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8/18/2019 Robert A.

Johnson - FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA

FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA


Robert A. Johnson

Tradução de Júlia Bárány Bar tolomel

MERCURYO

Titulo original: Femininity Lost And Regained

Robert A. Johnson - 1990

1991

Todos os direitos reservados à Editora Mercuryo Ltda. Al. dos Guaramomis, 1267 - CEP
04076 Fone (011) 530.1804/531.8222 - Fax: (011) 530.3265 São Paulo - SP - BRASIL
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Johnson, Robert A., 1921 -

Feminilidade perdida e reconquistada / Robert A. Johnson ; tradução Julia Bárány


Bartolomel].  —  São Paulo : Mercuryo, 1991.

1. Damayanti
 Nala (Mitologia
(Mitologia hindu) I. hindu)
Título.2. Édipo (Mitologia grega) 3. Feminilidade (Psicologia) 4.

CDD-155.333

-292.08 91-2544 -294.513

Índices para catálogo sistemático

1. Damayanti : Mitologia hindu 294.513 2. Édipo : Mitologia grega 292.08 3.


Feminilidade : Psicologia sexual 155.333 4. Nala: Mitologia hindu 294.513

Capa: Eduardo Piochi

Sylvia Bolonha

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ÍNDICE
1. O Problema Atual 09

PRIMEIRA PARTE —  O FEMININO NA CULTURA OCIDENTAL


2. A Herança Grega 19
3. A Voz de Sófocles 23
4. A História de Édipo 29
5. O Significado Interior do Incesto 35
6. O Destino de Antígone 47
7. O Legado de Édipo 53
8. A Saga Continua 57

SEGUNDA PARTE —  O FEMININO NA MITOLOGIA HINDU


9. Uma Atitude Diferente 67
10. A História de Damayanti 71
11. Duas Histórias de Amor 75
TERCEIRA PARTE —  QUE REALMENTE QUER A MULHER?
12. A Feminilidade Perdida 87
13. A Feminilidade Reconquistada 95
14. A Tarefa Heróica 105

APÊNDICE 113

FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA


1 O Problema Atual
A perda das qualidades e da energia femininas na sociedade de hoje constitui um
 problema psicológico premente. Aflige dolorosamente a vida emocional tanto dos homens
quanto das mulheres. Esta perda de algo tão essencial para a mulher força-a a questionar sua
 própria feminilidade, consolidando o longo debate histórico acerca da posição das mulheres
na sociedade. Para um homem, a perda da energia feminina é menos óbvia, porém reduz
as profundezas emocionais de sua personalidade e é a fonte da maior parte do seu
descontentamento, solidão, sensação de falta de sentido e mau humor. Para um homem é um
choque descobrir que seus humores e grande parte de sua natureza sentimental são
femininos! Ser presa de humores

é ser dominado por um aspecto interior feminino do seu caráter, e é somente ao aceitar e

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compreender esta feminilidade que ele entenderá com clareza sua natureza masculina. Perder
ou danificar as qualidades femininas interiores afeta o nosso bem-estar emocional,
modificando de imediato nossa felicidade e contentamento. Se as qualidades femininas
estiverem em ordem, a pessoa se sentirá segura e protegida.
Uma vez entendido que a feminilidade não é privilégio da mulher, nossa primeira

tarefa consiste
feminina centralemda mulher
aprendere sobre
a considerá-la um ente
a capacidade que tem influência
e a habilidade de sentir sobre a identidade
e valorizar do
homem.
Seria mais fácil entender esta dimensão vital se nossa língua não fosse tão
 preconceituosa e empobrecida. Faltam-nos palavras multifacetadas e ricas para expressar o
aspecto feminino da vida. Freqüentemente as línguas possuem vários termos para descrever
os elementos culturais altamente respeitados. Se, ao contrário, uma língua dispõe de poucos
termos ou mesmo de um só para descrever um elemento de sua vida cultural, às vezes isto
indica que o elemento é pouco considerado ou valorizado. Por exemplo, o sânscrito, base
 para a maioria das línguas da Índia, tem noventa e seis termos para o amor. O persa antigo
tem oitenta, o grego tem quatro e o inglês apenas um. O inglês não possui a amplitude, o
alcance e a diferenciação para o feminino e para o sentir como o sânscrito e o persa. Caso
 possuísse, haveria uma palavra específica para expressar nossos sentimentos com relação a
 pai, mãe, pôr-do-sol, esposa, casa, amante, Deus. Havendo uma única palavra para

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estes vários níveis de experiência, torna-se difícil entender a complexidade das emoções e de
nossa vida interior. A língua esquimó tem trinta palavras para a neve. Isto reflete a
necessidade de clareza num complexo relacionamento com a neve. Quando o relacionamento
e a feminilidade nos interessarem tanto quanto a neve interessa ao esquimó,
desenvolveremos uma língua diferenciada e enfocada para essa dimensão da nossa vida.
O estudioso de mitologia Joseph Campbell tentou ampliar nossa discussão sobre
feminilidade evocando os seguintes termos:

a esquerda —  o lado do coração, o lado do escudo —  tem sido símbolo tradicional em todo


lugar das virtudes e dos perigos femininos: maternidade e sedução, os poderes da Lua sobre
as marés e sobre as substâncias do corpo, os ritmos das estações; gestação, nascimento,
alimentação e criação de filhos; no entanto, igualmente malícia e vingança, irracionalidade,
fúria tenebrosa, magia negra, venenos, feitiçaria e engano; mas também encanto, beleza,
enlevo e êxtase. A direita, assim, é do macho: ação, armas, feitos heróicos, proteção, força
 bruta, justiça cruel e justiça complacente; as virtudes e os perigos masculinos: egoísmo e
agressão, raciocínio lúcido e luminoso, poder criativo como o Sol mas também maldade fria
e insensível, espiritualidade abstrata, coragem cega, dedicação à teoria, força moral sóbria e
séria.1
1 Joseph Campbell, Creative Mythology (New York: Viking, 1968), pp. 288-89.

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A língua molda o nosso pensamento mesmo quando pensamos que estamos sendo
receptivos. Uma amiga minha estava preparando o trabalho final do curso preparatório para

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a ordenação sacerdotal anglicana. Arrebatada por um daimon inspirador, decidiu escrever de


uma perspectiva inteiramente feminina —   isto em face da rígida estrutura patriarcal da
Igreja. Seus amigos aconselharam-na com veemência que não o fizesse, mas ela insistiu. E
escreveu:

Sendo
usar umatrabalho,
neste mulher amas
escrever
desejoum depoimento
que fique claropessoal, escolhi
que neste o termo
trabalho “mulher”
o termo para
“mulher”
inclui os homens também, sem nenhuma intenção de excluir o gênero masculino
(exceto onde o contexto o indica claramente) da minha visão da antropologia
teológica e da natureza da Igreja, e especialmente da obra de salvação de Jesus
Cristo. Isto não é feito na mais completa inocência, é claro. Em parte, estou tentando
inverter, para mim mesma e para os meus leitores, a experiência de ler teologia, que
reivindica incluir meu gênero, porém, raramente o faz.

Escrevendo sobre a noção de pessoa na teologia, ela diz:

O que sinto da natureza humana é que a mulher é uma criatura finita (ser criado por
Deus), racional, espiritual, imaginativa e criativa, ou, segundo formula o Livro da
Oração Comunitária:

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“abençoada... com memória, razão e habilidades”. Ela possui o livre-arbítrio


(limitado, mas real) e o potencial para se tornar uma verdadeira filha de Deus,
transcendendo a si mesma enquanto amadurece. Ao compreendê-la teologicamente,
devemos lutar continuamente para manter o equilíbrio entre a sua natureza espiritual
e a natureza material, às vezes “superespiritualizada” pelas comunidades religiosas.
Seu objetivo é amar: a si mesma, outras mulheres e, o mais importante, a Deus.

...Penso que conseguimos uma imagem melhor dos propósitos para os quais a mulher
foi criada e as possibilidades inerentes à sua natureza na pessoa de Jesus Cristo.
Somente conseguiremos uma compreensão correta de quem a mulher é após vermos
quem é o Cristo... porque somente à luz da cruz podemos ver o verdadeiro pecado da
mulher, assim como o seu destino latente.

...Dentre todas as criaturas criadas sobre a Terra, apenas a mulher (até onde sabemos)
tem o poder da razão e da memória.

Além disso, existe na mulher o que Karl Rahner chama de “transcendental”


(manifestado em Jesus de maneira eminente), o salmista chama de “um pouco
inf erior que os anjos” e o Genesis chama de “à imagem de Deus.”2

A palavra “homens”, significando toda a humanidade, usada nas Escrituras e em


outros lugares

2 Das respostas dadas por Jean Dalin, Clift às perguntas que lhe foram feitas durante o exame
de ordenação.

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levou-nos a distorções durante muito tempo. O peso semântico se inclina para a


masculinidade a despeito de todos os esforços feitos para incluir as mulheres no termo

“homem” .
Devemos investigar esta qualidade fugaz —  a feminilidade —  e achar alguma coisa
de sua história, apesar da pobreza de nossa língua. Duas atitudes, uma grega, a outra
hindu, irão ajudar-nos a entender as raízes da feminilidade na civilização moderna. O mito de
Édipo abrange o ponto de vista grego, nossa herança mais próxima; o mito de Nala e
Damayanti, do Mahabharata, transmite a atitude da Índia.

