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(Antonio Paim) O Liberalismo Contemporâneo
(Antonio Paim) O Liberalismo Contemporâneo
O LIBERALISMO CONTEMPORÂNEO
3ª edição revista
Edições Humanidades
2007
2
SUMÁRIO
Apresentação da 3ª edição ………………………………………………………….
Apresentação da 2ª edição .........................................................................................
Apresentação da 1ª edição .........................................................................................
Notas ..........................................................................................................................
Notas.................................................................................................................................
DO MESMO AUTOR
Filosofia geral
Problemática do Culturalismo. Apresentação de Celina Junqueira. Rio de Janeiro,
Graficon, 1977, 69 p.; 2ª edição, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, 196p;
Modelos Éticos: introdução ao estudo da moral. São Paulo, Ibrasa-Champagnat, 1992,
113 p.;
Fundamentos da Moral Moderna. Curitiba, Ed. Champagnat, 1994, 244 p.;
Tratado de ética. Londrina, Edições Humanidades, 2003, 424 p.
Marxismo e descendência: uma avaliação. (a ser editado em Portugal)
Filosofia brasileira
História das idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo, Grijalbo/Edusp. 1967,276p. (prêmio
Instituto Nacional do Livro de Estudos Brasileiros - 1968): 2ª edição, São Paulo,
Grijalbo/Edusp, 1974, 431 p.: 3ª edição, São Paulo, Convívio/INL. 1984, 615 p. (Prêmio
Jabuti-85 de Ciências Humanas, concedido pela Câmara Brasileira do Livro); 4ª edição,
São Paulo, Convívio, 1987, X - 615 p.; 5ª edição, Londrina, Ed. da UEL - Universidade
Estadual de Londrina, 1997, 760 p.;
Estudos complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil.
Vol. I - Os intérpretes (3ª edição revista de O estudo do pensamento filosófico brasileiro,
1ª edição, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1979, 157 p.; 2ª edição, São Paulo,
Convívio -, 1985, 188 p.). Londrina, Editora da UEL, 1999, 236 p.
Vol. II - As filosofias nacionais. Apresentação de Antonio Braz Teixeira (inclui parte do
opúsculo Das filosofias nacionais, Lisboa, Universidade Nova Lisboa, 1991, 83
p.) - Londrina, Editora UEL, 1997, 172 p.
Vol. III- Etapas iniciais da filosofia brasileira (inclui o livro Cairu e o liberalismo
econômico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968, 118 p.). Londrina, Editora
da UEL, 1998, 272 p.
Vol. IV - A Escola Eclética. (Londrina, Editora da UEL, 1996, 415 p.). 2ª edição,
Londrina, Editora da UEL,1999, 386 p.
Vol. V - A Escola do Recife (3ª edição revista e ampliada de A filosofia da Escola do
Recife, 1ª edição, Rio de Janeiro, Saga, 1966, 217 p.; 2ª edição, São Paulo,
Convívio, 1981, 211 p.). Londrina, Editora da UEL, 1999, 252 p.
Vol. VI – A Escola Cientificista Brasileira. Londrina, Edições CEFIL, 2002, 168 p.
Vol. VII- A Filosofia Brasileira Contemporânea. Londrina,Edições CEFIL, 2000, 313 p.
Tobias Barreto na Cultura Brasileira: uma reavaliação. São Paulo, Grijalbo/Edusp,
1972, 201 p. (em colaboração com Paulo Mercadante);
Pombal na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Fundação Cultural
Brasil - Portugal, 1982, 137 p. (organizador);
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Filosofia política
A querela do estatismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978, 161p.; 2ª edição, revista:
A querela do estatismo. A natureza dos sistemas econômicos: o caso brasileiro. Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1994, 212p.(incluído na Biblioteca Básica Brasileira, do
Senado Federal);
Liberdade acadêmica e opção totalitária; um debate memorável. São Paulo, Artenova,
1979, 172 p.
A questão do socialismo, hoje. São Paulo, Convívio, 1981, 145 p.;
Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro. Brasília, Ed. da UnB, 1982,
coordenação juntamente com Vicente Barretto e autoria das seguintes unidades: III - A
discussão do Poder Moderador no Segundo Império, 65 p.; IV - Liberalismo,
Autoritarismo e Conservadorismo na República Velha, 50 p. (em colaboração com
Vicente Barretto); IX - O socialismo, 57 p.; XI - A opção totalitária, 80 p.; XII -
Correntes e Temas Políticos e Contemporâneos, 69 p. (em colaboração com Reynaldo
Barros); Estudo de caso - III - Partidos políticos e eleições após a Revolução de 30, 63
p.; versão em 13 vols., em forma de curso à distância. Rio de Janeiro, Universidade Gama
Filho, 1995;
Evolução Histórica do Liberalismo. Belo Horizonte, Itatiaia, 1987, 99p.; edição ampliada
em forma de Curso à Distância, Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho, 1977, 5 v. (em
colaboração com Francisco Martins de Souza; Ricardo Vélez Rodríguez e Ubiratan
Borges de Macedo);
Evolução do Pensamento Político Brasileiro. Belo Horizonte, Itatiaia-EDUSP, 1989, 463
p. (organizador em colaboração com Vicente Barretto);
Oliveira Viana de Corpo Inteiro. Londrina. CEFIL. 1989, 31 p.;
O liberalismo contemporâneo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1995, 238 p; 2ª. Edição
revista e aumentada. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2000, 272 p.;
A agenda teórica dos liberais brasileiros. São Paulo, Massao Ohno Editora/ Instituto
Tancredo Neves, 1997, 85 p. (Cadernos Liberais, 1)
História do liberalismo brasileiro. São Paulo, Mardarim, 1998, 305 p.
O liberalismo social: uma visão histórica. São Palo, Massao Ohno/Instituto Tancredo
Neves, 1998, 76 p. (Cadernos Liberais, 8; em colaboração com José Guilherme Merquior
e Gilberto de Melo Kujawski)
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Filosofia da educação
A Ciência na Universidade do Rio de Janeiro (1931/1945). Rio de Janeiro, IUPERJ, 1977,
161 p.; reedição revista: A UDF e a Idéia de Universidade. Rio de Janeiro. Tempo
Brasileiro, 1981, 144 p.;
Os novos caminhos da Universidade. Fortaleza, UFC, 1981, 75 p.;
O modelo de desenvolvimento tecnológico implantado pela Aeronáutica. Rio de Janeiro,
Instituto Histórico Cultural da Aeronáutica, 1987, 22 p.;
Leituras relacionadas á cultura geral. As diversas proposições relativas às humanidades.
Rio de Janeiro, Editora Exporessão e Cultura, 1999, 21 p.
Curso de Humanidades - História da Cultura; Política; Mora; Religião;Filosofia.
Diversas edições.. (Em colaboração com Leonardo Prota e Ricardo Vélez Rodríguez );
Bases e características da cultura ocidental. Rio de Janeiro, Ed. Expressão e Cultura, 1999,
175 p. (idem)
As grandes obras da política em seu contexto histórico. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura,
1999, 197 p (idem)
Educação para a cidadania. Rio de Janeiro, Ed. Exoressão e Cultura, Rio de Janeiro,1999,
235 p. (idem)
Cidadania: o que todo cidadão precisa saber. Rio de Janeiro, Ed. Expressão e Cultura, 1999,
175 p. (idem)
Curso de Humanidades. Programa. Londrina, Edições Humanidades, 2004,136 p. (idem)
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APRESENTAÇÃO DA 3ª EDIÇÃO
O fato de que tenha decidido efetivar uma nova edição de O liberalismo contemporâneo
prende-se à necessidade de introduzir correções que seriam imprescindíveis. Dizem respeito,
sobretudo, a mudanças na vida política contemporânea que têm obrigado os liberais a propor
uma nova agenda. Mas não se trata apenas disto. Algumas questões estavam mal formuladas.
Antes de mais nada, o tema dos sistemas eleitorais. Nas edições anteriores, não fui bem
sucedido na explicitação do essencial. Ao enfatizar o fato de que o sistema proporcional,
vigente na Europa Continental, não foi capaz de facultar estabilidade política, ao longo de
grande parte do século XX1, deixei de destacar que permitiram a organização de partidos
políticos, que a experiência sugere serem essenciais para a vigência do sistema democrático
representativo. E, mais importante: que esse resultado decorria da adoção generalizada do
voto numa lista pré-ordenada. Como esse tipo de votação é considerada aberrante no Brasil, o
livro revestia-se de defeito grave. Para saná-lo, introduzi as correções requeridas, no primeiro
capítulo, inclusive fazendo constar o correspondente modelo adotado na eleição européia.
Meu propósito consiste em deixar bem claro ser indevida a denominação, do modelo
brasileiro, de sistema proporcional. Como o Parlamento não se dispõe a alterá-lo, preservando
o voto em nome isolado, conviria que se introduzisse na Constituição a necessária correção.
Neste caso, competiria designá-lo diretamente como sistema eleitoral brasileiro, já que se
trata de excentricidade nacional.
Também o capítulo terceiro exigiu correções de idêntica índole. Na apresentação do
liberalismo doutrinário deixei de destacar que, ao eliminar as restrições ao Estado, presentes
na tradição inglesa (e na norte-americana, que se iniciava), essa vertente marcou em definitivo
o liberalismo francês. Decorre daí a incapacidade da França de reformar o Estado Social,
influindo de modo negativo sobre a Comunidade, no seio da qual dispõe de grande peso. Sem
dar esse passo, a Europa não completará a eliminação das conseqüências da estatização da
economia após a Segunda Guerra, a exemplo do que logrou a Inglaterra sob Margareth
Thatcher, patrimônio que o renovado Partido Trabalhista soube preservar. Um único exemplo:
a Inglaterra eliminou o desemprego, enquanto a Europa Continental não tem sido capaz
enfrentar o problema. Registrando a presença de 20 milhões de desempregados, cresce
permanentemente o número dos que se dispõem a reconhecer que a região encontra-se em
franca decadência.
As demais alterações decorreram da simples exigência de atualização. As mais relevantes
são destacadas adiante.
Alterei radicalmente a estrutura dos capítulos sexto e sétimo, devido ao fato de que a
Europa tenha não só reconhecido a profunda crise que afetava o seu modelo de seguridade
social, como venha sendo demonstrado, claramente, o fracasso das providências corretivas
então encetadas. Assim, pareceu-me mais adequado, num capítulo caracterizar o que
denominei de Momentos destacados do debate da questão social entre os liberais, e, no
subseqüente apresentar de maneira mais precisa os dois modelos de seguridade social vigentes
no Ocidente, um nos Estados Unidos e outro na Europa. Tornou-se patente a superioridade do
1
A França e a Alemanha tiveram que abandoná-lo. Em países menos populosos, seus efeitos devastadores têm se
reduzido após a estruturação da Comunidade. Talvez porque questões antes mobilizadoras.–a exemplo do déficit
público e das taxas de inflação – passaram a obedecer a regras obrigatórias para todos.
10
A. P.
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APRESENTAÇÃO DA 2ª EDIÇÃO
As principais modificações introduzidas nesta segunda edição consistem na
eliminação do capítulo nono – dedicado ao que então denominei de “tentação social
democrata” – e a significativa ampliação dos capítulos segundo e sétimo. No capítulo
segundo, estendi a Hayek a crítica que havia feito a Von Misses. Considero – e procuro
justificar essa convicção – ultrapassadas as suas propostas em matéria política, em que pese a
notável contribuição que proporcionaram à economia, no tocante ao funcionamento do
mercado. Procurei também apresentar especificamente o neoconservadorismo, cujas
contribuições muito aprecio.
que nada tinham a ver com os comunistas do Leste, em que pese buscassem apresentar-se
como socialistas). Além desse passo, Blair manteve intactas as reformas liberais do Partido
Conservador e empenha-se em desenvolver a previdência privada, iniciativa em relação à qual
ainda relutam, no continente europeu, os socialistas recém convertidos à social democracia,
para não mencionar Jospin e o PS Francês. Blair fala ainda em terceira via, movimento para o
qual quer atrair o Partido Democrata dos Estados Unidos, ao que suponho com a intenção de
livrar-se da velha Internacional Socialista, cujo núcleo fundamental não parece entender o que
se passa no mundo.
A.P.
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APRESENTAÇÃO DA 1ª EDIÇÃO
A tarefa mais importante com a qual se defronta a liderança brasileira consiste em
retomar os laços com o pensamento liberal dos principais países. Desde o seu nascedouro até
mais ou menos os anos trinta, mantivemos estreito contato com a temática e os autores
liberais destacados. A partir de então o ideário patrimonialista tradicional assumiu feição
socialista e ocupou todos os espaços e os postos relevantes da cultura. De seu largo
predomínio, durante cerca de meio século, resultou a virtual esterilização das mentalidades,
cujo patrimônio intelectual reduz-se hoje a meia dúzia de lugares comuns. Apanhados de
surpresa com o fim da experiência socialista européia, teimam em desconhecer a
obsolescência do marxismo. Assim, a linha de frente de nossa intelectualidade está
completamente perdida. voltada e devotada ao passado e às suas proposta ultrapassadas.
Somente o liberalismo tem algo a dizer à nossa juventude e às gerações do futuro.
Neste livro, passo em revista a obra dos principais autores liberais de nosso tempo,
grupando-os segundo as questões que me parecem mais relevantes. Embora considere que o
assunto deva merecer tratamento específico, cumprindo elaborar uma agenda liberal na se
estabeleça o nosso posicionamento claro em face das questões candentes da atualidade
brasileira, procurei orientar o debate na direção que permita desembocar naquela agenda.
Assim, ao tratar dos sistemas eleitorais, cuidei de desvendar o seu papel quando as tradições
culturais não favorecem as instituições do sistema representativo, como parecer ser o caso
brasileiro. No que se refere à educação, empenhei-me no sentido de fixar a singularidade do
modelo luso-brasileiro em face daqueles países que conseguiram constituir um sistema de
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Levando em conta que tem sido dada preferência à difusão no país, como
representativos do liberalismo, autores como Von Mises ou Hayek, trato de ressaltar que,
embora hajam contribuído para a compreensão da complexidade do mercado, evidenciando
ser ilusórias as pretensões de “aprimorá-lo” com ingerências burocráticas, a questão não se
reduz a proclamar as vantagens do capitalismo. Precedendo-a e condicionando-a, esbarramos
com os que os estudiosos de língua inglesa chamam de “cultura política” e prefiro denominar
de tradição cultural. Sem favorecer o pleno desabrochar de tradições mais afeiçoadas
liberalismo, o capitalismo não terá a sua vez no Brasil como não a encontrou até o presente. É
óbvio que devemos dar preferência a esse sistema que se revelou capaz de assegurar a
igualdade de oportunidades e invejável distribuição de renda, como demonstramos no texto.
mas, para chegar lá, é necessário deter-se no funcionamento das instituições do sistema
representativo, sistematicamente desfiguradas ao longo da República, e da chamada questão
social. Em vão buscar-se-á em Von Mises ou Hayek respostas a tais indagações. O primeiro
simplesmente condena os interesses, que constituem o cerne da representação política,
enquanto o segundo recusa frontalmente o sistema representativo. Parece-me mesmo que, em
matéria política, estariam mais próximos do tradicionalismo que do conservadorismo liberal.
Este, como vimos pela atuação de Margareth Thatcher ou Ronald Reagan, é autenticamente
revolucionário. O que Reagan fez para restaurar a eficácia dos principais programas do
Welfare americano (tema examinado no livro) revela com propriedade o sentido profundo do
conservadorismo liberal, do mesmo modo que os programas de democratização do
capitalismo patrocinados por Thatcher, ao enterrar a estatização da economia que só traz
benefícios a pequeno contingente enquistado na burocracia.
chamada questão social, graças à circunstância de que o capitalismo se tenha revelado capaz
de propiciar bem-estar material à maioria, ali onde teve condições de florescer, o que não é
evidentemente o nosso caso. A exemplo do que ocorreu em diversas partes do mundo, o
desafio diante do qual nos encontramos é o de transformar o liberalismo num movimento
pujante, apto a enterrar de vez a secular tradição contra-reformista, justamente o que nutre
hoje os remanescentes socialistas. O ódio ao lucro, ostentado por expressivos segmentos de
nossa intelectualidade, é muito anterior ao capitalismo. Em nossa cultura, é um fenômeno
cujo apogeu encontra-se no século XVIII, conforme procuro demonstrar nas reedições que
promovi. De sorte que a questão é eminentemente moral e não economicista.
Quero agradecer a alguns amigos que muito contribuíram no sentido de que pudesse
ter acesso à bibliografia contemporânea do liberalismo. Em primeiro lugar, Ubiratan Macedo,
que tendo permanecido vários anos nos Estados Unidos, em fins dos anos setenta e começos
da década de oitenta, conseguiu mapear as várias escolas. Em seu regresso, organizou um
círculo de estudos em sua casa onde, durante largo período, lemos e discutimos as principais
daquelas obras. Para manter-me atualizado, em seguida ao regresso de Ubiratan ao Brasil,
contei com a valiosa ajuda de Arthur Gerhardt Santos, personalidade destacada do mundo
cultural e político capixaba. Tendo que viajar com freqüência, ao exterior, por sua atividade
empresarial, organizou o contato com livreiros e instituições, graças ao que evitamos o
isolamento a que a política cambial dos sucessivos governos nos condenava, ao tratar simples
leitores como autênticos importadores.
CAPÍTULO PRIMEIRO
A DEMOCRATIZAÇÃO DO SUFRÁGIO
A democratização do sufrágio representou o grande desafio enfrentado pela doutrina
liberal ao longo do século XX e ainda corresponde a questão nuclear para países como o
Brasil, onde não se conseguiu consolidar as instituições do sistema representativo.
“freio fiscal”-, ambas louvando-se deste princípio: “O problema não consiste em duvidar que
as fórmulas keynesianas possam ser, em certas circunstâncias, particularmente eficazes, mas
em esclarecer que o emprego e o desenvolvimento das técnicas keynesianas têm modificado
progressivamente o universo econômico, em relação ao qual elas tinham sido concebidas, ao
ponto de que o que antes era eficaz, hoje é fator gerador de efeitos perversos cada vez mais
acentuados, e dos quais só podemos no liberar mediante um substituição completa de
instrumentos”. (2)
ensinamentos no livro Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Antes de ser editado, em
1690, circulou entre a elite, notadamente aquela que sofreu sucessivos exílios no continente.
William Pitt (1759/1806) era filho do Conde de Chatman, conhecido político que
tinha o mesmo nome. Concluiu sua formação humanista em Cambridge, aos 17 anos. Revelou
desde cedo grande interesse pela vida política do país e achava-se presente à sessão da
Câmara dos Lordes em que seu pai faleceu, na própria tribuna, enquanto discursava (1778).
Tinha 22 anos quando se elegeu para a Câmara dos Comuns. Seu primeiro discurso no
Parlamento revelou que se tratava de um jovem extremamente bem preparado para a vida
pública, a ponto de que o Primeiro Ministro da época (Lord North) haver registrado que fora o
melhor a que presenciara em sua atividade parlamentar. O jovem parlamentar teria
oportunidade de participar dos debates relacionados à Independência dos Estados Unidos,
propugnando pelo fim da beligerância.
Em fins daquele ano (1783), tendo o gabinete renunciado, o Rei Jorge III indica-o
para o cargo de Primeiro Ministro. A maioria receberia a indicação com uma grande
gargalhada o que não impediu a sua eleição mas praticamente paralisou o seu governo. As
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William Pitt ganhou sucessivas eleições e permaneceu no poder até 1801, isto é,
dezessete anos.
O curioso é que esse fato notável foi alcançado em que pese a Câmara dos Comuns
não haja acolhido o seu projeto de reforma, transformando-o em lei. Além do projeto de 1783,
antes referido, voltaria à carga, animado pelos resultados eleitorais alcançados em março de
1784. Gozando de inconteste prestígio nos mais amplos círculos do país, acreditava que
venceria a resistência, na Câmara, dos que seriam diretamente afetados. A nova proposição
consistia em extinguir a representação de 37 localidades que não tinham qualquer
representatividade e ampliar a base territorial de outras, de modo a dispor de mais 34 lugares.
As 71 cadeiras daí resultantes seriam distribuídas naquelas regiões em que a população
registrava crescimento.
Apesar de advertido de que, se não fechasse a questão – fazendo com que a votação
equivalesse a um voto de confiança –, Pitt recusou o alvitre e foi derrotado. A proposição
obteve 174 votos enquanto 248 representantes votaram contra. Grande número deixou de
comparecer à votação, quase um terço, porquanto a Câmara era integrada por 600 deputados,
enquanto votaram apenas 422.
2
Vigorava a doutrina chamada mercantilismo, segundo a qual os ganhos do país advinham do comércio, razão
pela qual deveria ser controlado de perto pelo Estado.
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Assim, ainda que a reforma preconizada por Pitt acabasse sendo postergada até 1832,
nos decênios posteriores à sua saída do governo a interferência dos reis no governo é
efetivamente reduzida.
Desde então, Pitt passa a atribuir prioridade á luta contra a França. Entre março e
outubro desse mesmo ano (1793), consegue promover coalizão militar integrada pela Rússia,
Prússia, Áustria, Espanha, Portugal e diversos principados germânicos. A coalizão sofreu
diversas derrotas em 1794 e a Inglaterra preparou-se para o prolongado conflito que de fato
ocorreria. Os impostos elevaram-se brutalmente mas ainda assim o país enfrentava déficits
sucessivos.
3
Justamente essa circunstância é que levaria Edmund Burke (1729/1797) a escrever Reflexões sobre a revolução
na França (1790), texto que viria a tomar-se clássico.
24
Visitando o país nos anos de 1831 e 1832, de que se valeu para escrever o clássico A
democracia na América (1835-1840), Alexis de Tocqueville (1805-1859) observa a
inexistência de grandes disparidades sociais. A parcela dominante da população era
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O problema capaz de ferir de morte esse sistema, como bem entrevira Tocqueville,
era a escravidão. Assim, embora fizesse questão de enfatizar a temeridade das prospecções
quanto ao futuro, avançaria a seguinte advertência: “... sejam quais forem os esforços dos
sulinos para conservar a escravidão, não o conseguirão para sempre. A escravidão, encerrada
num só ponto do globo, atacada como injusta pelo cristianismo, como funesta pela economia
política: a escravidão, em meio à liberdade democrática e às luzes da nossa época, não é de
forma alguma uma instituição que possa durar. Em ambos os casos necessário se faz esperar
grandes infortúnios. Se a liberdade for recusada aos negros do Sul, eles acabarão por tomá-la
violentamente pelos seus próprios esforços; se lhes for concedida, não tardarão a abusar dela”.
A abolição representou um duro teste para o sistema eleitoral. No Sul, toda sorte de
manobra seria mobilizada a fim de impedir o exercício do direito de voto pelos negros. A
alegação é de que constituiriam, por todo o Sul, câmaras e governos exclusivos. A realidade
do período da reconstrução mostrou que os receios eram infundados. Os negros não ganharam
eleições para os executivos estaduais; elegeram dois senadores e alguns deputados para o
Congresso federal, vindo a obter maioria numa única assembléia estadual. Muitos emigraram
para o Norte e trataram de conquistar espaços da mesma forma como o comum dos
empreendedores americanos. A prosperidade geral incumbiu-se de sanar as feridas da guerra.
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Estudiosos consideram que, nesse último período, teria aumentado a diferença entre
os que disporiam do direito de voto e os que o exerciam. Nas eleições de 1960, 1964 e 1968,
os votantes correspondiam entre 61 a 63% do eleitorado potencial, percentual que passa a
oscilar de 55 a 53% nas eleições de 1972, 1976, 1980 e 1984. Outros entendem que esse tipo
de especulação não refletiria a realidade da vida americana, levando-se em conta que,
concluído o ciclo de imigração intensiva e de assimilação cultural das novas gerações de
emigrantes (através sobretudo do ensino básico obrigatório, que atinge virtualmente o total da
população na idade correspondente), o coeficiente dos que exercem o direito de voto, nas
eleições presidenciais, mantém-se equilibrado em torno de 40% da população.
presidenciais de 1912, 1920 e 1932, oscilaram pouco acima de 900 mil votos, anos eleitorais
em que os Partidos Republicano e Democrata obtiveram, respectivamente 3,5 e 6,3 milhões;
16,1 e 9,1 milhões; e 15,8 e 22,8 ,milhões. Os socialistas não conseguiram, pois firmar-se
como força autônoma. Desde os anos trinta, entretanto, considera-se que venham
conquistando ascendência crescente no Partido Democrata, a ponto de que o termo liberal,
com que se designavam (por oposição a conservative, como se dá na Inglaterra), haja passado
a se constituir numa espécie de sinônimo de socialista. O mais adequado seria traduzi-lo por
social-democrata. As administrações democratas, desde aquela década, trataram de interferir
na vida econômica do país, introduzindo sucessivos regulamentos, ao arrepio da tradição
nacional. Os republicanos desmontaram peça por peça esse sistema, notadamente nos anos
oitenta.
nacional quebrada pela ocupação alemã na Segunda Guerra), pelo menos não atuaram no
sentido de contrapor-se às tradições culturais que se revelam desfavoráveis à coexistência
democrática. É sintomático que dois desses países (França e Alemanha) hajam mudado o
curso de sua história em seguida à introdução do sistema distrital, que certamente não atuou
sozinho mas eliminou o foco da instabilidade que por sua vez atuava como exacerbadora das
circunstâncias desfavoráveis ao sistema inglês como do norte-americano. Ainda assim os
sistemas eleitorais deste pós-guerra, alemão e francês, preservam o caráter daqueles no que se
refere à aproximação permanente entre representante e representado, bem como no que
respeita ao afunilamento dos interesses.
Volta, então, a Constituição de Cádiz a influir em nosso quadro legal nas eleições
para os Deputados às Cortes de Lisboa, com o complexo processo eleitoral, em quatro graus,
ali previstos para designação dos “Deputados de Cortes”, celebrar-se-iam segundo seus
capítulos II e III, “juntas electorales de paroquia, de partido e de província”, as primeiras se
comporiam “de todos os cidadão avizinhados e residentes no território da paróquia respectiva,
entre os que se compreendem os eclesiásticos seculares”; a junta paroquial elegeria “a
pluralidade de votos, onze compromissários, para que estes nomeassem o eleitor paroquial”;
as “juntas eleitorais de partidos” se comporiam dos eleitores paroquiais que nomeariam “o
eleitor ou eleitores” que concorreriam à capital de província para eleger os deputados de
Cortes.
do Estado Novo, a partir das eleições de 1945. Logo tornou-se patente que era impeditivo da
formação de partidos políticos. Apesar disto, as lideranças resolveram insistir, levando o país
à Revolução de março de 64 e à permanência dos militares no poder por vinte anos. Em certas
circunstâncias, como se indicará, o sistema proporcional gera instabilidade política, ao
dificultar a formação de maiorias estáveis. Contudo, tal desfecho não se dá de forma absoluta,
conforme a experiência o comprova. Em contrapartida, sem partidos políticos estáveis o país
tornar-se-á ingovernável, de forma inelutável.
O último governo militar tentou alterar o sistema eleitoral vigente. Essa tentativa
fracassou graças à forma obtusa como foi apresentada a alternativa. A idéia seria copiar o
sistema eleitoral misto, existente na Alemanha. Foi entretanto denominado de sistema
distrital misto, revelando-se de impossível regulamentação. O mais conhecido jornalista
desse período (Carlos Castelo Branco) teria oportunidade de batizá-lo de “distrito da
confusão”.
Segue-se o modelo de cédula eleitoral adotado nas eleições européias, nos países
onde vigora o sistema proporcional.
34
por fábricas industriais). Vale dizer: que comprovassem ter noção clara do seu interesse
próprio e não se tratava de segmento disponível para manipulação por terceiros.
Se levarmos em conta que, na Europa continental, teve precedência a questão do
sufrágio universal (como era entendido na época, sem incluir as mulheres), ver-se-á que a
motivação é bem diversa da suposição antes referida. A Constituição francesa de 1848
introduziu tal disposição, graças à qual o eleitorado passou a corresponder entre 35 e 40% da
população maior de 21 anos. Na Inglaterra, tal caminho seria percorrido progressivamente. As
reformas dos anos sessenta e setenta elevam esse contingente para 16,4% (nas eleições de
1868) e 18% nas de 1883. A divisão do país em distritos eleitorais de importância análoga,
elegendo cada um deles um deputado, aprovada em 1884, significava a abolição da exigência
de renda e irá refletir-se nas eleições de 1886, quando o direito de voto é atribuído a 28,5%
dos maiores de idade. Equivalendo a 30% no pleito de 1914, mostra que o processo, iniciado
em 1832, exigiu nada menos que oitenta anos.
Qual foi ao resultado da introdução do sufragio universal, na França, de modo abrupto e
sem etapas prévias?. Nas eleições de dezembro do mesmo ano (1848), elegeu-se Presidente da
República a Luís Bonaparte. Logo adiante, em 1852, através de dois sucessivos plebiscitos,
convocados depois de haver dissolvido a Assembléia, Bonaparte conseguiu apoio popular
para proclamar-se Consul (personagem dotado de poderes absolutos, denominação surgida
durante a Revolução Francesa, inspirada na Roma Antiga) e depois Imperador, fazendo com
que o país regressasse à monarquia absoluta. Vê-se, pois, que a inspiração continental,
tomando-se o exemplo da França, nada tinha de democrática (assegurar a representação das
minorias). E, ao mesmo tempo dava razão aos ingleses que durante muito tempo alegaram que
a expansão do direito de voto –sem associá-la a grupos sociais concretos, com vistas a ampliar
a faixa dos interesses com acesso à representação política-- poderia estimular o Monarca à
busca da reconquista dos poderes de que o Parlamento o havia privado.
3.. A experiência francesa
O encontro de mecanismos capazes de permitir que o processo eleitoral não se
constitua em fonte permanente de instabilidade política - mas seja, ao contrário, o instrumento
adequado para assegurar as reforma favorecedoras do progresso material - foi extremamente
dilatado na França. A rigor, somente ocorreria no último pós-guerra, em decorrência da
implantação da chamada V República, ocorrida em 1958. A III República, embora haja
conseguido exorcizar os fantasmas do golpe de Estado e da restauração monárquica, não
logrou a estabilidade política, já que o sistema eleitoral não permitia a formação de maiorias
sólidas. Durou de 1870 a julho de 1940, quando o país foi derrotado pelos alemães durante a
36
Segunda Guerra, organizando-se o regime de Vichy (julho de 1940 a abril de 1945), cuja
autoridade estava limitada a uma parte do território francês, desde que grande parcela,
abrangendo Paris, achava-se sob ocupação alemã. A IV República, organizada em 1945 com a
vitória final sobre a Alemanha, retoma o ciclo anterior de instabilidade, ensejando o desfecho
de 1958.
A Segunda República durou apenas quatro anos. Em 1852, Luís Bonaparte obteve o
apoio da população, através de plebiscito, para introduzir o sistema monárquico. Nos
primeiros oito anos de seu novo governo, perseguiu ferozmente os liberais, restaurando
virtualmente o absolutismo. Ao longo da década de sessenta, restabelece sucessivamente as
franquias democráticas, o que permitiu a vitória liberal nas eleições de 1869 e a volta do
regime parlamentar. Mas a isto logo se seguiria um novo começo, justamente o da III
República, tornada possível graças à derrota de Luís Bonaparte na guerra franco-prussiana,
ocorrida em 1870.
sua vontade aos demais, esmagando toda oposição pela violência. Nutria-se da tese, posta em
circulação por Rousseau, da existência de uma “vontade geral”, o que pressupunha a
emergência de um grupo de “puros”, habilitados a interpretá-la. Não se tratava, portanto, de
instaurar uma verdadeira vida democrática.
bandeira do que passou á história com o nome revanchismo, em torno da qual dar-se-ia a
polarização dos segmentos autoritários.
O “affaire” arrasta-se ainda durante anos e somente em 1906 Dreyfus foi reabilitado
por uma decisão da Câmara dos Deputados. O envolvimento de intelectuais de renome, como
Émile Zola, em sua defesa, determinou que toda a Nação se posicionasse. Católicos,
monarquistas e nacionalistas tomaram partido contra o oficial injustamente condenado.
Considerando que a República estava em perigo constituiu-se a denominada “União da
Esquerdas”, como bloco eleitoral, ao qual agregam-se os radicais (liberais).
O problema maior de toda essa situação consistia no fato de que, dadas as condições
vigentes na Europa, por mais que o militarismo estivesse associado às correntes autoritárias, o
imperativo da defesa não podia ser contestado. Tendo ascendido ao trono em 1888, Guilherme
II prescindiu dos serviços de Bismarck, mas deu continuidade à política de assegurar a
hegemonia alemã mediante a chamada Tríplice Aliança, que reunia Alemanha, Áustria-
Hungria e Itália. Seus exércitos expandiam-se sem cessar. A França perdera para a Alemanha
com a derrota de 1870, o território da Alsácia-Lorena, compreendendo as cidades de
Estrasburgo e Metz, além de ter pago pesadas indenizações. O clima não favorecia a que
problemas desse tipo fossem solucionados mediante negociações. A Alemanha desejava
também obter colônias na África e em outras partes do mundo, ameaçando os interesses
ingleses. Formou-se então a Tríplice Entente, integrada pela Rússia, França e Inglaterra. A
paz armada estava destinada a corresponder à ante-sala do conflito.
41
bélica alemã localizada no Ruhr. Sem o apoio inglês para tal iniciativa e diante da relutância
dos alemães em pagar as indenizações em 1923 a França ocupou militarmente o Ruhr.
Para opor-se a essa linha belicista, formou-se o denominado Cartel das Esquerdas,
que, entre outras coisas, preconizava o apoio à República Alemã (a chamada República de
Weimar). O Cartel alcançou expressiva votação nas eleições de 1924, mas só conseguiu
formar o Gabinete com o apoio dos radicais. Em 1926, estes retiram-lhes a sustentação,
voltando ao poder os conservadores. A coalizão conservadora alcança maioria nas eleições de
1928, mas só se mantém no poder até o ano seguinte. Entre a queda dos conservadores, em
1929, e a formação do governo da Frente Popular, em junho de 1936 - chefiado por Léon
Blum (1872/1959), líder do Partido Socialista -, isto é, no período de sete anos, a França teve
nada menos que vinte gabinetes, média de três por ano.
Desde a eleição de Léon Blum para formar o gabinete em dezembro de 1946, após o
novo ordenamento institucional, até a crise de maio de 1958, quando a Assembléia entrega o
poder ao General De Gaulle, passam pelo poder nada menos que 22 gabinetes (média de dois
por ano). As dificuldades para superar as crises ministeriais acentuavam-se. Ao governo que
durou de junho a setembro de 1957, seguiram-se 36 dias com o poder vago. O gabinete que
subiu em dezembro daquele ano caiu em abril do ano seguinte. O substituto agüentou 15 dias.
Como nos ciclos anteriores, os inimigos do sistema representativo ocupavam a cena. O
movimento de extrema-direita, denominado “poujadismo”, cuja bandeira principal era a
denúncia do parlamentarismo e a adoção de “regime forte”, obteve 2,5 milhões de votos em
1957.
A V República enfrentou uma séria crise com a revolta estudantil de maio de 1968,
que contou com a adesão das organizações sindicais de trabalhadores. Choques armados
tiveram lugar ao longo do mês, chegando o Governo a um acordo com os sindicatos no dia 27.
Isolados, os estudantes renunciam aos seus propósitos. A Nação supunha estivesse eliminada
a hipótese de tomada do poder pela força, resultando a revolta da pregação de ultra-esquerda,
capitaneada por intelectuais sem consciência de suas responsabilidades sociais. Os comunistas
procuraram eximir-se do seu patrocínio. Mas a população não parece ter acreditado nessa
afirmativa, seguindo-se, desde então, o declínio eleitoral do Partido Comunista, que
despontara no pós-guerra como a grande facção do futuro.
totalitária, obtendo 292 cadeiras (63% do total). Os comunistas elegem 34 deputados (7,3% da
Assembléia).
Desde as eleições de 1995 a França enfrenta um impasse crescente que não encontra
solução nos marcos do Estado de Direito. Embora envolva questões que serão abordadas
especificamente – em especial a crise do chamado “modelo social”, isto é, do sistema de
seguridade social –trata-se do seguinte: decisões da maioria parlamentar não conseguem ser
implementadas. Na prática, os socialistas somente reconhecem legitimidade à sua própria
maioria. É uma situação que não tem sido enfrentada como tal embora prenuncie uma crise
semelhante à da década de cinquenta, quando a entrega do poder a De Gaulle extravasou
nitidamente os marcos constitucionais.
