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Couro imperial
RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE
NO EMBATE COLON I AL
TRADUÇÃO
Plinio Dentzien
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FICHA CATALOCR.ÁflCA ELABORADA PELO
SISTtMA DE 818llOTECAS DA USICAMP
DIRETORlA DE TRATAME:-:TO DA ISFOR~AÇÂO
CDD J0l.41
ISBN 978-Ss-168-0893-s 301.4s1
Título Origin.t: /wtp,ru/ le,uJ,,r: ,.,,,, xrnJrr aná ICCU4Íiry ,n the colorrwl torrrw •
Copyrigh1 Q 1991 by Routlcdgc, Jnc.
Todos os diccitos ccscrvad01-
Tnduçio autoriuda da ediçio cm lingu1 inglcs1 publicad1 por Routlcdgc.
P'!:'_do Taylor & FnnciJ Group LLC
Ediron da Unicimp
Ru1 Caio Gnco Pndo. so - Campus Unicamp
CEP 11083-891 -Campirw- SP - Brasil
Tcl./Fu: ( 19) 31'1•7718/77.S
www.cdicc,n_unicainp.br - vcndas@cditora.unicamp.br
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géneros & :f'eminismos
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Agradecimentos
Ao ESC REVER este livro, acumulei várias dívidas. O!Jero primeiro agra-
decer aos meus amigos por seu apoio incondicional e pelas inspirações.
Eles i.ão muitos para serem nomeados aqui, mas sabem quem são, e
agradeço a todos.
M uitas pessoas foram generosas ao dedicarem tempo para ler, editar
ou discutir partes deste manuscrito de várias maneiras: Kwame Antho-
ny Appiah, Nancy Armstrong, Adam Ashforth, Homi Bhabha, John
Bird, Elleke Boehmer, Jerry Broughton, Carol Boyce-Davies, Neville
Choonoo, Clara Connolly, Laura Chrisman, David Damrosch, Jean
Franco, Henry Lewis Gates, Liz Gunncr, Catherine Hall, Stuart Hall,
Janet Hart, Kathlcen Hill, Clifford Hill, Rachel Holmes, O!Jadri Is-
mail, Cora Kaplan, David Kastan, Dominic LaCapra, Neil Lazarus,
David Lloyd, Melinda Mash, Aamir Mufti, Benita Parry, Ken Parker,
Mary Louisc Pratt, Bruce Robbins, George Robertson, Ellen Rooncy,
Trish Rosen, Andrew Ross, Lynne Segai, Elia Shohat, George Stade,
Bob Stam, Michael Sprinker, Michael Taussig, Robert von Halberg,
Penny von Eschen, Cherryl Walker, Cornel vVest e Patrick Williams.
Agradeço a todos.
Estou profundamente agradecida a todos os meus amigos em Co-
lumbia, especialmente a Marccllus Blount, Ann Douglas,Jean Howard,
Priscilla vVald e a Gauri Viswanathan, cujas risadas, solidariedade e vibra-
ção intelectual foram mais importantes do que posso expressar. Um
agradecimento especial a Edward Said, por sua mistura inspiradora de
engajamento acadêmico e político, e também a Zaineb Istrabadi, por sua
amizade e apoio. Estou também profundamente grata a l\llichacl Seidel,
por seu apoio e encorajamento, e um obrigada muito especial a Joy Hayton,
por sua gentileza, sanidade e pela ajuda incansável ao longo dos anos.
.l\lleus alunos em Columbia, muitos dos quais agora são bons amigos,
tornaram o ensino uma CÃ-periência inspiradora e inesquecível. Não exa-
gero o valor de sua capacidade intelectual e de seu entusiasmo. Um afe-
tuoso apreço também para Bill Dellinger, Evelyn Garcia, Nigel Gibson
e Jon Roth, por sua ajuda e bom humor, ao me socorrerem administra-
tivamente em incontáveis ocasiões.
Durante os anos magros, quando· Columbia era um lugar pouco hos-
pitaleiro para mulheres, o Instituto de Pesquisa sobre Mulher e Gênero
apoiou uma comunidade muito amiga e viva. Tenho uma dívida especial
com Miranda Pollard e Martha Howell, por sua sabedoria e tenacidade
en1 criarem um fórum indispensável para o envolvimento e o apoio in-
telectuais. George Bond e Mareia Wright, no Instituto de Estudos
Africanos, também criaram uma comunidade valiosa e fico imensamen-
te grata a eles por seu apoio ao longo dos anos .
.l\llinha editora, Cecília Cancellaro, foi uma companheira de trabalho
excelente. Sua inteligência.~~m jaça e seu entusiasmo são enormemente
apreciados. Stewart Cauley e Matthew DeBord, lVIaura Burnett e Clau-
dia Gorelick pacientemente encaminharam um manuscrito errático até
os seus estágios finais e não se queixaram de uma série de mudanças de
última hora. Minha editora de texto, Connie Oehring, heroicamente
organizou uma horda de notas desregradas e as tornou dóceis, e o traba-
lho meticuloso de Jerry Broughton com a leitura de provas me salvou
num momento particularmente crítico. Sua amizade e a de Rachel Hol-
mes me apoiaram quando eu mais precisava. O projeto inovador de Les-
lic Sharpe e Hermann Feldhaus acrescentou uma forte dimensão gráfica
ao livro, e a capa provocativa de Tom Zummer ofereceu um resumo de
todo o meu projeto.
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Este livro não poderia ter sido concluído sem a valiosa contribuição
do SSRC-MacArthur International Peace and Security Program. Estou
enormemente grata ao estímulo, à bolsa e à comunidade intelectual aos
quais tive acesso através de seu generoso apoio financeiro.
Todos no Institute of Commonwealth Studies tornaram minha es-
tada em Londres inesquecível e produtiva. Um agradecimento especial a
Shula Marks, por sua inspiração intelectual e generosidade. Encontrei
poucas pessoas com tal capacidade de juntar uma percepção aguda com
uma generosidade e carinho pessoal tão grandes. l\1eu agradecimento
carinhoso também para Joan Rofe, por seu bom humor e bondade; e
também para David Blake, Irene Ammah e Rowena Kochanowska por
seu apoio. Tenho também uma dívida com o grupo de leitura sobre nacio-
nalismo e gênero do ICS, cujas discussões e ideias me ajudaram muito.
Um agradecimento especial ao African National Congress por sua
gentileza em tornar disponível o logo da Liga das l\llulheres do CNA.
Robert Opie foi muito generoso ao me dar acesso à sua maravilhosa
coleção de propaganda no Museum of Advcrtising and Packaging, em
Gloucestcr; estou muito grata a de pela gentileza. E stou também muito
grata a Ronald l\1ilne e ao Master e Fellows do Trinity College, Cam-
bridge, por me permitirem o acesso ao incrível arquivo de Arthur Munby.
Agradeço também a John Botia e a Gary Collins por me facilitarem o
acesso aos anúncios de A. e F. Pears Ltd., dos Unilever Historical Archi-
ves. Gostaria também de reconhecer a ajuda indispensável das bibliote-
cárias e da equipe fotográfica da British Library e do British lVIuseum;
agradeço por sua paciência, engenho e proficiência. O s bibliotecários da
Biblioteca da University of London, do Public Record Office e da Co-
lumbia University deram informações e ajuda valiosas. Sou também
grata a Shuter e Shooter, National e Pers, Die Burger e The Guardian, por
sua ajuda com as fotografias. Qµero finalmente manifestar meus mais
sinceros agradecimentos a Gerald Ackerman, por seus esforços e por sua
generosidade cm tornar disponível a imagem de capa, e também a De-
borah Lorcnzen, do Museu de Arte de Indianápolis.
Trechos deste livro apareceram antes sob v:irias formas na Série Escri-
tores Ingleses e Escritores Europeus (Scribners); em Patrick Williams e
Laura Chrisman (orgs.), Colonial Discourse/Post-Cdonial 7ht!ory (Lon-
dres: Harvester Wheatshcaf, 1993); em Francis Baker, Peter Hulme e
Margarct lverson (orgs.), Essays in Colonial and Post-Colonial 7heory
(Manchester: Manchester University Press, 1993); cm George Robert-
son et ai. (orgs.), Travtler's Tales (Londres: Routledge, 1994); em Femi-
nist Review, 44 (Verão, 1993); em New Formations (Primavera, 1993); em
Transition, 54, 1991; cm Social Ttxt, 25, 26, 1990; em Dominic LaCapra
(org.), Ihe Bounds of Rat'( (Ithaca: Comell Unversity Press, 1991); cm
Cherryl Walker (org.), Women and Gender in Southern A/rica (Cape
Town: David Philip, 1990); em Reginald Gibbons (org.), Writers From
South A/rica. Culture, Politics and Literary 7heory in South A/rica Today
(Chicago: Northwestem University Press, 1989); em Criticai lnquiry,
março, 1987, em Robert von Halberg (org.), Poetry and Politics (Chicago:
University of Chicago Press, 1988); em Social Text, Primavera, 1992; em
South Atlantic Quarter!y, Inverno, 1988, vol. 87 (1). Agradeço a todos os
editores e a todas as equipes envolvidas. Sou particularmente grata a
Henry Finder e a Scott ~Ialcomson, não apenas por suas notáveis habi-
lidades na editoração, mas também por sua valiosa amizade. Calorosos
agradecimentos também ao Social Text Collective.
Ao completar este livro, tenho uma dívida de gratidão especial com
Valerie Phillips, curadora e amiga. Finalmente, e acima de tudo, não há
palavras para expressar a profundidade de minha admiração, gratidão e
amor por Rob.
Sumário
Introdução
Pós-colonialismo e o anjo do progresso ...................................................15
PA RTE r
O IMPÉRIO DO LAR
PARTE l
ENGANOS MÚTUOS
PARTE J
O DESMANTELAMENTO DA CASA DO SENHOR
Pós-escrito
O anjo do progresso .............................................................................. 569
f ndice .....................................................................................................~83
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Introdução
Pós-colonialismo e o anjo do progresso
Couro impaial
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lntrcdurdo - 'Pd1 -,olonialismc,? anj? do progrt11a
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Couro imperial
homens são levados pela mãe negra, Gagool - e atrás dela a fossa anal
da qual eventualmente os homens se arrastarão com os diamantes, num
ritual de nascimento masculino que deixa morta a mãe negra, Gagool.
No mapa, os genitais femininos são chamados de Três Bruxas. Se as
Três Bruxas assinalam a presença de forças femininas alternativas e de
noções africanas alternativas de tempo e de conhecimento, Haggard se
defende da ameaça de uma força feminina e africana resistente, não só
dispondo violentamente da poderosa figura de mãe na narrativa, mas
também colocando ao lado das Três Bruxas no mapa os quatro pontos
cardeais: ícone da "razão" ocidental, da agressão técnica do ocidente e da
posse masculina e militarizada da terra. O logo da bússola reproduz a
figura espalhada da mulher marcada pelos eixos da contenção global.
N a escalada da mina, carregados com diamantes do tamanho de
"ovos de pombas", os brancos inglc;ses dão à luz três ordens - a ordem
reprodutiva masculina da monogamia patriarcal; a ordem econômita
branca do capital minerador; e a ordem polítfra global do império. Ao
mesmo tempo, tanto o mapa como a narrativa revelam que essas três
ordens não são distintas, mas assumem forma íntima na relação entre
elas. Dessa maneira, a aventura do capital minerador reinventa o patriar-
cado branco - na específica forma de classe inglesa do gentil homem
de alta classe média - como herdeiro do "Progresso" imperial na chefia
da "Familia do H omem"- uma família que não admite a mãe.
O mapa de Haggard abstrai o corpo feminino como uma geometria
da sexualidade caprurada..sôb a tecnologia da forma imperial. Mas tam-
bém revela uma curiosa camera obscura, pois nenhuma leitura do mapa
está completa em si mesma: cada uma revela a sombria inversão repre-
sentada por seu outro lado reprimido. Se nos alinharmos com a auto-
ridade masculina da página impressa, com os pontos da bússola colonial
e com os rótulos sangrentos, o mapa pode ser lido e o tesouro alcançado,
mas a mulher colonizada está de cabeça para baixo. Se, ao contrário,
invertemos o livro e pusermos cm pé o corpo da mulher, as palavras san-
grentas em seu corpo - de fato a aventura colonial como um todo -
se tornam incoerentes. No entanto, nenhuma versão existe sem a outra.
Couro imperial se propõe a explorar cs:;a ligação perigosa e contraditória
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lntrodu fflo - 'Pós-,olon ialismo ( o anjo :io progresso
GÊNERO, RA ÇA E CL ASSE
Categorias articuladas
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Cour~ impaial
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uma questão de força de trabalho, incubada pelo gênero. Apresso-me a
acrescentar que não quero implicar que esses domínios são redutíveis ou
idênticos entre si; em vez disso, existem em relações íntimas, recíprocas
e contraditórias.
Uma afirmação central de Couro impttrial é que imperialismo não é
uma coisa que aconteceu em outro lugar - um fato desagradável da '
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lntrodurão - '1'61-co/011ialismo to anjo do prozrtJJo
S, Par.i uma resenha abrangcme, \·er Ann Laura Sroler, ·Carnal Knowlcdge and Imperial
Power: Gender, Race, and Mor:tlity in Colonial Asia", in Micaela di Leonardo (org.),
Gmdrr and tht Cromoads of KnMJJ!tdgt: Ftminüt Anthropclogy in tht Postmodmi Era
(Berkeley: University of C:ilifomia Pcess, 199!}, pp. s1-100.
6.. Para análises regionais e históricas do impacto do coloni:llismo sobre as mulheres, ver
l\fona Eticnne e Eleanor Lcacock (orgs.), Jl1Jmm and Ccloni::.ation (Nova York: Praeger,
1980); Dclia Jarrctt Ma01ulay, "Bbck \Vomen's H istory•, tr:abalho apresentado à vVomcn's
History Confcrcncc, Londres, jul., 1991; N~nc:y 11.illkin e Edna Bay (orgt.), Womtn in
21
Couro impaial
Africa: Srudia in Social and Economic Chang, (Stanford: Sranford Univcrsity Prcss, 1976);
Chcrryl Walkcr (org.), Womm arrd Gmder in Southern tffrúa to 1945 (C:ipc Town: David
Philip, 1990); Hazd Carby, "On thc Thrcshold of Womcn's Era. Lynching, Empirc anc
Scxuality in Bl:ick Fcrninist Thcory~, Critirai lm;uiry 11, 1 (1985), pp. 262-77.
7. Par:i aniliscs regionais e históricas das mulheres coloni:iis, ver Helen Calbway, Gmd,r,
Culture and Empire: European m,mm in Colonial Nigeria (Londrc,: MacmiUan, 1987);
Jackic Cock, Maids a~d Nfadams (Johanncsburgo: Ra,-an Press, 1980); Jean Comaroff e
John Comarolf, "Christianity and Co loni:ilism in South Africa", /lmericarr Ethnologist 13
(1986), pp. 1-21; Bcvcrlcy Garm:U, "Colonial \Vi\·es: VWains or Victims?", in Hillary Cal·
lan e Shirlcy Ardncr (orgs.) , 1he lncor~rated Wifa (Londres: Croom Hclm, 1984), e Irene
Silvcrbla11, /llfoon, Sun and Wiuhes: Gender Ideologia ar.d Cl:m in Inca and Coloni11/ Per11
(Pri nccton: Princcton Univcrsity Prcss, 1987).
22
lntr!ldu;4'J - P6t-<llloniali,mo to anjo do progrt110
8. Hazel Carby, "\.Yhitc Womcn Listcn! Black Fcminism rnd thc Boundarics of Sister-
hood", in Ccnter for Contempor.uy Cultural Studics (org.), 7ht Empirt StriJ:,1 Ba,k: Rau
and R.aâsm in ;os Britain (Londres: Hutchinson, 1982).
9. bdl hooks, Ain~ I a l~manf Blatk H~,r-Ln and F,minúm (Londres: Pluto Prcss, 1981).
10. Valeric Amos e Praribha Parmar, "Challcnging Imperial Feminism•, Ftminitt Rroitw 17
(Outono, 1984), p. 5. Este livro tem uma dívida profunda com essa crítica, que é agora
e..~ensa. Para importantes aniliscs do fcrrún.ismo ocidcnt~ cm rcbção ao colonialismo,
ver Chandra T. Mohanty, "Under \11/cstcm Eycs: Fcminist Scholarship and Colonial Ois-
courscs", Ftminist Re<Ji(W 30 (1988), pp. 61-88; Kum-Kum Bavnani e Margarct Coulson,
"Transforming Sodalíst Fcminism: Thc Challenge of Racism", Fm,inút Rroirw z3 (19S6),
pp. 81-92; l\lamcJ Lazrcg, "Fcminism and Dilfcrcnce: Thc Perils of\Vriting as a\Voman
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Couro imptrial
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Argumento, ademais, que gênero não é sinônimo de mulheres. Como
diz Joan Scott: "Estudar as mulheres isoladamente perpetua a ficção de
que uma esfera, a experiência de um sexo, tem pouco ou nada que ver
com a do outro"". À diferença de Catherine l\1lacKinno n - p:ira quem
"a sex-ualidade está para o feminismo como o trabalho está para o mar-
xismo" -, argumento que o feminismo se refere tanto à classe, ao traba-
lho e ao dinheiro quanto ao sexo. D e fato, u m d os movimentos mais
valiosos da teoria feminista recente foi sua insistência na separação entre
sexualidade e gênero e o reconhecimento de que o gênero é u m proble-
m:i tanto par:i a masculinidade quanto para a feminilidade. Como diz
Cora Kaplan, a atenção ao gênero como categoria privilegiada da análi-
se tende a "representar a diferença sexual como natural e fixa - um a
feminilidade constante e transistórica numa luta tornada libidinal com
uma masculinidade universal igualmente 'dada"'".
Michel Foucault argumenta que, no século XIX, a ideia de sexuali-
dade deu uma unidade fictícia a um conjunto de ªelementos anatômicos,
funções biológicas, condutas, sensações e prazeres"'3• A unidade fictícia
da sexualidade, d iz ele, se tomou "um princípio causal, um significado
on \.Yomen in AJgeria", Ftmini1t Studi,1 14, 3 (1988), pp. 81-107, e Gayatri Chakravorti
Spivak, "French Feminism in the lnternational Frame", in ln 0th" World1: ES1ay1 in
Cultural Pclitir1 (Nova York: Methuen, 1987). Ver também Spiv:ik, 7ht Pou-Colonial Critü:
lnttT1Jiew1, Strat,git1. Di~oguu, Sarah Harasym, org. (Nova York: Routledge, 1990), e o
número especial sobre "feminism :and the Critique of Colonial Discourse", lnsmptiom
:;/4 (1988). Para um1 análise mais geral das mulheres brancas e o racismo, ver Vron \Vare,
Bryond th, Palt: Whiu U-&mcn, Rarism and History (Londres: Vcrw, 1992).
11. Joan \V.Scott, Gmdtr and tht Politia ofHistory (Nova York: Columbia University Press,
1988), p. 32. Co mo diz Denise Riley: ªser uma mulher também é inconstante, e n:io ofe-
rece um fundamento ontológico•. Denise Riley, "Am I that Namet• Ftmini1m and th,
Cattgory oj•Womm· in Hiuory (Basingsroke: MacmiUan, 1989), pp. 1-2. Para uma crítica
importante do essencialismo de gcnero e de raça, ver Diana Fuss, Eumtial!y Sptak.ing:
Ftminism, Naturt and Dijftrmu (Nova York: Routledge, 1989).
u. Cora Kaplan, St a Chang,1: Culturt and Ftmini1m (Londres: Verso, 1989), p. 27. Da mesma
maneira. Scott observa: •o uso do gc nero salien12 um sistema inteiro de relações que
podem incluir SC.'(O, mas não é diretamente detenninado pelo sexo nem diretamen te de-
terminador da sexualidade. - Gmdtr and tt, Politia ofH iJt,;ry, p. 32.
13. !Vlichcl Foucault, Hiltory of Stxuality, trad. Richard H oward (Nova York: Vintage, 1980,
vol. t,), p. n.
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111trodu;4o - 'Pós-,olonialisrno e o anjo do progruso
B!ac!t. in the UniM Jaclr: ... Pua um2 d iscussão dos problcm2S d a raça como c2 tegoria,
e um apelo à etnia como altcrnni\·a, \·cr Floya Anthias e Nira Yuval-Davis, "Conrcx•
tualizing Feminism: Gendcr, Ethnic and Class Oivisions", F,miniJt Rroiew 15 (ln·
vemo, 1983).
l8. Paul Gilroy, 7h, BlaciAtlantic: M odtrnity and Doub!t C:Onscioumm (Cambridge: Haí\-ard
Univcrsity Prcss, 1993), p. x.
19· Houston A. Baker, "Caliban's Tripie Pby", Criticai lnquiry 13, 1 (Outono, 1986), p. 186.
Introdução - Pós-,olonialismo, o anj~ Jo progusso
C ILADAS DO PÓS-COLONIAL
20. Frantz Fanon, 7h, Wrttthtd oftht Earth (Londres: Pcnguin, 1963), p. 29.
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l
Couro impuial
A história paralela aponta para a realidade de que não há mais uma visão domi-
nante (mainstream) da cultura artística none-:uneric:ina, com diversas "outras"
cultul"3s menos imponantes à sua volta. Existe, ante!, uma história paralela qut!
está mudando nossa compreensão do nosso entendimento transcultural!I.
21. Folheto da mostn, · ·thc Hybrad S121c Exhibít", Exit Art, 178 Broadway, Nov• York
(2 nov.-14 dez., 1991).
ltttrodurâo - 'P61 -,oloniali1mo t tJ anjtJ do progrt110
22. Apud Susan Buck-Morss, 77;, Dialtctiu ofSuing: H-ízlter Bmjamin ar.d the Ar,ades Projtcl
(Cambridge: lhe ~OT Prcss, 1989), p. 90.
13. Idem, op. cit., p. 79.
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Couro impa ial
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l,itroduç6o - 'Pós-,olonialismo, o anjo do progrtuo
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lntr,,du;d" - q>/s-,olonialismo ( o anj" do progr(SSI)
28. Para uma :inálise astuciosa da teoria pós-colonial, ver Rob<:r. Young, Whitt ,~ytholagfrs:
Writing History and tb( Wnt (Londres: Routledge, 1990).
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Couro impuial
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lntrodu;iJo - <f'd1-colonia/i1mo, o anjo do progr,sso
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ln1rodu;á11 - 'Pós-,olonialismo to anjo do progrtss11
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Couro imptrial
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Couro imptrial
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PARTE I
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O IMPERIO DO LAR
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I
A situação da terra
1 Genealogias do imperialismo
1
Eu não sou o campo de trigo.
Nem a terra virgem.
Adrienne Rich
PORNOT RÓPI CO S
1. Apud Pctcr Frycr, Staying PO'Wer: 1h, HiJtory of 8/acl:: Ptople in Britain (Londres: Plu10
Prcss, 1984), p. 139.
1. John Lco Africanus, // Gtographi,al History of//frita, rnd. John Pory (Londres: Gcorg.
Bishop, 1600), p. 38.
3. Francis Bacon, "Ncw Atlantis: A \.Yorkc Unfinishcd", in Sylfla Sylflarum or a Naturai
Hútory in Ün Centuri,1 (Londres: \ .Yilliam, 1670), p. 16.
4. John Ogilby, Afri,a: Bting an Aaural, Dmription oftht R,gions o///tgypt tU. (Londres:
Too. Johnson, 1670), p. 451.
5. Edward Long, 1h, Hut,ry ofjamaita (Londres: T. Lowndcs, 1n4), pr. 381·3.
e.A situa;tlo da urra - (jmtalogias do imptrialism~
6. Winthrop D. Jordan, White 0fltr Black: Am,ri(an Attitud,s T011.1ard tht Negro, 1550-1812
(Nova York: \V. W. Norton, 19n), p. 7.
7. 1h, Modtrn Pari o/tht Uniflmal History (T. Osbome etc., 1760, vol. V), pp. 658-9.
8. Op. cit., p. 659.
9. Sir Thomas Herbert, Somt Ytan Trawl lnto Dit:m Parts if Afriea and Aria tíu Cnal
(Londres: R. Scot, 16n), p. 18.
10. Edward Long, Candid &factiom ( Londres: T. Lo,..'Tldcs, tr,:), p. 48.
11. \Villiam Smith, A New Voyagt to Guinta ( Londres: John Noursc, li45), pp. 221-2.
12. O termo "geografia fabulosa· é de Ivlichael T:mssig, in Sl;amanism, Cofonialism and th,
Wild iWan: A Study in Ttrr0r and Htaling (Chicago: lhe University of Chicago Prcss,
Couro imperial
1987), p. 15.Joseph Conr:id cunhou o termo "geografia militante" cm seu ensaio "Gcogra·
phy and Some Explorcrs", in únt Essays (Londres: J. M. Dent & Sons, 1916), p. 31. Para
uma história do fim da escra\'idão colonial, ,-er Robin Blackbum, 1},e Owrthrow ofColo-
11ial S!a'Uery: I776-11k,8 (Londres: Verso, 198!1).
13. Benjamin Farrington, 1he Philosophy of Francis Bacon: /111 Essay 011 lts DevelopmmtJrom
r6oJ to 1609 With Ne-.,, Translatiom ofFundammtal úxtr (Chicago: Thc Univcrsity Chi-
cago Prcss, 1964), p. 62. Ver LudmillaJordanova, S(x:,a/ Visions: lmages ofGmder in Scimce
and Medicine Bef'l:Jan the Eightanth and Twmtieth Cmturies (Nova York: Harvcstcr
\Vheatsheaf, 1989), Ver r:imbém E. F. Keller, &ft((tions on Gmder and Scim« (New Ha-
ven: Yale Univcrsity Press, 1985), especialmente os capítulos 2 e 3; Susan Griffin, H1Jman
and Nature: 1he Roaring lmide Her(Nov:i. York: Harpcr & Row, 1978); e Gcncvicve Lloyd,
ÜJ< lvlan of Reason: "1Wa1t· and 'Fur.ale" in lffsum Phi!orophy (Minneapolis: Minnesota
Univcrsity Prcss, r984).
14. Farrington, 1h( PhilwJphy ofFranâs Bacon.. . , p. 62. Para o gênero na ,isão da ciência de
Bacon, ver Carolyn Merchant, 7h, D,ath of Narure: Womm, E,ology and th, Sâmtifi,
Rewlution (Sio Francisco: Harper and Row, 1980), especialmente o capítulo 7.
cA situação da terra - qoual11gias do imperialismo
15. Francis Bacon, "Novum Otg1111um", in James Spedding, Robert Ellis e Douglas Hcath
(orgs.), 1he 1/.1;r.ks ofFrancis Bacon (Londres: Longmans, 1870), p. 82.
16. Goethe, Fawt. Parte I, apud Jordanova, Sexual Vúiom... , p. 93.
17. Rcné Descartes, Dis,ouru on Me1hod and lhe Medilatians (Harmond~worth: Pcnguin,
196S), p. 78.
j . 47
Couro impaial
l
1
1
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nhecidas de territórios "virgensn. Os filósofos figuravam "a verdade"
como fêmea, e então fantasiavam sobre retirar o véu. De muitíssimas
maneiras, as mulheres serviam como figuras mediadoras e liminares
por meio das quais os homens se orientavam no espaço, como agentes
do poder e do conhecimento.
Os próximos capítulos exploram parcialmente os modos historica-
mente diferentes, mas persistentes, em que as mulheres serviram como
marcadoras das fronteiras do imperialismo, as ambíguas mediadoras
do que parecia ser - pelo menos superficialmente - o protagonismo
predominantemente masculino-do império. O primeiro ponto que de-
sejo salientar, porém, é que a feminização da terra incógnita era, desde
o começo, uma estratégia de contenção violenta - que pertence aos
domínios canto da psicanálise quanto da economia política. Se, à pri-
meira vista, a feminização da terra parece não ser mais do que um
sintoma familiar da megalomania masculina,ela também trai uma pa-
ranoia aguda e um profundo (se não patológico) sentido de ansiedade
e perda de limites.
Como sugerem as imagens de Colombo e H aggard, a erótica da
conquista imperial e_ra também uma erótica da subjugação. Num
nível, a representação da terra como fem inina é um tropo traumá-
tico, que ocorria quase invariavelmente, sugi ro, depois da confusão
masculina com os limites, mas como uma estratégia de contenção
histórica e não arquetípica. Como traço visível de paranoia, femi-
nizar a terra é um gesto compensatório, que nega a perda masculina
dos limites reinscrevendo um excesso ritual de limites, acompanha-
do, com frequência, por um excesso de violência militar. A fe miniza-
ção da terra representa um momento ritualístico no discurso impe-
rial, como os invasores masculinos se protegem do temor de desordens
narcisistas ao reinscrever, como natural, um excesso de hierarquia de
gênero.
<.A situação da tara - qenealogi,u do imperialismo
O "DESCOBRIMENTO" IMPERIAL E A
AMBIVALÊNCIA DE GÊNERO
18. Mary Douglas, Purity and D:mger (Londres: Routlcdge & Kegan Paul, 1966), p. 63.
19. Victor Turner, 1he Ritual Proms: Struct1m andAnti-Stru(/ure (lthaca: Comell Univcrsíty
Press, 1969).
20. Idem, op. cít., p. 95.
21. Douglas, Purity and Dangrr, .P· 78.
21. Idem, op. cít., p. 79.
z3. Ver Petcr Hulme, "Polytropí: Man: Tropcs ofSexualíty and Mobility ín Early Colonial
Discoursc", ln Francis Barker cl al. (orgs.), Europe and lu Oth~rs (Essc.x: Univcrsity of
49
..
Couro imperial
AMt.fU C A .
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Figura r.r - Pomotripico: As mulhueJ como marcadoras dos limitu do imptrio. Amlrico do
Nortt, e. r6oo. Gro'IJara dt 1Juodort Gallt, uguindo desmho dt fan '1/an dtr Stratt (e. 1575).
Esscx, 1984, vol. 2). T ambérn Louis Montrose, "The \,York of Gender in the Discoursc of
Discovcry", Rtpmmtation.1 33 (Inverno, 1991), pp. 1-,p. Par., imagens europeias da Amé-
rica, ver H ugh Honour, 1he New Goldm lAnd: Europtan /maga ef Ammca from the
DiscO'IJtries to tht Pmmt Time (Nova York: Pantheon Books, 1975), capítulo 4.
24. Hulmc, "Polyuopic Man ...·, p. 21.
r l
cA situaçdo da tara - qm~alogias do imptria/ism,
1
53
1
(ouro imperial
54
e.,{ situarão da tara - Cjmtalogias do imptrialismo
28. Luce lriga.ray, Sptculumofthe Othtr Woman, trad. Gillian C. Cill (lthaca: Comell Univer-
sity Press, 1974), P· 23.
29. Ibidem.
30. Idem, op. cit., p. 74.
55
•
Couro imprrial
31. Mary Loui<e P ratt, lmpn-ial E)'t1: Trat:tl Wriling andTra,uculturalion {Nova York: Rout•
lcdgc, 1992), p. 204.
56
cA siluaçdo da urra - (jmtalogias do imptrialismo
3z. Para uma bela e detalhada discussão das metiforu im~riais de gênero no cinema, ver
Elia Shohat, "Gender and thc Culturc of Empirc: Toward a Fcminist Etnography of thc
Cinema", Quartnly RNiewofFilm and Vidro 13, 1·3 (Primaven, 1991), pp. 45•84. Pau uma
análise do gênero na fronteira norte-americana, \-Cr Annettc Koloony, 1ht Lay of tht
Land: Mttaphors aI Expnitnu and Hutory in Amtrfran Lifa and Ltttm (Chapei Hill:
Univcrsity ofNorth Carolina Prcss, •9iS) , e 7h, Land Befart Her: Fanl/JIJ and Expnim<t
o/tht /lmerúan Frorúiers. 1630-186o (Cha~l H ill: Urüversity oi Nonh Carolina Prcss,
1984). Ver também Henry Nash Smit.h, Virgin Land: 7ht Amtri,an Wt11 as Symbol and
Myth (Cambridge: Han-ard Univcrsity P.-.:ss, 1971).
57
Couro impuial
·8
)
cA situa;do da Urra - q,n,alogias do imptrialismo
DOMESTICIDADE E RACISMO
DA .MER CA DORI A
o primeiro passo para tomar mais leve o FARDO DO HOMEM BRANCO é ensi-
nar as virtudes da limpeza. o SABONETE PEARS é um potente fator no
abrilhantamento dos cantos escuros da terra à medida que a civilização avan-
ça, enquanto para as mais cultivadas nações da terra ele est:i no mais alto
posto - é o sabonete ideal de toaletell_
59
Couro imptrial
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60
cA" situação da urra - <Jmfalogias do imptrialism,;
61
Couro imptrial
62
ui situa;ão da terra - qm,alogias dq imptria/ismo
37. Jean e John L. Com:iroff, "Homem3dc Hcgcmony: l\lodcrnicy, Domesticity, and Colo-
oialism in South Africa", in Karcn Hansen (org.), Afriran Encauntm with Dommiâty
(Ncw Brunswick: Rutgcis Univcrsity Prcss, 1992), p. 39.
38. Idem, op. cit., p. 3.
C1111ro imptrial
. ,.......
TEMPO PANÓPTICO
66
cA situa(do da terra - (jm talogias do inrptrialismo
41. Johannes Fabian, Tim, and tl:e Other: How Antbrnpology A'lahs I N Objut (Nov:i York:
Columbia Univcrsity Pn:ss, 1983), p. 15.
42. Jacques Benignc Bossuet, DiscouN sur l'histoirt uni11aullt, apud idem, op. cit., p. 4.
43. Idem, op. cit., p. 96.
Couro impuial
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68
cA situa;õo da urra - qo:,alogias do imperialismo
H• Dolf Sternberger, ~eguindo \Valter Benjamin, viu no popular fenõmeno vitorilno do ci-
clorama uma popularização da teoria de Darwin como um "ciclorama da evolução". Na
imagem panorâmica, a história ap:irece como uma "progre1sào natural" do macaco ao
homem, de modo que "o olho e o olho da mente podem deslizar, p:ir.,. cima e para bai:<o,
de um lado pan o outro, pelas figuras que 'evoluem~. Apud c.-.:cclente ÜYTO de Susan
Buck-Morss, 7ht D ia/afia ofSuing: Wafttr B,njamin and thr llr<adn Proj((t (Cambridge:
lhe MIT Prcss, 1990), p. 67.
Couro impuial
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Figura 1.7 - Tempo panóptuo: o progr(sso consumido num golp( d( vista.
vi situafdo d a tara - qm((z/ogias do imperialismo
ESPAÇO ANACRÔNICO
71
.,.,.
Couro imptrial
TllfE'S WAXWORKS.
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72
r.A situarão da tara - qtn,alogias d o imptria fis mo
46. Joseph-Marie Degerando, 1br Observation ofSavage Peoples, F. C . T Moore, org. (Berke-
ley: UniversityofCalifomia Press, 1969 {1800]).
47. W illiam Pictz, "lhe Prob!em of the Fctish, 11", R,, 13 (Primavcn, 19S7), p. 45.
73
Couro impuial
48. Sandcr Gilman, Dijfeunu and Parhology: Sttr,orypts ofSt:r:ualiry, Rau and i\lfadt1tss (Itha-
ca: Corncll Univcrsity Prcss, 1985), p. 45.
49. Baanman foi exibida pela Europa por cinco anos. Em 1829 uma mulher hotentote nua, a
" Vênus hotemote", foi a principal atração de um baile dado pela Duquesa du Barry cm
Paris.
50. Freud, "Fetishism", in 1he Standard Edition efthe Complete Psyd1ologi(a! H·&rks ofSigmund
Freud, trad. James Strachey (Londres: The Hogarth Prcss, 1927, vol. VII), p. tj7. Ver a
74
e.A lit u.z;tJ, da urra - Ç mtalogias d, i111ptria/ismo
,
1
1 tornavam-se cada vez mais estigmatizadas corno espécimes de regressão
racial. Tais mulheres, dizia-se, não habitavam propriamente a história,
mas eram protótipos de humanos anacrônicos: infantis, irracionais, re-
j gressivas e atávicas, existindo num tempo permanentemente anterior
1 dentro da modernidade. As serventes domésticas eram frequentemente
descritas na iconografia da degeneração como "pragas", "raças negras",
"escravas"e "pnm1t1vas
· · · , ,.
A INVENÇÃO DA RAÇA E A
FAMÍLIA DO HOMEM
75
Couro imp~rial
que a família da humanidade está desarranjada por toda parte. M ais que
a "família de uma humanidade 'única e indivisível"' a que apelou no pre-
fácio, Engels descobriu "a decadência universal da vida familiar entre o,
trabalhadores"H. De fato, a tragédia da universal "Familia do Homem"
da classe trabalhadora era que "a vida familiar[ ...] é quase impossível"54•
Ademais, na visão de Engels, há uma causa para a confusão: "É inevitá-
vel que, se uma mulher casada trabalha numa fábrica, a vida familiar é
inevitavelmente destruída"55•
O que me interes sa aqui é que Engels, ao lam,:ar sua "acusação" aos
ingleses, figura as crises familiares que assolam os pobres urbanos através
da iconografia da raça e da degeneração. Vivendo cm cortiços que pouco
mais eram do que ~ermos não planejados", a classe trabalhadora - ele
sente - se tornou degradada e degenerada: "Uma raça fisicamente de-
generada, roubada de toda a humanidade, degradada, moral e intelec-
tualmente reduzida à besrialidade"56• A classe trabalhadora é uma "raça
inteiramente à parte", de tal forma que ela e a burguesia são agora "duas
nações radicalmente dissemelhantes, tão distintas quanto a diferença de
raça poderia fazê-las"S7_
Engels imagina as primeiras grandes crises do industrialismo através
dos dois tropos da degeneração e da Família do Homem - um tropo
extraído do reino da domesticidade e o outro, do reino do império. Tes-
temunha-se aqui a figura de um duplo deslocamento: a história global é
imaginada como um~ familia universal (uma figura do espaço doméstico
privado), enquanto as crises domésticas são imaginadas em termos ra-
ciais (a figura pública do império). Depois dos anos 1850, sugiro, as prin-
cipais contradições dentro da modernidade industrial - entre privado e
público, domesticidade e indústria, trabalho e lazer, trabalho pago e não
pago, metrópole e império - foram sistematicamente mediadas pores-
77
l. .
Couro imperial
58. Edwud S:aid, 1hc World, thc Ttxt, and the Critic (Cambridge: Harvard Univcrsity Prcss,
1983), p. 19.
vi situaç,fo da urra - qm,al?gias do imptrialismo
79
Couro imptrial
DEGENERAÇ ÃO
1
Um discurso triangular
Desde o início, a ideia de progresso que iluminou o século XIX foi acom-
panhada por seu lado sombrio. Imaginar a degeneração em que a huma-
nidade poderia cair fazia parte necessária de imaginar a exaltação a que
ela poderia aspirar. As classes degeneradas, definidas como desvios do
1
tipo humano normal, eram tão necessárias para a autodefinição da elas- ,
se média quanto a ideia de degeneração era para a ideia de progresso,
pois a distância percorrida por algumas partes da humanidade ao longo
do caminho do progresso só podia ser medida pela distância em que
outras estavam atrasadass9 • A normalidade surgia, assim, como produto
do desvio, e a invenção barroca dos conjuntos de tipos degenerados su-
blinhava os limites do normal.
A poética da degeneração era uma poética da crise social. Nas últi-
mas décadas do século, os planejadores sociais vitorianos se basearam no
danvinismo social e na ideia de degeneração para figurar as crises sociais
59. As classes dcgencr.adas nio eram percebidas como sinónimos das "respeit:iveis" classes
trabalhadoras, que se tinham dedicado aos beneficio, da labuta sóbria e diligente duC1n·
te o bOôm do final dos anos 1860 e início dos 1S;o. Como diz claramente Henry M ayhcw:
"Considera.rei o conjunto dos pobres metropolitanos cm três fases separadas, aqueles que
trabalharão, os que não podem trabalhar e os que nlo querem trabalhar•. Henry Mayhew,
"L:,bour :and the Poor", Chronide, 19 out., 1849.
80
c.Ã situaçdo da urra - Çjtntalogias do imperialismo
60. Ver Sandcr Gilman (org.), Dtgen,ratian: Tht Dari Sidt ofProgrm (Nov-a York: Colum-
bia Univ~rsity Prcss, 1985), p. ,óv. Ver u mbém idem, Dijfumu and Pathology... ; Nancy
Stcpan, ~Racc and Gcndcr: lhe Role o f Analogy in Scicncc· , 1sün Qun., 1986), pp. 261-n;
e Richard D. Walter, •What Bccamc of thc Degencr.atc? A 8 :icf H istory of thc Con-
ccpt".Journal oftht History ofM tdicint and tlu Allitd Scimw 11 (1956), pp. 41-9.
61. Garcth Stcdman Joncs, Outcast London (Nova York: Panthcon, 19;1), p. 11. Ver também
Henry Mayhew, Lo11do11 Laóour and t ht London Poor, IU,John Rosenberg, org., (Nov-a
York: Do\·cr, 1968), pp. 376-7, Gertrudc H immclfarb, 1Jx ldu of Pof.•trty (Nov-a York:
Vintagc Books, 1985), p. 361.
1 62. M:iyhcw, L(Jndo,: Laóour... , p. 167.
1
1
81
1
Couro imptrial
63. Thomas Plint, Crime in England: ltr RL/ation, Chara<ler and Eximi, as D({Jt/opd from
1801 lo 19./8(Nova York: Amo, 1974 (1851)), pp. 148· 9.
82
<Á situaçdo da Urra - Çjm,alogias do imp,rialismo
64. Ver Anna Davin, "Impcrialism and .Mothcrhood", History Workshop 5 (Primavera, 1978),
PP· 9-65.
65. Ann Laura ~1olcr, "Carnal Kno"iedgc and Imperial Power. Gendcr, Iucc and M orafa:y
in Colonial Asia, • in Mic1cla di Leonardo (org.), Gmdtr a: tlg Cros1r11ad1 ofKnowl,dg,:
F,minist Anthropology in th, Postmodtrn Era (Berkeley: Univcrsity of Californi3 Press,
1991), P· 74.