UMA NOVA PERSPECTIVA

As atitudes ocidentais com relação à feminilidade estão tão profundamente arraigadas


que se torna impossível olhá-las objetivamente sem nos distanciarmos totalmente de nossa
 própria cultura. Foram as viagens à Índia que me despertaram para uma visão muito diferente
de tudo o que é feminino. A modulação do sentir, a apreciação da feminilidade ocupam
lugares infinitamente elevados no caráter do povo hindu. Caminhar simplesmente por uma
rua na Índia tradicional já é caminhar imbuído de um sentir válido. Experienciar como os
hindus experienciam as cores, os ritmos, os sons, a sensualidade, a afinidade, a modéstia e a
atemporalidade é ser lembrado do Feminino Divino.
 Nossas heróicas conquistas ocidentais causam inveja ao resto do mundo, porém, são
ganhas à custa de nossa capacidade de calor, sentimento, contentamento e serenidade. Somos
tão ricos em

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coisas materiais e tão pobres em valores femininos! Na Índia vi paz e felicidade nos lugares
mais inesperados! Como é que essas pessoas, não tendo quase nada para se contentar, são tão
felizes? Em troca das modernas conquistas tecnológicas, essas pessoas conservaram seus
valores femininos.
O mito de Nala e Damayanti soa estranho aos ouvidos ocidentais, mas essa
estranheza é a própria qualidade de que necessitamos para completar nosso modo de vida
ocidental desastrosamente unilateral. Neste mito hindu as mulheres de forte identidade
feminina evitam o desastre. Inevitavelmente, a força feminina é o herói. As histórias hindus
simplesmente não funcionariam sem o poder de suas mulheres, ou seja, o poder do feminino,
 pois não se restringe somente às mulheres.
 Nós, os ocidentais, sabemos instintivamente que há um ingrediente essencial no
Oriente do qual precisamos para curar a pobreza emocional de nossa cultura. Começamos a
conhecer a filosofia e a religião orientais desde os anos sessenta, seja por intermédio dos
radicalistas da política, ou dos cientistas eminentes. O livro de J. Robert Oppenheimer que
descreve o desenvolvimento da primeira bomba atômica foi intitulado Brighter Than a
Thousand Suns, uma citação do Upanishad. Obras de ficção tais como Sidarta, de Hermann
Hesse, e O Fio da Navalha, de Somerset Maugham, exploraram aspectos curativos do
 pensamento oriental. É desta maneira que podemos aprender com a história de Nala e
Damayanti.

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PRIMEIRA PARTE

O FEMININO NA CULTURA OCIDENTAL

2
A Herança Grega
Uma grande parte de nossa herança cultural e filosófica tem sua origem na Grécia
antiga; nossa ciência, nossas idéias políticas, uma boa parte de nossa língua e muitos dos
nossos costumes advêm daquele grande florescimento que foi a glória de Atenas por volta do
ano 500 a.C. Muitos dos bens culturais que tanto estimamos levam nomes gregos:
democracia, aristocracia, psicologia, política, êxtase, mistério; e numerosos termos
médicos e científicos
não passou de uma notasãodederodapé
origempara
grega. Diz se que toda a filosofia desde a época grega
Platão.
Existe, porém, uma nota escura na nossa herança grega raramente reconhecida ou
entendida. A glória da Grécia que ainda ilumina nossa civilização foi

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comprada a um preço muito alto, um preço pago diariamente por cada um de nós e raramente
atribuído à fonte.
Começamos a questionar a forma patriarcal da cultura ocidental desafiando assim
 pela primeira vez a nossa herança grega. É verdade que os gregos honravam o feminino na
figura de sete
tinha uma deusaspatriarcal
estrutura correspondentes aos sete deuses;
e a feminilidade masgolpe
sofreu um a vida
tãododoloroso
dia-a-diaque
naainda
Grécianão
conseguiu recuperar-se. Grande parte de nossa vida emocional é constituída pela dor desta
ferida ainda aberta.
É inevitável que uma civilização “elevada” como a grega pagasse um preço
igualmente elevado ou profundo. O feminino, desonrado em seu sofrimento, pagou o preço,
enquanto o masculino recebia as glórias de suas conquistas. Talvez uma raça mais sábia
tivesse pago este preço de sangue de uma maneira melhor, mas isto seria pedir o que a
humanidade como um todo não conseguiu realizar até hoje. Cabe agora a nós, a humanidade
no atual estágio de evolução, pagar o preço e evoluir de uma maneira mais saudável do que as
maneiras concebidas por nossos ancestrais.
A Grécia
feminino, nãomenores
e culturas era a única
mala chegaram
degradar oafeminino. O mundo
reconhecê-lo. hebraicoassim
Os hebreus, também
comonegava
os o
gregos, teoricamente prestigiavam o feminino. O Shekinah, a presença de Deus no mundo,
era nada menos que a metade feminina de Deus. Mas, na prática, o judaísmo era uma
instituição patriarcal que fazia o feminino pagar o preço pela portentosa realização
masculina.

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Podemos agradecer por estas conquistas, pois o nosso mundo ficaria


consideravelmente mais pobre caso fossem destruídas. A ciência seria derrubada; a medicina
e todas as maravilhas mecânicas da nossa época desapareceriam. Estaríamos “adubando o
campo arado”, de acordo com Mefistófeles no Fausto de Goethe. Embora tenhamos
começado a restabelecer o lugar da mulher no nosso mundo moderno, ainda não fizemos o

suficiente para
 perspectiva. restaurar os
Atualmente há valores
vozes nafemininos: o sentir,que — 
nossa sociedade a paz, para
o contentamento ea
reduzir o sofrimento ea
alienação —  pleiteiam o retorno à natureza. Gandhi, os amish, Rousseau, Thoreau, assim
como os hz’ppies dos anos sessenta defendiam modos de vida mais simples para ficarmos
mais próximos da mãe protetora, a Terra.
Assim talvez aliviássemos a dor, mas perderíamos o que temos de melhor no mundo
ocidental. Um jeito melhor seria pagar de maneira mais consciente o preço do que
ganhamos e por esse preço consciência ganhar o que há de melhor no gênio masculino e no
feminino. Caso venha uma era melhor, um milênio, ela emergirá desta apreciação consciente
de ambos os valores e não do balanço violento do pêndulo de um extremo a outro.

A Voz de3 Sófocles


A busca da consciência à qual aspiramos começa com uma investigação da
história do atual desequilíbrio masculino-feminino. A cultura grega registrou suas atitudes na
história de Édipo, que exemplifica o que há de melhor e de pior na Grécia. Se pudermos
entender esta história de trágica nobreza, estaremos melhor equipados para enxergar nosso
 próprio dilema. O mito hindu de Nala e Damayanti, embora contenha muitos elementos em
comum, desenrola-se de maneira bem diferente: o feminino também é maltratado, mas o
resultado é o oposto da história ocidental. Ao justapor as duas histórias, a intenção não é
 provar que uma delas seja a certa e a outra errada, e sim expandir a consciência.
23

O único meio de nos tornarmos mais responsáveis é adquirirmos maior consciência


 psicologicamente, através de um trabalho interior que custa muito sofrimento. Mas
devemos pagar este preço para garantir a evolução da nossa maturidade individual e o
florescimento intelectual e emocional de nossa cultura. A história de Édipo foi dramatizada
nas peças tebanas por Sófocles. Nascido em 496 a.C., o dramaturgo grego viveu numa das
épocas mais conturbadas da História: a Grécia no apogeu de seu poder, as Guerras
Peloponesas que sangraram esta civilização avançada quase até o fim, e o início do declínio
que
real logo varreu
de Tebas e aa imposição
Grécia paradaa lei
guerra civil e àa custa
masculina ruína.do
O tema
amor das peças gira
feminino e da em torno daEsta
afinidade. casa
catástrofe reverbera através da História até os dias de hoje.
De acordo com a lenda, Cadmo, o pai do império tebano, funda uma cidade, mas um
dragão devora os primeiros cidadãos. Cadmo mata o dragão de um só golpe de sua espada e
semeia seus dentes dentro dos muros da cidade. Os dentes imediatamente ressurgem na
forma de gigantes tão ferozes que se põem a matar-se uns aos outros. Sobram apenas cinco,
que serão os fundadores de Tebas. Um mito de criação puramente masculino!

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Várias gerações depois, nasce Édipo, futuro rei de Tebas. Um oráculo diz que ele
matará seu pai e desposará sua mãe. Com isso os pais de Édipo são forçados a matá-lo, mas
em vez disso, movidos pela bondade e humanidade, eles trespassam seus pés com uma
agulha de ferro e ordenam a um servo que

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o deixe no lugar tradicional de abandono.3 O servo, um pastor, não consegue abandonar a
criança à morte e a entrega a um outro pastor que leva o banido a um reino vizinho. O rei
deste reino não tem filho e adota a criança, dando-lhe o nome de Édipo, “pé inchado”.
 No início de sua juventude, Édipo fica sabendo da premonição do oráculo e foge de
sua pátria para evitar o destino predeterminado. Após perambular por algum tempo, chega a
Tebas, seu lugar de nascimento. Num confronto na estrada mata um homem. Este homem é
seu pai, e a primeira parte da profecia se cumpre. Édipo se estabelece na cidade mas a
encontra conturbada. Seu rei tinha sido morto (por Édipo) e a Esfinge, um monstro híbrido,
apoderou se do país. A Esfinge propõe um enigma que ninguém consegue responder, e
muitos são mortos por fracassarem. Édipo responde ao enigma, salva o país da Esfinge e
recebe como recompensa a rainha viúva por esposa. A segunda parte da profecia assim se
cumpre. O casal real tem dois filhos e duas filhas, e Tebas vive um período de paz.