47
Trata-se de uma questão que não será resolvida nos marcos do sistema eleitoral. As
reformas introduzidas por De Gaule têm permitido a formação de maiorias aptas a governar,
pondo fim às crises do longo ciclo de vigência do sistema proporcional. O problema é que, na
prática, os socialistas não aceitam alternância no poder. Neste particular, as eleições de 2007
servirão de teste, já que a coalizão liberal derrotou fragorosamente o Partido Socialista.
Quando a Assembléia se reuniu, o país mal saíra da guerra civil. E ainda que a
maioria esmagadora da população tivesse feito uma opção clara pela convivência
democrática, os comunistas não se tinham desmobilizado e continuavam pregando soluções
de força, se bem que participando das eleições. Mas o dispositivo acabaria beneficiando os
nazistas, facilitando o seu trânsito para o totalitarismo.
A Assembléia Nacional também seria eleita por voto direto, sendo de quatro anos o
mandato de seus membros, distribuídas as cadeiras pelo sistema proporcional. Essa
preferência seria desastrosa para a República de Weimar, desde que impediu o
estabelecimento de linhas nítidas. Para manter-se no poder os governos eram levados a fazer
51
concessões que terminavam por impedir que correspondessem a opções claras. As questões
eram muito candentes – reparações e revanchismo francês nutrindo os nacionalistas
extremados, de um lado, e, de outro, a ameaça permanente de insurreições comunistas,
fazendo com que os nazistas ganhassem força entre os nacionalistas – mas havia condições de
fazer valer opções liberais, consoante a experiência evidenciaria e indicaremos, se o sistema
eleitoral favorecesse o afunilamento dos interesses.
Comunistas 2
Socialistas independentes 18
Sociais-democratas 22
Centro 14
Democratas 8
Partido Popular 14
Nacionalistas 15
Outros 3
Total 100
O Partido Popular contava com uma ala devotada à organização liberal do Estado e
ao capitalismo no plano econômico, embora em seu seio convivessem facções sem maiores
compromissos com a República e suas instituições.
A República enfrentou uma grave crise em 1923, quando esteve a ponto de sucumbir.
nega qualquer validade ao keynesianismo, embora seja opinião consensual que salvou então o
capitalismo e preservou eficácia até os anos setenta.
1924 (em %)
Maio Dezembro
Coalizão de Weimar 49 56
Sociais-Democratas 21 26
Centro (católico) 13 14
Democratas 6 6
Partido Popular 9 10
Autoritários e Totalitários 42 37
Partido Popular da Bavária 3 4
Nacionalistas 20 21
Nacional-socialistas 7 3
55
Comunistas 12 9
Outros 9 7
Total 100 100
Autoritários e Totalitários 30
Total 100
Liderado pelo Centro (católico), o governo tentou fazer passar cortes no orçamento,
em prol do equilíbrio, às custas do seguro-desemprego – que assumira vulto significativo –
seguindo assim a ortodoxia. Como não podia deixar de ser, os sociais-democratas opõem-se
vigorosamente e derrubam o gabinete (Müller; março de 1930). Hindenburg indica para
formar o novo governo outro líder do Centro (Heinrich Bruning), que, entretanto, não se
revelou afinado com o ponto nevrálgico da coalizão, que era a manutenção do sistema
democrático. Bruning recorreu aos poderes de emergência de que o Presidente dispunha e
promulgou o orçamento por decreto, ignorando o Parlamento (julho). Em setembro dissolveu
a Assembléia, realizando eleições nesse mesmo mês. A bandeira da intervenção econômica
para debelar a crise, tratando expressamente de minorar e eliminar o desemprego, preservadas
as instituições do sistema representativo, que era o cerne da proposta keynesiana, não
apareceu no cenário político. O intervencionismo tornou-se sinônimo de governo autoritário,
de que souberam beneficiar-se os inimigos da República.
Nas eleições indicadas (setembro, 1930), a “coalizão de Weimar” obtém apenas 46%
das cadeiras. Os agrupamentos totalitários e autoritários conseguem 41% dos votos, sendo de
57
a presença de Konrad Adenauer (1876/1967) à frente do governo durante treze anos (1949-
1963) serviu para desarmar prevenções ao Ocidente, tendo conseguido eliminá-las
integralmente junto a De Gaulle e outros estadistas ocidentais. Em 1955, a República Federal
Alemã foi reconhecida como Estado soberano, tornando-se membro da NATO.
Nas primeiras eleições (agosto, 1949), votaram 23,7 milhões (47,4% da população,
então estimada em 50 milhões), obtendo a coalizão liderada por Adenauer (mais tarde
denominada de União Democrata Cristã – CDU) 31% dos votos (7,4 milhões) e o Partido
Social Democrata 29,2% (6,9 milhões). Além destes, oito partidos obtiveram lugares no
Parlamento. Adenauer conseguiu maioria precária, que lograria ampliar sucessivamente,
graças ao êxito de sua política. Ainda assim, foram as reformas eleitorais posteriores que
eliminaram a dispersão. Dentre estas, a mais importante consistiu em suprimir a representação
das agremiações que obtivessem menos de 5% dos votos.
Nas eleições de 1957, os pequenos partidos ainda carrearam 10% dos votos. Desde
então, nas eleições de 1976, quando votaram 37,8 milhões (61% da população estimada em
61,5 milhões) mantêm representação parlamentar apenas quatro partidos, consoante se indica
adiante:
Os dois partidos cristãos pretendem inovar em relação ao antigo Centro, desde que
não mantêm qualquer vinculação com igrejas, dispondo de uma plataforma governamental
ligada à economia de mercado e ao bem-estar social. No que se refere à política externa, os
dois grandes partidos atuam conjuntamente, desde os começos dos anos sessenta, sem o que a
política conduzente à unificação econômica da Europa, liderada pela Alemanha, não teria
alcançado credibilidade. O Partido Liberal Democrata pretende ser o herdeiro das
agremiações liberais existentes na República de Weimar.
Alguns estudiosos acreditam que também haja contribuído para a estabilidade dos
governos alemães deste pós-guerra o dispositivo da Constituição da República Federal que
exige tenha o voto de censura cunho “construtivo”, assim expresso. “O Bundestag só poderá
manifestar a sua falta de confiança no chanceler Federal mediante a eleição do seu sucessor
apoiado pela maioria dos seus membros, e desde que simultaneamente advirta o Presidente
Federal da oportunidade dessa demissão. O Presidente Federal deverá deferir o requerimento
e nomear a pessoa eleita” (art. 67; Par. 1).
Assim, ainda que hajam sido investidas somas colossais, decorridos três lustros
permanecem os desníveis de renda entre as antigas zonas ocidental e oriental.
sem precedentes: obteve a anuência dos sindicatos para reformar o sistema de aposentadorias
e promover a transição para o modelo dos Fundos de Pensões.
neste pós-guerra, é a de que o país renunciou a esse objetivo, consoante teremos oportunidade
de indicar expressamente.
A Itália unificada adotaria,acabou por adotar o sistema eleitoral, com base na lista
partidária hierarquizada, em conformidade com o modelo adotado sucessivamente no
Continente. A partir da década de oitenta, emerge o empenho de democratizar o sufrágio,
aproximando-o sucessivamente da universalização (compreendendo a população masculina).
Na primeira dessas reformas, levada a cabo em 1881-82, franqueou-se o direito de voto aos
que dispusessem de certificado de conclusão de qualquer curso e/ou pagassem qualquer taxa,
fixando-se o limite desta em forma simbólica. O eleitorado ampliou-se de 500 mil para 2
milhões.
empolgado por uma facção radical, iria contribuir para a aglutinação dos conservadores e a
desmoralização do sistema liberal, preparando a ascensão do fascismo.
Nos fins do século seria intentada uma reforma constitucional destinada a retirar do
Parlamento o poder de derrocar os governos. A manobra fracassou, mas abalou
significativamente o prestígio da representação parlamentar. Em 1898, com a morte do Rei
Humberto, que sucedera ao monarca da época da unificação (Vitor Emanuel II), sobe ao trono
Vitor Emanuel III (1869/1947), que desestimula a insistência na mencionada reforma,
conformando-se à situação de monarca constitucional, em regime parlamentar. Estaria à frente
do trono nas duas guerras mundiais, tendo optado por apoiar o regime fascista, o que selou a
sorte da monarquia. Foi obrigado a abdicar em 1946.
Nas fileiras liberais, cresce o Partido Republicano, aparecendo também uma ala
radical que busca aproximar-se dos socialistas. A sociedade tende a dividir-se
irremediavelmente entre agrupamentos reformistas e revolucionários, que ainda se mantêm
relativamente unidos, e os elementos conservadores capitaneados pelos católicos.
A guerra iria promover uma nova polarização. Em grande número os radicais passam
a apoiar o esforço de guerra. Mussolini rompe com o Partido Socialista e funda um novo
jornal, Il Popolo d’Italia. Formando inicialmente na tríplice aliança (com Alemanha e
Áustria), a Itália opta pela neutralidade. Um ano depois alia-se à França e à Inglaterra.
O Partido Fascista figura pela primeira vez no Parlamento (35 deputados). Mas ainda
não aglutina os conservadores, que dispõem de suas próprias organizações, como o Partido
Nacionalista (10 cadeiras).
O país está à beira da guerra civil. O Partido Fascista enfrenta nas ruas os socialistas
e dissolve suas manifestações. Aproveitando o fracasso da greve geral, convocada pelos
socialistas em julho de 1922, os fascistas ocupam a administração em diversas cidades. Em
outubro realizam a famosa marcha sobre Roma e assumem o poder. O Rei designa Mussolini
como Primeiro Ministro.
65
Em maio de 1928, estabeleceu-se que 400 das 535 cadeiras do Parlamento (75%)
seriam preenchidas por pessoas escolhidas pelas 13 corporações. Estas deveriam compor as
listas, submetidas a referendo popular, que teve lugar em 1929 e 1934. A oposição estava
virtualmente esmagada. Os partidos chamados antinacionais (Socialista, Comunista, Radical e
Republicano) haviam sido proibidos em fins de 1926.
Mussolini tinha um grande orgulho da estrutura corporativa que havia criado e estava
convencido de que representava, simultaneamente, uma alternativa para o sistema
representativo e para o sistema capitalista. No início de 1939, a Câmara dos Deputados
aprovou a sua auto-extinção, sendo substituída pela Câmara do Fascismo e das Corporações.
alemães parte do país, forma-se governo pró-Aliados. Por um plebiscito levado a cabo em
1946, aboliu-se a monarquia.
Em que pese a denominação, o PDC não tinha qualquer caráter confessional nem
recebeu nenhuma espécie de bafejo da Cúria Romana. Seu grande artífice seria Alcides de
Gasperi (1881/1954), que liderara o Partido Popular, nos anos vinte, assumindo desde logo
uma atitude francamente antifascista, o que lhe valeu condenação e exílio. Outros líderes
democrata-cristãos haviam se destacado na Resistência. Deste modo, o PDC não tinha
compromissos com o velho conservadorismo, ostentando, ao contrário, uma face reformista e
moderna, cuja plataforma abrangia inclusive a reforma da estrutura agrária no sul. A par disto,
optava sem reservas pelas instituições do sistema representativo, arquivando as reticências
que caracterizavam o posicionamento da alta hierarquia católica.
Apesar de que contou desde logo com uma aguerrida oposição de esquerda,
representada pela aliança entre os Partidos Socialista e Comunista, o PDC conseguiu
minimizar os efeitos das crises ministeriais e dar curso à reorganização do país. Nas primeiras
eleições parlamentares, em abril de 1948, o PDC alcança maioria relativamente folgada (307
deputados, equivalentes a 57,3% do total, correspondente a 535 cadeiras). Nessa primeira
eleição, a frente Popular Socialista-Comunista fez 182 deputados (34% da Câmara). Contudo,
nas eleições de 1953, a votação obtida pela democracia cristã reduz-se a 40%. Inicia-se o
processo de fracionamento, fazendo-se representar no Parlamento pequenas agremiações
como os Partidos Liberal (Radical), Republicano, Monarquista e logo adiante até mesmo os
neofascistas. Entre os socialistas aparece uma facção que se opõe à aliança com os comunistas
(política sustentada por Pietro Nenni) e funda o Partido Social Democrata, liderado por
Saragat. Essa cisão da esquerda iria dar alento aos governos democrata-cristãos, mas
sustentados por maiorias precárias. A votação obtida pelo PDC reduziu-se a 38,3% nas
eleições de 1963 e a 39,1% nas de 1968.
sem afetar a dinâmica capitalista, como acabou acontecendo na Inglaterra. Ao mesmo tempo,
renunciou claramente à formação de estruturas estatais centralizadas, ideal que nunca chegara
a ser atingido desde a unificação do país, o que é compreensível em face do caráter milenar
dos pequenos estados que se formaram na península, divisões territoriais que acabaram
encontrando uma delimitação amplamente consentida na forma do estado provincial que, na
Itália, é chamado de região.
Em 1967, os 50,6 milhões de habitantes com que contava a Itália distribuíam-se deste
modo: 24,2 milhões (48%) vivendo nas oito regiões do Norte, abrangendo as grandes áreas
industriais de Turim, Gênova e Milão, além das concentrações urbanas do Vale do Pó;
aproximadamente 10 milhões nas regiões do Sul. A Sicília reunia contingente populacional
representativo (4,7 milhões) e, finalmente a 20ª região, a Sardenha, com 1,4 milhões. De um
modo geral, todas as regiões encontraram vocações. A agricultura modernizou-se plenamente
e o turismo tornou-se uma atividade disseminada e altamente rentável. O Mercado Comum
contribuiu para que essas regiões desenvolvessem preferentemente atividades competitivas do
ponto de vista de amplo mercado, de dimensões continentais. Eliminaram-se desníveis de
renda gritantes. Numa palavra, a Itália transformou-se num país capitalista moderno,
desaparecendo a base social que buscava alternativas para a Revolução Industrial, insuflada
pelo Vaticano que não conseguira libertar-se do saudosismo medieval.
descentralização nos assuntos que mais afetam a vida das pessoas, delegados às
administrações regionais, um quadro destes pode entretanto ser suportado, a exemplo do
ocorrido em décadas recentes.
6. A experiência espanhola
A Espanha viveu sucessivas guerras civis no século XIX, não tendo sido conseguida
a institucionalização da monarquia constitucional. Em meio aos conflitos armados, é
proclamada a República em 1870. Esta, entretanto, somente perduraria por apenas dois anos.
Num único ano o país chegou a ter cinco Presidentes da República; os governos não se
sustentavam e algumas províncias deixaram de acatar a autoridade de Madrid. Em 1875 um
golpe militar dissolve as Cortes, sendo restaurada a monarquia.
agrupar mais de dois milhões de trabalhadores. Embora tivessem uma grande presença nessa
entidade, os anarquistas formaram uma outra agremiação, a Federação Anarquista Ibérica, que
adota métodos de trabalho clandestinos e se propõe abertamente a reunir homens de ação,
dispostos a mudar o curso da história pela violência. A FAI considera o assassinato político
como uma forma privilegiada de luta. Em 1912, os anarquistas conseguem matar o chefe da
ala esquerda do Partido Liberal, José Canalejas Mendez (1845/1912), que se notabilizara pelo
combate aos extremismos, tanto anarquista como católico, e estivera à frente de alguns
governos. A morte de Canalejas comoveu o país, mas não trouxe maiores conseqüências.
Contudo, o assassinato de Eduardo Dato Irandier (1856/1921), chefe do Partido Conservador,
feriu de morte o regime.
A República deu curso a importantes reformas que vinham sendo postergadas desde
o século passado. Aboliu-se a religião oficial. O caminho da autonomia das províncias, que se
revelara um dos focos da instabilidade, foi equacionado de modo consensual. Foram abolidos
os títulos de nobreza. Introduziu-se o escrutínio universal, para ambos os sexos, a partir dos
23 anos. A educação primária foi tornada secular e compulsória.
A separação entre a Igreja e o Estado revelou-se muito complexa. Vigorava até então
o sistema do padroado, isto é, os sacerdotes eram funcionários públicos. Além da eliminação
dessa praxe, a República dissolveu as ordens religiosas que prestavam obediência a
71
A guerra civil espanhola durou cerca de quatro anos, tendo terminado em março de
1939, com a vitória de Franco. O evento tornou-se uma peleja internacional, intervindo
batalhões formados pela esquerda, com pessoas provenientes de vários países. A Itália apoiou
abertamente as tropas franquistas. As lutas foram encarniçadas, estimando-se que tenha
morrido um milhão de pessoas.
Franco governou durante pouco menos de quarenta anos. O novo regime que copiou
muitos institutos do corporativismo italiano e manteve-se nos marcos do autoritarismo,
aprovou em 1947 a chamada Lei da Sucessão, segundo a qual deveria ter lugar a restauração
monárquica. Franco não desejava, entretanto, monarquia de cunho tradicional e conseguiu, em
1954, que o herdeiro presuntivo renunciasse em favor do Infante Juan Carlos, desde então
educado para o novo mister e que iria revelar-se um grande estadista, após a morte de Franco
(1975). Assumindo o poder, Juan Carlos impulsionou a transição para a democracia agindo
com moderação. Contou também com a emregência de grandes estadistas, entre estes o chefe
do primeiro governo comprometido com a abertura política e a nova liderança socialista.
Nas eleições de 1982 consegue expressiva maioria o Partido Socialista, liderado por
Felipe González, uma liderança moderna mais próxima da social-democrata alemã que do
socialismo tradicional. González não se envolveu em aventuras estatizantes, mantendo o
crescimento econômico e a prosperidade. Graças a isto, obteve novos mandatos em 1986 e
1990, embora sua maioria se haja reduzido, como é de praxe ocorrer no sistema proporcional.
A Constituição espanhola de 1978 introduziu dispositivo que tem conseguido minorar seus
efeitos desastrosos. Consiste este em excluir os partidos que hajam obtido menos de 3% dos
votos. Contudo, nas eleições de 1993, a maioria do PSOE reduziu-se a 47%. Começa
nitidamente a fase em que o sistema proporcional ingressa no ciclo gerador da instabilidade
73
política. Nessa mesma eleição, desponta, como segunda agremiação, o Partido Popular, mas
que só obteve 40% das cadeiras. Finalmente, no início de 1997 o Partido Popular suplanta os
socialistas mas para governar têm que coligar-se com os catalãos que já estavam no poder.
Os dois governos do PP, chefiados por José Maria Aznar, serviram para caracterizá-
lo como uma agremiação liberal, apta a defrontar-.se com a competente liderança socialista
exercida por Gonzalez. Seguiu firmemente a política de redução da despesa pública, traduzida
na baixa de impostos sobre empresas e pessoas físicas. O país cresceu a taxas mais altas que
as alcançadas pela Europa. E ainda que não haja logrado grande avanço na reforma
trabalhista, obteve redução do desemprego (superior a 20%) ao nível da média européia (8%).
Consciente do desgaste que inevitavelmente recai sobre a liderança no caso de um terceiro
mandato, o PP concorreu em 2004 com novo nome (Rajoy). Contudo, Aznar não conseguiu
administrar o brutal atentado terrorista ocorrido às vésperas das eleições, visivelmente
organizado pelo radicalismo islamita, tendo em vista o engajamento da Espanha ao lado dos
Estados Unidos. Sendo natural que tivesse contato com a ajuda do grupo terrorista vasco
(denominado ETA, que seguidamente perpretava tais atentados), pretendeu negar a
participação da Al Queda. Explorando a circunstância, os socialistas ganharam as eleições,
embora nada o indicasse.
IV – Conclusões
74
Contudo, desde que não haja resistências culturais intransponíveis, o sistema eleitoral
passa a ser o elemento-chave. Se este serve apenas para perpetuar crises, muito provavelmente
as instituições do sistema representativo não chegam a consolidar-se.
Nos países de certas dimensões populacionais, foi o sistema distrital majoritário que
atendeu aos objetivos para os quais se realizam eleições: alcançar maiorias capazes de
75
que a África altere as suas tradições culturais; e mais: na medida em que a religião
muçulmana ganhe força, dificilmente se introduzirá ali o sistema representativo.
De todos os modos, antes de ter chegado ao fim o pesadelo do chamado “socialismo real”,
Gorbachov havia avançado duas teses comprobatórias da inconsistência da hipótese da
apropriação do trabalho alheio pelo capitalista. São as seguintes: 1ª) Marx não conseguiu
prever o desenvolvimento do capitalismo; e 2ª) a subestimação das possibilidades do
capitalismo levou os soviéticos a se propor a superação das maiores nações capitalistas, o
que se revelou uma impossibilidade.
(2)
Demain le liberalism. Paris, Fluriel, 1980, p. 115. Para um conhecimento mais detido dessa
proposta, veja-se Ricardo Vélez Rodríguez – A crítica do keynesianismo, Cap. VII do livro
Evolução histórica do liberalismo. Belo Horizonte, Itatiaia, 1987, p. 79-99.
(3)
As funções da Câmara dos Lordes também foram definidas em idêntico período. A origem
dessa instituição é a mesma do Parlamento. Embora dependente de convocação da
Monarquia, consagrou-se a praxe de submeter-lhe os aumentos de despesa, exigentes de
contribuições, em geral relacionadas à guerra. Tradicionalmente subdividia-se em House of
Commons – denominação preservada pela Câmara dos Deputados – e House of Lords. Ao
tentar fazer renascer as denominações empregadas na República Romana, a Revolução
Francesa popularizou a idéia do Senado, como uma segunda Câmara, revisora.
(4)
O critério para a escolha foi considerar os que abrigavam mais de 20 milhões de habitantes
na época da Primeira Guerra Mundial, quando a Europa era habitada por pouco menos de
500 milhões de pessoas (487,1 milhões, em 1913). Alemanha (66,9 milhões), França (39,8
milhões), Itália (35,6 milhões) e Espanha (20,3 milhões) totalizavam 162,6 milhões (34%
da população total). Se excluirmos a Rússia – que passou diretamente do absolutismo para
o totalitarismo –, com o território a que chegou depois que dela se desmembraram
Finlândia, Letônia, Estônia, Lituânia e Polônia, o que lhe daria àquela data 139,7 milhões,
e a Inglaterra (46 milhões), onde o sistema representativo estava consolidado, a parte
remanescente, onde a questão do sistema representativo se apresentava, teria 301,4
milhões. Os maiores países considerados (Alemanha, França, Itália e Espanha) passariam a
equivaler a 54% do total. Em 1913, o Império Austro-Húngaro tinha 29,2 milhões de
habitantes, transformando-se depois da guerra em três nações independentes (Áustria,
Hungria e Iugoslávia). Dentre as nações que se desmembrariam da Rússia, somente a
Polônia tinha mais de 20 milhões (28,3 milhões). Incorporada ao império russo em 1868,
viveria sob o absolutismo monárquico até a época ora estudada. Como nação independente
experimentaria sucessivos surtos autoritários e mesmo ditaduras, terminando por sair da
Segunda Guerra como parte do bloco totalitário, liderado pela União Soviética. A
organização de instituições do sistema representativo seria ali fenômeno de fins dos anos
oitenta, de nossos dias, portanto.
(5)
O Voto no Brasil – da Colônia à 5ª República (História Eleitoral do Brasil – I) Brasília,
Senado Federal, 1989, p. 18-19.
(6)
Obra citada, p. 203.
(7) Veja-se Rita Thalmann – A República de Weimar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, p.
106.
(8)
Apud Arend Lijphart – Democracies (1984), trad. portuguesa que apareceu com o título de
As democracias contemporâneas, Lisboa, Gradiva, 1989, p. 210. O texto de Hermens foi
introduzido pelo prof. Manuel Braga da Cruz entre aqueles que selecionou para a
constituição de uma obra de grande valor e que viria a preencher uma grave lacuna:
Sistemas eleitorais: o debate científico. Lisboa, Instituto de Ciências Sociais- Universidade
de Lisboa, 1998.
79
(9)
A Prússia desapareceu praticamente, sendo a sua parcela oriental incorporada à União
Soviética. A pátria de Kant (Koenigsberg) passa a denominar-se Kalingrad. No Oeste,
desfez-se qualquer possibilidade de reconstituição, desde que parte de seu território foi
atribuído à Polônia. Em decorrência de tais remanejamentos, nos anos de 1946 e 1947,
cerca de 6,7 milhões de alemães foram deslocados, das áreas transferidas a outras
soberanias, para as zonas de ocupação.
80
CAPÍTULO SEGUNDO
CONSERVADORISMO NEOCONSERVADORISMO
I – Significado do neoconservadorismo em nosso tempo
Tomo aqui, como ponto de referência inicial da minha análise, o livro editado entre
nós com a denominação de Liberalismo; segundo a tradição clássica, de Ludwig Von Mises
(1881/1973). Escrito em 1927, em alemão, numa época sombria para a Europa ante a
ascensão das correntes totalitárias representadas pelo socialismo dito internacionalista
(governando a Rússia desde 1917 e que assumiu feição acabada com o estalinismo) e a
variante que se auto-intitulava de nacional-socialismo, prestes a tomar o poder na Alemanha,
sua edição original não parece ter empolgado os sobreviventes liberais, mas deixou os
totalitários literalmente enfurecidos. Solicitando o envio de um exemplar de Liberalismus, ao
editor que era de Iena – na época, em 1951, situada na zona de ocupação soviética, a partir da
qual se organizou a denominada República Democrática Alemã (RDA) – informou aquele que
“por ordem das autoridades, todas as cópias desse livro tiveram de ser destruídas”.
Presumivelmente, a ordem inicial partira dos nazistas sendo ratificada pelos soviéticos depois
da guerra.
Depois da morte de Von Mises, o Institute for Human Studies, ligado ao Cato
Institute, promoveu duas edições do livro com o título de Liberalism: A socio-economic
Exposition (1976 e 1978). Finalmente, na edição de 1985, patrocinada pela Foundation for
Economic Education, estabeleceu-se o título com que aparece na edição brasileira (Liberalism
84
Tudo isto assegura a homens como Von Mises e Hayek uma posição destacada no
85
A tradição a que se filia Von Mises é a do liberalismo continental do século XIX, que
se distingue em muitos pontos do liberalismo da ilha britânica. Nesta o que se convencionou
denominar de democratização da idéia liberal não fomentou o aparecimento de agremiações
dispostas a destruir o sistema representativo. Embora proclamando-se socialista a partir da
reforma estatutária de 1918, o Partido Trabalhista Inglês formula esse princípio do seguinte
modo: “O objetivo geral do Partido Trabalhista é o estabelecimento da Comunidade Britânica
Socialista. Para alcançá-lo considera que o aparelho estatal constituído na Inglaterra tem
realizado satisfatoriamente suas funções e pode servir de ponto de apoio para a realização das
transformações fundamentais desejadas, desde que o Partido Trabalhista continue a respeitar a
vontade da maioria e a praticar os princípios democráticos. O Partido abomina os sistemas de
governo que só permitem uma opinião e cuja administração não esteja sujeita à crítica
saudável de uma oposição. Está, por conseguinte, determinado a preservar o tecido essencial
do sistema de governo britânico, embora preconize reforma no processo legislativo para
eliminar a obstrução facciosa e assegurar maior eficiência aos trabalhos”.
Para nos limitarmos à época em que Von Mises escreve seu livro, indique-se que,
embora alcançando expressiva votação em 1924 e colocando-se como segundo partido, os
trabalhistas não conseguem formar governo duradouro em aliança com os liberais,
permanecendo no poder apenas dez meses.
Compreende-se, assim, que Von Mises escreva no seu livro de 1927: “Nunca (os
liberais) perceberam dois fatos: em primeiro lugar, que as massas carecem da capacidade de
raciocinar logicamente; e, em segundo, que aos olhos da maioria das pessoas, mesmo quando
são capazes de reconhecer a verdade, uma vantagem especial momentânea, de que possam
gozar imediatamente, parece mais importante do que um ganho maior e duradouro, que tenha
de ser postergado. A maioria das pessoas não possui nem mesmo os dotes intelectuais
exigidos para analisar o problema (antes de mais nada, muito complicado) da cooperação
social e, por certo, não dispõe da necessária força de vontade para fazer os sacrifícios
provisórios que a ação social exige. Os slogans do intervencionismo e do socialismo,
especialmente as propostas de expropriação parcial da propriedade privada, sempre encontram
pronta e entusiástica aprovação das massas, que esperam lucrar direta e imediatamente com a
sua efetivação”. (p. 155)
A liderança liberal competente – o que não era certamente o caso dos alemães – é
justamente aquela que não raciocina em termo de “massas”, mas que é capaz de construir um
sistema eleitoral que obrigue, simultaneamente, a uma nítida diferenciação no seio de
semelhante “nebulosa” e, ao mesmo tempo, o afunilamento dos interesses diversificados, para
88
Quanto à crítica a Hayek, vamos nos louvar do livro Direitos sociais de cidadania,
do conhecido pensador liberal João Carlos Espada, lançado em Portugal em fins de 1997.
90
Essa obra constitui, em termos brasileiros, uma notável contribuição à clara determinação do
conteúdo do liberalismo social, por oposição ao neoliberalismo, tradicionalmente melhor
denominado de liberalismo conservador. Os direitos sociais são também chamados de direitos
de segunda geração, welfare rights ou direitos sociais de cidadania, designação preferida por
Espada. Ao fazê-lo trata logo de dissociar esse conceito do que seria uma teoria geral da
justiça. Embora não explicite, certamente tem em vista as conseqüências igualitaristas da
doutrina de Rawls. Escreve Espada: "Os direitos sociais não devem ser associados a qualquer
teoria global de justiça de qualquer natureza. Devem ser vistos como algo que dá origem a um
chão comum abaixo do qual ninguém deve recear cair, mas acima do qual podem surgir e
florescer desigualdades sociais. Este estatuto comum de cidadania poderá portanto ser visto
como uma expressão da vontade política de evitar a injustiça e, sobretudo, a exclusão, mas
isto não implica de modo algum uma teoria global da justiça ou um padrão comum de
distribuição. Só permitindo esta distinção, e só assim, é que os direitos sociais podem ser
considerados uma parte integrante dos direitos dos indivíduos, em sintonia com os direitos
políticos e civis tradicionais”.
Espada encontrou uma forma engenhosa de refutar a Hayek. Este autor contribuiu de
forma decisiva para a compreensão do papel do mercado e do caráter (ilusório) das tentativas
de substituí-lo por instâncias burocráticas. Contudo, como mostra Espada em sua brilhante
análise, a partir de determinado ponto foi influenciado pelo evolucionismo, deixando tudo a
mercê da ordem espontânea, esquecendo os valores morais que sempre se constituíram na
marca distintiva do liberalismo. Conforme lembra Espada, nossa preferência pela economia
de mercado resulta da comprovação empírica de que se tem revelado capaz de assegurar a
prosperidade material e razoável distribuição de renda. Muitos desses resultados, entretanto,
resultaram de intervenções normativas emanadas do liberalismo, notadamente a distinção
entre indigência e pobreza e a responsabilidade social pela primeira que, em conformidade
com a melhor doutrina liberal, não pode ficar na exclusiva dependência da caridade.
91
Na discussão que tem sido travada entre os liberais brasileiros, torna-se cada vez
mais patente que no fundamental estamos todos unidos na realização da tarefa hercúlea de
liquidar o patrimonialismo e fazer do Brasil um país capitalista moderno. As divergências,
como por vezes diz o Embaixador Meira Penna, são sobretudo de ordem semântica. Para
delas retirar a importância que lhe é atribuída (sem embargo de que continuaremos
preservando nossas preferências pessoais no tocante a autores e temas), creio que o citado
livro de João Carlos Espada, muito pode contribuir. A questão reside em saber se de fato cabe
a Hayek a última palavra em todos os planos quando é de todo evidente que a sua sinalização
em matéria política é deveras desastrosa, na medida em que dá às costas ao sistema
representativo (com a estapafúrdia doutrina da demarquia) e apresenta os liberais como
indiferentes à sorte das pessoas que não foram bem sucedidas no terreno material.
das leis. Quer, portanto, que as leis permaneçam sob a alçada de decisões separadas dos
juízes, ficando assim sujeitas a uma lenta evolução que depende da evolução da opinião geral,
que, por seu turno, os juízes devem sempre tentar interpretar e exprimir."
Esta não será, entretanto, a sua última palavra na matéria. Em The Fatal Conceit: The
errors of socialism (1988) já não confia nos juízes. As leis não se alteram pelo desígnio dos
indivíduos mas resultam da seleção cultural decorrente da evolução espontânea, ao longo dos
séculos. O curioso é que tenha passado a acreditar que a ordem espontânea acabará nos
conduzindo à plena configuração da sociedade liberal, tal como no marxismo, apenas com
sinal trocado. Transcrevo a conclusão de Espada: “Mesmo que queira intervir, modificar as
leis, multiplicar os regulamentos, o seu destino já está decidido: será derrotado pela evolução
espontânea. Hayek já não convida "os socialistas de todos os partidos" a redescobrirem o
apelo moral do meliorismo clássico dos liberais. De certa maneira converteu-se à linguagem
dos socialistas marxistas – que se julgavam intérpretes do sentido da história – e convida-os a
aderirem ao liberalismo sem terem de rejeitar as suas convicções históricas insensatas. Basta
que compreendam que a história não está a seguir o caminho do socialismo, mas sim do
liberalismo."
De sorte que os hayekianos brasileiros são convidados a reconhecer que parte da obra
de seu ídolo não se inspira na doutrina liberal mas no evolucionismo. Dar este passo não
significa, naturalmente, negar as suas contribuições definitivas no que se refere ao
entendimento do mercado e, portanto, a minar pela base a tentação socialista de substituí-lo
por instâncias burocráticas. O problema reside no fato de que o princípio diretor da ordem
política não pode ser o mesmo que deverá reger a economia, cabendo também reconhecer a
especificidade da vida cultural.
Nesta apresentação de seu pensamento, vou tomar por base o livro Neo-
Conservatism. The autobiography of na idea. Selected Essays 1949-1995 (New York, The
Free Press, 1995). Trata-se, na verdade, de uma edição ampliada do livro que apareceu em
1983 com o título de Reflections of a Neoconservative. Looking Back; Looking Ahead (New
York, Basic Books). Descreve a sua própria trajetória intelectual que de certa forma,
confunde-se com o denominado neoconservadorismo norte-americano. Tendo sido trotskista
na juventude, aderindo mais tarde ao liberalismo, experimentou sucessivas decepções com os
chamados liberais, na verdade sociais-democratas. Acha que os propósitos neoconservadores
foram amplamente bem sucedidos no que se refere ao Partido Republicano.
econômico; com Hayek a importante verdade que as instituições sociais, embora resultado da
ação humana, raramente provêm do seu desígnio e, finalmente com Leo Strauss e apreciar o
significado da moral anterior ao capitalismo e das tradições filosóficas.
O texto adiante serve para explicitar, em sua inteireza, o que tem em vista: “Num
certo sentido, o símbolo da influência do pensamento neoconservador no Partido Republicano
consiste no fato de que Ronald Reagan pode elogiar Franklin D. Roosevelt como um grande
Presidente americano – elogio repetido por New Gringrich uma dezena de anos mais tarde,
quando isto não é mais surpreendente. A mensagem era óbvia: o Partido Republicano não
estava de modo algum interessado em destruir o Welfare State, em nome do anti-estatismo,
achando-se antes empenhado em reconstruí-lo em bases mais econômicas e mais humanas. A
ênfase no “mais humano” é outro signo da influência neoconservadora. Enquanto o
conservadorismo tradicional tentava focalizar a atenção no caráter ilusório do sistema, os
autores neoconservadores enfatizavam, anos a fio, o terrível efeito desmoralizador da
seguridade do nosso Welfare. Atualmente é do conhecimento geral a necessidade de reduzir o
95
Para explicar tais diferenças, Kristol toma a caracterização devida a Hanah Arendt
(1906/1975) daquilo que contemporaneamente se entende por Revolução. Escreve: “Envolve
a rejeição apaixonada do status quo – tanto as instituições como o modo de vida a ele
associado. Rejeita tudo quanto existe porque tudo deseja recriar – nova ordem social, novo
conjunto de procedimentos econômicos, nova entidade política e nova espécie de ser humano.
Pretende ademais não apenas resolver o problema político de determinada comunidade neste
momento concreto, mas todos os outros problemas que afligem a humanidade. Seu espírito é
o do messianismo indissolúvel, estusiástico e inteiramente livre. Somente se satisfará com a
radical transformação da condição humana. Trata-se no fundo de um fenômeno religioso em
busca da redenção secularmente prometida e anunciada. Precisamente graças a esse fanatismo
leva inevitavelmente à desilusão. A Revolução Francesa é o exemplo típico de rebelião
moderna. Enquanto isto, a Revolução Americana promete apenas permitir aos indivíduos que
busquem a própria felicidade”.