Couro imptrial
85
Couro impuial
70. Ver Samuel G.Morton, "Valuc and thc \Vorld Speáes in Z.oology",Ammcan]oamal of
Scimu and Art; 11 (maio, 1851), p. 175; e Gould, 1h, i\tlúm,asure ofill/an, p. 73.
71. Advertidos pelo medo da miscigenação e pela livre movimcnução dos negros depois da
abolição da escravatura na América e nas colónias, e argumentando a partir das cvidên·
das das múmias egípcias, os defensores do poligcnismo sustentavam que as diferentes
raças sempre tinham sido criações fi.us e separadas cm seus lares cm zonas e com climas
diferentes cm todo o mundo. E scravos libertos, por exemplo, eram vistos como "conde -
nados à degeneração ao se deslocarem pan o Norte, para território branco temperado, e
ao se mo,-crcm social e politie2mcnte cm direção à libcrd3dc". Stcpa.n, "Racc and Gcn-
der...", p. 100.
72. Gould, 1he /1-lism,asurt o/,\tlan, p. 73 .
86
(,/{ situarão da ttrra - Çtntalogias do imptriali,mo
atributos raciais estava agora reunido numa narrativa de gênese que ofe-
recia, acima de tudo, uma figura de mudança histórica.
Ernst Haeckel, o zoólogo alemão, produziu a ideia mais influente
para o desenvolvimento dessa metáfora75• Sua frase famosa, "a ontogenia
recapitula a filogenia", captava a ideia de que a linhagem ancestral da
espécie humana podia ser lida a partir dos estágios do crescimento de
uma criança. Cada criança refaz, em miniatura orgânica, o progresso
ancestral da raça. A teoria da recapitulação, assim, mostrava a criança
como um tipo de bonsai social, uma árvore de família em miniatura.
Como disse Gould, cada indivíduo, quando cresce para a maturidade, 1
"trepa cm sua própria árvore famüiar"76 • O valor irresistível da ideia de
recapitulação escava em que ela oferecia um critério biológico aparente-
l
mente absoluto para o ordenamento não só racial, mas também sexual e f
de classe. Se a criança branca do se.xo masculino era uma regressão atá-
vica a um ancestral adulto primitivo, ela podia ser comparada com ou-
tra!> raças e grupos viventes para posicionar seu nível de inferioridade
evolutiva. Aparecera, assim, uma analogia vital:
O s adultos de grupos inferiores devem ser como as crianças dos grupos su-
periores, pois a criinça representa um ancestral adulto primitivo. Se negros
e mulheres adultos são como crianças brancas do sexo masculino, então são
representantes vivos de um estágio ancestral na evolução dos homens bran-
cos. Uma teoria anatômica para ordenar as raças - baseada nos corpos in-
teiros - foi dcscobena 77•
88
cA" situa;do da tara - q m,alogias do imptria!ismo
,,
Nas últimas décadas do século XIX, o termo "raça" foi usado de maneira
instável e cambiante, às vezes como sinônimo de "espécie", às vezes, de
"cultura", às vezes, de "nação", às vezes para denotar etnia biológica ou
subgrupos dentro de grupos nacionais: a "raça" inglesa" por comparação,
digamos, com a "irlandesa". Um pequeno, mas dedicado grupo de médi-
cos, colecionadores, clérigos, historiadores e geólogos se prontificaram a
desvelar as mínimas nuanças de diferenças que distinguiam as "raças" da
Inglaterra. O doutor John Beddoe, membro fundador da Sociedade Et-
nológica, devotou 30 anos de sua vida a medir o que chamava de "Índice
de Negritude" (a quantidade de melanina residual na pele, no cabelo e
nos olhos) nos povos da Inglaterra e da Irlanda, e concluiu que o índice
aumentava fortemente de leste para oeste e de sul para norte80 •
80. John Bcddoc, 1he &w of Britair.: A Contri/,ution ,~ IM Anthrnpolagy of l~stem Eurap(
(Bristol: J. W. Anowsmith, 1885). Sobre o estereótipo racial dos irlandeses, ver L. Pcrry
Curris, Jr., À~s and Ang,ls: 7he l rishma,r in Vi,toría,r Caric.,tur~ (Ncwu,n Abbor: David
cA situação da urra - q,n,alogias do imperialismo
,
meias são raran1ente usados por esses seres que parecem formar uma
raça diferente do resto da humanidade"".
Mas a Irlanda apresentava um dilema para o discurso imperial pscu-
dodarwiniano. Como a primeira e mais antiga colônia da Inglaterra, a
de proximidade geográfica da Irlanda cm relação à Inglaterra, como obser-
1 va D avid Lloyd, resultou "em que ela passou pela transição para o colo-
nialismo hegemónico muito mais cedo do que qualquer outra colônia"83 •
Mas, como nota Claire Wills, a dificuldade de colocar os irlandeses de
tez pálida na hierarquia do império era "aumentada pela ausência do
marcador visual da diferença na cor da pele que era usada para legitimar
a dominação em outras sociedades coloniais"84• O estereótipo inglês dos
irlandeses como raça degenerada e simiesca também complica as teorias
pós-coloniais de que a cor da pele (o que Gayatri Spivak chama util-
mente de "cromatismo") é o sinal fundamental da alteridade. O croma-
tismo, observa Wills, é uma diferença "que naturalmente não se aplica à
and Charl~s. 1?71); Rich:>rd Ncd Lcbow, White Britai11 and Black l rdand: 'lhe Injlumu oJ
Sur,otypts on Colon ial Policy (Filadélfia: lns titute for thc Study of Human Issues,
1976); e Thomas \.Villiam Hodgson Crosland, The Wild lrishman ( Londres: T. Werne r
Lau rie, 1905).
81. A expressão de Molina ri "une v:1riété de négrcs bbncs~ 2pa rtceu tradu~id2 numa abertu-
ra do 7h, T imes de Londres, a 18 de setembro de 1880. Ver Curtis, Apes and/lng,ls... , p. 1.
~2 . Philip Lu ckombc, A Tour 1hrough lreland: Wherein th~ Prescnt Stau of that Kingdom is
Considerd (Londres: T. Lowndes, 1783), p. 19.
83. David Lloyd, Nationalism and ,"vlinor Literalure (Berkeley: Univenity of Cilifomia Press,
1988), p. 3·
1 84. Cl:úre \,Vills, "Language Politics, Narrativc, Political Violence~, 1h~ Oxford Lit,rary Iv-
flitw 13, Neocolonialism, Robert Young (org.) (1991), p. 21.
1 91
CourtJ imperial
...
F igura I.10 - ·calibãs ultas·. Puck, w/. 10, rr 258, 15/ro., 1882, p.378.
O título da charge de FrtdericJ: B. Opp<r, •o Rei de um Barraco~
sugere uma analogia entre irlandese1 e africanos.
92
,..
vi situarão da urra - gm,alogias do imperialismo
alegremente sentado sobre uma tina virada, prova visível de uma relaxa-
da falta de dedicação à ordem doméstica. O que parece ser uma panela
se inclina em sua cabeça. Na porta, limite entre o público e o privado,
sua mulher mostra um relaxamento igualmente alegre. Tanto na mulher
como no homem, a ausência da cor da pele como marcador da degene-
ração é compensada pelo simiesco das fi sionomias: lábios exagerados,
testas baixas, cabelo desleixado e assim por diante. Nos próximos capí-
tulos, sugiro que a iconografia da degenerafão domistica foi usada ampla-
mente para mediar as múltipla:; coucradiçõcs da hierarquia imperial -
não só em relação aos irlandeses, mas também aos outros "negros
brancos": judeus, prostitutas, a classe trabalhadora, trabalhadores do-
mésticos, e assim por diante, cm que a cor da pele como marcadora do
poder era imprecisa e inadequada.
Estigmas raciais foram usados sistematicamente, ainda que muitas
vezes contraditoriamente, para elaborar mínimas nuanças de diferenças
cm que as hierarquias sociais de raça, classe e gênero se sobrepunham
num gráfico tridimensional de comparação. A retórica da raça era usada
para inventar distinções entre as que hoje chama.ríamos de classes87. T.
H. Huxley comparou o pobre do leste de Londres com o selvagem po-
linésia; William Booth escolheu o pigmeu africano, e William Barry
pensava que as favelas se assemelhavam a um navio negrciro88•
As mulheres brancas eram consideradas uma "raça" increntemente
degenerada, semelhante cm fisionomia aos negros e macacos. Gustave 1c
Bon, autor do famoso estudo sobre o comportamento das multidões, La
Prychologie des Foules, comparou o tamanho do cérebro da mulher ao do
gorila e evocou essa comparação como :;iual de um lapso no desenvolvi
mento: "Todos os psicólogos que estudaram a inteligência das mulheres,
87. Seth Luther, por c.xcmplo, acreditaV2 que "as mulheres e filhas dos industriais ricos n:io
se associariam a ttabalmdoras de fábricas, e ainda menos a um escravo negro", .llddrtss to
tht Working Mtn ofNt'W Engla~d, panfleto republicado cm Phüip Taft e Lco Sten (orgs.),
Rt!igion, R.efarm and Revolution. Labor Panauas in th, Nintltmth Cmtury (Nova York:
Amo, 1970), p. 1.
SE. William Booth,Jn Darktu England and tht lláy Out (Londres: l ntcrnational Hcadquartcr.;
of the Salvation Army, 1890); \Vi!liam Barry, 1he New Antigont(Londccs: Barry, 1887).
93
l
j
Couro imptrial
89. Gustavc lc Bon, La Psyehologie des Foules (1879), pp. 60-1. Apud Gould (1981), p. 105; Trad.
para o inglês Robert Merton, 'lhe Crowd: A Study ofthe Popular Mind (Nova York: Viking,
1960).
90. Ver Stepan, "Racc and Gcnder...•.
91. Carl Vogt, Ú<tum on Man: His Plau in Creation a.1d ;,, the History ofthe Earth, org. Ja-
mes Hunt (Londres: Longman, Green and Robcrts, 1864), p. 81. Para a analogia da sexua-
lidade "patológica" das "raças mais babcas" e a das mulheres, ver Eugenc S. Talbot, Dege-
nerary: Its Cawes, Sig,u and &1ulh (Londres: \V. Scott, 1898), pp. 319-23. Ver tam'oém
Havclock Ellis, Man and Woman: A Study of Stcondary Sexual Charaaeristiu (Londres:
Black, 1926), pp. 1o6-7. Para o funcionamento da analogia no discurso científico, ver Ste-
pan, "Race and Gender... ", pp. 261-77. Para a relação entre sexualidade feminina e degene-
ração, ver Jill Conway, "Stereotypcs of Fcmininity in a Theory ofScxual Evolucion", Vic-
torian Studies 14 (1970), pp. 47-62; e Fraser Harrison, 'lhe Dark Angd: Aspech of Victorian
Sexuality (Londres: Shcldon, 1977).
92. Philip Thickncss prnsava que as pessoas negras na lnglacecra, "suas pernas quase sem pan-
rurrilhas e seus pés chatos e largos, com longos dedos [ ... ]tinham muita semelhança com
os orangotangos[...] e outros quadrúpedes de seu próprio clima",A Yearsjoumry through
Franu and Pari ofSpain, 2• ed., •nS, PP· 102-5. Apud Frycr, Staying Pown-. .. , p. 162.
94
cA situa;do da ltrra - <jm,alogias do imptrialismo
1
J
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95
Couro imptria/
93. Charles IGngslcy, autor de l~stward Ho e 7h, Hízttr Babies, escreveu, depois de uma
viagem a Sligo cm 1860: •Sou assombrado pelos chimpan2és humanos que vi ao longo de
centenas de milhas de território horrível( ... ] Ver chimpanús brancos é terrível; se fossem
negros, não sentiria tanto". Carta a su:a mulher, 4 de julho de 1860, in Francis E. IGngslcy
(org.), Charles Kingsley: His Lett,rs and 1Wtmories ofHis lift {Londres: Henry S. IGng anel
Co., 1877), p.107.
94. Exploro a relação entre prostituição, ra~ e o direito cm "Scrcwing thc S)'Stcm: Scxwork,
Racc and thc Law", Bou11dary 1119,: {Verão, 1992), PP· ;ro-95.
95. Ver a análise de Gilman da racialização das prostitutas cm Dilftrtnre and Pathology...
<.A situação da terra - (jtnea!Ggias d~ imperialismo
97
Couro imp~rial
O IMPERIALISMO COMO
ESPETÁCULO 1\1 ERCANTI L
98
cA situard~ da u rra - Çtntalt1gia1 do imptrialismo
r,· .....
'
'
..
99
Couro imp~rial
1
nhadas. Como nota Foucault: "Esse panóptico, sutilmente arranjado de
tal forma que um observador pode observar, num olhar, tantos indiví-
duos, também permite que qualquer um venha e observe qualquer dos
1
observadores. A máquina de ver[...] se tornou um prédio transparente
em que o exercício do poder pode ser supervisionado pela sociedade
como um todo".
A inovação do Palácio de Cristal, aquela exemplar casa de inspeção
de vidro, estava em sua capacidade de misrurar o princípio do prazer
com a disciplina do espetáculo. Na máquina de ver de vidro, milhares de
inspetores civis podiam observar os observadores: uma disciplina voyeu-
rística perfeitamente incorporada na característica popular do ciclora-
ma. Sentados na torre de observação circular do ciclorama, os especta-
dores consumiam as imagens cm movimento diante deles, aceitando a
ilusão de viajar em velocidade através do mundo. O ciclorama invertia o
princípio panópticÓ ·e o colocava à disposição do prazer consumista,
convertendo a vigilância panóptica num espetáculo mercantil - o con-
sumo do globo por voyeurs. E, no entanto, todo o tempo presos ao en-
cantamento da vigilância, esses "monarcas-imperiais-de-tudo-o-que-
vcem" ofereciam suas costas imóveis à observação dos outros96•
O Palácio de Cristal converteu a vigilância panóptica num prazer
consumista. Como observa Susan Buck-Morss: "A mensagem das expo-
96. Mary Louise Pratt usa o termo "monarca-de-tudo-o-que- vejo" para descrever a postura
imperial de converter o espcticulo panorimíco, especialmente no momento da "desco-
berta", numa posição de autoridade e poder.
100
cA 1ituar4o da urra - (jtntalogia1 do imptrialismo
IOI
Couro imp~ria/
99. Sou grata a Luke Gibbons, que escreveu sobre: esie brinquedo cm "Race against Time:
Racial Discourse and lrish HistOl)'~, Oxford Literary R.euie-w 13, Neoco!onialism, Robert
Young (org.), (1991), p. 95.
100. Ibidem.
102
vi sit11a;ão da t~rra - qmealogias do impuialismo
)'
.
1
MÍMICA COLONIAL E AMBIVALÊNCIA
1
l Escrevo, então, com a convicção de que a história não se faz em torno de
uma categoria social privilegiada. As diferenças de raça e classe não po-
dem, acredito, ser entendidas como sequencialmente derivadas da di-
ferença sexual, nem vice-versa. Antes, as categorias formadoras da mo-
t
1
j
!
t
l
101. Ibidem.
103
Couro imptrial
101. Kobcna Mcrcer, "Reading Racw Fetishism: lhe Photographs ofRobcrt Mapplcthorpc•,
in Emily Aptcr e \Vilfüm Pietz (orgs.), Fttishilm as Cultural D ilcouru (h haca: Corncll
University Press, 1993), p. 324.
103. Ibidem.
104. Luce lrigaray, ThiJ Sa Which is N~t O,u, tnd. Catherine Porttr {lthaca: Comell Univer-
sity Prcss, 1985), p. 76. Irigaray desem-oh-c aqui a ideia de Joan Riviere da feminilidade
como disfarce.
104
117'
;'
µ
105. Ibidem.
106. Ibidem.
107. Homi K. Bhabha, "Of Mimicry• and Man: lhe Ambi,-a.lence of Colonial Discourse",
Ottoher 28 (Primavera, 1984), p. 126.
108. Idem, op. eit., p. 130.
105
Couro impuial
109. Frann Fanon, 7/x Wretched o/the Earth (Londres: Penguin, 1963), p. 47. Para uma aná-
lise do uso do termo "mímica" por Naipaul, ver Rob Nixon, london Cal/ing: V. S. Nai-
paul, Pou,o/onial Mandarin (Oxford: Oxford University Press, 1992), especialmente o
capítulo 6.
110. T. B. Macaulay, "Minute on Education", in \Villiam Thcodore de Bary (erg.), Sourw of
/ndian Tradition (No,-a York: Columbia Uni,·ersity Prcss, 1958, vol. II), p. 49.
111. Bhabha, "OfM;micry and Man ...•, p. u6.
11:. Idem, op. cit., p. 117.
106
cA 1itua;tJo da urra - Çmtalogia1 do impuia/iJmo
113. "A menau [ameaça) da mímica é sua douhlt [dupla) visio que, ao revelar a ambi\-:ucncia
do discurso colonial, também pcrrurba sua autoridade". Idem, op. cit., p. 129.
n4. "O sucesso da apropriaçiio colonial depende da proliferaç:io de objetos não apropriados
que arugurtm uu frarano utrattgiro" (grifo nosso). Idem, op. cít., p. 127.
115. Nesse ensaio, abstrações formais pa.rccem ter atuaçio: a repe1enta(dO marginali:za a mo-
numentalidade da históri~; a ambivalência d3 mimi<a rompe a autoridade colonial; a di-
ftrtn{a ameaça a autoridade colonial; o dtujo tem objetivos estratégicos.
Couro imptrial
116. Idem, "Diffcrcncc, Di,crimination and thc Discoursc ofColonialism", in Francis Barkcr
ct al. (orgs.). 11,e Polit:cs of71uory (Colchcstcr: Uni,·crs:ty of Essex, 1983), p.105.
117. Idem, "Signs Takcn as Wondcrs: Qycstions of Ambivalcncc and Authority undcr a Trce
Outsidc Dchli, 181(, in Francis Barkcr ct ai. (orgs.), Europe and its Others, (Cokhcstcr:
Univcrsity of Esscx, 1985, \-OI. 1), p. 162.
108
uf situar4o da Iara - qmealogias d~ impaia(ismo
H l B RI DEZ, TRAVESTISMO E
FE T ICHI SM O RACIAL
109
Couro impuial
118. Joseph Conr:id, H,art ofDarlmm (Londres: Penguin, 197.J [1902]), p. 52.
u9. Ibidem.
IIO
vf situafdO da Urra - Çtn~alogias do impuialismo
III
Couro imp~ria/
122. M arjorie Garbcr, Vtsud lnu ruts: Cross-Drming and Cultural Authority {Nova York:
Routlcdge, 1992).
123. Idem, op. cit., p. 103.
JI2
c/f situarão da ttrra - (jenealogias do imptrialismo
L
.....
faz justiça teórica à rica diversidade de travestis culturais e aos fetiches
históricos que ela mesma revelar:•.
Reduzir todos os fetiches e todos os travestis a uma única gênese
fundada na ambiguidade fálica nos impede de dar conta das diferenças
entre práticas subversivas, reacionárias ou progressistas. O triângulo ro-
sa, por exemplo, é um signo ambivalente que tem sido exibido por prá-
ticas políticas radicalmente alternativas. O travestismo também pode
ser mobilizado para uma variedade de propósitos políticos, nem todos
subversivos. O fato de que o fetichismo seja fundado na contradição não
necessariamente garante sua transgressividade; o fato de que o traves-
tismo perturbe identidades sociais estáveis não garante a subversão po-
lítica do gênero, da raça ou da classe social. Quando fuzileiros no exér-
cito dos Estados Unidos se enfeitam como drags ou pintam o rosto de
preto, o poder branco não é necessariamente subvertido, nem a mascu-
linidade é desarranjada. Talvez se, ao contrário, lésbicas no exército se
travestissem diariamente, ou negros gays fizessem noturnamente uma
performance voguing, o efeito quem sabe não fosse visto como tão hilário
ou inocente.
O passar-se por étnico culturalmente forçado (imigrantes judeus ou
irlandeses sendo assimilados nos Estados Unidos, digamos) ou a hibri-
dez brutalmente imposta (a gravidez imposta das muçulmanas por estu-
pro na Bósnia-Herzegovina) implicam relações muito diferentes com a
hibridez e a ambiguidade. O deslizamento en tre diferença e identidade
está presente em todos esses casos, mas o peso psíquico e as consequên-
cias políticas variam dramaticamente. O glamour lírico forjado por al-
guns teóricos pós-coloniais nem sempre é historicamente garantido.
É importante salientar, a esse respeito, que o travestismo não envolve
apenas ambiguidade de gênero; existe ampla evidência de travestismo
racial, de classe e étnico. Reduzir todos os fetiches a uma única narrativa
de gênese fundada na ambiguidade fálica nos impede de dar conta ade-
quadamente dos fetiches raciais e étnicos que não podem ser subsumi-
113
Couro impuial
u5
Couro impuial
mem de dois lados" (p. 176). Mas neste caso a mímica não é uma identi-
dade defeituosa imposta ao colonizado, nem uma estratégia de resistên-
cia anticolonial. O travesti Kim borra a distinção entre colonizador e
colonizado, mas só para sugerir um controle colonial reformado. O mí-
'
mico moleque encarna a ambiguidade simbólica e a hibridez étnica, mas
emprega sua ambiguidade não para subverter a autoridade colonial, mas
para reforçá-la. É o sahih indianizado: indiano, mas não exatamente.
A passagem de Kim é o privilégio da brancura. Como travesti anglo-
irlandês, encarna noções contraditórias de identidade racial: branco ou
negro? Colonizador ou colonizado? Sua passagem e travestismo fazem
surgir séria "especulação sobre o que é chamado de identidade pessoal" '
(p. 247). De qualquer forma, seu "sangue branco" e sua esperteza irlan-
desa se afirmam cm momentos críticos; a raça, parece, é mais profunda
116 j
cA situa;do da ttrra - Çjmtalogias do imptrialismo
ameaça ficar fora de controle: "Quem é Kim - Kim - Kim?" (p. 248).
"[... ] O que sou eu? Muçulmano, hindu,jain ou budista?" (p. 192). "[ ...]
Eu sou Kim. Eu sou Kim. E o que é Kim?" (p. 374). Engolfado pela ver-
tigem étnica e descontrolado pela descoberta mortificante de que não
passa de uma "engrenagem" dispensável no G rande Jogo, Kim reivindica
sua identidade através de um curioso ritual de heterossexualidade restau-
rada. Tendo afastado a ameaçadora sexualidade das mulheres nas mon-
tanhas, ele se atira no chão e encena uma dissolução, deslocada e inces-
tuosa com a "l\1ãc Terra", um ato ambíguo no qual a sexualidade é ao
mesmo tempo repudiada e confirmada. "Ele [... ] se deitou ao comprido
[ ...] E a Mãe Terra [... ] respirou através dele para restaurar a pose que
perdera deitando-se por tanto tempo afastado de suas boas correntes.
Sua cabeça se apoiava sem forças no seio dela, e suas mãos abertas se
renderam à força dela" (p. 374).
Uma vez mais, a mãe negada volta como limite indispensável da
identidade masculina. Isso é o que Julia Kristeva chama de abjeção118 •
118
•)
,A situ11r,1o da tara - Cjm Mlogias do impaialismo
l
ticos, loucos, desempregados etc. Certas zonas liminares se tornam
abjetas e são policiadas com vigor: a Casbah árabe, o gueto judeu, a fa-
vela irlandesa, o sótão e a cozinha vitorianos, o acampamento dos in-
ll
vasores, o asilo mental, o distrito das luzes vermelhas e o quarto de
dormir. Habitando o espaço entre domesticidade e mercado, entre
indústria e império, o abjeto retorna para assombrar a modernidade
como seu repúdio íntimo e constitutivo: o rejeitado de que não conse-
guimos libertar-nos.
A abjeção é muito sugestiva para meus propósitos, pois ela é aque-
le estado liminar que paira sobre o limiar entre o corpo e o corpo
120
"
vf situa;áo da urra - gmealogias do imperiaiismo
132. Robert Young, White Mythologies: Writing History and the W<st (Londres: Routlcdge,
1990), p. 1;i.
121
Couro imperial
122
2
"Massa" e as cria
· das
Poder e desejo na metrópole imperial
O EXPLORADOR URBANO
,. Dcrck Hudson, Munby, Man ofTwo Wor/th: 'lhe Lifa and Diarie1 of/lrthurJ ,Wunby, I812-
1910 (Cambridge: Gambit, 1974), p. 437. Ver também M ichael Hilcy, Victorian i%r!ing
$%mm: Portraits fr()m Lifa (Boston: David R. Godinc, 19i9).
•· M uul>y, "Diary", in Hudson, Mun6y.. . , p. 436.
123
Couro imp,rial
losas, sua familia trancou à chave seus documentos privados por 40 anos.
Em 1950, uma abertura cerimonial das caixas de documentos no Trinity
Colüg~ finalmente revelou, como o Mestre para a Imprensa formulou
secamente: "diários e poemas de Mr. iv1unby e cartas para ele de sua
mulher. Também fotografias e estudos de mulheres trabalhadoras de fins
do século XIX, cm cujas condições de vida Mr. Munby tinha interesse
sociológico"3•
lVlas o conteúdo dos volumosos docum entos de l\1unby- um diário
secreto, centenas de páginas de cartas, numerosos esboços e fotografias
de mulheres - revela uma obsessão compulsiva pelo espetáculo das
mulheres trabalhadoras que era consideravelmente mais e consideravel-
mente menos que sociológica. D e fato, os documentos secretos são elo-
quentes de uma tentativa incansável de negociar uma das mais profun-
das contradições na formação.social da vida da classe média vitoriana: a
associação peculiarmente vitoriana e peculiarmente neurótica entre tra-
balho e sexualidade.
A curiosa vida de Arthur Munby me permite construir o seguinte
argumento: na metrópole urbana, algumas das ambiguidades formativas
de gênero e classe eram administradas e policiadas pelos discursos sobre
a raça, de tal forma que a iconografia do imperialismo entrava na iden-
tidade da classe média e da alta classe média brancas com força funda-
mental, ainda que contraditória. As estranhas peregrinações de Munby >
me permitem, adc~~is, explorar as fronteiras incertas de gênero e classe,
privado e público, casamento e mercado e, ao fazê-lo, investigar algumas
das relações formativas entre imperialismo, indústria e o culto da do-
mesticidade. Fico particularmente intrigada pelas relações ocultas entre
psicanálise e história social, ocultação vividamente encarnada na figura
liminar da babá vitoriana. A vida de Munby oferece uma parábola exem-
plar para os contornos de poder e desejo na metrópole imperial.
O espetáculo voycurístico das mulheres trabalhando era a obsessão
da vida de l\tlunby. Durante quase 60 anos, uma necessidade obscura o
levava a longas perambulações noturnas pelas ruas de Londres, condu-
125
Couro imperial
126
"c.Jlt(aua·, as criadas - 'Poder, dn,jo na mttrdpoü imperial
127
;
Couro impuial
O D UPL O VÍNCULO
l'vlães e criadas
128
ºcJ\,fassa· r as triadas - 'Podrr, drsrjo na mrtrópolt imprrial
129
..
:-
Couro imperial
130
•cJl,tassa• t ,zs criadas - 'Podtr t dtstjo na mttrópolt imptrial
O FLÁNEUR
Gênero e o espaço urbano
13. \.Valter Benjamin, Charlu Baudelaire: A Lyric Poü in the Era ofHigh Capitalism (Londres:
Verso, 1973), p. 36.
14. Idem, op. cit., p. Ii5·
15. Idem, op. cit., p. 174.
131
Cquro impuia/
132
"ú\,(am1· tas criadas - Podtr t dnejo na mttrdpoü imperial
19. Idem, op. cit., p. 6. Para uma excelente análise de gênero e da cidade, ver Elizabcth \.Vil-
son, 1ht Sphinx in tht City: Urban Lift, thc Control of Disortkr and m,mm (Londres:
Vingo Prcss, 1991).
133
Couro impuial
134
"c:iWassa· tas criadas - 'Poda t dtujo na mttr<ipolt impaia/
26. Ibidem.
27. Munby, ªDiary, 1862~. Apud Hile); Victorian Working Womm... , p. 21.
28. Idem, op. cit., terça-feira, u de junho de 1861, in Hudson, Munby..., p. 99.
<
. 29. Idem, op. cit., sexta-feira, 23 de novembro de 1860, in idem, op. cit., p. 83.
..i
135
C,uro impaial
136
"ú\,lassa· tas ,riadas - Podar dtu}o "ª mttrdpolt imperial
30. Eric Hobsbawm, 1Ju Age ofCapital (Londres: Abacus, 1977), p. 286. Ver tambim idem,
1hr Age ofEmpirt, 1875-19r., (Londres: \ Vcidenfcld and Nicolson, 19Si), pp. 180- 1. Como
observa John Fletcher C!ews Hanison: "A essência da classe média era a cxpericncia da
relação com outras classes ou ordens da sociedade. Com um grupo, criados domésticos, a
classe média tinha uma relação especial e intima: uma desempenhava um papel essencial
na dcliniçio da identidade da outra~. 7h~ Early Viuorians, 18p-r8J1 (Nova York: Praeger,
1971), p. 110. Parte imporunte na deliniçio da relação da cl:1Sse média com a classe traba-
lh~dora era a elaboração de rituai s de deferência (curvar-se, afastar-se andando de cost:IS,
baixar os olhos). A ocupação de mordomo, por exemplo, era, antes tudo, uma "ocupação
de deferência", envolvendo a troca de dinheiro cm pag.imcnto pelo reconhecimento ceri-
monial do poder da classe alra. Ver o texto de Bruce Robbins sobre o papel dos criados
na literatura cm 1hr Srrr,ant's Hand: Englüh Fiction from Bd= (Nova York: Columbia
Univcrsity Prcss, 1986).
137
Couro impaial
,
razões óbvias, menos visíveis Eugene Talbot, por e.xemplo, observa: "A
3'. ~
história sexual dos meninos mostra muitas vezes que sua iniciação à vida
sexual se dava com mulheres mais velhas. Com frequência criadas"32•
Freud concorda: "É sabido que babás inescrupulosas põem crianças que
choram a dormir acariciando seus órgãos genitais"l3• Freud fala da "fim-
tasia co1num que faz da mãe ou babá uma sedutora", e observa que a
"sedução real [ ... ] é bastante comum; é iniciada por outras crianças ou
por alguém que se encarrega da criança e quer acalmá-la ou pô-la para
dormir ou fazê-la dependente"34•
Isso sugere que as relações de poder entre as mulheres da classe tra-
balhadora e os jovens sob seus cuidados não eram idênticas às relações
de poder entre as criadas da casa e seus empregadores adultos. Se as
crianças tinham poder social potencial sobre as criadas no lar, parece,
por muitos relatos, que as criadas exerciam considerável poder e influên-
cia sobre as crianças. Muitas das mulheres, parece, iniciavam os encon-
tros sexuais. Não é de todo improvável que jovens mulheres cheias de
desejos sexuais, barradas do intercurso fora do lar, tenham cedido a for-
mas prazenteiras de vingança física e de poder sobre as meninas e me-
ninos sob sua guarda, de maneira que ofereciam compensação à sua su-
jeição diante dos adultos na família e diante da sociedade como um 1
todo. Isso não contradiz as relações muito reais de submissão que man-
tinham as domésticas sob o jugo de seus senhores e senhoras. Mas, ao
afinnar o domínio s~~al e psicológico sobre as crianças, ou criar genu-
ína dependência emocional, essas mulheres poderiam ter negociado
oportunidades de reconhecimento, controle ou vingança.
Em privado, babás e governantas tinham poder considerável para
julgar e punir aqueles de quem cuidavam. Lorde Curzon, vice-rei da
31. Ida Bauer, a "Dora" de Freud, lembra suas intimidades sexuais com a governanta da casa.
Freud, Dora: An AnalysiJ ofa Cau ofHysteria (Nova 'rork: Collier Books, 1963), p. 78.
32. Eugçne S. T albot, Degmeration: lts Cauus, Signs and Rmdts (Londres: Scott, 1898),
P· 361.
33. Freud, 1ne Standard Edition of the Complete Psychohgical mirks of Sigmund Freud, trad.
James Srrachcy (Londres: lhe Hogarth Press, 1905, vol. VII), p. 1So.
34. Idem, "Fem:tle Sexua!icy". in Tlu Standard edirion . . . (1931, vol. XXI), pp. 232-3.
138
.~·""
•c:;wassa• tas criadas - q>oder t dtujo 11a mttrdpolt imperial
.
l
nos amarrava longas horas numa cadeira [ ...] nos prendia no escuro [ ... ] nos
forçava a confessar mentiras que nunca disséramos, pecados que nunca co-
1
metêramos e então nos punia selvagementc pela confissão!>.
l
vida. \i\Tinston Churchill, por exemplo, registrou como sua amada babá,
Mrs. Everest, foi sua "mais querida e íntima amiga durante os 20 anos
que ele tinha vivido". Até a morte dela, como disse o filho dele, ela con-
tinuou como "a principal confidente de suas alegrias, seus problemas e
J esperanças [ ...] 36". Em tributo talvez inconsciente à influência que ela
l
JS· Apud Jonathan Gathome-Hardy, 77,, Riu and Fali oftht British Nanny (Londres: 'Wei-
denfcld and Nicolson, 1972), p. 17. A babi malvada de Sinisttr Strut, de Compton
MacKenzie, era provavelmente baseada nas lembranças de sua própria babá.
36. Apud idem, op. cit., p. 26. Como muitas crianças, Churchill dormia no quarto de sua
babá: era lavado, trocado, v.::stido, alimentado e educado por ela e, durante os primeiros
oito anos de sua vida, praticamente nunca deixou a companhia dela. A babá Everest es-
colhia as roupas de ChurchiU, seus amigos, seus li\Tos, sua comida e até as escolas que
frequentava.
139
Couro impuial
FREUD E A BABÁ
Abjeção e classe
37. Como observa Nancy Chodorow: "Ser mãe, entio, nio é apenas dar um filho à luz - é 1
ser uma pessoa que socializa e nutre. É ser uma encarregada principal". 1h, R,p,od11aion
of,\1othtring: Psyrhoanalysis and the So<iologyofGmdn- (Berkeley: University of California
Press, 1978), p. u.
38. Cathome- Hardy, 1he Riu and Fali ofthe British Nanny, p. 78.
39. Apud ibidem.
40. Mary Lutyens, To be Young: Some Chaptn-1 of/lutobiography (Londres: Rupert Hart-Da-
\~S, 1959), p. 15.
·c:Jlrtassa·, as criadas - Poda, d,ujo 11a nutrópolt impaial
4t. Jím Swann, "Ma ter and Nanny: Freud's Two Mothcrs and the 0iscovcry of thc Ocdipal
Complcx", Ameriran Imago: A Psichoanalyti,Journal (Prima,·cra, 1974), pp. 1-64. Ver tam-
bém Kcnneth A. Grigg, -Ali Roads Lcad to Rome': The Role of thc Nursemaid in
F'reud's Dreams~.fourna/ ofthc Ameritan Psychoanalytir Assoâation 21 (19n), p. 109.
42. Carta a Flicss, 3 de outubro de 1897, in Jeff'rcy lVloussaicff'Masson (trad. e org.), 7he Com-
?lct, Ú/ftn ofSigmund Freud to Wilhdm Flim, 1887-1904 (Cambridge: Harvud Univcr-
sity Press, 1985), P·. 268.
43. Ibidem.
44. Swann, ~Mater and Nanny... ", p. 17.
45. Freud, Carta a Fliess, 4 de outubro de 1S97, in 1lx Compl<te Úllm... , p. 269.
46. Ibidem.
Couro imptrial
47. Ibidem.
142
·c:;wassa· t as triadas - Podu t dutjo na mttrópolt impaia/
46. Idem, "From the History of an lnfuntile Ncurosis·, 1ru Standard Edition ... (1918 [19r4),
vol. XVII), p. 119.
49. Ibidem.
50. Ibidem.
51. Idem, Caria a Flicss, ln 77,e Compltu úttm .. . , p. 269.
Couro impaial
145
Couro impuial
54. Ver Steven Marcus, 11,e 0th" ViC11Jrians: A Study of &xuality anJ Porn1Jgraphy in MiJ-
Nínetunth Century England (NO\?. York: New American Libí3l), 1964), pp. xiü, 221.
55. Freud, Carta a Fliess, in Colle~ted útt"s... , p. 269.
56. I dem, op. cit., 15 de outubro de 1897, in Collet!ed ÚIUn, p. 271.
57. Ibidem.
"cJl,tassa· tas criadas - 'Poda t du,jo na mttrdpolt imptrial
"E U = ELA"
A identificação de Freud co m o fem inino
Proponho que a equação "Eu = Ela" evoca uma contradição que Freud
lutou para resolver ao longo de sua carreira. A figura da babá levanta um
problema crucial na teoria da identificação de Freud. Para Freud, como
argumenta Swann de maneira brilhante, a mãe é identificada como um
objeto a possuir e controlar mais que como um ideal com que se identi-
ficar. A relação com a mãe é uma relação dependente de objeto. "Na
teoria da identificação de Freud, há um conjunto de contradições que ele
tenta resolver alocando a dependência da relação-objeto às mulheres e a
identificação ativa aos homens, separando o que é um complexo proces-
so dinâmico em duas categorias distintas da relação de identidade por
gênero"S8• Na teoria de Freud, a perda da mãe é vista não como perda de
uma das relações pessoais mais profundas que se pode ter, de que se
pode ser dependente para a própria vida, mas como a perda de um obje-
to. As mulheres pertencem ao reino da escolha de objeto mais do que ao
reino da identificação social. D e fato, identificação com a figura da mãe
como patológica e perversa, a fonte de fixação, impedimento e histeria.
Mas a disjunção teórica entre as mulheres como objeto de escolha e as
mulheres com quem é desejável identificar-se é desfigurada pela equação
do sonho "Eu = Ela", que sugere uma identificação muito mais compli-
cada com a babá como agente social. O desejo da criança de ser como a
poderosa e desejada babá/mãe (e de ter bebês, corpos femininos e poder)
é fi rmemente rechaçado na teoria, mas volta à tona insistentemente cm
sonhos na época em que a teoria está sendo elaborada.
Nun1a carta anterior a Fliess, a 31 de maio de 1897, Freud descreve
um sonho em que ele subia uma escada "vestindo muito pouca rou-
pa", quando se sentiu eroticamente excitado e "paralisado" ao desco-
brir que uma mulher o seguia escada acimas9. No entanto, quando
mais tarde Freud registra o sonho no livro Interpretação dos sonhos,
tem lugar uma mudança curiosa. Na nova versão, a mulher é identi-
ficada como uma criada e, em vez de subir a escada atnis de Freud,
ela a desce cm direção a ele. Semivestido, Freud está na posição con -
vencionalmente "feminina" de ser d espido e julgado, enquanto a cria-
da é a voyeuse observando sua vulnerabilidade exposta; da assume a
posição masculina da altura superior, descendo em direção a Freud,
inteiramente vestida60• Desta vez, Freud registra sua resposta não
como excitação erótica, mas como ansiedade.
Em conjunto, as duas versões revelam as duplas contradições de
classe e gênero que marcam a relação de Freud com a babá: entre mu-
lheres que são identificadas por seu trabalho (criadas) e as que não o
são; entre a hierarquia de classe dos andares de cima e de baixo dentro
do lar; entre a exci~a5ão erótica e a inadequação erótica; entre homens
com o poder social de olhar para mulheres semidespidas e babás com
o poder social de olhar para meninos semidespidos. Em ambas as ver-
sões, a incapacidade de Freud de resolver as contradições é expressa
como paralisia e impotência. l\llas a segunda versão, pública, termina
não com a criada subindo atrás de Freud (na imagem vitoriana, padrão
da evolução social, mas descendo para seu "mundo inferior", enquanto
a excitação erótica de Freud é negada e,apagada. Uma vez mais, a ver-
Freud está tão voltado a demonstrar que a obsessão do •Homem Lobo" com
Grusha é o significante de uma cena primitiva cm que o "Homem Lobo" viu
seu pai fazendo amor com sua mãe que acaba sendo forçado a minimizar a
figura da criada. Grusha (o objeto "sujo") só será considerada quando retornar
à cena do romance familiar61 •
149
Couro imptrial
A REINVENÇÃO DA
FA.MÍLIA DO HOMEM
63. Jane Gallop observou que a babá constituía a maior ameaça à homogeneidade da família.
~A família nunca foi, em qualquer dos tc.xtos de Frel!d, completamente separada de ques-
tões.de classe econômica... [A babá) é tão parte da família que as fantasias da criança (o
inconsciente) não distinguem 'mãe ou babá-. 7ht Dalighttr's Seduction: Ftminism and Psy-
choanalyiií (lthaca: Cornell University Press, 1982), p.144.
64. FicuJ, Drm,: An Anulysis afu Cusc afHysttriu, I'· 78.
150
º,:i\,(assa•, as aiadas - Podtr, d,ujo na mttrdpole imptrial
151
mensão de classe. Antes, o gênero é uma categoria articulada, construída
através da classe e pela classe.
Freud era incapaz de resolver essa tríade inadmissivelmente enreda-
da de classe do desejo sen1 admitir uma completa análise de classe cm
sua teoria. Incapaz de atribuir a primeira força originadora de desenvol-
vimento psicossex"Ual a uma mulher da classe trabalhadora (como era
compelido a fazer pelo insistente material de seus próprios sonhos), em
lugar disso ele reprime a criada e desloca seu poder e sua identificação
com o poder dela para uma identificação com o pai. Dessa maneira, na
elaboração final da teoria de Édipo, a babá desapareceu. No lugar dela,
Freud recoloca a mãe como objeto do desejo e o pai como sujeito do
poder social e econômico e, assim, violentamente fecha a porta do ro-
1nance familiar para esse intrusivo e inadmissivelmente poderoso mem-
bro da classe trabalhadora feminina. Finalmente, a entrada da esposa na
tríade feminina permite que Freud, através do contrato de casamento,
domine, co1no marido, tanto a mãe como a criada. Assim, a elaboração
ele Freud da teoria que faria seu nome e fama foi assegurada a expensas
de uma repressão: o apagamento da trabalhadora doméstica co1no pri-
meira originadora da identidade sexual e econômica. Como diz Rob-
bins: "foi em grande parte graças ao sucesso dessa teoria que a intromis-
são maciça do desejo pelas criadas nas vidas das classes que as mantinham
nesse período não atraiu mais atenção"67•
Assim, a teoria freudiana ortodoxa tem uma premissa numa visão da
família que exclui a presença histórica da trabalhadora doméstica, ou a
define como acidente irrelevante. Mas, se restaurarmos o que Freud
intencionalmente reprimiu, surge um quadro inteiramente diferente. Se
a primeira identificação (sexual e psicológica) da criança é com uma
mulher da classe trabalhadora e então duplicada e contraditada pela
presença da mãe biológica, pode-se argumentar que o cenário da indi-
viduação será alterado significativamente; o menino tem de separar-se 1
de duas mulheres, de maneiras diferentes. Essa duplicação faz surgir
uma fragilidade e a incerteza da identidade, que é resolvida ou pelo ::
152
"úWassa" tas criadas - Podtr t deujo na metrópolt imperial
GÊNERO E CLASSE
Uma narrativa social
t
1
!,
t
68. Sandra Gilbert e Susan Cubar, 1he Madwoman in the A11i,: 1ht Woman Writer and the
Nin,lunlh Cmtury Litn-ary lmagination (New H2vcn: Y:ue Univet$Íty Prcss, 1979).
