flutuar por um instante,

9 Os conceitos de infra e super-estrutura não são utilizados por


Roger Bastide num sentido marxista ortodoxo. Apresentam antes uma
marca durkheimiana, designando respectivamente a “morfologia
social” e as “representações coletivas”.
90

essas representações no vazio...” (Bastide,


1971: 221).

Este é o primeiro momento, o do destacamento do mundo dos


valores de sua base morfológica. Mas, este mundo não poderia
sobreviver, acredita Bastide, neste “vácuo sociológico”, sendo-lhe
estritamente necessário segregar uma nova infra-estrutura, base
social influenciada simultaneamente pelos valores africanos e por
algumas instituições européias impostas durante o processo de
escravização forçada:

“Em primeiro lugar, a escravidão


operou uma separação entre as super e as
infra-estruturas, sem darmos a esses termos
um sentido marxista. As estruturas sociais
africanas foram destruídas, os valores
conservados; mas estes valores não poderiam
subsistir se não formassem novos quadros
sociais, se não se criassem instituições
originais que os encarnassem e lhes
permitissem sobreviver, perpetuar-se e
passar de uma geração a outra. Isto
significa que as super-estruturas tiveram
que produzir uma sociedade. O movimento não
é mais um movimento de baixo para cima, que
sobe progressivamente da base morfológica
para o mundo dos símbolos e das
representações coletivas para as
instituições e os grupos. Os modelos
africanos puderam influenciar esta
reestruturação, mas também exerceram
influência os modelos europeus impostos,
como as confrarias ou as associações de
danças dos negros ‘nações’” (Bastide, 1971:
83).
91

Ora, é justamente nesta segunda etapa do processo, a da


formação de estruturas sociais a partir dos valores, que o
Candomblé vai surgir como “nicho” (o termo é de Bastide) africano
enquistado na sociedade brasileira. Neste “nicho” todas as
relações sociais seriam “internalizadas” na forma de relações
místicas: a antiga hierarquia tribal se converteria em hierarquia
sacerdotal, as leis de exogamia, clânica ou familiar, se
transformariam na proibição do casamento entre indivíduos
portadores do mesmo Orixá, e assim por diante (cf. Bastide, 1971:
226-227). E, mais do que isto, o grupo de culto passa a ser vivido
como integralmente separado da sociedade inclusiva, operando entre
ambos o que Bastide chama de “princípio de corte”, princípio que
faria com que o fiel do Candomblé pudesse viver simultaneamente no
mundo sagrado do terreiro e na esfera profana do cotidiano sem
estabelecer interelações entre estes domínios (cf. Bastide, 1971:
238; ver também Bastide, 1955, onde o conceito é forjado). É
dentro desta visão abrangente dos cultos como resultante da
“interpenetração de civilizações” que a “sociologia do transe” de
Bastide será construída.
Na África, primeiramente, a possessão tenderia a constituir
uma função específica exercida por um sacerdote ou sacerdotisa
especializados, compondo o quadro mais amplo da iniciação tribal
(cf. Bastide, 1945: 48-49). Com o desmantelamento da organização
social e a transformação do culto em estrutura puramente mística,
o transe passaria a fazer parte do contexto ritual mais abrangente
que caracterizaria essa estrutura religiosa. Não se trata
portanto, de forma alguma, de algum tipo de perturbação
psicopatológica na medida em que se encontra totalmente regulado
pela tradição e pelo sistema ritual (cf. Bastide, 1945: 88;
Bastide, 1973: 306-307). Mais do que isso, não se poderia querer
ver aí sequer uma técnica terapêutica, pois muito embora a
possessão possa funcionar neste sentido tratar-se-ia aí apenas de
92

um efeito e não de sua natureza última (cf. Bastide, 1972: 71-73).


Esta, deveria ser buscada em outra parte.
Na África, crê Bastide, o êxtase poderia ser reduzido em
última instância a uma modalidade de intermediação entre o sagrado
e o profano; no Brasil, devido às condições de vida particulares a
que foram submetidos os escravos africanos e seus descendentes,
uma outra dimensão se acrescentaria, ou mesmo substituiria, esta
estrutura básica. Esta dimensão — e aqui estamos de volta,
paradoxalmente, a Renê Ribeiro — seria uma forma de compensação
fornecido pelo transe ao negro devido à baixa posição social por
ele ocupada na nova sociedade em que vive (cf. Bastide, 1972: 71-
73). Mas, como se dá, concretamente, esta compensação? A possessão
seria um rito que reproduziria continuamente na Terra uma série de
dramas místicos fundamentais. Nestas representações, quase
“teatrais”, os filhos-de-santo atuariam como personagens que,
abandonando seu eu cotidiano, se transformariam magicamente nas
divindades do culto. Assim, o ritual extático seria um “ritual-
experiência-vivida” e a possessão não uma simples substituição,
mas uma verdadeira “metamorfose da personalidade” (cf. sobre todo
este ponto, Bastide, 1978: 200-202).
É esta a idéia central. É a partir dela que Bastide
sustentará que a influência do mundo dos deuses sobre aquele dos
homens ultrapassaria de muito o momento específico da possessão,
atuando sobre toda a sua vida:

“Não é apenas a dança extática das


filhas-de-santo que vai refletir o mundo
dos mitos, nas noites musicais da Bahia. Na
sua vida, nas suas estruturas psíquicas, o
homem todo inteiro simboliza o divino”
(Bastide, 1978: 235).

Em outros termos, e sintetizando, o Candomblé seria uma


verdadeira “máquina” de fabricação e distribuição de
93

“personagens”, personagens que os filhos-de-santo abraçariam por


serem muito mais satisfatórios e de status incomparavelmente mais
elevado do que aqueles papéis representados por eles
cotidianamente. É isto que acarretaria inevitavelmente uma
sensação de “compensação” por esta posição social tão
desprivilegiada:

“Ora, entre os diversos personagens


que representamos, alguns nos convêm
melhor, seja porque exigem de nós menos
trabalho, seja porque agradam nosso gosto
de grandeza, nosso desejo de aplausos
fáceis. Preferimos o papel de Rei ao de
traidor. No seu significado mais
metafísico, as religiões afro-brasileiras
oferecem aos negros do Brasil um vestiário
completo de personalidades, as mais ricas e
as mais variadas, nas quais pode o negro
encontrar uma compensação para os
personagens menos agradáveis que a
sociedade estratificada, organizada e
dirigida pelos brancos lhe impõe para
desempenho. Na dança extática o negro
abandona seu eu de proletário, seu eu
social, para se transformar, sob o apelo
angustioso dos tambores, no deus dos
relâmpagos ou na rainha dos oceanos”
(Bastide, 1973: 316).

É verdade que existe um outro aspecto da teoria de Bastide


ao qual retornarei no quarto capítulo deste trabalho. Por ora
cumpre tentar sintetizar a mudança provocada no rumo dos estudos
afro-brasileiros durante as décadas de 1940 e 1950.
94

Pôde-se observar então que durante esses vinte anos os


estudos afro-brasileiros sofreram uma modificação aparentemente
radical de perspectiva. No caso específico da possessão, esta
passa a ser encarada, acima de tudo, como fato social, na acepção
durkheimiana do termo, podendo e devendo portanto ser explicada
apenas em relação ao contexto sociológico, e não através do
recurso a categorias extraídas diretamente da psicopatologia
individual. Ou então, no máximo, devendo ser tratada como fruto de
uma ação do social sobre o individual, e jamais vice-versa. Em
outros termos, longe de ser patológico e individual, o transe
seria um fenômeno normal e social. Tanto Roger Bastide quanto
Herskovits e seus discípulos insistirão assim no caráter
socialmente adaptativo do êxtase: indivíduos socialmente
marginalizados e discriminados (por motivos raciais, de classe
social, sexuais, etc.) encontrariam nos cultos afro-brasileiros em
geral e na possessão em particular um meio de extravasar as
tensões advindas desta situação, ao “inverterem” sua baixa posição
social. Tomados pelas divindades africanas, transforma-se-iam em
deuses e reis, compensando assim seu status social inferior. O
transe contribuiria deste modo para a adaptação desses indivíduos
à sociedade mais ampla, altamente estratificada e dificilmente
permeável por canais normais de ascensão, características que
tenderiam a colocar os “inferiores estruturais” como que fora do
jogo social (ao menos como agentes plenos), se os cultos e a
possessão não lhes oferecessem uma compensatória ilusão da
participação.
Uma diferença subsiste entretanto entre Bastide de um lado,
Herskovits, Eduardo e Ribeiro de outro, diferença já ressaltada
acima mas que é preciso frisar em função dos rumos tomados a
partir de 1970 pelas pesquisas sobre as religiões afro-
brasileiras. Para Bastide, era imprescindível demonstrar como os
sistemas de valores trazidos, juntamente com os escravos, eram
95

estruturalmente adequados para a utilização local que deles passou


a ser feita. Isto não parece no entanto preocupar muito os
culturalistas que se contentam em apontar para as funções atuais
desempenhadas por essas religiões sem dedicar muita atenção à
estrutura mesma do culto, a não se na medida em que ela justifica
as funções previamente apontadas como fundamentais.
Assim, se de 1900 a 1940 (datas respectivas das publicações
de “O Animismo Fetichista” de Nina Rodrigues e da segunda edição
revista e aumentada de o “O Negro Brasileiro” de Arthur Ramos)
tivemos a nítida predominância das teorias evolucionistas e
psiquiátricas, as duas décadas compreendidas entre 1940 e 1960
(balizadas pelo trabalho de Herskovits de 1943, e pelas duas teses
de Bastide de 1960 — cf. Bastide, 1971; 1978) são marcadas pelo
abandono daquela vertente e pela entrada em cena dos modelos
funcionalistas e culturalistas de inspiração nitidamente
sociológica. Durante a década de 60, os estudos afro-brasileiros
parecem não ter sido muito privilegiados pela ciência social
brasileira. A exceção é o famoso trabalho de Cândido Procópio
Ferreira de Camargo, que caracteriza simultaneamente uma
continuidade em relação aos vinte anos anteriores — levando ainda
mais longe a perspectiva sociologizante ao utilizar técnicas
típicas da Sociologia na investigação dos cultos (amostragens,
questionários fechados, modelos estatísticos, etc.) — e um
deslocamento de objeto empírico, dos cultos tradicionalmente
considerados como “mais puros” (o Candomblé baiano, os Xangôs do
Recife, os Voduns do Maranhão, o Batuque de Porto Alegre) para
aqueles tidos por mais “sincréticos”, influenciados por modelos
europeus, a Umbanda e o Kardecismo. O tema da possessão não chega
contudo a receber neste trabalho uma atenção mais cuidadosa (cf.
Camargo, 1961).
A partir de 1970, o interesse pelas religiões de procedência
africana parece renascer, e renasce voltado especialmente para a
96

observação e a análise de centros de culto menos tradicionais,


análise conduzida por um modelo ainda nitidamente sociologizante,
queiram ou não os autores. Em 1972, são publicados o trabalho dos
Leacock sobre o Batuque de Belém, e o ensaio de Marco Aurélio Luz
e Georges Lapassade sobre a Macumba carioca.
A hipótese central dos Leacock a respeito da possessão é que
ela consistiria num “papel social” assumido pelos indivíduos
durante o ritual. O que caracterizaria este papel diante dos
demais, representados na vida cotidiana é que ele se manifestaria
durante um “estado psicológico alterado”, o transe (cf. Leacock,
1972: 174-175). Assim, não se poderia atribuir o êxtase (ou o
transe para manter sua terminologia) a um estado psicopatológico
de tipo psicótico, já que trata-se aqui de um sistema de crenças
racional e passível de ser comunicado, aparentando-se antes à
hipótese e tendo como conteúdo o papel preconizado pelo grupo que
se manifesta na forma de “possessão”. Pode-se concluir então que a
essência da possessão no Batuque é o desenvolvimento de um papel
social durante uma “condição psicológica alterada” em tudo
semelhante ao estado hipnótico (cf. Leacock, 1972: 212-217). O
sentido último destas práticas estaria então justamente na
assunção de papéis sociais de status muito elevado (divindades ou
encantados) por parte de pessoas que, no desempenho de seus papéis
cotidianos, não são objeto de qualquer atenção ou prestígio,
processo de “inversão” que acarretaria um sentimento de
“compensação” (cf. Leacock, 1972: 51; 228).
Além disso — e este ponto é importante por sua influência
freqüentemente omitida nos estudos subseqüentes — o transe e a
possessão teriam lugar nos quadros de um tipo de culto que
preconizaria um “contrato diádico” entre o fiel e a divindade,
contrato em tudo semelhante às estruturas de patronagem vigentes
na região amazônica (cf. Leacock, 1972: 51; 58-59). Esta idéia
aliás é uma das inovações teóricas introduzidas pelos Leacock; a
97

outra é a “dissolução sociológica” a que eles submetem o êxtase,


reduzindo-o a um papel social cuja única especificidade é a de ser
assumido durante um “estado alterado”, de transe, estado explicado
por sua vez em termos psicológicos como “próximo” ao hipnótico. A
hipótese de uma inversão de posições sociais e da compensação
disto resultante não acrescenta absolutamente nada em relação aos
estudos de Roger Bastide e de Renê Ribeiro apresentados acima.
O outro estudo mencionado (Luz e Lapassade, 1972) é bastante
curioso pela concepção nada ortodoxa, em termos de Antropologia
Social, que os autores adotam em relação à Umbanda em geral e à
possessão em particular. A primeira parte do trabalho, assinada
por Georges Lapassade, consiste numa tentativa de explicar a
“Macumba” carioca através de idéias importadas diretamente de uma
psicanálise reichiana. Neste contexto, o transe será visto como
irrupção de uma força cotidianamente reprimida, força
estreitamente ligada a mecanismos de protesto e revolta (uma
espécie de libido “política”), que será contudo canalizada e
socializada durante a iniciação que “domestica o transe selvagem”
(cf. Luz e Lapassade, 1972: 40). Na África, a possessão
consistiria numa ruptura psíquica radical que, na escravidão, foi
acrescida de uma ruptura cultural que faz com que o transe seja
uma forma de retorno “mágico” à terra africana natal (cf. Luz e
Lapassade, 1972: 12; 41). Haveria pois, no cerne da Umbanda, uma
contradição entre a revolta contra a ordem existente (representada
pelo “transe selvagem”) e sua aceitação e manutenção tácitas (no
transe socializado). Além disso, e mais marginalmente, embora não
menos importante, a possessão é vista como uma forma de “terapia
popular” tão ou mais eficaz do que a própria psicanálise (cf. Luz
e Lapassade, 1972: XIX).
Essas idéias, nada tradicionais, se precisam na segunda
parte do livro, de autoria de Marco Aurélio Luz. Aí, a Umbanda é
analisada em oposição à Quimbanda, dicotomia que reproduz o
98

paradoxo entre aceitação da ordem e revolta contra ela, paradoxo


manifestado também, como vimos, no transe extático. A Umbanda,
enquanto cristalização das forças conservadoras, é definida então
como um “Aparelho Ideológico de Estado Religioso”, que
contribuiria para a reprodução das relações de produção através da
reafirmação constante das normas impostas pela burguesia dominante
e de sua aplicação sobre o conjunto do “proletariado negro”,
compelido então a se acomodar a elas (cf. Luz e Lapassade, 1972:
94). Em suma:

“Como instituição social, a Umbanda


procura, por um lado, reproduzir numa
representação simbólica a hierarquia social
e por outro lado, em seu ritual, reproduzir
o exercício de obediência à autoridade,
ambos aspectos necessários ao funcionamento
da formação social (...). A Umbanda como
religião, é um retrato da formação social
brasileira num plano imaginário, com suas
leis próprias de ocultação e inversão das
classes sociais” (Luz e Lapassade, 1972:
57).

Com “O Segredo da Macumba” passa-se então de uma perspectiva


quase puramente sociológica (ao menos de um ponto de vista formal,
pois é claro que todas as explicações sociologizantes, de
Herskovits aos Leacock, apresentam concepções implícitas sobre as
relações políticas, conforme veremos adiante) a uma outra que
poderia ser melhor denominada de “sócio-política”, na medida em
que um dos focos de atenção — o principal aliás — é direcionado
para os efeitos dos cultos afro-brasileiros na área das relações
de poder, tanto internas quanto externas a eles, funcionando seja
como mecanismo de dominação e de reforço desta, seja como
possíveis canais para a manifestação de protesto e revolta.
99

De fato, é esta perspectiva “sócio-política” que passará a


predominar nos trabalhos subseqüentes da década de 70. Assim,
Diana Brown negará o caráter de “religião popular” da Umbanda,
analisando-a antes como uma forma religiosa desenvolvida a partir
do Kardecismo por representantes das camadas médias, e onde as
classes populares desempenhariam apenas um papel subordinado. A
Umbanda é encarada pois como repousando sobre um mecanismo de
patronagem que operaria em todos os níveis, desde a relação do
culto com a sociedade abrangente (permitindo a eleição de
deputados umbandistas, por exemplo), passando pela filiação dos
terreiros às Federações, pelas relações hierárquicas internas a
cada terreiro, e chegando até a própria relação ritual mantida
pelo médium com as divindades. Em última instância, tratar-se-ia
então de uma estratégia de controle exercida pelas classes médias
sobre as camadas populares da população, sendo que as inversões de
status observáveis no ritual — onde espíritos “populares”, como os
caboclos e pretos-velhos, ocupam uma posição central — não seriam
mais do que máscaras atrás das quais ocultar-se-iam mecanismos de
dominação política (cf. Brown, 1974; 1977). Este tipo de
perspectiva será adotada por uma série de outros autores.
Assim, Renato Ortiz insistirá nas tentativas de
“legitimação” da Umbanda frente à sociedade abrangente, tentativas
efetuadas a partir da assimilação dos valores dominantes,
“brancos” e de classe média (cf. Ortiz, 1977; 1978). Leni
Silverstein e Patrícia Birman seguem também este caminho, ao
apontarem simultaneamente para as inversões hierárquicas presentes
no Candomblé e na Umbanda respectivamente e, ao mesmo tempo, para
o fato de que essas inversões seriam apenas “táticas”, ou seja,
comporiam uma estratégia global de manipulação e reforço da
dominação. Em outros termos, o fato da hierarquia, preservada na
estrutura dos terreiros e no ritual, seria mais importante do que
seu conteúdo que pode tanto inverter quanto reforçar diretamente a
100

ordem política abrangente (cf. Silverstein, 1979; Birman, 1982).


Uma variante desta posição é adotada tanto por Yvonne Velho quanto
por Lísias Nogueira Negrão, que reconhecem a presença simultânea
de forças “populares” e “não-populares” na Umbanda (cf. Negrão,
1979), ou a coexistência não muito pacífica de um “código de
santo”, específico ao culto e que inverte as regras sociais
normais, e um “código burocrático” trazido da sociedade abrangente
(cf. Velho, 1975). A partir daí ambos tentam analisar o fenômeno
em questão com resultante dos choques e conflitos entre estes dois
componentes antitéticos.
Mas, a mais representativa forma de análise dos cultos afro-
brasileiros a partir desta perspectiva “sócio-política” parece ter
sido elaborada por Peter Fry. De fato, em seus artigos ficam
bastante explícitas todas as posições desta perspectiva. Assim,
num texto de 1975 escrito em colaboração com Gary Nigel Howe, ele
conclui, numa espécie de síntese desta posição adotada a partir do
trabalho dos Leacock, que

“Nossa preocupação não é estudar os


sistemas de mitos e crenças como sistemas
estruturais divorciados do contexto social
nos quais eles florescem, mas, mais ainda,
entendê-los em termos daquela realidade, e
a maneira pela qual é percebida por aqueles
que dela participam” (Fry e Howe, 1975: 90-
91).

Ora, a partir desta postura nitidamente sociologizante, as


religiões afro-brasileiras serão definidas como “cultos de
aflição”, no sentido de Victor Turner, ou seja, sistemas voltados
para a resolução de crises de vida individuais. No caso específico
da sociedade brasileira, os tipos de “aflição” diriam respeito
especialmente à saúde, problemas profissionais e de relação com as
101

autoridades constituídas, e “dificuldades de associação


interpessoal” — problemas no amor, em relações de vizinhança,
amizade, família, etc. (cf. Fry e Howe, 1975: 75; Fry, 1978: 32).
No entanto, o autor admite que esta definição é, por si só,
insatisfatória, na medida em que tais problemas poderiam ser
solucionados através do recurso a outras instâncias, colocando-se
então a questão das razões pelas quais justamente a Umbanda é
encarada como eficaz (cf. Fry, 1978: 42). Em outros termos,
admite-se que os símbolos religiosos da Umbanda devem
necessariamente aparecer como eficazes para produzir a conversão
de um indivíduo (cf. Fry e Howe, 1975: 89).
A resposta para esta questão, que passa a ser o problema
fundamental da análise, será encontrada no fato de a Umbanda
funcionar como representação metafórica de um determinado aspecto
da sociedade brasileira, aquele nível não marcado pelos códigos
oficiais e pelas leis impessoais, mas sim por conhecimentos
pessoais, pelos favores e pelo “jeitinho”:

“Nossa interpretação da
plausibilidade da Umbanda, portanto, é que
ela expressa e ritualiza a ‘outra face’ do
capitalismo industrial no Brasil (...). A
Umbanda é plausível na medida em que as
relações particularistas que se estabelecem
com os espíritos na esperança de se obter
favores são homólogas às relações reais
estabelecidas para o benefício de pessoas
no sistema social vigente. Questiono, por
exemplo, se há uma grande diferença entre o
eleitor suplicante que promete seu voto em
troca de uma casa do BNH e um cliente da
Umbanda que faz um acordo com o espírito de
Exu para ganhar um emprego” (Fry, 1978:
45).
102

Mas não seria possível, acredita o autor, explicar a


conversão religiosa para a Umbanda — que implica, como foi visto,
uma crença na plausibilidade de manipulações pessoais
transformarem o mundo — através da utilização de variáveis
sociológicas clássicas, como classe social, cor da pele, etc. Ao
contrário, supõe-se que o essencial estaria nas relações sociais
concretas, na biografia, e na forma e conteúdo das redes sociais
(cf. Fry e Howe, 1975: 83). Deste modo, a questão geral que deve
ser respondida para que se entendam os cultos afro-brasileiros
pode ser resumida, sinteticamente, da seguinte maneira:

“Que elementos de experiência social


levarão uma pessoa a interpretar o mundo em
termos da manipulação frenética de uma
hoste de entidades espirituais...? Que
elementos de experiência social levarão um
indivíduo a perceber o mundo a sua volta
como essencialmente manipulável, um mundo
que não obedece regras fixas mas que pode
ser ‘ajeitado’ na base de manipulações
mágicas a curto prazo...? Em outros termos,
que espécie de experiência social leva à
visão ‘carismática’...?” (Fry e Howe, 1975:
90).

Em suma, a Umbanda seria coerente com uma determinada visão


de mundo e para se entender a conversão de alguém para esta
religião seria inútil buscar razões nas variáveis sociológicas
tradicionais, como havia feito Camargo; tais razões deveriam então
ser encontradas na experiência social individual (que inclui as
variáveis citadas acima) que, forjando um certo padrão de leitura
da realidade provocaria, no caso de ser congruente com aquele
existente no universo simbólico da Umbanda, sua conversão para
este culto como modo de “resolver” suas “aflições”. Finalmente, há
a idéia de que enquanto “culto periférico”, no sentido de Lewis, a
103

Umbanda forneceria “nichos” onde as pessoas consideradas pela


sociedade abrangente como marginais ou desviantes poderiam se
reunir e ter uma experiência agradável (cf. Fry, 1977: 116; 121).