Embora se possa discordar da solução teórica dada à questão por Irving Kristol, não
se pode deixar de reconhecer que feriu um ponto importante. O socialismo pode ser definido
como um movimento gnóstico que não conseguiu estruturar a própria ortodoxia, como a
Igreja Católica, isto é, um movimento adaptado à realidade do mundo e capaz de contrapor-se
aos milenarismos. Contudo, parece de percepção intuitiva que algo tendente ao gnosticismo
(ao milenarismo, à crença no paraíso terrestre) deve estar presente no próprio judaísmo,
porquanto foi deste que se originaram tanto o cristianismo, como o próprio gnosticismo, e
também o islamismo com o seu fundamentalismo assustador, tão próximo do puro
barbarismo.
O ensaio de que nos louvamos (“On Corporative Capitalism in America”) foi escrito
em 1976, quando os fenômenos do multiculturalismo, feminismo, homossexualismo e da
exaltação da figura do “politicamente correto” ainda não haviam assumido a dimensão de que
se revestiram no ciclo posterior. Na década de setenta, o que sobressaía era também a
catlinária de Galbraith em prol da transformação das corporações numa espécie de
“capitalismo burocrático”, sujeitas ao planejamento estatal. Era convicção generalizada que as
corporações haviam eliminado a concorrência, tendo abdicado da categoria de “lucro
máximo” (uma das poucas criações originais atribuídas ao falecido camarada Stalin) e
contentando-se em assegurar a sua sobrevivência. Numa certa medida, Kristol parece
impressionado com esse clima como se pode ver da opinião adiante. Escreve: “... parece claro
que as grandes corporações não serão capazes de opor-se àquelas forças que as empurram
para dentro do setor político a não ser que enfrentem a realidade de sua situação e adaptem-se
à realidade com o propósito de auto-preservar-se. Há divergências quanto às formas de que
possam revestir-se tal adaptação, alguns preferindo mudanças institucionais que enfatizem e
esclareçam a natureza “pública” das corporações, outros insistindo em que o “caráter privado”
seja ainda mais acentuado”. (Reflections, p. 217; Neo-Conservatism, p. 227).
O quadro posterior serviu para evidenciar que, muito ao contrário de tais suposições,
as grandes corporações não estavam imunes à concorrência. A poderosa IBM viu-se
seriamente abalada por pequenas companhias que apostaram no mercado dos computadores
pessoais e acabou tendo que se defrontar com uma poderosa nova estrela (a Microsoft),
circunstância com a qual os teorizadores marxistas sequer sonhavam.
Acerca da primeira dificuldade escreve o seguinte: “... Adam Smith ... estabeleceu,
pela primeira vez na história da humanidade, a legitimidade moral da economia de mercado
baseada no interesse particular dos produtores. Essa tese contrapunha-se a uma longa, hostil e
incrível tradição intelectual expressa com clareza pelo Imperador Romano Diocleciano, no
ano 301 de nossa era, ao decretar o controle de preços e salários afirmando: “A atividade
econômica desregulamentada é uma ofensa aos deuses”. Atualmente, muitos de nós aceitamos
a legitimidade do interesse próprio em geral, mas, de todos os modos, instintivamente
suspeitamos do interesse próprio dos outros”. (p. 124) Relata a sua própria experiência
pessoal, nos anos sessenta, quando os que como ele moravam em apartamentos alugados em
Nova York, todos pessoas de classe média, reagiram mal a uma proposta de compra efetivada
pelo proprietário. Embora se dessem conta das vantagens da proposta (os apartamentos
poderiam ser vendidos pelo dobro do preço de compra), queriam saber “quanto vai ganhar o
proprietário com esse negócio”. Passaram-se meses até que a operação se consumasse, sendo
naturalmente vantajosa para ambas as partes. Dessa experiência retira a seguinte conclusão:
“A economia de mercado depende, em grande medida, da sofisticação econômica dos
cidadãos e semelhante nível de sofisticação econômica só pode ser alcançado por uma
contínua e ininterrupta educação em matéria de economia, ainda que elementar, mas de
natureza fundamental”.
Destaca que nos últimos cinqüenta anos tivemos turbulências menos devastadoras.
“Parece que estamos fazendo algo de correto – mas seria excelente saber precisamente o que.
99
A triste verdade é que não existe teoria para o que se denomina de ciclo econômico. Sentir-
me-ei sempre atormentado pela incerteza quanto ao futuro de nossa economia de mercado
enquanto nossos economistas não me tranqüilizem graças ao fato de que, finalmente, estão de
posse da teoria correta. Então se a política e os políticos impedem a sua aplicação, saberemos
a quem responsabilizar”.
multiculturalismo choca-se portanto com o patriotismo que se tem revelado uma das forças de
sustentação da nação americana.
Kristol pode ser arrolado entre os que acreditam que o fim do socialismo marca o fim
das ilusões quanto à viabilidade de alternativas ao capitalismo, embora sua análise esteja
centrada nos Estados Unidos, onde a influência não é propriamente do socialismo, mas da
social-democracia, de certa forma encarnada pelo Partido Democrata, que se autodenomina de
liberal. Acha que o Partido Republicano pode encarnar perfeitamente o espírito
neoconservador e assim marcar, na política norte-americana, “o século do conservadorismo”.
Se não o fizer, surgirá um terceiro partido para reformar a política americana em consonância
com o seu espírito. Afirma também que os grandes canais de televisão ainda não se deram
conta do fenômeno e vêm sendo derrotados, em termos de audiência, por meios de
comunicação que se supunha ultrapassados: o rádio.
Acredito que, sua conclusão mais geral, estaria contida no seguinte texto: “O que
pode ser aproximadamente descrito como impulso neoconservador (ou pelo menos a
persuasão neoconservadora) corresponde a fenômeno de gerações e que presentemente veio a
ser absorvido num conservadorismo mais largo e compreensivo. Meu filho e minha filha, bem
como os genros, do mesmo modo que dúzias de jovens que passaram por The Public Interest
101
durante os últimos trinta anos, são todos conservadores sem qualquer adjetivação. Eles têm,
segundo creio, mais agudo interesse intelectual e cultural do que o comum dos conservadores.
Existem hoje intelectuais conservadores levados em conta pela mídia, algo inexistente há
alguns anos. Deste modo, considero que o movimento neoconservador foi um sucesso,
trazendo contribuições necessárias para animar o conservadorismo americano e ajudando a
remodelar os políticos americanos. Mas a minha opinião pessoal é certamente comprometida
e dou-me conta de que as conseqüências imprevistas das idéias e dos atos são muito diferentes
das intenções originais. Este é aliás um axioma básico dos conservadores e aplica-se tanto aos
próprios conservadores como aos liberais e aos radicais”. (Neoconservatism, p. 40)
A nova postura revela-se bem sucedida quando o beneficiário conta com uma família
minimamente estruturada. É pouco eficaz no caso das mães solteiras. Justamente a admissão
desse contingente, no programa de renda mínima, coincide com o término da redução do
103
1ª) retirar o apoio à criação de creches nos liceus (escolas de segundo grau), na
esperança de que venham a desaparecer;
NOTAS
(1)
Consiste na auto-dissolução do Partido Liberal de tão gloriosas tradições e sua fusão com o
Partido Social Democrata, ocorrida em março de 1988.
(2)
Na cultura luso-brasileira é muito nítida a distinção entre tradicionalismo e
conservadorismo liberal. Durante largo período do século passado, o primeiro identificou-
se com o miguelismo – vale dizer, com o absolutismo monárquico – passando, neste
século, a aceitar o que chamaram de “democracia orgânica”. Em ambos os ciclos, o alvo
preferencial de sua crítica é o liberalismo, tendo a Rousseau como seu expoente, sendo
inúteis todos os esforços para comprovar o nosso afastamento desse pensador.
Presentemente, em Portugal, os tradicionalistas evoluem no sentido da aceitação do
sistema representativo, fenômeno que ainda não se reflete no Brasil.
(3)
Robert Nisbet, no livro Conservatism: Dream and Reality (Minneapolis, University of
Minnesota Press, 1986) traça um amplo painel da evolução do conservadorismo desde
Burke. No capítulo final (“The Prospects of Conservatism”) estuda especificamente o
neoconservadorismo, comentando a parcela substancial de sua bibliografia e mencionando
suas figuras mais expressivas, nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha. A
denominação de neoconservadorismo proveio de um socialista (Michael Harrington) mas
veio a consagrar-se graças a seus próprios adeptos que nela enxergaram uma possibilidade
de explicitar as distinções em relação ao conservadorismo liberal clássico. Desde o
começo, a personalidade-líder é Irving Kristol, fundador das duas revistas que mais
contribuíram para desenvolver esse ideário: The Public Interest, criada em 1965,
juntamente com Daniel Bell, e Commentary, da qual Norman Podhoretz é co-fundador.
Desses autores, somente Daniel Bell teve livros traduzidos no Brasil. Outros nomes
destacados por Nisbet: Patrick Moynihan, Nathan Glazer, Seymour Martin Lipset, Samuel
Huntington e James Q. Wilson. Para uma descrição histórica da formação do movimento
neoconservador consulte-se The Conservative Intellectual Movement in America, since
1945 (N. Iorque, 1979), de George Nash. A pujança adquirida em todo o mundo foi
focalizada por Guy Sorman em seu livro recentemente traduzido A solução liberal (Rio de
Janeiro, José Olympio/Instituto Liberal, 1986). Esse autor aliás havia examinado
especificamente o neoconservadorismno americano na obra La révolution conservatrice
américaine (Paris, 1983).
105
106
CAPÍTULO TERCEIRO
A DOUTRINA LIBERAL DA REPRESENTAÇÃO E DO PARTIDO POLÍTICO
Mas o representante precisa ter uma opinião imparcial e juízo maduro ao invés de
simplesmente submeter-se à vontade dos eleitores. Diz textualmente: “Vosso representante
deve a vós não somente sua indústria, senão seu juízo, e vos atraiçoa, em vez de vos servir, se
se sacrifica à vossa opinião”.
109
E assim por diante. Quer dizer: ao ser eleito, o parlamentar torna-se representante
de toda a Nação.
outro agrupamento social. Essa hipótese tornar-se-ia comum às principais correntes políticas
francesas, fenômeno que se acentuou no século XX, pela defesa do republicanismo em
contraposição não apenas ao monarquismo mas igualmente ao tradicionalismo católico.
Lucien Jaume parte justamente dessa singularidade e afirma que, desde então, a
opção francesa é por um liberalismo através do Estado e não contra ou fora dele, aspirando a
submeter o indivíduo a um “espírito de corpo” que o discipline – que seria, segundo seu
entendimento, a posição de Guizot – razão pela qual, parece-lhe, seria rejeitado o liberalismo
individualista de Mme. de Stael (1766/1817).
modo: “A tese essencial é a de que o interesse geral é distinto dos interesses particulares, mas
não contraposto. Contestando a visão da Revolução, que geralmente opôs os dois aspectos,
Constant pleiteia uma representação sincera dos interesses diferenciados, que podem e devem
negociar entre si, para constituir a formulação do interesse geral, o qual não exprime nem um
excesso nem uma transcendência, mas uma arbitragem. Noutros termos, sua função de
unidade é bem o resultado buscado; não é a representação que faculta essa unidade; ela é
produto do processo de deliberação que a representação (ou mais exatamente a Assembléia
representativa) irá permitir, ulteriormente, em seu seio”.(8)
Lucien Jaume destaca com propriedade que Constant delimita uma outra esfera de
interesses além do individual e do geral. Adverte que o interesse comum não pode ser
confundido com o interesse de todos. A religião interessa e a todos preocupa. Nem por isto
configura esfera de ingerência estatal. Quando os interesses coexistem sem se confundir não
caem sob a jurisdição da autoridade social. No desdobramento do constitucionalismo,
estabeleceu-se uma clara distinção entre direitos individuais, políticos e sociais, englobados
sob a rubrica comum de direitos fundamentais.
Em Constant, o conceito de interesse de todos visava indicar um intermediário, uma
zona de autonomia social, fora da alçada do interesse geral, conduzido e magnificado pelo
Estado, e do interesse particular, que se via colocado em posição subalterna e suspeita.
Tratava-se de mostrar que a hegemonia do “interesse geral” correspondia ainda a uma
hipostasia perigosa, ali onde o indivíduo podia dirigir-se a outro sem que isto seja de domínio
público. A liberdade de expressão, por exemplo, em sua pluralidade efetiva, não implicava o
dirigismo estatal ou o controle administrativo, cuja admissão tenderia a gerar temores
políticos.
Benjamin Constant pretende enfatizar que, sem a negociação através da representação,
o interesse geral seria um simulacro. Sua tese, entretanto não vingou. Não apenas entre os
tradicionalistas em geral e na chamada “direita” -- para Augusto Comte (1798/1857), por
exemplo, o indivíduo e não a sociedade é que seria uma abstração, hipótese, diga-se de
passagem, que marcaria profundamente a sociologia francesa – e nos arraiais do
democratismo, mas notadamente entre os liberais.
L’individu effacé indica que, para Guizot , a questão é outra. O que a experiência
histórica havia evidenciado era que a anarquia revolucionária deu nascedouro, primeiro a
Napoleão e, depois, aos ultras, formando dois pólos contrapostos.
Escreve Lucien Jaume: “sabe-se que a originalidade do grupo doutrinário consistia
em alcançar o meio – o famoso “justo meio”- entre os excessos do espírito revolucionário e a
rejeição da Revolução pelo tradicionalismo ultra. Em suas Memórias, Guizot consagra quatro
páginas para lembrar o que uniu ao grupo doutrinário, concluindo deste modo: “Foi esta
mistura de elevação filosófica e de elevação política, o respeito racional aos direitos e aos
deveres, às doutrinas ao mesmo tempo novas e conservadoras, anti-revolucionárias sem ser
retrógradas, e no fundo modestas, ainda que por vezes altivos em sua linguagem, que os
doutrinários devem sua importância como seu nome”(9).
113
Tudo isso faz sobressair o mérito de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/1846)ao ter
familiarizado a elite imperial com a doutrina da representação política como sendo de
interesses. Apresentou-a no Manual do cidadão em um governo representativo, editado em
Paris em 1834, do qual o Senado Federal vem de promover primorosa edição fac-similar.(11)
O pensador português assinala que, em prol da concisão, tornou-se praxe, entre publicistas e
jurisconsultos, dizer que “o procurador representa o seu constituinte”, quando, em prol da
clareza e da exatidão, competia dizer que o “procurador representa os interesses do seu
constituinte”.
115
Ao mesmo tempo não seria lícito dizer que a tese precedente revoga o princípio de
que o parlamentar eleito representa a Nação.
A vida em sociedade sugere que os interesses humanos são muito diversos. Mas
podem ser agrupados em reduzido número de categorias. Entre estas certamente sobressai o
interesse econômico. O sistema representativo repousa na convicção de que todos são
legítimos, tanto os dos assalariados como os dos capitalistas ou da burocracia vinculada ao
Estado. Todos são particulares, exclusivistas e não há mágica capaz de identificá-los pura e
simplesmente com os interesses nacionais, embora também não sejam obrigatoriamente
contrários. O País estará organizado em bases estáveis quando os mecanismos de negociação
entre esses interesses provarem ser flexíveis o suficiente para evitar ou reduzir o impacto das
grandes comoções.
Os interesses morais são certamente ainda mais fortes. Como estamos saindo de
um ciclo relativamente longo de autoritarismo, quando as liberdades públicas estiveram
contidas, há uma certa inibição no condenar as formas grosseiras de permissividade e
exibicionismo que invadiram as casas de espetáculo e as publicações. Mas esta é, sem dúvida,
uma situação transitória, desde que não pairam dúvidas quanto ao fato de que certos valores,
como a família, a honra pessoal ou a compostura sejam expressivos de nosso modo de ser.
que chegarão, de fato, a representar a sociedade sem assumir o ônus da defessa desse ou
daquele interesse. Ainda mais: é preciso ter coragem de reconhecer que, sem partidos
políticos autênticos, a democracia brasileira nunca passará de uma figura de retórica.
Jean Charlot, no livro Les Partis Politiques (Paris, Armand Colin, 1971) resume o
principal da bibliografia que se publicou sobre o tema. A seu ver, os autores considerados
clássicos escreveram numa época em que os partidos ainda não haviam assumido feição
acabada. Menciona expressamente M. Ostrogorski – La démocratie et l’organization des
partis politiques, Paris, 1901 – e R. Michels – Les partis politiques: essai sur les tendances
oligarchiques des démocraties, tradução francesa aparecida em 1914 com base na primeira
edição alemã, sendo que a segunda edição publicada em Leipzig, em 1925, teve seu título
modificado para Sociologia dos partidos políticos na moderna democracia – omitindo Max
Weber.
Reivindicando uma nova tipologia, Charlot adota a seguinte premissa: “No atual
estágio dessas pesquisas – que não estão muito adiantadas – o essencial, parece-nos, seria
evitar cair, depois de Maurice Duverger, na armadilha da ilusão de uma história
unidimensional, imaginando um ciclo único, que vá obrigatoriamente dos partidos de quadros
aos de massas, e depois aos de reunião, que representariam a forma ‘natural’ dos partidos na
era industrial moderna” (p. 162, da ed. brasileira, Coleção Pensamento Político da UnB, vol.
47). No conceito de Duverger, o último tipo adviria da circunstância de que o partido não é
uma comunidade “mas um conjunto de comunidades, uma reunião de pequenos grupos
difundidos através do país (seções, comitês, associações locais, etc.) ligados por instituições
coordenadoras”.
Antes de mais nada, a advertência que já fora feita por Marx Weber: ainda que
preservem a mesma denominação, os partidos contemporâneos distinguem-se radicalmente
das agremiações do século passado. Estas não passavam de blocos parlamentares. Os seus
sucessores consistem, sobretudo, na fusão dos blocos parlamentares com os comitês eleitorais
exigidos pela sucessiva disseminação do sufrágio.
dimensões dos países como as respectivas tradições culturais. A Suíça, por exemplo, não
parece ser um exemplo convincente desse ou daquele modelo, porquanto, nas condições do
país, qualquer sistema funcionaria, desde que não violasse o direito participativo a que a
comunidade está afeiçoada. Mesmo tomando-se isoladamente as nações mais populosas,
onde a adequação do sistema representativo é de fato testada, há traços culturais que
estabelecem distinções essenciais. Embora a estabilidade política seja um valor fundamental
para todas as sociedade –, o que explica em grande medida a emergência e a persistência do
autoritarismo – não atua de modo equivalente em países como a França ou a Itália. A
incapacidade do sistema eleitoral francês de permitir a formação de maiorias sólidas, neste
pós-guerra, levou até a golpes de Estado, enquanto a Itália convive com essa realidade, talvez
pelo fato de que o governo central não tenha ali a mesma magnitude que lhe atribuem as
tradições culturais francesas.
Nos estudos destinados a facultar pesquisas que permitam realizar revisões com
base em análises matemáticas, busca-se, em geral, aproximar a agremiação partidária de
outras agremiações conhecidas. Entre as várias obras com essa característica, Charlot resume
os pontos de vista de Robert Merton (Social Theory and Social Structure), que considera o
chefe da máquina partidária como qualquer outro boss e suas funções equiparáveis ao “chefe
de empresa desejoso de aumentar seus lucros ao máximo”. Merton aponta, entre outras, a
seguinte conseqüência do que chama de “análise funcional da máquina política”: “Em
primeiro lugar, a análise anterior tem conseqüências diretas na ação social (social
engineering). Ela ajuda a explicar por que os esforços periódicos de “reforma política”, de
“expulsão dos desonestos”, de “limpeza da estrebaria política” são de curta duração e
fracassam invariavelmente. Ela ilustra o seguinte teorema básico: está condenada ao fracasso
toda tentativa feita para eliminar uma estrutura social existente sem fornecer estruturas de
substituição adequadas, isto é, capazes de exercer as funções anteriormente garantidas pela
agremiação abolida. Inútil é dizer que este teorema tem um alcance muito maior que o único
exemplo da máquina política. Quando uma reforma política se limita à tarefa manifesta de
“pôr os canalhas na rua”, ela é apenas magia política. Ela pode trazer, por um tempo, novas
figuras no cenário político; pode exercer a função social adicional de fazer os eleitores
acreditarem que as virtudes morais permanecem intactas, e acabarão por triunfar; pode trazer
mudanças efetivas no pessoal da máquina política; e pode até, por um certo tempo, deixar
insatisfeitas inúmeras necessidades que satisfazia comumente. Mas, a menos que a reforma
não comporte também uma “refundição” da estrutura social e política bastante profunda para
satisfazer, por uma estrutura nova, as necessidades existentes, ou que acarrete uma
transformação que elimine completamente essas necessidades, a máquina política retomará
inevitavelmente seu lugar no esquema social. Procurar uma mudança social sem reconhecer
abertamente as funções manifestas e latentes desempenhadas pela organização a ser
transformada é proceder antes a ritos sociais que a um social engineering” (ed. cit., p. 83/84).
CAPÍTULO QUARTO
Nasceu em Praga, que na época era parte do Império Austro Húngaro. Formou seu
espírito sob a influência da temática das primeiras décadas do século, que consistia na busca
das formas de reconstrução do saber filosófico, em face das críticas a que fora submetido, ao
longo da segunda metade do século XIX, em decorrência dos avanços da ciência que, segundo
a corrente positivista, iria ocupar todos os espaços. Kelsen imaginou que o direito preservaria
a sua autonomia e especificidade estruturando-se na forma de uma “ciência pura”. Concebeu,
assim, o que passou à história com o nome de teoria pura do direito, segundo a qual, o
ordenamento jurídico reduzir-se-ia a um conjunto hierarquizado de normas, organizado na
forma de pirâmide.
A teoria pura do direito ocupou um lugar central nos debates da filosofia do direito, no
período considerado4. A par disto, no curso da elaboração da Constituição da Áustria (1920),
suscitou a idéia do controle da constitucionalidade das leis, de que resultou o surgimento dos
Tribunais Constitucionais, destinados a dar conta da incumbência.
4
O prof. Miguel Reale (1910/2006) criou a teoria tridimensional do direito, que integra as doutrinas precedentes,
considerando que uma visão adequada somente poderia decorrer da consideração tanto do fato como da norma e do valor. O
prof. italiano Mário Lozano é autor da principal crítica a Kelsen, na obra Forma e realità in Kelsen (Milão, 1981).
126
Justamente esse texto seria tomado por base na edição brasileira (Hans Kelsen- A democracia.
São Paulo, Martins Fontes, 1993), preservada a introdução do organizador da coletânea.
Giacomo Gavazzi resume deste modo em que consistiria a essência da democracia, para
Kelson: “A democracia é simplesmente uma das técnicas possíveis de produção das normas
de ordenação. Mas é uma técnica que tem características peculiares. Eliminadas as
incrustações ideológicas, como as de soberania popular e representação, reconhecida a
impossibilidade de esquivar-se ao princípio da divisão do trabalho, a democracia moderna é o
sistema de produção das normas da ordenação que confia a um corpo (parlamento) eleito, com
a base mais ampla possível (sufrágio universal) e com método eleitoral proporcional (mesmo
sem pretensões de representação) e que funciona, via de regra, segundo o princípio da maioria
simples.” (edição citada, pág. 13)
Pode-se considerar que “a produção das normas de ordenação” corresponde à definição
consagrada de que se trata do processo destinado a elaborar as regras que se tornarão
obrigatórias para todos.5
No que respeita à crítica aos conceitos de soberania popular e representação, vejamos de
que se trata.
No texto básico, originário da meditação kelsiana sobre o tema – Essência e valor da
democracia (1929) – insiste numa definição que Bobbio voltaria a reivindicar contra os
críticos da democracia6: a imprescindível distinção entre o plano conceitual e a realidade.
Escreve: “A democracia, no plano da idéia, é uma forma de Estado e de sociedade em que
a vontade geral, ou seja, sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem está
submetido a esta ordem, isto é, o povo. Democracia significa identidade entre governantes e
governados, entre sujeito e objeto do poder, governo do povo sobre o povo. Mas o que é esse
povo? Uma pluralidade de indivíduos, sem dúvida. E parece que a democracia pressupõe,
fundamentalmente, que essa pluralidade de indivíduos constitui uma unidade, tanto mais que,
aqui, o povo como unidade é --ou, teoricamente, deveria ser--, não tanto o objeto mas
principalmente o sujeito do poder. Mas saber de onde resulta essa unidade, que aparece com o
nome de povo, continuará sendo problemático enquanto se considerem apenas os fatos
sensíveis. Divididos por posições nacionais, religiosas e econômicas, o povo aparece, aos
olhos do sociólogo, mais como uma multiplicidade de grupos distintos do que como uma
massa coerente do mesmo estado de aglomeração. Nesse aspecto, só se pode falar de unidade
em sentido normativo.” (págs 35/36 da edição brasileira citada).
Na ordem estatal, portanto, considerado como o conjunto de titulares dos direitos políticos,
o povo corresponde a uma pequena fração dos indivíduos que o compõem. Além disto, é
preciso ainda distinguir esses titulares de direitos daqueles que os exercem. Essa investigação
irá colocar-nos diante de um dos elementos mais importantes da democracia real: os partidos
políticos. Adiante afirmará: “Só a ilusão ou a hipocrisia pode acreditar que a democracia seja
possível sem partidos políticos.” (pág. 40 da ed. cit.)
E, mais adiante: “A hostilidade à formação dos partidos e, portanto, em última análise, à
democracia, serve --consciente ou inconscientemente-- a forças políticas que visam ao
domínio absoluto dos interesses de um só grupo e que, na mesma medida em que não estão
dispostos a levar em conta os interesses opostos, procuram dissimular a verdadeira natureza
dos interesses que defendem, sob a qualificação de interesse “coletivo”, “orgânico”,
“verdadeiro”, “bem-intencionado”. A democracia, exatamente por querer que, neste Estado de
5
Samuel Huntington, no livro The Third Wave, 1991 (tradução brasileira, Editora Ática, 1994) indica que a democracia foi
definida, sucessivamente, como fontes da autoridade; pelos objetivos e, finalmente, como processo. Parece-lhe que a mais
importante formulação desse último entendimento, que veio a ser consagrado, seria devida a Joseph Schumpeter
(Capitalism, Socialism and Democracy, 1942). Parece-me que Kelsen poderia ser incluído entre os que apontaram nessa
direção.
6
Cf. Norberto Bobbio (1909/2004) – O futuro da democracia (1984), tradução brasileira da Editora Paz e Terra
(sucessivamente reeditada, sendo a 10ª edição de 2006).
127
partidos, a vontade geral seja apenas a resultante da vontade dos próprios partidos, pode
renunciar à ficção de uma vontade geral “orgânica”, superior aos partidos”. (pág. 41)
Compreende-se, assim, as razões profundas que levaram Kelsen a rejeitar a verborragia
acerca da soberania popular. Considerada abstratamente, a vontade geral de Rousseau levou à
necessidade de encontrar aos seus verdadeiros intérpretes, figuras como Robespierre e
Lenine. Passaram à história como praticantes da doutrina de que os fins justificam os meios,
sentindo-se autorizados a desencadear o Terror contra os oponentes, a pretexto de que seriam
obstáculo à consecução do “autêntico” interesse geral, na formulação de Kelsen. Numa nota,
tece considerações interessantes sobre o tema para mostrar que, no fundo, a idéia da “vontade
geral”, abstratamente considerada, contrapõe-se à idéia do contrato social que, no final de
contas, terá que expressar-se numa Constituição, cuja legitimidade precisa ser previamente
assegurada.
No tocante ao que denomina de “ficção da representação”, resulta de sua associação à tese
da soberania popular que, segundo lhe parece, teria desempenhado papel fundamental na luta
em prol da afirmação do Parlamento, contra a monarquia absoluta, mas que não mais dispõe
de razão de ser, nas tumultuadas décadas iniciais do século XX.
Toda comunidade algo desenvolvida não poderá prescindir de um conjunto de normas, de
prescrições que determinam a conduta dos indivíduos, pertencentes à comunidade em apreço.
As normas consideradas revestem-se de crescente complexidade, na proporção do
desenvolvimento dessa comunidade. Assim, mesmo as monarquias absolutas não puderam
prescindir do que geralmente foi denominado de Conselho de Estado, com funções
meramente consultivas. Kelsen lembra que, em muitas ocasiões, a autoridade das
personalidades pertencentes a tais órgãos exerceram, sobre o monarca, influência muito maior
que a prevista.
Denomina esse processo de lei estrutural dos corpos sociais.
O Parlamento moderno é uma resultante dessa lei, já agora não mais existindo como
simples órgão consultivo, achando-se dotado de poder deliberativo.
Esclarece: “A esse respeito supõe-se que o fenômeno, que se costuma chamar,
metaforicamente, “vontade” (da coletividade em geral) e do Estado (em particular) não seja
um dado psíquico real, já que, em sentido psicológico, existem apenas vontades individuais. A
chamada “vontade” do Estado é apenas a expressão antropomórfica usada para indicar a
ordem ideal da comunidade, ordem esta constituída por uma série de atos individuais cujo
conteúdo ela representa.” (pág. 51)
Pretende enfatizar que, no período histórico em que o Parlamento já foi reconhecido como
instância competente para o desempenho daquela função --e em face da ameaça que emergia,
de modo claro, em diversas frentes-- não fazia sentido defender a sua existência como sendo
órgão representativo da vontade geral. Assim, entendo, sua advertência coaduna-se
perfeitamente com a doutrina da representação política como sendo de interesses. O
Parlamento torna-se o lugar da negociação entre esses interesses, na forma que venha a lhes
ser atribuídas pelos partidos políticos. Portanto, o interesse geral não pode ser determinado
abstratamente. Aqueles que se propõem alcançá-lo, como advertiu e referimos antes, querem
simplesmente impor os seus interesses, prescindindo da negociação.
Adverte, então: “A tentativa de eliminar completamente o Parlamento do organismo do
Estado moderno só pode ter, a longo prazo, um escasso sucesso. No fundo, pergunta-se
apenas de que modo o Parlamento deve ser convocado, como deve ser composto e quais
devem ser a natureza e a extensão de sua competência. Efetivamente, todas as tentativas
dirigidas para a organização corporativa do Estado, ou para a ditadura, só visam à reforma
pura e simples do parlamentarismo, conquanto seus programas reclamem a sua abolição”.
(pág. 52)
128
O pressuposto da ciência política, de que parte Kelsen, é o de que lhe cabe ultrapassar a
discussão de índole valorativa. Admitida a preferência por uma forma de governo que tenta,
como diz, por em prática a liberdade juntamente com a igualdade do indivíduo e que “se esses
valores devem ser postos em prática, a democracia é o meio apropriado”. Kelsen não refere
Max Weber nem ao vivo debate do começo do século, nos círculos acadêmicos alemães,
sobre as condições de possibilidade de uma ciência social. O posicionamento que defende
seria batizado por Weber com o nome de neutralidade axiológica, que faculta a diferenciação
tanto em relação à linha de pensamento considerada por Kelsen como daquela de inspiração
marxista.
Além desse pressuposto da discussão, devem ser apontados dois outros. O primeiro
consiste em precisar que não está em jogo a negação do papel do cristianismo na constituição
da cultura ocidental, a origem religiosa dos valores que cultivamos, etc. Quando se trata,
entretanto, de precisar os fundamentos da democracia não se pode fazê-la repousar na
transcendência divina. Trata-se do encontro de uma forma bem sucedida de convivência
social, no plano político, diante da comprovação histórica de que movemo-nos num terreno
conflituoso, conducente à guerra civil. Além do mais, nessa matéria, o próprio Cristo indicou
que a Igreja dará a César o que é de César.
A segunda questão diz respeito ao fato de que Roma conviveu com regimes opressores e
até recorreu, para impor sua hegemonia, no plano religioso, não só à força como inclusive a
meios aviltantes da pessoa humana a exemplo dos processos inquisitoriais. Esse fato aliás é
proclamado por Emil Brunner e Kelsen dele transcreve esta citação: “A Igreja que hoje
protesta, e com razão, contra a opressão que sofre nas mãos do Estado Totalitário, faria bem
em lembrar que primeiro deu ao Estado o mau exemplo da intolerância religiosa ao usar o
braço secular para defender, pela força, o que só pode brotar de um ato livre da vontade. A
Igreja deve lembrar, com vergonha, de que foi o primeiro mestre do Estado totalitário em
quase todos os seus aspectos. A Igreja deu exemplo ao Estado totalitário ao usar o Estado para
intervir na vida privada --inquisição, polícia moral, monopólio da propaganda, perseguição de
dissidentes e uniformidade compulsória são coisas que, em grande parte, devem ser-lhe
imputadas”. (pág. 210)
A par disto, em pleno século XX, a pregação da Igreja Católica contra o capitalismo
encontra-se na origem do fascismo, do salazarismo e do franquismo. Na época da Segunda
Guerra Mundial, o problema residia na impossível convivência com o totalitarismo
emergente, tanto o soviético como o nacional socialista. Entretanto, como diz Kelsen, de
momento em que são inferidos, do direito que estaria acima daquele criado pelos homens,
princípios concretos, cessaria toda incompatibilidade. Ainda no que se refere à obra de
Brunner, escreve Kelsen: “...os princípios que apresenta como expressão do Direito natural
cristão ... não se antagonizam necessariamente com o Direito positivo. São, pelo contrário,
perfeitamente praticáveis pelo Direito positivo e, em grande parte, efetivamente praticados.
Tais princípios são: a liberdade de prática religiosa, o direito humano à vida, ainda que restrito
pelo direito que tem a comunidade de infligir a pena de morte e impor o serviço militar
obrigatório, o direito do homem conseguir seu sustento com o trabalho que realiza na terra
com suas próprias mãos, e o direito da criança a um desenvolvimento adequado”. (pág. 217)
Tanto no caso de Brunner, como no de Niebuhr, o centro da discussão diz respeito à
existência de um direito natural, como sendo algo proveniente da criação divina, e ao qual
deveria subordinar-se o direito proveniente da criação humana, chamado de positivo. Na
verdade, proclama Kelsen, tomando ao direito natural como a possibilidade de fundar o
direito positivo, aqueles autores chegam a um verdadeiro impasse.
Niebuhr, por exemplo, reconhece: “mesmo que o conceito de Direito natural não contenha
o traço ideológico de uma classe ou nação específicas, tende a expressar a concepção limitada
de uma determinada época, incapaz de levar em consideração as novas possibilidades
130
históricas”. Comenta Kelsen: o mais radical relativista estaria de pleno acordo com essas
afirmações.
No que se refere à argumentação de Jacques Maritain, na sua pretensão de que o
cristianismo seria a essência da democracia, transcrevo a citação de sua autoria e o breve
comentário que a sucede:
“É claro que não se pode tornar o cristianismo e a fé cristã subservientes a absolutamente
nenhum sistema político e, portanto, tampouco à democracia enquanto forma de governo ou à
democracia enquanto filosofia da vida e da política humanas. Isto resulta da distinção
fundamental introduzida por Cristo entre as coisas que são de César e as coisas que são de
Deus. ... Nenhuma doutrina ou opinião de origem simplesmente humana, por mais verdadeira
que possa ser, mas somente as coisas reveladas por Deus se impõem à fé da alma cristã. É
possível ser cristão e buscar a salvação na luta por qualquer regime político, sob a condição de
que o mesmo não transgrida o Direito natural e a lei de Deus. É possível ser cristão e buscar a
salvação na defesa de uma filosofia política outra que não a filosofia democrática, assim como
se podia ser cristão na época do Império Romano ao mesmo tempo em que se aceitava o
regime de escravidão ou, no século XVII, ao mesmo tempo em que se aderia ao regime
político da monarquia absoluta.” (pá.s. 244/245)7
Comenta Kelsen: é difícil entender como a essência mesma da democracia pode ser o
cristianismo se, enquanto religião, o cristianismo é indiferente aos sistemas políticos. E
adiante: “Maritain explica esse fato da seguinte maneira: não é ao cristianismo enquanto credo
religioso e caminho para a vida eterna que ele se refere ao afirmar uma relação essencial entre
democracia e cristianismo; é ao cristianismo como fermento da vida sócio-política do povo e
como portador da esperança temporal do homem”. Objeta: se o cristianismo enquanto credo
religioso é politicamente indiferente, não poderá fermentar a vida política e tornar-se uma
energia histórica atuante nesse particular.