153
Couro impaial
.
69. l'\ina Auerbach, Tht fli>man and tht D t mon: Thl Lift of a Viaorian Myth (Cambridge:
Harvard Univcrsity Press, 1982), p. 7.
70. Ibidem.
•,:J,,tassa· e as criadas - Poda e deujo na metrópole imperial
nino. Para Gilbert e Gubar, a fuga dos caixões de vidro do texto patriarcal
envolve estilhaçar o espelho e libertar as mulheres da superficie de cristal,
matando anjos e demônios e libertando o "verdadeiro eu" na incandes-
cência de un1 futuro transfigurado. A tarefa emancipadora continua esté-
tica: a escritora "só pode fazer isso revisando os textos do Criador"7'.
Também Auerbach vê a libertação das mulheres como se ocorresse atra-
vés de um ato de vontade feminina transcendental e essencialmente esté-
tica. Mas a dinâmica da transfiguração continua na bruma. A visão ro-
mântica de um eu feminino essencial que explodiria numa chuva de
cristal de palavras e flutuando dos confins do texto-espelho continua
sendo un1a visão estetizada.
Além disso, o heroísmo de uma consciência autogeradora, transcen-
dente e iluminada, sem apoio de qualquer coisa que não uma vontade
emancipadora de autocriação e de uma estética da metamorfose, é es-
sencialmente uma ideia de classe média do século XIX, fabricada por
uma classe ansiosa por criar seu próprio discurso de legitimidade sem
ser capaz de recorrer à ideia de história ou de tradição (que era um:l re-
serva de classe mais baixa ou mais alta). A classe média tinha de afirmar
a liberdade de criar seu ser a partir de sua própria energia de autoge-
ração. Para Auerbach, o passo das mulheres para fora da "moldura im-
posta" do patriarcado requeria um ato de vontade transcendente, libe-
rando a "eterna energia do caráter como metamorfose perpétua"i'l. Mas,
a menos que as contradições históricas e de classe que animam a imagi-
nação patriarcal vitoriana sejam levadas a sério, essa transcendência es-
tética ostentada continuará inacessível para a maioria das mulheres
como erarn os mitos masculinos vitorianos de autonomia de classe mé-
dia para a maioria das mulheres. O "futuro liberado" de Auerbach con-
tinuará resolutamente acorrentado para a vasta maioria das mulheres no
mundo - pobres e analfabetas - como o eram as variadas visões do
romantismo masculino. Precisamos, antes, retornar às contradições de
classe que deram farma ao espelho patriarcal.
155
Couro impuial
O FANTASMA NO ESPELHO
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157
Couro imperial
CRUZAMENTOS PERIGOSOS
Trabalho e dinheiro
73. Hudson, Munby. .. , p. 16; Robbins, 1he S<N.Jant's Hand... , p. 2; Davidoff, "Class and Gen-
der... ,» p. 41.
74. Munby, "Diary", in Hudson, Munby..., p.134.
75. Eric Hobsbawm, lnduury and Empire (Harmondsworch: Pc:nguin, 1968), I'· 85.
ºv'Waua· e as criadas - Poder e deujo na metrópole imperial
l
riLuais de flagelação a que os vitorianos era111 Lão afeiLo:;.
As mãos eram os órgãos cm que a sexualidade e a economia vitoria-
nas literalmente se tocavam. Como disse Robbins: "O que produz o
toque das mãos é o trabalho" 77• A atividade de tocar as crianças era tra-
balho, ainda que mal pago. Mas o que também produz o toque das mãos
é pagar pelo trabalho. A mão do senhor toca a da criada nu1n momento
} 159
Couro imptrial
160
"ú\,!assa • t as criadas - 'Podtr t desejo na me/rópoü imptrial
CRUZAlvlENTOS PERIGOSOS
Abjeção de classe e de gênero
161
Couro imperial
dela" 8J. Em outra ocasião, ele nota como gn1pos de faxineiras retacas e
com os rostos pretos faziam com que uma tropa de homens cavalgando
com luvas perfeitas e ociosa arrogância parecessem positivamente femi-
ninos em contraste84•
Hudson foi o primeiro a notar a obsessão de Munby com o que con-
siderava os traços "masculinos" das trabalhadoras8S. Uma camponesa
maciça, sólida e de costas largas, "alta e forte como um homem", era uma
criatura digna de ser vista", exultava ele. Ele lamentava a moda que fazia
"efeminadas" as leiteiras. Comentaristas notaram seu interesse nas botas
masculinas usadas pelas trabalhadoras. Avidamente Munby anotava e1n
seu diário encontro com trabalhadoras em que ele se sentia deliciosa-
mente feminino. Numa viagem a Devon para observar mulheres que
escalavam rochedos com cordas para coletar mariscos, ele observou com
certo prazer: "Eu, o homem do grupo, fui deixado numa posição ridícu-
la; um espectador inútil desse vigoroso atletismo"86 • Noutra viagem à
costa para olhar as coletoras de mexilhões que revelavam seus "membros
dourados e nus", ele é isolado pela maré e, outra vez sem resistir, tem de
abandonar seu "orgulho masculino" para subir nas costas de uma forte
pescadora, que o carrega pela água. Em outra entrada no diário, ele re-
gistra ser resgatado da importunação de prostitutas por uma forte jovem
vendedora ambulante irlandesa. ••
As descrições de Munby dos traços "masculinizados" dessas mulhe-
res são tão insistentes que fica difícil lembrar que essas distinções de
trabalho com base··oó gênero eram invenções sociais recentes à época.
Era ainda um desenvolvimento relativamente recente nos relatos popu-
.
l
{
lares e científicos definir como "assexuadas"as mulheres que faziam tra-
balho servil. l\.1as esses discursos eram cruciais para a vida de fantasia de
Munby, pois nessas mulheres ele podia desfrutar dos traços masculinos
83. Ibidem.
84. Idem, op. cir., p. 194.
S5. Idem, op. cit., p. 71.
86. Idc:m, op. c:it., p. 256.
162
"cJ\,lassa' tas criadas - P odtr t dtst}o na m t trdpoü imptrial
pelos quais ansiava sen1 pôr em perigo seu próprio sentido prescrito de
masculinidade.
Como sempre, era a transgressão do gênero que o fascinava. O que o
extasiava era o espetáculo dos limites ultrapassados - aquele momento
excitante cm que a mulher se confundia com o homem e o homem com
a mulher. O espetáculo voyeurístico do travestismo o prendia irremedia-
velmente. Ele viajou centenas de quilômetros pela Grã-Bretanha e pelo
continente à procura de trabalhadoras que se vestiam como homens. Foi
a Yorkshire para olhar a maneira como as pescadoras prendiam as saias
cm volta dos joelhos, improvisando calças. Em 1861, viajou 300 quilôme-
tros para Devon simplesmente para observar mulheres que recolhiam
mariscos com calças de algod~o. As mineiras de Wigan, que usavam
calças e mal eram distinguíveis de homens, exerciam uma atração irre-
sistível sobre ele.
Travestis ocupavam um lugar especial em sua vida. Ele pôs um anún-
cio no jornal procurando notícias de uma "marinheira" acerca de quem
tinha ouvido e ficou "extremamente excitado e desesp eradamente ansio -
so" a ponto de faltar ao trabalho, caso ela o chamasse87. Visitou uma
delegacia de polícia para assistir ao exame de uma criada de todo serviço
que viajava disfarçada de homem, fumava charutos e namorava sua se-
nhoria88. Viajou para Strood com um superintendente de polícia para
encontrar um "Richard" Bruce, mulher que usava roupas de homem,
trabalhara como estivadora, marinheira e balconista, vivia em alojamen-
tos masculinos e fora presa a caminho de Dover para trabalhar como
professor na França. Os diários registram em detalhe o choque de pra-
zer que esses exemplos de confusão de gênero sempre lhe provocavam.
Um jovem alto, em trajes das terras altas, com as pernas nuas dos joelhos
aos tornozelos (sempre fonte de excitação para Munby) acaba sendo
uma mulher. Um forte acrobata sem qualquer coisa de "fraco ou femini -
no" é uma menina (Figuras 2.5, 2.6) 89•
F.
90. Ibidem.
91. Idem, op. cit., p. 175.
9:. Idem, op. cit., p. 286.
•c7vtassa• e as , riadas - <pqder e deseja na mttrópqfe imperial
1
Couro imp~rial
uma e outra vez, pois oferecia-lhe uma arena controlada (ela mesma no
limiar da sociedade) em que as perigosas ambiguidades de gênero po-
diam ser representadas e administradas pela troca de dinheiro. A troca ele '. '
•
dinheiro era um momento necessário na cena, pois, pela troca ritual
de dinheiro, a perigosa troca de gêneros podia ser contida. Munby dava
ritualmente a mulheres trabalhadoras um punhado de moedas, e a troca
confirmava sua fantasia de domínio econômico sobre um espetáculo que
de outra maneira poderia ter sido perigosamente emasculante.
O que quero dizer aqui é que era só por referência ao discurso da
degeneração e do trabalho das mulheres que Munby podia conferir às
1nulhercs trabalhadoras esses atributos "masculinos". Com o discurso
sobre a degeneração, quanto mais servil o trabalho pago que uma mu-
lher fazia, tanto mais ela seria masculinizada e assexuada; tanto mais
ela era uma raça à parte. Ao ~esmo tempo, a própria história psicodinâ-
mica de Munby oferece um relato sugestivo da dinâmica doméstica de
classe subjacente ao discurso da degeneração e da identificação de traba-
lhadoras brancas com os negros.
166
•cJWaua· tas cri11das - 'Podtr t dtstjo na mtlrdpolt imptrial
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Figura 2.9 - A racializafáO da difom;a dt dasst.
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Figura 2.10 -Ahjerão: o Umíwl objeto FiKWa 2.u - O es/Joro de Boompin' Nelly,
do dtsefo. Eshofo de Munhy de 1i mamo uma mineira.
com a carwâra.
Consideremos agora outro esboço (Figura 2.10). Outra vez, duas fi-
guras se encaram. A figura à direita é uma carvoeira, sua aparência mui-
to semelhante à figura no esboço anterior. Outra vez, o rosto está escu-
recidQ e com um capuz, os ombros volumosos, sob um casaco masculino.
As grandes coxas, entreabertas, vestidas em calças de homem esfarrapa-
das, voltada para melhor mostrar o torso quadrado. lVlas à sua frente,
onde a dama do outro esboço ficava, agora est:i o próprio Munby. Em
168
ºú\l(assa • e as criadas - 'Poder e deujo na metrdpolt imperial
contraste com a figura "masculina" à sua frente, sua figura assume uma
aparência sutilmente feminina. Seu perfil é aquilino e pálido, nervoso e
"bem nascido". Sua mão, delicadamente afilada, como a da dama no
esboço anterior, está estendida e apoia-se suavemente no muro da ponte.
Seus pés, con10 os da dama, são menores que os da carvoeira e pontudos.
Sua aparência tem uma aura de fragilidade, uma vulnerabilidade quase
de inválido ao lado do volume pesado da carvoeira. A notável analogia
entre os dois esboços revela uma espontânea lógica do desejo. Em ter-
mos da forma e..xterior do corpo, Munby revela u,na identificaçao secre-
ta con1 a classe alta feminina em relação às masculinizadas mulheres da
classe trabalhadora.
Há outra dimensão visível nos esboços que não foi notada por ou-
tros comentadores. Ainda que a carvoeira seja a encarnação da ambi-
guidade de gênero, ela também representa um cruzamento racial, pois,
à parte sua "masculinidade", sua característica mais notável é sua "ne-
grit1.1de"96. Ela apresenta uma caricatura grotesca dos estigmas da dege-
neração racial: sua testa é achatada e curta; os brancos de seus olhos
encaran1 tudo g.rotescainentc de seu rosto preto; os lábios são artificial-
mente cheios <: pálidos. Seu pescoço afunda-se nos ombros; suas mãos
são simiescas, negras e improvavelmente grandes; as canelas são curtas.
O esboço de l\1unby de Boompin' Nelly revela estigmas semelhantes
~ (Figura 2.u). A figura é inteiramente negra; ela senta curvada e sorum-
•
bática, com os braços colossais apoiados nas enormes pernas, curtas e
afastadas.
0!1al é o significado desta terceira e insistente narrativa da raça?
l\llunby se refere muitas vezes à estranheza "racial" das mulheres da clas-
se trabalhadora. Ele toma nota especial das faxineiras "de rosto preto";
chama as mulheres de "boas coolies"97 , e se refere com frequência ao "tra-
96. Davidoff comentou sobre a equivalência das criadas com sujeira e poluição; a cquivalên·
eia de sujeira com negritude; e da negritude com sujeira, pecado, baix~a e fciura dentro
de uma longa tradição no Ocidente. E ela nota o simbolismo ampliado depois do século
XV1 com o continente negro e a escravidão. Mas há mais em jogo do que a simples evo-
cação de uma longa tradição simbólica. Op. cit., p. 44.
"·
.. 97. Munby, "Oiary", in Hudson,Munby... , P· 174•
Couro imp~rial
balho negro" das trabalhadoras (Figuras 2.12, 2.20). Seu interesse insaci-
ável em inversões de gênero é incendiado quando ele aprende que na
África as mulheres são guerreiras, políticas e também trabalhadoras e
carregadoras de pesos98• Ele fica intrigado com as mulheres que, à época,
viviam disfarçando-se como menestréis negras e dava-lhes dinheiro por
sua coragem de escurecer o rosto (Figura 2.21)99. Assim, os perigosos
·•
cruzamentos de gênero e classe são negociados projetando sobre eles a
retórica da raça. Um dia, ele registra uma ida à Sociedade Geográfica
para ver um grande gorila empalhado e evoca a irresistível analogia entre
as trabalhadoras e os macacos: as mãos do gorila, de quatro a cinco po-
legadas de largura, lembram-lhe as mãos de Arnelia Banfield, uma cria-
da do campo, e de outras trabalhadoras que viu'ºº .
·.~......
..
'l
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170
•c.7vtassa • e as criadas - 'Poder e desejo na metrópole imperial
- ...
Figura 2.r3 -A racializa;ão da Figura 2.r4 - Mulher defundição:
diftrm;a sexual o capuz como máscara-fttiche.
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Figura 2.20 - Rafa romo fttirhe
.....
'
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172
'cJ\'(assa· tas criadas - Podtr t dtstjo "ª mttrópolt imptrial
IMPERIALISMO E MINERAÇÃO
...
101. Pecer Fryer, Staying Powtr: 7he Hütory ofBlad:: People in Britain (Londres: Pluto Press,
1984), P· I.
102. Idem, op. cit., p. 10.
173
Couro imptrial
174
~ ·cJl,[aSJa· f as criad as - 'Podu t dntjo na mttrdpolt imperial
1
j
po, colonos e plantadores brancos manifestavam seus temores de per-
der o controle sobre a propriedade e o trabalho, num discurso obses-
sivo sobre a ameaça de manchas no sangue pelos casamentos mistos.
Esse temor à miscigenação nas colônias alimentava um discurso an-
I
1
sioso e vituperativo sobre a perigosa inclinação das mulheres brancas
pelos negros. Nos anos 1780,James Tobin observou a "estranha par-
cialidade que as ordens mais baixas de mulheres mostravam en1 rela-
ção a eles"'º7•
A associação que Munby fazia entre mulheres da classe trabalha-
dora e africanas estava, assim, longe de ser uma idiossincrasia. Ao
contrário, ele se apoia numa associação encontradiça e bem estabele-
cida que, por sua vez, se funda nos suportes econômicos da Revolu-
ção Industrial. O significado mais profundo da dimensão racial em
sua vida de fantasia pode ser mais bem explorada por referência às
mineiras de Wigan que o levavam a sair de Londres para vê-las tra-
L balhar, de calças e sujas, extraindo laboriosamente da terra o carvão
1
da Grã-Bretanha.
•
GÊNERO E MINERAÇÃO
Durante mais de 30 anos, Munby viajou para o Norte para ver as minei-
ras de Lancaster "em sua sujeira". Mas seu fervoroso interesse por essas
mulheres era mais que um capricho privado, pois. à medida que o século
avançava. as mineiras viravam o centro de um debate feroz sobre o tra-
balho e a sexualidade femininos. Mulheres tinham trabalhado nas minas
de carvão por séculos, na maioria das vezes como "extratoras" nos notó-
rios arreios e correntes com que puxavam as barricas de carvão através
de túneis estreitos e encharcados - em certos lugares carregando o car-
vão em cestos às costas, em escadas íngremes, até a superfície'º8• Em
1800, trabalhadores britânicos extraíam da terra 80% de todo o carvão, e
1 75
Couro imperial
109. Allan Sekula, Photography Again11 tht Grain: E11ays and Photi, l~rh - 1973-1983
(Halifax: Press of rhe Nova Scoti:1 College of Art and Design. 1984), pp. 193-268.
110. Idem, op. cit., p. 204.
m. Ibidem.
112. Ibidem.
113. Ibide m.
1 77
Couro imp,rial
RAÇA E O POLICIAMENTO DO
TRABALHO FEM[NINO
I
y
•.
radores sociais. O Morning Chronicle descreve as descobertas da Comis-
são de Emprego de Crianças como um "livro de viagens a um remoto
país bárbaro"'".
De longe o maior ultraje era relativo à dessexualização das mulheres.
Como as minas representavam a dominação técnica e sexual da nature-
za e os mistérios da metalurgia e do dinheiro, a presença de mulheres
penetrando profundamente na terra, manejando enormes e fálicas pás
provocava grandes ansiedades sobre o desregramento de gênero. O fato
de que homens e mulheres trabalhassem juntos era um fato "bárbaro
demais para ser tolerado". Essa ansiedade estava metonímicamente in-
j
110. Idem, op. cic., p. 31.
111. Idem, op. cit., p. 45.
1u. 17,e Morning Cl,ronicle, 7 de maio de 184%.
t 179
Couro impuial
180
"cJ\l(assa• e as criadas - Poder r deujo na metrdpolr imperial
181
Couro imperial
O IMPERIALISMO
E A MULTIDÃO URBANA
126. A inquietação expressa pelos homens era também um índice da resistência das mulheres.
Havia relatos ansiosos de mulheres enfrentando homens, e fortes o suficiente para ven-
cer. As mulheres eram descritas como militantes e dadas ao pugilato, resistindo violen -
tamente à c.xpulsào das min~s. De fato,John observa que parte da razão por que se cri- r
!
ticav:i que as mulheres usassem roupas de homem era o fato de que essas roupas tornavam
mais fácil para elas, quando barradas das minas, escapar à detecção pela polícia e pelos
inspetores.
127. Ver Susanna Barrows, Distorting Mirnm: Visions ofthe Crowd in Late Nintltmth Cm-
tury Frunu (New I hvcn: Yale: Univc:rsity Prc:ss, 1981).
182
•v~lassa· e aI criadaI - 'Poda e deuj1> na murópole imperial
t
1
minantemente masculinas. O comportamento masculino na multidão,
l
dizia-se, copiava comportamento social típico de mulheres. Tarde, por
1
exemplo, via a "volubilidade" da multidão, sua revoltante "docilidade",
sua "credulidade", e seu "nervosismo" como definitivamente femininos.
"A multidão", insistia ele, "é feminina, mesmo quando é composta, como
é geralmente o caso, de homens"128• Na multidão, a masculinidade cai na
forma degenerada feminina da raça. Tomando feminina a multidão
masculina, a linguagem do gênero tornou-se um discurso regulador para
a administração da classe.
Ao mesmo tempo, porém, como mostrou Barrows, a imagem da
multidão feminina ameaçadora refletia a genuína paranoia masculina
sobre insurgentes demandas femininas por educação, sufrágio e traba-
füo. Barrows vê a multidão como uma condensação de temores, um
amálgama de paranoias, distorções e hipérboles: "Tais padrões de distor-
ção e hipérbole lembram o processo que Freud mais tarde descreveu
como central tanto para o comportamento neurótico quanto para o 'tra-
balho do sonho"'129. Como imagem liminar exemplar, a multidão entrou
no reino do fetiche.
A imagem da multidão era também uma resposta a ameaças muito
reais da subclasse. Os anos 1880 e 1890 foram marcados por ondas de
greves de estivadores, demonstrações de massa, ataques anarquistas e as
revoltas de Trafalgar Square. As filiações sindicais aumentaram e a Grã
Bretanha assistiu ao surgimento de um Partido Trabalhista indepen-
dente. A imagem fetiche da multidão como degenerada era uma medida
das ansiedades muito reais da classe dirigente em relação à resistência
popular, e também um elemento crucial para legitimar o policiamento
de comunidades da classe trabalhadora militante. Definida como para-
digma urbano do anacrônico espaço tornado feminino, a multidão podia
ser legitimamente submetida à ação do Estado e às tecnologias regula-
doras do progresso.
183
Couro imperial
130. George Godwin, London ShadtrJJs, p. 1. Ver Peter J. Ke:iting, Tht Working Clasm in Vfrto-
rian Fiction (Nova York: Barnes and Noble, 1971), capitulo 2.
131. Ver Oeborah Epstcin Nord, *The Social Explorer as Anthropologist: Victori:in Tr:ivcl-
lers Among thc Urban Poor~, in \Villi:im Sharpe e Leonard Wallock {orgs.), Visioru oJ
tht Modem City: EHays in History, Art and Liuraturt (Nova York: Columbia Univcrsity
Prcss, 1983).
132. Ver Kcating, 77,, Worlâng Ct....,cs... , capítulo, 1 e •·
•vrwassa· e as criadas - Podtr < d,ujo na m<trópol, impuial
EXPLORADORES URBANOS
Vigilância filantrópica
Em meio aos anos 1880, tomou forma uma nova era no "descobrimen-
to" do East End. Keating observa que os últimos "e:...-ploradoresn sociais
vitorianos diferiam dos e::scriton:s autcriures na "quase total ênfase nos
cortiços e nos trabalhadores do East Endn - e não em l\tlanchester,
'
digamos, ou em Liverpool'J•• Por que precisamente o East Em!? Outras
' áreas de Londres eram igualmente pobres e desesperadas, mas o East
End podia servir melhor em termos simbólicos. Espalhando-se através
t
'•
do Tâmisa, desembocando no mar, o East End era o canal para o impé-
rio - um espaço liminar, exótico, mas muito próximo, na cúspide da
indústria e do império.
Com base na narrativa do progresso imperial e nas jornadas para o
interior, jornalistas, assistentes sociais e romancistas viam os cortiços do
East End- na linguagem do império e da degeneração - como "pân-
tanos" e "selvas", "sombrasn, "pústulas e feridas malignas com que o cor-
po da sociedade é salpicado"'35• A densidade, tamanho e expansão dos
cortiços entrelaçados eram equiparados a selvas, e a linguagem da em-
presa missionária imperial era evocada para justificar sua invasão e sua
' sujeição ao progresso. Jornalistas e escritores que se aventuravam nos
cortiços eram vistos como missionários e colonizadores, trazendo luz à
escuridão incivilizada. A Edectic Review aplaudiu Mayhe\v, que desen-
terrou as estranhas fundações da sociedade e "as expôs à luz". Em 1890,
vVilliam Booth, fundador do Exército da Salvação, publicou um livro
• 133. Sir Robert Southey, Sir 1bomas More, or Colloquiu on the Progrm and Prosp<ets ofSodety
(Londres: Murray, 1829), p. 108.
134. Keating, 77,e u-órking C/ass,s... , p. 105.
135. George Godwin, Town Swamps and Social Bridg,s (Nova York: Humanities Press, 1972
(1S59)), p. 1.
185
Couro imperial
136. \Villiam Booth, ln Darkest England and the U11y Out (Londres: lnternational Headquar-
tcrs of thc Salvation Army, 1890).
l)i· \Valter Bcsant,A// Sorts and Conditions ofMm (No\'-a York: Harpcr, 1881), p. 18.
186
"úWaua· e as uiadas - 'Poder e deujo na metrópole imperial
138. Johannes Fabian, Time and the Other: H=i Anthropclagy il1akes its Object (Nova York:
1 Columbia Univcrsity Prcss, 1983), p. 106.
·11 139. Apud idem, op. cit., P· 217.
.r
~
f
' ,~
Couro impaial
140. Ibidem.
141. John Berger,About Loc~ing(Nova York: Pantheon, 1980), p. 48.
142. Idem, op. cit., p. 52.
143. Sckula, Photography Againsl the Gmin ..• , p. 79.
188
•cJWassa·, as criadas - Poda, d ,ujo na mrtrópolt imperial
144. "The Daguerrcolitc", Daily Chrmid, (Cincinnati), vol. 1, 38 (17 de janeiro de 1840), p. 1.
145. lhidem.
Couro imperial
146. Apud Sarah Graham Brown, lmag'1 ofJ~men: 1he Portrayal ofWomm in Photography of
the M idd/e-East, r860-r950 (Londres: Qya.rtet, 1988), p. 48.
147. Apud idem, op. cit. , p. 45.
•,:;wassa· tas ,riadas - 'Poda t drujo ,,a mttrlpolr imptrial
148. Ver 1\1aJek Allouilla, 7hr Colonial Harem (l'vlinncapolis: Minnesota Press, 1986).
149. Apud Brown, lmagu ofWomm ... , p. 7.
150. Ibidem.
151. So.id, Orimlalism (Nov:i. York: Vintage, 1978), p. 17.
Couro imperial
· 193
,.
Couro imptrial
194
•,J\,fassa· tas criadas - 'Poder e deujo na metrópole imperial
195
Couro imptrial
197
Couro imperial
do altruísta com o bem-estar das mulheres, como sugere Hiley. Sua per-
rurbação ao ver que suas "heroínas" eram vistas e exibidas por outros
homens revela a profundidade de sua necessidade emocional de manter
um monopólio de poder visual sobre o espetáculo de mulheres no traba-
lho. Além disso, a linguagem que ele usa ("invadir minha propriedade")
trai o fato de que a posse das mulheres no trabalho através de uma fan-
,. tasmagoria do espetáculo estava associada em sua vida de fantasia com
<
a posse de um privilégio anacrônico de classe - um privilégio masculi-
'
no que lhe dava participação honorária nas altas classes senhoriais. A
imagem da "invasão" de uma propriedade senhorial revela uma lógica da
1 99
3
Couro imperial
Raça, travestismo e o culto da domesticidade
..
í:
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A esposa tornou-se a chefe das criadas.
Fricdrich Engels
EM MAIO de 1854, aos 25 anos, Arthur Munby parou uma criada na rua
(Figura 3.1). O encontro foi tão casual como todos os que aconteciam
nas andanças de Munby, mas a mulher estava destinada a se tornar sua
companheira de toda a vida e esposa. Q1ase imediatamente, Hannah
Cullwick e Arthur Munby passaram a viver um intenso e clandestino
caso de amor que durou pelo resto de suas vidas. Depois de 19 anos,
casaram-se em segredo, embora tivessem vivido na mesma casa por ape-
nas quatro anos e ainda assim, na aparência, como patrão e empregada.
Tanto Cullwick como Munby registram cm seus diários que desde o
começo se sentiram destinados um ao outro'. Num certo sentido, não foi
por acaso que a criada e o advogado se encontraram na rua. Na multidão
promíscua - esse elemento permanentemente à beira da confusão so-
cial - as classes se misturam, estranhos se tocam, homens e mulheres se
encontram e se desencontram. Como escreve Benjamin: "Uma rua, uma
1. Cullwick escreve que, antes de rncontrar Munby, Deus lhe mostrara a face dele (de
Munby) numa visão de fogo. Munby também estava exultante: ~Em :6 de maio de 1854,
ela me foi trazida ... por quem trotLXC Eva para Adão". Liz Stanley, 7he Diaries ofHannah
Cullwfrk: Victorian J\1aidJer,t;ant (New Brunswick: Rutgers University Prcss, 1984), p. 1.
Munby, "Diary", in Derek Hudson, ,Wunby, i\1/an of Two WorldJ; 7he Lifa and Diariu of
ArthurJ J\,1unby 18n-19m (Cambridge: G2mbit, 1974), p. 76.
"'
201
Couro imperial
'
2. \Valter Benjamin, Charles Bauddairc a Lyric Poet in lhe Era efHigh Capitalism (Londres:
i...
Verso, 1973), p. 6z.
202
Couro impaial - <J?.gça, trawstismo e o culto da domtsticidade
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, ..• Figura 3.4 - Nada a mar a não Figura 3.5- Cullwick na faxina .
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203
C()uro imptrial
204
C()uro imperial - 'Rara, trawstismo t o culto da domtsticidad,
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... ,,,. :e.•~~. '
3. Leonorc Davidolf, "Class and gcndcr in Victorian England", in Judith l. Newton, Mary
P. Ryan e Judith R. \-Valkowitz (orgs.), Stx and Class in Womtns H istory (Londres: Rout·
lcdgc & Kcgan Paul, 1983), pp. 16·71. Ver também o CJ(cclcntc trabalho de Davidolf a
respeito das relações domésticas cm "Abovc and Bclow Stairs", New Soâ,ty 26 (1973),
pp. 181· 3, e "Mastcrcd for Life: Scrvant and Wife in Vic1orian and Edwardian England",
Journal ofSocial History 7 (1974), pp. 406-28. Estou cm dívida, neste tcJCto, com o trabalho
de Davidoff e também com seu trabalho pioneiro cm colaboração com Catherine Hall,
Family Fortuna: Mm and Womtn ofthe Englisl,Middlt Class, 178o•r850 (Londres e Chicago:
Hutchinson e Chicago Univcrsity Pcess, 1987).
• N. do 1~: Forma abreviada de "Mastcc• (senhor, patrão).
. 205
Couro imptrial
4. Munby era admirador de Ruskin, e as ideias ·de Carlyle a respeito da elevação moral pela ..1
servidão tomaram-se a base do que ele via como seu ~treinamento" de Cullwick nas lições
de submissão doméstica (ainda que ele não tivesse nenhuma intenção de aplicar os prin •
eipios de Carlyle a si mesmo).
...
206
Couro imptrial - 'R,e;a, lra vtslismo to culto da domulicidadt
208
Couro imperial - <R.g,a, trava/ismo , o culto da domtJli<idadt
5. Hudson reconhece que os diários de Munby são tanto dela quanto dele, m:ts, n:1 sequên·
eia, ignor:1 os dela e, de fato, apaga a pers~ctiva de Cullwick.
~- 6. Munby, "Diary", 19 de julho de 1894. Apud Stanley, Diariu ofHannah Cullwick ... , p. u.
Jl,,lunby tirou as descrições desses "treinamentos" de seus diários.
7. Dcrek Hudson, Munby... , p. 70.
.
fj; 8. Idem, op. cit., p. 4.
209
Couro impuial
210
Couro imperial - %;a, trav ntismo e o culto d a domesticidade
projeto que animava sua vida obscura e árdua era o projeto do reconhe-
cimento social do trabalho doméstico feminino.
Certamente não foi Munby que iniciou Cullwick no ambíguo valor
do orgulho no labor da classe trabalhadora, pois a mãe dela e sua comu-
., nidade de trabalhadores, a igreja, a escola de caridade, o vilarejo e 1\
mansão próxima já tinham conformado os fundamentos de sua identi-
dade e de suas atitudes para com o trabalho. Considerar Munby como o
único e original formador da identidade seria capitular a uma fantasia
vitoriana dominante na classe média: a fantasia da supervisão e do con-
i trole masculinos e filantrópicos sobre a vida das mulheres da classe tra-
balhadora. A relação de Cullwick com l\1unby era inevitavelmente in-
formada pela discrepância entre seu considerável poder dentro da relação
e sua impotência social fora dela, discrepância que Munby não deixava
... de explorar quando podia.
Não quero, porém, dar a impressão de que a relação de Cullwick com
Munby era de igualdade libertária e de poder mútuo; tal noção não se
s·Jstenta. Estou, antes, interessada na questão mais difícil - que tipo de
atuação é possível em situações de desigualdade social extrema. A vida de
Cullwick expressa uma forte determinação de negociar o poder numa
circunstância de grandes limitações, de maneira que levantam questões
não em relação a suas relações entre gêneros e entre classes com l\tlunby,
mas também sobre suas relações entre gêneros e entre classes com suas
• empregadoras. Dentro das casas, o peso desigual do trabalho das mulhe-
.!
res, as recriminações mútuas, o assédio de classe e as rebeliões de classe
1 tinham lugar dentro de uma combinação de afastamentos de classe e
1
2II
Couro imperial
também não foi uma heroína não ambígua da revolta feminina. Suas
circunstâncias eram constantemente duras e a colocavam em desvanta-
gem; e no entanto, dentro delas, ela se dedicou a uma permanente nego-
ciação de poder, pondo cm questão as verdades binárias de dominação e
resistência, vítima e opressor. Qyc dizer da atuação e dos desejos de
Cullwick nesses curiosos rituais?
A infância de Hannah Cullwick foi a história comum de uma meni-
na destinada por toda a vida ao serviço nas casas dominantes da Grã-
Bretanha. :Filha de uma criada e de mn scleiro, nasceu cm 26 de rnaio de
1833, na vila de Shifnal, cm Shropshire. Sua mãe, Martha Cullwick, tra-
balhava para a senhora do 1-Iall e seu pai trabalhava nos estábulos. Seus
pais serviam, portanto, ao mundo cm extinção da antiga nobreza, cm
que o poder era investido em terras, e as classes sem terra se relaciona-
vam às classes senhoriais por códigos ancestrais de dever, lealdade e pa-
ternalismo. Embora Cullwick viesse a morrer na vila em que nasceu, em
9 de julho de 1909, passou sua vida como criada entre as propriedades
rurais senhoriais e as casa!. urbanas da elite manufatureira em Londres e
Margate'3 • Nos estaleiros imperiais, nos bancos mercantis, nas fábricas e ·,
moinhos, o poder era investido como capital e nos extensos saques do
império, e a classe trabalhadora se relacionava com os novos senhores
através da dinâmica pouco confiável do nexo do dinheiro. A vida de
Cullwick saltava do mundo decadente da nobreza ao mundo ascenden-
te da manufatura industrial e, embora sua infância tenha sido co1num
em quase todos os aspectos, sua vida atravessaria algumas das mais pro-
fundas fissuras da era vitoriana.
Nascida numa cabana rústica em Shropshire, Cullwick passou a
maior parte de sua vida nas cidades, trabalhando como encarregada dos
urinóis numa estalagem, como empregada num berçário, empregada na
cozinha, ajudante de cozinha e faxineira, e uma estranha camponesa nas
enormes casas decadentes da elite vitoriana urbana. No apogeu da "mu-
lher desocupada", ela se tornou musculosa com o trabalho braçal. Desti-
nada pela classe a casar com um trabalhador, casou cm vez disso com um
•
13. Idem, op. cit., p . : . {
,,,,
!f
2.12.
Couro imperial - 'lv!ta, trawstismo e o ,ulto da domtstfridade
,.i
•., ... de sua vida seguiam a lógica de classe de suas migrações sazonais'S. Em
Londres, uma visão no fogo lhe mostrou o rosto de Munby. Em 1854, ela
voltou a Londres, onde Munby se aproximou dela na rua. Quando vol-
r·
r.-
f 14. Idem, op. cit., p. I. Para interpretações a respeito do tnbalho das mulheres e da relação
entre o trabalho das mulheres e o desenvolvimento econômico, ver Davidoff e Hall, Fa-
i--
,1~. mily Fortunn ..; Patrícia Branc2, U'omm in Europe Since I759 (Londres: Croom Hclm,
:·, 1978); Joan \V. Scott e Louise Tilly, U'omm, H'ork and Family (Nova York: Holt, Rcin-
hardt and \.Vinston,1978); Sally Alcxander, "\.Vomcn's \Vork in Nineteenth-Cen111ry
London: A S111dy of the Years 1820-1850", in Julict Mitchell e Ann Oakley (eds.), 1he
Rights and Wrongs of U'omm (Harmondsworth: Penguin, 1976); Sandra Burman (org.),
Fit U'orkfar U'omm (Nova York= St. Martin's Press, 1979); Barb:a.n Taylor, "The Mcn are
as Bad as Thcir .l'vlasters ... : Socialism, Fcminism and Sexual Antagonism in the London
Tailoring Tradc in the 183o's•, in Newton, Ryan e Walkowitt (orgs.). S,x and Class... ,
pp. 187-220; Christine Dclphy, Clou to Homt: A tl1aterialist Analysú ofWommí Oppression,
trad. Diana Leonard (Amherst: University of Massachusetts Press, 1984); e Angcla John,
By the Sweat of1htir B=: U'omm Workers at Vi<torian Coai !vlints (Londres: Routledge,
1984).
15. Munby se formou no Trinity College, Cambridge, cm 1851, no mesmo ano em que
.- Cullwick chegou a Londres, e se hospedou no Lincoln's lnn cm junho. Nos cinco anos
-·. seguintes ele viveu cm pensões e a seguir ocupou as peças do primeiro piso de Fig Trcc
Court, 6, cm Tcmple, cm 1857, onde viveu atê sua morte. Em 2 de janeiro de 1859, Munby
começou a trabalhar no escrit6rio da Comissão Edcsiástic2.
.,'
213
Couro imptrial
215
Couro impaial
216
,.. Couro imptrial - 'Rgça, trawstism~ to tu/to da domtsticidadt
O poder que Cullwick exerceu sobre Munby por toda a vida residia cm
seu talento teatral para a conversão e sua capacidade de fazer o mundo
andar para trás: mudar de criada para senhora, de esposa para escrava, de
ama para mãe, de mulher branca para homem negro. Ela era a combina-
ção perfeita, a "abençoada anomalia" que permitiu a Munby encenar em
seu próprio teatro privado de transformação os proféticos antigos con-
trastes de gênero e classe que o deixavam tanto perplexo quanto encan-
tado. Munby registra sua primeira visão dela cm seu diário:
Uma jovem camponesa, ela era, uma servente de cozinha [ ... ] Uma criatura
alta e eret~, com passos leves e firmes e pone nobre: seu rosto tinha os traços
25. Richard von Krafft-Ebing, vFrom Psychopathia Stxualu", in idem, op. cit.. p. 27.
217
Couro impuial
2 18
Couro imptrial - 'Raça, trawstismo to culto da domtsticidadt
30. As tentativas de Munby cm poS2r como um homem d a classe trabalh~dota for~m poucas
e recebidas com muita hilaridade por parte de Cullwick.
2 19
Couro imperial
220
Couro impaial - 'R.J:ra, trawstismo t o tu/to da domutiddadt
31. Robin Ruth Linden et ai. (orgs.), Again11 Sadomaso,hism: A Radi,al Ftminist Analyrú
(São Francisco: Frog in the \Vell, 1982), p. 28.
32. Homens vsubordinados" frequentemente têm um papel cm enredos feitos a partir da
"degradação~ da domesticidade feminina: varrer compulsiv-:amcnte, limpar, lavar, sob o
impacto de insultos e cahlnias verbais. Algumas dominadoi:a., rcm seus "bichinhos de
221
Couro impuial
adorava, ser banhado por Culhvick, erguido em seus braços fortes, em-
balado e atraído a seu colo farto como um bebê33• Talvez nesses encon-
tros Munby conseguisse render-se em delírio à memória de seu desam-
paro nos braços da primeira ama, ao prazer voyeurista do espetáculo de
unia trabalhadora a cuidar de seu corpo passivo e ao reconhecimento
proibido do poder social da mulher da classe trabalhadora.
A contradição de Nlunby era depender de mulheres da classe traba-
lhadora, que a sociedade estigmatizava como subservientes. Ao reco-
nhecer ritualmente Cullwick (como fez com sua babá) como social-
mente poderosa, ele podia reconhecer sua identificação infantil proibida
com mulheres poderosas, particularmente as da classe trabalhadora. Seu
fetiche de lavar os pés era um ritual de expiação que simbolicamente o
absolvia da culpa e da "sujeira", permitindo-lhe ao mesmo tempo ceder
ao espetáculo voycurista e proibido do trabalho e do poder das mulheres.
De qualquer forma, o reconhecimento do trabalho doméstico comova-
lioso era socialmente tabu e tinha de ser mediado e controlado por ro-
teiros cuidadosamente arranjados.
Em certa ocasião, por exemplo, Cullwick convidou Munby a visitá-la
en1 seu local de trabalho. Uma vez lá, ele mergulhou num estado de agi-
tação e aflição extrema. "Vê-la cm pé numa sala íntima em suas roupas
de criada e saber que ela é uma criada, e que o piano, os livros, os quadros
pertenciam à sua patroa[... ] isso eu não pude suportar"34• Ver Cullwick f
estimação" que comumente fazem seu serviço doméstico. Ver Anne McClimock, "Maid
to order.. .", pp. 207-31.
33. O fetichismo infantil de Munby é comum no S~1: "Há toda uma área de comportamen-
to desviante, chamada de 'bebezice', na qual o cliente gosta de vestir um pijama, sugar
uma boneca gigante ou um de seus seios e ser embalado". Allegra Taylor, Prostitutioit:
What sLove Got lo Do t:.1ith lt? (Londres: Oprima, 1991), p. 39.
34. Hudson, Nlunby.. . , p. 116.
222
Couro impuial - ~ ça, traw llismo , o ,ulto d a dom,11itidad,
JS· Freud, 1hrce Essays on tht 1h,ory ofSa:uality (Nova York: Basic Books, t962), p. 23.