É possível observar então como, a partir do trabalho dos


Leacock, a ênfase nos estudos afro-brasileiros desviou-se das
preocupações evolucionistas e médicas do início do século e
concentrou-se cada vez mais, radicalizando a postura dos autores
das décadas de 40 e 50, nos aspectos sociológicos e, mais
especificamente, sócio-políticos dessas religiões. Mas, além
disto, é preciso notar a existência de outros dois deslocamentos
também fundamentais. O primeiro conduziu da atenção preferencial
nos aspectos internos aos cultos (ritual, mitologia, teologia,
possessão, etc.) a um interesse crescente nas formas de interação
e convivência desses sistemas com a sociedade abrangente, de tal
forma que, como se pode perceber na exposição das idéias desses
autores, é difícil encontrar entre eles posições claras a respeito
da possessão, que fica geralmente limitada a ser vista como um
“papel social” entre outros (além dos Leacock que propuseram esta
postura, esta também é a posição explícita de Peter Fry — cf. Fry,
1977 — e implícita de todos os demais autores, com exceção de
Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade). Já o segundo deslocamento,
como foi visto acima, correspondeu a uma mudança bastante nítida
de objeto empírico: enquanto os autores “clássicos” voltavam-se
especialmente para as manifestações religiosas afro-brasileiras
consideradas mais “puras” (o Candomblé baiano fornecendo o
“paradigma empírico” para este tipo de análise, para retomar uma
expressão de Duglas Monteiro), as pesquisas mais recentes dirigem-
104

se antes para as formas mais “sincréticas”, a Umbanda, o Batuque,


etc.10
Estes deslocamentos, contudo, não devem ser superestimados.
A questão básica que permeia todo o estudo das religiões afro-
brasileiras diz respeito, de Nina Rodrigues a Peter Fry, ao que se
costuma considerar a “estranha” permanência e resistência destas
formas de culto numa sociedade que se moderniza e se industrializa
velozmente. Se os primeiros autores que trataram do tema dedicavam
uma maior atenção aos aspectos “estruturais” desses sistemas é
porque acreditavam que a resposta para esta questão da permanência
não constituía problema. Localizando-a no conceito evolucionista
de “sobrevivência” (racial para Nina Rodrigues, psicológica para
Arthur Ramos), concentravam-se então em descrever tais
sobrevivências antes que a “lenta obra da cultura”, como dizia
Arthur Ramos, as extinguisse para o bem geral. Para estes autores
portanto, não há qualquer vinculação entre essas religiões e as
bases sociais ou culturais brasileiras sobre as quais elas
simplesmente se justaporiam.
Deste ponto de vista, poder-se-ia dizer que os autores
contemporâneos simplesmente invertem esta perspectiva, fazendo,
por assim dizer, da necessidade virtude. Pois se o mistério se
resumia em compreender a convivência dos cultos com o processo de
modernização, e se não é mais possível aplicar o conceito de

10 Isto não significa evidentemente o fim dos estudos sobre o


Candomblé, embora sua intensidade tenha diminuído bastante. No
entanto, os trabalhos de Gisèle Cossard (1970), Juana Elbein dos
Santos (1977), Trindade-Serra (1978) e Claude Lepine (1978) são
integralmente dedicados ao Candomblé baiano. Estes trabalhos foram
aqui utilizados de modo mais implícito e etnográfico, com a
exceção do último que será objeto de uma análise crítica e
posterior.
105

“sobrevivência”, nada melhor do que fazer da própria modernização


a causa da permanência dos cultos, explicando estes últimos como
reflexo direto ou invertido das estruturas sociais atuais que os
sustentam. Neste sentido, fica bastante clara a posição
intermediária da obra de Bastide, reconhecendo e, ao mesmo tempo,
relativizando a ligação entre religião e “infra-estrutura”
sociológica — ao admitir a possibilidade de um destacamento, mas
provisório, da primeira em relação à segunda. Entende-se também,
desta maneira, o segundo deslocamento mencionado acima, na medida
em que, aparentemente, os cultos mais “sincréticos” são os que
mais se expandem com a industrialização, facilitando assim o tipo
de explicação construída para dar conta de sua permanência.
Em suma, creio ser possível sustentar que, historicamente,
foram apresentados dois modelos para a análise da possessão nos
cultos afro-brasileiros e, evidentemente, para os próprios cultos
como um todo. Por um lado, o modelo mais antigo, que predomina de
1900 a 1940 mais ou menos, propõe explicar o transe através de sua
redução a fatores biológicos, patológicos e individuais, sejam
eles derivados de perturbações histéricas ou neuróticas, ou a
simples conseqüência do uso de bebidas alcoólicas ou de drogas e
alucinógenos. A outra explicação, que entra em cena em torno de
1940 e se solidifica a partir de 1970, sustentada a partir da
constatação do caráter normal do transe e de ser ele um fato
socialmente determinado, a despeito de suas possíveis implicações
a nível bio-psicológico, defenderá a idéia de que explicar a
possessão é basicamente estabelecer sua conexão com a ordem social
abrangente, vendo-a ora como mecanismo adaptativo (especialmente
nos trabalhos escritos entre 1940 e 1960), ora como instrumento
político ambíguo, podendo funcionar tanto como mecanismo de
protesto quanto como meio de reforço da ordem social existente (na
obra dos autores contemporâneos).
106

É bastante claro também que estas duas vertentes


explicativas reproduzem de modo bem direto, como seria aliás de se
esperar, as tendências teóricas mais gerais para a explicação do
êxtase religioso, apresentadas no primeiro capítulo deste
trabalho. Também aí foi possível verificar a presença dos dois
modelos isolados. É evidente que estes dois modelos apresentam
diferenças gigantescas entre si, sendo que o segundo se construiu
mesmo como crítica mais ou menos explícita do primeiro. No
entanto, há um ponto em comum entre ambos, ponto para o qual é
estritamente necessário estar atento. As duas perspectivas
isoladas tendem a explicar a possessão reduzindo-a a alguma coisa
que lhe é, de uma forma ou de outra, exterior, seja no plano
biológico, seja no sociológico. Isto significa que tanto as
teorias mais gerais sobre o transe quanto aquelas restritas aos
cultos afro-brasileiros apresentam um problema metodológico e
epistemológico comum, o reducionismo. Ora, o que caracteriza
justamente a explicação antropológica, parece-me, é seu caráter
radicalmente anti-reducionista. Neste sentido, se se pretende ao
menos esboçar os princípios de uma teoria antropológica da
possessão a primeira tarefa que se impõe é a de uma crítica dos
modelos teóricos em vigor. Não, é evidente, que se pretenda negar
que o transe possua aspectos bio-psicológicos e, muito menos, que
tanto ele quanto o culto de que faz parte, inseridos que estão — e
numa posição sobordinada — numa sociedade mais ampla, não queiram
dizer algo a respeito dela, ou refletir algo de sua estrutura. Não
é este o problema. A questão deve ser colocada em outro nível e
diz respeito basicamente ao processo de conhecimento de um
fenômeno como a possessão e de suas relações com o que lhe é
exterior embora conectado. Diz respeito também, é evidente, ao
tipo de perspectiva que se pretende adotar, e que aqui tenciona
ser a da antropologia social.
107

4. Uma Tentativa de Crítica

Pode-se ver então que o primeiro dos dois grandes paradigmas


que têm norteado os estudos sobre o transe e a possessão poderia
ser denominado de “materialismo médico”, retomando uma expressão
que Mary Douglas toma de empréstimo a William James, e que
significa, grosso modo, a redução do simbólico ao biológico. Este
paradigma possui duas variantes: uma que considera diretamente o
êxtase como perturbação (geralmente mental) não reconhecida
enquanto tal devido aos parcos conhecimentos médicos das
populações que experimentam o processo; e outra que vê o transe
como forma de tratamento “pré-médico” (eficaz ou não, isto varia)
para estas mesmas doenças mentais. Essas duas variantes não se
excluem, aparecendo de forma combinada numa série de autores.
Ora, esta abordagem é passível, parece-me, de pelo menos
três objeções situadas em distintos planos: uma de ordem
etnográfica, outra de ordem histórica, e uma última, de ordem
teórica. A primeira diz respeito ao fato de que é extremamente
difícil, como realçam por vezes os próprios autores que praticam
essa assimilação, conectar empiricamente os fenômenos extáticos
com as perturbações definidas pela medicina moderna como doenças
mentais. Os xamãs e possessos dificilmente considerados por
aqueles que com eles mantêm contato direto e intenso como loucos
ou histéricos, e tal aproximação só pôde mesmo ser efetuada a
partir de uma assimilação apressada entre as formas exteriores do
transe místico e algumas estruturas de comportamento que nossa
própria cultura considera como fruto de distúrbios mentais. Além
disso, Roger Bastide o demonstrou exaustivamente (cf. Bastide,
1973: 306-310), o transe se processa sempre em momentos
socialmente programados, havendo mesmo aqueles (tais como os
rituais funerários no Candomblé) que o excluem irremediavelmente,
108

ainda que as mesmas canções e ritmos observáveis aí produzam, em


outros contextos, possessões quase instantâneas. Há tabus que
proíbem a possessão (menstruação, relações sexuais recentes...);
há indivíduos, ocupantes de certos postos hierárquicos ou no
desempenho de determinadas funções religiosas, que não podem ser
possuídas, etc. Em suma:

“um misticismo que começa em


determinado momento e termina também num
momento dado, seguindo sempre certas
regras, longe de explicar o social, só pode
se explicar pela antecedência do social
sobre o místico” (Bastide, 1945: 88).

É preciso sempre indagar portanto, como afirma Lévi-Strauss,


se são os “primitivos” que se subordinam à autoridade de “loucos”,
ou se somos nós mesmos que tratamos fenômenos sociológicos como se
eles derivassem puramente dos domínios de uma pretensa patologia
individual (cf. Lévi-Strauss, 1950: XXII).
Esta última observação conduz diretamente à segunda objeção,
de ordem histórica, a ser feita contra o “materialismo médico” nas
explicações sobre o transe. Tudo indica que o mecanismo
intelectual que estabelece essas equivalências entre possessão e
loucura parece repousar em última instância sobre uma aparente
certeza histórica: a constatação de que, no Ocidente, o
desenvolvimento da medicina incorporou progressivamente áreas
anteriormente abandonadas ao arbítrio do pensamento religioso.
Ora, esta interpretação, nitidamente evolucionista, é totalmente
equivocada. Como demonstrou, decisivamente, Michel Foucault, ela
repousa:

“num erro de fato: que os loucos eram


considerados possuídos; num preconceito
inexato: que as pessoas definidas como
109

possuídas eram doentes mentais; finalmente


num erro de raciocínio: deduz-se que se os
possuídos eram na verdade loucos, os loucos
eram tratados realmente como possuídos”
(Foucault, 1975: 75).

É a partir destas observações críticas que ele se acha então


em condições de concluir que:
“de fato, o complexo problema da
possessão não releva diretamente de uma
história da loucura, mas de uma história
das idéias religiosas” (Foucault, 1975:
75).

Na verdade, antes do século XIX a medicina só havia


interferido por duas vezes em questões ligadas à possessão, duas
intervenções praticadas justamente a pedido da própria Igreja
Católica: tratava-se, nos dois casos, de combater formas heréticas
de culto em que o transe aparecia largamente disseminado. Neste
contexto, os médicos forneceram um importante aval para a tese
católica de que os fenômenos extáticos observados nessas seitas
marginais derivavam exclusivamente de causas materiais (“de
movimentos violentos dos humores e dos espíritos”), e não de
alguma forma não conhecida — ou reconhecida — de manifestação do
sagrado, ainda que demoníaco (cf. Foucault, 1975: 75-76; ver
também Foucault, 1968: 24). De fato, a anexação deste domínio de
fenômenos ao campo propriamente médico é bastante tardia, datando
do século XIX e tendo significado sobretudo:

“apenas um episódio lateral em


relação ao grande trabalho que definiu a
doença mental; e, sobretudo, ela não é
resultante de um esforço essencial para o
desenvolvimento da medicina; é a própria
110

experiência religiosa que, para se apoiar,


apelou, e de modo secundário, para a
confirmação e a crítica médicas” (Foucault,
1975: 76).

É, consequentemente, apenas a partir de século XIX que esse


tipo de experiência mística será definitivamente medicalizado, e
com ele todo o campo da religião, que tende, cada vez mais, a ser
visto como uma grande “ilusão”, processo coroado talvez pelos
trabalhos “culturais” de Freud onde, significativamente, uma certa
medicina mental e uma certa antropologia têm seu ponto de
encontro. Em suma, poder-se-ia dizer que é um engano crer que o
êxtase tenha colaborado, no seio da própria experiência ocidental,
para a construção mesma da noção de doença mental, sua anexação
tendo se processado apenas depois de a definição desta última, “em
estilo positivista”, já haver sido formulada. Ou, em outros
termos, poderia ser sustentado legitimamente que no contexto
histórico e cultural da sociedade ocidental a relação entre
possessão e doença mental foi, num primeiro momento constitutivo,
de exterioridade, tendo sua assimilação se processado muito
depois, sob o jogo de inúmeras forças de ordem sócio-política.
Tendo caído contudo nas malhas do discurso médico e medicalizante,
o transe não mais deles se livrou, e poderíamos perguntar então,
com certa justiça, se as teorias antropológicas, reduzindo a
possessão à enfermidade, mental ou não, não estariam participando
desse jogo positivista de “desencantamento do mundo” — posição
mais do que evidente em trabalhos como os de Tylor, por exemplo,
que se engajava conscientemente e de boa vontade nesta empresa,
111

mas não menos presente, embora mais oculta e “envergonhada” em


abordagens muito posteriores sobre este assunto11.
Finalmente, há uma objeção de ordem teórica, talvez a mais
fundamental de todas. Reduzir o transe ao nível biológico e/ou
psicológico é pôr de lado uma das mais básicas — se não a mais
básica, na medida em que é ela que funda a possibilidade de uma
ciência do social — “regras do método sociológico”, que assegura
que os fatos sociais processam-se num plano que lhe é específico,
devendo consequentemente se estudados neste nível de autonomia.
Esta posição não pode contudo — e este ponto é essencial —
conduzir a uma espécie de formalismo e de ecletismo
“interdisciplinar” que se contentaria em admitir a presença de
múltiplos planos nos fenômenos sociais e pretenderia assim abordar
cada um deles de forma independente para depois, numa espécie de
somatório, apresentar uma explicação geral. Teríamos assim um
nível fisiológico ou neurológico, um outro psicológico, outro
sociológico, outro cultural, cada um devendo ser estudado por uma
abordagem particular para depois termos os resultados combinados
(esta é, por exemplo, a posição explícita de Sheila Walker e de
Edward Foulks, entre outros — cf. Walker, 1972; Foulks, 1972).
Ora, os antropólogos sabem desde Mauss que os fatos sociais
são totais, ou seja, ao menos num certo sentido articulam e dão
nexo a realidades de outros níveis (fisiológico, psicológico,

11 Assim, é ao mesmo tempo espantosa e natural a profissão de fé


positivista de Luc de Heusch ao recusar o “corte epistemológico”
entre a “história da loucura” e a “história das idéias religiosas”
proposto, segundo ele, por Michel Foucault (cf. Heusch, 1971:
292). Heusch confunde aí explicação científica com reducionismo
naturalista e acaba por deslizar de um pretendido estruturalismo
para um esquema bem adequado ao evolucionismo vitoriano, com o
qual ele se contenta.
112

etc.) que, caso contrário, não teriam, para o ser humano,


existência alguma (cf. Lévi-Strauss, 1950). Assim, ao antropólogo
cumpre tentar compreender e demonstrar como um fato socialmente
determinado e socialmente vivido pode induzir fenômenos de outro
nível. Não, evidentemente, que outras ciências não possam fornecer
elementos para a explicação do transe — isto é praticamente
essencial. O problema consiste em esperar de tais ciências,
quaisquer que elas sejam, o fornecimento da chave explicativa de
um fato que, por ser total, cabe, por direito e dever, à
antropologia explicar. Em outros termos, a questão reside em
escolher entre uma série de explicações mecânicas que ao final
poderão talvez ser adicionadas entre si sem modificar sua natureza
última, isto é, sem dar acesso a uma verdadeira síntese, e a
tentativa de encontrar justamente uma explicação sintética,
qualitativamente distinta dos modelos parcelares mas que poderá,
num outro momento talvez, chegar a esclarecê-los.
Isto não significa, é claro, que o antropólogo suponha uma
existência imaterial dos fenômenos por ele analisados. Mas ele
sabe sobretudo que suas análises

“préfigurent seulement, sur les


parois de la caverne, des opérations qu’il
appartiendra à d’autres sciences de valider
plus tard, quand elles auront enfin saisi
les véritables objets dont nous scrutons
les reflets” (Lévi-Strauss, 1971: 575).

A antropologia corresponde pois somente a uma etapa de um


trabalho, a que visa tornar possível a redução dos fatos humanos a
sua materialidade última. Não há nenhuma contradição aqui: esta
redução não tem nada a ver com aquela acima criticada, pois esta
última tem seu ponto fraco não em pretender reduzir, mas em não
saber como fazê-lo, ao não respeitar nenhuma das exigências que
garantem a cientificidade de um tal trabalho. Tais exigências (cf.
113

Lévi-Strauss, 1976: 282-283) sustentam tanto que o nível a ser


reduzido não pode ser empobrecido, quanto que aquele que deverá
recebê-lo tem que ser enormemente complexificado justamente para
poder dar conta do que se lhe exige. Ora, o “materialismo médico”
só consegue a dissolução do transe no biológico sob o preço de
simplificar excessivamente o primeiro e de adotar uma concepção do
segundo rigorosamente idêntica àquela existente antes do processo
de redução. Neste sentido, e para evitar erros assim, o trabalho
antropológico só pode consistir em complexificar o máximo
possível, em termos estruturais, o nível cuja redução é
pretendida, para que, um dia, outras ciências (pois nesse momento
a antropologia se dissolve juntamente com seu objeto) possam
efetuar uma redução verdadeiramente científica e explicativa.
Para cumprir uma tal tarefa, a única via aberta para a
análise antropológica é tentar desvendar as estruturas lógicas em
operação no fenômeno estudado, estruturas que, supondo-se
redutíveis a mecanismos básicos do pensamento, podem colocar a
explicação no caminho de uma materialidade biológica e, por trás
dela, físico-química. É num tal contexto que o estudo
antropológico das religiões encontra sua validade, e não,
certamente, nem no reducionismo simplista apresentado acima, nem
em uma fenomenologia do pensamento religioso que se contentaria em
reproduzir, com outra linguagem, o que os próprios crentes já
dizem (tal é o caso, no que diz respeito aos estudos afro-
brasileiros, do trabalho de Juana Elbein dos Santos — 1977 — obra
de resto profundamente admirável):

“Se quisermos fazer da religião uma


ordem autônoma, ligada a uma pesquisa
particular será necessário subtraí-la a
essa sorte comum aos objetos da ciência.
Definir a religião por contraste será
inevitavelmente para a ciência fazê-la
114

distinguir-se apenas como o reino das


idéias confusas. Por conseguinte, todo
empreendimento que vise a pesquisa objetiva
da religião será forçado a escolher um
outro terreno que não o das idéias, já
desnaturado e apropriado pelas pretensões
da antropologia religiosa. Ficarão abertas
somente as vias de acesso afetiva — ou
mesmo orgânica — e sociológica, que apenas
rodeiam os fenômenos. Inversamente, se
atribuirmos às idéias religiosas o mesmo
valor que a qualquer outro sistema
conceptual, que é o de dar acesso aos
mecanismos do pensamento, a antropologia
religiosa será validada nos seus empenhos,
mas perderá sua autonomia e especificidade”
(Lévi-Strauss, 1975: 107).

De fato, nos estudos afro-brasileiros, além das abordagens


fenomenológica e “afetiva-orgânica” já mencionadas e analisadas,
pudemos observar a presença de um modelo sociológico. Este modelo
constitui mesmo o outro paradigma utilizado para a explicação dos
fenômenos extáticos, apresentando uma perspectiva sociologizante
onde a possessão é encarada como reflexo, direto ou invertido, da
“estrutura social” que envolve a ela e ao culto em que se
processa. Neste modelo, o transe aparece ora como mecanismo de
reforço da ordem social abrangente (seja como instrumento
sociológico adaptativo, seja como estratégia política de
dominação), ora como canal de manifestação de segmentos sociais
oprimidos, ora como ambas as coisas. Em todos os casos, tratar-se-
ia de um terreno aberto para manipulações individuais e grupais
115

que procurariam alterar o equilíbrio do poder em seu benefício


próprio12.
Apesar de obviamente muito mais satisfatório do que o modelo
anterior, por respeitar o princípio de autonomia do plano sócio-
cultural, o paradigma sociológico incorre contudo num erro
paralelo ao da perspectiva que ele tanto critica. Isto porque sua
força — tentar extrair o sentido do transe do meio social e não de
realidades exteriores — é também sua fraqueza: a idéia de fato
social é tomada num sentido excessivamente durkheimiano, de tal
modo que a “sociedade” acaba por surgir como uma entidade
reificada, existindo para além dos planos que a compõem. Ora, para
falar rigorosamente, a sociedade não existe; ela é apenas um nome
que designa a coexistência e a interligação de uma multiplicidade
de níveis, cada um dotado de uma densidade própria, de uma certa
dose de especificidade. Aqui também é preciso acrescentar à noção
de fato social o adjetivo de total:

“Durkheim já afirmara que os


fenômenos jurídicos, econômicos, artísticos
ou religiosos eram ‘projeções da
sociedade’: o todo explicava as partes.
Mauss recolheu esta idéia, mas advertiu que
cada fenômeno possui características
próprias e que o ‘fato social total’ de
Durkheim era composto por uma série de

12 Como bem demonstrou Louis Dumont, o campo do político (e do


micro-político especialmente) é especialmente propício para
distorções etnocêntricas: “Choisissez la dimension politique (...)
et quelles que soient les difficultés que vous rencontrerez par
ailleurs, vous aurez devant vou n’importe où des individus opérant
des choix, ‘maximisant’ leurs avantages, ‘manipulant’ les
situations de la manière permise par les institutions
traditionnelles” (Dumont, 1968: XII).
116

planos superpostos: cada fenômeno, sem


perder sua especificidade, alude aos outros
fenômenos. Por tal razão, o que conta não é
a explicação global mas a relação entre os
fenômenos: a sociedade é uma totalidade
porque é um sistema de relações. A
totalidade social não é uma substância nem
um conceito mas ‘consiste finalmente’ nos
circuitos de relações entre todos os
planos” (Paz, 1977: 10-11; cf. também Lévi-
Strauss, 1950)13.