O DESTINO DA FEMINILIDADE
O psicólogo suíço Jung observou que a dimensão inconsciente da nossa psique nos
mostra a mesma face que lhe mostramos primeiro. Se fomos hostis para com ela, ela será
hostil para conosco. Grande parte da nossa vida psicológica é um diálogo

3. Era costume na Grécia Antiga deixar num lugar determinado as crianças indesejadas ou
deformadas para que morressem abandonadas caso ninguém viesse procurá-las para adotar.
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entre o nosso mundo consciente, ou seja, todas as coisas que sabemos sobre nós mesmos, e o
inconsciente, ou seja, o embaçado mundo da nossa vida interior, que constitui um grande
mistério para nós.
O primeiro ato humano nessa história provoca uma resposta imediata das forças
ctônicas* femininas do mundo interior. Quando Cadmo, o rei legendário, funda a cidade, a
humanidade impõe a ordem masculina, que associamos com cultura e lei civil.4 Mas a
masculinidade impõe forma e ordem ao país sem levar em conta os elementos femininos da
matéria e terrenalidade, e a Terra contra-ataca na forma de um dragão que quase destrói a
cidade. Cadmo mata o dragão, semeia seus dentes no solo da nova cidade, e surge a primeira
geração de cidadãos —  gigantes que imediatamente se põem a matar-se uns aos outros. Os
cinco sobreviventes são os fundadores da cidade, que agora é povoada pelos filhos da
ordem e da forma (o legado de Cadmo) e pelo elemento terra, na forma dos dentes de dragão.
Restabelece-se o equilíbrio e a cidade pode continuar o seu desenvolvimento.
Esta é uma receita maravilhosa para remediar a tensão na vida de quase todas as
 pessoas do mundo de hoje. Trabalhamos muito duro (e os ocidentais trabalham mais do que

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qualquer povo conhecido na História) para a nossa realização masculina patriarcal. Isto
significa “fundar a cidade” e é uma conquista especificamente masculina. É o orgulho e a

* Relativo aos deuses e demônios que habitam as profundezas da terra. 4. É interessante a


receita para se fundar uma cidade grega: cave um poço que será o centro da cidade. Em

seguida
A corte uma pele
circunferência de boi constituirá
do círculo numa tira contínua,
os limitesestendendo-a
da cidade. em círculo ao redor do poço.

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alegria do mundo ocidental! Mas o mito nos diz que isto é apenas a metade da realidade e o
feminino, esse aspecto ilimitado, sem forma, da realidade, destruirá a nova criação masculina
se não for honrado e incluído na criação. O feminino excluído, transformado num dragão por
ter sido ofendido, ameaça arruinar o projeto inteiro. Um amigo meu, imensamente
orgulhoso pelo seu recente sucesso numa difícil situação de negócios, comportava-se como
um galo de briga e vangloriava-se da sua vitória. Mas sua esposa, forçada a desempenhar o
 papel de dragão, instintivamente cutucava sua arrogância masculina.
Cadmo usa de grande sabedoria ao fundar sua cidade com forma (o poço e a tira de
 pele de boi) e caos (os dentes de dragão). Esta sabedoria antiga é uma receita adequada para
as nossas realizações masculinas de todo o dia. Acrescente dentes de dragão aos seus triúnfos
 para que ocorra a verdadeira criação. Homens e mulheres que acrescentam a energia
feminina interior à realização patriarcal beiram a genialidade. O catalisador pode tomar a
forma de uma meia hora de quietude, um presente, uma cerimônia, ou uma libação à metade
feminina da criação patriarcal.

27

4 A História de Édipo
O rufar dos tambores do destino ressoa como um fio condutor através da história de
Édipo. O oráculo anuncia que o rei e a rainha de Tebas gerarão um filho que matará seu pai
e desposará sua mãe. Do nosso ponto de vista, não há desastre pior. Lembremos, porém, que
estes são um rei e uma rainha, e, o que é mais difícil, tenhamos em mente que é a história da
consciência interior, contendo as leis e medidas de segurança necessárias para o advento
desta consciência. Um dos heróis, Édipo, age corretamente e introduz a idade de ouro de
Atenas. Outro, Creonte, age de maneira errada e acaba completamente só, deixando as
mulheres da história pagarem por seu erro.
Ao ficarem cientes da profecia, o rei e a rainha compreensivelmente tentam contornar
o desastre.

29

 Ninguém quer a consciência. A consciência só pode vir pelo destino, com a condição
de participarmos do processo e pagarmos o preço integral. Eles ferem o filho trespassando
seus tornozelos com uma agulha de ferro e mandam um servo levá-lo ao local de abandono

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onde crianças indesejadas ou deformadas são deixadas para morrer. Isto é um toque sutil,
 pois deixa uma brecha por onde o destino pode falar. Eles não matam a criança, mas
deixam-na para morrer.
O servo não suporta deixar a criança morrer abandonada. Entrega o menino a um
 pastor, que o leva a outro país. Eis um ato bondoso e humano, uma das delgadas linhas

femininas
adotam que se
Édipo entrelaçam
como se fosse aos
seu fios doEle
filho. destino.
cresceOfeliz.
rei e aCom
rainha do novo
o passar dospaís nãosurgem
anos, têm filho e
histórias perturbadoras sobre seu nascimento. Ele finalmente deixa seus pais adotivos (que
 julga serem seus pais verdadeiros) para fugir da sentença terrível, mas este ato apenas se
torna o fio seguinte do destino.
Uma história árabe mostra claramente como a arte da fuga é freqüentemente o fio
seguinte do destino encaixando-se no lugar determinado. Um homem rico de Meca consultou
uma cartomante, que ao olhar dentro da sua bola de cristal pôs-se a gritar e caiu desmaiada.
Isto não era nada reconfortante, e o homem ficou alucinado de preocupação quando
finalmente conseguiu reanimar a adivinha. Recuperando a fala, ela lhe informou que a Morte
iria ao seu encontro no porto leste de Meca, ao amanhecer. O homem, usando de todo o
 poder de sua riqueza, alugou uma caravana naquela noite e estava no porto leste de Agra pela
manhã. Lá estava a Morte, esperando

30

 por ele. “Mas pensei que você estaria esperando por mim no porto de Meca!”, balbuciou o
homem. “Não”, disse a Morte, “há milhares de anos está escrito que nós nos encontraríamos
no porto de Agra esta manhã” . Usando de todo o poder de sua riqueza e por causa do
equívoco leviano da cartomante, ele chegou ao lugar da sua morte, convencido o tempo todo
de que estivesse fugindo dela.
Assim fizeram o rei e a rainha de Tebas, tentando livrar-se do seu filho marcado pelo
destino, e Édipo, procurando escapar do seu destino ao fugir de seus pais adotivos. Estas duas
fugas apenas colocam Édipo exatamente onde deveria estar para cumprir o terrível e
assombroso destino anunciado antes de seu nascimento.
O peso da consciência vai caindo sobre Édipo no decurso de sua vida. Ele controla os
detalhes, mas o destino detém os fios principais e governa com mão de ferro, assim como
antes o ferro tinha prendido seus pés. Ele deve pagar sua dívida. Na medida em que o faz,
surge a consciência e ele segue o caminho da nobreza para criar uma idade de ouro em
Atenas. Sua fuga, porém, forma a escuridão e faz subir o preço.

O PROFETA CEGO

A história
sem saber tomandovaio tecendo
rumo de seu padrão
Tebas, seu enquanto
país natal.Édipo foge na
Ao entrar de sua
seu verdadeira
país adotivopátria,
e acaba
o
gentil Édipo é desafiado por um bando de viajantes e, em defesa própria, mata o líder do
 bando. Não sabe que este homem é seu pai, Laio, rei de Tebas.

31

Ao chegar à cidade, Édipo encontra Tebas sob o encanto de um monstro implacável, a

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Esfinge, que destrói todos aqueles que não conseguem responder ao astuto enigma proposto
 por ela. A Esfinge tinha dominado o país porque o grande rei Laio fora morto. Ela é o estágio
seguinte do monstro feminino que quase destruíra Tebas quando de sua fundação. O
feminino renegado, antes um dragão devorador, se tinha transformado num teste da
consciência. Imploram a Édipo recém-chegado que encontre a resposta ao enigma da

Esfinge.a Ele
esposa consegue
viúva e livra o paísAssim
do seu antecessor. da opressão da Esfinge.
se cumpre a terrívelOprofecia
povo designa
de queo Édipo
rei e dá-lhe por
mataria
seu pai e esposaria sua mãe.
Durante quinze anos reinam a paz e a harmonia sob o sábio governo de Édipo. Sob a
superfície ilusória esconde-se, porém, a vergonha hedionda do segredo de Édipo, do qual ele
sabe apenas uma parte. Outra tirania oprime o país, na forma de inundações e pestes, pois os
deuses não podem permitir que tanta treva permaneça sem solução por muito tempo.
Édipo pede aos deuses que lhe mostrem a causa do sofrimento de Tebas e o oráculo
conta o sórdido assassinato do seu rei, Laio. É por isso que o país sofre opressão. Édipo jura
que será feita a justiça com aquele que matara Laio para limpar o país deste ato tão tenebroso.
Mandam chamar um profeta cego para revelar sua visão interior. De início ele se
recusa a comentar o que sabe. “Recuso-me a expor os pesados segredos da minha alma e da
sua.”