36. Wcinbcrg e Lcvi K:imcl, S and Nl, p. 2 0.
223
Couro impuiaf
A PULSEIRA DE ES C RAVA
Recusa da abjeção
224
Couro imperial - 'R8ra, tra11nrismo e o cult~ da dom euiddade
39. \Villiam Pictt, "lhe problem of the fetish, II", Res 13 (Prim:iven, 1987), p. 34.
225
Couro impu ial
226
Couro imperial - 'J?.eça, travtstismo t o ,ulto da áomtstitidadt
41. Como Cullwick anota, ~Nunca encontrei uma criada que não tivesse vergonha do traba·
lho sujo". Stanley, Diarits ofHannah Cullwitk.. . , p. 96.
42. Idem, op. cit., p. 76.
Couro imperial
O FETICHE DA SUJEIRA
43. Mary Douglas, Purity and Danger (Londres: Routledge e Kegan Paul, r966). Ver também
Davidoff, "The Rationalitation ofHouscwork", in Diana Leonard e Shcila Allen (orgs.),
S,xual Di.,isions Jv...isiuJ (B:isingstoke: MacMillan, 1991), p. 63.
228
Couro impaial - <J?.s,a, travutismo e o culto da domtstiddadc
é suja, mas o é se estiver sobre a cama. O se.xo com o cônjuge não é sujo,
mas convencionalmente o mesmo ato com uma prostituta o é. Na cultu-
ra vitoriana, a iconografia da sujeira tornou-se profundamente integrada
no policiamento e na transgressão das barreiras sociais.
230
Couro imperial - 'R.!Jra, trawstismo e o culto da domutitidade
... ,
cional. O dinheiro, o trabalho e a sexualidade eram vistos como relacio-
,
nados entre si pela analogia negativa com o domínio da diferença racial
..
,.,1
e do império. Assim, contradições históricas internas ao liberalismo im-
.
i!ll perial (as distinções entre público e privado; trabalho pago e trabalho não
',t -~. •:\, pago; a formação do proprietário masculino individual e a negação de que
escravos, mulheres e colonizados fossem "indivíduos capazes de posse";
tntre o racional e o irracional) eram contidas pelo deslocamento a um ter-
1 ceiro termo: o termo "raça". Distinções de classe e de gênero foram des-
l ,.
J
~· locadas e representadas como diferenças raciais naturais no tempo e no
espaço: a diferença entre o presente "iluminado" e o passado "primitivo".
1 A pulseira de escrava de Cullwick incorpora traços tanto da memó-
1 ria pessoal como da histórica: seu próprio trabalho subjugado e o traba-
lho escravo sobre o qual o capital industrial se assentava. Na segunda
metade do século XVII, os negros trazidos para a Grã-Bretanha pelos
traficantes, mercadores e donos de fazendas viviam espalhados pela In-
glaterra, mas se concentravam principalmente cm Londres. No início do
1 ·. , '
século XVIII, Londres e Bristol eram movimentados portos de escravos,
e continuaram ainda por cem anos a amealhar enonnes lucros do trans-
.l porte criminoso e da venda de seres humanos. Na Grã-Bretanha, a pos-
1 se de um escravo negro se tornou emblema da nova riqueza imperial e
! anúncios com gritos e alaridos à procura de escravos fugidos mostram
l que eles eran1 "habitualmente obrigados a usar coleiras de metal rebita-
das ao redor de seus pescoços. Feitos de bronze, cobre ou prata, os cola-
res eram em geral inscritos com o nome do dono, suas iniciais, armas ou
1 outros símbolos"44 • No cortejo do Lorde Prefeito, festival anual dos ca-
1 pitalistas mercantis de Londres, os negros eram obrigados a vestir rou-
t pagens opulentas e esses colares-fetiche, exibindo em demonstrações
1
f H· Pcter Fryer, Staying Power: 1he History ofBladt People in Britain (Londres: Pluto Press,
l 1984). Os signos comerciais das rabacarias e das pensões frequentemente mostravam nc·
.1 • gros como signos de fetiche do comércio com seres humanos.. Escravos negros de famílias
! com títulos [de nobreza) eram usualmente exibidos com vestes vistosas, joias, rendas e
~l roupas enfeitadas.
;t
.f.R,,.
J .. {g
231
Couro impaial
232
Couro impaial - <J?.era, travutismo r o "'''º da domtsticidad,
e me parecia inteiramente natural pensar neles como absolutammtt acima das classes
bai.xas e que era nosso lugar cumprimentar e ficar ao seu dispor". Stanley, Diarits ofHan-
nah Cu/lwi,k ... , p. 35.
47. Qyando ela trabalha,·a fora de casa, algumas de suas primeiras lições sobre identidade
{;· eram lições de afirmação via grandes feitos de trabalho: "Ela (Mrs Phillips) sempre me
:.,li;
°41; elogia depois de cu ter limpado o chão de tijolos vermelhos com minhas mãos e de joe-
,,
lhos e ter escovado as enormes mesas brancas na cozinha. Eu p0dia limpar a sala de
jantar e o longo ha/1 de entrada e os degraus da porta e tudo isso antes do café da manhã".
Idem, op. cit., p. 74.
48. Seu motivo para trabalhar tinha sido, em primeiro lugar, agradar sua mãe. Cullwick ado-
rava sua mãe e vivia para ela, autossacrificando-se e trabalhando duro para agradá-la:
"Estava pensando como vou trabalhar e fazê-la feliz, pois ela terá todo o meu dinheiro".
Idem, op. cit., p. 82. O dinheiro que ela ganhou com trabalho duro conquistou o amor de
sua mãe e a compensou da angústia da separação. Dinheiro era o signo oculto d~ reco-
nhecimento da classe alta; ao voltar para casa, ela trocou esse simbolo pela aprovação
aberta de sua mãe.
2 33
Couro imperial
2 34
Couro imptrial - 'R.f!ra, travtstismo t o culto da domaticidad,
1
.. 54. Idem, op. cit., p. 16i.
l 55. Idem, op. cit., p. 124. Urna noite, volr.indo pasa casa, ela é abordada por três cavalheiros
bcbados que a insultam e tcnt:im aproveitar-se dela, mas ela, por sua vez, os repele e
l
ameaça ataci-los.
56. Idem, op. cit., p.n7.
57. Idem, op. cit., p. 171.
58. Ibidem.
59· Idem, op. eit., P· 173.
Couro impaial
AMBIGUIDADES DA DEPENDÊNCIA
;
64. C'Jllwick praticava a humildade menos porque significasse submissão do que porque
significava força. "Ouvi o senhor Bellow dizer uma vez num sermão", escreve ela, "que
humildad, era força". Idem, np. cit., p. 66.
2 37
Couro impaial
238
Couro imptrial - 'Rgça, travtst ism o e o culto dtJ domestfrida de
que um menino estava na escada. Então, quando Munby insistiu que ela
0 chamasse de "Senhor", e subiu para tocar a campainha para chamá-la,
ela explodiu em füria contra a violação dele das regras e a mudança uni-
lateral do roteiro. "Eu pensei: Bem isso de fato é uma exibição, e voei
pela escada co1n minha fúria no máximo grau, e Munby começou a
questionar-me por não chamá-lo de 'Senhor', pois o menino estava ven-
do [ ...] De modo que eu estava encolerizada". lVlunby tinha dessacrali-
.. zado seus rituais secretos, violando brutalmente os limites entre o teatro
':j,
e a realidade e confundindo a submissão cerimonial de Cullwick com
uma submissão real. O encanto mágico foi quebrado e Cullwick o ame-
açou com un1 ultimato: ~Disse-lhe que se me provocasse outra vez desse
jeito cu o deixaria, fosse casada ou não, pois não ligo para isso".
O trágico paradoxo da vida de Cullwick, entretanto, era que Munby
lhe concedia o tão desejado reconhecimento do valor de classe trabalha-
.l dora, mas apenas em privado. Escolher o reconhecimento público como
sua esposa (como ele queria) significava negar sua capacidade de traba-
lho, perdendo sua mobilidade social e barganhando sua independência
de espírito. Cullwick nunca escapou a esse paradoxo social, que podia
ser negociado, mas nunca resolvido individualmente. Dessa maneira, o
SIM leva ao limite a promessa liberal da resolução social pela agência
individual.
Para entender melhor o sentido do fetichismo de Cullwick, é neces-
sário explorar o contexto social cm que encontrava significado e contra
o qual se colocava com teimosa recusa. Esse contexto foi a invenção
histórica do labor do lazer e da empregada invisível.
O TRABALHO DO LAZER
'
. As mulheres sempre trabalharam - nem sempre traba-
.. lharam por salário.
•
Sophonsiba Beckenridge
.;g
.
..
'ti•
•t;
.." . Num século obcecado com o trabalho da mulher, surgiu a ideia da mu-
~
"i lher ociosa. O lugar-comum mostra a vida da mulher vitoriana como
}
2 39
Couro imperial
un1a orgia de ócio. Nalgum ponto no século XVIII, diz a estória, a roca
e o fuso foram tirados de suas mãos e todos os intensos labores do sécu-
lo anterior - a confecção de velas e de sabão, a feitura de roupas e de
chapéus, o trançado de palha e o croché de rendas, a separação de lãs e
de linho, os trabalhos com o leite e as galinhas - foram removidos pas-
so a passo para as manufaturas67. Ao final do século XVIII, escreve Wan-
da Ncff, "o triunfo da mulher inútil era completo"65. Roubada de seu
trabalho produtivo, a mulher de classe média se tornou adequada, é o
que se diz, apenas a um lugar ornamental na socicdadc69 • Ali, lindamen · ,j
1
te envolta pelo suave perfume das aquarelas e bordados leves, ela vivia 1
apenas para adornar a ambição mundana do marido, o fabricante, o ban- 1
queiro urbano, o armador70• Abrigada depois do casamento num ninho
de conforto, ela simplesmente trocara a inutilidade temporária pela per-
manente7'. Encerrada em seµ "frio sepulcro de vergonha", a virgem na
sala íntima enrubescia à vista das pernas de mesa e se retraía aos prazeres
do corpo. Seu sonolento torpor era apenas roçado por indisposições his-
téricas, por desfalecimentos e por um sem-número de criados enfado-
nhos7•. Frígida, neurastênica ou ornamental; murchando na estufa da
67. Vianda Fraiken Neff, Vi,torian Workir.g 11-ómm: An Hútorfral and Liurary St11dy of
Womm in British Industries and Proftssions, r8J2-1850 (Nova York: Columbia University
Press, 1929).
68. Idem, op. cit., p. 186.
69. "Expulsa dos laticínios, du confecções, dos estoques, das destilarias, do galinheiro, da
horta e do pomar", 'éorôo diz Margarctta Grcy, ela fechou as portas ao trabalho social e
foi para o andar superior pelo resto do século, para descansar l:inguidamente nos sofás,
com uma arrogância surda. Apud PearsaU, p. 97.
70. Neff, Victorian 11-órking Womm ... , p. 187. Seu dever, se lembrarmos o famoso e perrurba- ,.
dor ensaio de Ruskin, era simplesmente "ajudar na ordenação, no conforto e no adorno
da casa". "Ofqueens ga.rdens", in E. T. Cook e A. D. O. \.Vedderburn (orgs.), 1he Compüte
11-órks ofJohn Ruskin (Londres: 190:-1912, vol. 18), p. 12:.
71. Baldwin Brown exortava 1s mulheres a confortar seus homens "cansados pelo mundo"
num lar que fosse "como um pedaço do céu, ilumin:ido, sereno, calmo, alegre, num mun·
do não celestial". Young Mm and Maidms: A Pastoralfor the Times (Londres: Hodder e
Stoughton, 1871) PP· 38-9.
72. E. P. Hood, 1he Age and lts Ari:hituts: Tm Chapter, 011 the Englirh peoplt, in R,lation te the
Times (Londres: 1850, 1852), apud \.Valter Houghton, 1he Victorian Frame ofNtind (New
Haven: Yale Univcrsity Press, 1957), p. 354.
Couro imperial - 'R.g{a, trawstismo e o culto da domesticidade
73. Nancy Armstrong, "The R.isc of thc Domestic \,Voman", in Nancy Armstrong e Leonard
Tenncnhousc (orgs.), 1he ldeology ofConduct: Essayr in Liurature and tlu H irtory ef S.:-
xuality (Londres: Methuen, 1987).
74. O lar, conforme imaginado pela evocação exemplar e rósea de Ruskin, tornou-se "o lugar
da paz, o abrigo, não apenas de tod1 injúria, mas de todo terror, dúvida e facciosismo". O
abraço fortificado do "muro coberto de rosas· de Ruskin era uma barricada par.a o coração
contra os ruídos violentos e sanguinolentos do comércio. Reclusa nesse "lugar sagrado,
um templo de vestais", a verdadeira feminilidade oferecia "um centro de ordem, o bils:t-
mo contra a angústia e o espelho da beleza". Além do muro da domesticidade, "a grama
selvagem que se estende ateá o horizonte esti partida pela agonia <los homens e marcada
pela trilha de seu sangue vital". "Ofqueens gardens", pp. 60, 72, 76.
•] 75. Netf, Vi.torian ~rking ~mm... , p. 187. Neff resume a visão dominante: "A prática do
[ ócio feminino espalhou-se pela classe média até que o trabalho se tornasse uma infelici-
dade e uma desgraça para as mulheres". Sir Charles Pctrie a acompanha obedientemente,
f. ainda que não se tenh:t dado ao trabalho de citar sua fonte: "O fato de um homem man-
r
•·
ter suas mulheres no ócio tornou-se o sinal da sua importância ... O exemplo espalhou-se
pela classe média até que o trabalho se tornasse uma infelicidade e uma desgr.iça para :ts
mu'.hercs". Petrie conclui: "Poucos aspectos da sociedade moderna estão tão bem docu-
mentados quanto a mulher da classe média do século XL'C, assunto este bastante traba-
lhado pela ficção contemporânea... A heroína vitoriana é quase um produto-padrão". 1he
Vfrtorians (Nova York: Longmans, 1961). O influente Pro1p,rity a11d Parmthood apenas
Couro impuia!
2 43
Couro impuial
cançava83 • Daí o fetiche vitoriano das mãos, pois as mãos podiam de-
nunciar traços de trabalho feminino de modo mais visível que um aven-
tal lavável ou luvas descartáveis. As donas de casa eram aconselhadas a
esfregar as mãos à noite com toucinho e a usar luvas na cama para evitar
manchas de gordura nos lençóis, imperativo que revelava o embaraço
tão fundamental con1 o trabalho feminino que tinha de continuar mes-
mo durante o sono.
A CRIADA INVISÍVEL
83. Aqui poderíamos questionar a ideia de lrigaray da mímica como resistência. Isso pode ser
o caso, às ve-zcs, como pode não ser. ·
84. Isso era um exaustivo agravante para trabalhadoras sobrecarregad:is e uma fonte comum
de queixa. Davidoff, "C)a$$ ;aml gcndc, ...", p. 54.
2 45
Couro imptrial
85 . A própria definição de "senhora" inclufa seu distanciamento do lucro. "Uma senhora[ ... ]
não deve trabalhar por lucro ou se envolver com qualquer ocupação comandada pelo di-
nheiro". ·As ocupações de mulher~ cnvolvid3S cm qualquer negócio ou profiss:io [ .. . ]
devem ser claramente explicitadas. Nenhum registro deve ser feito no caso de esposas,
filhas ou outraS parcntes envolvidas inteiramente com os deveres domésticos cm casa".
Apud Sandra Burman, Fir Worifar Wómtn, p. 67.
Couro imperial - 'Rg;a. travntismo e o culto da domesticidade
1
•1
1
O PRIVADO, O PÚBLICO
E O FETICHE DAS BOTINAS
l
1
1
Se Munby tinha o fetiche das mãos, Cullwick tinha o fetiche das boti-
nas (Figura 3.22). Não fica claro quando ela começou a contar botinas
'l com Munby, mas, numa passagem de uma terça-feira, 31 de julho de
1860, lê-se: "Este é o último dia de julho. Engraxei 83 pares de botinas".
'1
As passagens são abundantes: "Tivemos uma boa tarde e somamos as
i botinas". Ao longo dos anos, Cullwick engraxou uma quantidade im-
. . pressionante de botinas. "Engraxei 63 pares de botinas no mês passado" .
O utra passagem: "E• ngraxe1· 66 pares este mes
• e 937 este ano" . E outra:
247
Couro imperial
"Este mês foram 95 pares de botinas". Outra ainda: "Isso é o mínimo por
3 ou 4 anos, devo ter engraxado mais de mil por ano"86• E Cullwick fazia
esse trabalho sem ser vista, antes que a família acordasse. Qyando estava
com Munby, convertia o trabalho da invisibilidade num teatro de exibi-
ção, transformando o que Barthes chama de "obsessão enumerativa", e o
fetiche da limpeza num delírio do coração87.
89. Catherine Hall, "Private Persons Versus Public Someoncs: Class, Gender and Politics in
.. England, 1780-1950, in Tcrry Lowcll (org.), British Ftminist 1hought: A Rtader (Oxford:
·• Basil Blad..-wcll, 1990), p. 52.
90. Hall, "Private Persons...•, p. 52.
91. 1':r:i 1832, o prefixo "masculino" foi pela primeira vez inserido na legislação sobre o voto,
rf; · "tornando claro algo que sempre tinha sido suposto anteriormente: que, ao nomear os
proprietários como os que tinham direito a ~·oto, tratava-se de homens com propriedades,
i não de mulheres". Ibidem.
Couro imperial
250
Couro impuial - 'R,era, /ra(latismo r o culto dJ domaticidadc
A RACIONALIZAÇÃO DA DOl\llESTICIDADE
2 53
Couro imptrial
A DOMESTICIDADE E O FETICHE
DA CONTAGEM DE BOTINAS
É adequado que Cullwick tenha registrado sua vida e trabalho nmn diá-
rio, que é o gênero literário apropriado à lógica do individualismo linear
e racional e à ideia de progresso. No diário, o progresso é visto como o
desenvolvimento linear e medido do individuo privado98 • No entanto,
ele também é testemunha de uma contradição, pois o diário, possivel-
mente a mais privada das formas literárias, deu origem no século XVIII
à novela, a mais pública das formas literárias. O diário de Cullwick não
é exceção, pois foi escrito como documento privado, mas destinado a ser
lido por Munby. De fato, o diário de Cullwick como um todo é plena-
mente expressivo da irracionalidade fetichista que deu forma ao culto da
domesticidade pela classe média.
Se o diário como gênero se dedica à ideia do indivíduo, a sintaxe dos
primeiros diários de Cullwick é testemunho de um sumiço: falta o sobe-
rano "cu" da subjetividade individual. Suas frases truncadas e mutiladas
são empurradas pela incansável repetição de verbos de limpeza e traba-
lho, sua subjetividade engolfada pelo regime dos objetos. Um dia típico
de seu diário de um sábado, 14 de julho de 1860, aparece assim:
98. O diário surgiu no século XVIII, ordenando o tempo não mais de acordo com o ritmo
:agrícola do sol e da lua, ou com rituais de colheita e de estações do ano, mas conforme as
regras mecanicamente mensuradas da indústria racional.
2 54
rr·
~
,. '
't
,fl,
•
Couro imptria/ - 'R.aça, trawstismo e o culto da domesticidade
..
i• ., ta da casa e limpei os peitoris das janelas. Preparei o chá das 9 para o patrão
e a senhora Warwick em meus trapos, mas Ann o levou. De joelhos, limpei o
'l
1
chão do banheiro e do corredor e da lavanderia. Dei banho no cachorro e
limpei as pias. Preparei o jantar para que Ann o servisse, pois estava muito
1
·i
suja e cansada para subir. Tomei banho e fui para a cama sem me sentir pior
que ontem9 9•
l,
Nos diários de Cullwick, o inescapável imperativo de limpar e orde-
.,
nar os objetos - sapatos, peitoris, facas, calçamento, armários, pratos,
,!.
1 ..,.• panelas, mesas, janelas, chãos, copos - consome as energias de sua vida
num infinito de repetição sem progresso ou perfeição. Isso é o que 1\ilarx
chamou de fetichismo da mercadoria: a forma social central da econo-
mia industrial através da qual a relação social entre pessoas se metamor-
l foseia numa relação entre coisas. O domínio doméstico, longe de ser a
i
i antítese da racionalidade industrial, se revela como inteiramente estru-
l
turado pelo fetichismo da mercadoria.
.1
, O trabalho doméstico é uma semiótica da manutenção de fronteiras .
Limpar não é inerentemente significativo; cria um significado pela de-
·' marcação de fronteiras. O trabalho doméstico cria valor social, separan-
k '
do a sujeira da higiene, a ordem da desordem, o sentido da confusão. A
classe média estava preocupada com a clara demarcação do limite, e a
.
1
l. t
1'
jetos fossem especialmente sujos, mas porque esfregá-los e poli-los ritu-
almente mantinha a fronteira entre o privado e o público e dava a esses
objetos um valor de exibição enquanto marcadores de classe.1\ilaçanetas
'! resplandecentes, cortinas recém-lavadas, peitoris impecáveis e calçadas
1 ' •
"' l 1 """"
:•.·. •
bem esfregadas - os objetos incertos no limiar entre o privado e o pú-
2 55
Couro imperial
ços gastos de esforço que não foram quantificados nem calculados, dado
que tal trabalho tinha de ser excluído, tanto quanto possível, do mercado
racional.
,.~·
fk •.
'
~-'
.
.. ,.
.,:....
2 57
Couro imptrial
O TRAVE ST ISM O E O
FETIC HI SM O FEMININO
pela Europa, desta vez como sua mulher. Munby .ficava encantado com
"seu talento no desempenho de cada um desses papéis".
Com seu talento excepcional para as ambiguidades da identidade,
Cullwick faz parte das incontáveis mulheres que, ocultas e clandestinas,
se travcstem e que - segundo os éditos da tradição psicanalítica - não
existem. Robert Stoller proclama firmemente que não existe a "1nulher
travesti": "o travestismo fetichista" nas mulheres é "tão raro que é quase
1
ine.xistente". Ao contrário de Freud, Stoller diz que as mulheres "não
1
>
~
têm o fetiche da roupa", elas simplesmente querem ser homens, desejo
'. perfeitamente naturaPº'. O travestismo feminino não pode ser admitido
na casa da perversão, pois poria em questão a centralidade do falo como
objeto do fetiche cm torno do qual se supõe que o travestismo se orga-
t nize. No entanto, Cullwick se travestiu ao longo de toda a vida, sem que
l ;,- seu fetichismo se organizasse em torno dos traumas da identidade fálica
t• ... nem da transferência erótica (critico essa teoria freudiana em outro lu-
1
r: -(.;
\i
gar), mas sim em torno das contradições históricas do trabalho das mu-
(•
lheres e da iconografia do império - correntes, enegrecimento, sujeira,
l1
1
.l
'i1
~
~·,-
~~~
mupas, botinas, baldes, água e escovas. Embora Cullwick bem possa ter
derivado prazer erótico de seu fetichismo, entender seus rituais de tra-
vestismo e do fetiche como uma erótica da cena da castração só serviria
para reduzir sua vida a uma narrativa machista do interesse sexual. Em
1 ~
1 ~
' . lugar disso, sugiro que seu fetichismo era uma tentativa contínua de
negociar os perigos à espreita na ocultação vitoriana do trabalho das
1
_li' mulheres.
'
O travestisn10 não é só um fetiche pessoal, ele é também um fenô-
meno histórico. O que se poderia chamar de pânico suntuário (pânico
limítrofe em relação à roupa) irrompe com maior intensidade em pe-
ríodos de turbulência social. No início do período moderno, as leis sun-
tuárias na Europa e na Grã-Bretanha ganharam forma em torno das
reviravoltas no dinheiro e no status social engendradas pelo imperia-
102. Robert J. Stoller, Oburoing the Erotic lmagination (Ncw Haven: Yale University Press,
1985), P· 155.
2 59
Couro imperial
103. Marjorie Garber, Vcstd Intn-ests: Cross-Drming and Cultural Authority (Nova York:
Routledge, 1991), p. 21. Como ela observa (embora não discuta a relação com o império):
"o termo 'suntuário' está relacionado com ,onsumption (consumpção, definhamento) -
perda de saúde por aqueles cuja classe ou outra designação social faz com que sua exibi-
ção pareça transgrcssora".
104. Idem, op. cit., p. 25.
105. Idem, op. cit., p. 26.
106. '\,Villiam Jerdan (org.), "lhe Rutland Papcr.(, Camdm Soâety Publications, n• 22, p. 247.
Apud Garbcr, VtJud Intn-ests.. .• p. 26.
260
Couro imperial - '!{era, trawstismo t o ,ulto da domtstitidadt
2.61
Couro imptrial
262
Couro impaial - 'F.gra , traw stismo e o culto da dom u ti.:idade
"Rosetti" (colorido à mão para Munby pelo próprio Rosetti, que decla-
rou estar certo de que se tratava de uma "senhora"), a corrente de escra-
1 va é visível e incongruente em seu colo delicado.
Travestir-se tornou-se tão comum para Cullwick que ela escreveu
..' em seu diário: "Chego a me esquecer se estou vestida como un1a se-
~ ,,,.. nhora ou com meu avental e vestido de algodão na rua"m. Gautier
' apanha belamente o estado liminar habitado pelo travestismo, numa
·i descrição que bem poderia ter sido escrita por Cullwick: "Eu mal me
!
le1nbrava, cm longos intervalos, de que era mulher; [ ... ] na verdade,
l
' não pertenço realmente a nenhum sexo [ ...] Pertenço a um terceiro
•f sexo, um sexo à parte, que ainda não tem nome"113• De maneira aná-
1 loga, Cullwick escreve a respeito de seu gênero nas casas da elite: "Eu
l
era o homem da casa".
• ;
1 Na viagem de Munby e Cullwick à Europa como marido e mulher,
} -·
i ·'
'), ela saiu de Temple, onde vivia como a criada de Munby, com seu velho
1 boné preto e as roupas de trabalho, mudando completamente de roupa
i cm Folkstone. Lá, no porto, onde as fronteiras da alfândega nacional
1
permitiam a ·transgressão segura das convenções de classe, Cullwick
~·.,:•
1
~ vestiu seu "chapéu de feltro e plumas de penas de galo e um véu". O
chapéu ornamental e seu broche eram os signos necessários, visíveis,
:, -~ do lazer e da riqueza de classe, e o véu era tanto uma insígnia da pro-
:1~~
.,. priedade masculina da sexualidade feminina quanto uma proteção
1 .. ~-·,
~, contra o tempo (isto é, a desgraça de classe e raça de uma pele queimada
1 ••
,e>• pelo sol). Voltando da Europa, ela vestiu suas roupas antigas: "Guardei
·t "•. minhas melhores roupas e vesti as minhas próprias outra vez - vesti-
1 do sujo de algodão e avental e meu boné". Suas transformações eram
\
.i inteiramente convincentes: "Não fui notada chegando ou saindo de
•i Temple"11•.
•
~1
·Í
~ :i-
~..,. 112. Stanley, Diaries ofHannah Cullw ick., p. :1.74.
,.
113. Apud G arber, Vested lnurms, PP· 3:1.9-30.
114. Stanley, Diaries ofHannah Cu/h.;.,ic/c, p. ~GG.
Couro imptrial
Munby e entrar para a "boa" sociedade como sua esposa. Qyando Munby
decidiu que já era mais que tempo de eles casarem, Cullwick não escon-
deu seu desgosto com isso e só consentiu quando as circunstâncias tor-
naram a ideia inevitável117• Ela tinha uma profunda resistência em mu-
dar-se para a casa de Munby e, depois de quatro anos infelizes e solitários
sob o mesmo teto, ela mudou-se outra vez, contra a vontade dele, para
continuar sua relação mais em seus termos do que nos dele. O casamen-
to, com sua aparente permanente fixação da identidade heterosse.xual,
parecia-lhe insuportavelmente limitador: "É parecido demais com ser
uma mulher', queixou-se ela.
A pulseira de escrava de Cullwick torna visível a convergência trian-
gular, histórica, entre esposa, criada e escrava. Uma longa e triste relação
existe entre esposas e escravos. Como Engels observou, o termo "família"
deriva de famulus, que quer dizer escravo118• O estatuto das mulheres
enquanto indivíduos entrou na teoria liberal clássica como um dilema
central. Para que as mulheres, como os escravos e as crianças, tivessem
negados seus direitos à liberdade e à propriedade, um trabalho ideol6gi-
co precisava ser feito. A solução está na distinção entre público e priva-
do. Os teóricos liberais clássicos definiram como político o direito de
estabelecer contratos na esfera pública, mas definiram a relação conjugal
como pertinente ao âmbito da natureza e, assim, além do contrato..A
soberania doméstica do marido sobre a mulher, e portanto, a exclusão
das mulheres do individualismo possessivo, foi justificada como deriva-
da da lei natural, não da lei poütica"9•
Assim, quando Munby se alegra que Cullwick tenha sido trazida a
ele "por quem trouxe Eva para Adão", ele fala na linguagem apropriada
dos teóricos liberais clássicos. Para Locke, a soberania de Adão em rela-
3 265
Couro impaial
266
Couro imprrial - 7v!,a, tra1:utismo r o culto da domrst icidadc
••
.1 beral. A emergência do indivíduo liberal racional configurou-se, assim,
14 em torno da reinvenção da esfera doméstica com um âmbito de submis-
tj são natural, assim como o âmbito do "primitivo" era o da submissão ra-
'(
l
cial natural. Domesticidade e império se fundem como um elemento
•
1 necessário na formação da imaginação liberal.
A pulseira de escrava de Cullwick era a corporificação dessas contra-
i
l dições. A submissão verbal, voluntária, da esposa ("Aceito") representa
,i
• uma exibição cerimonial de hegemonia, pois a mulher entra "volunta-
riamente" numa relação social de desigualdade com seu m arido, o que
,,• •1
lhe dá, desde então, o direito legal de coerção sobre ela. Em suma, o
contrato da esposa é um contrato da hegemonia para a coerção"•. A
pulseira de escrava de Cullwick expõe uma contradição fundamental da
teoria liberal clássica: as mulheres são naturalmente como escravos e,
assim, não podem fazer contratos, mas as mulheres devem fazer contratos
de modo a tornarem-se esposas e, portanto, abdicarem de seu direito a
fazer contratos.
Cullwick rejeitou amargamente a sugestão benevolente de Munby
1
de que ela deveria ser grata a ele por desposá-la: "Antes que os visitantes
1 ' chegassem, Munby me mostrou uma certidão que tinha comprado -
uma certidão de casamento - para mim e para ele e disse 'Isto não
prova o quanto a amo e o que você diz a respeito disso?' Disse-lhe que
não tinha nada a dizer sobre isso, mas esperava que ele nunca se arrepen-
desse disso, nem cu. Ainda que eu parecesse serena e tenha dito tão
pouco, realmente acredito no que disse. Eu tne importava muito, mui-
to pouco com a certidão ou em ser casada"' 25• Ela não iria tolerar a ideia
condescendente de Munby sobre seu casamento -como um prêmio para
u4. Legalmente, as esposas eum classificadas junco com criminosos, idiotas e menores. Pela
lei, a propriedade pessoal de uma mulher passa,-a intcir~mcnte para seu marido. Legal-
mente ele poderia d ispor dcb da maneira que quisesse. Ele poderia não deixar nad:i p:ir:i
sua espos:i ou filhos cm seu testamento. Se o m:irido morresse sem test:imento, a esposa
recebia, no melhor dos c:isos, apenas a metade. Se :i mulher morresse sem 1cs1amen10,
toda sua propriedade fic.av:i com ele. Uma esposa não podia fazer contratos, a não ser
como agenre do marido. Assim, pela lei, o casamento era equivalente ao roubo legalizado
e sistemático.
n5, Stanley, Diaries ofHannah Cullw icl,., p. 253.
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Couro imperial
126. Ibidem. A rejeição de Cullwick ao "laço externo" do casamento ecoa asperamente nas
palavras de &xana, de Daniel Defoe, cuja heroína proclama: "A própria Naturez.a do
Contrato de Casamento era, em suma, nada mais do que abrir mão da Liberdade, da Pro-
priedade, da Autoridade, e de tudo, para o Homem, e a Mulher era, de fato, apenas uma
Mulher para sempre, isto é, uma Escrava". Apud Patcman, Th~ Se,,ual Con/racl, p. 120.
Couro imptrial - ~ ra, travestismo e o culto da domesticidade
t,.
xo" e com frequência elogiava a liberdade de mobilidade pública que seu
baixo estatuto lhe propiciava: "Posso trabalhar co1n calma. Posso sair e
voltar quando quero [ ... ] todos os anos cm que caminhei por Londres
1· ninguém nunca me faltou com o respeito, e não creio que o façam , se
você estiver vestida com simplicidade e estiver na rua tratando de seus
próprios assuntos"129•
Dessa maneira complexa, o âmbito do fetichismo foi para Cullwick
uma arena de contestação e de negociação. Ela reivindicou o direito de
manipular os signos teatrais de rebaLxamento de modo a recusar a legi-
timidade de seu valor como natureza. Longe de ver o casamento como
270
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'1
~
4
.! Psicanálise, raça e fetichismo feminino
if
É terrível temer a magia que você
il
1
desdenhosamente investiga - recolher
folclore para a Royal Society com a crença
l viva nos Poderes da Escuridão.
Rudyard Kipling
14. Bhabha segue Freud ao ler ·o objeto fetiche como substituto do pênis da mãe" e "a cena
do fetichismo" como uma reativação da "ansiedade da castr:1ção e da diferença sexual".
"lhe Other ~e.stion", p. 26.
15. Lacan, "Guiding Remarks ... ", p. 97.
16. Idem, op. cit., p. 96.
Psicandliu, ra;a e fetichismo feminin o
~
e a cena primitiva da castração exibem em si mesmas uma nostalgia fe-
tichista por um único mito masculino de origem e uma rejeição feti-
'
' chista da diferença.
Não estou convencida, além disso, de que as mulheres possam ser
·I simplesmente adicionadas à teoria fálica, como disseram certas femi-
l nistas, pois o fetichismo feminino desafia radicalmente a autoridade da
! cena da castração. Ademais, a teoria fálica reduz o fetichismo a uma
l
1
poética privilegiada da diferença sexual e não admite classe ou raça co-
mo categorias crucial1nente formativas. Não vejo o fetichismo racial
i
• como derivando de uma relação sobredeterminada com a cena da cas-
' tração. Reduzir o fetichismo racial ao drama fálico arrisca achatar as
1
1 hierarquias da diferença social, relegando, assim, raça e classe ao st,ztus
.ll secundário ao longo de uma corrente de significação primariamente se-
1
~
l
~
_l ... . ~-h• -~
~•.
Couro imp(rial
FETICHISMO E IMPERIALISMO
~-1'1
.. 17. Ver William Bosman, in John Ralph Willis (org.), A Ntw and Aauratt Dtsmption oftht
Coast oj Guinea (Londres: Cass, 1967), p. 376. G. \V. Hegel notou com desaprovação:
"pode ser um animal, uma árvore, uma pedra ou uma figura de m:tdeira". 'lhe Philosophy
ofHistory, trad. J. Sibrec (Nova York: Dover, 1956), p. 94.
18. Ver Pietz, "The Problem of the Fetish, I", pp. 5-17.
19. Idem, op. eit., p. 6.
2 77
Couro impaial
280
Psica11álist, rara e fttichismo feminino
27. J. F. McLcnnan, "Thc Worship of Animais and Plants-, Fortnightly RroiNJJ 6 e 7 (1869-
187o);John Lubbock, 77,e Origin ofCiviliUJtion and the Primitif.Je ConditiOII oji\1an (Lon-
dres, 1870); Edward B. Tylor, Primitit:e Culture: &uard1<1 into tl:e Drodopmmt of My-
th~logy, Philosophy, &ligion, l.Anguage, Art and Cu1tom (Londres: John l\,lurray, 1871).
28, Idem, op. cit., vol. u, PP· 144-5.
Couro imperial
29. Para uma excelente análise d o fetichismo vitoriano, ,-cr D avid Simpson, FniJh ism and
lmagination: D i<J.em, lvldville, Conrad(Baltimore:Johns Hopkins Universicy Prcss, 1982),
especialmente o c:2pírulo 1. Ver também Alasdair Pcttingcr, "Vv'hy Fctish?", New For-
matiom 19 (1993), pp. 83-93, pan uma discussão de raça e as teorias do fetichismo do sé·
culo XIX.
30. Tylor, Primitivt Cultuu... , vol. 11, p. 45.
282
Psicar.dliu, rara t fttichismo feminino
~
l decadência e da fúria dos africanos e garantirem o espírito do progresso.
Proprietários burgueses o penduravam nas paredes. Missionários e ex-
l ~
ploradores empreendiam jornadas inexplicáveis atraídos por seus espa-
.•
j
.)
i FREUD E A NEGAÇÃO DO
FETICHISMO FEMININO
'.'los anos 1880, Alfred Binet marcou uma mudança crítica no discurso
antropológico sobre o fetichismo, ao transferir o termo "fetiche" para
dpos de "perversão" sexual. O termo "fetichismo", pensava ele, era bem
adequado para certas formas de desvio sexual, em que "a adoração do
'
~
selvagem ou negro por ossos de peixe ou seixos brilhantes" seria substi-
n1ída pela "adoração sexual" de objetos inanimados, como as toucas de
.l
dormir ou os saltos altos3'. Com Binet, ocorreu uma transição crítica à
l
1 medida que o fetichismo virou um termo comutador, mediando entre
1
-1
·1
31, ,\lfrcd Binet, "Lc Fctischismc dans l'amour", p. 3.
J
-
I .,
4'1·
Couro imp,rial
32. Freud, "Fetishism", in Philip Rieff(org.), Sexuality and tht Psyehology ofLoflt (Nova York:
Collier, 1963 [1927]), PP· 152-3.
33. Idem, op. cit., p. 153.
34. Ibidem.
35. Ibidem.
'Psicandliu, raça , fetichismo ftminino
36. "Provavelmente nenhum ser humano masculino é poupado do temor da castração diante
da visão dos genitais femininos. Por que alguns se tomam homossexuais como conse-
~- quência dessa impressão, enquanto outros se defendem criando um fetiche, e a grande
maioria a supera, francamente não somos capazes de explicar". Idem, op. cit., pp. 154-5.
Ver a brilhante crítica de Linda \ViUiams sobre as teorias freudiana e marxista do feti-
chismo cm Hard Cor,: PMUtr. Pltasurc and tlJt Frm:r.y oftht Visible (Berkeley: University
ofCalifomia Press, 1989), p. 105 e capítulo 4,
Couro impuial
287
Couro imperial
48. P. Weissmann, "Some Aspects ofScxual Activity in a Fctishist", 1he Plychoanalytic Quar-
il
urly 32 (1957), PP· 374-92.
49. M. vVultf, "Fetishism and Object-Choice in Early Childhood", 1he Psychoanalytic Quar- 1
~
urly 15 (1946), pp. 450-71; M. Spcrling, "Fetishism in Children", 1he Psychoanalytic ....
Qúarterly 32 (1950), pp. 374-92. Ver também D. vV. \.Yinnicott, "Transitional Objccts and
Transitional Phenomena", 17u /nternational]ournal ofPsr.hoanalysis 34 (1953), pp. 89-97.
50. Chasseguct-Smirgel, Creatiflity and Perwrsion, pp. 81, 87, 3S.
·-
51. Idem, op. cit., p. 87.
288
Psfranáliu, rara t j(lfrhismo ftminino
LACAN E A NEGAÇÃO DA
ATUAÇÃO DAS MULHERES
;
Couro impaial
que ela alguma vez ouviu"s•. Ouvimos na "voz da mãe[... ] uma canção
diante da lei, diante do momento em que alento foi dividido pelo sim-
bólico"53. A natureza enigmática das mulheres é mantida como descri-
tivamente válida; só que agora o valor é invertido: "O Continente Ne-
gro não é negro nem inescrutável"H. A voz da mãe é "a mais profunda,
antiga e adorável das visitações"55• Mas a força política das metáforas
dos enigmas, charadas e continentes negros - herdadas que são do
discurso vitoriano da degeneração - não está aberta a questionamen-
tos. Se, no discurso imperial, as mulheres eram inferiores porque atá-
1 vicas, aqui elas são superiores porque atávicas. De qualquer maneira, a
1
1 ,, simples inversão de valor mantém intacta a analogia entre mulheres e
l colonizados como pré-históricos. Conceber as mulheres como enigmá-
l
ticas alienígenas do pré-edipiano, porém, não é menos reacionário do
1 que ver os povos colonizados como atrasos atávicos para a pré-história
da raça.
A narrativa do desenvolvimento e o conceito de télos também são
fundamentais para Lacan. Anseios frustrados, insatisfação e falta en-
contram sentido apenas cm relação à crença no essencial (ainda que
tütil) télos do desejo. O conceito de télos não é mais marcado em qual-
quer outro lugar do que nas tentativas de Lacan de negar o fetichismo
feminino. Assim como Freud não podia permitir que a sexualidade do
clitóris existisse além da puberdade (pois assim a sexualidade feminina
escaparia ao télos da reprodução heterossexual e à. primazia do prazer
genital masculino), assim também Lacan não pode permitir que o feti-
chismo feminino exista. "Como foi efetivamente demonstrado", procla-
l
•:J
l . ~
ma, "que o motivo imaginário para a maioria das perversões masculinas
é o desejo de preservar o falo que envolvia o sujeito na mãe", e como o
'
.{ 52. 1-lclene Cixous, "lhe Laugh of Nlcdusa", in Sncja Guncw (org.), A Feminitt Reader in
,.;i<
:9!
.•. ;;;~ Knowldge (Londres: Routlcdgc, 1991), p. 25.
';,'· --~, SJ· Idem, op. cit., p. 27.
54. Idem, op. cit., p. 228.
55. Idem, op. cit., p. 34.
Couro imptrial
.;
59. Certamente, de Freud a Lacan, de lrigaray a Gallop, dar conta das histórias da identida-
de lésbica e gay não foi um ponto forte da psicanálise - dos dúbios comentários de lri-
garay sobre a identidade gay à neg.tiva e homofóbica desconfiança que Gallop tem dos
gay,~ "desconfio dos homens homossexuais", admire Gallop, "porque eles preferem os
homens às mulheres, c:.~atamente como fazem nossas instituições sociais e políticas".