Kelsen registra que Maritain escreveu o seu livro durante a guerra e manifesta a opinião
de que as democracia ocidentais podem obter a paz, depois de terem ganho a guerra, “somente
se a inspiração cristã e a inspiração democrática reconhecerem-se e reconciliarem-se
mutuamente”. Kelsen reconhece que isto pode ser verdade mas, mesmo assim, não demonstra
nenhuma ligação essencial entre democracia e cristianismo. Caberia lembrar, a esse propósito,
que a associação entre os dois conceitos, expressos na democracia cristã, do pós-guerra, se foi
liderada por políticos plenamente identificados com a Igreja Católica, evitou ciosamente ser
confundida com algo correspondente a uma projeção de sua alta hierarquia, ao tempo em que,
progressivamente, assumiu a feição de vertente integradas por católicos, protestantes, liberais
e conservadores.
Por fim, enfatiza Kelsen, em total conformidade com o ensinamento de São Paulo, tanto
católicos como protestantes têm apoiado qualquer governo estabelecido, seja autocrático ou
democrático. O que não quer dizer, naturalmente, que não possam preferir o sistema
democrático representativo, na medida em que, ao assegurar a plena liberdade religiosa, esse
sistema cria condições as mais favoráveis ao seu florescimento.
II – O processo democrático segundo Dahl
Dahl parte da tese de que as tentativas de teorizar sobre a democracia têm deixado
pontos obscuros e questões sem resposta. A utilização do termo de forma vaga leva à
suposição de que poderia aplicar-se universalmente. Também aqui é necessário limitar e
precisar o objeto. Convém, portanto, enfatizar que a democracia diz respeito à organização da
vida política em sociedade. Desse ângulo, o essencial e definidor consiste no processo de
adoção das decisões que se tornarão obrigatórias. A plena compreensão desse processo,
ainda que não signifique a eliminação de dúvidas e controvérsias, servirá para aferir as
circunstâncias em que estejamos em presença de governos democráticos. Ao privilegiar-se o
processo, estamos trazendo para primeiro plano as instituições garantidoras de seu caráter
democrático. Contudo, não se pode passar diretamente a estas sem assumir determinados
pressupostos teóricos. Estes, certamente, reintroduzem dúvidas e componentes subjetivos,
porquanto se trata de assumir circunstâncias ideais, que nunca se dão com tal inteireza na
realidade. Ainda assim, este é um risco que não pode ser evitado. O mérito de Dahl reside
precisamente na forma como enfrenta tais problemas.
7
Kelsen toma por base a obra Christianisme et démocratie, Paris, P. Hartmann, 1943.
132
proprietários tinham condições reais de contrapor-se ao Monarca absoluto. O novo passo (isto
é, a democratização do sufrágio), portanto, não foi justificado por nenhum princípio geral
associado à idéia de igualdade. É esse tipo de problemática que Dahl pretende ultrapassar ao
assumir um princípio geral confirmado pela experiência e não deduzido da franja do direito
natural, isto é, a mencionada suposição de que o contingente básico da população adulta está
em condições de participar do processo decisório. Essa hipótese (o princípio forte de
igualdade, segundo Dahl) é discutida no livro sobretudo para evidenciar que faculta o passo
seguinte, ao contrário da meditação teórica precedente (Bentham, Mill, etc.). Esse pano de
fundo será melhor compreendido, entretanto, à luz dos critérios definidores do caráter
democrático do processo decisório.
II) “No estágio essencial das decisões coletivas, cada cidadão deve ter assegurada
igual oportunidade de expressar uma escolha que seja equivalente à escolha manifestada por
qualquer outro cidadão. Na determinação dos resultados no estágio decisivo, estas escolhas –
e somente elas – devem ser levadas em conta”. O critério considerado visa possibilitar a
aferição do caráter efetivamente democrático do sistema eleitoral, sem insinuar a preferência
por esse ou aquele método, mas automaticamente apto a desmascarar os simulacros que os
sistemas totalitários e autoritários revelaram-se capazes de inventar.
133
IV) “Os cidadãos devem ter oportunidade de decidir que matérias devem ser
colocadas na agenda das decisões a serem adotadas através do processo democrático”.
De posse desses critérios, Dahl volta a debruçar-se sobre o curso histórico para
aferir, no quadro mundial, quais as nações que seriam classificadas de democráticas a fim de
responder a estas questões magnas: por que somente alguns países são democráticos, a que
condições devem atender as nações que aspirem a consagrar o processo democrático?
Gráfico II
Eleitorado da Inglaterra entre 1831 e 1931
% da população maior de 21 anos
Gráfico III
% dos países democráticos sobre o total
(1860 - 1995)
135
Dahl considera equivocada a atitude dos estudiosos que supõem seja de pouca
significação a presença de subsistemas culturais ou entendem que sequer mereceriam ser
138
“Um país com uma cultura política fortemente favorável à poliarquia atravessará
crises que trariam a sua bancarrota num país onde contasse com menor suporte da cultura
política. Em muitos países, na verdade, inexiste cultura política favorável às idéias e práticas
democráticas. Isto não quer dizer que a poliarquia não possa existir nesse país mas que
provavelmente será instável. Nem que uma cultura política mais favorável não possa surgir no
país em que inexiste atualmente. Na medida em que um país desenvolva uma sociedade do
tipo MDP, por exemplo, é provável que desenvolva e sustente, igualmente, crenças, atitudes e
comportamentos das autoridades mais favoráveis à poliarquia. Mas a evolução da cultura
política é necessariamente lenta e vagarosa em relação às mais rápidas mudanças nas
estruturas e processos de uma sociedade em desenvolvimento. E, de todos os modos, para
grande número de países, uma sociedade do tipo MDP ainda corresponde a um longo
caminho”. (ed. cit., p. 263).
Robert Dahl aborda ainda outras questões a exemplo dos temas da minoria e da
maioria ou das possibilidades e condições da extensão do processo democrático a outras
esferas da vida social. Mas nossa intenção aqui não consistiu em proceder a inventário
exaustivo de sua trajetória de pensador liberal, magistralmente resumida em Democracy and
its Critics. Desejávamos simplesmente chamar a atenção para esse nome, do mesmo modo
que para algumas de suas contribuições ao desenvolvimento da doutrina liberal.
De sorte que o vezo de remontar a democracia moderna ao mundo grego não pode
ser aceito sem restrições. Muito menos supor que nos teria fornecido o modelo apropriado, o
único digno de merecer o nome. Deste modo, não parece justificado o rigor teórico
manifestado por Dahl, ao sugerir uma outra denominação para a democracia moderna. Sem
embargo dessa discordância, sua contribuição, como destacamos, é das mais relevantes.
Merece portanto ser saudada a iniciativa da Editora da Universidade de Brasília de promover
a tradução de On Democracy.
livro – The Thrid Wave. Democratization in the Late Twentieth Century, University of
Oklahoma Press, 1991 – trata das chances da democracia na atual onda liberalizante que
percorre o mundo.
Huntington começa por estabelecer que a democracia, como forma de governo, foi
definida em termos de fontes da autoridade para o exercício do poder, pelos objetivos
perseguidos pelo Governo e, finalmente, pelo processo de constituição dos governos. As duas
hipóteses iniciais conduziram a muitas ambigüidades. A concepção de que o procedimento
central da democracia reside na seleção de seus líderes através de eleições competitivas
alcançou maior fortuna. Segundo Huntington, a mais importante formulação desse
entendimento de democracia é devida a Joseph Schumpeter (Capitalism, Socialism and
Democracy, 1942). Subseqüentemente, tornou-se uma tradição de analistas políticos aderentes
a essa postulação (Robert Dahl, Giovanni Sartori, Alfred Stepan, Juan J. Linz, etc.)
O livro conclui numa análise das possibilidade de reversão, a exemplo das que
surgiram nas ondas anteriores. Desse ângulo atribui certa importância à duração do ciclo
democrático subseqüente à segunda guerra, bem como o relacionamento externo com o
mundo democrático. No que se refere ao último aspecto, considera extremamente favorável a
situação dos países que vieram a integrar um bloco democrático, a exemplo do Mercado
Comum Europeu. Situa o Brasil entre aquelas nações em que tais circunstâncias são
indiferentes ou desfavoráveis, isto é, não há uma influência externa poderosa capaz de criar
uma situação irreversível (como seria, por exemplo, o caso da criação do mercado americano,
resultante do que se está formando entre EE.UU., México e Canadá, ao qual aderíssemos).
Contém ainda uma apreciação das chances (remotas) dos países africanos e islâmicos virem a
engrossar a onda democrática.0
CAPÍTULO QUINTO
A EDUCAÇÃO LIBERAL
Em nosso país tem escapado o sentido profundo da educação liberal, o que talvez
explique a nossa incapacidade de organizar um sistema de ensino apto a atender as
necessidades da sociedade moderna.
São portanto três as questões: 1ª) educação para a cidadania; 2ª) tradição
humanista e 3ª) formação profissional. A maioria dos países ocidentais conseguiu manter
relativa autonomia entre tais objetivos, de modo que os seus sistemas de ensino dão conta das
tarefas para as quais estão constituídos. No Brasil encontram-se embaralhados e superpostos.
De modo que, a pretensão de proceder à caracterização da educação liberal exige sejam,
previamente, deslindados os campos.
146
A educação da Idade Média era muito restrita. Entendia-se que o saber devia ser
cultuado, no sentido próprio do termo. Ser “culto” estava a cargo do clericus, denominação
que só tardiamente estendeu-se à classe sacerdotal como um todo. Laicus aplicava-se a quem
não sabia ler. Seria errôneo dizer-se que o saber era monopólio da elite porquanto o núcleo
básico desta última – os guerreiros – era constituído de pessoas iletradas. Tratava-se de uma
concepção diversa da que se estruturou na Época Moderna.
Lutero refuta a opinião de que seria suficiente que todos aprendessem apenas o
alemão, porquanto a Bíblia e a palavra de Deus podem ser ensinadas nessa língua, de nada
valendo o aprendizado de latim, grego ou hebraico. Semelhante opinião equivale a pretender
que “nós alemães teremos de permanecer bestas e animais grosseiros para toda a vida, pois é
assim que nos chamam nossos vizinhos e parece-me que bem merecemos estes nomes”.
“Minha opinião – diz Lutero – é que se deve deixar os rapazes irem diariamente,
durante uma ou duas horas, à escola, fazendo-os trabalhar o resto do dia em casa, ou aprender
um ofício ou profissão que os pais queiram, de modo que as duas coisas se combinem. Pois
não desperdiçam, de outra forma, dez vezes mais tempo com tiro ao alvo, jogo de bola,
corridas e brigas? Do mesmo modo, pode uma moça ter tanto tempo, que dê para ir à escola,
por uma hora, sem que isto crie impedimentos aos seus afazeres de casa, já que, normalmente,
passa o tempo dormindo, dançando e brincando, desperdiçando horas preciosas ... Aqueles,
porém que formam um grupo de escol, oferecendo esperanças de poderem servir, com
habilidade, como professores e mestres, como pregadores ou em outras funções eclesiásticas,
devem freqüentar por mais tempo as escolas, ou continuar a estudar sempre”.
Transcorreria muito tempo até que, dessas diretrizes dispersas, surgisse uma nova
doutrina educacional. Na verdade, esta esteve muito mais na dependência de uma longa
prática que foi muitas vezes interrompida em decorrência das guerras religiosas e da
intolerância que os protestantes só fizeram fomentar. De todos os modos, com diferentes
níveis de qualidade e outras singularidades que assinalaremos, as chamadas “escolas
148
Ali onde a doutrina protestante encontrou logo uma igreja dominante (Luterana na
grande maioria dos principados alemães e na Prússia; Presbiteriana, na Escócia, etc.) o
processo de conversão dessas escolas num serviço público não apresentou maior
complexidade. Entretanto, nos países em que havia multiplicidade de seitas protestantes, a
transição foi muito conturbada. Ainda assim, com maior ou menor intensidade, esses países
chegam às últimas décadas do século XIX com o denominado sistema de educação popular
plenamente concebido.
Alemanha
Como reação à derrota imposta pelas tropas napoleônicas, surgiu na Prússia, e nos
principados alemães de maioria protestante, uma campanha de renovação nacional centrada
na educação. Disso resultou que a Universidade alemã, ainda no século XIX, viesse a exercer
liderança científica. A iniciativa alcançou também o nível de ensino aqui considerado.
Inglaterra
A par do ensino obrigatório para todos, até a escola secundária, a Inglaterra dispõe
de sistema de formação profissional, de nível médio e superior, mantido pelo setor público e
pelas empresas privadas, e de um amplo sistema de difusão cultural, estruturado com base no
ensino a distância mantido pela Open University e apoiado pelos programas culturais exibidos
na televisão.
Estados Unidos
importância ao ensino das primeiras letras aos seus filhos, sendo esta uma função das famílias
e das igrejas. Entretanto, a organização de um sistema de ensino público só iria ocorrer depois
da Independência e, sobretudo, no período subseqüente à guerra civil (1861-1865).
Outro problema crítico consistia em retirar das escolas seu caráter confessional ou
de características isolacionistas, para atender a imigrantes recém-chegados. A par da própria
tradição americana de vincular ensino e determinada comunidade religiosa, os novos
152
De sorte que, antes dos fins do século XIX, os Estados Unidos haviam lançado as
bases da constituição de um sistema de ensino elementar aberto a todos, financiado com
recursos públicos. Para semelhante desfecho muito contribuíram inúmeros educadores.
Talvez se possa dizer que a educação americana é aquela que formulou com maior
clareza o princípio da educação para a cidadania. A obrigatoriedade estende-se a última série
do High School, equivalente ao nosso segundo grau. Em média, cerca de 90% das crianças
freqüentam e concluem esse nível de ensino.
França
Japão
grandes reformas introduzidas na chamada Era Meiji, que dura de 1868 a 1912 e põe fim ao
sistema feudal e abre o país ao Ocidente. O código fundamental da Educação é de 1872 e,
embora reflita influências pedagógicas inglesas, alemãs e francesas, estas dizem respeito
sobretudo à forma organizacional e ao ensino da ciência, sem interferir na preservação dos
valores da cultura japonesa. Em 1880, o Japão já dispunha de número de escolas suficiente
para atender à população e, na virada do século, 98% das crianças em idade escolar
encontravam-se na escola, percentagem que se mantém em nossos dias. Os analfabetos são
menos de 0,7% e embora a obrigatoriedade do ensino seja equiparável à brasileira (nove anos
no caso japonês), praticamente todos os alunos, isto é, cerca de 95% passam ao curso colegial
(constituído de três séries, como o nosso segundo grau), sendo que 34% o concluem
integralmente.
O ano letivo abrange 240 dias, sendo que cada série tem em torno de mil horas de
aula, o que dá média de 125 horas/mês.
O aspecto que mais profunda impressão tem causado aos estudiosos do sistema
educacional japonês diz respeito ao papel que nele desempenham as mães. No livro O desafio
educacional japonês, da estudiosa norte-americana Merry White, cuja tradução brasileira
apareceu em 1988, afirma-se o seguinte: “A esmagadora maioria das mães japoneses desiste
de suas próprias oportunidades profissionais durante os anos que seus filhos estão na escola,
para poder ajudá-los em suas lições de casa ou simplesmente estar por perto, quando for
necessário. A seu ver, tal singularidade assegura desenvolvimento emocional mais
harmonioso das crianças de sorte que, na escola, a ênfase não recai na disciplina, mas no
desenvolvimento pessoal. Assim, a família, e sobretudo as mães, são uma parcela decisiva
daquilo que a autora denomina de “opção nacional pelas crianças”.
2º) suporte da coesão nacional; 3º) meio adequado do desenvolvimento pessoal; 4º) elemento
de construção do caráter moral; 5º) instrumento de preservação das tradições e da
continuidade cultural e, finalmente; 6º) como ensejando a criação e a manutenção do inter-
relacionamento pessoal.
Nos principais países europeus, nos Estados Unidos e Canadá, do mesmo modo
que no Japão, há uma consciência profunda de que o adequado aproveitamento dos recursos
naturais e de outras potencialidades nacionais encontra-se na estrita dependência da educação.
Quando se faz semelhante enunciado, nesses países, tem-se presente, antes de mais nada, a
educação geral, facultada a todos e não apenas os investimentos em pesquisa e
desenvolvimento e formação de técnicos de nível superior.
O caráter desse tipo de escola nunca escapou aos grandes educadores brasileiros.
Referindo-se à década de trinta, no seu livro clássico A Cultura brasileira, Fernando de
Azevedo diz que “as escolas em que se ministra o ensino humanístico ... não se
democratizaram tanto que possam considerar-se uma escola para o povo, nem pela sua
expansão quantitativa nem pelos seus objetivos e organização”.(2) O próprio crescimento
ocorrido neste pós-guerra não teve em vista alterar-lhe a missão mas atender à urbanização
crescente. Na época da guerra o número das escolas secundárias oscilava em torno de 500
passando a 2000 nos anos cinqüenta.
156
O país viveu uma situação excepcional dos anos seguintes, não vindo a merecer
qualquer prioridade o princípio em causa. O mais grave é que a Constituição de 1967, ao
transcrever a norma anterior, dá-lhe redação e visivelmente equivocada. Diz-se ali (artigo 168,
157
§ 3º) que, na fixação dos princípios e normas, a serem observadas pela legislação do ensino,
figuram: “I – o ensino primário somente será ministrado na língua nacional; II – o ensino dos
sete aos quatorze anos é obrigatório para todos e gratuito nos estabelecimentos primários
oficiais”. Parece óbvio que se tem em vista o ensino primário (quatro séries), mas a faixa
etária dos sete aos quatorze abrange oito anos.
Era de todo evidente que o país não tinha condições de implantar sistema de
educação popular abrangendo desde logo oito séries. O que se impunha era o reconhecimento
do erro e a retificação da Carta. Mas como esta havia sido imposta pelos militares – e apesar
do fato de que logo no ano seguinte a mutilaram totalmente ao introduzir o chamado Ato
Institucional nº 5 –, apareceram pretensos educadores que se prestaram ao papel de conceber
uma “fórmula” que minimizasse a gafe. A Lei 5.692, de agosto de 1971, deu àquela diretriz a
seguinte redação: “O ensino de primeiro grau será obrigatório dos sete aos quatorze anos,
cabendo aos municípios promover, anualmente, o levantamento da população que alcance a
idade escolar e proceder à sua chamada para matrícula”. De uma penada acabava-se com o
sistema secular e que, de alguma forma, funcionava, compreendendo o primário e o
secundário, este subdividido em ginasial e colegial. Os falsos educadores fizeram outras
tantas enormidades, entre estas a de eliminar as referências à sociologia, rotulada de
“subversiva”, que só teve por efeito “politizar” o ensino de geografia e história, já que
enfiadas no saco único dos “estudos sociais”. Para não falar da irresponsável multiplicação de
profissões de nível superior.
com a educação para a cidadania. Eis o princípio apto a nortear a política educacional
brasileira.
Para não deixar de dizer uma palavra sobre questões-chave, ainda que não direta e
exclusivamente relacionadas ao tema da formação para a cidadania. O que estamos propondo
aqui é simplesmente a recomposição da liderança liberal na educação brasileira, tendo em
vista que foi virtualmente destroçada durante o ciclo de governos militares e nunca mais se
160
reconstituiu. Tal não ocorrerá, entretanto, se não derrotarmos a influência socialista, cuja
ascensão foi facilitada no último período autoritário, justamente porque somente os liberais
poderiam impedi-lo. Para tanto teríamos que colocar em primeiro plano a recuperação do
prestígio social dos professores. A influência socialista é responsável, em grande medida, pela
situação de desprestígio a que chegaram. Hoje não mais se notabilizam por serem os
guardiões dos valores em que repousa nossa cultura, tendo sido reduzidos à condição de
categoria sindical, que promove passeatas em lugares impróprios e a fim de perturbar a vida
das cidades e sucessivas greves nas instituições públicas. Não é por esse caminho que a
sociedade voltará a ter apreço pelo professorado, mas cuidando de despertá-la para o caráter
prioritário de alguns segmentos da educação.
humanista. Esta era certamente uma tarefa de que se desincumbia a universidade, naquela fase
histórica, mas aqui o pensamento liberal introduziu algumas modificações que precisariam ser
caracterizadas.
A idéia é de que, em cada sociedade, deve haver um núcleo, tão amplo quanto
possível, constituído de pessoas possuidoras de cultura geral, cuja conceituação enfatiza os
seguintes aspectos:
científicas; e,
Para dar uma idéia do trabalho desenvolvido, nada melhor que tomar um de seus
balanços anuais, no caso o do ano de 1988, publicado em Humanities.
mil pessoas. Documentários de caráter histórico, para exibição em cinemas e vídeoclubes, são
vistos por milhões de pessoas.
As estatísticas não são tudo, diz em seu balanço a conhecida educadora Lynne V.
Cheney, na época diretora da National Endowment for the Humanities. Mas são reveladoras
do interesse que se conseguiu despertar pelos temas relacionadas às humanidades. Assinale-se
que tais resultados decorrem de um esforço empreendido naquela direção, sem
desfalecimentos. A NEH oferece bolsas generosas tanto para a tradução e a edição de
filósofos como para a encenação de peças, organização de debates, cursos, etc. Humanities
registra a maneira como professores ligados ao ensino convencional sentem-se gratificados
pelo desafio que representa essa conquista do público incerto para assistir a cursos não
regulares.
Para não perder o esforço então dispendido, juntamente com Leonardo Prota e
Ricardo Vélez Rodríguez, criamos o Instituto de Humanidades, com sede em São Paulo, para
165
elaborar guias de estudo, recuperar traduções e promover outras, e chegar a uma lista de obras
cuja leitura deveria constituir o currículo de um CURSO DE HUMANIDADES.
No século passado, optamos pelo modelo francês das grandes escolas e logramos
implantá-lo com sucesso. No largo ciclo de sua vigência, o Brasil conseguiu formar
renomados médicos, dispor de uma engenharia conceituada, contar com juristas de excelente
capacitação, etc. O movimento em prol da Universidade, desencadeado nos anos vinte, visava,
com a sua criação, instituir a pesquisa científica e o estudo das humanidades em nível
superior. Contudo, não foi organizada com essa característica, mas como uma federação de
escolas isoladas. A massificação empreendida pelos governos militares prejudicou
significativamente o nível daquela formação, bastando, para comprová-lo, o exemplo adiante.
166
Diplomando dez mil médicos por ano – fato desconhecido na educação ocidental
– o Brasil chegou aos fins da década de oitenta com número de médicos superior ao existente
em cada um dos principais países europeus. Na maioria das cidades, a disponibilidade desses
profissionais ultrapassa a verificada nos centros urbanos das nações capitalistas. Na avaliação
do Presidente da Associação Médica Brasileira, Antonio Celso Nunes Nassif, 40% dos novos
profissionais diplomados em cada ano "são completamente despreparados, pois estudam em
faculdades onde o nível de ensino é deficiente e as aulas práticas inexistem" (O Globo,
13/11/1998).
Eis por que o tema do ensino profissional tornou-se irrecusável para o pensamento
liberal brasileiro. Atrevo-me a formular alguns princípios:
Nessa matéria, aliás, a agenda liberal é bem mais ampla e não se restringe à
educação. Na entrevista que concedeu ao jornalista italiano Vicenzo Ferrari e que se publicou
em forma de livro com o título de O liberalismo e a Europa (Roma, 1979), Ralf Dahrendorf
formula-a neste termos: "O mais importante para o pensamento liberal é começar a ponderar,
em termos novos, como a vida humana está estruturada na sociedade. O sistema atual, que
estatui uma primeira fase dedicada à instrução, uma longa fase intermediária dividida
rigidamente entre o trabalho e o tempo livre, e uma última e longa fase de aposentadoria,
obviamente não funciona mais. É preciso descobrir uma forma de integrar, segundo novos
critérios, todas estas atividades: a instrução, o trabalho, a aposentadoria e outros interesses
humanos, o que implica grandes mudanças nas esferas econômica, social e política, que
distingue apenas por comodidade." Na ocasião, Dahrendorf exercia as funções de reitor da
London School of Economics. Presentemente integra a Câmara dos Lordes da Inglaterra,
sendo autor de diversos livros, dentre os quais foram publicados no Brasil As classes e seus
conflitos na sociedade industrial e Sociedade e liberdade, entre outros.
Esse renomado pensador previa que as mudanças requeridas iriam esbarrar na
resistência das universidades e dos sindicatos. Quanto a estes últimos, nos embates com o
governo Thatcher, as Trade Unions sofreram uma fragorosa derrota.Tony Blair soube valer-se
da circunstância para modernizar o Partido Trabalhista, o que contribuiu para preservar o seu
isolamento. Nos governos de Gerhard Schroeder, na Alemanha, os sindicatos aceitaram a
adoção de novo modelo para as aposentadorias, baseado no seguro. Ainda resistem às demais
reformas mas tudo indica que acabarão por aceitá-las. A reunificação elevou o desemprego a
níveis insuportáveis, situação que requer medidas enérgicas e dolorosas. Também na Holanda
os sindicatos deixaram de constituir obstáculo às imprescindíveis correções no modelo social
vigente. Na França, entretanto, os sindicatos têm impedido qualquer mudança mais profunda,
o que acaba afetando a toda a Comunidade, dado o papel que o país nela desempenha.
No que respeita à Universidade européia, o ano letivo 2005/2006 coroa o processo
de unificação do ensino profissional, a fim de possibilitar a livre circulação de diplomas. As
diretrizes em vigor resultam do chamado Protocolo de Bolonha, assim denominado o
documento em que as universidades estabeleceram as novas regras e prazos para serem
concluídas s requeridas adaptações, adiante resumidas.
Todos os cursos profissionais de graduação passam a ter duração de três anos,
com exclusão da medicina e do direito. O mestrado terá que ser concluído em dois anos e o
doutorado em três. Ao mestrando que não elaborar a correspondente dissertação poderá ser
fornecido o título de pós-graduado.
169
Ainda que a discussão antes resumida não tenha chegado ao Brasil – e muito
provavelmente continuará sendo ignorada pela espécie de liderança educacional que se
encastelou nos postos oficiais -- sabe-se que muitas famílias reavaliara a sua preferência por
escolas experimentais permissivas. Muitos professores das escolas tradicionais
responsabilizam-nas, também, pelo fenômeno das drogas entre estudantes e igualmente pelo
comportamento indisciplinado dos alunos nas classes.
171
Ainda assim, na avaliação dos signatários da Proposta Paideia, uma parte das
escolas optou pelo denominado “ensino vocacional”, que dedica grande parte do tempo
escolar ao aprendizado profissional. Essa escolha constitui uma violação frontal dos
princípios que norteiam a educação para a cidadania. Além disto, crianças oriundas de
famílias carentes chegam à escola com preparo inferior ao conjunto, estando condenadas à
condição de retardatárias. A Proposta Paideia dirige-se à sociedade americana convocando-a
a superar tais problemas, do mesmo modo que outras deficiências registradas pelo sistema. O
lema em que se baseia é o seguinte: “a melhor educação para os melhores é a melhor
educação para todos”.
O currículo deve ser obrigatório para todos, admitida como única exceção a
escolha de uma segunda língua. Subdivide-se em três troncos básicos, sendo o primeiro a
aquisição de conhecimento organizado mediante o sistema convencional de aulas nas áreas de
I) Língua, Literatura e Belas Artes; II) Matemática e Ciência Naturais; e, III) História,
Geografia e Estudos Sociais. O segundo tronco é constituído pelo desenvolvimento de
habilidades intelectuais, imprescindíveis à aprendizagem, que se alcança pelo exercício
repetitivo, compreendendo estas operações: Ler, Escrever, Falar, Ouvir, Calcular, Resolver
Problemas, Avaliar, Exercer Julgamento Crítico. Embora não se trate de desenvolver
habilidades intelectuais, mas da aquisição de hábitos saudáveis, a esse grupo agrega-se, como
matérias auxiliares, educação física e higiene pessoal. Finalmente, o terceiro tronco consiste
numa novidade: assegurar a compreensão ampla de idéias e valores mediante a leitura e
discussão de livros (diversos livros-texto) e proporcionando, também, o envolvimento em
atividades artísticas.
O que ocorreu em poucos países pela primeira vez no século XX, deu origem
apenas às condições iniciais de uma sociedade democrática. Ainda está para ser visto se essas
condições serão preservadas e bem usadas e se essas promessas para o futuro serão
cumpridas.
resultado pressupõe um melhor ensino básico para todos, assim como um melhor ensino
avançado para alguns.(8)
V – Nota Bibliográfica sobre o confronto entre o ensino público e privado nos EE.UU
Terry M. Moe no ensaio “Política, Markets and the Organization of Schools”, aparecido na
American Political Science Rewiew (volume 82; nº 4, dezembro, 1988). Aqui vamos nos
limitar a destacar o que nos parece essencial. Embora não haja termo de comparação possível
entre as situações brasileira e norte-americana, no aspecto considerado, e para qualquer país
do mundo, alcançar os níveis de desempenho de sua escola pública continua sendo um
desafio, é interessante consignar alguns elementos que tenderão a ocupar uma posição de
relevo, na medida em que sejamos capazes de sair do atoleiro em que nos encontramos.
ANEXO I
1º Ano
178
Aristóteles - Poética, Física (*), Metafísica (*), Ética a Nicômaco (*), A geração e a
corrupção, Política, Partes dos Animais (*) e geração dos Animais
Euclides - Elementos
2º Ano
A Bíblia (*)
Virgílio - Eneida
Tácito - Anais
Sakespeare - Ricardo II, Henrique IV, Henrique V, A tempestade, Como gostais, Na noite
de Reis, Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear, Sonetos (*)
3º Ano
Hobbes - Leviatã
Racine - Fedra
Kepler - Epítome IV
4º Ano
Kafka - O processo
ANEXO II
De todos os modos e por maior que seja a conjugação, são autônomos os grupos
que se ocupam da pesquisa básica e os que se acham voltados para a pesquisa tecnológica,
também denominada de aplicada ou industrial. Achando-se associados a grandes empresas,
estes últimos não trabalham apenas a partir de resultados obtidos na pesquisa básica, mas
também de exigências de aprimoramento das próprias linhas de produção que a empresa
mantém.
grande indústria. É também errônea a impressão de que os inventores autônomos são pessoas
criativas e sem maior qualificação técnica. Os mais bem-sucedidos são, ao contrário, pessoas
altamente qualificadas, como Leo Baekeland, que inventou o FM; Edwin Lande, que inventou
a câmera Polaroid, e assim por diante.
NOTAS
(1)
O ensino secundário no Império Brasileiro, São Paulo, EDUSP, 1972.
(2)
A cultura brasileira, 5ª edição, São Paulo, Melhoramentos, 1971, p. 727/728.
(3)
A tentativa de criar uma universidade que se ocupasse da formação humanista e do estudo
desinteressado da ciência, embora tivesse alcançado resultados promissores, não teve
continuidade. O balanço dessa experiência pode ser encontrado em A. Paim. A UDF e a
idéia de Universidade, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1981 e, em relação aos
primeiros tempos da USP, em Simon Schwartzman. Formação da comunidade científica
no Brasil, FINEP/Editora Nacional, 1979.
(4)
A experiência deste pós-guerra, sobretudo norte-americana, veio comprovar não serem
incompatíveis os objetivos dos educadores católicos (preservar o caráter humanista da
cultura) e a corrente formada a partir de Dewey, enfatizando o papel da ciência. O debate
teórico entre os dois grupos, de certa forma resumido no livro A educação para o homem
moderno, de Sidney Hook (trad. brasileira, Zahar, 1965), permitiu concluir que a ciência
é parte do ensino geral de humanidades em seu aspecto histórico. As ciências aplicadas é
que se destacam para permitir a formação profissional.
(5)
A defesa da diversificação – fundamentando-se na experiência dos principais países
europeus e dos Estados Unidos – é empreendida por Leonardo Prota no livro Um novo
modelo de Universidade (São Paulo, Convívio, 1987).
(6)
Nessa matéria, o maior escândalo ainda é o monopólio do exercício da profissão de
jornalista por pessoas diplomadas.
186
(7)
A pesquisa desenvolvida em nossas universidades limita-se a repetir o que já foi feito nos
países desenvolvidos, segundo linhas escolhidas arbitrariamente, sem anuência dos
interessados, isto é, dos que contribuem, através de impostos, para torná-las factíveis.
Desconhece-se qualquer descoberta relevante que haja resultado de tais pesquisas, para
não falar do fato de que, embora a nossa comunidade científica seja excessivamente
pretensiosa, nunca mereceu nenhum Prêmio Nobel nem parece cogitar desse tipo
reconhecimento, contentando-se com a autopromoção.
(8)
The Paideia Proposal foi editada pelo Institute for Philosophical Research, em 1982. A
tradução brasileira, de responsabilidade da Editora Universidade de Brasília, é de 1984.
187
CAPÍTULO SEXTO
The Poor Law Report afirma ainda que a inexistência de uma relação
direta entre o bem-estar da família, e os salários, determinados mediante contrato,
constituía uma flagrante violação da lei da natureza, segundo a qual os efeitos da
imprevidência de cada homem devem recair sobre eles mesmos e sua família, de
igual modo como serão os próprios beneficiários de sua virtude e diligência. A
ausência da noção de que a subsistência depende do trabalho envolve
obrigatoriamente a perda do respeito por si mesmo e pela ocupação, de que acabam
se desincumbindo “com a relutância do escravo”. A conclusão está vazada em
termos tais que Himmelfarb não se furta a transcrever as próprias palavras do
relatório: “Por esse caminho, tornam-se preguiçosos, indolentes, ignorantes, ociosos,
desonestos, fraudulentos, inúteis, dissolutos, degradados e ainda indiferentes à
própria degradação.”
convívio social. Este era o ônus da troca dos riscos da independência pela
segurança facultada aos indigentes.
avançou um argumento que estava destinado a alcançar grande sucesso. Disse ele
considerar que a mencionada lei “havia desgraçado o país mais que qualquer outra
iniciativa. Sendo um atentado moral e um erro crasso, anuncia ao mundo que, na
Inglaterra, a pobreza é um crime”. Para Disraeli e, em geral, a liderança
conservadora e a imprensa que os apoiava, as Casas de Trabalho não passavam de
uma prisão disfarçada. Assim, desde o nascedouro, as casas de trabalho viram-se
estigmatizadas. Com o correr do tempo, acabaram consagradas como locais de
extrema crueldade, não obstante a aparência de limpeza e higiene que se
esmeravam por ostentar.
Embora nessa altura os dois grandes partidos ingleses fossem sobretudo blocos
parlamentares e não houvesse entre eles as distinções nítidas que a subseqüente discussão do
livre-cambismo e das reformas eleitorais iria estabelecer, a idéia de que a pobreza não se
resumia a uma questão de caráter religioso ou moral, requerendo um posicionamento político
e legal, ficou desde logo associada ao Partido Liberal. Do mesmo modo que a distinção entre
pobre e indigente, bem como a importância atribuída ao contrato de trabalho. Mais tarde os
liberais iriam desenvolver plenamente uma posição autônoma em relação à questão do
trabalho, como veremos oportunamente, sem perder de vista os princípios fixados a partir da
discussão suscitada pela Lei dos Pobres de 1834.
No momento de sua aprovação, não havia na Inglaterra correntes
socialistas distintas ou afeiçoadas ao movimento trabalhista, como ocorreria
notadamente na segunda metade do século. O ludismo não tinha qualquer futuro,
em que pese o sucesso inicial. Contudo, autores ligados ao que Himmelfarb
denomina de populismo, como William Cobbert, posicionavam-se abertamente
contra a nova legislação. Na medida em que se formam correntes definidas e
estruturadas, os socialistas não revelariam maior interesse pela questão dos
desafortunados, que os liberais consideraram de forma distinta do mundo do
trabalho.
Além do cólera, as cidades eram varridas por epidemias de tifo e febre amarela,
provocando a disenteria elevados níveis de mortalidade infantil. Tais eventos geravam pânico
e desorganizavam a vida urbana.(6)
A par dos aspectos sanitários antes resumidos, a questão da pobreza nos novos
centros industriais foi sobrecarregada por toda uma série de problemas correlatos, na medida
em que se tornou objeto da preferência de alguns escritores românticos. Como recorda
Seaman no livro antes mencionado, contribuíram para a popularização de uma caricatura da
Era Vitoriana como o período histórico em que emergem os horrores dos sistema fabril e a
exploração da classe operária ou como uma fase de hipocrisia moral e de crueldade com as
crianças. Entre os autores que nos legaram tal visão sobressai Charles Dickens (1812/1870).
Folhetinista de sucesso,(7) muito jovem, aos 25 anos, está entre os que mais divertem. As
aventuras do sr. Pickwick, que aparecem em capítulos no Morning Chronicle, em 1837, o
maior jornal de circulação no país,(8) contam episódios muito engraçados do herói que dá
título à história e seu criado Sam Weller, fazendo emergir do texto personagens inesquecíveis.