32

E prossegue: “Não me culpes; põe em ordem tua própria casa” .


O profeta cego finalmente conta a história de Édipo, filho de Laio e Jocasta, expulso
 para um país estrangeiro, que retorna para matar seu pai e esposar sua mãe, agora acusador e
acusado, o rei de Tebas.
O assassino de Laio —   este homem está aqui: Aparentemente um estrangeiro, um
viajante entre nós; Mas como será esclarecido, alguém nascido em Tebas,
Para a, sua desgraça. Chegou em plena posse da visão, mas partirá cego; Agora rico,
depois um mendigo; bastão na mão, tateando seu caminho
Para um país de exílio; como iremos ver, irmão e pai, ao mesmo tempo, dos filhos que
acalenta; filho e marido da mulher que o gerou; assassino de seu pai,
E aquele que derrubou seu pai. Vai e pensa sobre isto. Se conseguires provar que
estou errado, chama me de cego.

Jocasta é chamada e ao ser interrogada percebe que Édipo, seu marido atual, é seu
filho. Édipo reconhece seus terríveis, porém, inconscientes atos e exige ser exilado de Tebas.
Ao perceber sua participação involuntária na tragédia, Jocasta enforca-se redimindo
assim sua culpa. Édipo, impulsionado por sua própria culpa,

33

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8/18/2019 Robert A. Johnson - FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA

arranca os broches de ouro de seu vestido e fura com eles os próprios olhos para apagar a
visão da mulher-mãe que o revolta. Derramando o próprio sangue realiza o primeiro ato de
redenção por sua culpa de incesto.
Édipo é expulso de Tebas, em cumprimento de sua própria ordem, e Creonte, irmão
de Jocasta, sobe ao trono.

34

5
O Significado Interior do Incesto
Para entendermos o tremendo impacto desta história devemos tornar bem claro que é
uma história interior, que tem pouco a ver com o fato literal. Encontraremos o seu pleno
significado ao interpretarmos os eventos como acontecimentos profundos de uma cultura e,
se tivermos a coragem, de nossa própria história psíquica. Esta história e outras semelhantes
que surgiram
orientar a almanohumana
mundo na
inteiro em váriasaventura
sua perigosa épocas rumo
da História são mapas psíquicos para
à consciência.
O conto não trata das proibições contra o incesto literal mas é como um sonho que
oferece orientação e proteção para que a consciência se estabeleça. Dizendo da maneira mais
simples possível, o

35

incesto é o ato psicológico de criar consciência. Criamos consciência, a capacidade do self


em ver a si mesmo, quando revertemos o fluxo da nossa energia natural sobre nós mesmos. É
assim que ganhamos toda a nossa consciência. Toda a vez que nos disciplinamos,
sentamo-nos
acasalando-nose desejamos crescer, Tomamos
conosco mesmos. estamos cometendo
uma parteincesto num sentido
de nós mesmos, interior — e  nos
a abraçamos,
dedicamos ao divino ato de nos tornarmos conscientes. Temos um retrato impressionante
disto no Egito dos faraós. As pessoas comuns eram terminantemente proibidas nesta cultura
antiga de casarem-se com parentes, sob ameaça de morte imediata. Mas o faraó devia casar se
com sua irmã! Ele não podia casar-se com nenhuma outra mulher. Isto era para forçar a
aristocracia à conscientização e proteger o povo desta experiência tão intensa, a qual poderia
não suportar. A maioria das culturas recomenda a consciência para sua aristocracia, mas
estabelece proibições cuidadosas contra esta faculdade para as pessoas comuns. Portanto, a
nossa parte aristocrática é destinada a alcançar a consciência, enquanto que a parte “plebéia”
obedece às leis básicas e permanece dentro dos padrões convencionais.

que comToda a introversão


o mundo externo) (esta tendênciarazão
é incestuosa, psicológica que
pela qual se ocupa
é tão mais
suspeita no com a vida
mundo interior
de hoje. Na
verdade, “mórbido” e “introspecção” são muitas vezes associados no pensamento
moderno. Foi Jung que cunhou os termos “introvertido” e “extrovertido”. Descrevem
diferentes tipos de personalidades ou modos de

36
encarar a vida. Numa sociedade basicamente extrovertida como a dos americanos, a maioria

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dos introvertidos é considerada “fora de sintonia”.


Quando você se retira para meditar ou simplesmente para espairecer depois do
trabalho ou porque deseja ficar sozinho, você está acasalando-se consigo mesmo. Uma
corrente de energia é apresentada a outra corrente de energia, e desta fusão nasce um
rebento, que, como uma criança física, possui as características das duas energias parentais,

sendo no entanto independente


Submeter-se a qualquer delas e freqüentemente
disciplina, afastar-se dosuperior a ambas.
fluxo natural de energias é
acasalar-se consigo mesmo. Há um provérbio alquímico: “Olhei para mim mesmo,
acasalei-me comigo mesmo, gerei a mim mesmo, dei à luz a mim mesmo, eu sou eu mesmo”.
Este é o ato da “autogeração”.
É uma atividade extremamente perigosa, que exige muito cuidado, com o risco de
ocorrer uma destruição especialmente maligna em vez do nascimento da consciência. O
velho ditado “O diabo se aproveita das mãos ociosas” serve para todo aquele que não
consegue obedecer às leis da consciência. A tomada de consciência é uma prerrogativa
aristocrática e deve ser cercada de todos os cuidados possíveis. Desobedecer às leis naturais
de energia exogâmica é permitido apenas aos que estão destinados à consciência superior. O
 preço pago em forma de compromisso e sofrimento psicológico é tratado pela maioria dos
livros acerca da arte do crescimento pessoal e do amadurecimento.

37

Se a era na qual estamos entrando puder ser caracterizada por uma nova consciência,
não é de surpreender que o incesto venha a ser muito importante para essa nova consciência
como uma metáfora para o crescimento interior consciente. O uso do incesto como um ato
simbólico, como uma metáfora para a visão interior, é tão novo para nós e nossa época que
não enxergamos esta dimensão de criatividade. Por isso acontecem graves mal-entendidos
sobre esta realidade psíquica. A explosão súbita do incesto na sua forma literal e crua grita
nos meios de comunicação e abarrota nossos consultórios. Nunca antes a infiltração e
crescente incidência do incesto chamaram tanta atenção. O incesto, o molestamento e a
exploração do sexo são exemplos vívidos do toque dourado de uma consciência interior
emergente, manifestando-se inconscientemente em atos patológicos e destrutivos. É
absolutamente essencial que nossa capacidade para o “incesto” seja usada num nível
criativo, o de criar consciência e cultura. Deveria ser protegida de expressar-se literalmente,
o que é tão destrutivo para a psique humana.
O cerne da história de Édipo é o custo da desobediência às leis do fluxo natural de
energia. A busca do herói é a jornada interior em direção da crescente consciência. Aqueles
que empreendem esta jornada contribuem para o crescimento de uma cultura. Aqueles que
entendem mal ou trapaceiam, recusando ou deixando de pagar o preço do crescimento
interior, em vez disso pagam com a moeda da solidão, ansiedade e alienação. O feminino é
quem paga principalmente este preço inautêntico.
38

O EXÍLIO
Édipo finalmente é banido do seu reino. Seus dois filhos nada fazem para ajudar o

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 pai, simplesmente o repudiam. A sede de poder consome-os. Um deles, Etéocles, rebela-se


contra Creonte, sucessor de Édipo, e tenta arrebatar-lhe a soberania do reino. O outro,
Polinice, vai até o reino vizinho, casa-se com a filha do rei e guerreia contra sua pátria para
conquistar o trono de Tebas.
As duas filhas de Édipo permanecem leais. Enquanto Ismena fica em Tebas,

 procurando estabelecer
Colonus, próximo a ordem,
a Atenas, ondeAntígone acompanha
eles esperam viver emseu
pazpai até o pequeno
e aliviar reino de Édipo
seu sofrimento.
observa que “Três mestres: a dor, o tempo e o sangue real ensinaram-me a paciência”.
Édipo fica sabendo que seus dois filhos estão lutando pelo poder, primeiro contra
Creonte e depois um contra o outro. Travando uma batalha de morte pela pátria, os filhos
declaram abertamente que preferem apoderar-se de Tebas a conseguir o retorno do pai. Édipo
responde:

Somente estas duas, minhas filhas, Fizeram tudo o que as mulheres podem, dando
me o que preciso, Alimento e orientação segura e carinho afetuoso. Seus irmãos venderam o
 pai por um trono, Preferiram o cetro e o poder real.