Gallop aqui define a identidade gay cm termos negativos, ou seja, como uma rejeição às
mulheres, e não como uma identificação positiva com os homens, em modos que não
podem ser simplesmente equiparados à predominância heterossexual masculina.
60. Judith Butlcr, Gmder Trouble: Ftminism and lhe Subwrsion ofldmtiry {Nova York: Rouc-
ledgc, 1990), p. 87.
61. Dollimore, Sexual Disridmu. .. , p. 173.
i 62. Idem, op. cit., p. 197.
.,.
293
Couro impaial
A REINVENÇÃO DO PAI
63. Ibidem.
64. Idem, op. cit., p. 198.
65. Lacan, -La Familie", in Henry \Vollon (org.), Encydcpldiefranraiu, vol. 8. Republicada
como ÚJ Comple:asfarr.iliaux dans la formation d, f'individu: Essai d'analyu d'une.fJnc-
tion en psychana!yu (Paris: Bavarin, 1984).
66. Mitchcll e Rose, frminint Scxuality ... , p. Ji·
294
'Psicandliu, raça t fttfrhismo ftminino
logos do século XIX) ao afirmar que foi "o pacto da lei primordial [ ...]
que a castração devia ser a punição do incesto". Para Lacan, é um impe-
rativo cultural (fundado na "lei primordial") que o abraço mãe-filho seja
cortado67• Mas, qual é a base desse imperativo universal, que Lacan afir-
ma mas não justifica teoricamente - apelando apenas para a "lei pri-
mordial"? O movimento de Lacan é crucial para sua teoria, pois a dife-
rença social é aí engendrada. Mas considero sua estória implausível por
.
1
.
•
diversas razões.
·-i• -~ O cenário da castração de Lacan postula a intervenção paterna con-
tra o incesto como universal cultural. Às mulheres é negada a atuação
social: son10s vistas como desprovidas de motivação para desmamar ou
impedir o incesto, sem interesse social em levar as crianças à separação,
sem papel na ajuda a eles para negociarem a intricada dinâmica da in-
terdependência, e sem qualquer capacidade para fazer qualquer dessas
coisas. No entanto, a atividade de supervisionar a dialética da interde-
pendência é precisamente o que constitui a divisão do trabalho entre os
gêneros nas culturas ocidentais e muitas outras além delas. Não há lugar
na estreita casa de Lacan para as mulheres como agentes sociais, nem
para que as mães e os filhos se reconheçam gradualmente entre si como
semelhantes e dissemelhantes, tanto desejados como desejosos (da iden-
tidade pela diferença) de maneiras não redutíveis a uma única, rígida e
castradora lógica fálica (identidade pela negação)68•
O argun1ento de Lacan supõe urna família universal de faz de con-
ta, vivendo à parte, cm que nem vizinho nem enfermeira, policial ou
padre, atravessa o limiar para interromper o abraço mãe-filho até que
o "nome do pai" lança seu viril édito de diferença. A clássica familia de
Lacan é uma herança de classe média do século XIX. Mas a identidade
passa a existir através de uma comunidade mais ampla do que o lar
familiar, e a sagrada trindade amada pela psicanálise ocidental está
67. Idem, op. cit., p. 38. Como diz Rose: "A dualidade da relação entre mãe e filho deve ser
rompida [ ...] Na narrativa de Lacan, o falo representa esse momento de ruptura. Ele re·
fere mãe e filho àquela dimensão do simbólico que é figurada pelo lugar do pai".
68. Ver Irigaray, Sp«ulum efth, Other Woman, P· 36.
2 95
Couro impaial
69. Frantz Fanon, Black Skin, White Masl:.s, trad. Charles Lam Markmann (Londres: Pluto
Prcss, 1986), p. 63.
"Psicandliu, ra;a, fttichism o ftminino
l
1
do falo, apenas se antes confrontarmos as instituições que o investem de
poder - instituições que se sobrepõem ao lar familiar privatizado, mas
também se situam além dele e, assim, fora do alcance teórico da psica-
nálise em sua forma atual. Em nenhum lugar Lacan investiga a história
l 1 '
social do privilégio masculino, e nunca sugere que tal investigação deva
ser empreendida. Em vez disso, entramos num círculo de tautologia em
1 que a explicação é suposta na descrição e um relato histórico do poder
2 99
Couro imperial
300
Psfrandliu, rara e fetfrhismo feminino
~,
F
elas não abandonaram ou ameaçaram a narrativa iniciante da castração.
Seguindo Freud, Kofman observou que
(
...,· como não pode haver fetiche sem um compromisso entre castração e sua
~.t..- negação e porque a cisão fetichista[ ...] sempre supõe duas posições, o fetiche
(.'
·,·
O fetiche é, assim, a incorporação, cm um objeto, de duas posições:
"castração ou sua negação". Para Kofman, como para Freud, o fetiche é
.. um "compromisso indecidível". No entanto, o compromisso freudiano
..-:
parece ordenado a oscilar entre essas duas (e apenas duas) opções deci-
didamente fixas. A indecidibilidade está, assim, decisivamente contida e
disciplinada, reduzida a uma economia masculina do fetiche: castração
(do que parece un1 pênis decididamente carnal) ou sua negação.
Seguindo Kofman, Schor afirma que a fascinação do fetichismo para
as mulheres é a "indecidibilidade" que ele oferece. "Se tomarmos como
.. um dos marcos do fetichismo a cisão no ego (lchspaltung) de que o feti-
che dá testemunho, então é possível falar[ ...] de fetichismo fcminino"76•
Ao encenar a oscilação do fetiche entre reconhecimento da castração e
75. Sarah Kofman, 7lu Enigma ofWoman: l¼man in Freud's Writings, trad. Catherine Porter
{lthaca: Comcll Univcrsity Prcss, 1980), p. iJ·
76. Schor, "Femalc Fetishism ...", p. i6.
JOI
Couro imperial
7i· Marjoric Garbcr, Ytsttd lntrrem: Cros1-Drming and Cultural Anxiety (Nov,. York: Rout-
lcdgc, 1992), p. 121.
78. Idem, op. cit., p. 125.
79. I bidem.
80. Ibidem.
81. Idem, op. cit., p. nr.
302
Psicandliu, raça t fttichi11n,; ftminino
. ·tl
necessariamente apenas duas opções. Os fetiches podem envolver con-
tradiç?es trianguladas, ou mais de três. Diferentes padrões de consumo
f
82. Idem, op. cit., p. 27r.
3°3
Couro imperial
,
ENGANOS MUTUOS
':'
.
~
'
•
~
..
5
O império do sabonete
Racismo mercantil e propaganda imperial
Sabão é civilização.
Slogan da Unilever
.i SABÃO E CIVILIZAÇÃO
,,
• No coM EÇO do século XIX, o sabão era um item escasso e monótono, e
o ato de lavar, na melhor das hipóteses, superficial. Poucas décadas de-
. ~
pois, a manufatura do sabão tinha-se expandido num comércio imperial:
,
os rituais vitorianos de limpeza eram anunciados globalmente como o
sinal divino da superioridade evolutiva da Grã-Bretanha, e o sabão era
JJ .C"I
'
r
3o7
Couro imptrial
308
O imptrio do sabonu, - 'l{etísmo m,rcantil, propaganda impuial
JIO
O implrilJ d1J saór,nete - '7?.acismo mercantil e propaganda imperial
Não se pode esquecer, além disso, que a história das tentativas europeias
de impor uma economia mercantil às culturas africanas é também a
história das diversas tentativas africanas de recusar ou de transformar
. ' o fetichismo mercantil europeu de modo a satisfazer suas necessidades.
'
1 . A história do sabão revela que o fetichismo, longe de ser uma propensão
t ·- quintessencial africana, como afirmava a antropologia do século XIX,
fj era central para a modernidade industrial, habitando e mediando as
incertas zonas liminares entre domesticidade e indústria, metrópole e
império.
!
•
l SABÃO E O ESPETÁCULO MERCANTIL
1
l
1 Antes do fim do século XIX, a lavagem das roupas de vestir e de cama
era feita na maior parte dos lares apenas uma ou duas vezes por ano em
1 grandes reuniões comunais, usualmente em público em regatos ou rios8•
l' ·"'
~anto a lavar o corpo, pouco tinha mudado desde os tempos em que a
1 ~'(.
Rainha Elizabcth I se distinguia pela frequência com que se lavava: "re-
1
l gularmente a cada mês, precisasse ou não"9 • Nos anos 1890, porém, as
.
' vendas de sabão estouraram, os vitorianos consumiam 260 mil toneladas
l 1
de sabão por ano, e a propaganda surgira como forma cultural central do
( ;:
1 • capitalismo mercantil'º.
•! ~ Antes de 1851, a propaganda praticamente não existia. Como forma
l
l comercial, era em geral vista como confissão de fraqueza, uma espécie de
lamentável último recurso. A maioria dos anúncios se limitava a peque-
l nos avisos nos jornais, panfletos baratos e cartazes. Em meados do sécu-
l
1
S. Leonorc Davidoít e Catherine Hall, Family Fortunes: /11/m and Hómm of the English
J\1idd!t Class (Londres: Routledge, 199i).
9. David T. A. Lindsey e Geoffrey C. Bamber, SMp-Making. Past and Prnmt, 1876-1976
(Nottingham: Gerard Brothers Ltd., 1985), p. 34.
10. Idem, op. cit., p. 38. Quão profundamente a relação entre sabão e propaganda acabou
misturada na memória popular se vê cm expressões como "nap opera" [equivalente :1
nossas novelas de rádio ou TV]. Para histórias de propaganda, ver também Blanche
B. EUiott, A Hist1Jry ofEnglish Advertísing (Londres: Business Publications Ltd., 1962); e
T. R. Nevctt, //dvertising in Britain: A Hútory (Londres: l lcinc:111ann, 1982).
Jll
Couro imptrial
312
O implr io do sabonete - 'R.f!dsmo mtr,anr il, prtJpaganda imptrial
.. 11. Apud Diana e Gcoffrcy H indlcy, Adwrtising in J/'i(forian England, 1837-1901 (L ondres:
v\':1yland, 1972), p. 117.
~.: 12. Mikc D cmpsey (org.), B11bbl,s: Early Ad'IJ(rtising ArrfrtJm P,ars Lrd. (Londres: Fontana,
i 1978).
IJ. Laurcl Bradlcy, "From Eden to Empirc: John Evcrett Millais' Chcrry Ripe", Vi(forian
Srr,dits 34, • {t99,), pp, 179· 203. Ver também .l'vlid,~cl Dcmpscy, Ba/J/Jl,s...
313
Couro impaial
A CAMPANHA DA PEARS
314
O implrio do sabo,uu - 'R.gdsmo mer,antil, propaganda imperial
l{
l ~
nipulado. A grande inovação de .liarratt foi investir enormes somas de
dinheiro na criação de um espaço estético cm torno de uma mercadoria.
O desenvolvimento da tecnologia do cartaz e da impressão tornou pos-
l
14. Barratt gastou 2.200 libras no quadro e 30 mil libras na produção cm massa de milhões
de reproduções individuais do quadro. Nos anos 1880, Pean gastava entre 300 mil e 400
mil libras só cm propaganda.
15. Furioso com a poluição do sacrossanto reino da arte pela economia, o mundo da arte
..
·1 I~·
~
atacou lVlillais (publicamente e não cm pri\-ado) por traficar no sórdido mundo do co-
mércio.
,
..
315
Couro imp~rial
O sabão
316
O império do saóonue - 'R.gcismo mer,antil t propaganda imperial
,,,.
:;•
..,..
~
317
Couro imperial
O macaco
318
O implrio do sabonue - 'R.gâsmo mercantil e propaganda impaial
1
l'
; 17. Donna Haraway, Prima/e Yisions: Gmder, Ra,e and Nature in the World ifModem Sâen,e
(Londres: Routledgc, 1989), p. 10.
,s. Ibidem.
Couro imperial
ridade para sancionar e legitimar a mudança social. Aqui, "a cena das
origens", argumenta Haraway, "não é o berço da civilização, mas o berço
da cultura [ ...] a origem mesma do social, especialmente no ícone carre-
gado de sentido da familia"'9 .A primatologia surge como um teatro para
negociar os perigosos limites entre a família (enquanto natural e femi-
nina) e o poder (enquanto político e masculino).
O aparecimento de macacos na propaganda de sabão assinala um
dilema: como representar a domesticidade sem representar mulheres no tra-
balho. A casa vitoriana de classe média se estruturava em torno da con-
tradição fundamental entre o trabalho doméstico pago e o não pago das
mulheres. Como as mulheres eram afastadas do trabalho pago em mi-
nas, fábricas, lojas e negócios para o trabalho não pago no lar, o trabalho
doméstico se tornou economicamente subestimado, e a definição de
classe média sobre a feminil.idade figurava a mulher "apropriada" como
a que não trabalhava por ganhos. Ao mesmo tempo, um cordão de iso-
lamento de degeneração racial era lançado em torno daquelas mulheres
que trabalhavam pública e visivelmente por dinheiro. O que não podia
ser incorporado na formação industrial (o valor econômico doméstico
das mulheres) era relegado para o domínio inventado do primitivo, e
assim, disciplinado e contido.
Os macacos, em particular, eram utilizados para legitimar os limites
, ' .
sociais co1no éditos da natureza. Fetiches divididos entre a natureza e a
cultura, os macacos eram vistos como aliados das classes perigosas: os
pobres andarilhos: os famintos irlandeses, os judeus, as prostitutas, os
negros empobrecidos, a classe trabalhadora, os criminosos, os insanos, as
mineiras e empregadas domésticas, todos "simiescos", que eram vistos
coletivamente como habitando o limiar da degeneração racial. O!iando
Charles K.ingsley visitou a Irlanda, por exemplo, lamentou: "Estou as-
sombrado pelos chimpanzés que vi ao longo de centenas de milhas de
um campo horrível [ ...] Mas ver chimpanzés brancos é terrível; se fos-
320
O império do saóoneu - 'R.g<ismo mer,a11til e propaganda imperial
sem negros, não se sentiria tanto, mas suas peles, exceto onde queimadas
pela exposição, eram tão brancas como as nossas":º.
No anúncio da Monkey Brand, a assinatura do macaco no trabalho
("Meu próprio trabalho") assinala uma dupla negação. O sabão é mas-
culinizado, figurado como produto masculino, enquanto o trabalho (cm
sua maioria feminino) dos trabalhadores nas enormes fábricas insalu-
bres é negado. Ao mes1no tempo, o trabalho de transformação social na
limpeza e esfrega de pias, panelas e pratos, de pisos e corredores do es-
paço do1néstico vitoriano desaparece - redefinido con10 espaço ana-
crônico, primitivo e bestial. As criadas desaparecem e no lugar delas
aparece um híbrido masculino fantasma. Assim, a domesticidade -
vista como a esfera mais afastada do mercado e do tumulto masculino
do império - toma forma em torno das ideias inventadas do primitivo
e do fetiche da mercadoria.
Na cultura vitoriana, o macaco era um ícone da metamorfose, servin-
do perfeitamente ao papel liminar do sabão em mediar as tran:;forma··
ções da natureza (sujeira, lixo e desordem) em cultura (Limpeza. raciona-
lidade e indústria). Como todos os fetiches, o macaco é uma imagem
' contraditória, encarnando a esperança do progresso imperial pelo co-
'
mércio e ao mesmo tempo fazendo visíveis os profundos temores vi-
,.
I torianos em relação à militância urbana e à desordem colonial. O sabão-
macaco tornou-se emblema do progresso industrial e da evolução
imperial, encarnando a dupla promessa de que a natureza podia ser
redimida pelo capital consumidor e que o capital consumidor podia
ser garantido pela lei natural. Ao mesmo tempo, porém, o sabão-macaco
era eloquente do grau em que o fetichismo estrutura a racionalidade
industrial.
20 Charles Kingsley, carta à sua mulher, 4 de julho, 1860, in Charlu Kingsley: His Letters and
Memories ofHis Lift, Francis E. Kingslcy (org.) (Londres: Henry S. King & Co., 1877), p.
107. Ver também Richard Keamey (org.), 'lhe lrish. Mind (Dublin: \-Volfhound Press,
1985); L. P. Curtis Jr., Anglo-Saxom and Ct:!ts: A Study ofAnti-lrish Prejudiu in Vfrtorian
England {Bridgcport: Confcrcnce on British Srudics of Univcrsity of Bridgcport, 1968);
and Seamus Dcanc, "Civilians and Barbarians", lrelandr Fidd Day (Londres: Hutchin·
son, 1985), pp. 33-42.
321
Couro imperial
O espelho
322
O implrio do sabomu - '"R.gdsmo mercantil e propaganda imperial
A DOMESTICAÇÃO DO IMPÉRIO
21 Durante a Guerra dos Bôeres, as forças britânicas foram vistas como tendo sido valente·
,ncntc rcfor-.adas pela farinha de milho Johnston, pelo uísque Pattison e pelo chocol:ttc
32 3
Couro imperial
ao leite Fryc. Ver Robert Opie, Trading on tlu British lmage (Middlesex: Penguin, 1985),
para uma excelente colcçio de imagens de propaganda.
22 Num capitulo brilhante, Richards explora como a convicção imperial do explorador e
escritor Henry Mocton Stanley, de que ele tinha a missão de civilizar os africanos ensi-
nando-lhes o valor das mercadorias, *revela o grande papel que os imperialistas atribuíam
à mercadoria na propulsão e justificação da luta pela África". Richards, 1lu Commodity
Cultun... , p. UJ,
32 4
O império do sabontlt - 'Rgcismo mtr<antil t propaganda imptrial
f'.
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e:. Figura 5.5 - Fetichismo nacional
f.
1
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' 325
Couro impaial
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32 7
(ouro impaial
23. Como observa Richards: "Cem anos antes, o na,io ao largo tcr· s:-ia preparado para es-
cravizar fisicamente o africano como objeto de troca; aqui, o objeto é incorpor:1-lo à ór-
bita da troca. Nos dois casos, esse momento liminar postula que o capitalismo depende
do mu ndo não capitalista, pois a superprodução endêmica do sistema capitalista só pode
continuar mandando mercadorias para áreas li minares, onde, p resumivelmente, seu v:uor
1
1, nio ser:i imediatamente :lpreciado". lochards, 77,, Commodity Culrurt.. . , p. 140.
,•·
•
'
32 9
Couro imptrial
24. Thomas Carlylc, Sarlor Resartus, in 1lu IVorh of1homas Carlyle (Londres: Chapman and
Hall, 1896-1899, vol. l), p. 30.
33º
O império do saóonrtt - 'R,ecismo mtr<antil, propaganda imperial
25. l'vlarx, "Theories of Sucplus Value", apud G. A. Cohen, Karl 1\ltarx'; 1heory ofHistory: A
Diffrrenu (Princcton: Princcton Univcrsity Press, 1978), pp. 124-5.
26. Rkhards, 7he Cgmmgdity C:,/ture... , PP· 122-;.
33 1
Couro imperial
332
O implrio do saóonete - 'R.gdsmo mer,antil e propaga11da imperial
27. Mas sabão de óleo de palma fora feito e usado durante século, na África Ocidental e
equatorial. Em Travds in Hfst Afrfra, Mary Kingslcy registra o costume de escavar ba-
nhos profundos na terra, enchendo-os com água ferve me e ervas fragrantcs, com lu.xuo-
sas coberturas de argila úmida. No sul da África, esse sabão não era muito usado, mas
lamas, scivas e cascas de árvores eram processadas como cosméticos, e arbustos conheci·
dos como "moitas de sabão" eram usados na limp~a. Mary H. Kingslcy, Travds in West
·' AJrfra (Londres: MacmiUan, 1899). Atividades dos homens tswanas como caça e guerra
,
\ eram elaboradamente preparadas e reguladas pelo tabu. "Em cada caso", como escrevem
Jean e John Comaroff, "os participantes se encontra,-am fora dos limites da aldeia, vesti-
dos e armados para o combate, e eram sujeitos a uma cuidadosa lavagem ritual (go foka
marumo)". Jean e John Comasoff, O/R=e/ation and Reuo/ution: Chrútianity, Co/onia/úm
a,rd Comci;umm in S,uth Afrfra (Chicago: University of Chicago Press, 1991, vol. 1), p.
164. Em geral, as pessoas passav:im cremes, lustravam e poliam seus corpos com uma
variedade de óleos, ocres rosados, gorduras animais e argílu coloridas.
,, 333
Couro impuial
28. Pan uma excelente c.xploração da hegemonia colonial no Sul d:i Africa, ver Jean e John
Comaroff, ~H omc-:-.ifade H egcmony: Modemity, Domcsticity and Colonialism in South
Africa~, in Karen H ansen (org.), Encounlcn W ith DomcJlicity (Ncw Brunswick: Rutgers
Univcrsity Press, 1992), PP· 37-74.
29. Daniel Dcfoe, 71,, Farther Ad--.xnf'Jres ofR ohinnn Crus«, in 7hc Shal:cspcarc Hcad Edition o/
thc Nowls and Stlmd Writings ofDanid Dif«. (O xford: Basil 81:ickwell, 1927-1928, v::,l, 3),
p.177.
30. Para uma excelente análise do fetichismo da mcrc:ldoria, ver \.V. J. T. Micchell, Í(onology:
lmagc, Tcxt, Idcology (C hicago: Univcrsity of Chicago Prcss, 1986), p. 193. Ver também
;
\Volfg2ng Frin H 3ug, Critique ofCommodity Atsthrtüs: Appcaranu, Scxuality andAiwr-
tising in C;,pitaliJt Sodtty, trad. Robert Bock (M inncapolis; University of Minnesota
Prcss, 1986). Ver o ensaio bibliogrifico de Catherine Gallagher cm Critidsm 19, 2 (1987),
334
O impirio do sabonlft - ~cismo mucantil e propaganda impuial
pp. 133-42. Sobre o caráter ritual das mercadorias, ver Arjun Appadurai (org.), 71,e Social
Lifa of 1bings: Comm~dities in Cultural Penputive (Cambridge: Cambridge Univcrsity
Press, 1986). Ver também Sut Jhally, 1bt Codts of/ldçertising: Fetishism and the Politi,al
Economy ofí\1,aning in th, Comumer Society (Londres: Roudedge, 1990); e, para a lingua-
l ,'.., ~
gem da mcrcantilização, ver Judith \-Villiamson, Decoding /ldçertiummts: ldeology and
,.;..'l Meaning itt /ldwrtising (Londres: Marian Boyars, 1978).
.,,
·C"..; ••
31. Apud Masy H. IGngsley, Traveis in Wut ///rica, p. 622.
·i 32. Simpson, Fetishism and lmagination. .. , p. 29.
33. "Tradc Goods Used in thc Early Trade with Africa as Givcn by Barbot and Other \1/ritcrs
of thc Scvcntccnth Ccntury", in IGngsley, Trtw,I, in ~,1 Afrita, pp. 6u- 25.
335
Couro imptrial
(
~
336
O império do sabo,uu - ~cismo mercantil t propaganda impuial
337
Couro imptrial
um general, que escreveu agradecendo a J.\,lr. Eno por seu bom pó: "Bên-
çãos a seu Sal de Fruta", escreveu ele, "acredito que não seja profano
dizê-lo, mas juro por ele. Ali fica a estimada garrafa sobre a minha larei-
ra, meu pequeno ídolo - em casa meu deus do lar, no exterior, meu
vadc-n1écum"•º. Os fabricantes de Eno ficaram tão satisfeitos com essa
dedicação plena a seu pequeno fetiche que a adotaram como bordão
promocional regular. Daí em diante, Eno passou a ser anunciado pelo
slogan: "Em casa, meu deus do lar, no exterior, meu vade-mécum".
No encontro colonial, os africanos adotaram uma variedade de estra-
tégias para enfrentar as tentativas coloniais de subavaliar suas economias.
Entre essas estratégias, as mais frequentes eram a mímica, a apropriação,
a reavaliação e a violência. Os coloniais censuravam rancorosamente o
hábito africano de sair com o que não lhes pertencia, hábito que era
visto não como uma form_a de protesto, nem como uma recusa das no-
ções europeias de propriedade e de valor de troca, n1as como uma inca-
pacidade primitiva de compreender o valor de uma economia "racional"
de mercado. Barbot, por exemplo, descreve os Ekets como
o mais exasperante dos povos com que tínhamos que lidar [ ...] O pobre Sa-
wyer teve enormes dificuldades; as pessoas tinham uma ideia de que podiam
fazer o que quisessem com o encarregado da fábrica e frequentemente saíam
com os bens sem pagar por eles, ao que Sawyer naturalmente se opunha, e
isso geralmente acabava em luta livre, e minha gente às vezes levava a pior''.
338
O império do sabomu - '7?.!cismo mu,antil e propaganda imperial
l
i ~
plodia quando os africanos deixavam de mostrar espanto diante das es-
tranhas bugigangas que os coloniais lhes ofereciam, pois não demorou
1 muito para que a curiosidade e a tolerância dos não europeus virasse
derrisão e desprezo. Na Austrália, Cook censurava a ingrata recusa dos
habitantes locais em reconhecerem o valor das bugigangas que lhes
trouxera: "Alguns dos nativos não abriam mão de um porco, a menos
que recebessem um machado em troca; mas pregos e contas e outras ni-
nharias, que, durante nossas viagens anteriores, tinham tanta circulação
na ilha, eram agora tão desprezados que poucos se dignavam até mesmo
a olhar para cles" 44 •
i'
, De Bougainville também lembra como um nativo das i\ilolucas,
quando recebia "um lenço, um espelho ou outra quinquilharia [ ... ] ria
-;
dos presentes e não os admirava. Ele parecia conhecer os europeus"45•
Como observa Simpson: "O lenço é um atributo da 'civilização,' uma
ferramenta para fazer desaparecer o desagradável suor da testa, a descar-
.,.
42. Richards, 1he Commodity Culture.. . , p. n5.
43. Ibidem.
44. James Cook, A Voyag, to the Paâjic Ouan, Undn-tak.en by the Comma!'d ofHir Majesty,far
1\!Jaking DiJ,0•11eries in the Nurthern Hemisphn-e (Londres: James Cook, 1784, vol. 2), p. 10.
•' 45. Lewis de Bougainvillc, A J'oyag, Round th, World, P,rfarmed by th, Ordn- of His i'vtost
.. Chrütian lv!ajuty, in th, Y,crs q66, 1767, q68, q69, trad. John Rcinhold Forstcr (Lon-
Jrcs, 1772), !'· 360.
339
Couro imptrial
'i
46. Barbot admite que os africanos da costa ocidental "sofreram com tanta frequência impo·
sições dos europeus, que, cm eras anteriores, não tiven.m escrúpulos cm enganá-los na
qualidade, no peso e nas medidas dos bens que, no principio, recebiam contentes, porque,
diziam, nunca passaria por seus pensamentos que os homens brancos[... ] eram baL~os a
ponto de abusar de sua credulidade [ ... ) e examinavam peça por peça e muito de perto
toda nossa mercadoria". Não demorou muito para que os africanos inventassem seus
próprios subterrugios pua enganar os europeus e ganhar na troca. Pelo relato de Barbot,
eles enchiam com madeira pela metade os barris de óleo, acresccntav:im :igua e ervas ao
óleo, para ·que fermenrasse e, assim, enchiam os barris com a metade do óleo. Kingsley,
Traveis in West A/rira, p. 582.
47. Jean e John L. Coma.roff, O/RnNlation and R«>0lution ... , p. 166.
6
A família branca do homem
O discurso colonial e a
reinvenção do patriarcado
341
Couro imperial
mente mais que todos os seus contemporâneos3• She apareceu logo de-
pois, em 1887, em meio a uma turbulenta fanfarra de aplausos. <2!tase da
noite para o dia, o jovem obscuro se tornara autor de incomparável
sucesso e renome'.
As minas do rei Salomão lidava intimamente com eventos na África
do Sul depois da descoberta dos diarnantes e, depois, do ouro: especifi-
camente do reordenamento da sexualidade das mulheres e do trabalho
na África e da derivação do trabalho masculino negro para as minas. A
história ilumina não só as relações entre a metrópole imperial e as colô-
nias, mas também a reformulação das relações de gênero na África do
Sul, quando o capitalismo nascente penetrava a região e perturbava re-
lações de poder já contestadas dentro dos assentamentos. A despeito do
recente reconhecimento de que alguns dos conflitos mais importantes
do século XIX ocorreram s.obre a economia dos assentamentos africa-
nos; em sua maior parte a história do trabalho feminino e da resistência
das mulheres foi relegada às laterais da história. Como as mulheres eram
as principais fazendeiras, elas eram as principais produtoras da vida, cio
trabalho e da comida na era pré-colonial5• Seu trabalho era, assim, isola-
damente, o recurso mais valorizado no país, afora a própria terra. No
entanto, sabemos muito pouco sobre como as sociedades pré-coloniais
foram capazes de subordinar o trabalho feminino e igualmente pouco
sobre as mudanças decorrentes, nessas sociedades, da conquista colonial
e da penetração do capital mercantil e minerador.
3. Henry Rider Haggard, King Solomon's Mines (Londres: Signct, 1965). As refcréncias adi-
ciona.is a essa edição são citadas no texto pelo número da página.
4. King Solomon's Minei foi reimpresso quatro vezes nos primeiros três meses, vendeu Jt mil
cópias no primeiro ano e nunca ficou fora do mercado desde sua publicação. She também
foi um hrst-u/ler instantãneo e foi traduzido para mais de 20 línguas, tendo-se tornado
diversos filmes e peças de teatro e uma ópera. T1mbém nio ficou fora de mercado na
Grã-Bretanha no século passado. Elia Shohat discute as versões cinematográficas dos
dois romances cm "Gcnder and the Culture of Empire: Toward a Feminist Ethnography
oí'the Cinema", Quarterly RevirJJ ofFilm and Vídeo 13, 1-3 (Primavera, 1991), PP· 45-84.
5. Ver Jeff Guy, "Gender Opprcssion in Southem African Precapitalist Socicties", in
Chcrryl \iValkcr (org.), IJ.ómm and Gender in Southern A/ri<a to 1945 (Londres: David
Philip, 1990), pp. 33-47.
342
e.,'/família bran<a do homem - O discurso ,olonial e a reinv en,4o do patriar,ado
343
Couro impaial
Haggard nasceu em 1856, num dos poucos roteiros escritos para um ho-
men1 de sua classe. Filho de uma mãe colonial criada na Índia britânica
e de um conservador de Norfolk, da nobreza rural, sua vida e obra to-
mam forma significativa a partir das contradições incorporadas em seus
pais: o enfraquecimento da antiga hierarquia do campo com o desloca-
mento do poder nacional para o setor manufatureiro e a ascensão do
novo imperialismo. Chegou à idade adulta durante a grande depressão
dos anos 1870 - era que viu as calamidades da pobreza industrial e a
megalomania do novo imperialismo. Suspenso entre uma classe em de-
clínio e o imperialismo ascendente, Haggard estava, sob 1nuitos aspec-
tos, especialmente bem colocado para produzir, como produziu, as nar-
rativas de degeneração e regeneração masculina que viriam a se tornar
os romances mais lidos de seu tempo.
"Conservador ao extremo", o pai de Haggard, o squire William Mcy-
l
bohm Haggard, "reinava cm Bradenham como um rei", vivendo da terra
à moda patriarcal da antiga hierarquia - o último de sua família a assim
viver6• Haggard herdou do pai seu próprio "senso dinástico": "deixar um
filho e terras para que ele herdasse, perpetuar seu nome eram suas fortes
prcdisposições"7. Mas as relações entre a geração, o nome e a herança de
terra entre os mc~bros do sexo masculino eram particularmente abor-
recidas para Haggard - aborrecimento que ele compartilhava com toda
u1na geração de homens de alta classe média no período vitoriano tar-
dio. Haggard era um dos filhos mais jovens, deserdado da posição pa-
triarcal pelas rígidas leis da primogenitura. Seu próprio füho,Jock, viria
a morrer na juventude, para tristeza do pai. Haggard começou a escrever
nos anos 1880, quando a ideia das origens paternas - instituindo o po-
der masculino no topo da família - se tornava cada vez mais problemá-
tica. Fervente adepto das ambições dinásticas de sua familia e de sua
6. Henry Ridcr Haggard, Days ofMy Lift (Londres: Longmans Grecn & Co., 1926), p. 24.
7. Lilhs Rider Haggard, 7h, C/ca/,; 7bat 1 L,ji (Londr~•= Hodd~r & Stoughton, 19sr), p. 16.
344
e,/[familia branca do homem - O disn,rso colonial, a reinven,do do patriarcado
345
Couro impuial
l DEGENERAÇÃO
1 -
A crise das origens
347
Couro imptrial
sença das colônias britânicas à espera. Nas colônias, urgia Froude, "está
a verdadeira solução para a questão britânica das terras [ ...] O lar do
camponês francês é a França[ ...] O lar do escocês ou do inglês é o glo-
bo inteiro"17• Como ele via a questão, as antigas ordens patriarcais britâ-
nicas podiam ser protegidas do descontentamento civil exportando os
descontentes para as colônias:
349
Couro impuia{
sem a terra. Em 1875, o pai de Haggard escreveu a seu vizinho, Sir Henry
Buhver, recém-indicado vice-governador de Natal e pediu a ele que acei-
tasse o jovem Haggard em seu serviço. Bulwer concordou, e H aggard,
então com 19 anos, partiu, em agosto de 1875, como um obscuro membro
da equipe de Bulwcr para a Colônia do Cabo.
35º
<./1fam flia branca do hom( m - O d iuur10 colonial ( a rtin v mçáo do patriarcado
20 . "G eorge Orwcll", in S. Orwcll e I. A ngus (orgs.), 'llu Coll(Cf(d Essays, Journalism and
Leturs of George Orw d l (Londres: Scckcr and \Varburg, 1968, vol. u ), p. 6j.
21. Raymond \Villiams, George Or-..::dL· A Colüctiun of Criti.al E ssays (Englcwood Cliffs:
Prentke H:ill, 1975), p. 20.
351
Couro imperial
i
tenha assumido uma forma patológica.
REGENERAÇÃO PATRIARCAL l
As minas do rei Salomão
J
Allan Qyatermain - cavalheiro, caçador, negociante, lutador e minera-
dor (que recebeu, não acidentalmente, o nome de um pai substituto que
acolheu Haggard quando jovem) - começou a escrever "a estória mais
estranha" que conhecia por razões profiláticas, como ato de higiene bio-
lógica. Como um maldito leão machucou sua perna, ele está prostrado
em Durban com dor e é incapaz de se mover. Escrever o livro aliviará
um pouco da frustração de sua impotência - o levará de volta à saúde
e à virilidade. Depois, ele o enviará a seu filho, que está estudando num
hospital em Londres para ser médico, e é, portanto, obrigado a gastar
boa parte do tempo cortando corpos. Qi1atermain pretende que sua
aventura imperial sopre "um pouco de vida nas coisas" para seu menino,
Harry, que, como resultado, estará mais apto a seguir a tecnologia da
cura, a tarefa da higiene nacional, a restauração da raça. O livro será,
assim, uma narrativa tripla da recuperação imperial, abraçando três domí-
nios e movendo-se de um a outro em certa ordem privilegiada: do corpo
físico do patriarca branco restaurado nas colônias para o laço familiar
com o filho médico na Grã-Bretanha para o corpo político nacional. Ao
mesmo tempo, a narrativa revela que a regeneração da Grã-Bretanha
na era vitoriana tardia dependia do reordenamento do trabalho nas co-
35 2
e.Afamília branca do homem - O discurso colonial e a reinv enrão do patriarcado
353
Couro imperial
22. Pierre lVlachcrey, A 1heory of Literary Production (Londres: Routlc:dgc & Kcgan Paul,
1978), p. 265.
23. Donna Harawa); Primate Visi&m: Groder, Race and Nature in the World ofModenr Scimu
(Lom.ln:s: Routlcdgc, 1989), p. s••
354
e.Afam(/ia branca do homem - O discurso colonial< a rân f.lm rdo do patriarcado
355
Couro impaial
O ESPAÇO ANACRÔNICO
_)
'
e./[famflia bran,a de hemtm - O discurse ,elenial ~ a u inv~n;4e de patriar,ade
A lVIÃE ARCAICA
Abjeção colonial
27. A. T. Bryanr, O/dm Times in Zululand and Natal (Londres: Longmans, 1929), p. 640.
28. J. Tylcr, Fqrty YcarsAm~ng thc Zulus (Cape Town: Struik, 1971), p. 104.
359
Couro imp(rial
360
cA/amília bran<a do homem - O diuurso <olonial e a rânflenrão do pa1riar<ad1J
O FETICHISMO DA MERCADORIA
E O RITUAL DO NASCIMENTO lVIASCULINO
29. Rider Haggard, C~tywayo and HiJ White Neighboun (Londres: Trubncr & Co., 1882),
P· 53·
cAfamflia branca do hom~m - O discurso colonial~ a rtinwnr4o do pa1riarcado
A I NVENÇÃO D E TRADI Ç Õ ES
Pais brancos e reis negros
Natal, onde Haggard se achava em 1875, era uma das menos promissoras
das colônias britânicas. Sem nenhuma matéria-prima vital para exportar
e a centenas de quilômetros dos mercados da Cidade do Cabo, era po-
bre, isolada e vulnerável. Durante os primeiros anos do século XIX, a l
área assistira a muita turbulência e desgraça quando chefes locais rivali-
zavam e se contrapunham por terras e poder, sob a pressão de recursos
j,.
ambientais que escasseavam. Entre 1816 e 1828, o líder zulu Shaka tinha
construído, a partir dos levantes, um formidável reino militar que atraiu l
1
1
para sua ó rbita muitos clãs menores, destruindo o resto num grande
efeito dominó de ruptura (o mftcane). Nos anos 1830, pequenos bandos 1
de bôeres nômades invadiram essa zona esvaziada. Os britânicos, con- 1
tudo, tinham recebido de Shaka a garantia de terras na costa e se eriça- 1
vam com a perspectiva de que Port Natal caísse nas mãos hostis dos
Voorlrek.kc:rs [pioneiros). C hamarll.m às pressas tropas do Cabo e arreba-
taram Natal dos bôeres cm 1843. No entanto, os britânicos relutavam em
perder os próprios bôeres, pois precisavam assentamentos mais densos
para contrabalançar a presença potencialmente esmagadora dos zulus
com que lindavam ao norte (fonte primária, com o Zimbábue, da Ku-
kuanaland de Haggard). Os britânicos ofereceram aos bôeres enormes
fazendas sem consultar os nativos africanos, mas muitos bôeres preferi-
ram viajar para o interior uma vez mais, tornando-se proprietários au-
sentes ou vendendo suas terras a especuladores. Enormes áreas de terra
cm Natal eram deixadas incultas e abandonadas, mas fechadas a assen-
tamentos. Este era o paradoxo que assolava os fazendeiros brancos de
Natal: escassez de terra num vasto país de milhares de acres e escassez
de trabalho numa terrn povoada por milhares de africanos.
Depois da descoberta de diamantes em 1867 e de ouro em 1884, o
paradoxo se aprofundou, à medida que o trabalho negro partiu para os
campos de mineração e melhores salários do interior. Em 1882, H aggard,
em seu primeiro texto publicado, Cetywayo and H is White Neighbours
[Cecywayo e seus vizinhos brancos], chll.mou a esse paradoxo "enigma
<:.Afam(/ia branca do homtm - O discurso colonial ta rtinWnfdO do patriarcado
30. Idem, op. cit., p. 281. Ver também Jeff Guy, 7ht Datruction iftht Zulu KingdtJm (Johanncs-
burgo: Ravan Press, 1982); e H. Slater, -lhe Changing Panem ofEconomic Relations in
Rural Natal, 1838-1914~, in Shula l\1arks e A. Atmore (orgs.), Economy and Society in Pr~-
lndustrial SouthAfrica (Londres: Longmans, 1980).
...
Couro impuial
31. Terence Ranger, "The lnvencion ofTradi1ion in Colonial Africa•, in Eric Hobsbiwm
e Terence Ranger (orgs.), 7h~ /twmtion ofTradition (Cambridge: Cambridge Univcrsity
Press, 1983). Ver também David Cannadine, "lhe Contoct, Perfonnance and Meaniog of
R.irua!: lhe British Monarchy :rnd the 'lnvention ofTradition', 1820- 1977", in Hobsbawm
e Ranger, 7h, Inw,.1ion of Traditi,m. Para uma excelente e.~ploração da invenção da
tradição zulu, ver Shula Marks, 1he Ambiguitiu ofDcptndPlu: Class, Nationalism and tht
State in Twmtieth Ctntury Natal (Johannesburgo: Ravan Press, 1986).
32. Ranger, "The lnv-,ntion ofTr:adition ... ", p. 211.
366
e.Afam(lia branca do homt111 - O diuurso colonial e a rtinvt11;4o do patriarcado
1e que era o mais autorizado e influente dos rituais inventados nas colô-
nias: o patriarca ou pater familias proprietário. Em termos de impacto
político, ademais, o mais significativo era a nova hierarquia inventada
entre o "pai" branco e o rei negro.
Nos documentos coloniais, por exemplo, Shcpstone é referido com
insistência ritual como "o pai" de Natal. Sir Henry Bulwer o chamava de
"um dos primeiros pais das colônias - o próprio Nestor da colônia"JJ.
Os negros se dirigiam a Shepstone (o que sem dúvida correspondia à
sua fantasia) como som/Jewu, que, como diz Jeff Guy, "não obstante mui-
ta especulação sobre seu significado, na linha do 'poderoso caçador', é
uma palavra de origem sesoto que quer dizer 'pai da brancura"'.l-4. Como
o próprio Shepstone, Haggard entendeu que o nome carregava a impli-
cação totalmente infundada de que os zulus viam Shepstone como o
potentado originário do próprio povo negro: Shepstone seria "por exce-
lência seu grande chefe e 'pai' branco". Numa mensagem para Loben-
gula, chefe dos Ndebele, Shepstone anunciava portentosamente: "O
vice-governador de Natal é olhado como o pai de todos""·
Shepstone levava o título de pai e tudo o que decorria dele cm ter-
mos de autoridade política era muito sério, não só como título, mas
como prática política e administrativa que teve sérias consequências
para a história da África do Sul. Basta um exemplo entre muitos. Nos
anos 1850, ele e o bispo Colenso de Natal, antes de sua famosa briga,
inventaram uma trama megalomaníaca para resolver a "questão nativa"
fundando um Reino Negro (como a Kukuana/andde Haggard) ao sul de
Natal, sobre o qual exerceriam autocraticamente o poder como patriar-
cas fundadores - cada um encarnando, respectivamente, os poderes
absolutos de "pai da igreja" e "pai do Estado". Numa carta aos membros
da igreja da Inglaterra, Colenso afirmava ser chamado de soku/e/eka (pai
do surgimento) e de soóantu (pai do povo). Para não ser superado, Sheps-
33. Apud Ruth E. Gordon, Shepstone: 1Ju Rol, of th, Family in the History of South Afrita,
1820 -1890 (Cidade do Cabo: Balkcma, 1968), p. 309.