Escreveu-se na época que a Inglaterra ri e chora com as aventuras do personagem de Dickens.
Registro, desde logo, que, na Inglaterra, foi o Partido Liberal que assegurou a
possibilidade de ter curso prático a resolução do Congresso das Trade Unions, de 1899, de
alcançar representação parlamentar autônoma. O órgão então criado denominou-se Labour
Representation Committee e os primeiros representantes trabalhistas foram eleitos na legenda
do Partido Liberal. A adoção do nome de Labour Party é de 1906 e ainda tardaria muito até
que o Partido Trabalhista desse feição definitiva à sua complexa estrutura.(12)
interesses, de que a representação incumbe, dar conta. Por tudo isto, deve ser considerada
muito relevante a descoberta de Freeden.
Em sua análise Freeden menciona grande número de autores que intervieram nas
discussões dos fins do século anterior e começos deste, na Inglaterra, como J. A. Hobson,
G.E. Russell, R.B. Haldane, o próprio Joseph Chamberlain e diversos outros. Contudo,
sobressai Leonard T. Hobhouse (1864/1929), cujo texto básico Liberalism (1911) tornou-se
um clássico, sendo sucessivamente reeditado.(13) Suas idéias serão tomadas por base para
explicitar aquela diferenciação.
Como se vê, desde o começo deste século, os liberais estavam de posse dos
elementos doutrinários que lhes permitiram traçar a linha de atuação que conduziu ao Welfare
State sem concessões ao socialismo. A oportunidade para a determinação concreta dessa linha
de atuação, na opinião de Michael Freeden, surgiria com o governo de Lloyd George, entre
1906 e 1914, quando se institui a pensão para os velhos, discute-se amplamente a questão do
mínimo vital e será fixada uma primeira diretriz para fazer face ao desemprego.
decorrência da Lei dos Pobres (1834), que deveriam ter tido a capacidade de facultar
aprendizado ou trabalho digno para os setores mais pobres, não tendo alcançado tais
objetivos. A necessidade de uma nova política era reconhecida pelos dois maiores partidos
ingleses, do mesmo modo que reclamada por diversos segmentos da sociedade. O novo
estatuto chamou-se Old Age Pension Act, aprovado em 1908, garantindo pensão mínima para
idosos e necessitados em geral, sem a obrigatoriedade da contribuição prévia. A nota
distintiva do Partido Liberal em face da nova legislação, isto é, a singularidade do
posicionamento do liberalismo consistia na linha de argumentação a que recorreu para
justificá-la. Na opinião de Freeden, caberia a J.M. Robertson – autor de diversas obras muito
valorizadas no período, como O Futuro do Liberalismo (1895) e A significação do liberalismo
e Estudos Sociais, de 1905 – desenvolver do modo o mais coerente a descoberta da questão
social pelo pensamento liberal. Escreveu Robertson, na época, que, “à parte o aspecto
humanitário em relação à penúria absoluta ou à degradação a que estavam condenados os
pobres idosos, o essencial é que se tratava de uma questão de justiça. Se o Estado é devedor
de uma pensão aos seus servidores – soldados, marinheiros, funcionários dos correios e
membros da Polícia –, tal benefício é igualmente devido a todos aqueles que se tenham
ocupado de atividades legais”. Robertson baseava-se “no reconhecimento da presença do
elemento social em todo o comportamento social e na dependência mútua e na interconexão
que caracteriza as sociedades humanas. O seguro social para os idosos estabeleceria aquilo
que, do ponto de vista do novo liberalismo, constituiria o cerne da matéria: correspondeu ao
novo e amplo reconhecimento da condição de membro a que têm direito todos os integrantes
da comunidade”.(16)
No curso do debate que teve lugar no começo do século ainda foram discutidas
questões que perderam inteiramente a atualidade, como a necessidade de obras públicas para
conter o desemprego; o caráter dessas obras quanto à sua utilidade social; o que fazer com os
que não quisessem trabalhar, diante da evidência da presença desse tipo de gente nas “casas
de trabalho” resultante da Lei dos Pobres, etc. O importante e característico é que a solução
tivesse sido encaminhada no sentido da criação de um seguro social.
nessa direção, a lei facultou incentivos de que resultaram a criação dos Fundos de Pensões,
que passaram a constituir-se numa fonte geradora de investimentos.
Quanto aos aspectos teóricos mais relevantes, à luz da pesquisa realizada por
Freeden e que aqui estamos seguindo, diz respeito ao aprofundamento do conceito de
comunidade resultante da discussão do que seria “direito ao trabalho”. Resumidamente, na
visão liberal, não há como transformar esse “direito” em algo que não seja atentatório a outros
valores fundantes da vida social, como a liberdade de iniciativa. O que o Estado deve prover é
a igualdade de oportunidades, questão que entronca com a escola, na forma em que foi
suscitada naquele período e passamos a referir.
mostrar a inconsistência da proposta socialista que pretendia que todo o ensino público
assumisse a obrigação de fornecer alimentação gratuita. Esse tipo de proposta tangenciava o
problema que a comunidade propunha-se resolver, tomando-o simplesmente como pretexto
para introduzir novas formas de organização social, comprometedoras da liberdade e
desestimuladoras da responsabilidade individual. Com a subseqüente complexidade assumida
pela vida urbana – e a necessidade de reter os alunos, praticamente durante todo o expediente-
-, o tema em causa assumiu outra característica. Tanto a escola pública, como a privada,
passaram a dispor de dependências aptas a atender às novas atribuições, notadamente no que
respeita à alimentação, mas também a outras funções assumidas pela Escola, a exemplo da
orientação profissional e pedagógica.
Deixaremos para efetivar, no próximo capítulo, uma análise mais detalhada dos
destinos da seguridade social européia tendo em vista encontrar-se numa situação de crise.
Como essa crise não atinge o modelo norte-americano, tornou-se imprescindível confrontar as
duas modalidades.
Para situar de pronto essa questão, apresentamos desde logo um gráfico muito
expressivo, elaborado pela Revista Time em fins da década de setenta.
208
Como nenhuma de tais iniciativas poderia ser atribuída a Keynes, comprova-se ser
indevida a atribuição desse fenômeno ao keynesianismo. É certo que os trabalhistas ingleses o
entenderam como uma capitulação dos liberais, diante de sua pregação.
Diante dos choques provocados pelo aumento dos preços do petróleo nos anos
setenta, tornou-se patente a fragilidade da economia européia estatizada. Surgiram diversas
hipóteses para explicar o fenômeno., sem que nenhuma delas possibilitasse uma fórmula
capaz de enfrentar e debelar seja a espiral inflacionária seja a estagnação econômica. Esse
quadro exigiu até a criação de um novo adjetivo: estaginflação. Com a vitória conservadora,
na Inglaterra, em 1979 e sua permanência no poder durante largo período, foi possível
demonstrar onde residia a raiz do desastre. Os setores estatizados foram privatizados e as
209
Trade Unions perderam o seu poder de paralisar a vida econômica do país. O feito seria
devido a Margareth Thatcher, chamada de Dama de Ferro.
Esse nome não traduz o seu verdadeiro papel, na medida em que sugere algo de
sombrio. Na verdade, introduziu na Europa uma nova dinâmica, verdadeira lufada de ar
fresco.
plenamente essa característica ao aderir à Terceira Via, liderada por Tony Blair. A atuação
desse partido explica o significado singular que o adjetivo liberal (aplicado aos democratas)
adquiriu nos Estados Unidos.
universalmente, forma de reduzir o nível das aplicações nas atividades-fins. Em toda parte do
mundo e sob todos os regimes, a burocracia estatal trata sobretudo de maximizar os próprios
benefícios.
Escreve Nisbet: “A igualdade tem todos os requisitos para tornar-se uma idéia
religiosa e providencial em nossa época. É simples, pelo menos em sua concepção imediata;
é capaz de aplicação ao conjunto da população, e, do mesmo modo, a toda a humanidade;
pode-se apresentá-la como sendo o maior propósito da moderna experiência social e política,
na verdade, um objetivo contido na própria essência da história universal. Finalmente,
encontra-se na idéia de igualdade aquele impulso para a revolução permanente existente em
numerosos valores religiosos – pelo menos naquelas religiões universais como o cristianismo,
o islamismo e o budismo no momento de sua fundação –, na medida em que se contrapõem às
tradições e leis do meio circundante”. (Obra citada, p. 124).
marca distintiva de todas as revoluções no Ocidente. Ao promover novos valores que vieram a
integrar a moralidade social – como o trabalho, a perseverança, a eficiência, a capacidade
empreendedora, etc. – a tradição liberal conseguiu neutralizar o igualitarismo radical, que de
fato só emerge nas crises revolucionárias. Nisbet diz que, segundo toda evidência, “largos
contingentes de americanos são atualmente indiferentes, senão hostis, a toda política social
nutrida pelo igualitarismo. Contudo, enfatiza, nos meios intelectuais, semelhante propósito
não desapareceu”. Pretendendo destacar a importância de sua descoberta quanto à redução,
neste pós-guerra, da intensidade do ritmo com que se vinha eliminando as desigualdades de
renda, na pesquisa antes referida, Christopher Jencks escreve: “O problema crucial é que são
relativamente poucos os que vêem a desigualdade de renda como um problema sério”.
Segundo Nisbet, o exemplo mais flagrante desse afã de igualitarismo, entre os intelectuais,
encontra-se na Teoria da Justiça, de John Rawls.
Embora nos tenhamos detido em sua análise no tópico precedente, não poderia
deixar aqui de mencionar suas argutas observações. Eis a primeira objeção de Nisbet: “Como
historiador e cientista social, não desejaria proclamar a supremacia de uma virtude sobre as
outras, notadamente que isto pudesse ser apreendido intuitivamente. Mas, se especular em
relação àquilo que a maioria de nós apreenderia “intuitivamente”, parece-me que não seria a
Justiça, qualquer que seja a forma como a definamos. Mas provavelmente seria proteção ou
segurança, seguida de perto por conservação (no sentido de perpetuação de normas e estilos
de vida).
É certo não haver dúvidas de que nossos mais remotos ancestrais hajam
expressado concepções de justiça, ainda que rudes. Concedo ainda que poucas pessoas, hoje
como no passado, disponham-se a manifestar uma preferência positiva pela injustiça, uma vez
que esse valor lhe seja apresentado como opção e convenientemente descrito. Mas declarar,
como argumento-chave de um livro de 600 páginas sobre moral, que a Justiça é a virtude que
se alcança intuitivamente como elemento primeiro das instituições sociais, corresponde a dar
as costas à história e também, segundo entendo, aos sentimentos concernentes à segurança e à
conservação presentes à nossa vida cotidiana”. (op. cit., p. 134).
“distorções” que a vida social teria ocasionada à natureza humana e postulavam esta última
segundo a sua própria escala de valores. O exemplo clássico é o “bom selvagem” de
Rousseau.
Nisbet assinala ainda que, do mesmo modo que Rousseau, Rawls esbarra com a
família, proclamando-a como fonte de desigualdade. Seria o caso de aboli-la? Pergunta e não
vacila em dizer que a idéia de igualdade de oportunidade aponta naquela direção. Ressalva
apenas que, no contexto da teoria da justiça como um todo, “torna-se menos urgente que siga
esse curso”. No particular, Rousseau foi sem dúvida mais corajoso. A experiência totalitária
deste século evidencia que a família acaba sendo posta em causa.
compromisso com a realização das condições que possam contribuir para a igualdade de
oportunidades. A experiência histórica, por sua vez, ensina que o princípio socialista da
igualdade de resultados é o caminho mais curto da abolição da liberdade, no plano político, e
da perspectiva de progresso material, no plano social.
Tendo em vista a audiência encontrada pela obra de Rawls nos meios acadêmicos
brasileiros, acrescento à crítica anterior as breves notas que se seguem. Pretendo demonstrar
que a proposta de Rawls está muito mais para socialista do que social-democrata, nada tendo
de liberal, como se chegou a supor no Brasil, aspecto que, a meu ver, não foi destacado nas
análises antes referidas.
inicial capaz de assegurar que os acordos básicos a que se chega, no contrato social, sejam
justos e eqüitativos, formula este princípio: “todos os valores sociais – liberdade e
oportunidade, ingressos e riquezas e as bases do respeito a si mesmo – devem distribuir-se
igualmente, a menos que uma distribuição desigual de quaisquer e de todos esses bens seja
vantajosa para todos”. Rawls pretende ter assim chegado à apreensão de um princípio básico
(“A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de
pensamento”), a partir do qual seria possível reorganizar a vida social. Declara expressamente
estar de posse de uma convicção intuitiva quanto ao primado da justiça.
1. Fundamentos filosóficos
situar melhor o que tem em vista, cumpre ter presente que, na Teoria da Justiça, a “posição
original” – isto é, o reconhecimento da justiça como primeira virtude e a sua conceituação
como equidade servindo de Norte para estruturar-se as instituições – contrapõe-se ao que
chamou de “véu de ignorância”, isto é, espécie de alternativa cética (ou cega) àquele
postulado inicial. O construtivo político que será obra sua no novo livro, não deve contrariar o
intuicionismo racional. Sobre essa hipótese de uma ordem moral independente, apreensível
por intuição, muito haveria a dizer mas é preferível fazê-lo mais tarde, já que agora compete
apreender a novidade de Political Liberalism.
disto, resume o que poderíamos denominar de ideal de pessoa humana. A cultura ocidental
suscitou esse ideal a ser perseguido pelos homens, digno de merecer adesão voluntária. Com
esse passo, tanto a moral como a própria pessoa ganham autonomia, a primeira por fundar-se
racionalmente e o segundo ao escolher-se como ser moral sem ceder às inclinações. É fácil
perceber, portanto, o grau de empobrecimento da doutrina moral kantiana em mãos de Rawls.
Quer dizer: Rawls partiu de uma constatação. O pequeno número de nações que
conseguiram consolidar o sistema representativo (a indicação de que não conseguiu
universalizar-se não consta do texto; formulo-a deste modo para explicitar o sentido pleno de
minha objeção) o fizeram preservando a pluralidade de opiniões (mesmo daqueles, como os
socialistas totalitários, que pretendiam abertamente valer-se da liberdade para destruí-la).
Como tornou-se possível manter a estabilidade política numa circunstância destas? A
suposição de que deveria existir um consenso superior não deixa de ser procedente. Mas ao
invés de apontar para o que seria mais ou menos óbvio (para quem se preocupa com esse tipo
de questão, naturalmente), isto é, a moralidade social básica, Rawls parece acreditar que sua
doutrina forneceria aquela base (esqueceu ter partido de uma constatação cabendo pelo menos
indagar-se como seria antes de tamanha descoberta). Mas vejamos como prossegue.
admitir que os outros venham a endossar. Reconhece finalmente que nem todos os liberais
aceitariam a idéia de razão como a apresenta.
3. Estrutura básica
Rawls não acredita que o mercado possa garantir a justiça dos contratos, mesmo
que no seu ponto de partida hajam tomado como referência a equidade (parece que ninguém
nunca o afirmou; numa sociedade onde o crucial consiste em gerar riquezas, pois todos
aspiram à opulência – ao contrário do Velho Testamento onde a questão é meramente
distributiva –, a função do mercado é assegurá-lo). Por isto, prossegue, é necessário taxar
rendas e heranças. Admite que a estrutura social assim concebida afeta os indivíduos na
medida em que limita suas ambições e esperanças (Lecture VII; § 5, p. 269). O contrato
original é uma hipótese adequada para nortear a organização das relações sociais e não um
fato histórico. Por isto, a idéia de que todos devem compartilhar de uma porção equivalente
precisaria levar em conta a eficiência econômica (§ 9).
4. Avaliação crítica
podem ser ensinadas nas escolas, instrumentos preferencial para que todos tenham iguais
oportunidades.
Os países do Leste Europeu fizeram cair sobre condições de vida ali vigentes o
que se convencionou chamar de “cortina de ferro”. Contudo, nunca puderam esconder
totalmente a vigência de padrões de vida muito modestos e de uma grande escassez de
gêneros alimentícios e de bens de consumo em geral. O fracasso da agricultura soviética
tornou-se, aliás, um fato proverbial. De exportadores de trigo na época czarista, os russos
228
No livro Les oranges du Lac Balaton (Paris, Seuil, 1980), a propósito do nível de
vida polonês, Maurice Duverger escreve o seguinte: “Sendo difícil toda comparação precisa,
citarei apenas um dos mais sérios estudos recentes do problema. Em 1971-72, um francês que
traduzisse, em preços e renda poloneses, seus próprios hábitos de consumo, julgaria seu nível
de vida 80% superior ao do seu colega de Varsóvia ou Gdansk. Se este último convertesse
seus hábitos de consumo em preços e renda franceses, estimaria que seu colega de Paris
alcançaria nível de vida superior ao seu em cerca de 160%. Recordemos que este aspecto do
problema era julgado fundamental pelo próprio Marx, para quem o desenvolvimento do
socialismo achava-se associado ao da produtividade”. (p. 196).
Os comunistas sempre fizeram crer que a inflação era um fenômeno típico das
economias não planificadas. Agora a Polônia reconhece, em 1987, uma inflação anual de
200% e, a Iugoslávia, de 150%. Iugoslávia, Hungria e Polônia têm grandes dívidas com os
países do Ocidente.
falsificação estatística. Os indicadores sociais que têm sido divulgados revelam um quadro
nada favorável. Ainda que para denegrir a “era Brejenev”, o jornal Komolsomolskais Pravda,
da juventude comunista, indicou que a expectativa de vida reduziu-se ao longo da década de
setenta, chegando a 56 anos em 1980, muito inferior à do Brasil e dos países de renda média,
confrontando-se aos dados antes transcritos.
O debate travado nos Estados Unidos acerca do programa de renda mínima, denominado
social security --a ser caracterizado no capítulo seguinte -- serve para demonstrar em que
consiste precisamente o assistencialismo e porque merece condenação, não obstante o fato de
que repousa num impulso moral (a solidariedade entre os homens), que corresponde a uma
das mais louváveis tradições cristãs. O assistencialismo cria dependência. Em se tratando de
pessoa que, tendo condições de ganhar o próprio sustento, conforma-se com a situação de
viver às expensas da caridade pública, inevitavelmente perderá a auto-estima. Em muitos
casos pode mesmo tornar-se cínico, ao considerar-se vítima ao invés de reconhecer a própria
responsabilidade. Há registros comprobatórios de que podem vir a considerar que a vida acha-
se desprovida de sentido.
O apoio permanente a pessoas carentes somente produz efeitos positivos quando estas não
podem auto-sustentar-se, seja por idade ou questões de saúde. Passam a sentir-se confortadas
e valorizadas. Em contrapartida, esse mesmo apoio a carentes que têm saúde e idade que lhes
permitiriam ganhar a própria subsistência deve direcionar-se no sentido de reinserí-los no
mercado de trabalho. Essa diretriz vem de ser consagrada universalmente graças à concessão
do prêmio Nobel a Muhammad Yunus, personalidade indiana que inventou o micro crédito e
230
criou uma instituição financeira destinada a tal fim, responsável pelo surgimento de milhares
de pequenas empresas no Leste Asiático.
Essa era a linha adotada pelos governos militares com vistas à criação do que foi batizado
de Rede de Proteção Social, que teve continuidade e veio a ser aprimorada após a abertura
política de 1985. Pessoas idosas que não contribuíram para a Previdência e tornaram-se
carentes passaram a ter direito a benefício por aquela instituição.
Janeiro (IUPERJ). Esse estudo demonstra que o candidato do PT registrou declínio em sua
votação, em ambos os turnos, nas cidades com mais de 50 mil habitantes e crescimento nas
municipalidades com eleitorado inferior a tal patamar. Pela primeira vez, um candidato
vitorioso perdeu em todos os estados mais desenvolvidos. Em contraste, obteve no Nordeste
patamares de votos nunca obtidos por outros candidatos em qualquer região do país em
disputas anteriores. Os pesquisadores mostram que a alta concentração dos recursos do Bolsa
Família aconteceu justamente na Região Nordeste, que recebeu 53,7% de todos os recursos
canalizados para tal programa. Levando em conta os níveis de renda e a região, os valores
per capita desse programa explicam 63% da variação da votação obtida. Cada cem reais de
acréscimo per capita traduziram-se em aumento de 3% na votação alcançada nos municípios.
Vê-se que a análise é irrefutável.
E assim o país registra brutal retrocesso numa política de grande relevância para os
destinos do país. A onipotência e o patrimonialismo que caracterizam o Estado Brasileiro
ganham assim reforço que, inevitavelmente, trará conseqüências nada favoráveis para as
futuras gerações.
Para enterrar de vez o assistencialismo entre nós, basta exigir dos diversos escalões
governamentais que passem a registrar quantas famílias estão conseguindo retirar da
dependência. A solidariedade que a sociedade deve aos carentes, só terá sentido se traduzir-se
nesse tipo de empenho, em relação a todos que tenham a possibilidade de autosustentar-se.
NOTAS
(1)
Entre os estudos recentes, com tal característica, destacaria o texto de Marcelo de Paiva
Abreu denominado “Paradigmas históricos”, incluído no livro Brasil 2000. Para um
novo pacto social (3ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986); o ensaio de José Arthur Rios
intitulado “Onde está a pobreza” (Carta Mensal nº 339, junho de 1983) e o livro
Máquina e revolta (Brasiliense, 1985), de Alba Zaluar.
(2)
O fato serve, aliás, para sugerir que o Estado brasileiro pode ser caracterizado como Estado
Patrimonial. Sem conhecer o Brasil ou imaginar que pudéssemos ter um ditador chamado
Vargas, Max Weber (1864/1920), escreveu que todo Estado Patrimonial acabaria
gerando o seu “pai dos pobres”.
(3)
Esse o tema da análise de Weber no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo.
(4)
The Idea of Poverty, ed. cit., p. 155.
(5)
No fim do século, B. Sheebohm Rowntree elaboraria m método destinado a proceder a tal
mensuração, fornecendo um critério para medir a pobreza nos países desenvolvidos.
Adiante, esse aspecto será considerado especificamente.
(6)
O Tratado de Engenharia Sanitária, do especialista argentino Manuel Sallovitz (Buenos
Aires, 4ª ed., 1944) transcreve interessante depoimento constante de um diário que se
preservou, do ano de 1871. Buenos Aires tinha então 200 mil habitantes e, no início
232
daquele ano, uma epidemia de cólera vitimou cerca de 14 mil pessoas (mortalidade da
ordem de 70 por mil). Eis o que foi anotado no mencionado diário: 1º de março – A
população foge e os emigrantes são reembarcados; 6 a 8 de março – São fechadas as
escolas. Os aluguéis fora da cidade alcançam cifras astronômicas. Os empregados são
notificados de que serão despedidos se abandonarem seus postos; 8 a 19 de março – Os
médicos passam a receitar em suas próprias residências. Fogem os parlamentares, juízes,
autoridades municipais e até mesmo o Presidente da República. São oferecidas passagens
gratuitas aos que se disponham a ir para o interior; 19 de março a 5 de abril – Pululam os
ladrões, casas inteiras são esvaziadas. Os doentes são enterrados ainda com vida. Setenta
por cento dos enfermos morrem sem qualquer assistência médica. A Comissão Popular
deseja incendiar os conventos já que apenas em um destes há setenta e duas pessoas
mortas sem enterro; 5 a 25 de abril – As repartições públicas fecham suas portas. Reina o
pânico. As mortes passam de 500 por dia; 25 de abril a 2 de maio – O Banco da
Providência aceita prorrogações de débitos não saldados. Regressam algumas famílias. O
governo aloja gratuitamente 8.300 pessoas; 31 de maio – Suspendem-se a distribuição de
bilhetes para transporte gratuito; 10 de junho – Te Deum cantado pelo bispo, em ação de
graças pelo fim da calamidade; e 20 de junho – Buenos Aires volta à normalidade.
(7)
As novelas (folhetins) apareciam, em geral, nos jornais especializados nesse tipo de
publicação, mas também nos periódicos mais importantes. Entre os especializados,
sobressaía o London Journal, semanário que, segundo Himmelfarb, vendia normalmente
100 mil exemplares, atingindo 500 mil quando do aparecimento de folhetins de grande
sucesso. Estes eram posteriormente vendidos em forma de livro.
(8)
Em 1830, Londres tinha sete matutinos e seis vespertinos de circulação diária, com uma
tiragem global da ordem de 40 mil exemplares. A população oscilava em torno de 1,5
milhão de habitantes. Paralelamente, publicavam-se muitos semanários e mensários,
afora as grandes revistas.
(9)
No que se refere à maldade humana, tomada genericamente, alguns autores consideram que
Dickens produziu uma obra perene e imortal. Assim, escreve Angus Calder: “Quando a
imaginação de Dickens começou a trabalhar na sociedade vitoriana, que ele dominava e
detestava, produziu um painel, certamente caricatural e injusto nos detalhes, mas que, no
geral, parece hoje não apenas o reflexo de seu próprio tempo, e de uma forma acurada,
como também uma perturbadora aproximação da nossa época. Suas cômicas e inspiradas
criações e seus vilões demoníacos têm sido geralmente considerados meros monstros,
apreciáveis, porém irreais. Mas, como diz Leonel Trilling, “nós, que vimos Hitler,
Goering e Goebbels colocados no palco da História, e Pecksniffery institucionalizado no
Kremlim, não estamos em posição de supor que Dickens tenha exagerado o mínimo
sobre a extravagância da loucura, do absurdo e da malevolência do mundo – ou, de uma
forma inversa, quando consideramos a resistência a essas qualidades, a bondade”.
(10)
Joseph Chamberlain (1836/1014) era de uma família londrina de industriais de calçados e,
tão logo concluiu o curso colegial, foi mandado desenvolver aquela atividade em
Birmingham, onde seria muito bem-sucedido. Com pouco mais de trinta anos, em fins da
década de sessenta, já era um próspero industrial e começa a interessar-se pelos
problemas da municipalidade, como membro do Conselho Municipal, tornando-se
prefeito em 1873. Nessa posição inicia o movimento para a organização e
aperfeiçoamento dos serviços municipais, granjeando notoriedade em todo o país. A
partir da década de oitenta elege-se para a Câmara dos Comuns, tendo ocupado cargos no
governo. Embora haja ampliado o seu leque de interesses, influindo grandemente, entre
outras coisas, na formulação da política externa e colonial da Inglaterra, esteve presente
233
passada.
(22)
Samuel Clarck (1675/1729) polemizou com Leibniz a propósito da religião natural,
defendendo a Newton das críticas que eram endereçadas pelo primeiro; Henry Price foi o
professor de lógica em Oxford entre 1935 e 1959, considerado neo-realista, por afirmar
realidade externa relativamente ordenada (agrupada em “famílias”); Henry Sidwick
(1838/1900) recupera a tradição ética iniciada por Butler e Hume, tendo alcançado grande
notoriedade em seu tempo (cf. C.A. Broad Five Types of Ethical Theory (1930), London,
Routledge and Kugan, 11ª ed., 1979; e finalmente, William Ross (1877/1971), grande
estudioso da filosofia grega, notável comentarista de Aristóteles, justamente o criador do
chamado intuicionismo moral.
(23)
Lecture III. Political Construtivism § 2 Kant’s moral construtivism (p. 99-102).
(24)
Examino essa questão em Fundamentos da moral moderna (Curitiba, Champagnat, 1994).
(25)
“Ensaio sobre o sentido da neutralidade axiológica nas ciências sociais e sociológicas”
(1917) in Sur la Theorie de la Science. Paris, Plon, 1965, p. 425 e seguintes.
(26)
Estudadas, entre outros, por Norberto Bobbio (Direito e Estado no pensamento de
Emmanuel Kant, trad. bras., Universidade de Brasília, 2ª ed., 1992). Na coletânea que
organizei sob o título de Evolução histórica do liberalismo (Itatiaia, 1987) coube a
Francisco Martins de Souza abordar o tema (“A fundamentação do Estado Liberal
segundo Kant”).
235
CAPÍTULO SÉTIMO
DOIS MODELOS DE SEGURIDADE SOCIAL
Cumpre observar que os parâmetros adotados nos Estados Unidos, para medir a
pobreza, nada têm a ver com o entendimento clássico da indigência no século passado e em
parte deste, na Inglaterra e em outras partes do mundo desenvolvido, ou com a pobreza com
que nos deparamos atualmente em muitos centros urbanos de nosso país.
As famílias pobres nos Estados Unidos são aquelas que tinham, em 1982, renda
média anual equivalente ou inferior a US$ 9.862. E, em 1986, tais valores foram elevados
para US$ 11.203. Dez anos depois (1996), já alcançavam US$ 17.000. A renda mínima
considerada no ano fiscal 2004/ 2005 era da ordem de 20 mil dólares.
Nos últimos anos, têm surgido apreciações mais ponderadas. Entre as famílias
pobres, há uma grande parcela, da ordem de 45%, cujos chefes são mulheres, isto é, o famoso
instituto da “mãe solteira”, que se elevou muito nos últimos decênios com a liberação sexual,
o aparecimento da pílula anticoncepcional, etc. As famílias dessa condição encontram-se
numa situação desfavorável no mercado de trabalho. A última reforma (1988), de que
trataremos logo adiante, leva em conta justamente este aspecto, esperando-se que daí venha a
tornar-se possível auferir melhores resultados.(14)
trazidos para Washington pelo Presidente Roosevelt, e não da agitação dos trabalhadores ou
dos sindicatos. Além disto, somente temos sido levados a pensar de outro modo pela tradição
de escrever sobre o Welfare State de uma perspectiva comparativa ou marxista”. (p. XVI)
O remédio pode ter sido radical mas atendeu aos reclamos dos contribuintes no
sentido de serem aprimorados os métodos de acompanhamento estatístico dos resultados. De
sorte que o estudo de Berkowitz seria um referencial importante no debate desse tema no
Brasil, se nos dispuséssemos a sair do patamar impressionista para estrutura-lo em bases
sólidas.
242
Ainda que os americanos tenham a primazia na criação dos Fundos de Pensões, surgiram
em diversos países europeus, a partir da crise que se instaurou na seguridade social. Contudo,
ainda é diminuto este número.
O Economist (10 de Novembro de 2005) publica um gráfico indicando a magnitude dos
ativos acumulados pelos fundos privados de pensões. Na Suíça, correspondem a 125 por cento
do PIB; na Holanda a cerca de 90 por cento; nos Estados Unidos, Inglaterra e Chile, a 60 por
cento; na Austrália, a 55 por cento e, no Canadá, a 50 por cento. Registram dimensões
reduzidas, proporcionalmente ao PIB, em outros países europeus (Áustria, Alemanha,
Bélgica, etc.). Esses fundos privados de pensões facultam uma contribuição notável no
equacionamento dos problemas com que se defronta o modelo social europeu. Naturalmente,
não se trata de supor que possam resolver todos os problemas relacionados à segurança social.
Contudo, têm o mérito incontestável de proporcionar uma solução, a longo prazo, do
financiamento das aposentadorias. Adicionalmente – mas de igual relevância – cria uma nova
fonte de investimentos na economia, o que acarretará o incremento da oferta de empregos. E,
embora os governos se vejam obrigados a opor restrições no atendimento às situações de
desemprego, em vista dos dispêndios que tem acarretado, somente o crescimento há de
reverter esse quadro indesejável.
A exemplo da atividade seguradora em geral, os fundos de pensões não se acham isentos
de riscos. Ainda assim, podem ser evitados, levando-se em conta as regras de gestão
recomendadas pela experiência disponível na matéria. Sendo os Estados Unidos o país no
qual funcionam há mais tempo – estimulada que foi a sua organização graças à emenda
constitucional, aprovada em 1913, ao isentá-los de impostos --, proporcionaram o legado
inspirador de seus princípios básicos.
Perturbados que foram pela crise de 1929, os estudiosos consideram que o primeiro fundo
digno de ser considerado “moderno” seria aquele constituído pelos empregados da General
Motors, em 1940. Seus estatutos tornaram-se modelo e padrão. Entre as regras que se
atribuiu, figura a proibição, logo universalizada, de efetivar aplicações na própria empresa.
A possibilidade de gestão temerária tornou-se patente com a falência do Fundo
Studebaker, ocorrida em 1963. O abalo que provocou na confiança conquistada pelos fundos
de pensões serviu para a fixação de regras impondo a diversificação das aplicações. Além
disto, limite às operações que, embora podendo proporcionar melhores resultados, envolvam
riscos comprometedores da solidez e sobrevivência do fundo respectivo.
244
A rentabilidade dos fundos tem sido comprometida pela política de redução das taxas de
juros a fim de desestimular expansão do consumo, em níveis capazes de gerar inflação. Nos
Estados Unidos, o longo período de vigência dessa política de juros baixos acarretou a
redução do número de fundos que ofereciam rendas muito elevadas após a aposentadoria.
Exigiam desembolsos muito altos. Entretanto, a circunstância não afetou o nível global dos
ativos dessas instituições. O patrimônio acumulado, pelos participantes, ao longo do período
de contribuições, tem se revelado suficiente para assegurar aposentadorias tranquilas, sem
maiores alterações de padrão de vida.
Desse modo, a iniciativa dos sindicatos alemães de constituir, em 2001, fundos próprios de
pensões, como decorrência da nova política de aposentadoria, conta com o respaldo dessa
longa experiência, apta a minimizar os riscos. O grande mérito do acordo entre o governo
Schroeder e as organizações dos trabalhadores reside no fato de haver desbloqueado a
negociação em torno do futuro do Welfare. A persistência de déficit, a ser coberto por
impostos, tem levado à reabertura da discussão, todos os anos, na oportunidade da votação do
Orçamento. É fora de dúvida que a circunstância gera uma grande insegurança. Talvez essa
evidência, por si só, possa levar os interessados a admitir negociação em separado da
aposentadoria, do desemprego e da saúde.
Com efeito, não parece haver outra alternativa. A insistência em considerá-la globalmente
dá sinais de esgotamento. Repousa no princípio de evitar aumento substancial do dispêndio, já
que a cobertura desse gasto adicional acaba por acarretar aumento de impostos. O exercício
de pressão sobre a despesa provoca a natural resistência de quem se sente prejudicado, em
certos casos capaz de bloquear alterações, como se dá em relação aos regimes especiais no
funcionalismo público. O aumento de impostos, por sua vez, afeta o desempenho da
economia, o que agrava as dificuldades. As lideranças socialistas, que regularmente têm
ascendido aos governos, pela saudável alternância verificada no continente, têm plena
consciência do impasse. Saído desse grupo, Schroeder deixa-lhes uma herança que se espera
venha a prosperar.
Existem na Europa quatro modelos de assistência social, a saber: I)continental; II) nórdico;
III) mediterrâneo e IV) britânico. Todos têm ampla abrangência, compreendendo sistema de
aposentadorias e pensões, amparo à velhice, desemprego e saúde. Distinguem-se por incluir
mais um ou outro plano (por exemplo, programas de estímulo à natalidade) ou na proporção
em que participam o Estado, o empresariado e os trabalhadores. O traço relevante comum
consiste em que o financiamento provém de recursos correntes, isto é, as despesas são
atendidas por contribuições anuais. Ainda que uma ou outra modalidade seja designada como
“seguro”, não se trata de que seja financiada por rendimentos resultantes de aplicações,
atividade típica das seguradoras, que não intervêm no caso.
Mais recentemente – e nesta ordem --, Inglaterra, Holanda e Alemanha introduziram
alterações substanciais nessa forma de financiamento, como alternativa à crise que se tornou
patente nos anos setenta.
O alerta quanto à nova situação criada adveio no livro La crise de l’État-Providence,
publicado em 1981, que se tornaria célebre. Seu autor, Pierre Rosanvallon, renomado
intelectual, inclui-se entre os mais destacados sociais democratas franceses.
245
Para o pensador francês, não pairam dúvidas de que, entre 1946 e 1970, o Estado
Providência trouxe tranquilidade às sociedades européias, preocupadas, desde meados do
século XIX, com a chamada “questão social”. Contudo, cabe reconhecer que entrou em crise.
A seu ver, essa crise apresenta aspectos distintos.
Antes de mais nada, temos o aspecto financeiro. A partir da década de setenta, os gastos
sociais, notadamente os correspondentes à saúde, continuaram crescendo no ritmo anterior
(incrementos entre 7% e 8% anuais), enquanto que as receitas passaram a aumentar em
proporções sempre menores, chegando a variar entre 1% e 3%. Como determinantes deste
estado de coisas, tem-se, de um lado, a crise econômica que se instaurou a partir de meados
daquela década.
O cerne da questão proviria entretanto das alterações ocorridas na composição etária da
população, de que resultou a sucessiva redução do número de contribuintes, que se fazia
acompanhar da elevação do contingente de beneficiários. Apareceu o chamado fenômeno da
terceira idade. Adicionalmente instaurou-se desemprego de grandes dimensões.