39

O oráculo de Delfos tinha ordenado que Édipo fosse sepultado nos arredores de
Atenas, para que seu poder trouxesse um grande florescimento cultural para a cidade.
Ismena, a filha mais nova, vai a Colonus e transmite a seu pai o decreto do oráculo. Édipo
 pergunta: “Fazem de mim um homem no momento em que eu deixo de existir?”. Ismena
responde: “Embora os deuses te derrubassem, agora te erguem”. Édipo promete seu corpo a
Atenas.
Creonte, que antes fizera cumprir o exílio de Édipo, agora vem exigindo o seu corpo
 para trazer a paz a Tebas. Com a recusa de Édipo, Creonte anuncia que uma das filhas de
Édipo está em seu poder como refém e que irá seqüestrar a outra para realizar o seu plano.
 Numa cena tenebrosa, Édipo, cego, ouve indefeso enquanto Creonte rapta Antígone usando
de força bruta.

CREONTE (para seus homens): Prendei-a [Antígone]. Forçai-a se não quiser vir.
ANTÍGONE: Oh, ajudai! Oh, ajudai-me, deuses e homens.
CORO: Pára, senhor.
CREONTE: O homem pertence a vós; mas ela é minha.
CORO: Tu não tens o direito.
CREONTE: Tenho.
CORO: Que direito?
CREONTE: Ela é minha. (Ele a agarra. Os guardas levam-na embora.)

Creonte tenta em seguida prender Édipo. Teseu, rei de Atenas, aparece em cena, salva
Édipo, resgata

40

as duas filhas dos soldados de Creonte e as traz de volta a Édipo.


Édipo dirige a palavra às suas filhas antes de morrer:

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Este é o fim de tudo o que fui e o fim de vossa longa tarefa de cuidar de mim. Sei o
quanto isto foi difícil. No entanto, tornou-se mais leve por causa de uma palavra —  amor.
Eu vos amei como ninguém jamais amou.
Elas choram abraçadas. Em seguida, o silêncio, até que se ouve uma voz, uma voz
medonha que faz todos tremerem com os cabelos em pé. “Édipo! Édipo!”, grita repetidas

vezes. “Édo
 presença chegada a hora,
rei Teseu, não demores.”
e quando Édipo reconhece
este se aproxima, o chamado
Édipo dirige-lhe as divino. Pede
seguintes a
palavras:
“Caro amigo, dá-me tua mão e promete a estas crianças. Crianças, vossas mãos na dele.
Promete nunca abandonálas por tua própria vontade, e sim fazer de boa vontade tudo o que
achares melhor para o bem delas”. E sem nenhum lamento o nobre Teseu jura cumprir a
vontade de seu amigo. Édipo pode morrer em paz.

CORO (comentando a morte de Édipo): Foi um ato divino? Sem dor alguma?
MENSAGEIRO: Foi um milagre.

Após o enterro de Édipo, Antígone deseja ver a sepultura de seu pai, mas Teseu
explica-lhe que ninguém pode ver a sepultura de alguém que doou sua

41

vida pelo enriquecimento cultural de um país. Esta morte é inteiramente impessoal, sem
nenhum valor ao nível humano comum.
Os trechos acima desvelam o âmago da história. Um homem foi chamado pelo
destino para criar a consciência através do ato interior de “autogeração” , e por ser um nobre,
 paga o preço. Primeiro ele assume a responsabilidade pelos seus atos, em seguida sofre as
conseqüências. Sua cegueira, a extinção voluntária da visão para ganhar visão interior, é o
 preço principal; mas o pagamento inclui também ser exilado do seu reino anterior, perder a
maioria dos elementos masculinos que o haviam sustentado antes e romper os laços
hereditários tradicionais.
A pessoa que passa por um processo de evolução da consciência é imediatamente
assaltada por um senso de abandono e excomunhão da maioria dos valores que a
sustentavam. O antigo reino dissolve-se sob os seus pés, restando-lhe sentir-se exilado e sem
nenhum parâmetro para a vida. Os elementos masculinos são especialmente hostis a qualquer
mudança de consciência. Dizia-se que Jesus não tinha problema algum com as mulheres ao
seu redor mas a lei e a ordem dominantes na sua época deram-lhe trabalho.
O primeiro vislumbre de esperança de que o sofrimento de Édipo não fora em vão
advém do oráculo de Delfos. Édipo deve ser enterrado nos arredores de Atenas em favor do
grande enriquecimento da cidade. Que toque irônico! Ele não deve ser enterrado
cerimoniosamente dentro da cidade, e sim

42

à beira dela, onde seu espírito guiará Atenas rumo à idade de ouro sem as honras de um herói
oficial.
Eis o âmago da história. Se alguém destinado a alcançar um grau de consciência paga
 por isto, sucede um grande florescimento cultural. A conquista da consciência não eleva o
ego a grandes alturas criativas e sim causa uma eflorescência nas proximidades. Édipo não

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faz quase nada além de sofrer; é Atenas que floresce.


Édipo tinha jurado descobrir o culpado pela calamidade do reino de Tebas.
Permaneceu fiel a sua palavra mesmo quando descobriu que esta pessoa era ele mesmo.
Experimenta-se muita culpa coletiva quando se embarca na vereda individual da
conscientização. É necessário distinguir a culpa coletiva da culpa individual. Devemos

responsabilizar-nos
carregamos o pesadopor nossa
fardo dosprópria culpa,
pecados mas recusar
de nossos a culpaou
antepassados originária de na
da cultura fora. Todos
qual
vivemos, mas não devemos responsabilizar-nos pessoalmente por isto. A teologia básica nos
ensina claramente que somos culpados apenas das coisas que originamos. A escuridão dessa
história não se originou com Édipo, portanto ele não precisava assumir a responsabilidade
 por isto.
Mas Édipo provoca sua própria cegueira ao saber de sua culpa. Isto indica que a visão
antes focalizada para fora, para o mundo cotidiano, fora transferida para o insight,
focalizando a criatividade cultural, que é o verdadeiro significado da história. A glória de
Atenas derivou da nobreza de um homem escolhido pelo destino para o processo cultural, um
homem disposto a pagar o preço e cumprir a profecia. Fazendo-se uma interpretação interna,
como é

43

necessário para desvelar as verdadeiras dimensões de uma história ou mito, isto significa que
o centro do ser é enriquecido pelo trabalho realizado pela personalidade consciente. Ao ego,
que pagou o preço para que a transformação ocorresse, atribui-se pouco valor. Atenas
florescerá em criatividade porque um homem pagou o preço da consciência.

A FUGA DA RESPONSABILIDADE

Testemunhamos
entendimento a nobreza
e evoluir para de um
um nível homem
superior de destinado a ajudar
consciência. as pessoas
Este homem sofrea conseguir
terrivelmente, mas conquista uma criatividade que vale mais que o ouro. Essa criatividade
ultrapassa os limites de propriedade individual, pois segundo o mito, Atenas inteira se torna
magnífica porque ele criou a consciência. A responsabilidade espiritual e emocional é o que
causa este crescimento criativo na consciência. Édipo pagou por esta nova consciência e
criou nele mesmo uma idade de ouro, espelhada na glória de Atenas.
 Nós ocidentais ainda temos de aprender que toda a ação provoca uma reação do lado
oposto da balança. É como se vivêssemos em cima de uma gangorra, com seu ponto de apoio
exatamente no centro. Qualquer ação do lado direito da gangorra no mesmo instante
 provocará uma ação contrabalanceada do lado esquerdo. Uma grande realização cultural
gerará uma escuridão correspondente. Uma criação coloca em movimento uma destruição
correspondente. O ato cultural ou criativo será preservado se o oposto correspondente for
respeitado e receber consciência igual. Ignoramos tão

44

 profundamente esta lei que nem temos palavras adequadas para isto. Como você pode dizer
que deve destruir tanto quanto criar sem parecer que está negando o processo cultural inteiro?

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Criar sem pagar tributo à destruição é tão impossível quanto tentar inspirar sem expirar. É
significativo que a sabedoria coloque a Sexta-Feira Santa antes do Domingo de Páscoa.
O legado de criação deixado por Édipo é a glória de Atenas, com toda a sua nobreza
de pensamento e sua filosofia, seus insights políticos e trabalho artístico. Não houve
florescimento cultural maior que esse na face da Terra em nenhuma época da História. Mas

nenhum tributo
compreender correspondente
este lado escuro é ao
quelado escuro
causou da realidade
a existência o acompanhou.
de tantas A falha
trevas desde então.em
A raiz
do nosso problema está no fato de não termos palavras ou conceitos referentes à escuridão
que lhe dêem tanta dignidade como os referentes à luz. Sentado frente ao teclado, sinto-me
incapaz de dar beleza e nobreza à outra metade da criação.