34. Guy, 1he De1tru,tion ofthe Z11lu Kingdom, p. 51(n).
3S· Ride, 1falQr.lrd, Day1 ofMy Lift, p. 9.
Couro imptrial
36. H enry Callaway, A Nltmoir, lV[. S. Bcnharn, org. ( Lond=, 1896), P· 88.
c.lfJam(/ia bran,a do homem - O discurso ,olonial e a rânflert;á? do patriar,ado
37. \ V, R. Ludlow, Zululand and Cety-.:JOJ'I) (Londres: Sumpkin, i\Ianha.11, 1682), p. 18.
38. Ridcr Haggard, Cetywayo, p. 57.
Couro imptri11/
39. Patrick Harrics, "Plantation.s, Pa.sscs and Prolct:irians: L:ibor and thc Colorual St:1tc in
Ninctccnth Ccntury Natal•,fournal ofSoutlum Afrfran Studi,113, 2, p. 375.
40. Slatcr, "lhe Changing Pattems .. . •. p. 156.
vffamília óranca do homrm - O discurso co/,nial ta rti11<1m(4o do patriarendo
371
Couro imptrial
4 2. Apud H .J. Simons.Aftiran Hi,mm : 1htir Lexal Status in SouthAfrira (Ev:inston: North·
wcstcrn Univcnity Prcss, 1968), p. 2 1.
372
cÁfamília bran,a do hom,m - O diuurso ,olonial, a rcin v,nçâo do patriarcado
fr.
•
dade, ou devolvido, caso em que o casamento seria dissolvido. Ao
mesmo tempo, o gado podia ser retido, se o novo marido maltratasse
J. sua mulher. De qualquer forma, a sociedade não era igualitária, e a
~' maioria dos lares tinha só uma ou duas esposas. O poder na forma de
gado e esposas era concentrado nas faixas mais altas das linhagens
dos chefes, e estes distribuíam o poder hierarquia abaixo para seus
filhos e seguidores leais. O lobo/o era, assim, uma troca simbólica,
mais do que comercial, pelo qual a força de trabalho das mulheres era
incorporada em rebanh os de gado e trocada entre homens ao longo
do tempo e do espaço.
Ao mesmo tempo, é muito significativo que o t.rabalho das mulheres
tenha liberado os h omens para lutar no Exército zulu. A relação entre o
trabalho das mulheres e a força militar zulu é crucial. Nos lares familia-
res, as mulheres forneciam um excedente de alimentos para elas e para
os homens nos acampamentos. A distribuição desigual das mulheres
permitia que o poder masculino fosse ordenado hierarquicamente, den-
tro de uma arena de competição masculina, pelo recurso básico da força
ele trabalho. Assim, quem quer que controlasse a regulação do casamento
controlaria a base de poder da economia. A classe dominante era com-
posta de homens acima da idade de casar, e a classe subordinada, de
mulheres e crianças. Guy chama isso de "uma clivagem fundamental tão
profunda que poderia ser chamada de clivagem de classe", mas a divisão
r fundame~tal era de gênero, pois um filho h omem podia deixar a classe
subordinada com certa idade, quando se casasse com uma mulher, isto é,
,·
'
373
Couro imptrial
374
<:./{Jam(/ia branta do homrm - O diuurso tolonial r a rrin'Cltnção do patriarcado
375
Couro ímp~rial
377
Couro imp~rial
379
Couro imptrial
380
0/iw Jchreintr - Os limiltl d<J ftminism<J C<Jl<Jnial
4. Cronwright-Schreincr, 7he Lifa ofOlit:e Sd;reiner. As demais referências a esse texto serão
citacus como L ift.
Oliw Jrhrd,ur - Os limius do f~minismo rolonial
5. L(lters, p. 56. Para uma análise detalhada das ideias filosóficas de Schreiner, ver Joyce A. .,
Bcrkman, 71,e Healing [,,,agination ofOliw Schreinrr (?vlassachusetts, 1989), e idem, "Thc
•
Nurturant Fant:isics ofOlive Schreiner•, Frontitrs 2,3 (19n), pp. 8-17.
0/iw J,hrtintr - Oi limita do feminismo colonial
7. Olive Schreiner (sob o pseudônimo de Ralph lron), 1lu Story af an Afri,an Farm: A
Ntt:1tl (Londres: Hutchinson, 1910), p. 43.
Couro imptrial
386
0/ivt Jehrdntr - 01 limita do ftmini1mo eolonia/
388
0/iw J<hreiner - Os limites do feminismo ,oltmial
Schreiner jurava que nunca tivera mãe, mas de fato várias figuras de mãe
estavam presentes cm sua infância. Há um momento ritual em quase
todos os escritos de Schreiner em que uma criança em frenético deses-
pero é interpelada e acalmada pela natureza. O deus da natureza de
:,
Schreincr, porém, não é um deus masculino, mas é consistentemente
• J
feminizado. Desejo sublinhar, contudo, que essa natureza feminina é
também branca e anglicizada. Nas alegorias e novela:; <lc Schreincr, a
natureza é uma projeção de um princípio feminino branco, figurado
como uma mãe de vestes longas que se inclina sobre a criança e acaricia
seus cabelos desarrumados.
A relutância inicial de Schrciner cm olhar d iretamente para a políti-
ca da raça aparece mais vivida e problematicamente na figura da hostil,
ameaçadora e antipática hotentote (Khoikhoi) à ~spreita em muitas de
u. Ltflers, P· 97.
Couro imptriaf
suas estórias'3• Mais que nada, era à presença nas sombras das mulheres
africanas em casa que Schreiner devia qualquer sentido de privilégio
que tivesse. l.\tlas essa presença era paradoxal. Algumas das experiências
de Schreiner sobre os limites do poder estavam nas mãos de negras pu-
nitivas. Como criança branca, tinha poder racial potencial sobre as tra-
balhadoras africanas em sua casa; mas essas mulheres possuíam um po-
der terrível e secreto de julgá-la e puni-la. A estória de uma fazenda
africana, o "Prelúdio" a From Man to Man [De homem para homem) e
muitas das primeiras estórias de Schreiner são assombradas pela figura
da "velha aia" zangada, uma reflexão, ainda que oblíqua e negada, à resis-
tência doméstica e ao ressentimento das mulheres africanas - resistên-
cia e ambiguidade que põem radicalmente em questão a ânsia monística
de Schreiner por uma unidade humanística e, mais tarde, uma solidarie-
dade feminista universal.
Qyase sem exceção, as negras na ficção de Schreiner são criadas. Na
História de uma Fazenda Africana, as negras passam como sombras fugi-
dias pela vida dos brancos, sem nome e sem identidade. A noção de que
podem ter vida própria não aparece. No "Prelúdio" de De homem para
homem, a africana é chamada simplesmente Velha A.ia. Ela não tem
nome; carrega apenas uma categoria de trabalho (aia) e a identidade da
servidão. Na ficção de Schreiner, a negra fica no limiar da domesticidade
como figura de i!ltensa ambivalência.
Para Schreiner, como para a maioria dos coloniais, as africanas ser-
vem principalmente como marcos de limites. Sua principal função de
trabalho é fazer trabalhos de limites. Elas param nos limiares, janelas e
muros, abrindo e fechando portas: "A Velha Aia abriu a porta"'4 • No
"Prelúdio", a criança branca pede à criada africana para sair. "O trinco
13. Para análise das atitudes de Schrcincr sobre raça e/ou imperialismo, ver Carol Barash,
"Vi.rilc Womanhood: Olivc Shrcincr's Narrativcs of a l\•lastcr Racc", m,man's S111dits
lnurnational Forum 9, 4 (1986);}. Bcrkman, O/i'CJt Sdm:iner: F~miniJm on ·t ht Frontier(St.
Albans, VT: Edcn Prcss \.Vomcn's Publicacíons, 1979);John Van Zyl, "Rhodcs and Clive
Schrcincr~, Contrast 21 (1969); e Chcrry \.Vilhclm, "Olive Schrcincr: Child of Q\:ccn
Victoria, Storics, Drcams and Allcgorics•, English ir. A/rica 6, 2 (1979), pp. 63-9.
14. Olivc Schrcincr, From i\1an to Man (Londres: Vingo Prer$, 19S9[19~6]), p. 68.
390
Oliw Jchrântr - Os limitts do feminismo colonial
era alto demais para ela. A mulher a deixou sair"1s. As negras atendem os
rituais coloniais e domésticos de limites, separando o dia da noite, a or-
dem da desordem e a vida da morte. Esfregam as varandas, limpam as
janelas, lavam as roupas, recebem os que chegam e em geral medeiam o
t
tráfico entre coloniais e entre africanos e coloniais, marcando com sua
r presença e mantendo com seu trabalho os novos limites inventados en-
l .•
\
tre privado e público, familia e mercado, raça e raça.
1 No "Prelúdio", a Velha Aia, mais que a mãe branca, policia as banei-
' . ras entre negro e branco, garantindo a diferença racial e o decoro: "Des-
i1 ce do muro, menina! Vocé vai ficar queimada como um negro antes que
sua mãe se levante da cama. Ponha seu boné!"16• Numa curiosa reversão
do dogma colonial, as africanas presidem à missão civilizadora e ao cul-
to da domesticidade: "E lave seu rosto e arrume o cabelo [... ] e diga a
1',1ietjie que lhe ponha um vestido limpo e um avental branco"'7• Num
nível simbólico, as estórias de Schrciner expressam o reconhecimento
espontâneo de que as africanas detêm as chaves do poder doméstico dos
brancos: "A VeU1a Aia trancou a porta e guardou a chave no bolso"18 • No
entanto, como Freud, Schreiner nunca traz esse insight para fruição fic-
cional ou teórica. Em lugar disso, desloca sua irritação com o culto da
domesticidade para as criadas negras.
Por que as figuras das africanas têm tal ambivalência para Schreiner?
Em seus escritos políticos e em seu ativismo mais maduros, Schreiner era
notável por seu antirracismo e cm sua simpatia pelos negros, mas cm sua
ficção os africanos são frequentemente enigmas. Especialmente aos
olhos de suas crianças brancas ficcionais, as mulheres africanas assu-
mem um aspecto de autoridade vingativa. De homem para hom em retrata
a Velha A.ia, e não a "pequena" mãe inglesa, como a sinistra figura da
proibição doméstica: "A Velha Aia[... ] a sacudiu pelo ombro. O que vo-
cê está fazendo aqui? Não podia ver que, se a porta estava trancada, você
t não deveria ter entrado? [ ... ] Você é uma criança má e desobediente". A
391
Couro imptrial
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0/ive J,breiner - Os limitts d1J fem inismlJ col1Jnia/
393
Couro impaial
394
Oliw Jc/Jr,inu - Os limitn do J,minismo colonial
395
Couro imptrial
25. Gloria Anzaldua obsen-a que "o ponto focal ou fulcro, aquele espaço cm que fica a mcs·
t,ça, é onde os fenômenos tendem a colidir". "La Concicncia de La Mestiza", Bordn-lan-
dv'La Front=, São Francisco: Spinstcrs, Aunt Lute, 1987, p. So.
397
Couro imp,rial
para seu pai branco e para suas meia-irmãs e seus meio-irmãos. A casa,
como a narrativa, se desenvolve em tomo da negação da mãe negra, e a
ideia do maternal é atravessada pela raça.
Apesar da veemente crítica de Schreiner à ideologia da família espo-
sada pela classe média, a maternidade branca em D e homem para homem
é retoricamente construída como a norma. No processo, as mulheres ne-
gras são suprimidas. Essa supressão cria um paradoxo permanente, pois
fratura o monismo de Schreiner e sua ânsia por um feminismo universal.
A repressão das mulheres africanas perturba o texto, surgindo novamen-
te na narrativa como um excesso, na forma não resolvida da fúria das
mulheres africanas. Nas figuras liminares e furiosas das mulheres afri-
canas, o feminismo de Schreiner encontra seu limite estético e poütico.
poütico e o prazer sensual. Mas a dádiva é abortada, pois seu sono junto
à irmã é interrompido pela furiosa "Velha Aia", implacável parteira da
morte e da diferença, que a repreende pela transgressão e observa que o
bebê está morto. Voltando ao deserto, a menina se deita à sombra de
uma árvore, embalando nos braços um livro em lugar de um bebê, e
mergulha numa série de sonhos dentro de sonhos em que a eterna sime-
tria do cosmos e sua unidade com a natureza lhe são revelados. Da casa,
vem o choro de um recém-nascido.
Nessa pequena parábola de criatividade feminina, encontram-se
muitos dos temas que preocuparão Schreiner: sua sensação de exílio da
comunidade social redimido pela revelação de unidade cósmica, a inter-
dependência das mulheres, o fluido deslizamento entre os papéis de mãe
e filha, a associação alegórica entre escrita e parto, sua projeção do prin-
cípio da diferença sobre a fúria d as mulheres africanas e sua concepção
da escrita como um projeto radical de autocriação e autojustificação.
Nesse exato momento, quando Schreiner começava a tarefa de toda
a vidn de construir sua própria identidade, começava a forjar-se uma
nova economia na África do Sul. Não é, assim, surpreendente que as
contradições de sua sociedade entrassem em sua vida e escritos com
força irresistível.
399
Couro impuial
falta de voz. Uma forma de protesto simbólico, sua asma era uma espécie 1.
de grito convulsivo de socorro. De fato, Schreiner sempre expressaria
frustração co,u a incapacidade de as pessoas interpretarem sua doença.
i.
1
400
~ü
Oliflt Jchrtina - Os limitu do ftminismo colonial
ABJEÇÃO BRANCA
A governanta como marco de fronteira
26. lmers, p. 102. Para uma excelente análise da história fundada no gênero da doença e da
loucura, ver Elaine Showalter, 7ht Female Malady: H~n:en, 1\1adnm and English Culture:
r830-r~o (Nova York: Panthcon; Londres: Vingo, 1989).
27. Apud Jane Graves, "Prefácio a Oli,-c Schreiner~, in ~man and labcr (Londres: Vingo
Prcss, 1978).
401
Couro imperial
31. Mary Poovcy, Unevm DnJtlopmmts: Th~ ld~ologi,al Uórk of Gmd" in Mid- Victorian
England(Chicago: University ofChicago Press, 1988), p. 127.
32. Num belo ensaio sobre Jane Eyrc e a governanta, Poovcy observa que a percepção gene-
ralizada de que as governantas eram um "problema· en desproporcional cm relação tanto
às dificuldades que elas enfrentavam quanto ao pequeno número de mulheres afetadas.
Ainda que certamente consideráveis, as aflições das governantas eram muito menores
que as das criadas de cl:i..sse trabalhodon, que recebiam rnuito mcrrus atenção e simpatia.
Ibidem.
Couro imp~rial
.;.
Não é surpreendente que Schreiner tenha preferido a forma literária da !'.",
alegoria. Todos os seus escritos são alegorias: "Não posso me expressar
senão cm minha própria linguagem de parábolas"J.1. Todas as suas tra-
mas são interrompidas por alegorias, parábolas e sonhos que cintilam
suas incertezas cristalinas como prismas, refratando temas e imagens
em múltiplas direções e dispçrsando seus raios irregulares obliquamente
através do progresso linear da trama. Desde o começo, Schreiner queria
que sua escrita imitasse a imprevisível desordem e a imprecisão da vida:
"o método da vida que todos nós levamos. Aqui, nada pode ser profeti-
zado. I-Iá estranhas idas e vindas de pés. As pessoas aparecem, agem e
reagem entre si e passam"Js_
Waldo, como Schreiner, é afligido pela insônia da alma. Para Waldo,
como para todos os alegoristas, o mundo é a palavra feita carne: "Nunca
pareceu que as pedras falavam coro você?". No começo era o Verbo e a
natureza é o livro de Deus, inscrição divina destinada a ser lida por vi-
sionários e poetas. A· natureza é o "segredo aberto". As pegadas fósseis
de grandes aves, os esqueletos de peixes, os filamentos de uma teia de
arnnha são alegorias cm minialura de uma realidade invariável que ani-
ma todas as coisas: "Todos os fatos verdadeiros da natureza ou do mun-
do estão relacionados". Sob o olhar do alegorista, as múltiplas e variadas
formas da vida se dissolvem numa forma de existência singular e multi-
colorida: a árvore de espinhos esboçada contra um céu invernal tem a
mesma forma que o desenho dos cristais numa rocha, que tem a mesma
Daí a qualidade trágica da alegoria. "As palavras são coisas muito po-
bres"39. Oblíqua e estranhamente incompleta, com sua origem na exegese,
a alegoria tanto estimula como frustra o desejo pelo significado original.
As palavras são as emissárias sagradas da verdade, mas nunca são inteira-
. mente adequadas ao que carregam e, assim, tanto iluminam como obscu-
recem o significado: "Se cu digo que numa pedra, na madeira, nos pensa-
mentos de meu cérebro, nos corpúsculos de uma gota de sangue sob meu
microscópio, numa locomotiva que passa correndo no deserto, eu vejo
D eus, não estarei obscurecendo a opinião com palavras?"40 •
A alegoria, ademais, está no ângulo da memória e do esquecimento;
apontando para além dela mesma, para uma história originária que a
cada momento ameaça desaparecer. Nas palavras de Walter Benjamin:
"Uma apreciação da transitoriedade das coisas e uma preocupação de
resgatá-las para a eternidade é um dos impulsos mais fortes nas alego-
rias"•'. Aqui chegamos diretamente a uma das motivações centrais da
escrita de Schreiner: o desejo de resgatar do esquecimento a história, a
carne e a linguagem - seu grito por "não dci.'<ar a coisa morrer!". A
linguagem era uma resposta apaixonada ao intolerável enigma da morte
e do inevitável processo de dissolução e decadência. A alegoria ofere-
cia a Schreiner a esperança de que a linguagem pudesse redimir a ma-
téria - como ela acreditava quando criança, falando durante dias no
túmulo de sua irmãzinha. Daí o fascínio inteiramente mod ernista de
Schreiner com ruínas, com os mortos respirando, com os enterrados vi-
vos. Como Lyndall-obscrva sombriamente na estória de uma fazenda
africana: "Nem tudo o que está enterrado está morto".
Mas para Waldo, "debatendo-se diante do mistério inescrutável", tais
insinuações de imortalidade são repetidamente postas em perigo pela
catastrófica possibilidade de que tudo seja ilusão: "Sem D eus! Em ne-
nhum lugar!". Andando trôpego e cm andrajos pelo deserto, ele perscru-
ta o céu e a areia teimosos à procura de sinais de Deus, ansiando por "um
indício do inexoravelmente Silencioso". Aqui Waldo reencena um mo-
lizar seu antigo desejo de ser médica. Desde a infância ela partilhava a
frustrada ambição de sua mãe de estudar medicina: "Não posso lembrar
um tempo em que era tão pequena que isso não estivesse em meu co-
ração". Como criança, no deserto, ela dissecava os corações púrpura de
avestruzes e de ovelhas, revelando seus centros sagrados "com uma
sensação de surpresa próxima do ê.xtase". Os rendados filamentos escar-
lates e as misteriosas câmaras de sangue insinuavam o infinito e a espe-
rança alegórica de que "No centro de todas as coisas há um Cor2.ção
Poderoso"_....
Se parte da ambição de Schreiner de se tornar médica derivava de
seu desejo imperial de penetrar no coração do universo, ela também
derivava de uma determinação obstinada de resgatar a vida frustrada de
sua mãe. Assim, Schreiner assumiu seu lugar na tentativa histórica
das mulheres de retomar a habilidade tradicionalmente feminina da
cura, tão violentamente arrancada delas nos séculos precedentes. A me-
dicina oferecia a Schreiner a esperança de reconciliar o conflito entre
seu "impulso" imperial e (convencionalmente) masculino "de abarcar o
infinito" e as atividades (convencionalmente) femininas do dever, do ser-
viço e da compaixão,.s. Tornar-se médica, esperava ela, podia satisfazer
sua "fome pelo conhecimento ex:ato das coisas como elas são"•6 e ao
mesmo tempo resgatá-la da culpa pela sua inteligência: "A vida de mé-
dico é a mais perfeita das vidas; ela satisfaz a ânsia de saber e também a
ânsia de servir"47.
Na África do Sul, contudo, a profissão médica era zelosamente fe-
chada para as mulheres e para os negros. Na Grã-Bretanha, uma fa-
culdade de medicina tinha recentemente aberto as portas para as mu-
lheres brancas, de modo que, em 1881, com 26 anos, Schreiner inverteu
a trajetória de vida de sua mãe e viajou de volta à metrópole, levando
com ela seus dois manuscritos completos: Ondina e A estória de uma fa-
410
Oliw Jchrânu - Os limius do Fminismo colonial
zenda africana, e uma obra inacabada intitulada Saints and Sinners [San-
tos e pecadores].
Os anos que Schreiner passou na Inglaterra (1881-1899) foram anos
n1omentosos. Crises sociais de grande proporção reverberavam através
do país e de suas colônias. Avultava a crise das terras, quando o poder
econômico passava da antiga nobreza para as mãos de industriais e mag-
natas das minas. Vastas fortunas industriais eram feitas nos grandes es-
taleiros e nas enfumaçaclas usinas, enquanto o desemprego em massa e
as greves, as doenças da pobreza e a Grande Depressão assinalavam uma
crise profunda nas relações de classe. O primeiro partido socialista, a
Demorratic Federation [Federação Democrática], foi formado em 1881, o
ano em que Schreiner chegou à Grã-Bretanha.
A crise de classe foi acompanhada por uma crise aguda nas relações
de gênero. l\ilulheres amotinadas se reuniam e assediavam as portas do
privilégio masculino. Durante décadas, mulheres da classe trabalhadora
militaram por direitos e condições de trabalho mais justas. Agora, mu-
lheres de classe média clamavam por melhor educação, o direito ao traba-
lho pago e o direito à cidadania. O Married Women's PropertyAct [Lei da
Propriedade das Mulheres Casadas) foi aprovado em 1882, o Guardian-
ship ofInfants Act [Lei da Guarda das Crianças), em 1886, e as mulheres
obtiveram o direito ao divórcio na França em 1884. A "nova mulher"
tornou-se para muitos homens uma figura profundamente temida e
desprezada, emblemática do caos social e do desgovcrno 48 • A própria
masculinidade era contestada, com a descoberta do bordel masculino de
Cleveland em 1889, o ju1g:imento de Oscar Wilde cm 1895 e a patologi-
zação da homossexualidade. Os homens da classe dirigente reagiram
revoltando-se em Cambridge contra a aceitação de mulheres na irman-
,"
dade e votando por grande maioria cm Oxford contra a admissão de
1, 48. Sobre a "nova mulher", ver Elaine Showalter, Stxual Anarchy, Gender and Culture at tht
Fin dt Sildt (Londres: Viking, 1990}, capírulo 3. Sobre Schrcincr e a no,-a mulher, ver
Linda Dowling, ~Thc Dccadcnt and thc Ncw Woman in thc 189o's", Ninntmth Cq1tury
Fiction 33 (mar., 1979), PP· 434-53; Sandra M. Gilbcrt e Susan C ubar, Stxchanges (New
Havcn: Yale Univcrsiry Prcss, 1989); e idem, No Mn,r's Land (New Havcn: Yale Univer·
siry Prcss, 1986}.
411
Couro imperial
Quarlrrly 21, J (1978), pp. t45-53; Sheila Jeffrcys, 1}u Spinster and Hrr Ennnits: Ftminism
and Stxualiry, 1880-1930 (Londres: Pa.ndora, 1985); Kevlcs D aniel, ln lht Na= ofEugmics:
Gmetirs and tht Uus ofH11man /1,rcdity (Nova York: Knopf. 1985).
Couro imperial
reza da tradição letal do duplo padrão sexual. Baby Bertie, irmã de Re-
bekah, é seduzida por seu amado tutor, que imediatamente foge para a
Europa e, quando confessa o fato a seu noivo, é sumariamente abando-
nada outra vez. Como cm A estória de uma fazenda africana, o movi-
mento da ação é a fuga da família e d as limitações sociais. Bertie escapa
p ara a casa da irmã na Cidade do Cabo, onde se torna a bela predileta
da sociedade até que uma ciumenta socialilr! revela sua vergonha ao
mundo. Posta no ostracismo e desprezada, vai "iver com um judeu rico, . :!.
que monta um apartamento para ela antes de jogá-la na rua para uma 1·~
t~
vida na prostituição. 1.
De homem para homtm condena amargamente a sufocação do intelecto
feminino no casamento. Emparedada na casa matrimonial, Rebekah é
enclausurada no seu ínfimo estúdio; seus escritos minguam a uma suces-
são de fragmentos e esboços. Amortecida no torpor da maternidade, ela é
condenada ao solilóquio. Negligenciada e só, caminhando febrilmente cm
seu estúdio abafado, ela expõe o mesmo credo de monismo cósmico que
sustentou Schreíner no vazio ateísmo do desespero: "Rcbckah sou eu; não
sei mais quem é quem"ss_ No capítulo alegórico central, Rebekah funciona
como ventríloqua do desafio de Schreiner à "velha concepção cristã" do
universo como criação de uma única "vontade individual" masculina, ca-
prichosa e violenta, capaz de reduzir ao nada as "tiras e retalhos e partes
desconexas" d a existência. Recusando-se a ser a imaginação de uma única
mente masculina, Rebekah oferece uma visão alternativa da unidade cós-
mica: o brilho na pena de um pássaro, a inclinação dos planetas, as cores
do arco-íris num cristal - tudo isso participa da grande vida universal. O
prisma lança luz ao sol; o fóssil ilumina a estrutura da mão que o segura.
Cada fragmento é uma minúscula alegoria da verdade inteira, enigmática,
mas transpirando significado.
Chegamos então aqui ao paradoxo familiar na visão de Schreiner.
Rebekah encontra consolo fantasmagórico para sua alienação social
projetando a esperança da comunhão metafísica no "grande e pulsante
todo, sempre em interação", do universo. O problema da comunidade
61. Ver a análise de Walkowitz de •Toe Maiden Tribute", in City ofDr,adful Ddight, capíru-
los 3 e 4.
420
0/i~t Jthrti,ur - Os limita do ftminismo tolonial
MULHER E TRABALHO
421
Couro imptrial
6-1. Schrcincr, 1houghts or. South Ajrita (Londres: Unwin, 1923), p. 79.
65. Idem, op. cit., p. 26.
66. Lttttrs, p. 243.
413
Couro imptrial
pistas históricas da "agonia oculta" de sua vida. Nas décadas que se se-
guiram, trabalhou continuamente nesse monumental "livro do sexo", até
1888, quando faltava completar apenas a última parte.
A primeira observação a fazer sobre o "livro do sexo" é a clara imo-
déstia de sua abrangência. Como Origin ofthe Family, Priva/e Property
and the Sta/e (Origem da família, da propriedade privada e do Estado],
de Engels, o livro era francamente audacioso em sua tentativa de abarcar
a totalidade da história humana num grandioso esquema global. To-
mando de empréstimo sua forma do romance de formação e da narra-
tiva de evolução, o livro tentava fazer a crônica do desdobramento épico
da condição histórica mundial das mulheres. Começando na pré-histó-
ria, a narrativa traçava a trôpega ascensão da humanidade, desde a vis-
cosa noite ameboide, através de tumultuados séculos, até o ruído e brilho
do industrialismo.
A segunda característica a notar sobre o "livro do sexo" de Schreiner
é que quase nada dele sobrevive. A introdução a Mulher e trabalho é um
réquiem truncado ao trabalho perdido e aos anos perdidos. Em 1899,
Schreiner deixou Johannesburgo por causa de sua saúde frágil. D ois
meses mais tarde, estourou a guerra entre os ingleses e os bôeres, e a lei
marcial a confinou à colônia. Em sua ausência, soldados britânicos inva-
diram sua casa, arrombaram as gavetas de sua mesa e fizeram uma fo-
gueira no centro da peça com todos os seus papéis. O!tando ela voltou,
a grande obra intelectual de sua vida estava transformada cm cinzas que
se desfaziam ao simples toque. Ela não tinha cópia.
Meses mais tarde, internada pelos britânicos por seus sentimentos
pró-bôeres numa casa na periferia de uma cidade, cercada por guardas
armados e uma alta cerca de arame farpado, proibido seu acesso a mate-
rial de leitura ou a notícias, Schreiner resolutamente forçou seu pensa-
mento para "longe do horror do mundo [ ... ] a se ocupar de uma questão
abstrata" e reescreveu de memória um capítulo do livro, que tinha origi-
nalmente 12. Publicado como 1vlulher e trabalho em 19n, o capítulo era
um fragmento do monumento original, mas foi saudado por muitas fe-
ministas importantes de sua geração como a ~Bíblia do Movimento das
Mulheres". • •
Olivt J<hrântr - Os limitts do ftminismo ,olonial
67. Schreiner, JJi,man and Labcr (Londres: Vingo Prcss, 1978), p. 33.
68. Idem, op. cit., p. 96.
69. Idem, np. cit., p. 34.
426
0/iw Jchrtintr - Os limittJ do feminismo colonial
líticas, contudo, ela estava muitas vezes à frente de seu tempo.Já em 1891 ·i,;:
ela previra alguma forma de união entre os vários estados e chegou a
antecipar a data, 1910 - errando exatamente por cinco meses. Ela pre-
viu que o país estava "fadado a tornar-se livre, independente, republica-
no e com governo próprio", apenas décadas antes que a África do Sul se
tornasse de fato uma república, ainda que racialmente exclusiva. De ma-
.µ8
Olive JclJrântr - Os limitn do feminismo colonial
neira mais profunda, argumentou que soluções tais como territórios se-
parados para os diferentes povos sul-africanos eram impensáveis, ades-
peito do fato de que a solução do bantustão seria sistematicamen te
posta cm prática apenas depois de 1948. Ela reconhecia os africanos
"como os fazedores de nossa riqueza", e deplorava que eles fossem rele-
gados a reservas e favelas. Salientou a indivisibilidade política de todos
os povos sul-africanos, antecipando por décadas a posição não racial do
Congresso Nacional Africano. De fato, ela argumentava que o laço dis-
tintivo que unia todos os sul-africanos "é nossa própria 111istura .racial
f
. (Pensamentos sobre a África do Sul). Reconhecia o problema de uma clas-
•.•
se trabalhadora racialmente dividida, que mesmo o Partido Comunista
Sul- Africano não percebia na década de 1920, quando os trabalhadores
71. Antonio Gramsci, Prúon Nottbooks, apud Nadine Gordimer,/u6,,} Ptoplt (Londres: Pen-
guin, 1981), p. 1.
430
PARTE 3
•'
O DESMANTELAMENTO
DA CASA DO SENHOR
• 8
O escândalo da hibridez
•,
433
Couro impuial
O ESCÂNDALO DA HIBRIDEZ
1 Elsa Joubert, Poppit Nongma (Londres: Coronet, 1981). Referências adicionais a essa edi-
ção são citadas no texto pelo número d2 p:lgina.
434
O tscdndalo da hibridtz - cA raistlncia das ncgras , a ambiguidad, narrativa
435
Couro imperial
A AMBIGUIDADE CAIADA
A política da recepção
2. David Schalkwyk, "Thc Flight from Politics: An Analysis of thc Rcccption of Poppi, f
N ongm a".]ournal oJSouthrrn Afrüan Studies n, 2 (abr., 1986), PP· 183-95.
3. 1he Cap, Times, 7 ago., 1980. Eastrrn PrtxJinu Hera/d, 17 ,br., 1979. Die Buld, 20 nov., 1978
(tsad. Schalkwyk); 1he Star, 1• out., 1980.
4. 1ht Star, 1• out., 1980; D ie Burgrr, 16 j2n., 1979.
436
O t/((/ndalo da hi/,ridtz - cA ruillinda das negras ta amhiguidadt narrativa
lítica com uma história social real. Como observou Raymond vVilliams,
a fuga para o esteticismo está "acima de tudo relacionada a uma versão
da sociedade: não uma consciência estética, mas uma consciência social
disfarçada em que as conexões e envolvimentos reais com os outros pode-
riam ser plausivelmentc deLxados de lado e então, com efeito, ratifica-
das"s. Na África do Sul, a clivagem entre poütica e literatura assumiu
uma forma peculiarmente paradoxal, e é desses paradoxos que surge a
recepção anômala de Poppie Nongena.
O que o romancista sul-africano Andre Brink chamou de "singular
tropicalidade" de Poppie Nongena surgiu em parte do fato de que "o gru-
po de pessoas no centro da história não é apenas de africâneres falando
xhosa, mas de fato referindo-se a si mesmos como africâneres"6 • Ampie
Coet2ee, ele mesmo africâner, observou que a maioria dos resenhistas
africâneres deu importância ao livro antes e acima de tudo porque ele
estava escrito não em inglês ou num idioma africano, mas em afrikaans.
O Cape Times concordou: "Nesse livro, os africâneres negros falam em
suas próprias vozes autênticas[ ...] Poppie Nongena [ ... ] nasceu africâ-
ner"7. De fato, para Joubert, que não conhecia ünguas africanas, o fato
de que ela e Nongena compartilhavam o afrikaans como primeira língua
foi a condição que possibilitou o livro. "Elsa Joubert destaca que Poppie
fala africâner e como, através dela, se tornou familiar ao africâner falado
pelos negros africâneres"8• No entanto, como colaboração em africâner
entre uma mulher negra e uma branca, o livro escorrega um tanto nas
linhas mais profundas do nacionalismo africâner.
Nunca foi fácil ignorar ou descartar um livro africâner, por mais
1
~, aborrecido que fosse. A língua africâner carrega uma potência quase
r. mística na mente africâner. Como discuto com mais detalhes no capí-
tulo 9, depois da Guerra dos Bôeres (1899-1902), os restos destroçados
437
Couro impuial
438
O acàndalo da hibrida:. - r.A raistincia das 111gras , a ambiguidad, narrati11a
con10 sua primeira língua não podia ser simplesmente lançado ao fogo.
Ao contrário, uma tarefa muito mais difícil de desinfecção política teria
que ser realizada.
Começou então por todo o país um esforço de higiene nacionalista
branco. As poucas vozes que tentaram investigar a complexa e ambígua
política do livro foram afogadas sob o oba-oba unânime que proclamava
que o livro não tinha nada de política, que ele era universal, que lidava
com "questões de família" e, portanto, estava alc:m dos campos da polí-
tica e da história propriamente ditas. Ao mesmo tempo, estava à mão
um discurso crítico bem estabelecido que definia a grande literatura
como apolítica. Na prevalente estética liberal sul-africana branca, base-
ada nas universidades e revistas literárias brancas, a política era vista
como uma atividade suja,feita de polêmicas partidárias venais e de pan-
fletagem, e eivada de preconceitos, autointeresse, lugares-comuns e
mundanidade. A grande literatura, ao contrário, era vista como trans-
cendendo o quotidiano medíocre, habitando um inescrutável domínio
hermético de verdades essenciais e atemporais. Obras de arte que encar-
nam essas verdades são dádivas de gênios individuais e exemplificam
uma unidade de visão, uma totalidade de experiênàa, valores imanentes
e universais, ironia de tom, complexidade de forma, sensibilidade culta e
\
discriminação moral, acima das platitudes de dogmas políticos. Era as-
sim a familiar estética liberal herdada pelos acadêmicos brancos treina-
dos na escola de Leavis.
Não se deve esquecer que a separação h istórica entre literatura e po-
lítica começou, na história ocidental, quando gr.mdc número de mu-
lheres começou a ler e escrever. Qyando "a massa danada de escrevinha-
doras", na expressão azeda de Nathaniel H awthorne, entrou no domínio
literário público, a literatura foi definida como separada da política. De
modo similar, quando os países colonizados chegaram à independência,
depois da Primeira Guerra Mundial, e quando número significativo de
homens e mulheres negros entrou nas universidades, insistindo em de-
finir urna alternativa à sagrada subjetividade masculina branca; precisa-
mente nesse momento soou o réquiem sobre o assunto. No momento
preciso cm que vozes não emancipadas clamavam impetuosamente pelo
439
Couro imptrial
440
O tmJnda/r, da hibridt: - cA rtsistlnâa das mgras ta amhiguidade narrativa
vro era apolítico. Ela foi amplamente citada chamando-o de nada mais
que "uma estória de puro interesse humano"4 . "A questão é que", justi-
fica ela, "não é um livro político. Eu o escrevi porque era um tema que
me interessava. Eu queria mostrar a pessoa como ser humano. E é até aí
que vai meu interesse". Na manchete Die Oosterlig assegura, satisfeito, a
seus leitores: "Política não é sua motivação", como se livrasse Joubert de
alguma sórdida contravenção'5• Uma e outra vez, grandes jornais trom-
beteavam a evidência da intenção autoral (o que, podemos imaginar,
f
..
pensaria Nongena?). Não podemos descartar as prevaricações de Juu-
bert como o cuidado de um autor por medo em relação à sua vida ou
arte. Ao contrário de Nongena, ela não corria perigo imaginável. Em vez
disso, sua vida como mulher e mãe lhe emprestava uma afinidade de
gênero e uma empatia muito genuína por Nongena, mas o lugar recen-
temente adquirido no mundo da intelligentsia masculina branca subli-
nhava sua lealdade a urna ideologia de distanciamento estético da polí-
tica. Ela podia ir até ali, mas não podia ir adiante.
A posição contraditória de Joubert também derivou da crise geral da
intelligentsia liberal. Como argumento com mais detalhes no capítulo 9,
durante os anos 1970 testemunhamos, pela primeira vez na África do
Sul, uma procura dos escritores negros por parte dos escritores e críticos
brancos, que tentavam tomar emprestada a autenticidade dos escritores
• negros para compensar sua própria legitimidade em baixa. O privilégio
da educação pode alimentar uma sensação de isolamento e de falta de
representatividade - aguçada até a urgência pela rebelião de Soweto.
Falar através da voz dos que estão fora do poder torna-se, em parte, uma
forma de diminuir a marginalização do privilégio.
A caiação pública de Poppie Nongena como apolítico surgiu, então, a
partir das maneiras pelas quais as contradições do momento se fundi-
'\
t
ram e se forjaram mutuamente: as lealdades conflitantes de gênero e de
classe de Joubert; a peculiar imunidade do escritor africâner; as contra-
dições no interior do nacionalismo africãner; a rejeição negra dos afri-
Forma é poder.
H obbes
16. Ivlarnca Lazrcg, •Fcminism and Oitfcrcncc: Thc Pcrils ofvVriting :LS a \-Voman on Women
in Algcria", Frminist Studia 4, 1 (191111), pp. 81-107.
O tscJ11da/q da hióridt:: - ui rtsilftnâa das negras t a amhigu idadt narrati-ua
17. Jean Marquard, "Poppie", English Studits in A/rira 28 (1985), pp. 135-41.
18. 1ht Sowttan, 18 jul., 1981. Dit Bu ld, 2 2 mar., 1979. Dit Oggmó!ad, 28 fev., 1979. RappMt, 3
dez., 1978.
19. Sobrecapa da edição de 1980 de pqppit Nongma; Sunday Tim,s, 3 dc,e., 1978. Rapport, 14
fev., 1979.
443
Couro imp~rial
444
O tsc4ndalo da hibridt::. - <.A rt1i1tlncia das ntgras ta aml,ig11idadt narrativa
livro "não é uma alegoria, mas a verdade nua", com base em que J oubert
chama o livro de romance e reivindica o status de única autora?
O uso, por Joubert, da metáfora aristotélica da arte como superfície
mimética da verdade da vida e da imagem de si mesma como mera-
mente segurando o "espelho" para a "realidade" da vida de Nongcna evi-
''
$ ta as questões poüticas e estéticas levantadas por suas próprias inter-
venções editoriais e por isso obscurece a ambígua política de colaboração
feminina em que a narrativa está inscrita e pela qual está visivelmente
marcada.
Além disso, as alegações de Joubert são contraditórias. Ela insiste em
que não é nada mais que um refletor mimético, entregando a verdade
nua da autêntica voz falada de Nongena sem mediação ou intrusão. lVIas,
•\
quando ela quer defender a falta de política do livro, arroga-se o privilé-
gio da intenção autoral. Essa contradição aparece mais notavelmente na
página dos direitos. No prefácio de Joubert se lê: "Este romance seba-
seia na história real de uma negra vivendo hoje na África do Sul. Apenas
seu nome, Poppie Rachel Nongena, nascida matati, é inventado. Os
fatos me foram relatados não só pela própria Poppic, mas por pessoas de
sua famüia imediata".
Essa nota e os direitos na mesma página estão, assim, em desacordo.
O prefácio atesta a falta de invenção de Joubert. Mas os direitos assegu-
ram seu título legal à narrativa como sua única criadora. Chamar a nar-
rativa de romance é elevar as expectativas de um tratamento ficcional ou
inventivo dos fatos . l\llas Joubert afirma que seu "romance" se baseia
apenas nos "fatos" de uma história de vida real. "Apenas seu nome, Pop-
pie Rachel Nongena, nascida matati, é invcnlado". Pode a invenção de
um nome tornar uma história de vida uma obra de ficção? No mesmo
diapasão, que decreto de arrogância branca permite que Joubert reivin-
dique para si mesma o status gerador de autora? Qie conceito de pro-
priedade da narrativa lhe dá o direito ao poder exclusivo do copyright,
quando a narrativa é manifestamente e de todas as maneiras a produção
'
coletiva de duas mulheres? De fato, a ideia da propriedade textual indi-
vidual (conceito que surgiu no século XVIII, quando escritores pela pri-
meira vez se acharam capazes de ganhar a vida com a venda de seus li-
445
Couro impuial
22. Philippe Lcjcunc, L'Autobiographit m Franu (Paris: Armand Colin, 1971), postcriormcn-
Lc modificado c m Pau autobi,graphi9ue (Paris: Scuil, 1976).