As soluções paliativas que começaram a ser encaminhadas não alteraram substancialmente
o quadro.
Para comprová-lo, vejamos alguns dados da situação, ainda tomando por exemplo a
França.
Em 1996, o sistema de aposentadorias consumia 12,5% do PIB, enquanto equivalia a 5,1%
em 1960. Aproximadamente num quarto de século, aumentou uma vez e meia. Algo de
semelhante ocorreu com os dispêndios com pensões, assistência às famílias, desemprego e
assistência médico-hospitalar, isto é, nas diversas áreas abrangidas pelo sistema.
As medidas para tentar reverter o quadro tiveram início na própria década de oitenta. Até
meados do decênio seguinte, as contribuições (universais) praticamente dobraram. Apesar
disso, o déficit, atendido por recursos orçamentários, alcançou mais de dez bilhões de euros.
Dessa política, resultou basicamente que os impostos e contribuições consomem em média
56,6% dos rendimentos das pessoas, tornando impossível ulteriores aumentos de impostos.
Num livro posterior, La nouvelle question sociale: repenser l´État-Providence (1995) –
que viria a ser editado no Brasil pelo Instituto Teotonio Vilela – Rosanvallon indica que a
crise e o caminho empreendido para combatê-la tem suscitado novas questões. Uma delas é o
desgaste experimentado pela burocracia tradicional, perante contingentes cada vez mais
expressivos da opinião. Juntamente com os que se acham encastelados num sistema que clara
e unilateralmente os beneficia, tem conseguido bloquear novo tipo de encaminhamento da
questão.
Vejamos, em síntese, qual tem sido a estratégia seguida pelos diversos países continentais,
já que a Inglaterra, como indicaremos, encontra-se numa posição singular.
b) O modelo Juppé
Eleito em 1995, Chirac escolheu a Alain Juppé para Primeiro Ministro, que submeteu à
Assembléia, em Novembro desse ano, um projeto de reforma do Welfare que se tornou
modelo e referência na Europa. Não se trata de que haja inovado em relação às medidas em
curso para enfrentar as dificuldades crescentes. Seu mérito consiste sobretudo em tê-las
sistematizado.
A principal opção do Modelo Juppé consiste em manter o sistema chamado de gastos
correntes, isto é, a cobertura dos gastos é efetivada por contribuições anuais.
Adicionalmente, adota o seguinte esquema de corte de despesas:
c) Reformas recentes
(2005; relacionadas ao Orçamento de 2006)
Duas reformas recentes, na Espanha e Portugal, continuam seguindo o Modelo Juppé .São
as seguintes as medidas contempladas na reforma espanhola:
Entre 1952 e 1972, a economia dos países desenvolvidos cresceu ininterruptamente a taxas
anuais médias da ordem de 5%. Nos 150 anos precedentes, os economistas consideram que o
capitalismo experimentou cerca de vinte crises cíclicas, uma para cada sete/oito anos, e pelo
menos trinta recessões parciais, processo esse que culminaria com a catástrofe de 1929. Nos
primeiros decênios posteriores à Segunda Guerra, as recessões foram tênues e não muito
prolongadas
Em contrapartida, a partir da década de setenta observa-se uma drástica redução do
crescimento, de que resulta a formação de contingentes expressivos de desempregados,
considerando-se ainda que se haja verificado o fenômeno batizado de “desemprego
estrutural”, isto é, pessoas que praticamente não mais conseguem voltar ao mercado de
trabalho.
Vejamos a questão mais de perto, para em seguida verificarmos que fenômenos paralelos
podem estar associados a esse quadro.
Na obra Les economies de l´Europe Ocidentale et leur environnement international de 1972
à nos jours (Paris, Fayard, 2005), Jean-Marcel Jeanneney e George Pujals documentam o
contraste entre os períodos de 1952 a 1972 e de 1972 a 2002. A escolha do ano de 1952,
segundo esclarecem, deve-se ao fato “das destruições consecutivas à segunda guerra mundial
terem sido suficientemente reparadas”. Os limites do período foram fixados em consideração
a que, em Outubro de 1973, a OPEP anunciou a duplicação dos preços de petróleo que, “na
verdade, foram multiplicados por cinco”. E mais: “em Março de 1979, a OPEP os quintuplica
de novo”.
249
número cresce ininterruptamente, até 1997, quando alcança 4,5 milhões. Como indicamos, o
crescimento econômico dessa fase, em certa medida o reteve. Mas, presentemente, é da ordem
de 4 milhões, isto é, não houve alterações substanciais.
Onde se verifica drástica e estável redução é na Inglaterra e na Holanda. Nesses países, o
desemprego praticamente desapareceu, se tivermos em vista que determinado nível traduz
uma situação normal de demanda por empregos. A Inglaterra mantém taxas da ordem de 5%
(4,7% em 2004). E, a Holanda, entre 2,5 e 3%. A Espanha também corresponde a fenômeno
destacado, na medida em que o desemprego ali desceu de 22,9% (1996) para 8,4% (terceiro
trimestre de 2005).
Vale a pena nos determos na experiência desses três países (Inglaterra, Holanda e Espanha)
a fim de identificar que outros componentes podem influir naquela direção, além do impulso
básico que naturalmente provém do crescimento econômico.
b) A experiência inglesa
Ainda que não possa ser reproduzida, a experiência inglesa merece ser examinada
porquanto fornece uma espécie de arquétipo para a solução do problema do desemprego.
Trata-se das reformas efetivadas por Mme. Thatcher.
As reformas Thatcher não podem ser reproduzidas porque foram impostas aos trabalhistas,
que recusaram qualquer tipo de negociação. O movimento sindical encontrava-se entretanto
completamente isolado, de modo que contou com o apoio da população para enfrentar a sua
resistência e derrotá-lo.
Na época, o trabalhismo inglês atravessava uma das mais graves crises de sua história, em
razão do Congresso Extraordinário de 1981, que retirou da bancada a prerrogativa de escolher
o líder (futuro Primeiro ministro) transferindo-o para uma conferência específica onde as
Trade Unions teriam a hegemonia. A decisão provoca o afastamento do grupo liderado por
David Owen (3), que fundou o Partido Social Democrata (fundiu-se com o Partido Liberal,
em março de 1988, dando origem aos atuais Liberais Democratas, apesar da oposição do
fundador)
A liderança trabalhista dessa época virtualmente saiu de cena com a ascensão de Tony Blair.
Mme. Thatcher governou a Inglaterra entre 1979 e 1990. Ainda que os conservadores
continuassem no poder, neste último ano perde a liderança para John Major.
O auge da disputa com os trabalhistas deu-se basicamente nos anos de 1984 e 1985, quando
enfrenta a greve dos mineiros por mais de um ano, vencendo-os sem fazer concessões.
As reformas de Thatcher consistem no seguinte:
left, de inspiração trotskista, a Primeira Ministra incluiu entre os seus sucessos a redução do
número de horas de trabalho perdidas devido a greves. Tony Benn retrucou dizendo que o
resultado alegado devia-se à proibição das greves, alegação que Mme. Thatcher refutou
indicando que o governo limitara-se a proibir piquetes. Ao que diz Tony Benn: “sem piquetes
não há greves”.
Tenha-se presente que a circunstância européia nada tinha a ver com o que se verificou em
países como o Brasil no período recente, com taxas de incremento de preços que poderiam ser
consideradas como equivalentes à hiperinflação.
O fenômeno se fazia acompanhar de taxas medíocres de crescimento. De imediato,
Thatcher conseguiu reduzir drasticamente a inflação. Entretanto, no que respeita ao
desemprego, os efeitos de sua política somente aparecem a partir de meados da década de
noventa, o que facilitou o seu afastamento da liderança.
Contudo, o grande mérito da experiência inglesa reside na continuidade. Major como Blair
mantiveram as políticas introduzidas por Mme. Thatcher. No caso de Blair, o mais importante
a destacar consiste em que conseguiu que as Trade Unions reconhecessem terem sido
benéficas as reformas de Mme. Thatcher, impostas pela simples razão de que a liderança da
época recusou-se a negociar.
c) A experiência holandesa
d) O caso espanhol
a) Uma ponderação
Tends), que completou 35 anos de existência em 2005. Neste volume, indica-se que em 1970
apenas 35% das residências dispunham de telefone fixo, quantitativo que se elevou a 94% em
2003. A partir de 1996, aparecem os telefones móveis (16% da população já o possuíam,
número que se elevou a 70% no último ano antes referido). É interessante registrar que novo
indicador surge desde 1985: 16% possuem computador pessoal. Em 2003 eram 55%. O
acesso à INTERNET acompanha essa evolução.
Ainda do mesmo modo que nos Estados Unidos, são disponíveis dados atualizados
sistematicamente da distribuição da população segundo a renda. A partir do mencionado
Social Trends, o contingente populacional que na Inglaterra seria classificado como pobre
(renda anual de 7.500 libras, aproximadamente US$13 mil) situa-se pouco abaixo dos 10%.
Entretanto, a partir da mesma publicação, confrontando esse registro aos gastos em proteção
social verifica-se que o contingente atendido seria um pouco maior (em 2003,
aproximadamente 7 milhões de pessoas, correspondentes a 12% da população, pouco inferior
a 60 milhões naquele ano). Essa diferença talvez tenha algo a ver com a crítica trabalhista a
alguns desses programas, a ser referida adiante.
Os programas da rede de proteção social objetivam contemplar todas as situações de
carência. Entre 1993 e 2003, os dispêndios com assistência a idosos, famílias carentes e
assemelhados expandiram-se aproximadamente 30%. Nesse último ano, totalizaram 277
bilhões de libras. Os dispêndios médios por pessoa alcançaram pouco menos de quatro mil
libras. A parcela fundamental de tais gastos destinou-se à assistência à velhice (43% do total),
seguindo-se o atendimento a enfermos. Os programas ingleses abrangem ainda apoio a
famílias com vistas a estimular a natalidade, tendo ainda a seu cargo a manutenção de creches.
Nesse conjunto, a assistência a desempregados corresponde a parcela ínfima, destinando-se
tão somente a situações especiais. Em 2003, havia pouco mais de 900 mil desempregados,
atendidos basicamente por seguros não incluídos na rubrica ora considerada.
Esclareça-se que a rede de proteção social não é integrada apenas por organizações estatais,
desempenhando um papel fundamental instituições privadas. Estas chegam a ser 500 sendo a
sua atuação acompanhada pela Charites Aid Foundation que, inclusive, divulga os resultados
alcançados.
Na França, a assistência a carentes abrange a transferência das aposentadorias a
dependentes sem renda, havendo outras formas de amparo a famílias pobres. Contudo, os
principais programas voltados para as famílias consistem de prêmios para fomentar a
natalidade, política que é considerada como bem sucedida. Assim, a taxa de natalidade
francesa é de l,7 contra 1,3 na Alemanha e 1,2 na Itália e Espanha. Estima-se em 2,1 crianças
por mulher como taxa ideal, apta a garantir a normal renovação da população.
Nos documentos oficiais alemães, a rede de proteção social é definida como sendo
constituída pelos “benefícios destinados a garantir uma existência digna a todos aqueles que
enfrentam dificuldades”. Trata-se, em primeiro lugar, do atendimento aos que não disponham
de outras formas de sustento. A par disto, é assegurada a continuidade do acesso aos serviços
de saúde. Há também programas de assistência a enfermos.
Contudo, no documento que orienta a política social, aprovado por consenso em 2004, a
ênfase recai nas medidas de ordem preventiva. O programa denominado “suporte das
famílias” destina-se a criar facilidades para as mulheres que trabalham. Jovens casais cujos
ancestrais não têm condições de ajudá-los, também são objeto de apoio. Acredita-se que, por
esse meio, reduzam-se as possibilidades de que terminem por cair na dependência de
instituições públicas ou privadas. Há ainda incentivos à natalidade.
Raymond Plant, destacado líder trabalhista inglês, integrando presentemente a Câmara dos
Lordes, reconhece que a decepção com o Estado Providência britânico tornou-se comum ao
Partido Conservador e ao Partido Trabalhista. No caso particular deste último, procedeu à
256
a) Delimitação do objeto
São muito diversas as questões envolvidas no tema da saúde, razão pela qual vamos tentar
delimitar o objeto da nossa análise.
Com o amadurecimento da sociedade industrial, a concentração das populações nas cidades
e, sobretudo, a reviravolta na compreensão das enfermidades, a assistência médica sofreu uma
grande transformação na Europa, pouco sobrando da experiência precedente, centrada nas
Santas Casas de Misericórdia. Surgiu a possibilidade de ser implementada a chamada “saúde
pública”, de caráter sobretudo preventivo, emergindo nova problemática relacionada à
assistência médico-hospitalar individual.
No que se refere às políticas de saúde dirigidas a toda a comunidade, basta registrar os
momentos que se seguem, alguns referidos precedentemente.
O primeiro relaciona-se às epidemias de cólera, que deu origem a vasta literatura inclusive
romances clássicos, como Journal of the Plague Year (1722), de Daniel Defoe (1660/1731).
(5)
A epidemia de cólera ocorrida na Inglaterra nos anos de 1848/1849 matou cerca de 130 mil
pessoas. Vigorava em relação a essa peste, na época, a denominada teoria miasmática,
segundo a qual a doença tinha origem em emanações pútridas de zonas pantanosas e se
espalhava pelo vento. Coube a um médico londrino, Dr. John Snow, a descoberta de que a
doença se difundia pela infiltração de esgoto, produzido por pessoa contagiada, na água
utilizada por outras pessoas. Em 1855, conseguiu estancar uma epidemia em bairro de
Londres, que já havia matado mais de 500 pessoas, interditando o local em que a população
257
local se abastecia de água. Mais tarde, em 1866, outra prova empírica pôde ser estabelecida
em Londres, o mesmo ocorrendo em outras cidades, a exemplo da cólera que se abateu sobre
Hamburgo, em 1892, poupando a população da vizinha Altona. Esta já então dispunha de
abastecimento de água filtrada.
Outro fato capital deveu-se a Louis Pasteur (1822/1995). Descobriu que inexistia a chamada
“geração espontânea” de micróbios, identificando os agentes de diversas doenças infecciosas
e formulando o princípio da vacina para combatê-las.
As novas concepções proporcionaram extraordinário desenvolvimento da farmacologia.
Surgiu assim uma nova dimensão na assistência médica tradicional, as denominadas
políticas de saúde pública, geralmente de caráter preventivo, como o saneamento básico e as
campanhas para erradicação ou controle de enfermidades endêmicas. O sucesso no combate à
poliomielite corresponde a um dos seus maiores êxitos.
Ao mesmo tempo, contudo, teve continuidade a modalidade assistencial requerida pelos
cidadãos. Nesse particular há todo um conjunto de questões envolvidas que, suponho, tenham
sido amplamente consideradas no documento Reflexão sobre a saúde. Recomendações para
uma reforma estrutural (Lisboa, 1998), que contou com a participação de diversos
especialistas e do professor José Manuel Moreira. Mais recentemente, o prof. Jorge Simões
publicou Retrato Político da Saúde (Coimbra, Almedina, 2004), que igualmente considera os
diversos aspectos envolvidos.
Como aqui estamos considerando o modelo social europeu e avançamos a hipótese de que,
com vistas ao encontro de uma solução para o autêntico impasse criado na sua redefinição,
deveríamos considerar de modo autônomo as seus principais aspectos, no que respeita à saúde
vou limitar-me ao exame das modalidades de financiamento. Subordino essa análise à
premissa de que a Europa manterá o seu caráter universal, ao contrário do que ocorre nos
Estados Unidos.
b) Assegurar a sobrevivência,
preservada a universalidade
% sobre
Países o total
Dinamarca 80,7
Reino Unido 78,8
Suécia 69,7
258
Irlanda 68,1
Itália 64,6
Finlândia 62,2
Espanha 59,3
Portugal 55,2
Fonte: J.Simões. Op. Cit.
Durante os governos militares, na fase do “milagre econômico” –que entre outras coisas
nutriu a ilusão da perenidade do sistema – apareceu a idéia de que cabia formular-se uma
doutrina que se opusesse ao liberalismo mas que também não ficasse limitada à tecla da
segurança, algo desgastado naquela altura. Apareceu então a hipótese de que seria possível
universalizar a prática do consenso. Nos anos trinta, Vargas tinha tentado popularizar a tese
de que a maioria dos problemas comportava soluções técnicas. Em caso de divergência, o
governo, que se situaria acima dos interesses, atuava como árbitro. Assim, a doutrina do
consenso não deixava de deitar raízes na tradição positivista consolidada durante a República.
Com a abertura procedeu-se a uma avaliação radicalmente contrária: o consenso seria anti-
democrático.
Adotado naquela pretendida dimensão, não há dúvida de que se torna inaceitável. Contudo,
há situações exigentes de acordo entre as maiores agremiações políticas, a exemplo das que
refiro adiante.
País como o Brasil, de dimensões continentais, fazendo fronteira com diversos outros, não
pode deixar a sua política externa ao sabor da normal alternância no poder. Por suas linhas
gerais, deve revestir-se de imprescindível estabilidade. Dispondo dessa tradição, compreende-
se que o governo do PT seja criticado por haver pretendido alterá-la em aspectos relevantes.
259
A emergência de crises, seja de que índole for, que possam afetar a população
indiscriminadamente, impõe ação conjunta e abandono, ainda que temporário, de divergências
irreconciliáveis.
Suponho que o tema que estamos discutindo – a sustentabilidade da seguridade social –
pressupõe que seja alcançado o imprescindível consenso entre os maiores partidos.
O passo inicial nessa direção poderia consistir no pleno esclarecimento teórico do problema,
questão na qual o debate europeu, que estamos seguindo, parece suficientemente esclarecedor.
O grande “cavalo de batalha” tem se situado no âmbito do tema da solidariedade.
Consistindo num desdobramento, a bem dizer natural, do lema cristão do “amor do
próximo” e de sua tradução laica, a fraternidade, o tema situa-se no núcleo central da
valoração ocidental e que singulariza a nossa cultura: o valor da pessoa humana.
Sendo essas regras morais fundamentais que estruturam a base do direito, não pairam
dúvidas de que delas provêm o Welfare. Sem embargo, não se pode confundir a solidariedade
entendida como um valor moral --que somos instados a escolher nas opções existenciais
eventualmente presentes no cotidiano – com a transformação desse instituto numa obrigação
que nos é imposta e, portanto, não compreendida nas escolhas livres que singularizam o cerne
da moralidade. Esse trânsito somente pode dar-se em face de princípios morais arraigados e
incontestes. Por isto mesmo, tipificou-se como consensual a moral social instaurada na Época
Moderna, consenso geralmente requerido para que as regras vigentes sejam alteradas e
renovadas.
Justamente por essa razão, os estudiosos estabelecem diferenciação entre solidariedade
voluntária (em princípio equivalente ao que tradicionalmente se denominou de caridade
privada) daquilo que temos em vista, isto é, a denominada solidariedade obrigatória,
porquanto pública e universal. Cumpre ainda distinguí-la da equidade.
Portanto, a solidariedade que as atuais gerações prestam às que já se afastaram da atividade
produtiva – ou se encontram dela afastadas involuntariamente – não pode ser transformada
num tabu. Em primeiro lugar, cabe reconhecer que o sistema de financiamento adotado
correspondeu a um equívoco, à vista de que não se revelou auto-sustentável. Em
contrapartida, o modelo norte-americano, baseado no seguro, passou a prova da história.
Em segundo lugar, como assinala Raymond Plant, no ensaio antes citado, tem sido
demonstrado que “no mundo do pós-Segunda Guerra, os direitos adquiridos tinham sido
fortalecidos e os deveres enfraquecidos. Foram atribuídos benefícios sem que nada se exigisse
em troca.”
Plant entende que a idéia de reciprocidade restabelece a imprescindível ligação entre
direitos e deveres. Lembra: “envolve ainda alguns ecos dos ideais como os de comunidade e
solidariedade, herdados do passado mais socialista do Partido Trabalhista, mas atualizados de
tal modo que podiam ser apresentados de uma forma progressista e moderna.”
A revisão do modelo social europeu é pois um imperativo de nosso tempo. Tendo no
passado nos esforçado por copiá-lo, cumpre nos darmos conta de que cabe ir ao encontro de
soluções futuras que sejam duradouras.
O Orçamento da Alemanha expressa bem o que se pretende designar como “Estado Social”.
Em 2003 – último ano para o qual foi divulgado oficialmente de forma desagregada --,
correspondeu a um trilhão e três milhões de euros, aproximadamente 46% (8) do PIB (2,4
trilhões). No conjunto, o denominado orçamento social responde por cerca de 70% da despesa
pública (694,4 milhões de marcos no ano de que se trata, isto é, 2003). Nessa circunstância, é
fácil visualizar os efeitos que poderão ter, no que se refere a desenvolvimento econômico
sustentado, o encontro de soluções que permitam reduzir a despesa pública
260
9. Referências bibliográficas
obra de Pierre Rosanvallon, a quem se deve o início desse debate com o livro La crise de
l´État-Providence (1981). Desse autor publicou-se no Brasil tradução de La nouvelle question
sociale (1995), na Coleção Pensamento Social Democrata, patrocinada pelo Instituto Teotónio
Vilela, do Partido da Social Democracia Brasileira.
Mais recentemente, merecem referência as obras adiante.
Bruno Palier. Les réformes du système français de protetion sociale depuis 1945.. Paris,
PUF, 4ª; Gouverner la securité sociale ed., 2005 (1ª ed. 2002)
Reforça o coro dos que não admitem mudança no status quo. Os sindicatos de
trabalhadores e as organizações patronais administram os recursos arrecadados (contribuições
individuais). Na medida em que emerge déficite, que se amplia todos os anos, os sindicatos
tentam fazer com que o patronato assuma o ônus. A resistência destes acaba por exigir do
Estado que cubra o rombo com recursos orçamentários. O governo, por sua vez, para fazê-lo
impõe cortes nos benefícios.
Palier registra que a reforma Juppé, de 1995, foi elaborada no maior segredo, merecendo o
colossal repúdio que se conhece para, como escreve, “aparecer a posteriori como inevitável.”
(p. 231).
No fundo acha que o país tem que viver sobre a tensão entre “realismo orçamentário” e o
que chama de “aposta social”, sem indicar precisamente em que consiste. Talvez corresponda
à expectativa de nova fase de crescimento, caída do céu, por algum milagre, porquanto a
realidade do quadro francês não sugere tal possibilidade.
Palier condena a adoção de outra forma de financiamento, a pretexto de que exigiria “alta
brutal das contribuições”. O autor não leva em conta a experiência alemã nem se dispõe a
considerar de forma isolada as principais atribuições do sistema. Como não se acha em causa
o recurso a impostos no caso do amparo à velhice sem condições de auto-sustento, bem como
às situações de carência, ainda que transitórias, passa a raciocinar como se tal fosse a
característica imutável do sistema em seu conjunto.
Acontece que o dinheiro mobilizado para a complementação, que vem sendo exigida,
provém da própria sociedade. No caso da França, parece estabelecido que as empresas não
suportam aumentos adicionais de impostos. Além de que, ao nível atual, tornou-se um dos
obstáculos à retomada do crescimento em taxas mais elevadas que as registradas, conforme se
pode concluir dos efeitos advindos, de sua redução, nos países que a têm praticado.
Em suma, para Palier a adoção das regras exigidas pelo mercado “coloca em questão os
meios requeridos para lutar realmente contra as desigualdades”. Como se vê, não há lugar
para a responsabilidade pessoal.
Contudo, a gravidade da situação parece induzir a um mínimo de abertura de espírito, no
seio da intelectualidade francesa de esquerda. É sintomático que Le Monde –o seu consagrado
porta-voz –se haja disposto a registrar que existem soluções e que, já agora, não apenas os
liberais as apontam.
No número de 23 de junho de 2006, Le Monde insere dossiê intitulado: Modelo social
francês: crise e soluções. O seu espírito acha-se expresso no subtítulo adotado: “Ruptura ou
reforma: antes das presidenciais de 2007, muitos livros propõem soluções para vencer as
angústias sociais”.
A referência começa pelos liberais: o francês Nicolas Bavarez – que tem insistido nos
últimos anos no tema da decadência da França – que comparece com um novo livro: Monde
nouveau, vielle France, dedicado ao modelo social, e o canadense Timothy Smith (La France
injuste, Autrement, 2006) que, sobre o modelo em causa afirma o seguinte: “Primeiramente,
não distributivo; em segundo lugar, constitui a principal causa do desemprego; terceiro,
injusto para os jovens, as mulheres, os imigrantes e seus descendentes; e, quarto, insustentável
financeiramente.” Outros livros de idêntica procedência são igualmente mencionados
262
de fazê-lo --não deverão arcar com ônus maiores que os devidos no presente, na medida em
que o valor das contribuições é geralmente proporcional aos rendimentos auferidos.
Em 1998, o governo constituiu uma comissão – a que chamou de Conselho de Reflexão --
incumbida de apresentar proposta de reestruturação do sistema de saúde, cujo relatório final
foi divulgado com o título de Reflexão sobre a saúde. Recomendações para uma reforma
estrutural. Integrou-a o prof. José Manuel Moreira que, desde então, tem procurado
estabelecer o requerido enquadramento geral para a reforma da seguridade social portuguesa.
O prof. José Manuel Moreira é autor de extensa bibliografia dedicada à ciência política,
tendo procurado preencher a lacuna existente no que se refere ao estudo acadêmico do
liberalismo, com obras dedicadas a Heyek e Buchanan, entre outros. Nesse particular a obra
melhor sucedida seria Liberalismos: entre o conservadorismo e o socialismo (1996). Teve
igualmente ocasião de deter-se no tema da ética empresarial, a que dedicou estes livros: A
contas com a ética empresarial (1999) e Gestão ética e responsabilidade social das
empresas (2003). Tornou-se texto de referência: Ética, democracia e Estado. Para uma nova
cultura da administração pública (2002).
Doutorou-se em economia e filosofia e pertenceu à Universidade do Porto. Desde 2001,
integra o Corpo Docente da Universidade de Aveiro, na condição de professor titular (em
Portugal mantém-se a denominação de catedrático).
No que respeita ao que poderia ser considerado como princípio geral orientador da reforma
da segurança social, tem insistido em que a alternativa para a crise do Estado Social não
reside no Estado Terapeuta, isto é, na tentativa de minimizar seus efeitos ao invés de enfrentar
as causas. A seu ver, a raiz da crise encontra-se na substituição de princípios morais por fins
sociais. O interesse pelos desafortunados não significa considerá-los vítimas. Deste modo,
cumpre retomar o apreço pela solidariedade voluntária, cuja prática não deve subestimar as
potencialidades do indivíduo ou levá-lo a ignorar a responsabilidade pessoal. A crise precisa,
pois, ser enfrentada no plano próprio, vale dizer, no plano moral.
NOTAS
CAPÍTULO OITAVO
A par da atividade teórica, Keynes interveio ativamente na vida pública de seu país,
como publicista, conselheiro governamental e, finalmente, governador do Banco da
Inglaterra. Influi de maneira decisiva na concepção e prática no New Deal de Roosevelt e,
dois anos antes de falecer, torna-se o artífice da política econômica internacional deste pós-
guerra, com sua participação na Conferência de Breton Woods, em junho de 1944, onde se
criou o organismo que atualmente se conhece com a denominação de Banco Mundial (BIRD).
Tomou partido em face de cada uma das medidas econômicas relevantes, tanto na Inglaterra
como nos Estados Unidos. Envolveu-se em múltiplas polêmicas. Por isto mesmo, os
estudiosos de sua obra afirmam que a teoria keynesiana é inseparável da evolução da
economia das grandes nações industriais durante a vida de seu autor. Assim, por exemplo, ao
combater violentamente a política de redução salarial do Partido Conservador, na segunda
metade da década de vinte, Keynes via-se instado a referir e abordar os aspectos essenciais do
que mais tarde veio a constituir sua doutrina.
Tentar apontar as notas dominantes do keynesianismo representa sem dúvida um
grande risco, notadamente pelo fato de que corresponde a uma contribuição significativa no
sentido de constituir a economia como autêntica ciência operativa e, por isto mesmo,
requerendo o recurso a modelos matemáticos sempre mais sofisticados. A par disto, introduz
alguns conceitos extremamente complexos e que vieram a tornar-se nucleares na moderna
ciência econômica. Por essa razão dar-se-á ênfase aos aspectos que interessam mais de perto à
análise ora empreendida, evitando-se, tanto quanto possível, o emprego de noções
especializadas e recorrendo-se às judiciosas indicações de Raul Prebisch (1901/1986) em sua
conhecida obra Introduction a Keynes, sucessivamente reeditada (México, Fondo de Cultura
Econômica). Como se sabe, Prebisch acabou tendo o seu nome associado ao cepalismo –pelo
fato de haver dirigido a CEPAL, órgão das Nações Unidas para a América Latina, que se
notabilizou por haver estimulado a estatização da economia nesses países. Contudo, sua
exposição do keynesianismo, que tomamos por base, consiste num texto estritamente
acadêmico. Para um conhecimento mais aprofundado desse autor, pode-se consultar a
biografia elaborada por Robert Skidelsky, em três volumes.
Segundo Keynes, o Estado Liberal é responsável pela manutenção de determinada taxa
de ocupação de mão-de-obra, reformulando nesse particular a doutrina clássica acerca do
desemprego. Para que tal se dê, incumbe-lhe estimular os investimentos. Neste sentido, deve
cuidar sucessivamente da redução da taxa de juros, a fim de que as economias (poupanças)
assumam de preferência a forma de inversões. Uma adequada taxa de juros seria sempre
inferior à menor remuneração em investimentos produtivos. Tendo a experiência evidenciado
que a simples manipulação desse mecanismo (taxa de juros) revelou-se insuficiente para
manter o nível das inversões, conceberam-se as formas de transferir recursos ociosos para as
mãos do Estado, a exemplo da taxação progressiva das rendas. Em síntese, o liberalismo
abandona o laissez-faire e concebe modalidades de intervenção econômica estatal,
preferentemente segundo mecanismos indiretos.
O último capítulo da Teoria Geral contém um enunciado sintético das proposições
keynesianas, batizadas por Prebisch, na obra citada, de filosofia social. Dessa magnífica
síntese, cumpre destacar o seguinte:
1) Os dois defeitos fundamentais da economia capitalista consistem em não haver
alcançado a plena ocupação e em coexistir com uma arbitrária distribuição da renda e das
riquezas. O último aspecto é em parte justificado por motivos humanos e psicológicos. Pode-
se inclusive admitir que o incentivo do lucro há de desviar energias que de outra forma seriam
canalizadas para a crueldade, a ambição de poder e outros defeitos da criatura humana.
Contudo, semelhante incentivo provavelmente não precisaria ser tão forte, mesmo que não se
cogite do projeto de modificar a natureza humana;
267
enfrentar novas situações, nem por isto veio a ser abalada a condição de clássico que, de igual
modo, ocupa Adam Smith nessa corrente.
com a existência do milho híbrido. A Rússia então deblaterava contra a teoria genética e logo
se viu o resultado: de tradicional exportador de grãos antes da Revolução, o país tornou-se
grande importador.
Os textos sobre a sociedade industrial, antes referidos, serviram para demonstrar não só a
inexistência da alardeada superioridade soviética, em matéria de organização do processo
produtivo, como também que a característica distintiva do regime situava-se no plano político.
E aqui as evidências demonstravam que as denúncias do stalinismo não conduziram a
alterações substanciais, já que o sistema cooptativo em vigor baseava-se também na presença
de Estado policial implacável que, para usar a feliz expressão de Hanah Arendt, transformara
o povo russo em massa amorfa, privada de qualquer espécie de solidariedade, onde as pessoas
não confiavam umas nas outras.
Assim, graças a Aron, a sociologia francesa deixou de ser uma espécie de “samba de uma
nota só”, simples repetidora das teses centrais da vulgata marxista, dando lugar a uma
alternativa atenta ao valor e à presença da cultura. Em nossos dias, essa evidência é
comprovada, entre outras, pelo vigor e a fecundidade da obra de Raymond Boudon.
Platão desenvolve a teoria de que os seres e as instituições existentes são cópias imperfeitas
de idéias imutáveis, cumprindo reconstitui-las como ideal a fim de dispor de uma espécie de
arquétipo. No caso do Estado, o ideal deveria refletir aqueles aspectos presentes aos Estados
existentes. O critério para identificá-los consiste nas estruturas que se tenham revelado mais
272
duradouras, isto é, que impeçam as mudanças. A origem destas provém da desunião da classe
governante, cumprindo portanto substitui-la pelo sábio (filósofo). O modelo que estaria mais
próximo do Estado ideal seria Esparta, onde vigorava uma espécie de ditadura dos mais
experientes.
Logo na Introdução de A sociedade aberta e seus inimigos, Popper pergunta: “Porque todas
essas filosofias sociais sustentam a revolta contra a civilização? Qual o segredo de sua
popularidade. Porque atraem e seduzem tantos intelectuais”. A seu ver, duas seriam as razões
básicas. A primeira seria a profunda insatisfação com um mundo que está longe de
corresponder aos nossos ideais morais e aos nossos sonhos de perfeição. Ainda que a
perfeição seja um atributo da divindade, inacessível à pessoa humana, aqueles que preferem
viver no mundo da utopia valem-se dessa perspectiva para atacar a sociedade existente,
desconhecendo a capacidade de aperfeiçoar-se, patente em suas instituições, despojando tal
ataque de qualquer intenção construtiva. A segunda razão corresponderia ao fato de que,
acreditando que a história estaria pré-determinada, sentem-se dispensados do ônus da
responsabilidade pessoal..
Finalmente, Karl Popper repõe em seu devido lugar o papel da história. Nesse particular,
cumpre ter presente que sua crítica ao que denomina de historicismo tem em vista a suposição
de que haveria determinismos históricos. Na tradição anglo-saxônica o emprego do termo não
induz a equívocos, o mesmo entretanto não ocorrendo na tradição latina. Nos países latinos há
uma longa tradição historicista que consiste no inventário dos valores que caracterizam a
cultura ocidental, justamente o que Miguel Reale denominou de historicismo axiológico.
Popper vale-se justamente dessa espécie de historicismo ao reivindicar para a sociedade
aberta aqueles princípios que se fundam no valor da pessoa humana, uma das características
distintivas de nossa civilização. Embora na tradução não coubesse adotar outro termo, cumpre
levar em conta o sentido em que o emprega e de que tradição se louva para fazê-lo.
A Sociedade Aberta e Seus Inimigos inicia um ponto de inflexão a partir do qual a doutrina
liberal encontrou o caminho que a levaria, nas décadas seguintes, a impor ao comunismo
totalitário uma derrota que se espera seja definitiva.
273
A natureza do projeto europeu começa a ser esboçada a partir da compreensão de que era
necessário envidar todos os esforços no sentido de impedir o surgimento de novas
divergências entre a França e a Alemanha. De certa forma, disputas entre as duas nações
estiveram na origem dos acontecimentos que levaram às duas guerras mundiais. O Plano
Marshall eliminou de pronto uma das fontes de atritos, gerada pelo Tratado de Versalhes: a
imposição aos derrotados de destinar somas vultosas ao pagamento das reparações exigidas
pelos confrontos bélicos. Os Estados Unidos arcavam com os dispêndios necessários à
reconstrução da Europa. (5)
Desde logo, esboçavam-se duas hipóteses. A primeira consistia em erigir uma Federação.
Na previsão da resistência que poderia suscitar, considerou-se que uma Confederação
constituiria a melhor alternativa.
Neste primeiro momento, entendia-se que a França e uns poucos aliados preservariam
certa ascendência na Federação. Partia-se do reconhecimento da necessidade de avançar na
integração mas, ao mesmo tempo, impedir que a Alemanha alcançasse uma posição
hegemônica, dada a dimensão das sucessivas tragédias que provocara, desde a emergência da
Prússia, nos começos do século XIX.
Ao mesmo tempo, implicando a Federação numa expressiva delegação de soberania, à
entidade central a ser constituída, certamente seria de muito difícil aceitação. Levava-se em
conta os sacrifícios exigidos pela consolidação das nações na Europa e a resistência que
suscitaria a renúncia a tal patrimônio.
Na busca de uma alternativa conciliadora, nasce a idéia de uma Confederação. Sua
formulação inicial seria da lavra de De Gaulle, nestes termos: “A União assumiria
inicialmente a forma de uma Confederação, na qual cada Estado guardaria sua soberania,
salvo nos domínios que as nações atribuiriam à Comunidade a fim de que seja alcançada a
unificação.” (7)
Progressivamente tornar-se-ia patente que o principal obstáculo à construção política
advinha da sobrevivência do ideal socialista no processo de integração econômica. Os
fundamentos dessa idolatria foram profundamente abalados pelo fato de que o governo
conservador inglês, liderado por Margareth Thatcher, conseguira demonstrar que as
dificuldades experimentadas pela economia européia provinham da estatização.