Isto quer dizer, entre outras coisas, que apontar para as


possíveis funções do transe, quaisquer que sejam elas, adaptativas
ou de protesto, não resolve evidentemente a questão da existência
mesma da possessão, e nem aquela do culto em que ela está
inserida. Pois pode se perfeitamente verdadeiro, como quer Peter
Fry, que a motivação individual para a conversão à Umbanda esteja

13 Parece que o primeiro a perceber, brilhantemente, os paradoxos


de uma abordagem sociologizante foi Maurice Merleau-Ponty.
Criticando Durkheim em 1948, ele escrevia de modo lapidar: “Quando
se vai do religioso para o social não se passa do obscuro para o
claro, não se explica nem um nem outro: reencontra-se, sob um
outro nome, a mesma obscuridade ou o mesmo problema (...). O apelo
ao vínculo social não pode passar por uma explicação da religião
ou do social, a não ser quando tomados como uma substância
imutável, uma causa boa para tudo, uma força vaga definida apenas
por sua potência de coerção, isto é, a não ser que nos tornemos
cegos para a operação original de cada sociedade em vias de
estabelecer o sistema de significações coletivas por cujo
intermédio seus membros se comunicam. Nada se ganha fundando o
religioso ou o sagrado sobre o social, visto que os mesmos
paradoxos aí são reencontrados, a mesma ambivalência, a mesma
mescla de união e repulsa, desejo e temor que já existiam no
sagrado e constituíam seu problema” (Merleau-Ponty, 1948: 184).
117

relacionada com a experiência social específica deste indivíduo; e


também, como pretende Diana Brown, que esta experiência diga
respeito a uma certa estrutura de patronagem e clientelismo
vigente em vários setores da sociedade brasileira, estrutura que o
culto tenderia a reproduzir; ou mesmo, como sugeriram
anteriormente Renê Ribeiro e Roger Bastide, que no transe e no
culto o indivíduo encontre uma experiência psicologicamente mais
satisfatória do que aquelas que lhe são oferecidas em sua vida
cotidiana14. E, apesar disto tudo, nada aí explica o próprio culto
e o êxtase que nele tem lugar. A não ser que se suponha, coisa que
ninguém até hoje parece ter chegado a afirmar explicitamente, que
esta homologia estrutural ou esta correspondência funcional do
sistema religioso em relação à sociedade abrangente reflitam uma
anterioridade “genética” da segunda sobre o primeiro.
Pois tudo poderia se passar de modo bastante diferente, de
forma inversa mesmo, havendo uma influência do culto sobre a
sociedade. Ou, em termos mais precisos, é preciso perguntar por
que o processo de moldagem e determinação correria numa só
direção: por que não se poderia supor que os cultos afro-
brasileiros, enquanto componentes da sociedade abrangente — e não
simples reflexos — não funcionariam também construindo-a e
conferindo-lhe uma determinada forma? Isto pode significar que a
conexão da possessão com as estruturas sociais mais inclusivas não

14 O tema da inversão de relações ou posições sócio-políticas com


a conseqüente sensação de compensação por ela fornecida é bastante
problemática. Mesmo na ocorrência deste tipo de inversão cumpre
colocar uma interrogação sobre seu efeito necessariamente
compensatório. A primeira operação é de ordem lógica, ou mesmo
sociológica, mas a segunda requer uma série de hipóteses “psico-
sociológicas” que seria mais conveniente colocar entre parênteses
na falta de um estudo mais aprofundado.
118

deva ser estabelecida de modo tão direto e imediato, sendo talvez


preciso levar em consideração as possíveis mediações que a
estrutura do transe e a estrutura do culto em que ele se processa
representam. Pois, se não há dúvida de que as relações internas ao
culto são influenciadas pelas relações sociais mais amplas, é
igualmente verdadeiro que as primeiras funcionam como “lentes” que
fornecem aos membros do grupo uma via de acesso específica para a
realidade social “exterior”, influindo portanto de modo decisivo
na percepção social e na experiência vivida por essas pessoas.
Em outras palavras, e no que se refere ao objeto específico
deste trabalho, embora não possam restar dúvidas de que tanto a
possessão quanto os cultos afro-brasileiros “falam” da sociedade
brasileira, é essencial ressaltar que eles o fazem através de uma
linguagem que é estruturada de modo específico. Em suma, a conexão
da possessão com a “estrutura social” só pode ser um ponto de
chegada, jamais de partida. E isto porque as coisas poderiam ser
ainda mais complexas. Roger Bastide, como já foi dito, acreditou
localizar entre o universo simbólico do Candomblé e aquele vivido
pelo fiel cotidianamente um “princípio de corte”, princípio que
manteria cuidadosamente separados esses dois mundos. Assim, apenas
à guisa de sugestão, talvez fosse possível supor que cada religião
particular poderia manter formas de articulação distintas com os
demais fatos sociais, hipótese que colocaria de maneira nova as
questões de totalidade social e de solidariedade entre planos
sociológicos, que poderiam então talvez ser respondidas sem que
tivéssemos que apelar para a problemática noção de um “eu”
unitário que atravessaria incólume todos os planos e níveis de sua
experiência, noção necessariamente presente quando se pensa as
relações entre “religião” e “sociedade” em termos de inversão,
reforço, etc. Mas a investigação mais detalhada dessa idéia nos
levaria longe demais dos objetivos dessa dissertação.
119

A hipótese básica em jogo neste trabalho é então a de que


para entender a articulação do transe e dos cultos com a sociedade
abrangente é estritamente necessário analisar em primeiro lugar as
estruturas de um e dos outros. Ou seja, é preciso primeiramente
considerar a possessão em si mesma para que depois, através de
aproximações sucessivas, se possa pretender atingir (na forma como
no conteúdo) as conexões com a estrutura social inclusiva. Este
trabalho deverá deter-se na primeira dessas tarefas, dado a
complexidade da segunda que exigiria um estudo particular.
Contentar-me-ei em, ao final do último capítulo, esboçar algumas
considerações que poderiam talvez conduzir esta aproximação de meu
objeto com a sociedade que o envolve.

Resumindo então, poder-se-ia dizer que o que a análise das


teorias a respeito do transe e da possessão — sejam as mais
gerais, sejam aquelas relativas aos cultos afro-brasileiros —
revela é a ausência de uma teoria verdadeiramente antropológica
deste objeto. Em todos os casos enfocados, deparamo-nos com um
reducionismo global que cada autor assume de uma forma particular,
e que defende, explícita ou implicitamente, os postulados daquilo
que Marshall Sahlins denominou de “razão prática” em antropologia:
supõe que o complexo universo simbólico do êxtase pode ser
deduzido de ou reduzido a realidades pretensamente mais materiais,
seja a um nível bio-psicológico — e encontramo-nos aqui em pleno
“materialismo vulgar” — seja a um plano “sócio-político”, onde
temos uma manifestação da “teoria da utilidade”, que insiste em
encarar a cultura e os diversos processos culturais como derivando
de um jogo manipulatório entre indivíduos e grupos que
concorreriam para extrair daí um benefício máximo (cf. Sahlins,
1976: VII-VIII; passim).
Ora, como já foi dito, o que se pretende aqui é esboçar esta
teoria antropológica da possessão. Para isso tomei, mais como
120

“pretexto” do que como objeto, a forma de manifestação do transe


nos cultos afro-brasileiros, em particular no Candomblé Angola,
embora eu suponha que as eventuais conclusões a que se possa
chegar a partir daí, possuam uma validade bem mais ampla, desde
que aplicadas no nível certo que não é o das manifestações
superficiais de fenômenos análogos, mas sim sua estrutura mais
profunda. Neste sentido, o próximo capítulo fornecerá um “esquema
etnográfico” (e não uma verdadeira etnografia) dos fatos aqui em
jogo, esquema que tem quase que exclusivamente a função de tornar
possível o acompanhamento e o julgamento das conclusões de caráter
teórico propostas no Capítulo IV.
121

CAPÍTULO III

A POSSESSÃO NO CANDOMBLÉ

1. O que é a Possessão?

Ao assistir a uma possessão por Orixá pela primeira vez, o


observador que não domina ao menos parcialmente o código do grupo
oscila entre duas opiniões: pode considerá-la uma espécie de
representação teatral, uma forma pura desprovida de substância, ou
pode, ao contrário, imaginar que se trata de uma perturbação
incontrolável, um dado substantivo não formalizável. Com o tempo,
e com o domínio desse código específico que faz os corpos falarem,
aprende-se que a possessão, ao menos idealmente, não é nem uma
coisa nem outra. Trata-se de um fenômeno estruturado, no qual
forma e conteúdo dependem um do outro, sendo por conseguinte
inseparáveis. Isso se torna evidente ao compararmos o
comportamento dos filhos-de-santo possuídos por diferentes Orixás.
O padrão de cada transe é conferido, como o assinalou Roger
Bastide (Bastide, 1978: 201), miticamente. Enquanto Xangô e Iansã
dançam freneticamente imitando com os braços os raios e ventos de
que são senhores, míticos, Oxalufã, velho e alquebrado, curva-se
até quase tocar o chão e não caminha, se não muito lentamente;
Oxum banha-se em águas imaginárias, mas Ogum move os braços,
esticados como lanças guerreiras. A própria expressão facial muda
de Orixá para Orixá: o rosto de um Oxóssi é sereno e grave,
enquanto que o de um Omolu se contrai de dor e agonia.
Por outro lado, as diferenças entre os Orixás não são
suficientes para explicar todas as diferenças de comportamento e
expressão observadas durante os transes. Dois Xangôs podem
comportar-se de forma diferenciada, muito embora semelhantes, se
comparadas com as de outros Orixás. Isso é explicado pela própria
122

essência dessas divindades que são, diz-se freqüentemente, “como


uma corrente elétrica que pode acender várias lâmpadas ao mesmo
tempo”. Ou seja, sua presença na terra é marcada sempre por uma
certa dose de materialidade própria à individualidade de seus
cavalos. Por isso, fala-se no Xangô de alguém, ou no “Oxóssi
dele”, etc. O nome puro do Orixá é mencionado apenas quando se
trata de sua essência não incorporada.
Em suma, a possessão só pode ser fruto de um aprendizado, de
uma (re)educação, que começa quando se vai pela primeira vez a um
terreiro assistir a alguma cerimônia (ou participar dela pela
primeira vez) e que finda com a feitura do santo, com a iniciação
ao culto dos Orixás. Da mesma maneira, o campo dos fenômenos de
possessão no Candomblé não é indiferenciado. Pode-se mesmo
estabelecer uma tipologia dos casos de possessão a que está
sujeito um fiel, tipologia essa sustentada pelo próprio grupo a
partir de sua “noção de pessoa”. Esta sustenta que o espírito do
ser humano é composto sempre por:
a) Sete Orixás, dos quais um é o dono da cabeça (Olori, dono do
Ori), ou seja, é o Orixá principal; e seis outros diferenciados
quanto a sua importância e chamados respectivamente de segundo,
terceiro, quarto santos, etc. Entre esses sete Orixás incluem-
se necessariamente Oxalá, Exu e Omolu, sendo que sua posição
relativa no sistema do Ori varia de pessoa para pessoa. Os
outros quatro Orixás são indeterminados, e a esse conjunto de
sete santos dá-se o nome de “carrego de santo”. Cada Orixá
responde pelo controle de uma parte da cabeça de cada ser
humano (a cabeça sendo considerada o centro do corpo): o
primeiro santo, ou Olori ou santo de frente, controla a parte
central da cabeça, o Ori propriamente dito, tendo para isso o
auxílio do segundo santo, ou Juntó, e do terceiro santo; o
quarto e o quinto santos são responsáveis pela visão, enquanto
o sexto e o sétimo respondem pela audição da pessoa. Deve ser
123

ressaltado contudo que não se trata aqui dos sentidos


ordinários da vida cotidiana, mas sentidos “místicos”, ou seja,
trata-se de uma visão e de uma audição que devem sintonizar
fenômenos mediúnicos, e não aqueles captados cotidianamente.
b) Um Erê. O Erê é, segundo os informantes, uma qualidade infantil
do Orixá e um intérprete do santo. A segunda definição é
atribuída tendo em vista o fato de que o “Orixá não fala”,
usando, quando deseja transmitir alguma mensagem, o Erê, que é
uma entidade “faladora e brincalhona”. Por outro lado, o termo
“qualidade do Orixá” remete a uma das características marcantes
dessas forças espirituais para o sistema do Candomblé. Com
efeito, embora os Orixás sejam concebidos como forças da
natureza, presentes portanto em toda parte, tais forças não são
vistas como homogêneas, formando antes um espectro de
“vibrações”: existem tantas vibrações principais quantos
Orixás, mas dentro da mesma faixa podem ser distinguidas
subdivisões e assim indefinidamente até atingirmos o Orixá
pessoal de cada filho-de-santo. Este ainda apresenta uma
qualidade eternamente infantil já que só há Erê ligado a Orixás
individuais: a cada fiel, seu Erê. Deve-se acrescentar que o
Erê não é aqui associado via de regra, como ocorreria na
Umbanda, com espíritos ou almas de crianças mortas.
c) O Egum. Por esse termo o grupo define geralmente as almas dos
mortos que permanecem perambulando pela terra. São espíritos
desencarnados essencialmente diferentes e inferiores aos
Orixás. Afirma-se por outro lado, embora a possibilidade da
reencarnação seja freqüentemente negada, que todo ser humano
traz, “na cabeça”, um Egum; trata-se contudo de uma outra
espécie de Egum, um Egum-de-Santo. Este é definido, algo
confusamente, como uma alma que nunca esteve encarnada e que
não pode ser assimilado à alma, propriamente dita, da pessoa
(conhecida por Emi, força vital que anima o corpo humano).
124

Similarmente, fala-se de Erê-de-Santo, que corresponde ao que


definimos no item anterior, e em Erê simplesmente, que vem a
ser a alma desencarnada de uma criança morta. Nesse trabalho, a
não ser que se especifique o contrário, ao falar-se de Erê
referimo-nos sempre ao primeiro caso.
Exu
4º Santo lugar, ao
d) O Exu. Em primeiro (ligado
contrário ao futuro)
do Erê 5º Santo
e do Egum, Exu é
(ligado à ”visão mística“) (ligado à ”visão mística“)
um Orixá como outro qualquer, não se identificando com o Diabo
cristão, mas sendo visto como um mensageiro dos deuses, um
intermediário entre homens e Orixás. Nessa função, Exu é visto
como um e como muitos: além de ser o Orixá mensageiro em geral,
multiplica-se pois cada Orixá possui um Exu que lhe serve de
OLORI
“escravo”,7º Santo
de mensageiro particular. 6º Santo
Assim, todos têm em sua
(ligado à ”audição mística“) (1º Santo) (ligado à ”audição mística“)
cabeça um Exu que é a qualidade particular escrava de seu
Olori.
A estrutura da personalidade humana pode ser representada no
Candomblé pelo seguinte esquema, que reproduz a “cabeça” vista de
cima15:
3º Santo Juntó (2º Santo)
Egum
(ligado ao passado)

Nesse esquema, o tripé Olori-Juntó-3º Santo responde pelo


equilíbrio e pelas funções mediúnicas mais profundas (como a
“intuição, por exemplo) do filho-de-santo; o quarto e o quinto
santos são responsáveis pela visão mediúnica; o sexto e o sétimo
dominam a audição mediúnica. O Egum representa a eterna ligação da
pessoa com o passado, enquanto o Exu projeta-se no futuro. Embora
o Erê não conste desse diagrama fornecido pelos informantes, sua

15 É interessante notar como esse esquema da “cabeça” humana se


assemelha ao desenho efetuado sobre a cabeça do Iaô quando da
“saída” de seu Orixá. Não possuo, contudo, dados que permitam
confirmar a possível reprodução gráfica do modelo místico.
125

função, como já foi dito, é a de intérprete do santo, do Olori,


supondo-se então que esteja localizado também no Ori (porção
central da cabeça), ao lado do primeiro santo.
A partir dessa “noção de pessoa”, os tipos de possessão são
diferenciados de acordo com os agentes da mesma.

1.1. Possessão por Orixá:


É o caso ideal de possessão dentro do Candomblé. O cavalo,
como é chamado o filho-de-santo possuído, é tomado pelo Olori,
pelo dono de sua cabeça (embora, como veremos adiante, os demais
Orixás do carrego, especialmente o Juntó e o terceiro santo,
possam por vez incorporar-se) e tem sua personalidade inteiramente
substituída pela de seu Orixá. É uma possessão tranqüila cujo
padrão se repete, variando apenas de forma de Orixá para Orixá: o
cavalo sacode o corpo e imediatamente esta possuído; seu Orixá
assume sua postura específica (curvada para Oxalá e Omolu, garbosa
para Oxóssi, sensual para Oxum, etc.) e lança o Ilá, o grito
característico daquele Orixá, grito que varia de filho-de-santo
para filho-de-santo já que consiste numa parte do nome de um Orixá
específico, formado por sua vez através de um arranjo entre o nome
genérico do Orixá, uma qualidade particular e a Digina do filho-
de-santo, ou seja, o novo nome por ele recebido quando de sua
iniciação.
Se o filho-de-santo possuído já tiver algum “tempo de santo”,
permite-se que seu Orixá incorporado tome rum, ou seja, dance (rum
é o nome do maior dos três atabaques, aquele que comanda o ritmo
tocado). Se, ao contrário, o cavalo tiver pouco tempo de culto,
seu santo será “desvirado”, processo que pode se dar de duas
maneiras: levando o Orixá incorporado para o Peji (quarto que
abriga o jogo de búzios) ou para o Roncó (quarto onde são
guardados os assentamentos dos diversos Orixás da casa, e onde o
filho-de-santo fica recolhido durante o período de iniciação) de
126

onde o filho-de-santo retorna consciente; ou então cobrindo sua


cabeça com um pano da costa (espécie de xale que as filhas-de-
santo mantém enrolado no corpo). No primeiro caso, ao chegar na
entrada do compartimento para onde é levado (Peji ou Roncó), o
Orixá sacode violentamente o corpo de seu cavalo e lança o Ilá
antes de entrar; no segundo, efetuado sempre por um filho-de-santo
não incorporado, há apenas um balanceio mais violento do corpo,
uma espécie de tremedeira, e imediatamente o transe se interrompe.
Apenas aos Orixás das pessoas hierarquicamente mais importantes,
ou daqueles considerados “pés-de-dança” (exímios dançarinos) é
permitido um tempo maior na terra, tempo todo consumido em danças,
diferentes para cada Orixá.
A possessão pelo Orixá não ocorre a qualquer instante, mas
tende a ser bastante disciplinada. O momento mais adequado, quase
que obrigatório, para que ela se dê, é durante os cânticos
específicos de cada Orixá. Os Orixás são invocados numa ordem, não
muito fixa mas que se inicia sempre com Exu e Ogum e termina com
Oxalá, denominada Xirê. Desse modo, espera-se que durante os
cânticos dedicados a Xangô, por exemplo, os filhos desse Orixá
entrem em transe, pois as toadas ou zuelas, como são usualmente
chamados esses cantos, são um chamamento do Orixá. Além disso, as
toadas de Oxalá, que encerram o Xirê, têm a propriedade de trazer
à terra todos os Orixás. Há mesmo uma cerimônia, uma dança, em que
todos os filhos-de-santo, a maioria incorporada com seus Oloris,
dançam o “alá” de Oxalá, em torno de um Oxalá virado, coberto com
um pano branco e contornando o salão onde se dão os rituais; essa
cerimônia representa a submissão e dependência de todos os Orixás
a Oxalá, senhor da vida e “pai de todos”. Também as toadas
dirigidas à Navalha de um filho-de-santo podem fazer que seu santo
vire. Por Navalha, um fiel denomina o Olori de seu pai-de-santo.
Assim, um filho de Oxum cujo pai-de-santo é de Ossanha pode
receber seu Orixá ao ouvir cantos para esse último. Uma outra
127

possibilidade ocorre somente nos casos de Orixás que guardam


estreito relacionamento tanto mítico quanto classificatório.
Logunedé, por exemplo, é tido como filho de Oxóssi e Oxum, podendo
portanto virar durante os cânticos desses dois Orixás. Esse caso
abre o sistema para quase todas as eventualidades: praticamente
todos os Orixás do Xirê mantêm entre si algum tipo de relação (ao
nível do mito, dos atributos ou da classificação geral); desse
modo pode-se sustentar, a nível do modelo consciente, que o Orixá
pode incorporar a qualquer momento do Toque — “o Orixá é como um
vento” — embora isso de fato não ocorra.
O pai-de-santo pode também fazer incorporar o Orixá de seus
filhos, e isso de três maneiras diferentes: primeiro, sacudindo o
Adjá perto da cabeça de seu filho. O Adjá é um instrumento
metálico, dotado de guizos, que tem a propriedade, por ter sido
preparado ritualmente para isso, de trazer os Orixás à terra. Em
segundo lugar, o pai-de-santo pode lançar mão de um recurso que
mantém seu filho sob sua dependência durante longo tempo (sete
anos a partir da iniciação, como veremos). Quando da feitura da
cabeça, cada Orixá pessoal se manifesta com um nome, irrepetível,
denominado Oruncó; esse nome não é conhecido nem do próprio filho-
de-santo, que o grita incorporado. Apenas o pai-de-santo o
conhece, e sua simples menção ao ouvido do filho faz com que este
seja possuído por seu Orixá. O terceiro método de incorporação
forçada pelo pai-de-santo é através do uso do “Atim de Iaô”, que
vem a ser um preparado em forma de pó, “de grande fundamento”, que
pode fazer até não-iniciados caírem no santo.
Finalmente, o Orixá pode incorporar num momento de
“necessidade” ou no caso de uma grande tensão. Ao final de uma das
sessões que acompanhei, uma filha-de-santo de Xangô foi acusada de
ter roubado os óculos de alguém. Indignada, protestou
violentamente, prometendo jamais voltar a pôr os pés naquele
terreiro, grave transgressão para um filho-de-santo, que está
128

sempre ligado à casa em que foi iniciado. Seu pai-de-santo


procurou então acalmá-la, dizendo-lhe que estava tudo bem e que
“seu pai Xangô” não permitiria nenhuma injustiça (Xangô é o Orixá
responsável pela justiça). Imediatamente seu Orixá virou; levada
para o Roncó e tendo recobrado a consciência, permaneceu no
terreiro, e no Toque seguinte encontrava-se entre os membros da
Roda.
1.2. Possessão por Erê:
O Erê, como foi dito acima, é identificado como sendo o
próprio Orixá vibrando numa freqüência infantil. Desse modo, a
possessão por Erê funciona como um complemento da possessão pelo
Orixá. Sendo o Erê o intérprete do santo, ele se encarna em duas
situações principais: quando o Orixá tem que falar — ou seja,
quando deseja transmitir alguma mensagem aos homens e, por não
falar, não pode fazê-lo — e quando o filho-de-santo tem que ouvir,
sendo que essa segunda situação pode ocorrer de duas maneiras: em
primeiro lugar, durante a feitura do santo, o Iaô aprende as
rezas, gestos, danças, etc. e passa por determinadas fases do
ritual incorporado com o Erê, que tem então a incumbência de fixar
na cabeça do filho-de-santo os ensinamentos por ele recebidos;
além disso, o Orixá pode, desejando comunicar algo a seu cavalo,
fazer-se ouvir, através do Erê, pelos outros fiéis que em seguida
comunicarão a mensagem ao interessado. Em ambos os casos, o Erê
funciona, auxiliado pelos fiéis, como intermediário entre o Orixá
e seu cavalo. No segundo caso de possessão por Erê (mensagem do
Orixá para seu cavalo), o esquema é claro:

ORIXÁ —> ERÊ —> HOMENS —> CAVALO

A situação de feitura (aprendizado através do Erê)


apresentaria por sua vez a seguinte configuração:
129

ORIXÁ —> HOMENS —> ERÊ —> CAVALO

Pois aquilo que o pai-de-santo ensina a seu filho através do


Erê, foi comunicado à humanidade em épocas remotas pelos próprios
Orixás. Nos dois casos esquematizados, temos portanto o Orixá e
seu cavalo ocupando os extremos da linha de comunicação, havendo
de um caso para o outro uma inversão dos termos médios, já que
enquanto no primeiro o Erê escuta o que os homens, que repetem os
Orixás, dizem, no segundo são os homens que devem ouvir as
mensagens que o Erê, inspirado pelo Orixá, traz.
O Erê pode também virar num caso de necessidade, como se
diz:
“Certa vez, um filho-de-santo levou um tapa de uma mulher,
ao sair para pedir doces no dia de Cosme e Damião. No mesmo
instante seu Erê virou e disse: “Essa mulher não vai bater mais
nem na cara dos filhos dela, porque eu vou matar ela”. Alguns
meses depois, num certo dia quando ninguém lembrava mais do
acontecido, o Erê tornou a virar e avisou que aquilo que ele tinha
prometido estava próximo de acontecer. Umas horas mais tarde
vieram contar que a mulher tinha sido atropelada e tinha morrido”.