447
Couro i111ptrial
23. Paul Thompson, "History and Communit)'~. in David K. D unaway e \.Yilla K. Baurr.
(org,.), Oral Hutr>ry: An Interdisciplinory.Anthology(Nashvillc: Amcrican Association for
Statc and Local H istory, 1984), p. 39.
O eudndalo da hibridn. - cA roirténcia das ntgras t a ambiguidadt narrativa
24. Samuel Hand, "Some \.Yords on Oral Histories", in idem, op. cit., p. 52.
25. Frantt Fanon, 'Tht Wrttthtd oftht Enrth (Nova York: Grove Press, 1963), p. 77.
449
Couro impuial
45º
O ewJndalo da hil,ridtr. - :A rnistintia das ntgras t a arn!,iguidadt narrativa
16. Teresa de Laurctis, Technologia ofGmdn: Essays on 1luory, Fi/m and Fiaion (Blooming-
ton: Indiana Universicy Prcss, 1987), pp. 1- 2 .
1.7. Idem, op. cit., p. 5.
28. I bidem.
45 1
Couro j,,1paial
29. Biddy Martin, "Lesbian l dentity and Autobiographical Differencc[sr, in Bella Brodski
e Celeste Scbenke (orgs.), LifdLinu: 1heorizing Wommi /lutohiography (Ithaca: Comell
Unive rsity Press, 1988),p. 81.
30. Audrc Lorde, "Age, R:i:e, Class and Scx: \Voman Rcdcfining Differcncc", in Sisur Out-
sider: Essays and Spuch,s (Trum:msburg: The Crossing Prcss, 1984), pp. 120-1.
45 2
O rsc4ndalo da hibridt::. - cA rtsistln<ia das ntgras r a ambiguidade narratfoa
31. Uma exceção importante t Chcryl Walkcr, Womrn and & sistanrr in South A/rira (Lon-
d:es: Onyx Press, 1982). Ver também Jo Bcul, Shireen H assim e Alison Todcs, "A Bit
0:1 the Sidc? Gendcr Struggles in Toe Politics ofTransformation in South Africa", Ftmi-
niJt Rrvin.u 33 (Outono, 1989). Frene G inwala, •ANC Womcn: Thcir Strcngth in the
Struggle", J¼rk in Progms 45 (no·,.-dcz., 1986), pp. n - 4.Jacklyn Cock, iWaids and Madams
(Johannesburgo: Ravan, 1980); e Mamphcla Ramphc:lc e Emile Boonzaaicr, "Toe Posi-
tion of African Womcn: Race and Gcndcr in South Africa", in Boonzaaier e J. Sharp
(orgs.), South .11/riran Krywords (Cidade do C abo: D a\id Philip, 1988), pp. 153-66.
32. Ver Sandra Gilhcrt e Susan Gubtr, 1he Madwoma11 in lhe Attic: 1ht i~ma11 IVriter and tht
Nineuenrh Cenrury LiJcru,y lmaginatúm (Ncw H avcn: Yale U nivcrsity P~ss. 1979), c-:apí-
tulo 1, para a metáfora de escrever como poder fálico.
33. George Gusdorf, tido como o primeiro especialista da teoria autohiográ.fica, chama a
autobiogra_fia de uma "apologética e uma teodiccia do ser indi\idual", e fala da afinidade
da autobiografia com os espelhos venezianos com fundo de prat,: dai cm diante o texto·
espelho refleti ria a imagem oarcisístic:a do cu. Ver Gusdorf, "Conditions and Limits of
Autobiography", i n J ames Olncy (org.), Autobiography: Essays 1heorttical and Criticai
(Princeton: Princcton Univcrsicy Prcss, 1980), pp. 32, 39. Olncy define o autobiógrafo
como um cu (masculino) separado e singular. O autobiógrafo "está cercado e isolado por
sua p rópria consciência, que swgiu de uma hereditariedade singular e de uma singular
experiê ncia". Mttaphors of Stlfi 1hr Mtaning of Autobiography (Princeton: Princeton
University Pr~ss, t972), pp. 22-3.
453
Couro imperial
34. Cusdorf, "Conditions and Limits of Autobiography", pp. 29, 30, 33.
35. Ide m, op. cit., p. 29. 1
36. Lcila Ahmcd, "Bctwccn Two Worlds: 'Ihc Formation of a Turn-of-thc Ccntury Egyp-
tian Fcminist-, in Brodski e Schcnkc, LifvLinL<. . .• p. 54.
454
O n,tJndalo da hihridn. - e.A ruistlnd a das ntgras, a amhiguidad, narrativa
37. Nos Estados Unidos, como observa Carolyn H eilbrun, só 3 partir de 1980 os críticos
masculinos se deram ao trabilllo de falar das inúmeras autobiografias de mulheres que
existem. Carolyn G. Heilbrun, "Women•s Aurobiographical 'Writings: New Forms", Prou
Studiu 8, 2 (ser., 1985), p. 14. A coletânea de 19So de James Olncy, por exemplo, dedica um
soliruio ensaio a autobiografias de mulheres, enquanto foram 15 os dedicados a autobio-
grafias masculinas. O relato de Paul Fusscl das autobiografias sobre a Primeira Guerra
Mundial não menciona uma única autobiografia feminina, embora por urna estimativa
houvesse pelo menos 30 relatos femininos subst:mciais da guerr:a. Ver Lidwien Heerkens,
"Becoming Lives: English Women's Aurobiographies of rhe 193o's", dissertaçio de mes -
trado, University of Leicester, 1984.
38. Mary Mason, por exemplo, :úinna: *Não encontramos nu ltuwbiogranas de mulheres os
padrões estabelecidos pelos dois autobiógrafos masculinos prototípicos, Agostinho e
Rousseau; e, inversamente, homens escritores nunca tomam os modelos arquetípicos de
Julian, Maigerey Kemp, Margaret Cave ndish e Anne Bndstreet•. "The Othe r Voice:
Autobiographics ofWomen Writers", in Olncy,Autohiography, p. 210.
39. Estellc C. Jelinek (org.), Womtni Autohiography: E1say1 in Crit friJm (Bloomington:
Indiana University Press, 1980), p. 17. Nem as autobiografia.s de mulheres florescem
nos pontos altos da história masculina - revoluções, batalhas e levantes nacionais - ,
• mas crescem segundo as mudanças de clima de outras histórias. Tipicamente, as autobio-
grafias masculinas reinventam as vidas de líderes militares, estadistas e figuns públicas,
enquanto, como C onway observa, não há modelos para a narrativ2 feminina de vidas
políticas de sucesso, nem modelos para a admissão pública da ambição, nem para os es-
tágios ~apropriados• de uma carreira.
455
Cour11 imptrial
f 44. Ann Jones pergunta, por exemplo, se as mulheres negras, que foram marginalizadas de
r
1 rr.uitas maneiras difen:ntes que as mulhen:s brancas, cxperimenum o corpo e a lingua-
1 gem como as mulheres brancas. A que mulheres será permitido es::re,-cr o novo corpo? O
i
~
que a ideia de reformular o mundo :através d:i jauissanu semiótica da p:1favr3 escrita sig-
nificará para mulheres de culturas orais, para mulheres que estão ficando cegas fazendo
l 457
Couro imperial
A POLÍTICA DO GÊNERO
E A IDENTIDADE SOCIAL
46. Nellie MacKay, "Racc, Gcnder and Culrunl Context in Zora Nealc Hurston's Dust Trah
on a Roaã, in Brodski e Schenkc, Life/Lints... , p. r76.
47. Audre Lorde, Z ami: A Nr-w Sprlling of My Name (N0\"3 York: Crossing Press, 1981),
p. r39.
O u,dndalo da hi/Jridn:. - vi rtsistlnda das ntgra, ta am/Jiguidad, 11arrativa
Nós somos xhosa, de Cordonia, diz Poppie. Minha mãe costumava nos con-
tar de nossa bisavó Kappie, uma velha rica que apascentava suas cabras nas
colinas deste lado de Ca.rnarvon [... ] Ela contou à nossa mãe sobre os velhos
tempos [ ... ] Nós vimos os bõercs vindo a cavalo, ela disse [... ) E então Jaan-
tjie foi com eles[ ... ] Jaantjie, pega os cavalos e foge,gritou o bôer quando viu
os soldados ingleses [ ...] mas então, velha - assim ele veio e contou à nossa
bisavó Kappie - seu filho estava morto (p. u).
459
Couro imptrial
.
t um laborioso sopro de vida. A memória, nas palavras de Don Mattera, é
~ uma arma49• É um instrumento contra o esquecimento, uma estratégia
de sobrevivência.
i~
1
A permeável construção coletiva da identidade em Poppie Nongena é
marcada de maneira mais visível pela ausência de aspas para distinguir
uma voz da outra. À medida que a narrativa avança, o leitor é convidado
a ajustar-se rapidamente à algaravia de vozes e de identidades narrativas.
A identidade passa a ser experimentada como uma constante reformu-
lação dos limites do eu; de faro, !:'assa a ser vista como o resultado cam-
biante da experiência comunitária mais que de qualquer singularidade
do ser. Para continuar a ler, somos obrigados a abandonar a nostalgia
libeml por uma perspectiva centrada e soberana presidindo a consciên-
1 cia. De fato, somos convidados a ceder a uma noção alternativa de iden-
••f
1
tidade recíproca, relacional e instável. Essa metamorfose instável dos
l
r limites é muito diferente da identidade fraturada e desmanchada do
pós-modernismo ocidental, que tem como contorno uma nostalgia trá-
gica pelo humanista individual centrado. Em Poppie Nongena, a identi-
dade é vivida como comunitária, dinâmica e cambiante, mais que como
fraturada, imóvel e solitária. Os limites do cu são permeáveis e estão
constantemente abertos à mudança histórica. Desse modo, a narrativa
oferece certo número de desafios às teorias hegemônicas da narrativa e
da identidade autobiográficas.
A INVENÇÃO DA FAMÍLIA
nou a família, foi à guerra e nunca mais foi visto. "Ele nunca cuidou de
meus filhos como um pai deveria ter cuidado, disse [Lena] a Ouma
Hannie. Não tenho lágrimas para verter por Machine Matati" (p. 33).
Machine Matati não foi exceção. Estima-se que durante as primeiras
décadas do século XX, três quartos de todos os homens negros viviam
afastados de suas famílias por mais de meio ano, levados por ambição
por terras, pobreza, impostos e desespero para as vilas e cidades. Mas as
consequências para as mulheres, desse maciço desmembramento de suas
familias, foram contraditórias.
Por um lado, a estrutura do trabalho dentro dos lares negros permitiu
que as mulheres resistissem à proletarização por períodos mais longos
que os homens. Como elas eram as agricultoras tradicionais, podiam
continuar teimosamente a trabalhar a terra e a lutar por suas comunida-
des, enquanto os homens se. espalhavam para vender seu trabalho nos
mercados. As mulheres continuaram independentes do eixo da formação
capitalista por períodos mais longos e, assim, foram capazes de maior
militância e recusa.Assim foi que as mulheres, e não os homens, tiveram
sucesso na recusa dos salvo-condutos em 191350• Ao mesmo tempo, con-
tudo, as negras sustentaram os esforços de suas familias para sobreviver
e sofreram mais intimamente as crueldades da pobreza, da fome e das
doenças, do desemprego, da desnutrição e das mortes das crianças no
campo. O s homens podiam aparecer brevemente, no máximo uma vez
por ano, ficar por um par de semanas e então desaparecer, quem sabe por
anos, quem sabe para sempre. Mas na ausência dos homens, as mulheres
ficaram m ais autônomas e mais autossuficientes. Foi assim na família de
Poppie Nongena.
Na narrativa, O uma Hannie preside, como uma matriarca em trapos,
os casamentos e nascimentos de seus filhos e netos, assumindo os netos
e criando-os como criara seus filhos. Lena, mãe de Nongena, é forçada
a trabalhar para uma familia branca numa cidade a mais de cem quilô-
50. Ver J ulia '..Vells, "Why '1Vomcn Rcbcl: A Compantivc Scudy ofSouth African Womcn's
Rcsistancc in Blocmfontcin (1913) and Johanncsburg (1958) ",journal ofSouthtrn Afrfran
Studiu 10, 1 (1984) , PP· ss-70.
O tu6ndalo da hibridn. - ui rnistlnâa das ntgras e a ambiguidade narrativa
metros, de tal modo que Nongena e seus irmãos vivem com a avó, entre
os galinheiros e as ruas arenosas das favelas, vendendo de tudo e lavando
roupas para os brancos. Ouma H annie "é muito estrita com os filhos"
(p. r4); é ela a autoridade na familia. Ela decide os casamentos, controla
as cerimônias do dote e recebe os dotes pelos casamentos das filhas.
A fam ília de Nongena torna-se constantemente um lugar de briga e
divisões, tanto dentro da familia em relação ao trabalho doméstico das
mulheres quanto entre a família e o Estado. Os limites da família mudam
sem cessar; as relações de parentesco são fluidas. É uma família sem pais
e não há mãe natural. "Nós amávamos Ouma, mais do que a nossa mãe",
diz Nongena (p. 17). A identidade da maternidade é múltipla e cambian-
te - como é o caso da maioria dos sul-africanos. Como diz Johanna
Masilela sobre as crianças a seu cargo: "Elas me tomavam como sua
verdadeira mãe. Porque não conheciam suas mães. Costumavam ver
suas mães no fim da tarde. Eu era a mãe delas"5'. Qyando O uma Hannie
assume um emprego doméstico cm que dorme no emprego com uma
família branca, Nongcna e seus irmãos são alocados com parentes em
lugares diferentes. Qyando a mãe de Nongena acaba voltando para ten-
tar reunir a família, seu filho, Mosie, "chamava Hessie de mãe porque
vivera com ela muito tempo" (p. 36); e Lena ralha com Poppie: "E agora,
você não conhece seu irmão, ali está Mosie"(p. 35). A ideia de uma famí-
lia nuclear natural, chefiada por um só homem, perde toda a caracterís-
tica e se esfacela no mundo. Avós são mães; primas são irmãs; irmãos são
esquecidos; não há pai; as mães são estranhas e depois mães outra vez.
J untos e sep arados, a familia de Nongena anda de cidade em cid:uie -
então se assenta brevemente em Lambert's Bay, no gelado Atlântico,
onde todos vendem seu trabalho à indústria do peixe.
A fluidez ou multiplicidade da identidade nascida dessa situação não
representa uma mutilação ou deformação da identidade. Antes, é elo-
quente de uma capacid ade resistente e flexível de atravessar os limites
51. ~Lec me Make History Please': lhe Story of Johanna Masilcla, Childminder", in
Belinda Bouoli (org.}, Clasi, Community and Conjlict (Johannesburgo: Ravan Press,
1987), p. 472 •
Couro impuial
52. Nancy Chodorow, 1he &production of Mothmng: Psy,hoanalysis and lhe S«iclogy o/
Ctnder (Berkeley: Univcnity ofCalifomia Prcss, 1978), p. 169.
•
53. Ibidem.
O tscàndalo da hibridtz - cA raistlnda das ntgras t a ambiguiáadt narrativa
Eu deixei de t.r abalhar para o l\ilr. Pullcns por causa do bebê e então tinha que
ficar cm casa e cuidar dele. A criança mamava no peito e é difícil entregar
uma criança que mama para outra pessoa cuidar. Esse filho era só quatro
meses mais novo que o último filho de minha mãe, sua filha chamada Geor-
O tudndalo da hibridtz - cA rtsisllncia das Mgras ta ambiguidade narrati'lla
gina, que ainda chamamos de Bebê. O filho de Poppie nasceu em casa. Uma
enfermeira distrital xhosa, Bam, a ajudou. Foi uma menina e foi batizada
como Rose na Igreja da Santa Cruz. Seu nome xhosa era Nomvula, que quer
dizer criança nascida no dia cm que choveu.
54. Ver Ann Banficld, "Thc Formal Cohcrcncc of Rcprcscntcd Spccch and Thought", PTL·
A journalfar Dcscriptiw Poclics and 1Juory of Litn-aturc J (1978), pp. 289·314; e Dorri1
Cohn, "Narra1cd Monologue: Dcfinition of a Functional Stylc", Comparaliw Litnatur,
14, l (1966), PP· 97-112.
Couro imptrial
55. Ver Doris Sommer, MNot Just a Pcrsonal Story: \ ·Vomcn's T,11imonio1 and thc Plural
Self", in Brodski e Schenke (orgs.), Lifc/Linu ... , p. nS.
O ,mJndalo da hibridrz - cA raistlncia das 11,gras , a ambiguidad, narrativa
i
'
Na África do Sul, a identidade social das mulheres é mediada pela
relação de casamento. O casamento de Nongena é uma cerimônia li-
minar, uma metamorfose que assume forma simbólica na troca riruali-
zada das roupas. A passagem simbólica para outras roupas marca urna
passagem econômica - a transferência do trabalho de Nongena da fa-
milia de sua mãe para o marido e, através dele, para sua familia [do
marido]S7• "Você sabe que não casou só com o homem, você casou em
sua família (p. 72) [ ...] Eles esperam que você trabalhe para eles" (p. 74).
I
56. Heidi H artman, *The Family :as the Locus of Gender, Class and Political Struggle: The
Example of Housework", Signs 6, 3 (1981), PP· 366-94.
57. A submissão do trabalho feminino aos homen.s e anciãos na cerimônia do casamento está
consagrada num provérbio zulu que resume o significado simbólico da mudança de rou-
pas: a!tuqhala-qhala /ablui ilidwaba - nenhuma mulher hostil jamais derrotou uma saia
cc couro.
Couro imp,rial
58. Como argumentou Christine Dclphy, a classe de uma mulher casada é tipicamente defi·
nida não por sua relação <eonómfra com a produção, mas por sua relação S<Xial com seu
marido: •A relação das mulheres com a classe é indireta: mediada pela relação de casa-
mento". Assim, para as mulheres o casamento é fundament;ilmente a entrada numa •re-
lação de trabalhoR:·o casamemo é a instituição pcb qual trab:ilho gratuito é extorquido
de uma categoria particul:ir da populaç~o, as mulheres-esposas". O casamento é a i:isti-
tuição que legaliza a apropriação doméstica do trabalho das mulheres. C/ou to Hom,: À
ll1at"ialist Analysú efWomm~ Opprmion. Trad. e org. Diana Leonard (Amherst: Univcr-
sicy of Massachusetts Press, r984), pp. 68, 87, 63, n-
59· Como disseram Kum-Kum Bhavnani e Margaret Coulson: "No contexto <la opressão
racista, as famílias negras sio frequentemente não 'antissociaisº no sentido usado por
Barrei e Mclntosh, mu podem tornar-se não só uma base para a solidariedade como
também a luta contra o racismo". "Transforming Socialist Feminism: The Challenge of
Racism", Funinist RNiinJJ 13 (jun., 1986), p. 89. De nodo simil:tr, Valerie Amos e Prati-
bh~ Parmar observam que as negras tem relações muiro diferentes com a previdência,
a imigração, as escolas e a polícia. "Challenging Imperial Feminism", Ftminist R~•inJJ
17 (1984), p. 5. Nem todas as casas de família são iguais aos olhos da lei. Ver também
Barret e Mclntosh, "Ethnocentrism and Socialist·Feminist Theory", Ftminist Rrr;i,w
20 (r984).
470
O tsetfodalo da hibridtz - cA ruistln,ia das n,gra, , a ambiguidadt narrativa
471
Couro imptrial
6z. S. A. Rogers, apud Cole, Crossroads, p. 7. A poli1ica pan limilar a presença africana, como
se desdobrou entre 1962 e 1969, tc,·c uma dupla estratégia dirigida espcdficamcn1c ~s
mulheres: não seriam construidas mais casas, e o trabalho das mulheres seria tornado
virtualmente impossível. Entre 1966 e 1976 foram construidas menos de 4 mil casas. E m
1974 o (orwelliano) Departamento de Desenvolvimento Comunitário estimou cm 40 mil
a falta de casas apeou par.i a popubç:io de cor. Ncua época, a presença de assentados
disparou: cm 1974 havia estimados 37 acampamentos apenas na península.
472
r,·.
.•
O tSUJndalo da hibridn: - vi usistlncia das n egras e a ambiguidad~ narrati-ua
outra vez, os pés gastos, arrastando-se para casa pelos matos escuros e
assustadores, trêmula de fadiga, com papéis talvez para mais uma sema-
na, então talvez um mês, ou apenas alguns dias. Seus anos se medem
segundo o calendário caprichoso e despótico do carimbo do burocrata
branco. "As datas, gravadas nos regos do carimbo, são giradas por um
r
1
movimento de seus dedos" (p. 184). Cada viagem de ônibus com sucesso,
cada carimbo novo é mais um rito de desafio, mais um ato de recusa.
Durante sete anos, depois dez, ela afirma sua obstinada recusa ao
r decreto até que, no final dos anos 1960, lhe dizem para deixar a cidade,
sem recurso possível. Em 1964, num ato de crueldade indescritível, são
! feitas emendas à Lei das Áreas Urbanas e Trabalho Bantu, que tornam
virtualmente impossível para uma mulher qualificar-se para o direito de
permanecer numa área urbana. Não era mais permitido que esposas e
filhas dos homens residentes ficassem, a menos que também elas esti-
i
' vessem trabalhando legalmente. F. S. Steyn, representante de Kempton
Park, afirmou a posição de maneira direta: "Não queremos a mulher
bantu aqui simplesmente como auxiliar da capacidade procriativa da
população bantu".
A vida passou a ser uma corrida para esconder-se. Nongena e outras
mulheres se escondem debaixo de cam as ou em banheiros e guarda-rou-
pas, ou nas matas, até que a polícia se vá. Finalmente, a autorização de
Nongena é picada em pedaços e jogada sobre ela. Grávida de nove me-
ses, Nongena cede, dá à luz, é esterilizada, e concorda em partir para o
acampamento Mdantsane, um lugar nu e estéril em Ciskei, ainda vazio,
onde lhe é alocada uma casa de uma peça de cimento bruto, sem forro,
sem água, nem eletricidade, a 20 quilômetros de ônibus da cidade bran-
ca de East London.
Nesse ponto da narrativa, os paradoxos da relação de Nongena com
sua família se tornam arriscados. Seu senso de identidade, sempre incx-
tricável de sua relação com a comunidade, começa a se deslindar. Seu
isolamento se torna um martírio privado, não visto nem reconhecido, e
• a narrativa registra sua crise de percepção e a apresentação do cu em
tempos misturados, repentinas mudanças inesperadas, deslizamentos de
pessoa e mistura de vozes.
473
Couro imprrial
A MEMÓRIA É A ARMA
474
O twJndalo da hihridt:. - cA rtsistlnâa das ntgras t a amhiguidade narrativa
e."<plícito 'sujeito plural', mais que o sujeito singular que associamos com
a autobiografia tradicional". Como é o caso de Poppie Nongena, "a sin-
gularidade" do narrador "alcança sua identidade como extensão do cole-
tivo". No entanto, a voz plural é plural não no sentido de falar pelo todo,
ou representar o todo, mas no sentido de que não pode ser ouvida fora
de sua relação com as comunidades (no caso de Nongena, a familia, a
igreja e, finalmente, a revolução nacional). O leitor é, assim, convidado a
participar numa re<le de relações que se estende a partir de todos os
centros e através de muitas dimensões do tempo.
O "testemunho" é sempre dialógico e público, com um cu coletivo e
não individual. Como na narrativa de Nongena, os "testemunhos" visi-
velmente apresentam uma encenação da diferença social cm que um
escriba privilegiado registra o testamento oral do não privilegiado. "Tes-
temunhos" têm, assim, uma qualidade oral e performática que outras
autobiografias não têm, carregando a marca das vozes dos dois que fa-
lam, a natureza dupla da escrita e a autoridade dispersa da voz. "Pois, à
diferença do momento privado e solitário da escrita autobiográfica, os
"testemunhos" são eventos públicos". Na mesma direção, "os 'testemu-
nhos' estão relacionados ao texto da luta[ ...] [e] são escritos de posições
interpessoais étnicas e de classe".
Por causa da natureza coletiva e pública d a narrativa "testemunhal",
a identificação do leitor com a persona narrativa é sempre desviada. Em
Poppie Nongena, a rápida oscilação de pessoa e voz impede uma identi-
ficação fácil com qualquer perspectiva singular. A relação de Nongena
com seus prováveis leitores é inevitavelmente problemática, envolvendo,
como envolve, transgressões de afinidades de classe, de raça e de gênero,
para não falar de idioma e de país. N ão é remotamente imaginável uma
simples unanimidade de leitores, e a narrativa reconhece seu desequilí-
b rio histórico com sua recusa a ceder um único ponto da identidade.
Com efeito, essa técnica solicita o leitor a entrar em colaboração com a
história coletiva. O leitor é convidado a estender a comunidade histórica
e essa extensão não é simplesmente abraçar uma dada comunidade, mas
envolve participação ativa, o trabalho de identificação e, acima de tudo,
escolhas d ificeis sobre a política de transformação social.
475
Co,,,o impu ial
477
... ,
9
"Azikwelwa" (não vamos embarcar)
Resistência cultural nas décadas desesperadas
1. Surgiram pelo menos trés :m:\lisc:s gerais do levante de Sowcto: em•olvimento mais pro-
fundo do CNA na comunidade; tensões no sistema educacional, desemprego e rccess:lo
com maior militância industrial derivando das greves do início da década; e o surgimen-
to da ideologia da ~consciência Negra". Ver Tom Lodge, Bla,k PolítiCJ in South Afri<a
Sínu r945 (Johannesburgo: Longmans, 1983), pp. 321-62.
2. Ver M. K. Malcfanc, •lhe Sun \.Vill Rise': Rcview of thc Allah Poccs at thc I'vlarkct
Theatrc, Johanncsburgo", Stajfrider (iun.-jul., 1980), reeditado in Michael Chapman.
SoweffJ Poetry (Johannesbwgo, 1981), p. 91.
479
Couro impuial
3. "About Stajfridn" (editnrbl), Staffrider 1 (ma.io-jun., 1878), reeditado in idem, op. cít.,
p.125.
4. Michael Kirkwood, apud Ursula A. Bamctt, A Jruion of Order: /1 Study af Biar/;; South
African Litrraturt in English, 1914-1980 (Amherst:The Univcrsity ofMassachusetts Prcss,
1983), P· 37·
5. Nick Visscr, wStajfridrr-. An lnfonnal Discussion': lntcrview with Michael Kirkwood",
English in A/rira 7 (set., 1980 ), reeditado in Chapman, StX1Jtto Ponry, p. 129. Stajfridtr foi
conccbid:i cm 1977 dur:mte discussões com grupos como o Grupo de Artes Mpumul:inga.
Um dos mais conhecidos entre esses grupos, os Escritores Mcdupc, com mais de 200
membros, levara lei turas de pocsit às escolas e comunidades e foi imedi aramente banido
cm outubro de 1977, juntamente com a Organização dos Estudantes Sul-Africanos, a
Convenção dos Negrns e outras organi~açõcs da Consciência Negra.
Couro impuial
6. Visser, "Stajfrider... -.
7. Stajfrider (maio-jun., 1978), apud Bamett, A Vision ofOrder. .. , p. 38.
8. Stalfrider (jul.-ago., 1978), apud ibidem.
9. Ver David 8 . Coplan, ln Tuwmhip Tonight! South Afrúai Blacl. City Music and 1healer
(Londres: Longm:m, 1985).
"Azikwelw:i • (ndo 11amos tmbar,ar) - 'R!,sistlruia ,ultural nas dl,adas dtstsperadas
essencial do texto, mas uma relação social entre uma obra e seu público,
constituída e não revelada e endossada ou ultrapassada por sucessivas
ordens de poder.
A DÉCADA FABULOSA
10.Lewis Nkosi, "The F:ibulous Decade·, in Homt and Exile and Other Stl"tions (Londres:
Longman, 1983), PP· 3-24-
u. Um shtbun é um b2r Ucg21, genlmcntc: dirigido por uma mulher, que vende bcbid:u al-
coólicas para negros.
Co11ro impuial
12. l\'liriam Tlali, Muriel ai Mttropolitan (Johan nesburgo: Ravan Prcss, 1975), p. 70.
13. N . Chab:tni Mang2n)i. -The Early Years·: lntel'icw wich Es'kia Mphchlcle", Stajfridtr
(se t.-out., 1980), reeditado in Chipman, St>Wtlo Ponry, p.•p .
'Azikwclwa • ( ndo vamos tmbar, ar) - 'R.!sisttnda cultural nas dt,adas daaptradas
q. Frnntz Fanon, 7ht Wrttrh,d ofth, Earth. Tr:id. Constancc Farrington (Londres: Penguin,
1963), PP· 33-4.
15. Idem, op. cit., p. 47.
16. Ver Baruch Hirson, Ytar of Firr, Ytar ofA sh: 7h, Srr.JJtto Rroolt, Rootr of a Rtvolution?
(L ondres: Zed Prcss, 1979), capítulo t .
Couro impaial
17. Nat Nalusa, "\-Vriting in South Africa~, 7l;e C/assic 1, 1 (1963), p. n, reeditado in Chap·
man, Soweto Poetry, p. J7·
18. Es'lcia Mphahlclc, "My E.-q,cricncc as a \oVritcr-, in ~ I.J. Daymond,J. U.Jacobs e Mar·
garct Lenta (orgs.), M , mmtum: 011 Reuni South African Writing (Pictcnnarinburg; N~-
ta! Univcrsity Prcss, 19S4), p. 75.
"A1ikwclwa • (nlJo t1amos embarcar) - 'R.!_sistlnria cultural nas dlradas dnespaadas
24. Ver lvlbulclo Mumane, in Daymond,Jacobs e Lenta (orgs.), Jlt/omentum, p. 302. O tabu
sedoso das mulheres brancas de Johannesburgo tomou-,e, pelo menos p:lt:l Nkosi, o
butim prometido da colaboração com os liberais brancos contra o Estado nacionalista, e
quando ele finalmente chegou a ·desprcur sutilmente os sul-africanos brnncos", foi a
renúncia às mulheres brancas que mais o fez sofrer: "A imagem da beleza da mulher
branca é uma imagem que faz soar com frequência a caw registndora ela psique negra.
De qualquer modo, nús sabemos qui.o f:ucinantcs as mulheres d:1 classe dirigente sempre
demonstraram ser para os aspirantes a revolucionários, tanto negros como brancos"
(Ho,n~ and Exilt, pp. 23, 150). No nexo monetário da psique de Nkosi, aspirantes a revo•
lucionários eram aparentemente estritamente homens, e a revolução era uma luta mani-
queísta entre raças de homens tendo como espólio a belc-za feminina branca - o incan·
sável e magnifico papel das mulheres negras na resistc!ncia não encontrou lugar.
25. Ver Robert Mshengu l<,.Y;111agh. 1h~atrt and Cultural Strugglt in So11tlJ /lfrica (Londres:
Zed Books, 1985), p. 62.
26. l'vlphahlcle, "My Expcrieoce.. .", p. 79.
27. Idem, op. cit., p. 60.
28. Ver David Rabk.in, • Drum Magazine (1951-1961) and the \iVorks of Black South African
Writers Associated \Vith lt", tese de doutorado, University of Leeds, 1975, p. 57.
ªAzikwclwa " (t111o vamos tmbar,ar) - 'R.!_sistinâa ,ultural nas düadas dntspaadas
490
•Azikwelwa • {ndo vamos ~mbartar) - 'Rtsisttnda t ul1u r11/ na1 dtcadas d~usperadas
3S. Molcfi Motsoahae, "Madman with iron bdts". Devo a rcferéncia a Copl:m, "lntcrprctive
Consciousness~.
491
Couro imptrial
39. Solomon Tshckisho Plaatjc, "Sweet Mhudi and I", in i\1/hudi: an Epic of South African
NatÍ't,'t Lift a Hundrtd Y,ars Ago (Lovedale: The Lovedale Press, 1933); reeditado in Tim
Couzcns e Essop Patcl (orgs.), 7h, Return of tht Amasi Bird: Black South African Pottry,
1891-1981 (Johannesburgo: Ravan Prcss, 1982), pp. 49-50.
40. Plaatje, "Song", reeditado in idem, op. cit., p. 45.
41. Nakasa, "\,Vriting in South Africa", p. 5.
42. Ver Lodge, Blacl: Politiu. .. , p. 95.
49 2
•Azikwclwa • {não vamos tmbar,ar) - <J?.!sistlnda cultural nas düadas dtstsptradas
A DESTRUIÇÃO DE SOPHIATO\VN
E A DÉCADA DESESPERADA
493
Couro imptrial
..
iriam satisfazer o sonho frio do estado de controle absolutamente racio-
nal. Arquitetos brancos foram informados de que o layout dos distritos
negros deveria obedecer a princípios que assegurassem a máxima vi-
gilância e o máximo controle: as estradas tinham de ser suficientemente
largas para permitir que os tanques Sara,en dessem a volta; as casas ti-
nham de ser alinhadas de tal maneira que tiroteios entre elas não fossem
impedidos«. Ao mesmo tempo, as casas e estradas da arte negra come-
çaram a ser policiadas com a mesma vigilância, e a situação do artista
negro começou a mudar sutilmente.
Em 1953, a educação negra foi tirada do controle provincial e ampla-
mente britânico e posta nas mãos do Departamento Nacional de As-
suntos Nativos. Num discurso diante do Senado em junho de 1954, H. F.
Verwoerd, arquiteto dessas remoções culturais e projetista gráfico do
novo layout da vida artística da África do Sul negra, foi bem franco so-
bre os objetivos da Lei Educacional Bantu: "Os nativos serão ensinados
desde a infância a perceber que a igualdade com os europeus não é para
eles[... ] Não há lugar para ele [o bantu] acima do nível de cercas formas
de trabalho"•s. Daí cm diante, os negros teriam escolas, programas, pro-
fessores, idiomas e valores "etnicamente" separados. Em 1959, a Lei da
Extensão da Educação Universitária dividiu os diferentes grupos étni-
cos por diferentes universidades. A Lei Educacional Bantu, como ades-
truição de Sophiatown, foi um evento crucial na história da cultura ne-
gra não simplesmente porque começou a transferência da educação
negra do controle hegemónico inglês para as mãos mais flagrantemente
coercitivas dos nacionalistas africâneres, mas também porque ameaçava
a aliança entre os liberais negros e brancos e mandava os artistas negros
educados por brancos de volta para suas comunidades. Mais negros pas-
sariam agora a receber uma escolaridade propositalmente empobrecida,
com o efeito de nivelar parte da diferença entre a ínfima elite educada e
494
ºA ú kwclwa • ( 11 áo 11amos t mhartar) - "R!,sistl 11cia , ultur.1/ nas ditadas dnnptradas
o vasto populacho analfabeto que existia antes. Daí para frente, os ne-
gros estariam sujeitos mais eficientemente que nunca ao que Malefanc
chama de política calculada de "má nutrição cultural". Essa política teria
um efeito marcante sobre a literatura negra e traria mudanças significa-
tivas a noções de valor estético.
Em 1960, a campanha contra a Lei do Salvo-Conduto do Congresso
Pan- Africanista (PAC, sigla em inglês) terminou em calamidade cm
Sharpeville. O C NA e o PAC foram banidos e ambos os movimentos de
resistência passaram à clandestinidade ou ao exílio. A destruição de So-
phiatown prenunciava o quase total desaparecimento da escrita pública
negra nos anos 1960 quando o Estado flexionou inteiramente seus mús-
culos numa década de banimentos, prisões e tortura, esmagando as últi-
mas ilusões de uma reforma liberal. Banimentos, exílio e morte estran-
gularam toda uma geração de escritores e começou o "longo silêncio"
dos anos 1960. Esse silêncio foi de certa maneira mais aparente do que
real, pois já foi observado que, em termos do puro volume, se escreveu
mais poesia durante os anos 1960 do que durante os 1950, embora essa
poesia só viesse a ser publicada mais tarde 46• A Lei de Publicações e
Espetáculos (1963) estendeu a censura estatal legal aos assuntos culturais
dentro do país e, em 1966, a maioria dos escritores negros que já tinham
saído para o exílio foi listada sob a Lei de Supressão do Comunismo,
ainda que a maioria deles fosse liberal de um ou de outro tipo: Matshi-
kiza, Themba, M odisane, Mphahlele, Nkosi, Cosmo Pieterse e Mazisi
Kunene. ~arenta e seis autores foram amordaçados pela Gazeta Go-
vernamental Extraordinária de 1ll de abril de 1966, que proibiu a leitura,
reprodução, impressão, publicação ou disseminação de qualquer discur-
so, elocução, escrita ou pronunciamento dos banidos. No exílio, Themba
e Arthur Nortje seguiram Nakasa no suicídio.
Contudo, o efeito sobre a escrita negra não foi somente deletério.
Em 1963, o mesmo ano em que Nelson Mandela foi banido para Rob-
ben Island, uma revista literária negra chamada 1he Classic abriu cn1
495
Couro imptrial
47. Tlali, ~ln Search o f Books", Srar, 30 jul., 1980; rec:dir.ado in Chapman, StXJJtto Pottry,
p.46.
"Azi kwelwa • (ndo "amos tmbar,ar) - <J?.!sisllntia ,ultural nas dl,adas dtusptradas
i• 1
até o banimento, depois de Soweto, de todas as organizações da Cons-
ciência Negra em outubro de 1977. Mobilizando estudantes negros em
torno do chamado à união da cor e do slogan "Negro, você está por sua
r\ conta", a Consciência Negra era nesse estágio o sonho da pequena bur-
t guesia neg ra urbana e de elite, um movimento de estudantes, profissio-
1
nais, intelectuais, artistas e uns poucos membros do cleroSº. Em 1972, a
'
"
Organização dos Estudantes Sul-Africanos tentou saltar o fosso entre
a elite intelectual e as pessoas da comunidade negra e em 1972 formou
t
tr 48. Carlos Fucntes, "The fut ofF1ction LXVUI", Paris R"'iew 23 (198r), p.149.
1 49. Sipho Scpamla, "The Black \Vriter in South Africa Today: Problcms and Dilemmas",
t JV~ Classic 3 (1976); reeditado in Chapman, S()Wt/o P~try, p. n6.
50. Ver Hirson, Ytar ofFirt, Ytar ofAth... , pp. 60- 114; Lodge, Blad, Po/itics... , 321-62.
497
Couro imptrial
51. Stcvc Biko, "Black Consciousness and thc Qycst fora Truc Humanity", in Basil Moore
(org.), Blark 7htology: 1lu South Afriran Voiu (Londm: C. Hurst and Co., 1973), p. 45. Ver
também Biko, 1 Writt What 1 Likt (Londres: H cinemann, 1979); e "White Racism tnd
Black Consciousncss•, in Hcndrik W. v:an der Mcrwc e David \.Yclsh (orgs.), Studtnt
Ptr1~rtivt:1 on South A/rira (Cidade do Cabo: David Philip, 1972), pp. 190-202.
52. Drake Koka, apud •Jnsidc South Africa: A Ncw Black Movcment is Formed", S<ehaba 7
(t973), P· 5·
53. Jlvlafika Gwala, "Writing as a Cultural \1/capon", in Daymond, Jacobs e Lenta (orgs.),
lvlomtntum, p. 37.
"Azikwelwa • (ndo ,c,amo1 embarcar) - 'R.!_1i1tlncia cultural nas dlcada1 daaperada1
sia negra ajudou a reviver e manter a resistência à culnua branca. "A me-
ditação estava sendo substituída por um entendimento da esperançâS4 •
Além disso, como os nacionalistas colocavam cunhas e mais cunhas en-
tre os assim chamados diferentes grupos étnicos, a Consciência Negra e
o ressurgimento dos valores culturais negros abarcavam todos os grupos
em luta, incluindo os assim chamados de cor, indianos e asiáticos, dentro
do termo "negro". Apesar de todas as suas limitações indiscutíveis, que
ficaram mais visíveis e custosas durante a revolta de Soweto, a Consciên-
cia Negra forneceu um apelo à união, uma incitação poderosa e neces-
sária. Como disse o escritor Essop Patcl: "Consciência Negra deu o
ímpeto inicial na rejeição da arte como uma indulgência estética. Quan-
do o poeta negro se livrou das convenções literárias eurocêntricas, ele
ficou livre para criar no contexto de uma consciência nacional. O ponto
de partida do poeta negro foi a articulação da experiência negrass.
LANÇANDO MALDIÇÕE S
A n ova poesia de Soweto
A poesia negra flore sceu nessa época, tornando-se o que Gwala chamou
de uma "excursão em busca da identidadc"56• Não é de surpreender que
a primeira poesia de Soweto compartilhasse muitos dos dilemas do mo-
vimento da Consciência Negra. Um de seus problemas, e não o menor,
é que era escrita, embora sob protesto, em inglês, com um público bran-
co privilegiado em mente e, assim, carregava o sutil ônus de ter que se
restringir para a imprensa liberal.
499
Couro imperial
57. Algumas das razões pua a mudança cultural e para o sucesso do livro de Mcshali -
o primeiro livro de poemas escrito por :alguém, negro ou br.inco, a dar lucro - residem
no interesse externo n:i. África à medida que uma nação african:i. após outr.i ganhava
independência. Mas é uma das obstinadas idiossincrasias da descolonização o faco de
que, quando a Europa abandonava o solo africano, começava :i. luca pela África - com
as editoras ocidentais disputando escritores negros. Dentro da África do Sul, alguns li·
ber:ús brancos, levados lentamente à inconsequcnci:i, decidiram incorporar-se ao pro·
testo negro.
500
·Aúkwclwa • {não vamo, tmbauar) - 'R.!,1i1tinda cultural na, dlcada1 daaptrada 1
Ele foi louvado pela força de seu sentimento, por sua energia moral,
pela liberação da imaginação e pela originalidade de suas imagens con-
cretas num poema como "Sunset" [Pôr do Sol]:
O sol girou
como uma moeda lançada.
rodopiou no céu cerúleo,
retiniu no horizonte,
caiu na ranhura,
e estouraram luzes de neon
piscando "Expirou o tempo",
como num parquímetro.
ouem
501
Couro impaial
o novilho recém-nascido
é como pão assado no forno
soltando vapor sob uma cobertura de celofanc:58 •
58. Oswald .l'vhshali, "High and Low", "Sunsct", "A Ncwly·Born Calf", Sounds ofa Cowhidt
Drum (Londres: Oxford Univcrsity Prc.ss, 1972), pp. 28, :4, 13.