A reviravolta viria a tornar-se expressa no Ato Único assinado em Luxemburgo, em
fevereiro de 1986 e que entrou em vigor a 1º de julho de 1987. Formalmente, consolidava as
disposições estabelecidas pelos três tratados constitutivos das Comunidades do Carvão;
Econômica Européia e da Energia Atômica.
O Ato Único definiu os marcos da transferência de soberania, aceitáveis por todos os
Estados membros. A assinatura desse documento por Margareth Thatcher introduziu
modificação substancial no denominado modelo social europeu. Era desejo expresso,
sobretudo da liderança francesa, impulsionar a organização das atividades econômicas
segundo os padrões socialistas vigentes no Continente. Agora firma-se uma clara opção pela
economia de mercado.
Como teremos oportunidade de referir expressamente, na prática, a França não abdicou
da presença do Estado na economia, sem embargo de que o processo de integração, nesse
plano, registre avanços notáveis. Contudo, em matéria de integração política, não foi
encontrada solução consensual.
Além do existente Conselho da União Européia, o texto constitucional cria um outro órgão
denominado Conselho Europeu, que teria um Presidente, nomeado para um período de dois
anos e meio. Ao contrário da rotatividade igualitária vigente no atual Conselho da União
Européia, seria limitada a três países, dentre os fundadores, admitidas futuras ampliações. O
Presidente teria poderes limitados. Contudo, tratar-se-ia de uma estrutura permanente.
No interior do atual Conselho, criar-se-ia o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros,
que passaria a absorver as atribuições da Comissão no que respeita às relações externas e à
defesa. Precisamente nessa matéria situam-se divergências aparentemente insanáveis, como se
viu na oportunidade da intervenção americana no Iraque. No documento oficial, dedicado a
apresentar o resumo do conteúdo do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa,
afirma-se que a criação desse cargo “deverá estimular a confiança recíproca e a projeção
européia dos Estados membros”, bem como a certeza de que “o papel da União na cena
internacional será sem dúvida reforçado, qualquer que seja o domínio”. Adicionalmente, o
estreitamento da cooperação entre os Estados membros, no tocante à defesa, “reforçará a
credibilidade da política externa da União”. Acontece que não há maiores evidências da
existência de uma política externa comum na Europa.
O texto preconiza aumento do poder dos Estados membros mais desenvolvidos do ponto
de vista econômico. Esta é naturalmente uma questão delicada no funcionamento de uma
comunidade de nações, cuja maioria não só aderiu posteriormente à sua formação como o fez,
sobretudo, com vistas a obter apoio financeiro que faculte elevação dos padrões de renda. Na
fase inicial, os fundadores decidiam por unanimidade. A Europa dos 15 adotou uma
ponderação do voto a partir do número de habitantes (11), podendo muitas questões --
notadamente as relacionadas às contribuições para o Orçamento e a destinação desses
recursos -- serem decididas por maioria. A Constituição introduziria o conceito de dupla
maioria. Presentemente considera-se que é alcançada quando obtém o apoio dos Estados
membros representando 60% da população. Na proposição ali contida, passaria a
corresponder a 55% dos Estados membros que representem 65% da população. A lógica é a
seguinte: três Estados membros mais populosos poderiam, isoladamente, bloquear decisões do
Conselho. Na nova regra seriam necessários quatro Estados membros.
A recusa pelo eleitorado francês do projeto de tratado Constitucional prende-se a
problemas internos. Não se trata de que os contingentes eurocéticos -- opositores
incondicionais da Comunidade Européia -- pudessem, por si sós, alcançar aquele resultado.
São grupos muito heterogêneos, a exemplo da extrema direita (Le Pen) e os comunistas, ainda
que em certas circunstâncias registrem votação coincidente. Mesmo arrastando os
independentes equivaleriam no máximo a 20% do eleitorado. Assim, a recusa da Constituição
por cerca de 55% dos votantes (70% do eleitorado) resultou da cisão verificada no Partido
Socialista. Ainda que a direção haja decidido votar a favor, Lauren Fabius (antigo primeiro
ministro e representante do núcleo que resiste à renúncia aos velhos tabus socialistas, a
exemplo do que ocorreu com todos os demais partidos dessa tendência na Europa) aderiu ao
Não e provocou a inesperada reviravolta. Inesperada porquanto as lideranças tradicionais
achavam-se plenamente identificadas com o projeto de Texto Constitucional
Se bem a Constituição pudesse entrar em vigor sem alcançar a unanimidade,
progressivamente tornou-se claro não haver qualquer empenho na retomada da rodada de
referendos. Veio a ser ratificada pela Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Itália, Chipre,
Estônia, Grécia, Hungria, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Eslovênia e Eslováquia, ao
todo 16 Estados membros. Como foi referido, ouve duas recusas (França e Holanda). Restam
portanto onze integrantes da Comunidade: Inglaterra (deveria ser referendada pelo
Parlamento, seguindo-se a consulta popular, tendo o governo adiado o início da votação, em
junho de 2005), Polônia, Portugal, República Tcheca, Suécia, Dinamarca, Irlanda e Finlândia.
279
A questão não se coloca para a Bulgária e Romênia, cujo ingresso deu-se em janeiro do
corrente ano.
Adiante indicaremos a saída encontrada pela Comunidade.
País Hectares
(milhões) %
d) Os obstáculos à desestatização
alcançada, se lhe permitiu designar a Angel Merkel como Chanceler, não assegurava o
funcionamento do governo, impondo uma coalizão com os sociais democratas. Assim, as
reformas mais profundas teriam que ser postergadas.
Contudo, o imperativo de manter sob controle o déficit público, bem como o êxito da
Inglaterra no combate ao desemprego, impuseram à Comissão Européia a adoção de certas
políticas liberalizantes em matéria de economia. Em 1998, aprovou uma resolução
determinando a privatização das empresas elétricas até 2005. A Alemanha e a Bélgica a
cumpriram em que pese sua complexidade, notadamente a necessidade de atendimento a
demanda interna mediante a compra de excedentes em outros Estados membros. A França
tergiversou o quanto pôde. A empresa estatal que exerce esse monopólio (EDF) beneficiou-se
da privatização em outros países, participando das novas empresas privatizadas. Limitou-se
entretanto a pulverizar 30% de suas ações, ao que parece inclusive depois do prazo (2006),
sob a condição de que os novos acionistas abdicassem do direito de quaisquer operações
conjuntas. Essa iniciativa foi objeto de campanha publicitária milionária. A Comissão
Européia não tornou pública nenhuma advertência, a exemplo do que costuma fazer quando
se trata de proferir ameaças quando algum Estado membro ultrapassa os limites fixados para o
déficit público.
283
As telecomunicações são outro exemplo de que a França não se dispõe a liberalizar a sua
economia, porquanto a France Telecom corresponde basicamente à mudança de denominação
de órgão estatal, ainda que venha sendo constrangida a aceitar imposições do mercado.
impostos. Mariano Rajoy apresentou essa exigência com a autoridade de sua condição de
dirigente do Partido que, aplicando essa política, fez desabar o desemprego.
Do ponto de vista externo, aponta a França como responsável pela fratura da Aliança
Atlântica. Afirmou taxativamente que “a Europa não pode definir-se por oposição aos Estados
Unidos”, impondo-se a revitalização dos “mecanismos de concertação com nossos amigos
norte-americanos”.
Na mesma época, José Maria Aznar expressou a opinião de que o tema da integração
política não deveria ser retomado a partir do texto do Tratado Constitucional.
Vigorou, desde então, a proposta do Presidente da Comissão Européia, Durão Barroso, de
que o tema só voltasse a ser reconsiderado em 2008.
Ao longo de 2006, o Tratado Constitucional praticamente saiu da Ordem do Dia.
Em decorrência da rotatividade, coube à Chanceler Alemã, Angel Merkel, a Presidência do
Conselho da União Européia, no primeiro semestre de 2007. A liderança de Merkel na Europa
tem se tornado crescente. Graças à sua atuação, rompeu-se o impasse na aprovação do
Orçamento, em 2006. Do ponto de vista interno, as sondagens indicam que tem o apoio de
75% dos alemães.
Valendo-se do reconhecido prestígio alcançado, Merkel aproveitou o cinqüentenário da
formação da Comunidade Européia – transcorrido a 25 de março corrente – para obter uma
declaração conjunta dos Estados membros, concordando em solucionar o impasse antes das
eleições para o Parlamento Europeu, a serem realizadas em 2009. Denominou-se Declaração
de Berlim.
Com base no mandato que lhe foi atribuído, Merkel coroou a sua Presidência de modo
verdadeiramente apoteótico. Na última reunião, que lhe competia presidir, obteve a fixação
das linhas gerais daquilo que viria a ser o Tratado de Lisboa, isto é, a ser aprovado na
Presidência rotativa subseqüente, atribuída a Portugal. Trata-se do texto que substituirá o
Tratado Constitucional.
Resumidamente, abdicou-se da consolidação pretendida pelo Tratado Constitucional,
mantida a vigência dos acordos anteriores em sua forma original.
No que respeita à criação de estruturas permanentes, mantém-se o cargo de Presidente da
União, com mandato de dois anos e meio. A partir de 2014, a Comissão Européia terá
reduzido o seu formato. Preserva-se a ambição de uma política comum exterior e de
segurança. Alterou-se apenas a denominação do titular, ao invés de Ministro dos Negócios
Estrangeiros e da Segurança passa o cargo a ser designado como Alto Representante da UE
para a Política Externa e de Segurança. Seu caráter específico é reafirmado, de modo a
impedir confusões com as competências nacionais na matéria.
Quanto à nova forma de votação --introduzindo-se o critério do número de países ao lado
da população dos votantes--, será adotado apenas dentro de dez anos, em 2017. Os
parlamentos europeus passam a poder contestar as propostas legislativas da Comissão
Européia. É mantida a exigência de respeito ao Estado de Direito, à economia de mercado e
aos direitos humanos, para a admissão na Comunidade. No que refere a referir expressamente
a concorrência, houve divergências, na medida em que, de certa forma, seria uma redundância
já que economia de mercado a pressupõe. Ainda assim, convencionou-se que as competências
da União nessa matéria (concorrência) constarão de uma declaração anexa. A exemplo do que
tem ocorrido, a forma do referendo é estabelecida pelos Estados membros.
Do que precede, pode-se concluir que a atual liderança européia renuncia ao projeto de
tornar a Europa uma Federação. Segundo essa visão, o modelo a ser consolidado poderá ser
definido como um novo tipo de arranjo institucional que não se proponha transformar-se em
Estados Unidos da Europa. A identidade nacional dos Estados membros não está em jogo.
de partidos transnacionais
Destacado estudioso da política, Pascal Delwit (12) afirma na apresentação da obra que
organizou, intitulada Les federations europénnes de partis. Organization et influence (2001),
que o estudo dos partidos a nível europeu mantém-se como o primo pobre da ciência política,
estando ausente mesmo entre aqueles dedicados ao fenômeno partidário em geral. Contudo, a
obra em apreço permite situar com precisão em que consiste a singularidade desse processo.
No que se refere ao Partido Popular Europeu, o seu antigo Secretário Geral, Thomas Jansen,
reconstituiu-lhe a história. (13)
A exemplo das organizações partidárias internacionais, existentes desde o século XIX,
consistindo numa federação de partidos nacionais, não admitem a filiação de indivíduos
isolados, mesmo em se tratando de personalidades expressivas da corrente de opinião que se
propõem representar. Contudo, diferenciam-se basicamente daquelas organizações. Na
maioria dos casos, embora não agissem com a truculência da Internacional Comunista, as
agremiações partidárias internacionais de inspiração democrática também têm como escopo
principal lançar, num determinado país, as sementes da corrente que encarnam ou contribuir
para o crescimento de organizações em funcionamento que já o fizessem. Ao contrário disto,
os partidos europeus definem-se a partir das agremiações nacionais que os patrocinam.
Assim, a força dos partidos europeus provém das agremiações nacionais que lhes deram
origem. Essa singularidade irá traduzir-se numa série de implicações.
A primeira delas seria formulada por Thomas Jansen do seguinte modo: “Os partidos
europeus não foram constituídos --ou ainda não foram-- como agremiações equiparáveis aos
partidos nacionais. Isto é conseqüência do fato de que as bases do poder, na União Européia,
não se encontram no Parlamento Europeu mas nos governos nacionais que, por sua vez,
legitimam-se a partir dos parlamentos nacionais e, também, é dali que procede o seu poder”.
(14)
Os custos da integração européia são assumidos pelos governos nacionais através de
contribuições ao Orçamento da Comissão Européia. A par disto, a destinação desses recursos
é fixada pelo Conselho Europeu, isto é, por um órgão constituído pelos chefes de governo em
exercício. De modo que o Parlamento Europeu viu-se privado das atribuições --a fixação de
impostos e a correspondente elaboração orçamentária--, de onde justamente decorreram a sua
origem e razão de ser.
Deste modo, como diz Thomas Jansen, o que viria a ser demandado dessas agremiações
passaria a depender “do progresso da integração e sua institucionalização”. A obra em apreço
contém diversos exemplos do surgimento de questões nas quais a intervenção do Parlamento
tem sido requerida. De nossa parte, ao caracterizar as linhas gerais da construção européia,
mencionamos o papel que desempenhou na solução das divergências surgidas no que respeita
à regulamentação do processo de integração dos serviços.
A tendência natural consistirá na transformação do Parlamento Europeu numa referência
imprescindível sempre que se trate de avançar na integração, na medida em que, visivelmente,
há uma lacuna a preencher. As dificuldades enfrentadas pela adoção do Tratado
Constitucional foram atribuídas ao que se denominou de “déficit democrático”. O que aparece
como símbolo da Comunidade Européia é a burocracia de Bruxelas. Tradicionalmente, a
Comissão que a dirige era constituída pela simples indicação dos Estados membros. Desde
fins de 2004, quando da nomeação do seu atual Presidente, Durão Barroso, a investidura do
conjunto dos integrantes da Comissão Européia passou a requerer a aprovação do Parlamento
Europeu. Avança-se, portanto, na obtenção de visibilidade para uma outra instância de poder,
constituída democraticamente.
287
Contudo, a ruptura do PSD com o modelo tradicional, consumada em 1959, não repercutiu
de imediato. Nas décadas de sessenta, setenta e oitenta, a nova linha que preconizava para a
social democracia, na prática dissociando-a do ideário socialista, somente era seguida pelo
Partido Trabalhista da Austrália.
Na década de noventa aconteceria entretanto um evento que iria em muito reforçar aquele
posicionamento, criando a possibilidade de por fim ao seu isolamento na Europa. Trata-se da
reviravolta provocada por Tony Blair na Inglaterra. Em 1995, o Partido Trabalhista aprovou,
em consulta direta aos filiados, a revogação da chamada “Cláusula IV” do seu Programa, que
identificava socialismo e estatização da economia. Governando o país desde 1997, os
trabalhistas mantiveram as reformas introduzidas pelos conservadores e se dispuseram a dar
continuidade à revisão dos programas do Welfare. A par disto, a elaboração teórica dessa
nova linha política do trabalhismo, batizada de terceira via, da lavra de Anthony Giddens
retira as principais bandeiras dos sociais liberais. Assim por exemplo, abandona a busca por
igualdade de resultados, substituindo-a por igualdade de oportunidades, uma velha consigna
liberal.
Do que precede, verifica-se ter ganho nitidez as distinções entre socialistas e sociais
democratas. Enquanto o PS Francês recusa-se a rever as formas de financiamento dos
programas do Welfare, tanto na Inglaterra como na Alemanha adota-se o modelo norte-
americano dos Fundos de Pensões. No poder, o PSD alemão dá continuidade à política
conservadora de reduzir impostos incidentes sobre atividades produtivas. Enquanto o PS
Francês continua falando em aumento de impostos.
Em 2004, os socialistas exerciam o poder na Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Suécia e
Finlândia. Posteriormente, em 2005, os conservadores alemães venceram as eleições, com
maioria precária, optando-se por uma coalizão entre as duas maiores agremiações, dada a
gravidade de certos problemas e o avanço de consenso em matérias de que dependeria
estritamente a dinamização da economia. Em contrapartida, os socialistas voltaram ao poder
em Portugal, Espanha e Itália. Assim, a maioria dos governos na Europa dos 15 encontra-se
em suas mãos.
Todas as agremiações socialistas dos países mencionados tendem para a social democracia,
isto é, não cogitam de estatizar a economia, embora relutem em desestatizar, se bem o façam
sob pressão, notadamente de Bruxelas.
Poderia ser agregado a essa vertente o Partido Operário Socialista Luxemburguês, o Partido
Trabalhista irlandês, o Partido Social Democrata Dinamarquês e o Partido Trabalhista
Irlandês.
Nos demais países, há situações típicas como os casos da Áustria e Grécia, nações onde
sobrevivem estruturas corporativas inamovíveis, notadamente devido à prolongada
sobrevivência de empresas estatais, sendo de difícil tipificação a doutrina socialista que
praticam o Partido Social Democrata Austríaco e o Movimento Socialista Panhelênico
(grego).
Do que precede, pode-se comprovar o isolamento do PS Francês. Ainda assim, do mesmo
modo como tem conseguido bloquear as reformas na França, mesmo encontrando-se na
oposição, no seio do Partido Socialista Europeu desempenha o mesmo papel conforme se
pode ver da virtual impossibilidade de adotar uma política consistente em matéria de
desemprego. Esse tema foi estudado por Erol Kulahci, pesquisador do Instituto de Estudos
Europeus da Universidade Livre de Bruxelas. (16).
A estratégia seguida pelo PSE consistiu em atuar diretamente junto ao Conselho Europeu,
através dos chefes de governos socialistas presentes às reuniões em que são adotadas
diretrizes para a atuação da Comissão Européia. Essa opção adveio do fato de que o programa
adotado, pelo PSE, em junho de 1994, intitulado Iniciativa européia pelo desemprego, como
diz, “não encontrou nenhum eco nos Partidos nacionais.”.
289
(31 cadeiras); Partido Socialista Operário Espanhol (24); Partido Social Democrata Alemão
(23); Partido Trabalhista Inglês (19); Partido Socialista de Portugal e Partido da Esquerda
Democrática (italiano), com 12 cadeiras cada. Acham-se próximos das dez cadeiras;
Movimento Socialista Panhelênico (grego), com 8 representantes; o Partido Trabalhista
Holandês (7) e o Partido Social Democrático Austríaco (7). Detêm cinco cadeiras cada:
Partido Social Democrata Dinamarquês e Partido Social Democrata-SFP (sueco). Os dois
partidos socialistas belgas dispõem, respectivamente, de 3 (flamengos) e 4 (walons). Ao todo,
a representação da Europa Ocidental alcança 169 cadeiras, 84% do conjunto. Dentre os
países do Leste, Romênia detém a maior representação (12 cadeiras), seguida pela Hungria (9
cadeiras). A Polônia é representada por dois partidos, um com três e outro com cinco cadeiras.
Com bancadas menores: República Checa, Estônia, Lituânia e Eslovênia.
c) Na integração européia,
os Partidos Liberais expõem suas fraquezas
No que respeita ao Partido Liberal Europeu, conforme assinala Camila Sandstrom: “Os
fundadores da federação confrontaram-se com o dilema decorrente da heterogeneidade que
caracteriza as forças liberais na Europa. Convidar um partido para integrar a organização pode
ocasionar indisposição com outro potencial candidato a partido membro, ou ainda a perda de
coerência ideológica. Como a história do ELDR é também a história de seus partidos
membros, os problemas relativos à sua composição ilustram perfeitamente este dilema”. (18)
A autora os enumera e vamos referir alguns deles.
Foram convidados quatorze partidos para a reunião constitutiva, que teve lugar em 1976.
Ingressa como representação francesa o Movimento dos Radicais de Esquerda, que a partir da
própria denominação não teria muito a ver com uma entidade liberal. No século XIX, os
seguidores de Bentham (Stuart Mill, principalmente) adotaram a denominação de “Partido
Radical”, que serviu para disseminar a doutrina, na época, e também para aproximar os
socialistas de certos aspectos do liberalismo (a adesão ao sistema democrático representativo,
por exemplo). Contudo, chamar-se “radicais de esquerda” não corresponde bem ao caso.
Assim, logo adiante esse movimento afastar-se-ia, devido ao ingresso do Partido de Giscard
d´Estaing (PL), evento que também serviu para protelar a adesão dos liberais ingleses. O PL,
por sua vez, também acabaria afastando-se. De igual modo, a Holanda registrava a presença
de dois partidos liberais um de esquerda (D66) e outro de direita (VVD).
No modelo clássico, proveniente da Inglaterra, os conservadores (tories) achavam-se no
mesmo plano dos liberais (whigs) na medida em que ambos foram os responsáveis pela
criação do governo representativo. Estes últimos interessaram-se pela questão social, razão
pela qual José Guilherme Merquior designou-os como liberais sociais, denominação
popularizada no Brasil e igualmente encontrada na Europa. Contudo, dificilmente, poderiam
ser arrolados como sendo de esquerda, campo integrado por socialistas, sociais democratas e
comunistas.
Essa questão acha-se considerada deste modo pela autora antes referida, Camila
Sandstrom: “As tendências ideológicas divergentes, no interior da família liberal, revelaram-
se sobretudo a propósito das problemáticas econômica e social. Se as declarações que
concernem, por exemplo, o desenvolvimento institucional da União Européia são bastante
precisas, podendo servir de fio condutor político a um partido, os textos relativos aos
problemas econômicos são sobretudo vagos, senão mesmo ambíguos”. (19) E, logo adiante:
“As divergências internas sobre a temática esquerda-direita são habituais. Ao nível nacional, é
freqüente encontrar duas alas ideológicas dominantes no interior dos partidos”.
Sandstrom indica ainda que ELDR tem se esforçado no sentido de estreitar relações com
os partidos nacionais. Contudo, conclui: “os contatos entre os níveis nacional e europeu
291
Europa dos 15
Ex-Comunistas (Leste)
292
Cristã em 1982, sendo fiel da balança dada à reduzida diferença do número de cadeiras entre
os dois grandes partidos, passa para o outro lado, mantendo-se no poder.
Essa circunstância não poderia deixar de refletir-se do ponto de vista doutrinário. Escreve
Ferdinand Muller Rommel: “Até 1957, a clivagem interna entre uma tendência propriamente
liberal e uma outra tendência mais social torna-se obstáculo à elaboração de uma plataforma
eleitoral clara. Contudo, com o seu Programa de Berlim (1957) apresenta-se como uma
tendência antes de tudo liberal. .... Mais tarde, colocado na oposição de 1966 a 1969, o FDP
evolui para um liberalismo de esquerda tornado manifesto nas Teses de Friburgo (1971).
.... Porem, desde as Teses de Kiel, de 1985, o Partido reconverte-se às posições liberais
clássicas, preconizando a redução do Estado e a proteção da liberdade e da iniciativa privada.”
Depois dessas considerações, assinala que pode ser classificado como Liberal (isto é,
conservador) e Liberal Social.
Nas eleições de 2002, obteve 7,4% das cadeiras no Parlamento, e, em 2005, 9,8%. Perdeu
para os Verdes a condição de fiel da balança sob os governos de Schroeder (1998 a 2005).
Nas últimas eleições, em face da coligação entre os dois maiores partidos, ficou fora do poder.
Naturalmente, não se trata de supor que as agremiações enumeradas seriam organizações de
índole ortodoxa. Mais das vezes, subdividem-se em correntes que poderiam também ser
consideradas próximas de um ou de outro dos segmentos tipificados. Cumpre considerar ainda
que existem tradições nacionais incontornáveis que mais das vezes pesam muito em seu
comportamento.
Com essa ressalva, e considerada a Europa dos 15, desde que abrange o território da Europa
Ocidental, não existem Partidos Liberais em cinco países, a saber: França, Espanha, Portugal,
Grécia e Itália. Neste último, o Partido Liberal era a agremiação política mais antiga, desde
que data de 1848. Criada pelo Conde de Cavour (1810/1861), considerado como um dos
artífices da unificação do país, consumada no ano do seu falecimento. Contou em seu seio
com personalidades de grande renome, como Benedetto Croce. Refundado após a queda do
fascismo, na segunda metade do século passado, não conseguiu firmar-se, terminando por
desaparecer em 1994. Nas restantes nações, aproximadamente um terço tenderia para o
liberalismo social, achando-se o terço restante mais próximo das teses do conservadorismo
liberal.
Quanto aos países do Leste, é cedo para avaliar como se dará o reordenamento partidário.
Submetidos a quarenta anos de ditadura comunista, nos três lustros transcorridos desde a
Queda do Muro sobrevivem os antigos Partidos Comunistas, recauchutados e rebatizados.
Mas emergiram também agremiações conservadoras sem maiores compromissos com a
democracia. O ingresso na Comunidade Européia deve permitir que se formem autênticos
partidos políticos, ainda que com maior ou menor lentidão, na medida em que as tradições
nacionais favoreçam ou dificultem esse desfecho.
O Partido Europeu dos Liberais, Democratas e Reformadores (ELDR) tem presentemente
(eleições de 2004) 89 deputados no Parlamento Europeu, aproximadamente 12% das cadeiras.
Os principais países da Europa Ocidental detêm pouco menos da metade, distribuída deste
modo: a maior bancada fica com os ingleses (Partido Liberal Democrata, 12 deputados),
colocando-se em segundo lugar o Partido Liberal Alemão (7 cadeiras). Seguem-se um dos
partidos finlandeses (KESK) e um dos holandeses (VVD) com quatro deputados cada. O
grupo com três parlamentares cada é constituído por cada um dos partidos belgas (6 cadeiras)
e pelo Partido Liberal (Venstre) da Dinamarca. O Partido Popular Liberal (FP, sueco) tem
duas cadeiras. Por fim, o grupo com um representante cada: Dinamarca (Partido Liberal-RV);
Finlândia (SFP), Luxemburgo (PD-Partido Democrático); Suécia (CP-Centerpartei) e Holanda
(D66), somando 5 cadeiras. Nem todos os partidos existentes na Europa dos 15, têm
representação no ELDR, a exemplo do Fórum Liberal (Áustria), do Partido do Centro (CP),
sueco, e do Partido Democratas Progressistas (Irlanda).
295
O declínio dos Partidos Liberais na Europa tem suscitado diversas análises, a exemplo das
que foram abordadas. Em que pese a variedade de aspectos focalizados, parece-nos que o
essencial foi apontado por Camila Sandstrom, bem como no texto citado de Eros Kulahci e
Cédric Van de Walle, ambos na consideração da agremiação européia. Consiste nas
tendências ideológicas divergentes que aparecem em relação à problemática econômica e
social. Examinando também a postura da corrente no plano nacional, foi possível evidenciar a
profundidade da polarização em torno de programas distintos nessa matéria.
À luz desse panorama, é possível responder a este questionamento: em que medida o
fenômeno determina a sorte do liberalismo como um todo? Mais precisamente, o declínio dos
Partidos Liberais significa o fim do liberalismo, como tem sido proclamado no Brasil ao
longo da República?
A aceitação do governo representativo pelos socialistas, graças ao novo posicionamento
adotado pela Segunda Internacional --renegando assim as prescrições de Carlos Marx--,
determinou que o século XX assistisse à ascensão política dessa corrente. O Partido Social
Democrata Alemão conquista posições crescentes no Parlamento e, após a Segunda Guerra e
o fim da monarquia, torna-se o artífice da República de Weimar. Na Inglaterra, logo adiante,
isto é, em meados da década de vinte, formam o primeiro governo e, ainda que não se
sustentassem no poder, após a Segunda Guerra aparece como força efetivamente expressiva.
Na França, em que pese a concorrência dos comunistas, o Partido Socialista desempenha
crescentemente papel decisivo.
Na segunda metade do século ocorre o desfecho: a derrota das idéias liberais. Em face da
ascensão das agremiações socialistas seria, a bem dizer, o corolário natural e previsível, não
fora a circunstância de que, o sucesso alcançado no plano econômico deveu-se à aplicação do
keynesianismo, em que pese a estatização da economia efetivada nesse período, que não fora
cogitada por Keynes. O certo, contudo, é que permitiu a modernização das empresas e a
introdução de certas praxes capitalistas de que decorreram houvesse permitido a distribuição
de renda, que lhe era inerente. Temos em vista o ciclo histórico que os franceses batizaram de
“trinta gloriosos”.
Nada disto seria entretanto atribuído à doutrina liberal. Mais do que isto, a revisão
introduzida por Keynes no liberalismo clássico foi entendida, pela liderança socialista, como
capitulação dos liberais perante o socialismo. Os trabalhistas ingleses o proclamaram
abertamente, omitindo o essencial, isto é, que o keynesianismo nunca preconizou a
substituição de empresas privadas por organismos estatais.
Assim, os trinta anos subseqüentes ao fim da guerra marcaram o apogeu da ascensão do
socialismo na Europa. Mas também o começo do que viria a ser o seu martírio, com a eclosão
da crise econômica iniciada na segunda metade dos anos setenta.
Iriam experimentá-lo em quase todos os países europeus. A maioria das agremiações
socialistas soube adaptar-se à nova circunstância. Encontraram a fórmula pronta que, aliás,
existia desde os fins da década de cinqüenta, quando os alemães dissociaram o socialismo da
estatização da economia e renunciaram à utopia da sociedade sem classes. O Partido
Socialista Francês optou pela resistência. Ao invés de reconhecer que a experiência socialista
fracassara na Europa Ocidental --que foi precisamente o que ocorreu-- tratou de satanizar a
solução que começou a ser experimentada por Margareth Thatcher na década de oitenta,
batizando-a de neoliberalismo. A intelectualidade brasileira logo aderiu a essa catilinária.
296
deixar dúvidas quanto ao caráter social-democrata do novo partido - isto é, de seu franco
abandono de qualquer veleidade liberal -, a Declaração Política critica a privatização.
Fourcade, no livro em que nos inspiramos, chama a atenção para o fato de que não se pode
dizer que os sociais-democratas, como o fizeram os socialistas, empenharam-se na
estatização. Mas, na hora de desestatizar, tratam logo de desconversar.
A crítica à social democracia e o pleno esclarecimento da verdadeira índole do
conservadorismo liberal tornaram-se, portanto, as questões teóricas cruciais de nosso tempo.
comunidades, que posam contribuir para a sobrevivência das famílias, ou tornar encargo
oficial a remuneração das mães que se disponham a deixar de trabalhar para cuidar dos filhos.
6ª) A terceira via destaca os aspectos positivos da globalização e, considerando que os
riscos daí advindos reduzem-se à probabilidade de disseminação de crises financeiras, entende
que poderiam ser prevenidas se a comunidade internacional dispusesse de mecanismos
institucionais capazes de preveni-las, mediante acompanhamento do desempenho econômico
das nações que, voluntariamente, se disponham a aceitá-lo; e
7ª) Por fim, a terceira via elimina a diferenciação clássica existentes entre socialistas e
liberais, ao abandonar a busca pela igualdade de resultados --que reconhece exigir
intervenções tirânicas na vida social--, optando pela igualdade de oportunidades.
O processo descrito traduz uma das características fundamentais do liberalismo: a
capacidade de ir ao encontro de aspirações da sociedade, propondo soluções que acabarão por
tornar-se consensuais. Foi assim com o governo representativo, que começou como uma
experiência inglesa isolada. O mesmo ocorreu com a sua democratização. É certo que
continua sendo recusado por outras culturas mas tornou-se marca indissociável do Ocidente.
Vivemos agora o processo de adesão ao liberalismo econômico, na feição renovada que
assumiu em nosso tempo, centrada na redução do gasto público.
Assim, pelo que tem de essencial, a terceira via dá continuidade a uma linha destacada de
desenvolvimento da vida política no clima ocidental de cultura. Contudo, existe uma
diferença radical entre a doutrina liberal e a doutrina social democrata, enquanto herdeira do
socialismo, além de outras menos relevantes. Entre estas, pode-se apontar a sua incapacidade
de reconhecer o papel da empresa no conjunto da sociedade e, em consequência, a
subestimação do empresário, de cuja criatividade e disposição de correr riscos dependem em
grande medida o desenvolvimento sustentável. A diferença que estamos chamando de radical
diz respeito à questão do Estado.
Para esclarecer plenamente essa diferenciação cumpre, antes de mais nada, esclarecer em
que consiste de fato o posicionamento liberal na matéria.
Ao longo do século XX, desenvolveu-se uma vertente auto-denominada de libertária, mais
das vezes confundida com o liberalismo. Seus artífices são Ludwig Von Mises (1881/1973) e
Friedrich Hayek (1899/1992). Difundiram idéias que nada têm de liberais, a exemplo da que
afirma seria o Estado um mal necessário, pretendendo substituí-lo pelo que denominaram de
Estado mínimo. Acresce a isto o menosprezo pelo governo democrático representativo. Na
demarquia de Hayek, as leis são feitas por um grupo de sábios (remember Platão) e o comum
dos mortais é chamado a votar duas únicas vezes na vida. São proposições mais próximas do
anarquismo que do ideário liberal. Não tem cabimento tomá-las por base na crítica ao
liberalismo, como parece ser precisamente o caso.
Do ponto de vista liberal, o Estado corresponde a uma estrutura imprescindível da
sociedade. No que se refere especificamente ao mercado, depende do arcabouço jurídico que a
instituição estatal lhe proporcione.
Giddens afirma, na obra em apreço, que, “no mundo contemporâneo, ao contrário do que
dizem os neoliberais, precisamos de mais governo e não de menos”. Quando refere
neoliberal, certamente tem em vista as teses dos chamados libertários, a que nos referimos.
Com a vasta cultura de que dispõe, Giddens não pode ignorar a circunstância, isto é, essa
procedência, e considerar que estaria de fato lidando com o liberalismo.
No fundo, sabe que ao Estado compete assegurar a estabilidade da moeda e dotar a ordem
econômica de sistema jurídico estável, garantidor dos contratos, armada dos instrumentos
requeridos para combater fraudes, etc. Mas não pode dar o passo que o transformaria num
liberal. Daí talvez o biombo do neoliberalismo.
O Estado não corresponde a uma obra de ficção, abstrata. É constituído de pessoas reais
que, agrupadas constituem uma instância denominada de burocracia. Sabemos que o Estado
300
o gasto público a fim de lograr crescimento sustentado e superar o fenômeno então surgido,
batizado de estaginflação. Se não se pode atribuir ao Partido Republicano maiores vínculos
com o conservadorismo social, de onde provinha a indisposição com o Welfare, muito menos
tal de aplicaria aos conservadores britânicos. Mme. Thatcher dedicou-se firmemente a salvar
o sistema estatal de assistência médico-hospitalar, embora se tratasse do abandono, ocorrido
no início do pós-guerra, da tradição anterior, de fazê-la repousar em instituições
descentralizadas.
Quanto à vinculação, que se pode estabelecer, de Milton Friedmann à política
thatcheraiana, limita-se ao aplauso que dirigiu ao empenho de seu primeiro governo em
reduzir a despesa pública. Criticou-a frontalmente, logo adiante, quando o governo
conservador introduziu programas governamentais com o propósito de reduzir o desemprego.
Registre-se, por fim, que a crítica irresponsável à política dos conservadores ingleses a
partir do início da década de oitenta, apresentada de modo caricatural sob o nome de
neoliberal, equivale a fazer pouco caso da opinião pública inglesa que não só apoiou os
sucessivos governos conservadores, entre 1979 e 1997 --durante 18 anos, portanto --, como
somente voltaram à praxe da alternância no poder quando os trabalhistas, sob a nova liderança
de Tony Blair, comprometeram-se a preservar as reformas introduzidas naqueles governos.
A opção pela economia de mercado firmou-se ainda sob Adenauer, cuja vitória, nesse
particular, nunca mais se viu contestada. A obra coletiva Les partis politiques en Europe de
l´Ouest, elaborada sob a direção de Guy Hermet (Paris, Economica,1998) resume essa
circunstância do modo adiante: “Durante sua fase inicial (1945-1947), uma tendência cristã-
social, afeiçoada a um socialismo econômico repousando em bases democráticas, veio a
afirmar-se e a caracterizar, na época, o programa da DC na zona de ocupação britânica. Mas a
influência de Konrad Adenauer, Chanceler e chefe do partido, contribuiu para proporcionar
orientação diferente desde os anos 1950: de uma parte, a economia social de mercado, por
certo submetida à concorrência, temperada pelo controle dos monopólios e igualmente
singularizada por uma fraca intervenção do Estado; de outra parte, completada pela
afirmação do alinhamento com o Oeste na política de defesa e segurança alemãs (“Programa
Hamburgo”, de 1953). Assim, a DC situa-se ao centro do espectro político alemão por sua
ligação ao liberalismo, ao mesmo tempo favorável à co-gestão das empresas e atribuindo
lugar importante aos sindicatos, em conformidade com a aspiração de sua ala esquerda.” (pág.