Ou seja, o Erê também pode vir sem ser chamado (já que
geralmente, nos casos descritos acima, há toadas especiais para
trazer os Erês) para prestar algum serviço para seu Menino, termo
usado para designar os filhos-de-santo quando relacionados aos
Erês. Pode-se supor contudo que também aqui o Erê desempenha seu
papel de intermediário, pois é intercedendo junto ao Orixá que ele
consegue obter o que deseja e prometeu.
O outro momento tradicional para a presença dos Erês na
terra é quando de sua festa, comemorada sempre em data próxima a
27 de setembro, dia dedicado aos santos católicos São Cosme e São
130

Damião com quem são identificados os Erês. Os informantes contudo


negam essa “sincretização”, dizendo que isso só ocorre na Umbanda,
e que o Erê de Candomblé é diferente (um Erê-de-Santo, qualidade
infantil do Orixá, como já mencionamos anteriormente). Durante
essa festa, os Erês são chamados através de um ritmo especial de
toque dos atabaques e de toadas específicas, sendo que o filho-de-
santo só recebe o Erê depois de estar incorporado com seu Orixá.
Na terra, os Erês, ao contrário dos Orixás, falam muito, brincam e
comem: é o momento da chamada Quitanda de Erê (que ocorre também
ao final dos ritos de iniciação), quando frutas e doces são
distribuídos pelos Erês aos assistentes em troca de contribuições
simbólicas em dinheiro. Na festa, como que para marcar sua
diferença em relação às crianças comuns e às “crianças” da Umbanda
(que são espíritos de crianças comuns mortas), os Erês do
Candomblé não comem, em hipótese nenhuma, doces de qualquer
espécie, alimentando-se de frutas e, especialmente, do caruru, sua
comida preferencial.
Os Erês, como os Orixás, possuem nomes. Ao contrário destes
últimos contudo, esses nomes são sempre individualizados, sendo
conferidos ao Erê de cada filho-de-santo por ocasião de sua
iniciação religiosa. Não há pois nomes genéricos para os Erês:
como eles participam da essência do Olori do fiel, seu nome guarda
sempre relação com alguma característica desse Orixá. Desse modo,
o Erê de um filho de Omolu pode chamar-se “Pipoquinha” ou
“Terrinha”, pois ambos os elementos estão ligados a esse Orixá (os
sufixos inho e inha são sempre acrescentados para denotar a
infantilidade dessas entidades). Outros nomes observados foram:
— “Folhinha d’Água”: Erê de uma filha de Logunedé, Orixá
associado simultaneamente às águas (ligação com Oxum) e à matas
(ligação com Oxóssi).
— “Flechinha”: Erê de um filho de Oxóssi, Orixá caçador.
131

— “Cipozinho”: Erê de um filho de Ossanha, Orixá que predomina


sobre a flora e as ervas em geral.
— “Ourinho”: Erê de uma filha de Oxum, Orixá cuja cor básica é o
amarelo, tendo o ouro como metal preferido.
— “Gamelinha”: Erê de um filho de Xangô (provavelmente porque a
folha de gameleira serve como folha desse Orixá).
— “Jigoguinha”: Erê de uma filha de Nanã, cuja planta fundamental
é a jigoga.
— “Pombinho Branco”: Erê de uma filha de Oxalá (o pombo branco é
um dos animais preferidos de Oxalá).

1.3. Possessão por Egum:


O termo Egum recobre dois significados distintos embora
aparentados. Primeiramente, um Egum propriamente dito é uma alma
já desencarnada; por outro lado, o Egum-de-Santo representa uma
espécie de alma ainda não encarnada. A possessão por cada uma
dessas entidades é conceitualmente diferenciada pelos informantes,
embora sua manifestação empírica seja absolutamente idêntica. O
primeiro caso (possessão por espíritos de mortos) é visto pelos
fiéis do Candomblé como um fenômeno “de Umbanda”. Segundo sua
opinião manifesta, essa última religião se voltaria para o culto
desse tipo de seres, sejam eles pretos-velhos, pombagiras, exus,
caboclos, etc., enquanto que o Candomblé se desenvolveria
cultuando os Orixás que são, ressalta-se sempre, forças da
natureza. A Umbanda e a possessão por Eguns são vistas como algo
de inferior, como um sistema inaceitável para quem tenha
atravessado os complexos e elaborados mecanismos de iniciação do
Candomblé:
“O candomblecista, ele já conhece os mistérios dentro da
Umbanda. Porque, primeiro: quase todas as pessoas de Candomblé
passaram primeiramente pela Umbanda. É raro o caso da pessoa feita
logo dentro do Candomblé. Já dentro do Candomblé, se trabalha em
132

linha de Egum e a linha de Egum é cultuada através da Umbanda


também. Então, o sujeito dentro do Candomblé apanha mais
fundamento do que o próprio umbandista, que às vezes trabalha e
não sabe o que está fazendo. Como há casos de umbandistas que
trabalham com Egum e não conhecem nenhum fundamento sobre Egum”.

No entanto, no nível da realidade concreta as coisas não se


passam exatamente dessa maneira. Muitos filhos-de-santo de
Candomblé abrem terreiros de Umbanda — principalmente porque a
Umbanda é menos elaborada e dispendiosa que o Candomblé, que
necessita de várias pessoas com um certo grau de conhecimento
religioso e de uma disponibilidade financeira maior, pois os
rituais e instrumentos de culto são por vezes extremamente
custosos. Muitas vezes, um pai-de-santo, tendo começado com um
terreiro de Umbanda, “pura” ou “traçada”, transforma-o com o
correr do tempo numa casa de Candomblé. Na Umbanda, esses filhos-
de-santo são obrigados a lidar com as entidades principais desse
sistema religioso, que são Eguns desencarnados.
Além disso, e trata-se de ponto significante para esses
trabalho, existem certos Eguns que continuam se manifestando em
médiuns preparados no Candomblé. Assim, um pai-de-santo recebe
freqüentemente um Caboclo que afirma “não ter nada a ver com
Candomblé”, caracterizando-se portanto como espírito desencarnado,
como entidade de Umbanda. Essas entidades são geralmente
provenientes da época em que seu “aparelho” (nome dado aos médiuns
em Umbanda) freqüentava centros umbandistas: tendo-se ligado de
forma especial a alguma entidade nessa época, o filho-de-santo do
Candomblé pode continuar a recebê-la.
Se a possessão por almas de mortos é, de certo modo,
marginal ao Candomblé, a possessão pelo Egum-de-Santo faz parte
integrante do sistema aqui descrito. Essa forma de Egum, da mesma
133

forma que o Erê, participa da essência do Orixá do filho-de-santo


em que ele incorpora. Há dois tipos de Egum-de-Santo: o Exu (que
não se confunde totalmente com o Orixá Exu) e o Caboclo (que não
se confunde com os caboclos da Umbanda). Tanto um quanto o outro
exercem funções análogas, sendo ambos “escravos do Orixá”; são
intermediários utilizados pelos Orixás para a execução de
determinadas tarefas. Assim, faz-se um pedido ao Orixá que envia
um de seus escravos para executar a tarefa desejada. Teríamos
então o esquema:

HOMENS —> ORIXÁ —> EGUM-DE-SANTO —> TAREFA

Note-se que cabe ao Orixá decidir se a tarefa será ou não


executada por seus escravos; caso a considere “má” ou “injusta”
pode não permitir seu cumprimento. Nesse caso, resta ao fiel uma
alternativa: utilizar-se de Eguns desencarnados que, devidamente,
atraídos, servidos e “preparados”, desempenham a função de
escravos do próprio oficiante, permanecendo contudo exteriores a
seu Ori. O esquema precedente se transformaria, tomando a forma:

HOMENS —> EGUM —> TAREFA

onde a possibilidade de fracasso fica por conta exclusiva de


ineficácia do oficiante ou da eficácia de outro filho-de-santo que
execute um trabalho para evitar o cumprimento da tarefa. Vê-se
também, através dos esquemas, que os Eguns efetuam uma
intermediação distinta daquela feita pelos Erês: no segundo caso,
liga-se homens e Orixás através do Erê, enquanto que no primeiro a
intermediação, com ou sem a participação dos Orixás, é entre os
homens e o mundo que se deseja transformar.
A possessão pelo Egum-de-Santo não é muito comum, e tende a
acontecer fora das cerimônias públicas, exceção feita às ocasiões
134

organizadas especialmente para esse fim. Essas ocasiões podem ser


festas oferecidas ao Egum, e podem também ser momentos dedicados a
ele dentro de rituais mais abrangentes, após o culto completo de
todos os Orixás. Assim, ao final dos ritos de saída da iniciação,
tendo-se terminado de cantar para todos os Orixás e tendo-se
servido a refeição, organiza-se o Samba de Caboclo. Este,
constitui um momento de descontração após o tenso ritual, momento
em que se misturam na terra “caboclos de Umbanda” (Eguns
desencarnados portanto) e “caboclos de Candomblé” (Eguns-de-
Santo), fazendo ressaltar o caráter ambíguo da distinção,
estritamente analítica e teórica, feita entre esses dois tipos de
entidades, e denotando também a ambigüidade intrínseca do Egum, ao
mesmo tempo alma e parte da essência do Orixá, ambigüidade que se
adequa bem a seu papel de intermediários entre o mundo espiritual
e o mundo material.

1.4. A Bolação:
Se a possessão por Eguns desencarnados, própria à Umbanda,
não depende de uma preparação anterior do médium, não se pode
dizer o mesmo daquela efetuada pelos Orixás, que exige um período,
por vezes longo, de aprendizado e treinamento. Sendo assim, a
primeira manifestação de um Orixá no corpo de seu cavalo não
apresenta a coerência e o encadeamento lógicos das possessões
ocorridas após a iniciação. Essa possessão original, que pode
acontecer diversas vezes antes da feitura, é conhecida como
Bolação. Bolar no santo significa que o corpo, desprovido de força
motora pois a “personalidade” (o Emi) do fiel, expulsa, ainda não
pode ser substituída pela de seu Orixá, desfalecerá, com o futuro
filho-de-santo perdendo totalmente os sentidos. Significa também
que o Orixá está pedindo a cabeça de seu filho, ou seja, está
demonstrando da forma mais explícita que deseja sua consagração. A
Bolação é pois o sinal característico de que é chegada a hora de
135

fazer a cabeça daquele fiel, transformando-o num filho-de-santo,


num Vodunsi. Esse aviso, contudo, pode se manifestar
progressivamente: o Orixá pode fazer seu filho bolar, e permitir
em seguida que, através de uma série de manipulações feitas pelo
pai-de-santo, ele recupere a consciência; as Bolações entretanto
continuarão acontecendo até que um dia o Orixá só permitirá a seu
filho recobrar-se depois de iniciado.
Este fenômeno, conhecido na literatura etnográfica como
“santo bruto”, ocorre durante as invocações feitas para o Olori do
futuro filho-de-santo, ou durante aquelas feitas para Oxalá (que
têm, como foi dito, a propriedade de fazer com que se manifeste
qualquer Orixá). Pode acontecer também que o fiel bole em qualquer
outro local, a qualquer momento, tendo então que ser levado para o
terreiro, onde sofrerá tratamento adequado, tratamento que vai de
simples passes que podem com que ele se levante, até a iniciação
completa, caso em que ele deixará o terreiro apenas depois de um
mês. Devido a todos esses fatores, a Bolação é uma ameaça latente
para os filhos-de-santo já iniciados pois, teoricamente, ela não
pode acontecer a eles em nenhuma hipótese, a não ser que tenham
sido feitos para o santo errado; nesse caso, o verdadeiro Olori
“pede a cabeça” do filho, o que significa que ele terá que
atravessar novamente todos os rituais de iniciação.

1.5. A Não-Possessão:
Finalmente, cumpre descrever aquilo que se apresenta como o
reverso dos casos apresentados acima, ou seja, aqueles aspectos do
Candomblé que estão em disjunção com os fenômenos de possessão. O
Candomblé, ao contrário do que se supõe freqüentemente, não está
marcado em todos os níveis pelo transe místico, havendo ocasiões e
ações que bloqueiam, e mesmo impedem proibitivamente, a possessão.
À primeira vista, existiriam “cargos” dentro do Candomblé
que não permitem que seus ocupantes entrem em transe: trata-se dos
136

Ogans e das Ekédis. O cargo de Ogan não é meramente honorífico,


correspondendo também ao desempenho de certas funções específicas.
Há três categorias principais: a) o Ogan Alabê, encarregado de
tocar os atabaques, e que deve conhecer os diversos tipos de
toques das diferentes nações; b) o Ogan Calofê, especializado em
puxar os pontos, ou seja, em cantar para os diversos Orixás,
devendo portanto conhecer um grande número de toadas; c) Ogan
Axogum, encarregado de praticar os sacrifícios animais para os
diferentes Orixás. Cada especialização dessas depende de um
treinamento específico, e se geralmente as duas primeiras se
mesclam na prática, a última é de exclusiva competência de quem
para ela foi preparada, pois o Axogum deve ter “Mão-de-Faca”, um
dom que é concretizado através da iniciação.
O cargo de Ogan, em suas três especializações, só pode ser
preenchido por fiéis do sexo masculino: é vedado às mulheres tanto
o tocar os atabaques quanto praticar sacrifícios e, em menor grau,
puxar os pontos. O “cargo” de Ekédi, ao contrário, é
especificamente feminino, sendo que sua função é, primordialmente,
tocar o Adjá durante as cerimônias, e, secundariamente, auxiliar
os Orixás incorporados, conduzindo e ajudando seus cavalos através
do salão. Além disso, a Ekédi é responsável pela limpeza periódica
dos assentamentos dos Orixás dos membros do terreiro. Essa função
lhe concede um poder paradoxal: embora não sendo uma verdadeira
filha-de-santo (pois não incorpora), pode, se estiver mal-
intencionada, prejudicar todos os membros do terreiro, pois o fato
de mexer com os assentamentos de seus Orixás lhe permite, através
da manipulação desses assentamentos (Ibás), infligir danos às
pessoas ligadas àqueles Ibás. Assim, a Ekédi é tratada com todo
respeito: pede-se-lhe a bênção, ajoelha-se à sua frente, tratando-
a com a mesma reverência dedicada ao próprio pai-de-santo.
Uma observação mais detalhada, contudo, mostra que esses
“cargos” (Ogan e Ekédi) são antes de tudo cristalizações de
137

funções que podem ser desempenhadas por não-especialistas. O Ogan


e a Ekédi passam também pela iniciação religiosa mas, devido ao
caráter específico dos fiéis que cumprem essas funções, que é o de
jamais virarem no santo (se um pai-de-santo iniciar um Ogan ou uma
Ekédi que venham eventualmente a entrar em transe, verá seu
prestígio contestado e será fatalmente acusado de trapaceiro, ou
“Marmoteiro”, como se diz), essa iniciação difere da dos filhos-
de-santo comuns. Diz-se de uma Ekédi ou de um Ogan que eles são
consagrados nessas funções, e não que são feitos nos santo, e
embora sejam consagrados para um terreiro particular, seu
pertencimento a esse terreiro não possui a rigidez dos laços que
ligam um filho-de-santo comum à sua casa. Isso, por dois motivos:
em primeiro lugar, nem o Ogan nem a Ekédi podem ser consagrados
pelo pai-de-santo do terreiro a que estão ligados. Explica-se essa
proibição invocando a situação contraditória que seu não
cumprimento acarretaria, pois, como vimos, os membros da casa-de-
santo a que pertence certo Ogan ou certa Ekédi (inclusive o pai-
de-santo) devem respeito e obediência a ele ou a ela; por outro
lado, os Ogans e Ekédis devem manter essas mesmas atitudes em
relação ao pai-de-santo que os tenha consagrado. Procura-se evitar
então uma situação paradoxal fazendo com que um pai ou mãe-de-
santo de outra casa, geralmente ligada por algum tipo de laço de
parentesco-de-santo ou de amizade ao terreiro a que pertencerão o
Ogan ou a Ekédi os consagre para a casa em que trabalharão. O
outro motivo que enfraquece a ligação entre o Ogan ou a Ekédi e
seu terreiro particular é que, ao contrário do que ocorre na
relação entre pai e filho-de-santo, nem mesmo aquele que os
consagrou mantém um domínio muito grande sobre eles. Isso decorre
do fato de que, por não virarem no santo, tanto o Ogan quanto a
Ekédi não têm muito a temer de seu pai ou mãe-de-santo. Pois, como
vimos acima, estes mantêm seus filhos deles dependentes na medida
em que os últimos sabem que qualquer deslize (freqüentar terreiros
138

de outros pais-de-santo inclui-se entre os mais graves) pode ser


punido, porque seu pai-de-santo pode fazer seus Orixás virarem,
trazendo-os então de volta a seu terreiro, e pode mesmo fazer Erês
incorporarem, castigando-os então fisicamente. O Ogan e a Ekédi,
devido aos componentes estruturais que definem e caracterizam
essas funções, escapam dessas ameaças, podendo por conseguinte
mudar constantemente de terreiro ou, até mesmo (coisa praticamente
inconcebível para um filho-de-santo comum), parar de freqüentá-
los. Isso fica bastante claro no caso dos Ogans Alabês que quase
sempre exigem remuneração para tocar até mesmo no terreiro para o
qual foram consagrados.
Nesse contexto, ocorre freqüentemente que numa dada sessão
não estejam presentes nem Ogans nem Ekédis. Embora isso seja um
inconveniente (especialmente no caso do Ogan Alabê), não impede
que a sessão se processe normalmente, pois todo filho-de-santo
pode desempenhar as funções reservadas aos Ogans e Ekédis, desde
que saiba fazê-lo e que não esteja incorporado. Isso parece
denotar uma propriedade do sistema, que é a de existirem certas
ações que, por sua natureza, excluem a possessão: tocar atabaque,
puxar pontos, tocar Adjá e sacrificar são atos que devem ser
praticados conscientemente. Note-se que todas essas ações
apresentam o caráter de serem ligações imediatas com o sagrado,
caráter partilhado também pela possessão. Assim, a disjunção
sincrônica entre esses dois grupos de fatos parece funcionar
evitando uma excessiva redundância na comunicação com as
divindades. Significativamente, um fiel que vire no santo
(denominado genericamente de Adoxo — sendo o Adoxo propriamente
dito um cone de material especial que recobre a porção da cabeça
cortada durante a iniciação, e representa a consagração daquele
filho-de-santo para um Orixá específico, pois o Adoxo varia,
quanto ao material e à forma, de Orixá para Orixá; metonimicamente
a palavra indica todo aquele filho-de-santo que é passível de
139

possessão) tem que abandonar o atabaque ou o Adjá durante as


toadas dedicadas a seu próprio Orixá, momento em que pode vir a
ser possuído. Da mesma forma, um Adoxo pode praticar sacrifícios
para todos os Orixás, exceção feita a seu Olori (já o Axogum pode
“cortar” até mesmo para seu santo). Conta-se a estória de um pai-
de-santo muito conceituado e temido que praticou um sacrifício
para Omolu, seu Olori; a partir desse instante passou a ser motivo
de chacota — “xoxação” — por parte de todos os membros de
Candomblé que o conheciam.
Existem outras situações que excluem ou dificultam a
possessão. Durante os trabalhos religiosos, ou Fuxicos como são às
vezes chamados, o oficiante deve estar consciente; o Jogo-de-
Búzios deve também ser praticado sem incorporação. Esses tipos de
procedimento são invocados como prova da superioridade do sistema
do Candomblé sobre a Umbanda, já que nessa última o fiel,
consciente, “não sabe nada”: é apenas incorporado com seus Guias
que ele é capaz de “trabalhar”, jogar búzios, etc. Além disso, há
dois casos em que a possessão, embora podendo ocorrer, torna-se
bastante rara: no caso do fiel ser velho no santo, ou seja, ter
sido iniciado já há muitos anos (caso que será considerado mais
detalhadamente no decorrer do trabalho), e no caso do Orixá da
pessoa ser tido como muito velho. Pois embora os Orixás sem
definidos como forças da natureza, impessoais portanto, afirma-se
que eles se apresentam aos homens tomando formas e características
semelhantes às suas: possuem então um sexo e uma idade. Além de
certas qualidades de santos que são tidas como velhas (pode haver
uma Oxum velha e outra nova, etc.), os Orixás considerados como
velhos são: Oxalufã, Omolu e Nanã. Esses Orixás se incorporam
muito raramente, podendo mesmo passar anos sem vir à terra. Quanto
ao sexo, os Orixás dividem-se em a) Orixás Orcós (masculinos):
Exu, Ogum, Oxóssi, Obaluayê, Tempo, Xangô; b) Iabás (Orixás
140

femininos): Iansã, Oxum, Obá, Euá, Iemanjá, Nanã; c) Orixás metá


ou metá-metá (andróginos): Ossanha, Logunedé, Oxumarê, Oxalá.

2. A Construção da Possessão

A tipologia acima esboçada não depende exclusivamente dos


traços sincrônicos isolados, pois é na diacronia que o sistema se
realiza, fazendo com que seus membros atravessem progressivamente
diferentes etapas de um processo que poderia ser chamado de
“carreira do filho-de-santo”. Com esse termo pretendemos englobar
a “seqüência de movimentos de uma posição à outra” (Becker, 1977:
72) efetuada por um fiel ideal dentro da estrutura de posições tal
qual definida nos terreiros de Candomblé. Essa carreira implica as
seguintes etapas consecutivas: os sinais, a possessão por Eguns
(recurso à Umbanda), o Bori (recurso ao Candomblé), a Feitura da
Cabeça e as Obrigações (assentamentos do Carrego)16.

2.1. Os Sinais:
Uma pessoa qualquer pode ingressar no espiritismo (termo
globalizante utilizado pelos informantes para denominar o
Candomblé, a Umbanda e o Kardecismo) através de duas vias

16 É importante frisar, novamente, que toda essa descrição é


efetuada do ponto de vista do fiel “típico” do Candomblé. Assim,
os juízos de valor relativos à Umbanda, por exemplo, são
evidentemente proferidos pelos membros de centros de Candomblé,
implicando em posições que os fiéis da Umbanda certamente
apresentariam de outra forma (possivelmente através de uma
inversão radical). Do mesmo modo, todas as referências contidas
neste capítulo ao sistema umbandista dizem respeito à visão
adotada no Candomblé acerca dele, não pretendendo de forma alguma
refleti-lo fielmente.
141

principais. Pode primeiramente ir a um terreiro de Candomblé ou a


um centro de Umbanda ou Kardecismo, buscando solução para uma
determinada perturbação em sua vida, seja ela doença, desemprego,
problemas no amor, ou mesmo uma perturbação “mística”: visões,
vozes... Por outro lado, pode ser levada a um desses lugares por
algum parente ou conhecido que já o freqüente, regular ou
irregularmente. Em ambos os casos, a pessoa pode ou não tornar-se
freqüentador e mesmo membro efetivo do grupo visitado. Essas duas
possibilidades contudo não se excluem, e o caso mais comum é o da
pessoa levada a um desses locais devido a algum tipo de
perturbação, mística ou não. Pode-se acrescentar que o recurso ao
espiritismo, sob qualquer de suas formas, faz já parte integrante
da cultura brasileira: seja através de amigos e parentes, seja
através da divulgação maciça (na imprensa, na vida cotidiana,
etc.) dessas religiões, toma-se conhecimento de sua existência e
de suas práticas, e é difícil acreditar que exista alguém no
Brasil absolutamente estranho a esse tipo de fenômenos religiosos.
Para os interesses desse trabalho, o caso mais significativo
é aquele em que se busca auxílio na Umbanda, “espontaneamente” ou
não. Isso porque pode ser constatado que grande parte das pessoas
que são membros de terreiros de Candomblé passou antes por casas
de Umbanda. Aí, seus problemas são interpretados em termos de
“possessão por Eguns”, e a iniciação e pertencimento à Umbanda
aparecem como sendo as soluções lógicas para os problemas
vivenciados pelo futuro crente.

2.2. A Possessão por Eguns:


No sistema umbandista, as perturbações sofridas pelos fiéis,
quaisquer que sejam elas, são vistas como influências negativas de
espíritos dos mortos. Essas influências maléficas podem ser fruto
de um “trabalho” efetuado por alguém, como podem também ser
espontâneas. Desse modo, transformar o cliente em membro de um
142

centro de Umbanda é ensiná-lo a operar com os Eguns: cada fiel


interage com uma série de entidades que o possuem em momentos
diversos; de cada Linha da Umbanda (geralmente em número de sete)
ele recebe um membro, formando assim uma “Coroa”, conjunto das
entidades com as quais um médium de Umbanda trabalha, ou seja,
soma dos espíritos que ele recebe.
Para os membros do Candomblé contudo, o sistema da Umbanda é
absolutamente ineficaz, ou melhor, ao invés de solucionar os
problemas do fiel, tende a agravá-los. Isso porque o Candomblé
considera que os Eguns são entidades com as quais é difícil
conviver e trabalhar pois, ao contrário dos Orixás, que estão
submetidos a diversas leis naturais por eles mesmo criadas, o Egum
só obedece a seus próprios desígnios, a não ser que lhe seja
ordenado o contrário, ordem dada por alguém que realmente conheça
os processos mágicos de fazê-lo, coisa de que os membros do
Candomblé consideram os umbandistas incapazes. Assim, quando os
umbandistas se defrontam com algum problema mais sério criado por
Egum, não têm outra solução senão recorrer a um pai-de-santo de
Candomblé.
Os problemas infligidos pelos Eguns são explicados ao se
sustentar, no Candomblé, que, possuindo cada indivíduo apenas um
Ori, o conjunto dos donos desse Ori só pode ser, ele também,
unitário. Na Umbanda, pelo contrário, a cabeça de um médium
pertence a entidades que a possuem alternativamente. Devido a esse
fato, chama-se fiel da Umbanda, pejorativamente, de Cabeça de
Oratório, ou seja, cabeça aberta a muitos espíritos. Essa
multiplicidade de Eguns no Ori, crê-se, acarreta necessariamente
uma série de perturbações da mesma espécie daquela que levou a
pessoa ao centro de Umbanda: perturbações físicas (doenças),
mentais (loucura) e místicas (possessões descontroladas, “surras”
do santo...). Apanhado em uma dessas situações não há nada a fazer
143

a não ser recorrer a um terreiro de Candomblé, passo seguinte na


carreira do filho-de-santo.