59. Idem, op. cir., p. 78.
60. Idem, "Black Poctry in Southern Africa: \ Vhat it l\,leans·, Islut: .li Quartt-rly Journal of
.llfri.aniit Opinion 6 (19i6), reeditado in Chapman, Sow,10 Po,1ry, p. 107.
502
"Azikwclwa • (n4o t1amo1 t m/,arcar) - 'R.!,sistincia cultural nas dtcadas dtusptradas
Saio clandestinamente
e volto em negra fúria
0---m! Ohhhmmmm! 0-hhhhhhmmmmmmm!!!6'
65. Ver Ruth Finncg:rn, Oral Lit<ralure in Afrúa (Oxford; Oxford Univcrsity Prcss, 1970);
Harold Schcub, 7Ju Xhosa Ntsomi (Oxford: Oxford Univcrsity Prcss, 1975); Elizabcth
Gunncr, "Songs of Innoccncc and Expcricncc: Womcn as Composcrs and Pcrformcrs
of lzibongo, Zulu Praisc Poctry", Rtuarch in African Littraturt 10 (1979), pp. i39· 6r,
Mbulclo Mzamanc, ~Thc Uses ofTr:idition:il Oral Forms in Black South African Litc•
raturc•, in White e Couuns, Littratur~ and Socitty.. . , pp.147-60; e Coplan, ln Township
Tonight!... e ªlntcrprctivc Consciousncss•.
66. B:unctt,A Vision ofOrdtr. .. , p. ~3-
6-J. Tony Emmctt, "Oral, Political and Communal Aspccts ofTownship Poctry in thc Mid-
Scvcntics-, English in A/riu, 6 (mar., 1979), r<:cditado in Chapm1n, Sow~to Pcury, p. 183.
5o5
Couro imperial
'
Eu não sei onde eu estive,
Mas,i.rmão,
Eu sei que ouvi o chamado69 •
Ivlãe,
quando eu ouço jazz, não é lazer,
é uma operação da alma70 •
.
E sses traços musicais evocavam os mundos provocadores e restaura-
dores das danças marabi, dos clubes dejazz,dos bares ilegais e dos tea-
tros, e anunciavam a natureza cada vez mais comunitária e ligada à
performance da poesia negra:
506
ºAzikwclw:i. • (ndo vamos tmbarcar) - 'lv,sistincia cultural nas ditadas dtusptradas
7:. Douglas L ivingstonc, "Thc Poctry of Mtsh:i.li, Scrotc, Scp:i.mla and Othcrs in English:
Notes Towards :i. Criticai Evaluation•, New Classic 3 (1976); reeditado in Ch:ipman,
Sow,to Pottry, p. 160.
73- Jimmy Krugcr, 7h, Star, 14 sct., 1977, apud Emmc1t, "Oral, Political and Commu nal As-
pccts ofTownship Pocuy...•, p. 176.
74. Gwala, "\,Vriting as II Cultural \Vcapon", p. 43.
75. Barnctt, "lntcrvicw with Oswald Mtshali", World Literaturt Writttn in Englúh n (1?7.3);
reeditado in Chapman, SIX:Xto P,,ttry, p. 100.
5o7
Couro impaial
508
•A?:ikwelwa • (ndo vamos tmbar,ar) - 'R.!sistintia cultural nas ditadas d,usp,radas
POESIA DE PERFORMANCE E
RESISTÊNCIA DA COMUNIDADE
E stas eram as quatro acusações feitas à escrita negra nos anos 1970:
sacrifício das regras intrínsecas da arre em nome de fins politicos, inép-
cia formal, perda de expressão e originalidade individuais e, portanto,
sacrifício da longevidade.
Em resposta, Gwala perguntava, "As perguntas pululam. Perguntas
como: Qµe direito moral tem o acadêmico de julgar meu estilo de es-
crita? Qµe diretriz, além da cultura de dominação, ele aplicou?"84 • Não
querendo ceder terreno na luta pelo "comando" da língua inglesa, os
críticos brancos apimentaram suas resenhas da poesia negra com minú-
cias sobre lapsos formais, "má" gramática e a decadência dos padrões. Os
poetas negros replicaram que "nunca houve urna coisa tal como a língua
pura"•s, e Sepamla afirmou: "Se a situação requer um inglês quebrado ou
'assassinado', p or Deus, devemos fazer exatamente isso"86• As escara-
muças críticas sobre graças .gramaticais ocultavam o problema muito
mais sério sobre quem tinha o direito de policiar a cultura dos distritos.
A poesia negra zombava de fato, de maneira muito consciente, das no-
ções estabelecidas de elegância formal: os poetas formavam seus p:ó-
prios preceitos a partir de formas de falar dos distritos desconhecidas e,
portanto, enervantes para os críticos brancos. A poesia negra era muitas
vezes uma mistura lubrida de inglês, tsotsitaa/ 87 e americanismos negros,
com toques das línguas sul-africanas negras:
510
•Azikwclwa • (ndo 11amo1 tmbaNar) - 'R!_sillbrcia ,ultural nas düadas d,usptradas
O olho de vidro
é um ornamento
friamente burilado por um artesão
89. Anônimo, "lt's Paati to Bc Black", Stajfridtr (mar., 1978). Dompas se refere aos odiados
passes (salvo-co ndutos); dom é a pala,-n africiner para estúpido.
so. Paton, in Momtntum, p. 89.
1;11. Frankle Ntsu kaDitshegolDubc, "lhe Ghettocs· , Stajfridtr (jul.-ago., 1979).
511
Couro imperial
E o policial kwela-kwe/a:
97. Anónimo, "I t ·s Paati to Be Black". Kwda-kwela é o nome distrital dos grandes camburões
da policia. Ver Coplan, l n Township Tonight!..., pp. 157-60, para as origens do termo.
Doom é um inseticida cm spray.
98. Raymond \.Villiams, Probl,ms in MaterialiJm and Culturt (Londres: Verso, 1980), pp. 47-8.
99. Terry Eagleton e Pe1er Fuller, "lhe Question ofValue: A Discussion", New Left Rt1Jiew
1~2 (nov. -dcz., 1983), p. 77·
100.Ver, por exemplo, Eagleton, "Acsthetics and Politics", Nroi Left Rroiew 107 Qan.-fev.,
1978), pp. 21-34; Criticiim and [de,fogy: A Study in Nlarxist Literary 7hcury (Londres: Ncw
L<:ft Books, 1978); e "Criticism and Poütics: The Work ofRaymond Williams",N,w úft
Rt1Jitw 95 Qan.-fcv., 1976), pp. 3-23; Tony Bcnnctt, Fonr.aliJm 11nd i\1ancism ( Londres:
Methucn e Co., 1979), e "l\<larxism and Popular Fiction", Literature and Popular HiJtory 7
(1981), pp.138-65; Stuart H all, "Cultural Studies: Two Paradigms", in Bcnnett ct ai. (orgs.),
Culture, Id,ology and Social Process: A Rtadtr (Londres Methuen, 1981), pp. 19·3r, 8:1.rbua
Herrnstein Smith, "Contingencics ofValue", Critita! lnquiry 10 (1983), pp. 1-36, e "FL,ccd
Marks and Variablc Constancics: A Parable of Litcnry Valuc", Po,tics Today 1 (Outono,
1979), pp. 7-31; Paul Lautcr, "History and thc Canon", Scâal Ttxt u {Outono, 1985),
pp. 94-101; Francis Mulhcm. "Marxism in Liter.ary Criticism", N,w úft Rroiro, l08
(mar.-abr., 1979), pp. n-Sr, e Petcr \.Yiddowson, ~Litcrary Valuc'and thc Rcconstruction
ofCriticism", Litm1t11re and HiJ:ory 6 (Outono, 1980), pp.139-50.
Couro imperial
L
• 1
de verdades duradouras, menos uma coisa, que uma prática social desi-
\
gual e dando cambalhotas, cercada pela contestaçào, dissensão e os inte-
resses do poder.
Acossada pela censura, por acesso estritamente restrito a canais co-
merciais de publicação e pelo perigo de identificação e subsequente as-
sédio e, tendo herdado as tradições comunitárias, a poesia negra de So-
weto começou a mostrar a destruição calculada do texto'º'. Mais e mais,
a poesia negra era feita para um público ouvinte negro, mais que para
um público leitor alc:m-mar, de modo a criar formas poéticas menos
vulneráveis à censura e mais fáceis de memorizar, a palavra falada se
espalhando com maior rapidez, mais amplamente e mais esquivamente
que os textos impressos. A poesia fugiu das revistas literárias e passou a
ser apresentada cada vez mais em leituras de massa, demonstrações da
Frente Democrática Unida,_funerais, memoriais, festas de garagem, en-
contros comunitários e concertos musicais, às vezes com acompanha-
mento de flautas e tambores, a partir de tradições orais e mímica.
Mbulelo Mzamane observa que muitos poetas negros, embora des-
conhecidos pelos sul-africanos brancos, tinham muitos seguidores em
Soweto, Tcmbisa e Kwa-Thema'º'. Desprezando o prestigio do literário,
essa "poesia tornada teatro", transitória, imediata, estratégica, amada e
popular, derruba a questão essencialista do "que constitui boa literatura"
e insiste cm que ela seja recolocada em termos de quão boa ela é, para
quem, e quando ela é boa e por quê. Tenaz cm face de grande aflição,
cautelosa diante de algumas das demandas mais moderadas da primeira
Consciência Negra, politicamente mais radical, mas assolada por pro-
blemas de gênero, cnfrc::ucando a cada momento as dificuldades e re-
lr 1.
2.
Ver a crítica de Eric Hobsbawm sobre o nacionalismo cm NatiMJ and Natfonalism Sinu
1780 (Cambridge: Cambridge Univcrsity Prcss, 1990).
Erncsr GcUncr, 1hought and Céange (Londres: \.Vcidcnfdd and Nicholson, 1964) e Na-
l
tions and Nationalism (Oxford: Blackwcll, 1983).
3. Ben~di.:t Andcnon, lm11gin,d ComM11niliu (Londre•: Verso, 1983. 1991), p. 6.
1 517
Couro imptrial
4. Cynthia Enloe, BananCJ, B,a,ha ar.d Basa: Mal:ing Fa11inÍJI Stnst oflntrrnational Politi:1
(Berkeley: Univcrsity ofCalifornia Prc,ss, 1989}, p. 4-1.
518
cAdrus ao paraúo futuro - ~dona/ismo, glntro r ra;a
520
c.Adtul ao paraflo jtJturo -:J(gcionaliJmo, gtnao t raça
li
1
'
l
!
1'
!
521
~
-·
Couro impuial
9. Nira Yuval-Davis e Floya Anthias (orgs.), Womm -Nation-State (Lo ndres: lVIacmillan,
P· 7·
1 989),
522
<.Adtus ao parafso futuro - $',(gtionalismo, glntro traça
52 3
Couro imperial
ATRIBUINDO GÊNERO AO
TEl'vtPO NACIONAL
Vários críticos seguiram Tom Nairn, que chamou a nação de "o Jano
moderno"u. Para Nairn,a nação se define como uma figura contraditória
do tempo: um rosto voltado para a névoa primordial do passado, o outro
voltado para um futuro infinito. Deniz Kandiyoti expressa com clareza
essa contradição temporal: "[O nacionalismo] apresenta-se tanto como
um pr(?jeto moderno que dissolve e transforma ligações tradicionais em
favor d e novas identidades, quanto como um reflexo dos autênticos va-
11. Tom N:tim, 1lu Brtak-upoJBritain (Londrc~: Ncw Lcft Books, 1977).
cAdtus ao paraíso futuro - ~cionali1mo, glntro t ra;a
1
t 11. Dcni:z; K:mdyoti, ~ldcntity and lts Discontcnts: \Vomcn and thc Nation", Milltnnium:
r• foumal ofl nt=ational Studiu, to, J (1991), p. 431.
í 13. H omi K. Bhabha (org.), Nation and Narration (Londres: Roudcdgc, 1991), p. 1.
14. Susan Buck-Morss, 'Iht Dialutis ofSuing: m,lur Bmjamin and tht /lr,adu Proj,u (C:irn-
bridgc: MIT Prcss, 1990), p. 67.
nacional. As mulheres não eram vistas como parte da história, mas, tal
qual os povos colonizados, como parte de um tempo permanentemente
anterior no â.m bito da nação moderna. Os homens brancos, de classe
média, ao contrário, eram vistos como a corporificação de agentes avan-
çados do progresso nacional. Assim, a imagem da nacional Família do
Homem revela um persistente paradoxo. O progresso nacional (con-
vencionalmente o domínio inventado do espaço público masculino) era
expresso como familiar, ao passo que a própria família (convencional-
mente o domínio do privado, do espaço feminino) era vista como além
da história.
Podemos dizer, a esta altura, que uma narrativa única da nação segu-
ramente não existe. Grupos diferentes (gêneros, classes, etnias, gerações
e assim por diante) não vivem a miríade de formações nacionais da mes-
ma maneira. Os nacionalismos são inventados, representados e con-
sumidos cm modos que não seguem um modelo universal. A negação
claramente curocêntrica dos nacionalismos do Terceiro Mundo, feita
por Hobsbawm, merece pelo menos urna crítica continuada. Num gesto
de deslavada condescendência, Hobsbawm denomina a Europa corno o
"lar original" do nacionalismo, ao passo que "todos os movimentos anti-
imperialistas de alguma significação" são jogados sem cerimônia em três
categorias: mímica da Europa, xenofobia antiocidental e "talento natu-
ral das tribos guerreiras"16• À guisa de contraste, pode ser útil voltar a
esta altura à análise bem diferente, ainda que problemática, de Frantz
Fanon sobre gênero e a formação nacional.
17. Frantz Fanon, Blark Skin, White Nla1ks (Londres: Pluto Prcss, 1986), p. 141.
r8. ldcm, op. cit., p. 142.
19. Idem, op. cit., p. 143.
20. Idem, op. cit., pp. 141-3.
e.Adeus ao paralso futu ro - :J(scionalismo, gtnuo e ra;a
{
Couro impuial
..
duas espécies diferentes"15 • Como comenta Edward Said: "Todo o tra-
balho de Fanon deriva dessa observação maniqueísta e fisicamente situ-
ada, posta em marcha, por assim dizer, pela violência dos nativos, uma
força que pretendia cruzar a barreira entre brancos e não brancos"16 • No
entanto o decisivo (hiaroscuro da raça é, cm quase todos os aspectos,
posto cm questão pelos cruzamentos de gênero.
O conflito maniqueísta de Fanon parece, à primeira vista, ser funda-
mentalmente masculino: "Não pode haver dúvida de que o Outro real
para o homem branco é e continuará a ser o homem negro". Como es-
creve H omi Bhabha: "O desejo colonial é articulado sempre em relação
ao lugar do Outro'' 17• M as as angustiadas reflexões de Fanon sobre raça
e sexualidade mostram que "o desejo colonial" não é o mesmo para ho-
mens e mulheres: "Uma vez que ele é o senhor, e mais simplesmente o
macho, o homem branco pode permitir-se a luxúria de dormir com
qualquer mulher [ ...] M as, quando uma mulher branca aceita um ho-
mem negro, automaticamente surge um aspecto romântico. Trata-se de
dar, não de se apropriar"18• Deixando de lado, por ora, a cumplicidade
de Fanon com o estereótipo da mulher, mais romântica do que sexual-
mente inclinada, dando ao invés de receber, Fanon abre a discussão da
raça para a problemática da sexualidade, que revela emaranhados mais
intrincados do que uma mera duplicação do "Outro do Eu". O mani-
queísmo psicológico de Pele negra, más(araJ bran(as, e o maniqueísmo
mais político de Os (ondenados da Terra são persistentemente torcidos
por gênero de tal maneira a destruir radicalmente a dialética binária.
Para Fanon, a inveja do homem negro toma a forma de uma fantasia
de deslocamento territorial: "A fantasia do nativo é precisamente ocupar
o lugar do senhor" 19• Essa fantasia pode ser chamada de uma política de
substituição. Fanon sabe, no entanto, que a relação com a mulher branca
53º
e.Adeus ao paraíso futuro - J\(erionalismo, glnero e rafa
53 1
•.
Couro imptrial
53 2
cAdeus ao para(so futuro - :;J\(Ecionalismo, giMro t ra;a
533
,:
Couro impuial
43. Fr:intt Fanon, "Algeria Unveiled", in A Dying Coloninlism. Trad. Haakon Chevalier
{Nova York: Groovc Press, 1965), p. .µ.
44. Idem, op. cit., p. 37.
45. Idem. op. cir.• p. SJ•
534
c.Ãdtus ao para(so futuro -:J(gcionalismo, g~ntro t raça
535
Couro imptrial
t
50. Idem, op. cit., p. 42.
51. Idem, op. cit., p. 46.
5i. Idem, op. cit., p. 47. ,
53· Idem, op. cit., p. 63.
54· Idem, op. cit., p. 50.
55· Ibidem.
536
cAdtus ao paraúo futuro - :Jl&cionalismo, glntro, ra;a
•1
!
1
( a atuação das mulheres era nula, vazia, inerte, como o véu. Aqui, Fanon
t tropeça não apenas no estereótipo das mulheres como privadas de mo-
t
1
: tivação histórica, mas também recorre, de maneira não característica
nele, a uma imagem reprodutiva do nascimento natural: "É um autênti-
co nascimento em estado puro"S 6 •
f Por que as mulheres foram convidadas a participar da revolução?
t
Fanon recorre de pronto ao determinismo mecânico. A ferocidade da
I
r guerra era tamanha, a urgência tão grande, que a pura necessidade estru-
'·
i. tural abstrata ditou esse movimento: "A engrenagem revolucionária ti-
r
i nha assumido grandes proporções; o mecanismo estava girando veloz-
f mente. A máquina tinha de ser afetada"S 7• A militância feminina, em
' suma, é apenas um subproduto da atuação masculina e da necessidade
1
estrutural da guerra. O problema da atuação das mulheres, levantado de
f
~
modo tão brilhante como uma questão, é abruptamente encerrado.
Assim, para Fanon, a atuação das mulheres se dá por designação. Ela
aparece, não como uma relação política direta com a revolução, mas
como uma relação mediada, domesticada, com um homem: "De início,
as mulheres casadas foram contatadas. l\llais tarde, viúvas ou mulheres
divorciadas foram dcsignadas"ss. A relação primária das mulheres com a
revolução é definida como doméstica. Mas a domesticidade, aqui, tam-
bém constitui uma relação de posse. O militante, no começo, era obriga-
do a manter "sua mulher" em "completa ignorância"59• Como agentes
designadas, além disso, as mulheres não se comprometiam: "É relativa-
rnentc fácil comprometer-se [...] A questão é um pouco mais difícil
quando se trata de designar alguém"60• Fanon não considera a possibili-
dade de as mulheres se comprometerem com a ação. Ele lida, assim, com
a atuação das mulheres recorrendo a quadros contraditórios: o nasci-
mento autêntico e instintivo do fervor nacionalista; a lógica mecânica da
56. Ibidem.
57. Idem, op. cit., p. 48.
58. Idem, op. cit., p. 51.
59. Idem, op. cit., p. 48.
60. Idem, op. cit., p, 49.
537
-~
Couro imp,ria/
538
vfdtus ao paraíso futuro - :Jt<:Ecionalismo, glntro t ra;a
539
Couro imperial
o · NACIONALISMO COMO
ESPETÁCULO FETICHISTA
Até 1860, a Inglaterra tinha pouco interesse por sua colônia não promis-
sora da ponta sul da África. Apenas a partir d a descoberta dos diaman-
tes (1867) e do ouro (1886) a Unionjack [a bandeira inglesa] e os casacos
vermelhos [soldados ingleses] foram enviados para lá com algum senti-
do real de missão imperial. Mas, rapidamente, as necessidades das minas
por trabalho ~arato e um Estado centralizador colidiram com os inte-
71. Par.i relatos sobre a constituição da sociedade afridncr, ver Dunbar T. Moodic, 1he Riu
ofAfrilumerdom: Power, Aparthtid, and the Afrikaner Civil &ligion (Berkeley: Univcrsity
of Califomia Press, 1975), e Dan O' McMa, Vo/1.uapitalilme: Class, Capi1al and ldtology in
the Dewlopmml ofAfriianer NationaliJm 1934-19,tS (Cambrigc: Cambridge Univcrsity
Press, 1983).
1
1
Couro imperial
72. Isabel H ofmeyer, "Building a Nation from \Vords: Afribans Language, Lite ranire and
Ethnic ldenrity, 1902-19!4", in Shula .M:irks e Stanley Tnpido (orgs.), 1Ju Politics 11/
Rau, Class and Nationalism in Twmti~th Cmtury Soutlt A/rica (Londres: Longmans,
1987), p. 105.
· 73. Ver Dunbar .Moodic, '/lg Riu of//frikanudom ... , e Dan O'l\llea.ra, 1~/hllapitalism~ ...
542
cAd~11s ao paraíso /11turo - :J(gcionalismo, gtnero ~ rara
543
Couro impuiol
544
cAdtu1 ao para fio futuro - ~cionalismo, glntro t ,a,a
545
Couro impuial
547
Couro imperial
74. O grau de negação das divisões do uuftes no :imbico da populaç:lo branca tornou-se
manifesto cm 198S quando, durante o período mais intenso do Estado de Emergência,
duas jornadas ( Treks) competidoras se enfrentaram, cada uma patrocinada por dois par-
tidos nacionalistas rivais, br:incos e acirr:idamcntc opostos um ao outro.
75. Albert Grundlingh e Hilary Sapirc, "From Fcvcrish Fcstiv:il to Repctitivc Rirual? Thc
Changing Forruncs of the Great Trek Mythology in an lndustrializing South Africa,
1938-1988". SouthAfriran Hilt<Jrica!Journal 21 (1989), pp.19-37.
76. Idem, op. cit., p. :4.
c.AdeuJ ao paraf10 futuro - :J(g<ionali1mo, glnuo , raça
549
Couro imptrial
77. Thcodor Adorno, Ges11mmdt, S,hriftm, vol. 1, pp. 360-r. Apud Susan Buck-Morss, 1lu
DialuliJ ofSuing... , p. 59.
78. Tom Nairn, 17,c Brcal:-up o/Brituin, p. 340.
55°
e.Adeus ao para(so futuro - :í'(gcionalismo, glnero e raça
551
(ouro impfrial
A INVENÇÃO DA VOLKSMOEDER
552
e.Adeus ao para(so futuro - :J(ecio11alismo, gl11ero e rara
79. Ver Elsabic Brink,"Man-madc \Vomcn: Gendcr,C!ass and thc ldcologyofthc Volksmoc·
der~, in C. \Valker (org.), ll&mm and Gmder in SouthtTn A/rica to I9-15 (Londres: James
Currcy, 1990), PP· 273-92.
553
Couro imperial
554
c./fdtui ao para fio futuro - :J(e<iona/iuno, glnero t ra;a
80. Ver Tom Lodge, ~Charters from the Past: the African Narional Congrcss and its Hisro-
riographical Tradiúons", Radical H iJtory Rroiew 46/7 (1990), pp. 161-9.
81. Frene Glnwala, /lgtnda, 8 (1990), PP· n-93.
555
Couro imptrial
556
c.,l{deus ao parafso futuro - :J(gcionalismo, gtnero ~ rara
557
Couro ímpuíal
VOICE OF WOMEN
558
eAdtus ao paraíso futu ro -:Jl(gtionalismo, gltttro traça
559
Couro imptrial
FEMINISMO E NACIONALISMO
s.. A delegação do CNA na Conferencia de Nairóbi sobre Mulheres cm 1985 decl:arou: "Se-
ria um suicídio declararmos a adoç:1.o de ideias feministas. Nosso inimigo é o sistema e
não podemos gastar nossas energias com a questão das mulheres".
s;. Num seminário sobre "Feminismo e Liberação N:acionar, reunido pela Scçio Feminina
do C:-.IA em Londres, em 1989, uma representante do Congresso dos Jovens da África do
Sul declarou: "Como é bom ver que o feminismo foi finalmente aceito como uma escola
de pcmamentu lc~itima nas nossas luta, e não é visto como uma idcologh cstnngcira~.
560
e.Adeus ao para(so futuro - :J(ecionalismo, género e rafa
86. Ver o importa.nrc livro sobre a história, a política e a cultura da ,ida lésbica e gay na
África do Sul, de Edwin Cameron e Mark Gev1sscr (orgs.), Dtjiant Dt1irt: Gay and
lesbian Lives in SouthÁfri<a (NOVll York: Routledgc, 1994).
561
Couro impuial
87. Chandra T. Mohanty, "Under Westem Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Dii-
coursés", in Chandra T. Mohanty, Ann Russo e Lourdes Torres (orgs.), 1hird Worid
Wómm and th, Politics ifFeminism (Bloomington: Indiana University Press, t99t), p. 52.
88. Kumari,Jayawardena. F,minism and Nationalism in the1hird Hí,rld (Londres: Zed Pres;,
1986).
562 .
vfdeus ao paraíso futuro -:J(gcionalismo, gln,ro , raça
Recentemente, "a nova África do Sul" foi saudada com tanto entusiasmo
como "a nova ordem mundial" - e ambas com pouca razão. Assustado
com o declínio da economia e com a continuada bravura do Movimen-
to Democrático de Massa, o astucioso primeiro-ministro sul-africano,
F. W. de Klerk, orquestrou a saída de Nelson Mandela da prisão e can-
celou o banimento do CNA. Agora, as elites do CNA sentam-se cm
torno de mesas enceradas cortando as cartas do futuro com os naciona-
listas de Klcrk.
No entanto, parà ..muitos sul-africanos negros pouca coisa mudou.
Como o romance de Lauretta Ngcobo a respeito das mulheres negras
no sistema migratório sugere, seja qual for o futuro da África do Sul,
para milhões de pessoas muito pouco vai mudar, especialmente no caso
das mulheres. O primeiro romance importante da Á.frica do Sul, And
1hey Didn't Die [E eles não morreram], sobre "pessoas descartáveis", é
uma denúncia pungente do sistema migratório e um bom aviso contra a
proclaIT1ação da morte do apartheid. Cobrindo os anos entre o massacre
de Sharpcville em 1960 e o Estado de Emergência dos anos 1980, o ro-
mance aborda duas questões ainda não tratadas: a vida nas áreas rurais
esquecidas e a política da maternidade.
cAdtus a, paraíso faturo - :NJ:donalismo, glnuo t raça
mente magra, tendo sido abandonada pelo marido, Mthebe, por causa
das mulheres de lábios rubros da cidade.
A filha tão esperada de Jezile, S'naye ("nós a temos") nasce finalmente
num quarto de hospital apelidado de "açougue" pelas enfermeiras bran-
cas. Seu marido, Siyalo, é despedido por causa das atividades poUticas da
mulher e é permanentemente excluído da África do Sul industrial e
condenado a voltar para a mortífera reserva. Qyando Jezile e as mulhe-
res de Sigageni são levadas à prisão, Siyalo e sua mãe lutam para manter
viva S'naye, que estava morrendo de inanição. Uma das mais pungentes
seções do livro registra a angustiante separação de bebês, que estavam
sendo amamentados, de suas mães presas, e sua inanição posterior. A
prisão não significa apenas sofrimento e estupro, mas também a volta
para bebês com barrigas inchadas e membros esqueléticos. Levado ao
desespero pela visão de seu bel?ê morrendo, Siyalo rouba leite dos fartos
úberes da vaca do fazendeiro branco. Um pastor negro o delata e ele é
condenado a dez anos d e prisão pelo que a corte branca vê como um ato
político para fomentar a anarquia ntral.
Alguns dos momentos mais sombrios e bravos do romance tratam d1
política da sexualidade feminina. A esquerda, seja branca, seja negra,
teve a tendência a negar um lugar na política ao corpo feminino. En-
quanto os homens podem encontrar alívio nas cidades, os tormentos
sexuais das mulheres sozinhas - "os desejos diários, as tentações sem-
pre presentes e a desgraça como consequência"- são geralmente igno-
rados. O!tando, depois de cumprir sua pena,Jezile viaja para Bloemfon-
tein para trabalhar como empregada doméstica, a visão de pêssegos
amarelos inchados a mergulha num delírio de desejos inadmissíveis. Sob
as duras leis do costume, uma gravidez por adultério é tão catastrófica
para as mulheres quanto a infertilidade. Em Bloemfontein, o emprega-
dor branco de Jezile a estupra; ela dá à luz uma criança de pele clara e
volta para Sigageni. Ivlas sua sogra, MaBiyela, guardiã dos costumes, vê
o estupro e a criança branca como um crime da carne feminina e expul-
sa Jezile. O!tando Siyalo volta da prisão, ele se recusa a vê-la.
And 7hey Didn't Die explora o que acontece quando as mulheres co-
meçam a fazer perguntas: sobre o gado e a tern, sobre o poder das mu-
566
cAdeus ao paraíso futu ro -:J(ecionalismo, gburo e ra;a
Figura ro.r4 - Mulh" sozinha troltsta contra tropas que «upam sua cidade com
'Udculos militares chamados de "hipop6tamos•. Soweto,jul., r985.
568
Pós-escrito
O anjo do progresso
1. Ver Giovanni Arrighi, "World lncomc Incqualitics and thc Fururc of Socialism", New
Lift J«.,;..,.,,, 189 (sct.·ouc., 1991), p. 40.
57°
'Pd1-ncri10 - O anjo do progus10
571
Cou ro imptrial
572
'Pds-tscrito - O anjo do progrtsso
7. Ver Susan George, "Managing lhe Glob:tl 1-louse: Redcfining Economics", in Jcremy
Lcggct (org.), Global Warming:17,t Grunptau &port (Oxford: Oxford Univcrsity Prcss,
1990).
8. Barbcr Conablc, discurso no World Rcsources lnstitute, Washington DC, 5 maio, 1987.
Apud G. Hancock. 77,, Lords ojPowrty (Londres: l\llacmillan, 1989), p. 131.
9. Broad, Cavanagh e Bello, "Sustainable Devclopment.. .", p. 91.
ro. Idem, op, cit., p. 95.
573
Couro impaial
574
'Pds-tscrito - O anjo do progrtrso
11 . Frincls Fukuy:ima, "Forgct Inq- History is Dcad", 7ht Guardian, 12 ago., 1990, p. 3.
575
Couro impuial
577
Couro impuial
,(jsta dt ilustraç6ts
579
~.
Couro imptrial
581
T
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'
' 1
.,
;
Indice
1
1
r
Couro impuial
586
Índia
De homem para homem [From Man lo Enloc, Cynthia, sobre o nacionalismo, 518
Man ] (Schrciner), 390, 396,398,414, Eno, Sal de Fruta, como fetiche colonial,
415; enredo de, 4t5-2t 336-8
de Klerk, F. W., 564,567 era vitoriana: espaço anacrônico da,
de Laurct.is, Teresa, sobre gcnero, 45t 71-75; fronteiras rígidas na, 61;
diamantes, campos de, da África do Sul, humanos anacrônicos na, 58;
341, 34:2, 364,375,399,400,540 propagandas de mercadorias na,
60-1
diários: de Cullwick, 40, 201 1 206-8,
209n5, 110, 220, u4, 234-6, 247,253; de escravos, na Inglaterra medieval e
Munby, 124, r35, 2..,,, 2o?ns vitoriana, 173-5, 231-2
Dilke, Chades, 4n escritores de Sophiatown, 483-93
dinheiro, raça, sexualidade e, 15-40 espaço anacrônico: como conceito
na era vitoriana, 71-75, 319; o
doença, história fundada no gênero,
deslocamento dos povos indígenas
401016
para, 57-8, 72; A Exposição
Dollimorc,Jonathan: sobre Lacan, 297, lVlundial (1851) como corporificação
sobre a perversão, 27205; sobre a do, 98-103; da massa urbana, 183-4;
psicanálise, 293 minas do rei Salomão, As e, 357-9;
domesticidade: culto da. Ver culto da as mulheres da classe trabalhadora
domesticidade; racionalização da, como habitantes do, 173
251-3; racismo da mercadoria e, 59-66 espelho, como fetiche, 60-1, 316· 7, 322·3,
dona de casa, atividades da, na era 340
vitoriana, 244, 245 espetáculo do lazer, na cena doméstica
"Dora", como paciente de Freud, 15m66 vitoriana, 239-45
Douglas, Mary, 49, 49018, u8, 228, u8043 espetáculo mercantil: a feira mundial
Drum [Tambor] (revista sul-africana), como, 101098; imperialismo como,
484, 486, 488-9 98-103, 332; sabão e, 311-4
du Camp, Maxine, sobre a fotografia, 193 espetáculos de consumo, na era vitoriana,
62
Estado Htbrido (exposição), :27-8
E
A estória de uma fazenda africana [ 1he
Eagleton, Tcrry: sobre o nacionalismo,
Story ofnn African Farm] (Schreiner),
533; sobre valor estético, 513
378, 384-5,387, 390, 392-3, 404-9, 410-
Easl End: seus habitantes na Londres 1, 418, -42r, 427
vitoriana, 185
•Eu= Ela", equação na teoria da
Édipo, teoria de Freud, 141, 142-3, 145, 150, identificaçâo de Freud, 147-9, 151
152, 293-4
exploradores urbanos, nos anos 1880
Ellis, Havelock: Schreiner e, 394,403 vitorianos, 185-7
1he Empire 1-Vriles Back (Ashcroft et aJ.), Exposição Mundial (Londres, 1851),
31 como espetáculo mercantil, 98-103,
Engels, Friedrich, sobre a família da 309
humanidade, 75-7
Couro imperial
588
Índict
c()Ur() imperial
Cetywayo and His White Neighb()urs Huntley and Palmers, propaganda dos
[ Cetywayo e seus vizinhos brancos], biscoitos, 325
364,374; juventude, 344-50; mapa
de, 15-9, 43, 48, 51, 52; As minas d() rei
Salomão [King Solomon's Mines], 15,
I
27, 40, 341-3, 34204, 346-7, 352-63, 365, identidade social, gênero e, 458-61
366,371,372; sobre Schrciner, 412; She, imperialismo: como aspecto da
34204; A vida e sua autora, 345 modernidade ocidental, 20; din:lmica
Hall, Catherine, 20503, 243081, 249, 31m8 de gênero do, 20, 2004, 21, 36;
Haraway, Donna, sobre a primatologia, como espetáculo mercantil, 98-103;
319-20 fetichismo e, 277-83; genealogias
do, 43-122; Grande Depressão e,
Harrison,John Fletcher Clews, sobre a 412; mulheres como marcadoras de
classe média, 137030 fronteiras do, 47-9; multidão urbana
Heart ofDarlmess [Coração das trevas) e, 182-5; os papéis dos grupos de
(Conrad), 110-1 poder no, 38; como tema de As minas
Hegel, G. W. F., 73, 277m7, 532-4, 539, do rei Sal()m/Jo, 15; vitoriano, 230
574,575 ln Darlust Africa (Stanley), 186
Heilbrun, Carolyn, sobre a autobiografia, · 1n Darlust England and the Way Out
455037 (800th), 186
"Hell, well, Heaven" [ O Inferno, bem, o industrialização, na Inglaterra vitoriana,
Céu) (Serote), 505 75
hibridez: o escândalo da, na África do "ln Search ofBooks" [À procura dos
Sul, 433-6; travestismo, fetichismo livros] (Tiali), 496
racial e, 109-15 lnterpretapão dos sonhos (Freud), 148
história oral: Poppie Nongena como, 453, ln Trr..:mship Tonight [Hoje à noite no
476-7, na África do Sul, 448-50 bairro) (Coplan), 490
Hobsbawm, Eric, sobre o nacionalismo, invisibilidade, do trabalho doméstico
517,5 27 vitoriano, 243-5, 245-7, 248
Hocquenghem, Guy, sobre capit;i,fümo e lrigaray, Luce: sobre mímica de gênero,
família, 2971171 .,,.
1,
59º
Índiu
jornadas, dos africãneres, 5.t3-52, 548074 Lei da Educação Bantu (1953), 486, 494,
Joubert, Elsa: como escritora, 433; 7he 496,502
Long]oumey of Poppie Nongma [A Lei da Extensão da Educação
longa jornada de Poppie 1'ongena] Universit:iria (1959), 494
(transcrito e craduzido por Joubert), Lei das Ár~s Urbanas e Trabalho Bantu
433-4, 440-7, 450,459-n (1964). 473,556
judeu(s): antigo membro da família Lei de Publicações e Espetáculos (r963),
Haggard como, 34T, estereótipos
Lei de Registro d a População (Africa do
vitorianos dos, 93; posições de
Sul), 493
H aggard a respeito dos, 362; posi~o
de Schrci ncr sobre a conu il,ui<;ão Lei d e Reguhunento das Ivl inas de
dos, 429 Carvão (1842), 176
Lei de Supressão do Comunismo (r950),
493,495
K
leis de salvo-conduto, na África do Sul,
Kandiyoti, D cniz, sobre o nacionalismo,
469-74, 495
524
Leis de terras (África do Sul, 1913, r936),
Kaplan, Cora, 24, 24n12
430,471
Kgositsile, Kereope_tse, 1\1y Namt is /lfrica
lésbicas. Vn- também homossexualidade;
[Meu nome é Africa], 503
fetichismo feminino e, 192-3
Kim (Kipling), nr, u5-8
Liga das M ulheres Bantu, do Congresso
• K.ingsley, Charles, sobre os irlandeses, 320 Nacional Africano, 556
.
~ Kipling, Rudyard, Kim, 1u, 115-8 Liga pela Emancipação das l\i[ulheres,
Kofman, Sarah, sobre o fetich.ismo,3o r 429-30
Krafft-Ebing, Richard von, sobre o limpeza; em povos africanos, 333027, a
: fetiche senhor/escravo, 217 obsessão vitoriana pela, 311,313, 332-3
••. Kristeva,Julla, sobre a abjeção, 118-9 Lineu, Carl, Systema Natura, 62, 66, 74
Kruger, J immy, supressão da poesia negra Livingstone, Douglas, sobre poesia, 507
por,507 "livro do sexo", Mulher t trabalho [Woma11
Kunene, Maizisi, 495; Zu/u Potms and Labor] de Schreiner como, 424
[Poemas zulu s),503 Lloyd, D avid, 91, 9m83
Locke,John, 265-6
L Lodge, Tom,sobre o Congresso Nacional
Lacan,Jacques, 109, n2, u4, 261, 295067, Africano, 555
atuação feminista e, 299·301; negação 7ht Long Joumry ofPoppit Nongma [A
do fetichismo feminino por, 189-94; longa jornada de Poppie Nongena)
\ reinvenção da familia parernallsra (transcrito e traduzido por Joubcrt),
por, 294-9; teoria do fetichismo, 208, 434, 441-7, 450, 458-77; recepção
273, 274. 275; pública de, 436-42
Lazreg, l'vlarnea, sobre interpretação Lombroso, Ccsuc, estudos raciais
feminista, 442 anatômicos, 87
59[
Couro imptrial
592
Índiu
593
Couro impuia/
594
Índia
595
-..
;,
~
Couro impuial .....
'h
Soweto, poesia de, 480-2, 496-515 testemunho, Poppit Nongena como, 474-5
Specu!um ofthe Other Woman (lrigaray), Themba, Can, 484,495
286 Thomas, Gladys, Gritem a faria (com
Spivak, Gayatri, 24mo, 38, 38n34, 91, 109 rvlathews), 503,509
Sta.ffrider (revista sul-africana), 480-1 Thomson,Joseph, sobre as virrudes do sal
Stanley, Henry l\forton, 324022; ln de fruta Eno, 337
DarJ:est A/rica, 186; punição de Tiro, Onkgopotse, morte de, 507
africanos por, 339 Tlali, lVliriam, 483; "ln Search of Books"
StarJey, Liz, sobre a relação Cullwick- [À procura dos livros], 496
Munhy, no, 214-5 Toüm e tahu {Freud), uS
Stead, "V. T., "lhe Ma.iden Tribute of To Whom lt May Conurn: An Anthology
Modem Babylon" (O tributo cm of BlacJ: Southllfrican Poetry (A
virgens da moderna Babilónia], 420 quem interessar possa: uma antologia
Stepan, Nancy, 8m6o, 86071, 94090 de poesia negra sul-africana), 503
Stephenson, propaganda do creme para travestismo, 303, 26muo; de Cullwick,
móveis, 323 203-5, 207, 208, 214, 258-64; culto da
domesticidade e, 201-70; o fascínio
Stemberger, Dolf, sobre o panorama
de lVlunby pelo, 163-4; fetichismo
vitoriano, 69044
feminino e, 258-63; hibridez,
Stoler, Ann, 2105, 83, 83n65 fetichismo racial e, 109-15
Storin, DrMms and Allegories [Estórias, travestismo, Garbcr sobre o, 303
sonhos e alegorias) (Schreiner), 414
Três Bruxas, no mapa de Haggard, 17-8
suadouros, confecção de roupas na
Trinity College (Cambridge): anos de
Londres vitoriana, 157
lvlunby no, 130,131; Arquivo Ivlunby
Sunlight, sabão, 316 no, 124
"Sunset" [Pôr do Sol) (rvltshali), 501 troea no casamento, na culrura africana,373
Systema Natura (Lineu), 62 Trollopc, Anthony, 242079
Turner, Victor, 49,49019, 255
T Twude TreJ:, dos africâneres, 543-52
Taussig, Michael, 45m2 Tylor, Edward B.: sobre o fetichismo,
tempo panóptico: Exposição :Mundial 281-2; Primiti'Ue Cu/fure, 281
(1851) como encarnação do, 98-103;
fotografia e, 187-90; história global
vista em, 60, 66-71; pós-colonialismo V
e, 31 van der Stract,Jan, gravura de, 49-51, 52
teoria da recapirulação, de Haeckel, 88, Vênus hotentote, 74049
88n75, n76 Vespúcio, Amêrico, 50-1, 52, 54
Terceiro Mundo, dívida e pobreza dos Ylsted lnterests (G:uber), n2
países do, 572 A vida e ma autora (Haggard), 345
território virgem, 48; mapeamento do, 54- vo!J:.smoeder, invenção da, 552-4
7; mito do, 57-9 voyeurismo, de l'vfunby. 194-7, 198-9
597
1
Couro imptrial
vV
..
Yeltsin, Boris, 574
vValpole, Hugh, 412 Young, Robert, 33n28, 9m84, 102n99,
vVildc, Oscar, 4n, 412 1:1
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