A TRANSFERÊNCIA
Chegamos agora a uma passagem escura na nossa história. Édipo revela sua nobreza
ao pagar o preço de sua evolução, mas outros três homens não pagam o preço e transferem-no
a mulheres. Este subterfúgio propaga-se pela História e está presente em nossa época. As
mulheres de hojeque
este subterfúgio se ressentem
constitui ada carga
parte injusta
escura da de algoherança
nossa que nãogrega.
fizeram.
Um Elas
gruposãodesensíveis
pessoas a
empreendedoras ergueu uma civilização avançada, a Idade de

45

Ouro de Atenas, mas não pagou o preço por ela, deixando-nos por herança tanto a
genialidade como a feminilidade danificada.
A história dos outros três homens é elucidativa. Creonte, que manifestou pouquíssima
compaixo por Édipo durante o seu julgamento, aproveitou se imediatamente de seu
sofrimento e nomeou-se rei de Tebas logo após exilar o soberano anterior. Quando o amor
 precisa competir
enlouquecido pelocom o poder,
poder. perece
Embora o amor. Faltou
arrependido compaixão
no final, a Creonte
tentou ajudar por ele
Antígone, masestar
já era
tarde.
Os dois filhos de Édipo, mal vêem seu pai na sepultura, já brigam pelo direito ao
trono. Eles lutam e matam-se um ao outro no espaço de um único dia.
Cada um dos três homens fere as mulheres que estão próximas. Creonte toma um
caminho de poder que provocará a morte de sua mulher e sua futura nora. Os dois filhos de
Édipo negam amor ao pai e às irmãs, e matam-se um ao outro engalfinhados numa luta pelo
 poder. É neste momento que um caminho nobre degenera numa negação dos valores
femininos. Essa negação nos persegue até os dias de hoje. A busca de poder é o perigo mais
sério com que se defrontam os valores femininos. Creonte, Polinice e Etéocles derrubam
Édipo e transformam nossa história nobre sobre a evolução da consciência num conto sobre
desejo de poder que destrói o relacionamento, o amor e a devoção.
As duas filhas fazem escolhas de vida mais sábias. Antígone se mantém
inquestionavelmente fiel a seu pai e Ismena permanece próxima dele o quanto seu senso de
 praticidade o permite. Seguiremos estas duas mulheres enquanto modelam os valores
femininos.

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6
O Destino de Antígone

Como muitas vezes acontece na história humana, estoura a guerra por causa da
disputa pelo poder. Etéocles —  que deseja o trono de Tebas —  defende a cidade contra
Polinice, que tenta apoderar-se dela. Os irmãos matam-se um ao outro, deixando Creonte
soberano incontestável de Tebas. Ele decreta que Etéocles deve ser honrado e receber um
enterro apropriado, mas qualquer um que tentar recolher o corpo de Polinice do campo de
 batalha será morto. Polinice deve ser deixado em desonra no campo de batalha para ser
comido pelos abutres. A cidade obedece ao decreto.
Antígone pede a ajuda de Ismena para sepultar Polinice, seu irmão, mas esta recusa;
não seria prático. Antígone diz: “Vive, se quiseres; vive, e despreza

47

as mais sagradas leis do céu”. Ismena retruca: “Que os mortos me perdoem, não posso fazer
nada além de obedecer; mais que isso seria loucura”.
Creonte descobre que o corpo de Polinice fora sepultado, e ordena ao mensageiro da
notícia que descubra o perpetrador, sob pena de tortura. Antígone é pega cuidando do corpo
de seu irmão e é trazida à presença de Creonte.

CREONTE: Dize-me agora, em poucas palavras se puderes, Sabias da proibição de tal ato?
ANTÍGONE: Sabia, naturalmente. Estava bastante claro.
CREONTE: E mesmo assim tu ousaste transgredila?
ANTÍGONE: Sim. Essa ordem não veio de Deus. A justiça Que mora com os deuses
acima não tem conhecimento de tal lei. Não considerei suficientemente fortes os vossos
editais
Para desdizer as inalteráveis leis não escritas
De Deus no céu, sendo que vós não passais de um homem.
Elas não pertencem ao ontem nem ao hoje, pois são eternas,
Embora nenhum de nós possa dizer de onde vêm.
Ser culpada perante Deus por transgredi-las
 Não posso, por nenhum homem sobre a Terra.
Sabia que deveria morrer, é claro,
Com ou sem vossa ordem. Se for logo,

48

Tanto melhor. Viver atormentada todos os dias


Como vivo, não ficaria contente eu em morrer?
Este castigo não será sofrimento.
Se eu tivesse deixado o filho de minha mãe
Permanecer sem sepultura, eu não o suportaria.

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Isto posso suportar. É tolice o que estou dizendo?


Ou sois vós que cometeis a tolice de me julgar assim?
Minha conduta é partilhar o amor, não o meu ódio.

CREONTE: Vai, então, e partilha teu amor entre os mortos.

 Não prevalecerá aqui nenhuma lei de mulher enquanto eu viver.


Eis uma colisão direta do ponto de vista masculino dominante, o poder, e a
capacidade feminina de amor e devoção. Houvesse prevalecido o amor, a História do
Ocidente teria tomado um rumo muito diferente. Talvez o resultado fosse inevitável naquele
estágio do desenvolvimento humano, quando a sede masculina pelo poder provou ser mais
forte que a visão feminina de afinidade. Creonte decreta a morte das duas irmãs.
 No início da história Antígone tinha sido prometida em casamento a Hêmon, filho de
Creonte. Como o destino de Antígone o afeta, Hêmon é convocado.

CREONTE: Filho, penso que ouviste sobre o nosso julgamento final de tua noiva.
Sem palavras de raiva, eu espero?

49

Amigos ainda, apesar de tudo, meu filho?


HÊMON: Sou vosso filho, senhor; vossas sábias decisões
Governam minha vida, e a estas sempre obedecerei.
 Não posso valorizar nenhum laço de casamento
Acima de vosso bom conselho.
CREONTE: Disseste bem.
A vontade de teu pai deve ocupar o primeiro lugar no teu coração.
Os pais pedem que os filhos sejam apenas isso,
Obedientes, leais, prontos a derrubar
Os inimigos e amar os amigos de seu pai...
Aquele que o Estado escolheu deve ser obedecido
 Nos mínimos assuntos, sejam eles corretos ou errados.

Aqui um homem fraco é coagido pela autoridade masculina e, embora discorde (e


logo mostrará seus verdadeiros sentimentos, tarde demais), não protesta em face da
desprezível crueldade de seu pai. É um exemplo para as gerações seguintes, inclusive a
nossa. Este sentimento, ou a falta dele, tem sido usado muitas vezes na História recente. A
resposta predominante dos acusados nos julgamentos de guerra de Nuremberg era: “Eu
estava apenas cumprindo ordens”. O sentimento humano é persistentemente eclipsado
 pela autoridade.
Creonte manda abandonar Antígone numa tumba na rocha, com suprimentos para um
mês, para morrer à míngua. Assim é feito para que a culpa de sangue não recaia sobre o rei de
Tebas.

50

Creonte consulta um oráculo, que o avisa das conseqüências de sua crueldade. Ele

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enterra o corpo de Polinice acompanhado de todo o ritual devido. Em seguida vai até a
caverna onde tinha aprisionado Antígone, mas chegando lá descobre que ela se havia
enforcado. Hêmon, enfurecido com a perda de sua amada, tenta matar seu pai. Não consegue
e volta a espada contra si mesmo. A mulher de Creonte, Eurídice, tira a própria vida ao saber
da morte de seu filho.

A peça
 pela morte terminaem
da mulher, com
péCreonte,
no centroresponsável pela morte do filho
do palco, completamente e conseqüentemente
só, destruídos todos os
elementos femininos, morta a sua família inteira e Tebas em ruínas. Ele fala:

Sou nada. Não tenho vida. Levai-me embora, Eu que matei sem pensar
Meu filho, minha mulher.
 Não sei para onde devo ir,
Onde buscar ajuda.
Minhas mãos cometeram falhas, minha cabeça está caída,
Com o peso do destino pesado demais para mim.

51

7
O Legado de Édipo
O mito de Édipo, o mito fundamental da mitologia grega, conta-nos de uma forma
curta e simples sobre o legado maravilhoso e terrível que herdamos do nosso progenitor
espiritual, a Grécia. É a história de um momento crucial na vida da humanidade, quando
aparece pela primeira vez o conjunto-mentalidade moderno. O destino decretara que o
homem deve aprender os segredos do incesto e, pagando o preço emocional e físico por
esse conhecimento,
 pagou colocar
o preço e entregou suaa pedra fundamental
oferenda a Atenas, para a glória
Atenas de Atenas.
que não é tantoOuma
nobre Édipo
cidade e sim
um modo de vida, uma atitude, um tipo específico de consciência. Na melhor das hipóteses,
somos cidadãos de Atenas até hoje.