2.3. O Bori:
As repetidas possessões, com suas conseqüências nefastas,
levam ao “enfraquecimento” da cabeça do médium, enfraquecimento
que pode culminar na Bolação se não for convenientemente tratado.
No caso de um umbandista bolar, procurará, ou será levado a, um
pai-de-santo de Candomblé, que tratará de “oborizá-lo”. O Bori é
um ritual que consiste em “dar de comer à cabeça”, em servir o
Olori para que este mantenha o Ori forte e livre de perturbações.
Esta cerimônia tanto pode anteceder a Bolação, como forma de
evitá-la temporariamente, como pode seguir-se a ela com a
finalidade de fazer o fiel recobrar a consciência. Em ambos os
casos, trata-se do primeiro recurso ao sistema do Candomblé’ por
parte de um umbandista, sistema do qual ele provavelmente jamais
sairá, ou, no caso de sair, tornará a voltar. Pois o Bori é um
paliativo, uma manipulação provisória para fortalecer o fiel. Sem
dúvida, após algum tempo seu Olori voltará a pedir sua cabeça, até
que nenhum Bori resolva sua situação, sendo ele então obrigado a
fazer a cabeça. O Bori, excepcionalmente, pode ser aplicado a
filhos-de-santo já iniciados que cometeram algum erro em sua
relação com seu Orixá que pode se afastar como punição,
enfraquecendo então o Ori de seu filho. Diz-se então que se trata
de um Bori de Maleme (perdão), muito mais complexo e custoso que o
Bori usual.
Os membros do Candomblé sabem que é da Umbanda que eles
podem, primordialmente, recrutar seus membros. Isso torna o
contato entre umbandistas e fiéis do Candomblé extremamente
perigoso para os primeiros. Conta-se que se um membro do Candomblé
vai assistir a uma sessão de Umbanda todos os médiuns se apavoram,
pois ele pode entoar cantigas de Candomblé e fazer que todos
144

bolem. Por outro lado, os umbandistas evitam comparecer a Toques


de Candomblé. Durante um toque por exemplo, uma umbandista tremeu
e chorou a noite inteira temendo bolar e ter consequentemente que
ser iniciada no Candomblé. Percebendo isso, tanto o chefe do
terreiro quanto os Ogans insistiram em tocar para seu Orixá, Oxum,
tentando fazer com que ela bolasse. E embora isso não viesse a
acontecer, ficou bem marcado aos olhos dos fiéis, o predomínio do
Candomblé sobre os precários recursos da Umbanda.

2.4. A Feitura da Cabeça:


Vimos então que perturbações na vida de uma pessoa levam-na
a recorrer a centros de Umbanda que, ao invés de solucionar essas
crises, acarretam-lhes outras, que só podem ser resolvidas dentro
do sistema do Candomblé. Aí, o Bori funciona como terapia
provisória, até que uma Bolação ou uma perturbação física ou
mental definitivas levem à iniciação completa, à Feitura da
Cabeça. Diz-se então que o Orixá está pedindo a cabeça de seu
filho, e a este nada resta fazer senão entregá-la. O Orixá pode
comunicar sua decisão de duas maneiras: através de uma Bolação que
nenhuma manipulação consegue interromper, ou através do Jogo-de-
Búzios, que é um processo divinatório sempre consultado em caso de
sentir-se algum tipo de perturbação.
A iniciação no Candomblé é um ritual complexo, composto de
rituais e etapas parciais. Em primeiro lugar, há o “Recolhimento
do Barco”, a reclusão do grupo de iniciandos ao “Roncó”, aposento
a que só têm acesso aqueles que já foram iniciados, e no qual os
noviços atravessarão o período de iniciação (que dura de três a
quatro semanas). Os noviços são denominados “Iaôs” (literalmente,
“esposas” dos Orixás); o grupo de “Iaôs” recolhidos ao mesmo tempo
é chamado “Barco de Iaôs”. As pessoas iniciadas no mesmo Barco
manterão entre si durante o resto da vida um relacionamento ainda
mais estreito que aquele mantido entre irmãos-de-santo de barcos
145

diferentes. Espécie de gêmeos, os irmãos-de-barco mantêm contudo


relações hierárquicas que dependem do Olori de cada um. O Barco de
Iaôs comporta oito classes denominados respectivamente, de acordo
com a ordem de saída (do mais velho para o mais novo), de: Dofona,
Dofonitinho, Famo, Famotinho, Gamo, Gamotinho, Dotelo e
Dotelotinho. Essas classes são ocupadas pelos filhos-de-santo de
acordo com uma ordenação específica dos próprios Orixás: Exu,
Ossanha, Ogum, Oxóssi, Oxumarê, Oxum, Iansã, Iemanjá, Xangô,
Obaluayê, Tempo, Logunedé, Nanã, Obá, Euá e Oxalá. Desse modo, se
tivéssemos num mesmo Barco, filhos de (um de cada Orixá, pois
parece que dois filhos do mesmo santo não são nunca iniciados no
mesmo Barco): Ogum, Iansã, Tempo e Nanã, as classes do Barco
ficariam assim preenchidas:

Dofona filho de Ogum


Dofonitinho filho de Iansã
Famo filho de Tempo
Famotinho filho de Nanã

O Barco é composto por um mínimo de um filho-de-santo (que


será então Dofona do Barco) e um máximo de sete. Um oitavo Iaô só
é incluído no caso de haver “Quizila” entre Orixás já
representados no Barco. Quizila é o termo geral que recobre todos
os tipos de tabus (alimentares, de contato...), e existem casos de
Quizilas entre Orixás. Por exemplo, sustenta-se que Logunedé “não
se dá” com Oxalá; presenciei contudo a Saída de um Barco de duas
Iaôs, uma de Logunedé e outra de Oxalá: nesse caso, sustenta-se, é
possível efetuar uma série de “Fuxicos” e “tirar” o Barco
normalmente. Existe contudo um caso em que não há manipulação
possível: quando se encontram no mesmo Barco um filho de Exu (que
será sempre Dofona desse Barco) e um de Oxalá (que será sempre o
146

último a sair). Esses dois Orixás são absolutamente antitéticos, e


enquanto Exu exige a presença do azeite-de-dendê na Feitura, Oxalá
o exclui irremediavelmente. Para que um tal Barco — denominado de
Barco Quente caracterizando o perigo que ele encerra, perigo esse
que se estende a todos os membros do barracão e até mesmo aos
vizinhos — possa ser tirado, o único meio é apaziguar a quizila;
faz-se isso incluindo entre os Iaôs um filho de Oxum. Esta Orixá,
senhora das águas doces, teria a propriedade de “lavar” a quizila,
fazendo com que tudo corresse bem. Um barco completo, ou seja, com
as oito classes preenchidas, inclui sempre filhos de Exu, Oxalá e
Oxum. Um desses barcos composto de filhos dos Orixás: Oxóssi,
Iemanjá, Exu, Obaluayê, Oxum, Xangô, Oxalá e Tempo, ficaria então
assim classificado:

Dofona Exu
Dofonitinho Oxóssi
Famo Oxum
Famotinho Iemanjá
Gamo Xangô
Gamotinho Obaluayê
Dotelo Tempo
Dotelinho Oxalá

As classes não guardam pois relações diretas com os Orixás,


mas com as relações entre os Orixás presentes naquele Barco
específico (apenas Exu, quando presente, ocupa classe fixa em
qualquer Barco). Os filhos-de-santo classificados nas classes mais
jovens do Barco devem respeito àqueles colocados nas mais velhas.
A Dofona do primeiro Barco de um terreiro é denominada Rambona, e
deve ser respeitada por todos os outros filhos-de-santo daquela
casa.
147

O Recolhimento do Barco e a distribuição dos Iaôs pelas


classes levam diretamente a um dos pontos centrais do Candomblé: a
identificação do Orixá de determinado filho-de-santo. Essa
identificação precede, evidentemente, a Feitura, mas só vem a ser
definitivamente confirmada durante esta. Em primeiro lugar, há uma
identificação tida como “intuitiva”: olhando-se para a pessoa,
diz-se o Orixá dono de sua cabeça. Esse sistema, precário ainda,
está assentado em crenças que atribuem aos filhos de cada Orixá um
temperamento, e às vezes um destino, específicos (há uma
identificação menos freqüente de tipos físicos). As seguintes
identificações são efetuadas:

Orixá Caráter do Filho


Exu Bom. Prestativo.
Ogum Prestativo. Perseverante. Pacificador.
Oxóssi Desleixado. Desinteressado. Valente.
Obaluayê Ranzinza. Vingativo. Decidido.
Tempo Ranzinza. Vingativo. Decidido.
Logunedé Manhoso. Astuto.
Iansã Agressivo. Desinibido. Ambicioso.
Xangô Agressivo. Desinibido. Ambicioso.
Oxum Reservado. Sonso. Medroso. Vaidoso.
Oxumarê Traiçoeiro. Invejoso.
Iemanjá Calmo. Vaidoso. Ranzinza. Maternal.
Nanã Ranzinza. Infeliz no amor.
Ossanha Inteligente. Interessado.
Oxalá Ranzinza. Ruim.

Em todos os casos, exceto com os filhos de Exu e de Oxalá, a


personalidade do filho repete a do Olori, tal qual definida
miticamente. Assim, Ogum é o vencedor das demandas e seus filhos,
pacificadores; Oxumarê é associado à cobra, e seus filhos são
148

traiçoeiros; e assim por diante. Nos casos de Exu e Oxalá há


contudo uma inversão: sustenta-se que se uma pessoa é ruim demais,
nenhum Orixá a desejará como filho, cabendo então a Oxalá, “pai de
todo mundo”, tomar conta de sua cabeça.
Essa classificação de personalidades ou caracteres, no
entanto, não deve ser levada muito a sério. É utilizada em tom
jocoso para, por exemplo, recriminar alguém que está sendo
demasiadamente ranzinza (“parece uma filha de Nanã...”), ou para
pôr em evidência um defeito de alguém (“todo filho de Oxum é
medroso...”), etc. Dessa forma, embora acreditando que esse quadro
serve de guia para a primeira identificação do Orixá (efetuada
através do “jeito” da pessoa), cumpre ressaltar que tal
identificação é provisória e quase nunca é mantida ao longo do
desenrolar da carreira do filho-de-santo.
É o Jogo de Búzios que decidirá qual o verdadeiro Olori de
alguém (e, além do Olori, todo o Carrego de Santo que se traz na
cabeça). O Jogo de Búzios, ou Delogum, consiste nesse caso em
dezesseis búzios especialmente preparados que são jogados pelo
pai-de-santo sobre uma mesa, fornecendo dezesseis combinações,
cada posição sendo chamada de Odu. Cada Odu significa um Orixá
“falando”, e esse processo serve tanto para a descoberta dos
Orixás de alguém, como para a previsão de seu futuro. O jogo pode
ser jogado para qualquer pessoa, e precede necessariamente o Bori,
pois este é, como dissemos, uma propiciação feita ao Olori da
pessoa, que deve portanto ser conhecido de antemão. O resultado do
jogo contudo não é, a priori, inequívoco: diz-se que dois ou mais
Orixás podem estar “brigando” pela cabeça da pessoa, e que isso
pode iludir o pai-de-santo durante o jogo. É apenas durante o
período de recolhimento que precede a Raspagem da Cabeça, momento
culminante da iniciação, que o verdadeiro Orixá será
definitivamente confirmado. Pode acontecer inclusive que a poucos
dias da Saída do Barco o Olori ainda não esteja determinado,
149

atribuindo-se isso muitas vezes ao fato do médium ter freqüentado


a Umbanda, pois o excesso de Eguns em sua cabeça confundiria o
jogo. Num dos processos de iniciação acompanhados, a futura filha-
de-santo era tida como sendo de Iansã, usando contas dessa Orixá e
tendo dado Bori para ela. Ao ser recolhida, Iansã “deixou de
falar” no jogo, entrando Bombonjira (qualidade feminina de Exu).
Poucos dias antes de sua saída, Bombonjira também se afastou,
surgindo Logunedé, Orixá para o qual ela foi raspada. E em vários
outros casos acompanhados o resultado final foi diferente daquele
que se supunha correto no início: uma pretensa filha de Oxum
revelou-se de Oxóssi; uma outra de Iansã acabou sendo feita para
Oxalá; e uma terceira que ser presumia de Oxalá foi raspada para
Obaluayê.
Essa mudança de Olori não é contudo obra do acaso: o pai-de-
santo tem que fazer uma série de Fuxicos que afastem os “falsos
Oloris” e permitam que apenas o verdadeiro se mostre. Caso
contrário, corre-se o risco de raspar a cabeça para o “santo
errado”, engano que será fatalmente cobrado pelo Olori verdadeiro,
acarretando uma série de transtornos para o filho-de-santo que,
para superá-los, terá que atravessar nova iniciação, com outro
pai-de-santo que “tirará a mão” do pai-de-santo anterior de sua
cabeça, raspando-a em seguida para seu Orixá verdadeiro. Um pai-
de-santo pode cometer esse engano por dois motivos: por
incompetência — prejudicado às vezes, como vimos, pelo próprio
filho que, antigo freqüentador de Umbanda, traz a cabeça cheia de
Eguns (nesse caso, a única solução é dar um Descarrego, ritual que
afasta os Eguns, no filho) — ou por Marmotagem. Diz-se que um pai-
de-santo comete uma Marmotagem quando pratica algo que ele sabe
errôneo com o único intuito de se auto-promover. No caso de uma
iniciação, um pai-de-santo pode forjar um “santo difícil”,
tratamento dispensado a certos Orixás que têm pouco filhos entre
os homens. No caso desses Orixás — Exu, Logunedé, Oxumarê,
150

Ossanha, Obá, Nanã, Oxalá e algumas qualidades dos demais Orixás —


possuírem filhos entre os membros de determinada casa de
Candomblé, isso significa Axé (força) para o terreiro, e prestígio
para o pai-de-santo que o comanda.
Desse modo, o processo de iniciação, após a identificação do
Orixá, o recolhimento do Barco, a confirmação do Orixá, prossegue
com a cerimônia de Raspagem da Cabeça. Esse ritual só pode ser
presenciado por quem por ele já passou, ou seja, por filhos-de-
santo já iniciados. Segundo as descrições disponíveis, o pai-de-
santo corta os cabelos do Iaô, que atravessa tudo incorporado com
seu Orixá, e em seguida pratica a Catulagem, que consiste em abrir
um orifício no centro da cabeça — o Ori — por onde penetra e se
assenta o Orixá. Esse orifício recebe o sangue dos animais de duas
e de quatro patas pertencentes a seu Orixá, bem como o sumo de
suas folhas. Após isso, o orifício é coberto pelo Adoxo, que
assegura que apenas o Olori, ou apenas as entidades que ele
permitir, se manifestarão naquele Ori. Diz-se então que o Orixá
está assentado naquela cabeça. Ao mesmo tempo, o Orixá é assentado
em seu Ibá ou assentamento, conjunto formado por um prato, os
“instrumentos” do Orixá, umas pedras e outros objetos sagrados,
que é tido como um “duplo” do Ori do filho-de-santo.
A etapa seguinte da iniciação é a Saída do Iaô, ritual
público que marca a apresentação do novo filho-de-santo. A Saída é
feita durante um Toque comum, embora festivo, e é dividida em
quatro saídas parciais: na primeira, o Iaô sai vestido e pintado
de branco, homenagem a Oxalá, Orixá supremo; na segunda, vestido e
pintado com as cores de seu Orixá, o Iaô é “apresentado à praça”;
na terceira, sai vestido com as roupas e portando os instrumentos
específicos de seu Orixá, e é a saída em que a divindade toma Rum,
ou seja, dança, pela primeira vez; finalmente, a quarta e última
saída é conhecida como a do Oruncó, pois é aí que o Iaô,
incorporado como em todas as outras saídas, grita o nome de seu
151

santo, nome que não é entendido por nenhum dos presentes, pois só
pode ser conhecido pelo pai-de-santo do noviço que, ele próprio,
não o conhece. O Iaô retorna então para o Roncó de onde voltará
mais tarde para a Tirada da Quizila e o Batizado do Erê.
A Tirada da Quizila é feita com o Iaô consciente, e consiste
na apresentação de alguns objetos de uso cotidiano para que se
retome a familiaridade com eles. Se isso não for feito e o Iaô, ao
voltar para casa, tocar em algum objeto cuja Quizila não foi
tirada, ele fatalmente virará com o santo. Certas Quizilas são
contudo mantidas, algumas apenas temporariamente (por exemplo,
comer apenas em seu próprio prato, de ágate, não tocar em tesoura,
vestir-se só de branco — durante os três meses do Quelê; abster-se
de ir à praia — durante um ano), enquanto que outras possuem um
caráter permanente. Essas últimas são sobretudo tabus alimentares:
cada filho-de-santo é proibido de comer um ou mais dos alimentos
de seu Orixá, embora, como o número de alimentos de cada Orixá é
grande, essas proibições não coincidam para todos os filhos do
mesmo Orixá. Alguns filhos de Omolu não podem comer laranja-lima,
outros abacaxi, e assim por diante (durante a iniciação o pai-de-
santo estabelecer as quizilas específicas de cada filho). A quebra
de uma Quizila traz sérios problemas físicos, podem acarretar até
mesmo a morte do infrator.
Se a Feitura cristaliza a possessão pelo Orixá (que já
ocorre menos regradamente após o Bori), é o Batizado do Erê que
consagra a possessão por essa entidade (embora, durante o período
de Recolhimento, o Erê se incorpore, pois, como dissemos, é
através dele que o Iaô aprende rezas, cantos, etc.). Após a Tirada
da Quizila, o Iaô vira com o Erê que é então batizado com água e
sal, recebendo seu nome ou do pai-de-santo ou de um padrinho ou
madrinha por ele iniciado. Trata-se então de um segundo padrinho,
pois por ocasião do Oruncó há também um padrinho do Orixá que
dança junto a ele e faz a pergunta que desperta o Oruncó do santo.
152

Após essa seqüência de cerimônias (Saída, Tirada da Quizila,


Batizado do Erê), efetuadas todas durante o mesmo Toque, o Iaô
volta para o Roncó de onde só sairá no dia seguinte para ir a uma
igreja católica onde bate palmas (“bate paó”) frente ao portão,
estando então livre para voltar para casa. No entanto, durante os
três meses que se seguem à saída, o filho-de-santo continua sendo
chamado de Iaô e se encontra em período de Quelê. O Quelê é um
colar de palha entremeado de búzios que, preso ao pescoço do Iaô,
denota a fase transitória em que este ainda se encontra. Esta fase
é bastante perigosa porque a cabeça do Iaô ainda não está firme,
podendo maus fluidos (Eguns) penetrarem através do corte feito em
seu Ori durante a Feitura. Por isso, ele deve andar com a cabeça
sempre coberta, vestido de branco, e evitar todo contato corporal
profano. Ao mesmo tempo, por ocupar a posição hierárquica mais
baixa no conjunto dos filhos-de-santo, deve pedir bênção e
respeitar todas as pessoas iniciadas no Candomblé. Além disso, são
freqüentes as manifestações do Orixá e do Erê nesse período,
motivo que leva o Iaô a estar sempre próximo a alguém que saiba
desvirar o santo. Essa fase se encerra com uma cerimônia simples,
a Caída do Quelê, que libera o Iaô das diversas restrições a que
estava sujeito, e o transforma num Vodunsi, ou seja, num filho-de-
santo propriamente dito.

2.5. As Obrigações:
O Vodunsi se encontra comprometido a prestar uma série de
Obrigações sucessivas, que marcam sua evolução como membro do
Candomblé. Essas Obrigações são datadas a partir da Feitura: a
primeira é prestada após um ano de iniciação, a segunda após três,
a terceira cinco, a quarta sete, a quinta quatorze e a sexta vinte
e um anos após a iniciação. As mais importantes contudo são as de
um, sete e vinte e um anos, e freqüentemente não se prestam as
restantes, devido especialmente a problemas financeiros, pois à
153

medida que as Obrigações vão se sucedendo mais caras se tornam.


Isso se deve ao fato de que cada obrigação marca o Assentamento de
um dos Orixás do Carrego de Santo. Assim, temos:

Feitura Assentamento do Olori (1º Santo)


Obrigação de 1 ano Assentamento do Juntó (2º Santo)
Obrigação de 3 anos Assentamento do 3º Santo
Obrigação de 5 anos Assentamento do 4º Santo
Obrigação de 7 anos Assentamento do 5º Santo
Obrigação de 14 anos Assentamento do 6º Santo
Obrigação de 21 anos Assentamento do 7º Santo

Em cada Obrigação deve-se homenagear os Orixás anteriores, o


que significa que na Obrigação de vinte e um anos, além das
prestações oferecidas ao sétimo santo que está sendo assentado, um
Vodunsi é obrigado a “dar de comer” e a homenagear seus outros
Orixás, o que torna extremamente dispendiosa essa cerimônia.
A cada Obrigação, o Orixá assentado passa a poder possuir o
filho-de-santo, desde que seu Olori o permita (na prática, um
Vodunsi vira no máximo com o Juntó e o terceiro santo, além do
Olori é claro). Isso, ao contrário do que se poderia supor, é um
sinal de fortalecimento progressivo do Vodunsi, que cada vez mais
controla suas possessões. Assim, enquanto um Iaô é possuído a
qualquer instante, e um filho-de-santo com pouco tempo de
iniciação vira constantemente no santo, um Vodunsi com quatorze
anos de feito dificilmente será possuído se não o desejar, e um
com vinte e um anos não o será em hipótese nenhuma, a não ser que
queira sê-lo.
Com a Obrigação de ano, o filho-de-santo passa a ter o
direito de entrar em transe, vez por outra, com seu Caboclo e seu
Exu (seus Eguns-de-Santo). Esses tipos de possessão não são bem
vistos no Candomblé, sendo interpretados como sinal de fraqueza do
154

médium: é apenas depois de algum tempo de feito o filho-de-santo


que tais possessões se tornam legítimas. Na Obrigação de sete anos
ocorre a Entrega do Decá, ritual que precede à passagem do Vodunsi
a pai-de-santo, ou seja, outorga-lhe o direito de iniciar seus
próprios filhos-de-santo sem depender de ninguém. A Entrega do
Decá significa que o Vodunsi não está mais preso nem mesmo a seu
pai-de-santo, pois o Decá é o conjunto de objetos (o assentamento
de seu santo, os cabelos cortados da iniciação, etc.) que permitem
que este último controle seus filhos à distância. Recebendo esses
objetos, o Vodunsi passa a estar submetido somente aos Orixás.
Essa submissão tem também seu fim: ao atravessar a Obrigação de
vinte e um anos, tendo todo seu Carrego de Santo assentado e
sendo, presumivelmente, grande conhecedor dos mistérios do
Candomblé, o Vodunsi torna-se Tata e, diz-se, não está mais
submetido nem mesmo aos Orixás.
O Candomblé aparece então, como um sistema altamente
complexo que procura paulatinamente incrementar a força espiritual
de seus membros. Antes de iniciar-se, o futuro filho-de-santo está
submetido a tudo: aos Vodunsis, aos Eguns e aos Orixás. Iniciado,
controla dos Eguns, usa-os como seus escravos, mas depende ainda
de seu pai-de-santo e dos Orixás. Com sete anos de feito, e seu
Decá liberta-se do primeiro, e com vinte e um anos não depende
mais de nada, controlando tudo com sua própria vontade: torna-se
um tata.
Se colocássemos num esquema as relações entre tempo de
iniciação, posição hierárquica e “poder”, teríamos finalmente:

Tempo de iniciação Posição Poder


hierárquica
Não-Iniciado - Submissão a vodunsis,
eguns e orixás
155

Oborizado Abiã Submissão a vodunsis e


orixás

Recém- Iaô Submissão a vodunsis e


Iniciado orixás

Um ano Vodunsi Submissão ao pai-de-


santo e aos orixás. Domínio
sobre eguns.