40) Os autores da parte relativa à Alemanha (F.Muller-Rommel e G. Pipper) adiantam que,
para os fundadores, a aspiração era estruturar uma agremiação plural, sem referência
confessional precisa, inspirada pela ética cristã.
c) Os fundamentos teóricos da
economia social de mercado, segundo Ludwig Erhard
Numa obra sucessivamente ampliada --entre 1957 e 1963 --, traduzida em diversas línguas,
a que deu o título de Bem estar para todos, Ludwig Erhard estabelece os princípios
doutrinários da economia social de mercado.
A principal tese ali apresentada consiste em que, graças à nova feição assumida pela
doutrina econômica liberal, ao admitir a intervenção estatal --coerentemente desenvolvida por
Keynes, de igual modo presente à elaboração doutrinária de Eucken-- achavam-se superadas
as crises cíclicas. A comprovação empírica é efetivada recorrendo a abundante transcrição de
dados estatísticos do desempenho econômico da Alemanha.
Em síntese, somente em 1950 a produção industrial alcança pela primeira vez os níveis
registrados em 1936. Os índices do comportamento do PIB, entre 1950 e 1961, demonstram
que, partindo de patamar equivalente a 113,1 chega a 252,1. São 12 anos de crescimento
ininterrupto, o que lhe permite concluir que tinham razão os democratas cristãos ao achar ter
sido superada “a velha lei até então considerada como infalível da evolução cíclica do
fenômeno econômico.”
Escreve: “Como é sabido, julgava-se que a economia se desenvolvia por ondas rítmicas --
sete anos seriam mais ou menos o espaço de tempo em que desenvolvimento, auge
econômico, decadência e crise se completam, até que desta se criariam novas forças
vivificadoras que marcariam o começo positivo do próximo ciclo. Durante este longo período
306
O primeiro deles consiste no seguinte: “bem estar para todos” e “bem estar através da
concorrência” são inseparáveis. O primeiro caracteriza o fim e, o segundo, o meio apto para
alcançá-lo.
O desdobramento dessa política exigiu uma lei anti-cartel. Justifica-a: “Aqueles patrões
que julgam poder criar cartéis, com base nas modernas tendências do desenvolvimento
econômico, situam-se no mesmo plano do ideário social-democrata, ao preconizar que a
automação do processo produtivo pressupõe seja a economia dirigida pelo Estado.”
As manifestações típicas de egoísmo não seriam atributo exclusivo do patronato. Do lado
do movimento operário é preciso exigir que aceite o princípio de que os aumentos salariais
guardem estrita dependência do incremento da produtividade. A solidez da moeda completa o
quadro. Afirma a esse respeito: “É muito mais fácil dar a cada um um pedaço maior de um
bolo que registra crescimento do que pretender tirar partido de uma disputa sobre a divisão de
um bolo pequeno porquanto, dessa maneira, cada vantagem, necessariamente, engendra uma
desvantagem.”
Erhard comprova o sucesso dessa política comparando o índice do consumo privado, na
Alemanha, com aquele verificado nos países membros da Comunidade Econômica Européia,
entre 1950 e 1960, correspondendo a 1950 o índice 100. Enquanto na Alemanha, naquele
último ano, o índice registrado é de 201, na Inglaterra alcança 128 e, na França, 153. Nesse
particular, a Alemanha supera mesmo os Estados Unidos, onde o índice do consumo privado,
em 1960, comparado a 1950, era de 136.
Erhard tinha claro que o sistema de previdência social instituído no país --atendido por
contribuições das empresas, dos trabalhadores e do Estado-- somente poderia sustentar-se,
como dizia, tendo por base “uma expansão sem prejuízo dos fundamentos saudáveis de nossa
economia e de nossa moeda”. Somente dessa maneira, acrescenta, “é possível garantir um
nível de vida digno, aceitável, a todos aqueles que, involuntariamente, devido à velhice, à
doença, ou tendo sido vítima das duas guerras mundiais, deixaram de poder participar
diretamente no processo de produção”. No que respeita ao longo prazo, como indicaremos,
parecia-lhe que o modelo teria que ser reformulado.
Erhard soube convencer os seus compatriotas de que a responsabilidade pela estabilidade
da moeda não é exclusiva do Estado. Insiste em que os sindicatos não devem servir de massa
de manobra de especuladores (e não autênticos empresários) que dissociam aumento de
salário de aumento da produtividade, com base na elevação dos preços dos produtos. Para
alcançar esse convencimento, usa argumentos morais e não apenas aqueles estritamente
econômicos. Apresento alguns exemplos.
“A liberdade de consumo e a liberdade de atividade econômica devem ser sentidos, na
consciência de todo cidadão, como direitos fundamentais e invioláveis. Deixar de reconhecê-
lo, repudiá-los, devia ser punido como um atentado à sociedade. Democracia e economia livre
andam tão logicamente ligadas como ditadura e economia estatal.”.
Para convencer a massa trabalhadora de que a economia social de mercado --que
apresenta como aquela que “torna impossível a uma única classe da população enriquecer às
custas das outras”-- está associada, indissoluvelmente, à estabilidade da moeda. Para atingir
tal objetivo, faz advertências desse tipo: “Os sindicatos deviam perguntar a si próprios se,
com sua política ativa de salários, não favorecem os negócios de irresponsáveis
especuladores, quando essa política conduz necessariamente ao aumento dos preços.”
307
Na obra que estamos passando em revista, Ludwig Erhard procura fazer com que os
alemães retirem ensinamentos da política econômica dos anos trinta, que serviu para
comprovar, como diz, “ que deter a inflação através da estagnação paralisa a economia”. E
não podem ser esquecidas as conseqüências dessa paralisação em termos de poder de emprego
e de compra. Faz questão de registrar que toda essa problemática veio à tona quando se tratou
de liberalizar a economia no pós-guerra. Nessa convicção destaca o que chamou de
“nascimento da economia de mercado”.
Erhard lembra que, no pós-guerra, considerava-se uma fatalidade que os alemães se
conformassem com a penúria da existência (por exemplo: um par de sapatos novo a cada dez
anos; um único terno ao longo da vida adulta; apenas uma em cada cinco crianças ter
condições de usar fraldas; etc.) sem se dar conta que resultara basicamente do dirigismo
econômico. Conclui: “A prova do ilimitado alheamento da realidade que caracterizava o
dirigismo econômico residia no fato de acreditar que o destino de um povo podia ser
determinado a longo prazo por um balanço de matérias primas e outros dados estatísticos.
Esses mecanicistas e intervencionistas em matéria econômica não faziam a menor idéia do
dinamismo que é capaz de surgir quando se permite a um povo retomar consciência do valor
e da dignidade que a liberdade representa.”
Resumo a descrição que efetiva da batalha pela liberalização da economia, no segundo
semestre de 1948, com os especuladores do cambio negro elevando artificialmente os preços,
os sindicatos alvoroçados a ponto de convocar uma greve geral. O sentimento comum, diz,
“era atirar fora a liberdade havia tão pouco conquistada.” O fato de que tivesse resistido
permitiu que a maioria acabasse por convencer-se do acerto da nova política. No primeiro
semestre de 1950, os preços baixaram 10,6% em relação a idêntico período do ano anterior.
Esse fenômeno deu lugar a algo de completamente esquecido pelos alemães: o mercado volta
a ser do comprador. As novas gerações iriam crescer nesse novo ambiente. Refere que, em
fins dos anos cinqüenta, a própria social democracia “entrega os pontos”. Tem em vista o
Congresso histórico de Bad Godsberg (1959), quando o PSD renuncia ao marxismo, à
identificação do socialismo com estatização da economia e com a utopia da sociedade sem
classes, reconhecendo que a economia de mercado é capaz de proporcionar, segundo o lema
de Erhard, “bem estar para todos”.
Erhard deixa claro que “não é tarefa do Estado intervir diretamente na economia ... e
também não cabe nos quadros de uma economia, baseada na liberdade de iniciativa, que o
próprio Estado exerça atividades patronais”.
Atento ao pressuposto da relevância dos problemas morais, Ludwig Erhard aborda em seu
livro questões que continuam mantendo grande atualidade como a sobrevivência do
corporativismo, o futuro do modelo da seguridade social européia ou, ainda, a questão
essencial de saber-se se a ininterrupta expansão da oferta de bens e serviços, uma das
principais características do sistema capitalista de produção, corresponde a razão suficiente da
existência humana. Vejamos esquematicamente como as enfrenta. (28)
A tradição corporativa alemã corresponde a um dos traços marcantes e amplamente
discutidos daquela cultura. Max Weber temia que a hegemonia, conquistada pela Prússia na
unificação alemã (fins do século XIX), contaminasse o aparelho estatal, a ser estruturado, no
que respeita à admissão em seu seio de autênticas castas privilegiadas. O certo é que o
protecionismo às profissões, criando exigências crescentes ao ingresso de novos titulares,
cercando-as de sucessivos privilégios, passou a fazer parte da normalidade da vida.
Como Ministro da Economia e Chanceler, Ludwig Erhard teve que enfrentar o que
denominou de “a lenda das vantagens das ordens profissionais”, dentro de seu próprio Partido.
A admissão pelo Estado da existência da Ordem do Artesanato abria um precedente para que,
setores econômicos, nos quais predominavam condições materiais e sociológicas inteiramente
diversas, reivindicassem estatuto especial. A Associação do Comércio varejista queria que
308
O Partido Popular Europeu foi fundado a 29 de abril de 1976, pelo Comitê Político da
Democracia Cristã Européia. Seu propósito inicial era dar dimensão continental à experiência
da democracia cristã alemã e italiana, notadamente a reafirmação dos valores do cristianismo
agora associados à modernização econômica. No que respeita à integração política,
simpatizava com a idéia federalista, isto é, com a implantação do que poderia ser denominado
de Estados Unidos da Europa.
Conforme tivemos oportunidade de referir no tópico precedente, à democracia cristã alemã
era atribuído o milagre econômico alcançado pela República Federal. O predomínio da
democracia cristã na Itália repousava, de igual modo, nos êxitos econômicos. Também foram
destacadas as figuras emblemáticas de Ludwig Erhard, na Alemanha, e Alcides De Gaspari,
na Itália, que encarnavam essa política. A consigna que simbolizava o tipo de capitalismo
criado na Alemanha do pós-guerra – economia social de mercado – tornara-se popular na
Europa. Pela primeira vez em sua história a parte ocidental do continente assistia à
disseminação do bem estar social e ao desaparecimento da pobreza desassistida.
A prosperidade registrada na Europa Ocidental, alcançada a partir do início do pós-guerra
e que iria perdurar até a década de setenta, viria a ser batizada de “os trinta gloriosos”.
Advinha, em grande medida, do desempenho econômico da Alemanha Ocidental, que chegou
a consagrar-se como “locomotiva da Europa”. Por tudo isto, a liderança da DC na criação do
PPE tinha um grande peso.
Cumpre ainda ter presente que, naquela altura, em seguida aos choques provocados pela
alta dos preços do petróleo, a região ingressaria num longo ciclo de dificuldades, que
começou provocando a chamada estaginflação, isto é, processo inflacionário num quadro de
fraco desempenho econômico.
A Europa tardou muito em dar-se conta das causas do fenômeno. Contribuiu para essa
situação de perplexidade o fato de que os aumentos do petróleo eram efetivamente
astronômicos: quintuplicaram em outubro de 1973, repetindo-se a dose em março de 1979.
Tratava-se de um item que participava na formação dos preços de praticamente todas as
mercadorias e serviços. Em 1979, a taxa de inflação na Inglaterra chegou a 18%, fato deveras
inusitado, intolerável para uma sociedade habituada à estabilidade monetária.
Deve-se a Mme. Thatcher a comprovação empírica de que as dificuldades experimentadas
pela economia européia advinham da estatização da economia. Seus sucessivos governos,
entre 1979 e 1990, popularizaram as idéias de privatização, liberalização econômica e redução
de impostos. O novo quadro não poderia deixar de refletir-se na atuação do Partido Popular
Europeu.
Com algumas exceções, os Partidos Democratas Cristãos, ou originários da experiência
católica precedente, não mais preservavam vínculos ostensivos com a alta hierarquia católica.
O Partido Democrata Cristão da Alemanha -- que manteve a influência conquistada no pós-
guerra, ao contrário do congênere italiano que não sobreviveu a sucessivas crises --
progressivamente acentuou o fato de que, desde a criação, contava em seu seio tanto católicos
como protestantes, mas igualmente liberais e conservadores. Nessa fase inicial, o vínculo
maior provinha do anti-nazismo, acrescido do desapreço ao comunismo, crescentemente
acentuado graças ao caminho seguido pela RDA. Essa última circunstância, aliás, refletir-se-
ia inclusive nas hostes socialistas, de que resultou o abandono, pelo PSD, tanto do marxismo
como da utopia da sociedade sem classes, no Congresso de Bad Godsberg (1959).
Como a questão em tela dizia respeito à Comunidade Européia, embora a DC
correspondesse ao núcleo fundador do PPE, o imperativo ante o qual este se encontrava era
acolher em seu seio, em primeiro lugar, representantes dos diversos Estados membros, e,
subsidiariamente, as agremiações com as quais pudesse ter afinidades. Os estudiosos do que
310
dispõem de cinco deputados cada. Por fim, o Partido Social Cristão (Luxemburgo) registra a
presença de dois deputados e o Partido Conservador da Dinamarca um único representante.
Portanto, a representação da Europa Ocidental (227 cadeiras) equivale a 82% do total.
b) A questão do humanismo
Em seus próprios termos, o Partido Popular Europeu aponta como sendo sua procedência:
“a real fidelidade aos valores de nossa sociedade aberta e o movimento personalista cristão”.
Em relação à última referência indica que “encontra sua inspiração na filosofia de Jacques
Maritain, Gabriel Marcel e Emmanuel Mounier.”
Jacques Maritain (1882/1973) tornou-se, entre nós, uma espécie de filósofo oficial da
renovação católica que teve lugar, sob inspiração do Cardeal Sebastião Leme (1882/1942), e
que passou à história com o nome de “reação espiritualista”. Tinha em vista contrapor-se à
ascendência do positivismo na República brasileira. Esse empenho de superação do
positivismo viria a ser a questão central da filosofia contemporânea, razão pela qual assumiu
dimensão imensa, contando com a presença das diversas correntes, o que também ocorreu no
Brasil.
Com menor intensidade, tiveram curso na meditação brasileira as idéias de Gabriel
Marcel (1889/1973) e de Emmanuel Mounier (1905/1950), renomado criador da revista
Esprít.
A questão que aqui se coloca não diz respeito ao principal mérito dos mencionados
filósofos, que corresponde à notável renovação do tomismo. Quando a Igreja Católica, em
fins do século XIX, determinou a “volta ao tomismo”, se assim se pode dizer, surgiu o
problema de saber se, ao fazê-lo, dever-se-ia simplesmente repetir o que dissera São Tomás,
em seu tempo (século XIII) ou tomá-lo como inspiração. No Brasil, Leonardo Van Acker
(1896/1986) elaborou obra de grande densidade na qual desenvolve a tese de que o tomismo
seria o melhor paradigma da filosofia católica, pelo fato de que corresponde ao diálogo, de um
ponto de vista que equivaleria ao posicionamento católico, com a cultura filosófica de seu
tempo. Van Acker, que era belga de nascimento, oriundo do Corpo Docente da Universidade
de Louvain, veio para o Brasil especialmente para dar continuidade à implantação do ensino
de filosofia, na nossa primeira Faculdade de Filosofia, criada pela Ordem de São Bento, em
1908, hoje integrada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Radicando-
se em nosso país, difundiu o que se convencionou denominar de “neotomismo aberto”, em
conformidade com o “espírito de Louvain”, a partir do diálogo com as correntes filosóficas
contemporâneas. (31). Obviamente, não é a relevância da obra filosófica dos mestres citados
no documento do PPE que está em causa.
A questão com a qual se defronta o Partido Popular Europeu é a de encontro de
fundamentos teóricos para a ação de índole política, com a peculiaridade de que, desta vez,
não se trata apenas de abrigar, no seio da democracia cristã, liberais conservadores, bem como
pessoas mais ligadas à Reforma que a Roma. Agora se trata de incorporar agremiações
políticas inteiras, basicamente originárias do conservadorismo liberal. É óbvio que tal se dá
dispondo, por antecedência, de expressiva base comum, resultante da modernização das
organizações católicas ocorrida ao longo do último pós-guerra. Mais importante que tudo é a
plena identificação com o sistema democrático representativo. Nestas condições, a ação
política não pode fundamentar-se em Jacques Maritain, em que pese a significativa
contribuição que lhe pode ser atribuída no âmbito da meditação filosófica especificamente
católica ou espiritualista.
Além das manifestações tópicas que teve oportunidade de fazer acerca de temas políticos,
notadamente na década de trinta, quando, entre outras coisas, dá seu apoio às denúncias contra
o franquismo, ainda durante a guerra civil espanhola, considera-se que sua posição em face do
312
ordenamento político estaria fixada nas obras Christianismo et démocratie (Paris, 1943) e
Príncipes d´une politique humaniste (Paris,1944). Naquela altura, ainda não ocorrera a
experiência fundamental que teria lugar, tanto na Alemanha como na Itália, capitaneada por
Adenauer, Erhard e De Gasperi. As restrições da alta hierarquia católica à democracia
representativa ainda não estavam de todo superadas, notadamente no que respeita ao partido
político. Assim, o entendimento que Maritain manifesta em relação à democracia é do ciclo
anterior, quando predominava o tradicionalismo católico. Sua ênfase recai nos chamados
corpos intermediários e não nas agremiações partidárias. Os corpos intermediários com peso
na vida política seriam a organização dos governos municipais e as associações profissionais
(donde proveio o corporativismo que esteve na base do fascismo italiano e do salazarismo
português). A par disto, no plano estritamente teórico, tampouco seria bem sucedida a sua
tentativa de tornar a democracia dependente do cristianismo8.
No último pós-guerra, figuras emblemáticas, ligadas à alta hierarquia da Igreja Católica,
como Alcide De Gasperi, contribuíram para a consolidação da ordem democrática no
continente europeu, tomando por base justamente o partido político. As reservas em relação à
doutrina liberal, que permaneceram, diziam respeito às restrições que segmentos importantes
dessa corrente opunham, não tanto à questão social em si mesma, mas sobretudo à forte
presença do Estado no Welfare europeu. Creio que expressa bem esse entendimento, as
palavras adiante transcritas de eminente representante da tradição democrata cristã, o
pensador e líder político espanhol Don Carlos Robles Piquer, a propósito da aproximação da
democracia cristã ao liberalismo.
Para situar o contexto, basta indicar que considerava o reposicionamento dos diversos
partidos políticos na Europa das últimas décadas do século: “No decorrer dessas décadas têm
surgido outros partidos inspirados em filosofias muito semelhantes, consubstanciadas,
essencialmente, em três grandes princípios. O princípio cristão, como inspirador de uma linha
de conduta; um princípio cristão renovado pelo Concílio Vaticano II; um princípio cristão que
respeita a liberdade dos demais, não assentado em proibições das outras maneiras de fé nem
sequer das outras crenças, tolerante; quer dizer, um princípio cristão distinto, que passou pela
experiência da II Guerra Mundial e incorpora a doutrina do Concílio Vaticano II. Esse é um
princípio que muitos partidos que agora citarei mantêm como próprio em maior ou menor
escala, com maior ou menor perfeição, porque o humano nunca é perfeito; mas sustentam,
aceitam e consideram como próprio um princípio da legítima herança de nossa tradição
judaico-cristã, essencialmente cristã. Outro princípio importante é o princípio da liberdade, o
qual não obriga necessariamente a confundir esses partidos de que estou falando com partidos
puramente liberais. É um liberalismo por sua vez matizado, moderado por uma aceitação de
princípios de justiça social. O liberalismo, que seus inimigos chamam puro e duro, é
naturalmente implacável. Aqui se trata do liberalismo temperado por considerações de justiça.
Talvez o modelo em que se projeta economicamente seja o modelo econômico do capitalismo
chamado renano, quer dizer, a fórmula alemã que gera o Estado de Bem Estar, com o respeito
aos princípios básicos de justiça social e de uma certa distribuição de riquezas; uma maneira
de evitar o abuso do excessivo poder econômico, do excessivo poder do capital ou da riqueza,
um princípio que tende a ser igualitário, pelo menos em termos relativos, e que tende a
distribuir a riqueza em benefício da sociedade e não dos poucos privilegiados. O terceiro
princípio que também está subjacente é naturalmente um princípio de conservação, quer
dizer, são partidos que têm um instinto de herança, de retenção do melhor no passado. Não
pretendem, como os revolucionários, fazer tábua rasa do passado.” (32)
8
Consiste a pretensão em afirmar que a essência da democracia corresponderia ao cristianismo, tese que seria
examinada por Hans Kelsen, em seus estudos pioneiros sobre o tema. Veja-se as principais indicações do
conteúdo desta obra no Capítulo Quarto – Item I.
313
recebido de Deus uma vontade livre é para nós um grande bem. O mal é o mau uso desse
grande bem.
Como se dá que o homem incline-se pela escolha do bem e recuse o mal? No texto de O
livre arbítrio, Agostinho não conseguiu precisar com toda a clareza que a determinação da
vontade, para levá-la à preferência pelo bem, seja uma resultante da intervenção da graça
divina, doutrina que adotará posteriormente. A discussão suscitada pelas teses agostinianas,
em seu próprio tempo, levou-o a abordar muitas delas no texto que intitulou Retractationes,
entre as quais a que diz respeito à determinante no caso do livre arbítrio. Portanto, na doutrina
agostiniana, o adequado uso do livre arbítrio requer a presença de algo exterior.
Adotada na Idade Média, a hipótese agostiniana --de que a ação moral supõe a presença da
graça divina-- viria a ser recusada pela Filosofia Moderna. A alegação básica seria a seguinte:
sendo externa a intervenção para ocasionar a determinação da vontade, automaticamente
retira o caráter de voluntária à ação daí decorrente. Enquanto isto, a própria natureza da moral
exigiria a presença de uma escolha livre.
Entre as alternativas surgidas, sobressai a kantiana. Procurando atender à nova situação,
de emergência e consolidação do pluralismo religioso, Kant formulou uma doutrina
independente de todo suporte transcendente, isto é, puramente racional. Trata-se de uma
fórmula que permitiria, ao autor da ação, avaliar de sua moralidade, o que, por si só,
naturalmente, não o obrigará a ater-se ao que estaria em concordância com o princípio moral.
Contudo, Kant entende que a verdadeira liberdade seria correspondente à recusa de ceder às
inclinações e escolher a lei moral. Esse justamente o tema da obra à qual denominou de
Fundamentação da metafísica dos costumes (1785).
Inquietava-o sobretudo a circunstância de que a religião reformada e o catolicismo
tradicional divergiam em questões que figuravam diretamente nos textos básicos da
moralidade ocidental, a exemplo do mandamento constante do Decálogo de Moisés segundo o
qual não serão adoradas imagens. Além disto, tinha conhecimento das discussões travadas,
notadamente na Inglaterra, sobre a independência da moral em relação à religião.
Simultaneamente, sendo pessoa de profundas convicções religiosas, tende a considerar o
homem sem idealizações, como um ser pecador e carente de salvação. Por isto mesmo, textos
anteriores à elaboração amadurecida deixam claro que a moralidade não podia ficar na
dependência apenas do conhecimento racional, como pretendera Leibniz.
Em síntese, Kant tinha presente que, dada a pluralidade religiosa configurada na Época
Moderna, a moral tornara-se exigente de uma fundamentação que prescindisse da
dependência da religião. Ao mesmo tempo, contudo, não podia ter a sua sorte vinculada à da
“razão”, na forma onipotente como a conceituava o racionalismo. Mais explicitamente, o
conhecimento da lei moral não é condição suficiente para assegurar a sua prática. Os homens
têm inclinações que podem levá-los a violá-la. Esse conjunto de problemas teóricos explica a
longa trajetória acerca da moralidade, finalmente amadurecida com a obra de que ora se trata.
Examinando os diversos tipos de ações morais, Kant irá estabelecer diferenciação entre as
razões pelas quais as pessoas agem moralmente. Os exemplos multiplicam-se para chegar a
315
esta conclusão: a verdadeira ação moral é aquela que se cumpre por dever, isto é, pelo simples
respeito à lei moral. Leva em conta que, quando as pessoas se referem à moralidade em geral,
têm presente as regras recomendadas na sua igreja ou de que têm conhecimento, por outros
meios, aceitas e reconhecidas pela comunidade a que pertence. A esse conjunto denomina de
lei moral.
Exemplo kantiano do que seria lei moral: “ser-me-á lícito, em meio de graves apuros, fazer
uma promessa com a intenção de não a observar?”. Segundo indica, o meio mais rápido e
infalível de me informar consiste em perguntar a mim mesmo: ficaria eu satisfeito se minha
máxima (34) (tirar-me de dificuldade por meio de uma promessa enganadora) devesse valer
como lei universal (tanto para mim como para os outros)? Deste modo, argumenta, depressa
me convenço que posso bem querer a mentira, mas não posso, de maneira nenhuma querer
uma lei que mande mentir; pois, como conseqüência de tal lei, não mais haveria qualquer
espécie de promessa.
Finalmente, Kant dará o passo decisivo ao formular uma síntese magistral do conteúdo
decorrente do Decálogo de Moisés e do Sermão da Montanha, que expressa o que seria a
moral ali preconizada, definidora da cultura ocidental. O conteúdo em apreço foi chamado
por Kant de imperativo categórico, que se formula deste modo: o homem é um fim em si
mesmo e não pode ser usado como meio. E assim o cerne da moralidade ocidental é
determinado como correspondendo ao ideal de pessoa humana.(35) Para Kant, a questão da
liberdade, intensamente discutida desde Santo Agostinho --e que este deixara na dependência
da intervenção da graça divina, na opção pelo bem-- resume-se à escolha da lei moral (o ideal
de pessoa humana), ao invés de ceder às inclinações. A meditação filosófica cumpre assim um
longo e rico itinerário.
A ética kantiana mantém plena atualidade, pelas seguintes razões: 1ª) Apresenta maior
sintonia com o caráter laico de que chegou a se revestir a cultura ocidental; 2ª) Permite
estabelecer uma relação adequada entre moral, direito e política, desde que dela decorreria
este esquema: a moral é subjetiva (esfera da coação interna), sendo a coação externa esfera do
direito, correspondendo a política à esfera da violência legalizada; e 3ª) É de comprovada
eficácia no concernente à determinação do que seria a ação moral.
a) A questão do Estado
Assim, surgiu o problema da forma de organização que deveria ser adotada na criação da
denominada seguridade social. Progressivamente, o problema do financiamento do sistema
então constituído tornou-se o tema central.
Enquanto o próprio Estado tratou de institucionalizar aposentadorias e outros benefícios,
a serem atribuídos ao funcionalismo, estimulou as organizações da sociedade a buscar
fórmulas que suprissem essa lacuna, em especial no âmbito do setor produtivo. Com o passar
do tempo, contudo, o Estado assumiu responsabilidades crescentes nessa matéria, a ponto de
comprometer a própria sobrevivência do sistema.
Essa questão tem servido como uma espécie de novo divisor de água entre os liberais
sociais e o liberalismo conservador. Os primeiros, como indicamos precedentemente, cedem
crescentemente à “tentação social-democrata”. Os sociais democratas teimam em defender a
intocabilidade do sistema em vigor, assumindo o ônus de aumentar impostos, já que não se
vislumbram outras possibilidades. Acontece que essa política responde, em grande medica,
pelas altas taxas de desemprego encontradiças na maioria dos países do continente.
O caminho apontado pelo PPE corresponde justamente à política preconizada pelos
liberais conservadores. Formula-a deste modo: “colocar o princípio da responsabilidade no
coração de nosso modelo social”.
7. As perspectivas do liberalismo
Naturalmente, qualquer prognóstico pode conter elementos de simples profissão de fé. Por
essa razão, incumbe explicitar em que se apóia a convicção de que as perspectivas do
liberalismo estejam associadas ao movimento em prol da construção do Partido Popular
Europeu. Basicamente, essa convicção sustenta-se no fato de que existem apenas duas
concepções de política, a liberal e a comunista, como explicitaremos adiante. A par disto, não
só a superioridade do modelo liberal está comprovada historicamente como essa doutrina tem
se revelado capaz de estar atenta ao curso histórico, comprovando-se seu anti-dogmatismo.
Não há, portanto, quaisquer indícios de que deva desaparecer, como se acredita no Brasil.
Nutrindo-se da experiência histórica, nessa matéria, em nosso tempo não há nada de mais
319
Esse último critério serve para aferir a validade não apenas da hipótese da democracia
direta como também das doutrinas surgidas no século XX, arroladas como liberais. Tenho em
vista a suposição hayekiana de que a lei pode ser feita por um grupo de sábios, isto é, que o
problema reside na competência para formulações abstratas ao invés da capacidade de
conduzir, com sucesso, negociações penosas, justamente o que diferencia os políticos.
Mas igualmente foge ao espírito e à letra do liberalismo a hipótese da corrente
denominada de “public choise”, ao partir da suposição de que o voto resumir-se-ia a ato
isolado, como se a escolha em que se baseia não tivesse antecedentes.
Portanto, a doutrina liberal não pode dissociar-se da ação dos partidos políticos.
Naturalmente essa tese não envolve o desconhecimento da relevância da elaboração teórica.
Apenas exige que não esteja dissociada da experiência política concreta.
Admitindo que a expressão fiel do espírito da doutrina liberal seria a versão batizada de
moderada por Raymond Boudon (38), sua presença no processo político tem levado, no
Ocidente, a que suas teses básicas acabem por ser apropriadas por correntes adversárias. O
exemplo típico corresponde ao socialismo ocidental, cuja liderança convenceu-se, ainda em
fins do século XIX, das vantagens que adviriam de sua adesão à democratização do sistema
representativo, então iniciada. O mesmo ocorreu com o keynesianismo, que foi apropriado --
e, em certa medida, distorcido-- pelos Partidos Socialistas europeus. No último pós-guerra,
seria a vez da aceitação dos princípios da economia de mercado, com o correlato abandono da
identificação do socialismo com estatização da economia.
Contudo, restam e restarão divergências intransponíveis, das quais advêm precisamente o
que estamos aqui denominando de perspectivas do liberalismo.
A questão mais relevante diz respeito ao Estado. Entretanto, guarda estreita dependência
de tema teórico que precisaria ser considerado previamente. Temos em vista a igualdade.
O liberalismo representa a sociedade como sendo composta de indivíduos em busca de
maximizar o seu bem estar. Nesse jogo, alguns conseguem ser melhor sucedidos em matéria
de status, de renda, de prestígio ou influência. A versão moderada do liberalismo – seguindo a
Boudon-- reconhece a existência de pensadores que, apresentando-se como liberais, adotam
posições extremas, como se essa constatação pudesse justificar todo tipo de desigualdade, em
especial o empenho na sua preservação. A expressão moderada dessas idéias considera que as
desigualdades seriam funcionais, isto é, plenamente justificáveis dada a diversidade de
funções exigidas pela vida social. Boudon destaca que as observações dos sociólogos
consignam a pertinência dessas idéias porquanto expressam de modo adequado a realidade do
processo social. Mas é preciso levar em conta que a doutrina liberal não se limita a esse
registro passivo.
O liberalismo considera que a sociedade moderna dispõe de meios para fixar limites ao
processo espontâneo de geração de desigualdades sociais. Formula a política conhecida como
igualdade de oportunidades. Para Boudon, ao tentar desqualificar a noção de justiça social,
Friedrich Hayek é percebido como “defendendo uma versão dificilmente aceitável do
liberalismo”. Na crítica aos intelectuais que recusam as idéias liberais, Boudon indica que
postulações do tipo hayekiano só servem de pretexto aos detratores do liberalismo, já que o
Estado Liberal de Direito construiu sistemas de seguridade social que eliminaram, no mundo
desenvolvido, a indigência desassistida. Acrescento que a disputa presente em torno do
modelo europeu de financiamento daqueles sistemas não tem em vista suprimi-lo mas
proporcionar-lhe sustentabilidade, comprovada pelo modelo norte-americano.
O liberalismo recusa frontalmente a hipótese, acalentada pelos socialistas --sob a alegação
que se trataria de contrapor-se ao processo espontâneo de geração de desigualdades-- de que o
Estado seria um ser moral, colocado acima dos interesses, apto portanto a promover a
igualdade. Ainda que a terceira via inglesa não mais advogue abertamente a igualdade de
321
Vamos ainda referir uma questão que transcende a problemática na qual nos detivemos
precedentemente, ao tempo em que de alguma forma acabará por ter-se de enfrentá-la. Trata-
se de que, no livro de Raymond Boudon, antes referido, há uma observação interessante
quanto ao verdadeiro defeito do sistema capitalista, para o qual não atentaram os seus críticos
saudosistas do comunismo e do velho modelo socialista abandonado na Europa Ocidental. O
fenômeno em causa consiste em que, no plano cultural, estimula a vulgaridade.
Raymond Boudon, no livro que temos referido neste tópico, lembra que Tocqueville
advertira para o fato de que a disseminação da democracia poderia levar a certo rebaixamento
cultural. De minha parte, entendo que essa possibilidade tornou-se real na medida em que o
322
NOTAS
(13) The European People´s Party Origins and Development. London, Macmillan,
1998.
(15 Le Parti des Socialiseas Europénnes. Une gènese dificile in Pascal Lewit - Les
federations europénnes de partis. Organization et influence. Bruxelles. Université de
Bruxelles, 2001, p.91-106
(1)
Inclui os países admitidos em 01/01/2007
324
( 18) Le Parti Eurpéen des Liberaux, Democrates et Reformateurs in Pascal Delwit, op.
cit. p. 123-139. Geralmente, ao referir-se à sigla segue-se a nomenclatura inglesa (ELDR)
que é a principal língua empregada pela Comissão nas reuniões e na divulgação de
documentos.
(21) Ed. cit., pág. 283. O “dossiê austríaco” diz respeito à crise provocada, no início da
década de noventa, com o ingresso na coalizão governamental do Partido da Liberdade da
Áustria (FPO) que, embora arrolado como liberal, mantinha em seu interior a Haider, pessoa
conhecida como extremista de direita e nacional-populista. Tendo ascendido à liderança do
partido e tratando-se de ferrenho inimigo da Comunidade Européia, esta decidiu-se por
examinar o afastamento da Áustria. O incidente serviu para cindir ao FPO, dando nascedouro
ao Fórum Liberal, organizado em 1993. o Partido Europeu dos Liberais relutou em afastar ao
FPO.
(22) Basicamente, os dados sobre os partidos políticos provêm do livro Les partis
politiques en Europe de l´Ouest, organizado por Guy Hermet, Julien Thomas Hottinger e
Daniel-Louis Seiller, Paris, Ed. Econômica, 1998. Para sua confecção, mobilizaram
especialistas de cada um dos países estudados.
parte dos acréscimos e denominaram-na, a meu ver, de modo mais apropriado: Prosperity
through competition (London, Thames and Hudson, 1958).
(35) Na Crítica da Razão Pura, Kant estabelece a seguinte relação do ente singular
com esse ideal de pessoa humana ao denominá-lo de “sábio estóico”, isto é, com uma pessoa
que acredita na superioridade do princípio mental em face da realidade. O texto em apreço é o
seguinte: “A virtude e, com ela, a sabedoria humana em toda a sua pureza, são idéias. Mas o
sábio (do estóico) é um ideal, isto é, um homem que não existe senão no pensamento, mas que
corresponde plenamente à idéia de sabedoria. Assim como a idéia faculta a regra, o ideal
serve, de modo semelhante, de protótipo à determinação completa da cópia e nós não temos,
para julgar nossas ações, outra regra senão a conduta deste homem divino que conduzimos em
nós e ao qual nos comparamos para nos julgar, e também para nos corrigir, mas sem poder
jamais alcançar a perfeição”. (Tradução francesa da PUF, 2ª edição, 1950, p.413/414.
(36) A referência completa é a seguinte: Party systems and voter alignments: cross-
national perspectives, New York, Free Press, 1967.
(38) Pourquoi les intellectuels n´aiment pas le liberalisme. Paris, Odile Jacob, 2004.