53

Outro homem, Creonte, tivera a mesma oportunidade porém falhara. Os dois nos
ensinam como lidar com nosso legado dual de luz e escuridão, nobre e trágico, amoroso e
cruel.
A grande lição que devemos aprender tem a ver com responsabilidade humana. Édipo
 pagou o preço
femininos a suapor estapagassem
volta nova consciência. Creonte
o preço. Nada nosfez commais
parece que as mulheresoue osdesumano
desonroso elementosdo
que obrigar uma outra pessoa, um inocente, a pagar por nossos erros ou faltas. Seja numa
 briga familiar ou num incidente internacional, freqüentemente a questão é o preço. O homem
tem uma falha, fatal, a não ser que ele se aperceba disso, de arrumar cuidadosamente sua
vida de maneira que o feminino pague o preço de sua criação masculina. Ele é capaz de ter
seu momento culminante de sexualidade e ir embora, deixando a mulher cuidar da parte
 prática, ou é capaz de usar os materiais do mundo para os seus propósitos e deixar o planeta

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devastado, desequilibrado e desordenado. O pior de tudo é que, por isto ser tão sutil, ele pode
levar a parte superior da consciência e deixar a parte feminina dentro dele mesmo pagar o
 preço: escuridão interior e falta de sentido. Devemos investigar a última.
Édipo reconhece sua visão interior (incesto, na nossa história) e toma a
responsabilidade para si. Anuncia claramente que trará o responsável pelo declínio de

Tebas perante
impacto a justiça.
todo da perda deQuando descobre
sua pátria, isto é,ser
daele mesmo, pede
consciência para ser exilado
que conheceu e sofre
antes do o
insight.
Adquirir uma nova visão exige o sacrifício da antiga. Édipo destrói

54

dolorosamente sua visão antiga e dirige sua energia numa nova direção, via insight.
Se tomarmos ao pé da letra esta parte da história, perderemos o seu significado mais
 profundo. A cegueira de Édipo tem por objetivo ilustrar uma verdade interior, como o fazem
os símbolos de um sonho. Ele é afastado do enfoque e das atitudes antigas. Fausto passa
 pelo mesmo redirecionamento próximo do final de sua história, quando a Senhora
Preocupação o cega.5 Um dos atos mais nobres que um homem pode realizar é manter sua
consciência e suas atitudes no nível e na direção apropriados ao seu atual estágio de
evolução. Fingir que é mais evoluído do que realmente é resulta em rupturas psicológicas. No
entanto, recusar-se a crescer sempre força uma outra pessoa a pagar pelas suas dívidas
 psicológicas. Como já disse, esta é uma das mais escuras capacidades humanas.
Creonte falha exatamente onde Édipo atesta sua nobreza. Creonte deseja o poder à
maneira antiga e dirige sua energia segundo os padrões antigos, assumindo o controle do
reino, lutando com os dois filhos de Édipo, tomando as duas filhas como reféns. Seguindo os
 padrões desgastados pelo tempo, ele faz com que uma série de mulheres paguem o preço do
seu erro. Um aspecto positivo é quando ele responde à voz do oráculo, mas aí já é tarde
demais. Antígone morre no cativeiro imposto por ele; seu filho morre pela perda de
Antígone; sua mulher morre por causa da perda de tudo o que lhe é precioso.
Poucos momentos na mitologia feriram de maneira tão trágica os valores femininos.

5. Ver meu próximo livro sobre o desenvolvimento da consciência masculina com referência
aos vários paralelos entre Fausto e Édipo.

55

8
A Saga Continua

Há ilustrações na mitologia e na literatura que demarcam a contínua ausência do valor


feminino na cultura ocidental. Esta atitude unilateral prevalece pouco desafiada até o nosso
século.
Tanto o cristianismo quanto o judaísmo defenderam pontos de vista extremamente
 patriarcais da natureza da humanidade. É um choque descobrir que o concílio de Mâcon (uma

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 província da França ao norte de Lyon) da Igreja do século dezesseis manteve um longo


debate sobre a questão se as mulheres possuíam ou não uma alma. Na contagem final dos
votos a decisão foi afirmativa, por um único voto! Pouco tempo antes Santo Agostinho tinha
dito que não se podia outorgar mais poder para as mulheres

57
 porque elas já possuíam poder demais. Embora seja um tributo torto ao poder inato das
mulheres, e da feminilidade, isto mostra uma incapacidade de integrar o respeito pelo valor
feminino na vida humana do dia-a-dia.
Outro conto sobre a perda da feminilidade é o romance de Tristão e Isolda.
Originário do século XII, junto com o mito do Graal, é fundamental para grande parte do
 pensamento moderno. O início desta história é frio e vazio de sentimento, chegando até a ser
desumano.
O rei Marcos da Cornuália tinha recebido ajuda de seu amigo o rei Rivalen de
Lyonesse, numa batalha desesperada. Marcos, por sua vez, oferece ao seu amigo sua irmã
Branca Flor em casamento. Este é o primeiro golpe na feminilidade: ela, a flor branca, é
doada como uma peça de propriedade numa transação política. A feminilidade sendo tão
 pouco valorizada, não é de surpreender que a história evolua para uma falha de amor.
Qualquer troca ou início que não dê à feminilidade um lugar honrado não pode prosperar.
Com a continuação do conto, Branca Flor descobre que seu marido fora morto em alguma
empreitada masculina justamente um dia antes do nascimento de seu filho. Desesperada com
estes repetidos golpes na sua dignidade e valor, Branca Flor dá a seu filho o nome de Tristão,
que significa “o triste”, e em seguida morre de tristeza.
A história prossegue a partir deste início errado e perpetua o erro em episódios
infindáveis até acabar na morte sem sentido do próprio Tristão. O baixo valor conferido à
feminilidade no início da história tem seu ponto culminante no final com a perda da vida em
si.

58

O mito de Tristão e Isolda ainda exerce profunda influência sobre o nosso


 pensamento e costumes coletivos: apaixonar-se é a suprema experiência humana. Mesmo
que uma pessoa nunca tenha ouvido esta história sobre o poder do amor romântico, seus
valores reverberam no mais profundo do inconsciente, afetando as atitudes em relação ao
casamento, posição, poder, riqueza. Enquanto esta busca ilusória do perfeito parceiro
romântico não for esclarecida em nosso pensamento coletivo, não poderemos fazer as pazes
com o lado feminino de nossa natureza.6
 Nosso exemplo seguinte de estupro da feminilidade pela masculinidade encontra-se
em Romeu e Julieta de Shakespeare. Ali descobrimos quão pouco as coisas mudaram desde
que Creonte afirmara: ”Não prevalecerá aqui nenhuma lei de mulher enquanto eu viver”. Não
haverá nenhum amor enquanto preponderarem valores masculinos exclusivos. O poder é
freqüentementeexercido à custa do amor, então o amor perece.

 Romeu e Julieta começa com a rixa entre duas famílias, os Montecchios e os Capuletos.
Prevalecem os valores patriarcais de poder, domínio, prestígio e autoridade, que colocam as
duas famílias aristocráticas uma contra a outra. A aristocracia, que deveria ser a base para a

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consciência superior, é marcada freqüentemente demais pelas mais amargas rixas e lutas pelo
 poder.

6. Ver no meu livro WE (editado pela Editora Mercuryo, 1987) uma abordagem do tema de
Tristão e Isolda.

59

Os dois jovens amantes, cada um representando uma das famílias oponentes,


carregam o fardo de sanar esta contenda. O prólogo monta a cena arquetípica:

Duas famílias, ambas da mesma dignidade,


 Na bela Verona, onde localizamos a nossa cena,
Rivais antigos se lançam num novo motim,
Onde sangue civil mancha as mãos civis.
Do seio fatal destes dois inimigos
Dois amantes marcados pelas estrelas tiram suas vidas;
Suas derrotas desafortunadas e comoventes
Com sua morte enterram a luta de seus pais.
O tenebroso acontecimento de seu amor marcado pela morte,
E o ódio sempiterno de seus pais,
Que nada removia, somente o fim de seus filhos,
Agora serão o assunto durante duas horas em nosso palco;
Que se ouvirdes com ouvidos pacientes,
O que faltar, procuraremos consertar com afinco.

Romeu e Julieta aproximam-se um do outro com amor delicado, cercados pela maré
de mil anos de poder, propriedade e domínio do mundo patriarcal. O jovem Mercúcio
 pronuncia enfaticamente falas perversas aconselhando Romeu a entregar-se ao prazer e
esquecer-se do custo ou do compromisso.
O macaco está morto, e eu devo conjurá-lo. Eu te conjuro pelos lindos olhos de
Rosalina, Pelo seu semblante altivo e pelo seus lábios rubros,

60

Pelo seu pé delicado, perna esbelta, e coxa trêmula,


E as regiões contíguas a ela,
Que apareça tua imagem diante de nós!

Mercúcio queria fazer-nos crer que o amor nada mais é do que “uma coxa trêmula, e
as regiões contíguas a ela”. A genialidade de Shakespeare colocou e sta fala degradante
imediatamente antes da declaração de amor de Romeu a Julieta, a maior declaração de amor
 jamais escrita.

Romeu fala de Mercúcio: ”Um cavalheiro, ó ama, que adora ouvir sua própria voz, e
fala, durante um minuto, mais do que poderia fazê-lo durante um mês”. A ama de Julieta é
uma personificação feminina mais velha da mesma opinião, pois aconselhaa a seguir o plano

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de seus pais casando-se por conveniência com Paris, a quem ela detesta. A ama diz a Julieta
que é sábio casar-se conforme foi ordenado e ao mesmo tempo permitir-se o prazer dos
encontros furtivos com o/ seu amado Romeu.
Bem, fizeste uma escolha simplória; não sabes escolher um homem. Romeu! não, não
ele. Seu rosto até que é mais bonito que o de qualquer homem, mas suas pernas suplantam as

de todos comparação.
qualquer eles; as mãos, os pés,não
Embora o corpo,
seja a embora não semaneiras,
flor das boas deva mencioná-los,
garanto-te, éestão alémcomo
delicado de
um cordeiro. Vai, moça, serve a Deus.