Sete anos Pai-de-Santo Submissão aos orixás.


Domínio sobre filhos-de-
santo e eguns.

Vinte e um Tata Domínio sobre eguns e


anos vodunsis. Não-submissão aos
orixás.
156

CAPÍTULO IV

POR UMA ANTROPOLOGIA DA POSSESSÃO

1. Introdução

Nos dois primeiros capítulos deste trabalho foi possível


isolar, através da leitura crítica das teorias sobre o transe
(tanto as mais gerais quanto aquelas voltadas para os cultos afro-
brasileiros), os dois modelos teóricos básicos utilizados de
diferentes maneiras por, praticamente, todos os antropólogos que
se aventuraram na busca de uma explicação científica para o êxtase
religioso. Foi possível, também, constatar que, para além de suas
diferenças, óbvias e importantes, estes dois modelos possuem em
comum um caráter essencialmente reducionista: seja reduzindo o
transe a uma esfera “bio-psicológica”, encarando-o então ora como
doença mental propriamente dita, ora como forma de tratamento
“primitivo” para este tipo de perturbação (ou ainda, no máximo,
considerando-o como emergência direta de fenômenos psíquicos
“normais”), seja transpondo este reducionismo para um plano
interno à sociedade e vendo na possessão, e no culto que a
encerra, o puro reflexo de estruturas sócio-políticas abrangentes
tidas como mais substantivas e determinantes.
A partir destas constatações, propus-me esboçar uma teoria do
transe que se mantivesse num nível estritamente antropológico, ou
seja, que, recusando-se a reduzir a possessão a qualquer coisa que
lhe seja “exterior”, em qualquer plano, pretendesse dar conta de
sua estrutura lógica profunda, estrutura que suponho repousar em
última instância sobre mecanismos básicos do pensamento dos quais
a possessão forneceria apenas uma das traduções possíveis a nível
social e cultural. Para que tal esboço teórico pudesse ser
efetuado, parti de uma realidade objetiva, a manifestação concreta
157

do êxtase nos chamados cultos afro-brasileiros — mais


especificamente, no Candomblé Angola — manifestação da qual o
terceiro capítulo forneceu um “esquema etnográfico”. É importante
ressaltar novamente que as observações teóricas que se seguem não
possuem, apesar de tudo, apenas a reduzida base empírica que foi
apresentada, tendo sido desenvolvidas a partir do confronto de
minhas próprias experiências de campo com aquelas fornecidas por
outros pesquisadores do assunto (cf. especialmente: Bastide, 1973,
1978; Trindade-Serra, 1978; Cossard, 1970; Woortman, 1977;
Barreto, 1977), informações que, embora não se encontrem aqui
explicitamente discriminadas, compõem o material e os dados a
partir dos quais foi possível estabelecer as propostas teóricas
contidas ao longo deste último capítulo.
O pressuposto básico que serve aqui de condutor para a análise,
é, portanto, que só é possível encontrar o sentido dos fenômenos
extáticos através do desvendamento da estrutura lógica a eles
subjacente. Para isso é preciso, simultaneamente, respeitar o
plano próprio de existência destes fenômenos e buscar transcendê-
lo ao relacioná-lo com fatos estruturalmente correlatos,
encontrando um sistema que permita sua inter-tradução mútua. Isto
porque a questão da especificidade de cada fenômeno ou sistema
religioso particular — e até mesmo da religião como um todo — deve
ser colocada sobre bases diferentes do que é usualmente feito.
Pois se é indiscutível que esta especificidade deve ser admitida
sem restrições como ponto de partida, no intuito de evitar toda
projeção ou redução de caráter etnocêntrico, o fim último da
pesquisa antropológica só pode ser a superação desta noção e a
determinação de um plano comum dos fenômenos e sistemas religiosos
com os demais processos lógicos do pensamento.
Num tal sentido, o relativo fracasso das tentativas teóricas
de explicação anteriormente resumidas talvez possa, quando
cotejado com os dados empíricos, ser ilustrativo e indicar uma
158

pista por onde seguir. Pois se onde os primeiros autores não viam
nada além de fatos individuais os mais recentes enxergam apenas a
ação maciça da estrutura social sobre os indivíduos, isto talvez
não se deva a simples diferenças teóricas ou mesmo ideológicas,
mas a alguma particularidade do fenômeno em questão,
particularidade para a qual é estritamente necessário estar atento
se desejamos superar os impasses anteriores.
Na verdade, esta particularidade é bastante óbvia, e é
realmente notável que tenha passado despercebida da maior parte
dos estudiosos do tema — a exceção, como sempre, é Roger Bastide.
Em primeiro lugar, é evidente que a possessão é um ritual e que,
portanto, sua explicação deve necessariamente passar por uma certa
concepção sobre o que é rito. Em segundo lugar, é também bastante
óbvio, mas talvez não tanto, que no modelo nativo o transe atua
através de uma “perturbação”, ou de uma transformação para ser
mais exato, do fiel que o experimenta. Ou seja, o transe opera
sobre o indivíduo humano. Esta aparente banalidade deixa
imediatamente de sê-lo se lembrarmos que a noção de indivíduo não
é nem unívoca nem universal, e que se tentarmos dar conta de
realidades culturais “outras” a partir de nossa própria concepção
acerca da pessoa humana, o máximo a que chegaremos é a uma série
infindável de projeções etnocêntricas deformadoras. É isto aliás o
que acontecia com Nina Rodrigues, Arthur Ramos, e tantos outros,
até hoje, que insistem em falar da possessão como um processo de
“dissociação da personalidade” (ao menos no sentido em que é aqui
utilizada) não fosse problemática, e a crença num indivíduo uno e,
a princípio, indivisível — que o termo “dissociação”
necessariamente supõe — não fosse praticamente exclusiva de
algumas ideologias ocidentais. Neste sentido, seria mais
apropriado dizer, sem dúvida, que a possessão está intrinsecamente
ligada com a “noção de pessoa” adotada pelo grupo que a pratica.
Ou, como diz Jean Rouch:
159

“la notion de personne est effectivement l’une des clés des


faits religieux faisant appel à la transe” (CNRS, 1973: 529 — todo
o artigo traz evidências para esta afirmação).

Isto significa que, além de uma certa concepção de ritual, o


transe exige, para ser justamente compreendido, uma determinada
teoria sobre a “noção de pessoa”.
Desse modo, creio ser possível sustentar que a possessão é
um fenômeno complexo situado como que no cruzamento de um duplo
eixo, um de origem nitidamente sociológica, o outro ligado a
níveis mais “individuais”. Talvez esteja aqui uma das raízes das
incompreensões teóricas de que foi vítima o êxtase religioso, na
medida em que as explicações que tentam dele dar conta costumam
dissociar estes dois eixos, tratando exclusivamente de um deles
ou, quando ambos são encarados, adotando uma perspectiva
mecanicista e atomizante. Para evitar estes problemas é preciso
sustentar, creio, que a possessão só revela sua estrutura profunda
ao ser tratada simultaneamente sob o duplo ponto de vista de uma
“teoria da construção da pessoa” e de uma “teoria do ritual”.
Pois, como diz Bastide, o êxtase parece constituir o ritual “por
excelência”, o “ritual-experiência-vivida”, que coloca
imediatamente em cena a questão da noção de pessoa (cf. Bastide,
1978: 200).

2. Possessão e Personagem

A interdependência da estrutura da possessão e da “noção de


pessoa” nos cultos afro-brasileiros foi pressentida pela primeira
vez por Roger Bastide. Com efeito, Bastide sustentou que a
explicação do transe deveria passar necessariamente pela análise
160

do que ele chama de “o castelo interior do homem negro” (cf.


Bastide, 1972: 59-65), e que corresponde ao que se convencionou
denominar na antropologia moderna de “noção de pessoa”:
“O ‘castelo interior’ não dispõe de um aposento apenas, é
composto de múltiplos cômodos, cada um dos quais com sua liturgia
extática; através de uma psicologia do comportamento é possível,
pois, atingir a intimidade dos fenômenos vividos” (Bastide, 1978:
226).

No entanto, esta linha de investigação não foi levada


adiante por Bastide, que se contentou em descrever os vários
“aposentos do castelo interior” sem demonstrar sua profunda
conexão, por ele mesmo percebida, com os fenômenos extáticos (cf.
Bastide, 1978: 226-234). Sua análise acabou derivando, conforme
foi visto no segundo capítulo, para a idéia de que o filho-de-
santo é um personagem, isto é, alguém que prefigura durante o
ritual um drama mítico. Neste sentido, sua “psicologia do
comportamento” degenerou numa verdadeira psicologia social que
considera os Orixás como personagens alternativos oferecidos,
através de um processo de “identificação”, a indivíduos de baixa
posição social, processo que lhes proporcionaria um tipo de
satisfação psicológica por eles jamais encontrada na vida
cotidiana.
Embora o modelo de Bastide represente, creio, a melhor
tentativa de explicação do transe no Candomblé — a única de fato
que leva em consideração os dois eixos articuladores do fenômeno,
o ritual e a noção de pessoa — ele apresenta duas idéias, centrais
infelizmente, que comprometem todo o esquema. Em primeiro lugar,
há ainda uma certa dose de etnocentrismo implícito no modo pelo
qual Bastide trata a noção de pessoa no Candomblé, modo que está
em contradição até com outros textos seus. Ele supõe, como vimos,
uma identificação do filho-de-santo com o Orixá, identificação que
161

implica necessariamente, é óbvio, a pressuposição da existência de


dois seres ontologicamente unitários, individualizados e dotados
de características internas próprias, seres que apenas a
posteriori podem se aproximar: o “eu psicológico” do fiel e o
“modelo de personalidade” do Orixá. Na verdade, não é bem isso que
parece ocorrer. O Orixá é visto antes como uma força natural
cósmica, composto de uma infinidade de planos, ou “qualidades”,
hierarquicamente (no sentido de Dumont) ordenados, e não uma
individualidade de qualquer espécie; também o filho-de-santo,
conforme foi possível observar no capítulo anterior, é pensado
como multiplicidade, multiplicidade que o Orixá compõe e não à
qual ele simplesmente se acrescenta depois de acabada.
Além disso, e este segundo ponto diz respeito à concepção de
ritual adotada por Bastide, a idéia básica que está atrás de todo
o esquema é a problemática noção, extraída de Marcel Griaule, de
que nas sociedades africanas a estrutura mítica tem o poder de
modelar a organização social:

“... a estrutura do social está


determinada pelas concepções religiosas e
pela filosofia africana do universo. Se
quisermos compreender a organização
morfológica dos grupos, precisamos passar
obrigatoriamente pela sociologia religiosa,
pois é ela que possui a chave da
explicação. O social apenas inscreve no
solo e encarna nas relações
interindividuais as leis da mística”
(Bastide, 1973: 370 — os grifos são de
Bastide).

Ora, para Bastide isso seria ainda mais verdadeiro para o


caso do Candomblé, devido ao mecanismo de autonomização da “super-
estrutura religiosa” em relação à “infra-estrutura sociológica”
ocorrido durante o processo de escravização e que teria gerado a
162

“internacionalização mística” das relações sociais, conforme foi


exposto aqui, no Capítulo II (cf. Bastide, 1971 para maiores
detalhes; o assunto é aí exaustivamente tratado). Ora, este tipo
de visão, ao cometer o erro simétrico e inverso àquele, de
inspiração funcionalista, que insiste em ver no mito a expressão
direta da estrutura social, não pode fornecer uma explicação
adequada para as estruturas religiosas, na medida em que estas
seguem sendo explicadas (ou desta vez, servindo para explicar)
sistemas a elas extrínsecos. Como demonstrou Lévi-Strauss, o mito,
o rito e a estrutura social, devem ser encarados como níveis de
manifestação dos mecanismos de ajustamento do homem ao mundo e dos
homens entre si, níveis que se processam segundo códigos
diferentes embora intertradutíveis, nenhum dos quais ocupa uma
posição privilegiada ou determinante — ao menos a priori (cf.
Lévi-Strauss, 1962: 247; cf. também Merleau-Ponty, 1948: 184, onde
pela primeira vez, parece, o problema foi colocado nestes termos).
Neste sentido, a relativa autonomia da estrutura cosmológica e
ritual do Candomblé convidaria antes a tratá-las de forma
estrutural, e não a buscar nelas uma potência de determinação que
elas evidentemente não podem possuir.

Mais recentemente, Claude Lépine (1978) procurou prosseguir


na trilha traçada por Bastide, e seu trabalho apresenta tanto as
virtudes quanto os defeitos do modelo do mestre. Basicamente,
trata-se de encarar o Candomblé como um sistema de classificação
do universo, classificação que abarcaria também os seres humanos,
único aspecto a nos interessar aqui. Neste plano, estaríamos,
segundo a autora, às voltas com um sistema de tipo totêmico que
operaria através do estabelecimento de relações entre as
diferenças existentes entre os seres humanos, e aquelas
observáveis na natureza, natureza esta representada por sua vez
pelo Orixás. O Candomblé seria nesse sentido um sistema totêmico
163

clássico, tal como aqueles analisados por Lévi-Strauss (1975),


onde uma homologia é postulada entre um sistema de diferenças
culturais e um outro situado na natureza. Sua especificidade,
contudo, é que aqui o sistema seria distendido até atingir as
próprias diferenças interindividuais, na medida em que, sabe-se,
para além do “Orixá geral” comum a um grupo de indivíduos, cada
pessoa é pensada como “filha” de uma divindade única, divindade
esta que é sempre uma “qualidade” específica do Orixá geral. O
esquema é engenhoso e, até certo ponto, verdadeiro; pode, contudo,
ser alvo de algumas objeções bastante importantes que o
comprometem.
Primeira objeção: estaria de fato o Candomblé baseado numa
lógica de tipo totêmico, mesmo que não configurasse, dadas as
peculiaridades históricas de seu desenvolvimento, um sistema
totêmico propriamente dito? Que o Candomblé comporta um sistema de
classificação é evidente demais para ser discutido; que este
sistema opera simultaneamente nos planos da natureza e da cultura
também é bastante óbvio; e, no entanto, a hipótese de que sua
estrutura última consistiria num sistema de homologias entre
diferenças naturais e culturais deve ser considerada com mais
cuidado. Ao nível do “Orixá geral” ela parece de fato válida, na
medida em que cada Orixá representa uma força da natureza e é, ao
mesmo tempo, o “senhor da cabeça” de um certo número de seres
humanos (que não configuram aliás um grupo). Assim, poder-se-ia
dizer que a diferença entre os filhos de Omolu e aqueles de Oxum é
homóloga à oposição terra/água, e assim por diante para cada par
de Orixás. No entanto, quando consideramos o “Orixá específico”,
as coisas não ficam tão claras. Pois embora o “Olori” de cada
indivíduo lhe seja particular e único, diferenciando-o portanto de
todos os outros homens, poderíamos perguntar a que diferença
natural corresponderia essa diferenciação pessoal e “social”.
164

Mas há mais. Ao criticar as teorias antropológicas clássicas


que erigiram arbitrariamente o totemismo em instituição
substantiva, Lévi-Strauss demonstrou que a lógica totêmica é
essencialmente metafórica, excluindo radicalmente o contato
metonímico, contato que vem a caracterizar outro tipo de sistema,
um sistema justamente não-totêmico. Assim, os Ojibwa (de quem a
palavra “totem” foi tomada de empréstimo pela antropologia)
apresentam, ao lado de um sistema propriamente totêmico que
associa espécies animais e grupos sociais através de suas
diferenças internas, e que exclui irremediavelmente o contato
entre seus elementos, um sistema “manido” de espíritos guardiães
com os quais o indígena tem que entrar em contato direto (cf.
Lévi-Strauss, 1975: 28-32). Em “O Pensamento Selvagem” este
segundo sistema é qualificado: seu paradigma mais óbvio seria o
sacrifício, unidade mínima de uma estrutura religiosa que operaria
buscando atingir uma associação metonímica entre a divindade e os
homens, entre o sagrado e o profano (cf. Lévi-Strauss, 1976: 256-
262. Voltarei logo a este ponto, essencial aqui). Ora, o “Orixá
específico”, individual, situa-se integralmente sobre o eixo do
contato metonímico: é para ele que são efetuados os sacrifícios, é
ele que possui seu filho; é ele portanto o verdadeiro objeto de
culto de todo o sistema17. Claude Lépine confunde então em sua
análise os elementos totêmicos do Candomblé com aqueles
propriamente religiosos e, tratando os segundos como se fossem da
mesma ordem que os primeiros, não consegue atingir a verdadeira
estrutura lógica em operação no sistema.

17 Isto pode talvez explicar a ausência de toda forma de culto a


Olorum, a divindade suprema. Sendo, por definição, completamente
“geral”, não possuindo formas “específicas”, parece
estruturalmente impossível relacionar-se metonimicamente com ele,
a partir da estrutura lógica do Candomblé.
165

Mas Lépine não se detém na tese de que o Candomblé seria um


sistema de tipo totêmico. A esta dimensão estrutural ela
acrescenta uma outra de caráter funcional. Neste plano os Orixás
são encarados como “tipos psicológicos” de uma “psicologia
popular”, espécie de terapia que liberaria o homem do mundo
alienante e despersonalizante que ele habitaria cotidianamente,
oferecendo-lhe um meio de reforçar sua identidade:
“o sistema de classificação dos tipos psicológicos do
Candomblé, graças à sua estrutura, permite responder aos anseios
de certas categorias de membros da sociedade urbana atual,
desorientados pela heterogeneidade da sociedade que não conseguem
apreender como um todo coerente e onde não sabem se situar,
perdendo o sentimento da identidade pessoal” (Lépine, 1978: 27-
28).

Para que o culto possa cumprir sua função, Lépine supõe que
a iniciação construiria uma “segunda personalidade”, mais forte,
mais individualizada, menos alienada, do que a primeira,
reforçando assim a identidade pessoal do fiel (cf. Lépine, 1978:
383). É aqui aliás que a autora situa sua explicação para o
transe, desenvolvida segundo ela a partir da teoria pavloviana dos
reflexos, a única compatível com seu modelo estruturalista (sic).
A possessão consistiria, de seu ponto de vista, na destruição da
personalidade simbólica, cotidiana do processo — através do uso de
drogas, do cansaço, da música, das danças, etc. — e em sua
substituição pela “outra personalidade” construída ao longo de
todo o processo de iniciação ao culto.
Este segundo aspecto da teoria de Claude Lépine — a função
terapêutica do Candomblé — repousa sobre um conjunto de crenças
realmente existentes entre os fiéis do culto, mas que ela leva
demasiado a sério. Como vimos no Capítulo III, é verdadeiro que os
166

filhos-de-santo se referem por vezes a seus comportamentos e ao


dos outros usando como paradigma traços de suas “personalidades
místicas”, que são aqueles caracteres que os mitos atribuem a seus
Oloris. Expressões relacionando Oxum com covardia, Oxumarê com
traição, Oxalá com rancor, etc., são de fato utilizadas. São
encaradas contudo com um espírito mais jocoso do que sério, e não
se crê que reflitam nada de muito essencial. Tudo se passa como
entre os Algonkin, onde os membros do clã do lobo ameaçam devorar
aqueles do clã do porco porque “os lobos comem porcos” (cf. Lévi-
Strauss, 1975: 31). Na verdade, a influência do Orixá sobre o
indivíduo deve ser buscada em outra parte que não o seu
comportamento pessoal.
Mas a interpretação funcional de Claude Lépine — assim como
seu esquema estrutural — não falha apenas devido a um mal-
entendido etnográfico. Ao tentar explicar o modelo “totêmico” do
Candomblé, ela insiste em utilizar como chave de compreensão um
outro modelo, de aparência psicológica, mas que na verdade possui,
sobre um outro plano, características igualmente totêmicas. Pois,
ao definir o “totemismo do Candomblé” como um sistema de
classificação e ajustamento de personalidades, a autora recorre,
implícita e inconscientemente, a nosso próprio totemismo — aquele
que define cada indivíduo, diferencia-o dos demais e o classifica,
associando-o a sua “personalidade” (cf. Lévi-Strauss, 1976: 247).
Conferindo arbitrariamente ao segundo modelo — o nosso — um
estatuto científico, Lépine sofre a ilusão de ter explicado o
primeiro — o do Candomblé — quando na verdade ela apenas traduziu
em termos etnocêntricos e deformadores um modelo mítico-
cosmológico da “pessoa”, em um outro de caráter psicologizante.
Neste sentido ela se vê obrigada a supor, sem no entanto confessá-
lo, aquilo que duas psicólogas sustentam explicitamente: que as
próprias concepções míticas e cosmológicas dos Orixás não
167

passariam de cristalizações de “tipos psicológicos” humanos


empiricamente existentes (cf. Augras, 1983; cf. Correa, 1976).

Ao analisarem o Candomblé como um sistema de “personagens”


ou “personalidades”, tanto Roger Bastide quanto Claude Lépine
incidem num erro teórico fundamental, erro que explica em última
instância a inadequação de seus modelos. Nenhum dos dois, apesar
de repetidas profissões de fé neste sentido, leva realmente a
sério a investigação da “noção de pessoa” adotada por esta
religião. Ora, como lembra Michel Cartry, a não investigação desta
noção conduz geralmente a um etnocentrismo especialmente
pernicioso, na medida em que não se consegue dar conta do modo
pelo qual um grupo pensa sua relação (do “homem”) com as
instituições sociais e com a natureza (cf. CNRS, 1973: 16-17).
Termina-se pois, invariavelmente, projetando uma certa concepção
da pessoa humana — aquele de “indivíduo”, no sentido de Dumont,
tão particular ao Ocidente — concepção que corrói inevitavelmente
todo o trabalho teórico. Assim, o máximo que Bastide e Lépine
reconhecem no Candomblé é que este sistema classifica ou, na
melhor das hipóteses, modifica, certos padrões de “personalidade”
previamente existentes.
É certo que desde Durkheim os antropólogos sabem que as
sociedades humanas classificam não apenas o mundo em que vivem
como também os indivíduos e grupos que as compõem. Foi entretanto
com Marcel Mauss que esta perspectiva se alargou, ao se perceber
que uma visão estritamente classificatória implicava, de algum
modo, uma concepção demasiado positivista da sociedade humana.
Isso porque ela pressupõe, em última análise, que o social não
consiste em nada além de um outro nível — mais complexo,
certamente, mas isto não basta — que se superpõe a realidades
prontas e acabadas, realidades de ordem física, fisiológica e
psicológica. Desta maneira é impossível perceber o caráter
168

modificador e criador que a cultura exerce sobre estes outros


níveis. Em suma, a uma “visão estratigráfica” (como a denomina
apropriadamente Clifford Geertz) do homem e da sociedade, é
preciso substituir a concepção do “fato social total”: as culturas
humanas produzem sínteses específicas a partir dos elementos dados
de modo frouxo e instável, elementos que elas integram, articulam
e, até certo ponto determinam (cf. Lévi-Strauss, 1950). Ou, como
diz brilhantemente Roland Barthes:
“Hoje começamos a saber, graças à história (com Febvre),
graças à etnologia (com Mauss), que não só os costumes, mas também
os atos fundamentais da vida humana são objetos históricos; e que
é preciso definir cada vez de novo, segundo a sociedade que se
observa, fatos reputados naturais por causa de seu caráter físico”
(Barthes, 1961: 140).
Nesse sentido, estudos recentes têm insistido sobre o papel
constituinte exercido pela sociedade ao atualizar concretamente
suas concepções acerca da pessoa humana (cf. especialmente CNRS,
1973; Lévi-Strauss, 1977; Viveiros de Castro, Seeger e Da Matta,
1979). É aqui que creio ser possível encontrar um caminho que
conduza a uma melhor elucidação dos mecanismos do transe no
Candomblé e, talvez, de uma forma mais geral. Em outros termos, e
ao contrário do que supõem Bastide e Lépine, acredito ser preciso
encarar a possessão e a noção de pessoa como um sistema mais
dinâmico que não só classifica como também visa produzir tipos
específicos de pessoas não, certamente, no sentido de gerar
“personalidades” ou “tipos psicológicos”, mas no de uma
atualização de uma certa concepção da pessoa humana.

3. Possessão e Pessoa
169

Existe contudo um problema preliminar para se tratar da


“noção de pessoa” em Antropologia. É que, por assim dizer, a
própria “noção” desta noção varia enormemente entre os
antropólogos. Parecem existir, entretanto, duas vertentes básicas
preocupadas com esta questão (cf. Viveiros de Castro, Seeger e Da
Matta, 1979: 5-6). Uma que frutificou na antropologia britânica e
que tem sua origem na obra de Radcliffe-Brown. Este autor propõe
de fato uma distinção entre as categorias de “indivíduo” e de
“pessoa” na base de uma diferenciação entre os aspectos biológico
e social do ser humano. Do primeiro ponto de vista — biológico —
teríamos então indivíduos, objeto de estudo de fisiólogos e
psicólogos; já que no que se refere ao aspecto social, estaríamos
às voltas antes com a posição ocupada por estes “indivíduos” na
rede de relações sociais concretas — que constitui, como se sabe,
a estrutura social para o antropólogo britânico — e que os
transforma em pessoas, esses “complexos de relações sociais”,
objeto de estudo da Sociologia e da Antropologia. Em outros
termos, a pessoa é o indivíduo investido de sua posição social e
do papel a ela correspondente. Atrás do truísmo evidente da
posição de Radcliffe-Brown — já que afirmar que o homem, além se
ser biológico, é também um ser social só pode ser um truísmo mesmo
— esconde-se um perigo para a análise antropológica. Pois ao fazer
coincidir sempre indivíduo biológico e pessoa (unidade do sistema
social) o esquema não permite qualquer flexibilidade na
compreensão do modo pelo qual o grupo estudado concebe tanto a
realidade individual quanto a posição do indivíduo na trama das
relações sociais. Ou seja, supõe-se sempre que a unidade do
sistema corresponde a uma entidade individual (indivíduo ou grupo
encarado como entidade individual, cf. Sahlins, 1976: 109-110),
ainda que imersa na estrutura social. É este tipo de posição,
assumido geralmente de forma implícita, que leva vários autores a
falar da concepção de pessoa nos cultos afro-brasileiros apenas
170

como o disfarce cultural através do qual o grupo pensa a inserção


social do indivíduo, sem investigar a maneira mesmo pela qual esta
entidade é construída. O etnocentrismo subjacente a este tipo de
análise é bastante óbvio, na medida em que uma certa idéia,
culturalmente determinada, da pessoa humana é convertida ao
estatuto de categoria analítica universal: a ideologia ocidental
acaba passando por ciência e todo o trabalho teórico se encontra
inevitavelmente comprometido.
A outra tradição nos estudos sobre a pessoa é de origem
francesa, e tem início, parece, num famoso artigo, tão brilhante
quanto enigmático, de Marcel Mauss, escrito em 1938 (“Une
Catégorie de l’Esprit Humain: la Notion de Personne, Celle de Moi”
— in Mauss, 1950). Neste texto, Mauss pretende demonstrar como, a
partir de um fundo histórico de indistinção entre o indivíduo e o
grupo, desenvolve-se progressivamente na sociedade ocidental, sob
o jogo de várias forças culturais, uma certa concepção do “eu”
(“moi”), pensado como unidade autônoma e soberana dotada de um
sentido próprio e constituindo a base de uma religião, de uma
moral, e de uma ciência. O herdeiro mais conhecido desta tradição
é, sem dúvida, Louis Dumont que, embora não mencionando o termo
“pessoa”, desenvolveu todo o seu trabalho investigando justamente
a construção desta “pessoa autônoma” de que falava Mauss. A
diferença básica é que Dumont parece obcecado pela idéia de um
particularismo absoluto da sociedade ocidental moderna,
particularismo que a distinguiria de todas as demais culturas
humanas, e que se manifestaria na tendência ideológica de
converter o indivíduo “biológico” em indivíduo “valor”, ou seja,
em colocá-lo no centro da vida social. O trabalho de Dumont,
apesar de sua incontestável importância, não deixa espaço para a
análise de categorias culturais específicas referentes à noção de
pessoa, na medida em que, em bloco, tais categorias são postas em
171

oposição à moderna concepção de indivíduo (cf. Dumont, 1979),


apesar de recentes ressalvas propostas pelo autor.
Pareceu-me assim que a opção mais produtiva, para os
objetivos deste trabalho, consiste em seguir o caminho proposto no
colóquio de CNRS acerca da “noção de pessoa na África Negra” (cf.
CNRS, 1973) e investigar o modo particular através do qual cada
sociedade ou grupo social concebe, e constrói, sua noção de
pessoa. Neste sentido, a concepção de Dumont talvez pudesse ser
integrada numa visão mais ampla da questão, bastando para isso
considerar o “individualismo” moderno como uma certa maneira de
pensar a pessoa humana, maneira que se desenvolveu notavelmente na
sociedade ocidental a partir de um certo momento histórico, e que
não chega a ser universal nem mesmo entre nós, na medida em que a
idéia de um sujeito uno e autônomo não percorre de modo uniforme
todos os níveis e esferas da sociedade moderna.
O que há de verdadeiramente estranho nesta concepção
individualista da pessoa, em voga no Ocidente — e é isso que
parece ter chamado a atenção de Mauss e, especialmente, de Dumont
— é que ela se mostra singularmente afastada de praticamente todas
as “noções de pessoa” adotadas pelas várias sociedades humanas
investigadas pelos antropólogos. Os motivos desta peculiaridade
histórica deveriam certamente ser investigados em profundidade, o
que, evidentemente, escapa aos limites deste trabalho. Contentar-
me-ei em sustentar que a explicação proposta por Dumont para esta
questão parece bastante insatisfatória, na medida em que atribui
esse desenvolvimento da noção de indivíduo a um processo
exclusivamente ideológico, sem ao menos tentar conectá-lo com as
transformações históricas, de caráter sócio-político e econômico,
concretas ocorridas na sociedade ocidental.
De fato, a imensa maioria das sociedades humanas parece
adotar uma concepção de pessoa bastante distinta daquela
observável no individualismo ocidental. Ao comentar os dados
172

provenientes de diversas culturas, apresentados num seminário a


respeito da noção de “identidade” (tomada aí no mesmo sentido do
que estou denominando de “noção de pessoa”), Lévi-Strauss afirma
que
“une convergence curieuse allait se dégager de cette
comparaison. En dépit de leus éloignemente dans l’espace et le
leurs contenus culturels profondement hétérogènes, aucune des
sociétés constituant un échantillon fortuit ne semble tenir pour
acquise une identité substatielle: elles la morcellent en une
multitude d’éleménts dont pour chaque culture bien qu’en termes
différents, la synthèse pose un problème” (Lévi-Strauss, 1977: 11;
cf. também p. 330).

Ora, é esta constatação que lhe permite concluir, ao final


do mesmo simpósio, que
“l’identité est une sorte de foyer virtuel auquel il nous
est indispensable de nous référer pour expliquer un certain nombre
de choses, mais sans qu’il ait jamais d’existence réelle (...) son
existence est purement théorique: celle d’une limite à quoi ne
correspond en realité aucune expérience” (Lévi-Strauss, 1977:
332).

Esta maneira de conceber a noção de identidade, ou de


pessoa, é perfeitamente aplicável ao caso particular do universo
simbólico do Candomblé. Como foi visto no terceiro capítulo, a
concepção de pessoa humana aí adotada é de que esta se apresenta
de modo “folheado” (para retomar uma precisa expressão de
Françoise Héritier a respeito da noção de pessoa entre os Samo,
uma população africana do noroeste do Alto-Volta — cf. Lévi-
Strauss, 1977: 65): o ser humano é aí pensado como uma síntese
173

complexa, resultante da coexistência de uma série de componentes


materiais e imateriais — o corpo (ara), o Ori, os Orixás, o Erê, o
Egum, o Exu. O que há neste sistema de particular, e que faz com
que o Candomblé seja uma religião no sentido estrito do termo, e
não apenas um sistema de classificação, é que embora todo homem
seja pensado como nascendo necessariamente composto por estes
elementos, sua existência permanece em estado, digamos, virtual,
até o momento em que são “fixados” pelos ritos de iniciação e de
confirmação. O “assentamento” progressivo das várias entidades
espirituais corresponde justamente a este aspecto, fazendo com que
o fiel deixe de pertencer a e de depender de, como os não-
iniciados, entidades abstratas e gerais, e passe a ser constituído
por seres individualizados e concretos — o “seu” Orixá, o “seu”
Exu, etc... Tudo se passa então como se à fabricação da divindade
específica (pois, no Candomblé, o santo é feito) a partir de um
princípio geral correspondesse a gênese de um indivíduo “novo” (na
medida em que a “cabeça” também é feita). Acontece apenas que este
indivíduo nasce aos poucos, e de modo bastante lento, já que é
apenas depois de vinte e um anos de iniciado que sua “pessoa” pode
estar completa, isto é, todos os seus componentes tendo sido
individualizados e, portanto, ele próprio também. Até atingir este
momento ideal, o equilíbrio do seu eu é de tipo instável,
altamente instável, dependendo do cumprimento de toda uma série de
obrigações e proibições rituais cuja violação, ao destruir este
equilíbrio, pode chegar a destruí-lo enquanto pessoa, ou seja, a
aniquilá-lo.
Nesta concepção da pessoa humana e de sua construção,
sustentada no Candomblé, a possessão ocupa um lugar central.
Conforme foi possível constatar no capítulo precedente, a
continuidade do processo de construção da pessoa, com os
sucessivos “assentamentos” de seus componentes, é acompanhada por
um acréscimo, “em extensão”, do transe, ou seja, adquire-se o
174

direito (e mesmo o dever) de incorporar cada nova entidade


assentada. Este acréscimo tem contudo sua contrapartida numa
diminuição no ritmo e na constância do êxtase — quanto mais “velho
no santo” menos um fiel deve ser possuído, até que no final do
processo de construção de seu ser, com vinte e um anos de feito, o
transe cesse totalmente de atingi-lo. Em outros termos, poder-se-
ia talvez dizer que quanto mais “estável” o equilíbrio da pessoa —
pela incorporação sucessiva de seus componentes — menos a
divindade deve tomá-la.

Pode-se sustentar legitimamente então, creio, que sendo a


questão central da iniciação do Candomblé a manutenção de uma
certa unidade, bastante precária, de uma pessoa eternamente, pois
que múltipla, ameaçada de desequilíbrio e destruição, a possessão
apareceria como um dos instrumentos, também precário e provisório,
para a manutenção deste equilíbrio, instrumento que com sua
verdadeira chegada, quando completados os vinte e um anos
necessários para que a pessoa seja definitivamente construída,
tende a se extinguir por completo depois de vir declinando em
freqüência ao longo de todo o tempo utilizado nessa construção.
Se é verdade então, como afirma Lévi-Strauss, que a questão
da identidade e da pessoa se apresenta de modo “simétrico e
inverso” entre os Samo do Alto-Volta, estudados por Françoise
Héritier, e os Bororo do Brasil Central pesquisados por
Christopher Crocker, na medida em que
“chez les Samo, le problème procède du morcellement de
l’individu en âmes ou en doubles, tandis que chez les Bororo, le
problème de l’identité consiste à composer ou à recomposer
l’individu au moyen d’emblèmes et de positions” (Lévi-Strauss,
1977: 180),
175

poder-se-ia dizer que o Candomblé situa-se a meio caminho,


reunindo sinteticamente essas duas questões, já que trata-se aqui
de, ao mesmo tempo, conceber uma pessoa “folheada” e múltipla,
composta por “almas e duplos”, e tratar de recompô-la, não
certamente “por meio de emblemas e de posições”, mas sim através
de um complexo sistema ritual, que responde pelo caráter religioso
do Candomblé. Daí também a estreita interdependência, sustentada
acima, entre a “noção de pessoa” e a estrutura ritual no
Candomblé, estrutura que cumpre então analisar agora.

4. Possessão e Ritual

A noção de ritual tem sido, desde Durkheim, objeto de


importantes controvérsias teóricas dentro da Antropologia. As
concepções acerca de sua natureza, estrutura e função variam
enormemente de corrente teórica para corrente teórica, e até mesmo
de autor para autor. Alguns supõem tratar-se de um momento em que,
através da criação e da manifestação de sentimentos comuns, a
solidariedade social e, portanto, a própria sociedade, são criadas
e recriadas incessantemente. Outros, ao contrário, prefeririam ver
aí um instante em que a angústia e o sofrimento inevitavelmente
experimentados pelo homem em suas relações com os outros homens e
com o mundo em que vive, encontrariam um canal de expressão e
então, liberados, permitiriam a continuidade da vida social,
temporariamente livre destas ameaças de efeito disruptivo. Enfim,
há os que crêem que o rito não passaria da encarnação vivida de um
modelo místico, fornecido primeiramente pelos mitos e pela
cosmologia adotados pelo grupo.
Esses três modelos, percebe-se facilmente, são congruentes
com os tipos de análise utilizados nos estudos sobre os cultos
afro-brasileiros, tal qual resumidas no segundo capítulo deste
176

trabalho. Não é difícil notar que o primeiro esquema, de origem


durkheimiana e estrutural-funcionalista, pretende derivar o ritual
da “estrutura social” encarada como o sistema concreto de inter-
relações pessoais, terminando por atribuir a ele uma função
psicológica de reforço de sentimentos comuns. Já o segundo modelo,
de inspiração nitidamente malinowskiana e utilizado hoje em dia
por autores como Edmund Leach e, especialmente, Victor Turner,
inverte esta posição e ao invés de fazer derivar os sentimentos do
ritual pretende ver neste último uma expressão direta daqueles.
Finalmente, no terceiro caso, imagina-se que o comportamento
ritual não passa da transposição empírica de certas idéias
místicas adotadas pelo grupo. No que diz respeito aos estudos
afro-brasileiros, não é difícil localizar Herskovits e Renê
Ribeiro no primeiro modelo; Peter Fry, entre outros, no segundo; e
Roger Bastide, especialmente, no terceiro18.
Ora, como sustenta Lévi-Strauss, ligar o rito a estados
afetivos ou a formas místicas de pensamento não pode esclarecer em
nada sua natureza última, e nem sequer o fato mesmo desta ligação,
supondo-se que ela realmente exista (cf. Lévi-Strauss, 1971: 597).
Ou seja, a própria ligação entre ritual, afetividade e misticismo
é uma questão a ser desvendada pela análise positiva do rito, não

18 É interessante notar que também no que diz respeito aos modos


de investigação da “noção de pessoa”, Michel Cartry localiza essas
três tendências básicas (CNRS, 1973: 23-25). De fato, parecem
tratar-se de verdadeiras estruturas elementares do pensamento
antropológico. Cartry propõe como alternativa um modelo que busque
discernir, por trás dos modelos nativos, uma estrutura
inconsciente mais profunda, sem colocar a falsa questão da origem
social ou psicológica do místico, ou da origem mística do social e
do psicológico. É esta a postura teórica que pretendi assumir
aqui, tanto no que diz respeito à noção de pessoa quanto no
tratamento do ritual.
177

podendo portanto jamais dar conta dele. Fazendo pois do próprio


problema sua solução, as análises do ritual são levadas
inevitavelmente a se perderem num labirinto de idéias confusas e
obscuras, numa “floresta de símbolos” opaca, procedimento que não
pode caber numa perspectiva verdadeiramente científica:
“Car ce sont ces opérations {de l’intellect} seules que nous
pouvons prétendre expliquer, parce qu’elles participent de la même
nature intellectuelle que l’activité que s’exerce à les
comprendre. Une affectivité qui n’en dériverait pas serait
rigoureusement inconnaissable au titre do phénomène mental. En la
postuland pour fonder des opérations intellectuelles vis-à-vis
desquelles elles jouiraient d’un privilège d’antériorité, nous ne
ferions rien d’autre que nous payer de mots vides de sens (...) et
substituer des formules magiques à l’ouvrage du raisonnement”
(Lévi-Strauss, 1971: 596-597).

Neste sentido, é estritamente necessário encontrar uma


explicação de caráter intelectualista para o rito, e trabalhar com
ela até o final, sem abrir concessões a um afetivismo fácil. No
mesmo texto citado acima, Lévi-Strauss se coloca a tarefa de
buscar este modelo não-emocionalista, e a maneira pela qual o
ritual é aí encarado, além de modelar de um ponto de vista teórico
abrangente, é espantosamente esclarecedora dos mecanismos
específicos do ritual do transe, especialmente tal qual se
manifesta nos cultos afro-brasileiros. Para desenvolver esta
perspectiva seria contudo estritamente necessário, diz Lévi-
Strauss, desembaraçar o ritual de tudo aquilo que com ele se
mistura empiricamente, para poder chegar a tratá-lo “em si mesmo e
por si mesmo” (cf. Lévi-Strauss, 1971: 598). Ora, o que está
freqüentemente mesclado ao rito é justamente o mito, e se não
pudermos separar um do outro terminaremos por explicar o segundo
178

acreditando ter definido e dado conta do primeiro. Para isso, é


preciso primeiramente reconhecer a existência de toda uma
“mitologia implícita” ao rito, mitologia que se encontra num
estado de
“notes, d’esquisses ou de fragments; au lieu qu’un fil
conducteur les rassemble, chacune est liée à telle ou telle phase
du rituel; elle en fournit la glose, et c’est seulement à
l’occasion d’actes rituels que ces répresentations mythique se
trouveront évoquées” (Lévi-Strauss, 1971: 598).

Ora, se nos desembaraçarmos desta mitologia “implícita” —


distinta da “mitologia explícita” onde as narrativas existem por
conta própria e são evocadas independentemente do ritual —
constataremos a existência, no rito, de um gigantesco esforço para
“evitar falar”, esforço que, mesmo quando o ritual “fala”, se
manifesta na evidência de que é muito menos importante aí o que
dizer as palavras proferidas do que o modo pelo qual elas são
ditas (cf. Lévi-Strauss, 1971: 600-601). É neste plano que se pode
de fato isolar os dois mecanismos estruturais básicos de
funcionamento da operação ritual. De um lado, teríamos um processo
de “fragmentação” (“morcellement”):
“à l’intérieur des classes d’objets et des types de gestes,
le rituel distingue à l’infini et attribue des valeurs
discriminatives aux moindres nuances. Il ne s’intéresse à rien de
général, mais raffine au contraire sur les variétés et sous-
variétés de toutes les taxinomies...” (Lévi-Strauss, 1971: 601);

de outro a “repetição” (“répétition”):


“la même formule, ou des formules apparentées par la syntaxe
ou l’assonance, reviennent à intervales rapprochés, ne valent, si
179

l’ont peut dire, qu’a la douzaine; la même formule doit être


répetée un grand nombre de fois consécutives, ou bien encore, une
phrase où se concentre une maigre signification se trouve prise et
comme dissimulée entre deux empilages de formules toutes pareilles
mais vides de sens” (Lévi-Strauss, 1971: 602).

Embora estes dois mecanismos pareçam, à primeira vista,


opostos, é óbvio que eles são idênticos, na medida em que a
“fragmentação”, ao reduzir as diferenças a intervalos
infinitesimais, termina por abolir os afastamentos diferenciais
numa “quase-identidade”, obtendo portanto o mesmo efeito buscado
pela “repetição”. Em ambos os casos, tentar-se-ia então apagar os
intervalos e diferenças constitutivos dos seres e do mundo. Em
outros termos, e é aqui que se pode encontrar a essência do rito,
o ritual consiste numa operação lógica inversa àquela praticada
pelo pensamento mítico. Este, sabe-se, caracteriza-se como um
operador de “descontinuação”, de introdução de afastamentos
diferenciais numa realidade encarada primeiramente como
contínua19. E são exatamente estes afastamentos diferenciais,
manifestos geralmente sob a forma de oposições binárias, que

19 Não me preocuparei aqui com a crítica de Luc de Heusch, que


sustenta a existência de rituais “descontinuadores” (cf. Heusch,
1974: 233-234). Ainda que isto seja verdadeiro a respeito de
outros grupos, como os Nuer por ele citados como exemplo, não é
válido no que toca o Candomblé, onde mesmo o “afastamento” de
espíritos obsessores — de mortos — é apenas a conseqüência de
rituais de “reforço” da pessoa, que possuem, como tentarei mostrar
adiante, caráter nitidamente “continuísta”. Aliás, talvez isso
seja verdadeiro para todo “rito de separação”, que dependeria
então de uma continuidade estabelecida em outro plano mais
fundamental.
180

constituem a condição e a matéria-prima para a construção de todo


e qualquer conjunto significativo, pois o sentido, evidentemente,
exige a diferença.
No entanto, e está aqui o ponto crucial, parece claro que
esse mundo “pensado”, descontínuo e estável, está sempre defasado
em relação àquele “vivido”, marcado pela continuidade e pela
tensão transformadora. O ritual seria então neste sentido uma
satisfação última prestada pelo pensamento à vida, pois ele
tentaria — de modo sempre vão e fracassado, já que seu sucesso só
poderia implicar no congelamento da própria marcha do pensamento —
através de “fragmentações” e “repetições” que tendem ao infinito,
restaurar a continuidade perdida do vivido, no próprio plano do
pensado, extenuando-se num esforço tão vão quanto essencial.
Finalmente, é exatamente este seu caráter continuísta e
“obsessivo” que permite a tão decantada associação do ritual com
estados de tensão e angústia que, longe de o explicarem, parecem
antes derivar de seus mecanismos que, simultaneamente, apontam
para um objetivo e negam-se a alcançá-lo, gerando nesse processo
os estados psicológicos mencionados:
“Au total, l’opposition entre le rite et le mythe est celle
du vivre et du penser, et le rituel représente un abâtardissement
de la pensée consenti aux servitudes de la vie. Il ramène, ou
plutôt tente vainement de ramener les exigences de la première à
une valeur limite qu’il ne peut jamais atteindre: sinon la pensée
elle-même s’abolirait. Cette tentative éperdue, toujours vouée à
l’échec, pour rétablir la continuité d’un vécu démantelé sous
l’effet du schématisme que lui a substitué la spéculation mythique
constitue l’essence du rituel, et rend compte des caractères
distinctifs que les précédentes analyses lui ont reconnus” (Lévi-
Strauss, 1971: 603).
181

Como aplicar então este modelo analítico do rito de forma a


esclarecer o caso particular do ritual extático no Candomblé?
Constatando, em primeiro lugar, que a distinção entre uma
“mitologia explícita” e autônoma de um lado, e uma outra
“implícita”, ligada necessariamente ao desenrolar dos rituais, é
essencial não apenas para entender a verdadeira natureza do
sistema do Candomblé, como também para compreender alguns erros
teóricos cometidos a seu respeito. Pois, se este culto manifesta
em alto grau o segundo tipo de mitologia — implícita — o primeiro
só aparece nele de forma extremamente débil e não determinante. Os
mitos do Candomblé dificilmente poderiam ser considerados um
sistema autônomo e independente, do tipo daquele existente entre
as populações indígenas sul e norte-americanas. Eles parecem antes
formar uma espécie de recurso mnemotécnico (cf. Lévi-Strauss,
1976: 89-90) que serve como guia para o correto cumprimento de
todos os complicados detalhes dos rituais, sejam estes
sacrifícios, divinação, iniciação, ou possessão. Ou seja, e ao
contrário do que supõe Roger Bastide por exemplo, os mitos não
determinam, especialmente no Candomblé, os ritos, estando em vez
disto a eles subordinados e servindo basicamente para marcá-los e
conduzi-los de forma apropriada. Em outros termos, creio ser
possível dizer que aqui a questão da “eficácia simbólica”, ligada
obviamente aos rituais, é muito mais relevante do que o puro
182

exercício classificatório implicado no exercício do pensamento


mítico20.
Não é evidente, que não haja classificações no Candomblé —
elas existem e são bastante sofisticadas (cf. Lépine, 1978 para
uma descrição e uma análise desses sistemas). No entanto, é
preciso retomar a distinção levistraussiana, levantada mais acima,
entre sistema totêmico e sistema religioso. O primeiro, de ordem
metafórica e que opera através do estabelecimento de
correspondências entre sistemas de diferenças, parece estar em
nítida conexão com estruturas de classificação e com o pensamento
mítico, onde a questão básica é, sem dúvida, a da instauração e do
jogo dos afastamentos diferenciais essenciais para que o sentido
seja gerado. A religião, por outro lado e ao contrário, aparece
antes como situada no eixo metonímico do contato, visando
essencialmente abolir as diferenças postuladas no outro nível,
colocando-se então no reino do rito e de sua eficácia, que, como
acabamos de ver, é um mecanismo voltado para o estabelecimento de
continuidades. Nesse sentido, é fundamental frisar o caráter
essencialmente religioso do Candomblé, reconhecendo que as

20 Talvez este predomínio do ritual e da mitologia implícita sobre


o sistema mitológico explícito seja função do processo de
escravização que, como mostrou Bastide, destruindo a infra-
estrutura sociológica à qual um possível sistema totêmico estaria
ligado, determinou a passagem de toda a estrutura para um nível
“místico”. No entanto, é interessante lembrar que vários
africanistas têm observado o que eles denominam “vazio mitológico
africano”, a inexistência de sistemas míticos comparáveis aos
americanos. Neste sentido, talvez a África pudesse ser o
continente da religião, assim como a América é a “terra da
mitologia”, a Austrália a “pátria do totemismo”, etc.
183

diferenças só são aí postuladas para serem ultrapassadas, ou, ao


menos, para que se tente ultrapassá-las no processo ritual21.
De fato, toda a “mitologia explícita” do Candomblé parece
reduzir-se, no final das contas, à estória da separação entre o
Aiê e o Orum; outrora estes dois mundos seriam um só, e a passagem
entre ambos era constantemente efetuada, até que uma falta humana
provocou sua eterna disjunção, permanecendo os homens no Aiê, as
entidades espirituais no Orum (cf. para uma apresentação extensa
deste ponto: Lépine, 1978: 132; Woortman, 1977: 17-33; Elbein dos
Santos, 1977: passim). Ora, é justamente esta disjunção entre o
mundo humano e o divino que todos os rituais do Candomblé buscam
negar: o sacrifício, que implica a passagem de substância de um
domínio para o outro (cf. Elbein dos Santos, 1977); a iniciação,
que consiste na fixação de um duplo do Orixá sobre o Aiê (cf.
Lépine, 1978); a tradição do poste central nagô (cf. Bastide,
1973) ou da cajazeira gêge (cf. Barreto, 1977), que simbolizam a
união dos dois mundos; e, finalmente, o transe e a possessão, que,
durante um breve instante, necessariamente passageiro, suspende
todas as distâncias entre o Aiê e o Orum, fazendo com que os
Orixás encarnem nos homens e transmitam assim a estes alguma coisa
de sua essência divina.

21 Isto talvez explique o erro de Bastide, insistindo sobre a


existência de uma lógica da “participação” no Candomblé, e,
simultaneamente, o de Claude Lépine ao criticá-lo, postulando um
sistema de classificação totalmente descontinuísta. Na verdade
ambos erram o alvo porque confundem o sistema de classificação
propriamente dito (onde Lépine está certa) com a prática ritual
(onde Bastide tem toda a razão). Isto não invalida o fato de a
posição de Claude Lépine ser mais sólida, na medida em que é
evidente que não existe qualquer “pré-logismo” no Candomblé, mas
sim um sistema perfeitamente lógico sendo trabalhado por práticas
rituais.
184

5. A Possessão e a Construção Ritual da Pessoa no Candomblé

É necessário então articular agora, finalmente, possessão,


ritual e noção de pessoa, tal qual observados no universo do
Candomblé. Para fazê-lo, é preciso lembrar, em primeiro lugar, que
a lenta construção da pessoa neste sistema religioso é efetuada em
função de um complexo conjunto de rituais que se sucedem ao longo
de um amplo período de tempo. Cada um desses rituais, conforme foi
observado, tem por objetivo “fixar” um Orixá — que também é um
componente de sua “pessoa” — na cabeça do filho-de-santo, e, além
disso, e este ponto é essencial, dar-lhe o direito e o dever de
ser por ele possuído. Após vinte e um anos de obrigações, e com o
sétimo santo assentado, atinge-se um estado onde acontece uma
possível liberação dos constrangimentos do transe; atinge-se
igualmente a valorizada e desejada situação de tudo controlar,
tornando-se “senhor de si” (e de outros, poderíamos acrescentar).
Pôde-se então dizer acima que é apenas aos vinte e um anos “de
santo”, com seus sete Orixás (ao lado do Exu, do Erê e do Egum)
assentados, que a pessoa está realmente construída, já que é
apenas neste momento que seus múltiplos componentes encontram uma
certa estabilidade mais duradoura. E não é por acaso que
justamente nesse momento, a possessão possa cessar inteiramente de
se produzir, já que o transe apareceu como o instrumento, precário
e provisório, de um equilíbrio instável que é o da estrutura da
pessoa que o experimenta.
Neste sentido então, a realidade múltipla e “folheada” da
pessoa parece condenada a dar lugar a um ser uno e indiviso, o que
os leva a constatar a existência, neste nível, de um primeiro
movimento de “continuação”, operado por uma seqüência de rituais,
da iniciação (e, antes dela, a lavagem de contas e o Bori) à
185

obrigação de vinte e um anos, passando por todas as obrigações


intermediárias. A “pessoa” é postulada então como fragmentada, e
todo o esforço do sistema parece voltado para fundi-la numa grande
unidade. Este esforço está contudo, como todo esforço ritual,
votado ao fracasso. Os únicos seres verdadeiramente unitários são
os Orixás, no sentido de “Orixá geral” (e, ainda aqui, esta
formulação é apenas aproximada) e, para o homem atingir a unidade
equivaleria então evidentemente a divinizar-se integralmente. A
possibilidade de que isto ocorra é reconhecida pelo sistema de
crenças, na medida em que, num certo sentido, os Orixás foram
homens e, portanto, estes poderiam tornar-se Orixás. Toda a
“mitologia” de Xangô — o Orixá que mais claramente elevou-se de
uma condição humana para uma outra, divina — serve para marcar bem
este horizonte possível. No entanto, na vida real, esta “ascensão”
se vê sempre comprometida pelos acidentes do percurso, pela não-
observância das prescrições e proibições rituais, que, forçando
uma certa desagregação da pessoa, impedem a apoteose última desta,
devendo então os homens contentarem-se com a situação máxima de
tata, que oferece uma espécie de equivalente minorado da
metamorfose divina. Há aqui então, na relação entre possessão e
construção da pessoa, uma primeira ilusão de continuidade: a
pessoa, múltipla, busca unificar-se, mas este esforço tende sempre
a ser mal-sucedido, e ela deve terminar por se contentar com uma
solução de compromisso.
Por outro lado, no que toca à relação entre possessão e
ritual, uma outra ilusão de continuidade também parece operar. Ao
procurar trazer o Orixá à Terra, o mecanismo do transe repete,
como vimos, aquele do sacrifício. Este, sabe-se, opera provocando
uma continuidade entre a divindade e os homens, através de um
animal colocado como intermediário e que, ao ser abatido, deixa
aberto um canal para que a “graça divina” flua até o mundo humano
(cf. Lévi-Strauss, 1976: 256-262). Ora, a possessão não passa de
186

uma forma específica de comunicação através deste canal; de um


ponto de vista, portanto, mantém uma relação de complementaridade
com o sacrifício, na medida em que a iniciação — que torna
possível o transe “normal”, ou seja, comunicativo — consiste
justamente em sacrificar animais sobre o Ori do filho-de-santo
para que ele possa “receber” seu Orixá, “abrindo” portanto o canal
através do qual a comunicação homem/deus se efetuará22. Além
disto, este canal é precário, pois, sendo a descontinuidade
Aiê/Orum profunda e eterna, há sempre o risco de que ela se feche,
e é apenas a repetição indefinida dos ritos e a estrita
observância das regras e tabus que permitem a manutenção das
relações de comunicação entre os dois universos.
Mas existe também um outro aspecto nas relações entre
possessão e sacrifício, tal qual colocadas no Candomblé. Além de
sua complementaridade, ambos são, num outro eixo, suplementares.
Pois, se o sacrifício parece corresponder a um contato simbólico
com os deuses (na medida em que não são eles que se manifestam,
mas apenas sua “graça” que flui) provocado pela morte real de um
corpo ou outro (o animal sacrificado), a possessão parece antes
gerar um contato real com os deuses provocado pela morte simbólica
de um “espírito” próprio. Isto porque são os próprios deuses que
se manifestam, e para que isto se torne possível, é necessário
que, não o corpo, mas aquilo que o anima, se afaste, num movimento

22 Por isto é ilusório tentar estabelecer, como o fez Luc de


Heusch, uma oposição entre religiões baseadas na possessão (das
quais os cultos afro-brasileiros seriam um dos exemplos possíveis)
e aquelas construídas sobre o modelo do sacrifício (tipo que a
tradição judaico-cristã ilustraria). Ao contrário, ao menos no
caso do Candomblé, possessão e sacrifício constituem os dois
pilares interligados sobre os quais se sustenta toda a estrutura
religiosa.
187

semelhante ao que ocorre na morte, cedendo assim o espaço no qual


se encarnará o Orixá. Assim, a possessão é sacrifício, e o
vocabulário da iniciação, quando do noviço “morre” para renascer
como “cavalo-de-santo” se esclarece inteiramente. Esclarece-se
também — e isto é essencial — o motivo pelo qual devem os Orixás
possuir seus filhos. Pois, se em determinados cultos afro-
brasileiros, especialmente na Umbanda, as entidades espirituais
encarnam para “trabalhar” e dar conselhos, isto não é verdadeiro
para o Candomblé, onde os “trabalhos” (os rituais) devem ser
praticados pelo próprio fiel, consciente, e onde os Orixás não
costumam falar, a não ser muito pouco e muito raramente. Se
encararmos contudo o transe como sacrifício, poderemos perceber
seu sentido, e entender o que querem dizer os fiéis quando apontam
para as terríveis conseqüências, tanto para o “cavalo” quanto para
o mundo como um todo, no caso de a possessão não se processar
regularmente: o primeiro poderia “enlouquecer”, e o próprio mundo
ser aniquilado se a comunicação se interrompesse. Ora, Olivier
Herrenschmidt detectou, muito justamente, a existência de duas
concepções acerca do sacrifício: uma que o encara apenas como a
revivescência “simbólica” de um momento glorioso do passado
(“sacrifício simbólico”, tal como se processa no catolicismo e, de
forma mais nítida, no protestantismo da Reforma), e uma outra que
o situa como força essencial para a manutenção de um certo
equilíbrio do mundo, através da reciprocidade por ele estabelecida
entre o universo humano e o divino. É justamente esta concepção de
“sacrifício eficaz” que tem lugar no Candomblé, tanto no que se
refere ao sacrifício propriamente dito, quanto no que diz respeito
à possessão, que consiste numa manifestação desta eficácia ao
assegurar simultaneamente o equilíbrio provisório da pessoa
humana, no plano individual, e a comunicação e reciprocidade com
os Orixás, no plano cosmológico.
188

Sacrifício e possessão são pois, deste ponto de vista,


rituais que buscam incessantemente lançar uma ponte entre dois
universos irremediavelmente separados, já que sua separação é a
própria condição de existência da vida, tal qual a conhecemos.
Neste sentido, seus esforços são sempre vãos e devem contínua e
ininterruptamente ser retomados. É por isso que, falando
rigorosamente, a possessão não só jamais completa o que pretende,
como também nunca chega a completar-se a si própria. Porque, além
de não poder refundir, de modo perpétuo, o Aiê e o Orum, o modelo
nativo sustenta que não é jamais o Orixá como um todo que se
encarna (o “Orixá geral”), mas apenas uma “ínfima fração sua”;
caso contrário, nem o filho-de-santo que o recebe, nem o próprio
mundo poderiam suportar a infinita potência que sobre eles se
abateria, sendo imediatamente aniquilados. Isto, além de confirmar
a hipótese levantada acima acerca da dupla natureza, ao mesmo
tempo totêmica (em seu aspecto “geral”) e religiosa (em seu
aspecto de “qualidade específica”) do Orixá (e do próprio
Candomblé), aponta para um outro “fracasso” lógico contido na
operação do transe: além de não reunir Aiê e Orum, cuja distinção
significa a forma acabada da exigência de descontinuidade sem a
qual o próprio pensamento não pode funcionar, a possessão não pode
chegar jamais a fundir, ao menos completamente, homem e deus, já
que nela é apenas um pequeno fragmento deste último que se
manifesta.
Existem assim três “insucessos” estruturais no ritual da
possessão tal qual manifesto pelo sistema do Candomblé: um
sincrônico, que impede a fusão total entre homem e divindade;
outro diacrônico, que não permite a unificação total da pessoa
humana e sua conversão última em Orixá; e, finalmente, um terceiro
de ordem, poder-se-ia dizer, acrônica, já que antecede o próprio
sistema sendo sua condição de existência, e que mantém separados o
Aiê e o Orum, sustentando assim que o mundo terreno e o mundo
189

divino não podem jamais, a despeito de todos os esforços, chegar a


se confundir. O Candomblé parece então corresponder a uma
tentativa eterna, pois que sempre fracassada, que se esforça em
ligar estes domínios, e sua perenidade e resistência talvez
reflitam, em última instância, esta incapacidade radical de
justapor o pensado e o vivido, incapacidade que deixa como única
alternativa possível, soluções de compromisso e dedicação
integral. Estamos às voltas pois com uma religião, no sentido
estrito do termo, com um sistema que desenha um outro mundo, que
se esforça por tocá-lo, mas que só pode, na melhor das hipóteses,
tangenciá-lo: como numa miragem que, tocada, só pode desaparecer.
Não nos iludamos contudo. Os “fracassos” do Candomblé não
poderiam ser apontados como supostas provas da existência aí de
uma mentalidade “primitiva” ou “pré-lógica” que desconheceria as
leis fundamentais do pensamento lógico. Na verdade, tais fracassos
são lógicos, e estão relacionados tanto com a estrutura do
processo ritual, quanto com uma verdadeira ontologia presente no
sistema. Esta ontologia foi brilhantemente pressentida e esboçada
por Roger Bastide, que, nas três páginas mais importantes e
esclarecedoras jamais escritas sobre o Candomblé, demonstrou sua
estrutura básica (cf. Bastide, 1973: 371-373). Seria preciso
talvez reproduzir integralmente este texto, denominado, de forma
significativa, “A Concepção Africana da Personalidade”, para que
pudéssemos nos dar conta de sua profundidade, assim como de sua
beleza. Na impossibilidade de uma tal reprodução, deverei aqui me
contentar em resumir, de um modo que compromete inevitavelmente a
densidade do texto, suas idéias centrais.
Bastide demonstra aí que a concepção do Ser adotada pelo
Candomblé aproxima-se muito mais da ontologia medieval do que da
filosofia pós-crítica. Kant teria estabelecido de fato a
inexistência, entre o Ser e o Não-Ser, de estágios intermediários:
o Ser existe ou não existe, eis tudo. Os medievais, ao contrário,
190

admitiam a presença de intermediários entre esses dois extremos,


admitiam “uma escala de existências de graus do Ser. Existe-se
mais ou menos”. É esta em verdade a concepção central do
Candomblé: entre o Não-Ser do homem (não-iniciado) e o Ser pleno
dos Orixás, uma continuidade poderia ser imaginada e construída,
continuidade que seria percorrida por aqueles que, ingressando no
culto, passam por todos os rituais e aceitam todas as obrigações e
todos os tabus. O caminho entre o Ser e o Não-Ser é então uma
estrada aberta, cheia de idas e vindas, de perigos, que se
acentuam ao longo da caminhada. Pois se o cumprimento das
prescrições permite a passagem em um sentido, sua não observância,
as faltas e pecados históricos, ameaçam todo o sistema de
entropia, devolvendo ao Nada aquilo que Era. A possessão nada mais
é, consequentemente, do que o oferecimento, por um fugaz instante,
desta realização do Ser, e sem ela o próprio sistema deixaria de
operar.
Deste modo, se a oposição Ser/Não-Ser é a matriz básica a
partir da qual são geradas todas as oposições com que trabalham os
mitos — que não fazem mais do que traduzir, através de
afastamentos cada vez menores, esta cisão fundamental (cf. Lévi-
Strauss, 1971: 621), os ritos talvez se caracterizem por seu
turno, ao menos quando encarados do ponto de vista da possessão (e
também do sacrifício), como um esforço para ultrapassá-la também,
mas não mais através da redução progressiva da distância entre os
pólos em oposição, e sim tentando atravessá-la de um só golpe,
postulando um continuum que poderia conduzir de um extremo ao
outro, se o próprio esforço para superar este vazio não implicasse
já sua existência insuperável, tornando portanto impossível a
anulação do fato da oposição, e votando o rito a um trabalho
infinito, que só poderia cessar com o aniquilamento do pensamento
e da própria vida.
191

6. Conclusões

A título de conclusão, eu gostaria de retomar algumas


questões básicas que têm permeado os estudos afro-brasileiros, e
que, por serem freqüentemente mal colocadas, ou antes, por serem
colocadas sem que se leve em consideração a natureza e a estrutura
do sistema investigado, têm recebido algumas respostas bastante
insatisfatórias. O objetivo desta retomada não é, absolutamente,
esclarecer por completo essas questões — o que exigiria certamente
um outro trabalho inteiramente dedicado a isto — mas indicar de
que maneira a análise estrutural do sistema pode fornecer
sugestões para sua resolução.
Em primeiro lugar, vimos que os dois temas básicos que
articulam praticamente todas as explicações correntes a respeito
do transe extático são ora a questão da doença, ora a questão da
sociedade. No primeiro caso, a possessão é encarada seja como
enfermidade mesmo, seja como forma de tratamento “pré-médico” para
ela; no segundo, ela é vista tanto como mecanismo de reforço da
ordem social abrangente quanto como instrumento de sua inversão,
seja esta “simbólica” ou não.
Digamos de início que, apesar de suas divergências óbvias,
todas estas explicações são em parte verdadeiras, errando apenas
na medida em que tentam fazer de uma ligação contingente a causa
essencial do fenômeno estudado. Assim, é verdade que certas
doenças podem conduzir ao culto, que este fornece um meio para
controlar (de modo bastante eficaz, por vezes) algumas delas, e
que ele funciona como arena de manipulações sócio-políticas. No
entanto, tudo isso só é possível devido a características da
própria estrutura do sistema. Se admitirmos que a enfermidade pode
ser vivida como experiência de cisão da pessoa, poderemos talvez
compreender que a possessão, técnica simbólica de construção desta
192

unidade e de manutenção de um certo equilíbrio, possa estar


estruturalmente ligada a ela. Se admitirmos também que a
manipulação sócio-política (reversão de status, compensação,
ascensão simbólica, etc.) implica, de certo modo, num
estabelecimento de continuidades entre segmentos usualmente
descontínuos, poderemos então entender melhor que uma religião
estruturalmente voltada para a produção do continuum possa se
ligar a este tipo de realidade, e isto de várias maneiras
diferentes e, até mesmo, contraditórias entre si. Em outros
termos, parece haver uma espécie de aptidão estrutural da
possessão e do Candomblé em ligar-se a certos estados
“patológicos” ou “micro-políticos”, estados que não podem portanto
constituir a causa explicativa de nenhum dos dois, limitando-se a
ser fenômenos locais com os quais o culto, devido a pressões
externas e de ordem histórica, pode chegar a se agenciar.
Um outro tema clássico nos estudos afro-brasileiros fica
também melhor esclarecido ao adotarmos este ponto de vista. Pois,
ao invés de ver no “sincretismo religioso” uma pura incapacidade
de uma raça em absorver preceitos religiosos demasiadamente
abstratos (Nina Rodrigues), ou uma assimilação psicanalítica de
arquétipos inconscientes (Arthur Ramos, Roger Bastide), ou ainda,
a aceitação por parte do escravo da ideologia de uma classe
superior (Bastide novamente, bem como diversos autores
contemporâneos), conviria antes aceitar que um sistema assentado
na busca de uma continuidade possui um poder de flexibilidade e
uma capacidade de assimilação de novas realidades sensivelmente
superiores àqueles apresentados pelas estruturas mitológicas que
parecem “sofrer” muito mais ao se verem envolvidas com a história.
É isto que parece fazer, e eis outra questão tradicional,
que, com o passar do tempo, o Candomblé “africano” tenda a se
desenvolver no sentido de cultos mais “sincréticos”, dos quais a
Umbanda é o exemplo mais evidente. Pois neste tipo de culto há uma
193

espécie de hipertrofia do aspecto ritual do sistema matriz,


fazendo com que seu lado mais “mítico” ou “cosmológico” ceda
totalmente frente a um frenesi incontrolável de ritos e
manipulações simbólicas. Em outros termos, o desenvolvimento e o
predomínio progressivo da Umbanda podem ser entendidos como a
realização empírica de uma das virtualidades contidas no Candomblé
— virtualidade que corresponde justamente a seu aspecto
ritualístico já predominante, e mais resistente aos avanços da
história — realização que tem sua particularidade explicada por
uma espécie de retorno à infra-estrutura sociológica abrangente,
na procura de um contexto que pudesse fornecer oposições e
descontinuidades a serem trabalhadas e superadas pelo sistema,
oposições e descontinuidades que, no caso do Candomblé mais
“tradicional”, ainda são extraídas de uma estrutura mítica e
cosmológica de procedência, ao menos em parte, africana. Num tal
processo, o caráter ritual só poderia mesmo se acentuar ainda
mais, na medida em que a “perda” do nível inteligível (os sistemas
de classificação interiores ao culto) é como que compensada por
“concessões” cada vez mais explícitas ao vivido.
Finalmente, conviria voltar-se para a questão que pareceu,
por trás de todas as diferenças teóricas, funcionar como mola
propulsora dos chamados cultos afro-brasileiros. Pois, de Nina
Rodrigues aos autores contemporâneos, o que tem preocupado os
estudiosos das religiões de procedência africana no Brasil, é
basicamente o enigma de sua estranha permanência, da escravidão ao
Brasil industrial moderno. Onde seria preciso então buscar o
sentido da “sobrevivência” dessas práticas e dessas crenças,
estruturadas em sistemas tão elaborados, e dos quais só foi
possível aqui fornecer um esboço e analisar uma ínfima fração?
Certamente não do lado de uma pura sobrevivência de uma muito
antiga filosofia africana como ainda querem alguns (e isto ora num
sentido pejorativo, assinalando uma incapacidade “racial” para o
194

progresso, ora num tom de aprovação pela manutenção de uma herança


tradicional). Invertendo radicalmente esta postura, outros parecem
tentados a buscar as razões desta permanência na relação, sempre
atual, que o sistema manteria com estruturas sociais abrangentes e
determinantes — aquelas da sociedade brasileira.
O primeiro raciocínio peca por excesso de idealismo, supondo
uma inércia das instituições culturais que obviamente não pode
existir. Se o sistema permanece — e ele de fato permanece — isto
se deve antes, em parte, ao fato de que, como vimos, ele exprime
certas propriedades lógicas universais do pensamento humano, mas
também porque sua forma específica de atualizar estas propriedades
é congruente com um determinado contexto histórico e sociológico
particular.
Por outro lado, situar esta permanência do lado de uma pura
função desempenhada em benefício da sociedade abrangente, ou mesmo
de indivíduos isolados, é cometer o erre inverso e simétrico
àquele praticado pela perspectiva anterior; é supor que um sistema
funciona a despeito de sua estrutura; é não querer ver que, para
desempenhar determinada função, uma estrutura específica é
exigida.
Em outros termos, como demonstrou Pierre Smith a propósito
de um conjunto de crenças compartilhado por um grupo de populações
africanas, é absolutamente necessário distinguir um dispositivo
simbólico, que é primeira e fundamentalmente atualização do
pensamento, matriz de significações e de relações humanas, da
utilização ideológica que dele pode ser feito, para fins diversos
e freqüentemente opostos entre si, fins que devem contudo ser
compatíveis com a estrutura do próprio dispositivo (cf. CNRS,
1973: 488-490). Isto significa que, talvez, a permanência dos
cultos afro-brasileiros, seja sob sua forma mais tradicional, seja
sob suas modalidades mais “sincréticas”, especialmente demonstrada
pela estrutura do culto em relação a uma série de problemas
195

históricos concretos colocados pela nova realidade em que ele foi


inserido, problemas que deverão, um dia, ser cuidadosamente
analisados.
196

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