61

Julieta deveria realizar um casamento político e esquecer seus sentimentos. “Serve a


Deus”, a ama aconselha. Ela blasfema o amor de Julieta por Romeu: ”as mãos, os pés, o
corpo, embora não se deva mencioná-los...” —  Ela relata: “Teu amor fala como um
cavalheiro honesto, e cortês, e gentil e belo e, garanto, virtuoso” —  descrevendo Paris, o
homem com quem os pais de Julieta exigem que ela se case. Na mentalidade da ama, a
devoção não passa de uma perna, uma mão, um pé e um corpo, enquanto a conveniência é
tudo. Não é conversa de alcova. É o assassínio de tudo o que é feminino.
Se alguém duvidara que o feminino divino (neste caso, amor e devoção) pudesse ser
ferido tanto pela mulher como pelo homem, eis a prova. Ouvimos a pior das blasfêmias da
 boca de uma mulher, embora Mercúcio esteja em segundo lugar.
A peça segue seu caminho tenebroso. Romeu e Julieta levaram seu amor ao Frei
Lourenço, e por seu intermédio mais um golpe mortal é desferido na feminilidade. Se o
sacerdote, que deveria representar o amor e a devoção, fosse autêntico, teria honrado o
amor existente entre os dois. Mas ele se curva ante a pressão política dominante e tenta, por
um meio escuso, conseguir o que considera justo, dentro de sua limitada capacidade. Ele
instrui Julieta a beber uma poção e dormir fingindo estar morta, de maneira que Romeu possa
salvá-la da sepultura e levá-la para um país onde seu amor pudesse estar seguro. Mas outro
 personagem falha não seu papel e, amedrontado pelas possíveis conseqüências, não transmite
as instruções necessárias a Romeu, que, chegando desinformado à sepultura da moça,
fracassa no seu

62

amor cometendo suicídio. Julieta desperta para encontrar não o seu amado mas o seu
cadáver, matando-se em seguida. Mais um fracasso no amor.
O drama arquetípico expõe a condição psicológica da Europa conforme a visão de
Shakespeare. Todos os envolvidos fracassam em proteger o valor feminino que poderia ter
sanado a ruptura entre as duas famílias em guerra. Primeiro, as famílias nobres caíram na
heresia medieval de rivalidade pelo poder. Em seguida, o amigo Mercúcio aconselha Romeu
a seguir uma filosofia hedonística. Até a ama, que por ser mulher deveria estar mais próxima
dos valores femininos, aconselha a duplicidade. O sacerdote deixa de defender o valor do
amor, que deveria estar em primeiro lugar para ele. Um mensageiro falha na transmissão da
mensagem por causa do medo. Menos culpados, mas seguindo a mesma linha de valores, os
dois amantes falham um com o outro.
Através da história inteira, entretanto, soa a nota da redenção: as duas casas nobres
finalmente se reconciliam, pondo um fim à rixa no funeral dos dois amantes. Esta peça é uma

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avaliação que Shakespeare faz da interação de uma masculinidade enlouquecida pelo poder e
uma feminilidade submersa, atuante na sua época.
 Nossas atitudes em relação à feminilidade estiveram tão profundamente enraizadas
em nosso pensamento e em nossa língua durante os últimos três ou quatro milênios que
 perdemos de vista nosso questionamento. Mesmo questionar é um aspecto masculino que

 pode direcionar esta investigação na direção errada.


63

SEGUNDA PARTE

O FEMININO NA MITOLOGIA HINDU

9
Uma Atitude Diferente
Ao explorar outra cultura podemos adquirir uma visão mais clara de como não
sacrificar nem a graça nem o calor humano.
Uma história indiana semelhante ao mito de Édipo revela uma atitude bem diferente
em relação à feminilidade. Novamente é o mito que fornece insight psicológico de uma
atitude cultural. Mahabharata, o livro sagrado dos hindus, data aproximadamente do mesmo
 período dos nossos Antigo e Novo Testamentos. É três vezes mais extenso que os dois juntos.
Um pequeno segmento de Mahabharata, a história de Nala e Damayanti, oferece-nos uma
outra perspectiva do equilíbrio entre os valores masculinos e femininos. Os personagens do
 Mahabharata conseguem proteger melhor o princípio da feminilidade e a afinidade que os
nossos heróis ocidentais.
67

Uma advertência: não apresento esta cultura oriental como se fosse superior à nossa.
 No entanto, podemos aprender com ela sobre o feminino. A falta do desenvolvimento
tecnológico empurrou a sociedade da índia em direção à crise econômica e ambiental.
Manteve no entanto uma valorização dos relacionamentos humanos que ultrapassa em
muito a da sociedade ocidental.
A Índia tradicional recusou-se a adotar qualquer tecnologia que direta ou
indiretamente pudesse colocar em risco os relacionamentos humanos e os valores femininos.
As técnicas de linhas de montagem, deslocamento das famílias para as cidades, ruptura de
laços familiares com o envio do assalariado para um lugar de trabalho distante eram
 práticas consideradas perigosas demais. Para resguardar os valores femininos a Índia
sacrificou o progresso industrial. Nenhum indiano tradicional desafiaria esta escolha.

 Nossa cultura ocidental incentiva a industrialização em detrimento dos nossos


relacionamentos, tanto entre nós mesmos, como com o mundo ao redor. Como resultado,
estamos num grande perigo de destruir a vida dos relacionamentos, assim como a Índia está

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em perigo de ser afogada pela pobreza e fome. A ameaça ao sentimento de afinidade


indiano cresce na medida em que eles abandonam seus costumes tradicionais adotando
atitudes ocidentais. As histórias de terror que se ouvem sobre a ruptura de relacionamentos
na Índia moderna freqüentemente parecem ser atribuíveis à sua adesão aos costumes
ocidentais.

68

A história terá de fornecer um veredicto sobre quem serviu melhor à humanidade: o


Ocidente materialista ou o Oriente que dá importância ao relacionamento. Provavelmente o
único veredicto inteligente aprovará o empenho que serve tanto aos valores masculinos
quanto aos femininos, resguardando cada um deles.

69

10
A História de Damayanti
O conto de Nala e Damayanti merece ser estudado com certa reverência. Na
qualidade de mito, esta história fala inevitavelmente da condição interior psicológica da
cultura que a produziu. Contos sobre reis e rainhas, deuses e demônios são o meio
consagrado pelo tempo de examinar as características psicológicas e padrões do
comportamento humano. Não é possível reproduzir a magnificência da língua arcaica na qual
a história foi escrita, mas um segmento de uma tradução inglesa do século dezenove está
anexado no final deste livro para comprovar sua beleza atemporal.
Era uma\vez um rei que era a flor da virtude mas possuía uma falha gritante: não
conseguia resistir ao impulso de jogar. Estava tão cegado por esta sua paixão
71

que podia ser facilmente seduzido a jogar e igualmente a ser enganado. Finalmente, perdeu
seu reino e foi exilado para a floresta da pobreza. Seu filho, Nala, subiu ao trono e usando de
sua sabedoria e força restaurou o poder do reino.
Bem, um rei vizinho tinha uma filha em idade de casar, de incomparável beleza e
nobreza. Mensageiros e cortesãos se incumbiram de espalhar a notícia das virtudes de
Damayanti. Logo as conversas uniram o par, Damayanti e Nala, por excelência. Não é de
estranhar que os dois viessem a amar-se como se fossem destinados a isso, embora nunca se
tivessem
um certo visto fisicamente.
dia, Nala, O assunto
por acaso, capturouparecia impossível
um cisne douradojáque
quenegociou
Nala não podia vê-la. Mas
sua liberdade em
troca da promessa de cortejar Damayanti para ele.

O pai de Damayanti anuncia um torneio, um Swayamvara, para os pretendentes de


sua filha. Os deuses, até o próprio Indra, o deus soberano de toda a Índia, inscrevem-se no
torneio. Indra encontra Nala na estrada a caminho do torneio e ordena-lhe que corteje
Damayanti em seu nome. Nala, num terrível dilema entre a lealdade para com o deus e para

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com o próprio coração, corteja Damayanti abertamente para Indra mas declara em silêncio
seu próprio amor. Damayanti revela seu amor por Nala e decide escolher Nala em público
 por ocasião do festival.
O momento crítico chega. Os concorrentes sentam-se em círculo e ela deve
escolher. Mas todos parecem deuses aos seus olhos! Que fazer? Alguém lhe sussurra que

o único humano presente, Nala,


72

 pode ser reconhecido porque é obrigado a piscar os olhos vez por outra. Damayanti
encontra Nala desta maneira e anuncia sua escolha. Todos os deuses, mais generosos que os
humanos, abençoam o jovem casal.
Mas as coisas não ficam assim. Kali, o deus da ira e da destruição, ouve que um
mero mortal havia preterido os deuses por outro mortal para ser seu cônjuge. Kali manifesta
sua ira mas é obrigado a esperar doze anos até encontrar um ponto vulnerável no caráter de
 Nala. Um dia Nala esquece de lavar os pés antes de rezar e Kali ganha o controle sobre ele.
Isto pode parecer um assunto de menor importância para um ocidental, mas qualquer quebra
de forma é considerada perigosa na índia. Espionando os antepassados de Nala, Kali
inflama-o com a necessidade insana de jogar.
Apesar dos conselhos de seus amigos que tentam protegê-lo, Nala perde no jogo seu
reino e até a última roupa de Damayanti. Resta a ela um pequeno pedaço de pano para se
cobrir, e a ele nada. Nala nada pode fazer a não ser partir para a floresta com Damayanti e
levar a vida de um mendigo asceta.
 Nala cai na depravação e rouba metade da modesta roupa de Damayanti enquanto ela
dorme. Agora ele tem algo a colocar no jogo. Ele perde até mesmo esta última propriedade.
Presa de terrível vergonha, ele abandona Damayanti ainda adormecida.
Ao acordar, Damayanti fica inconsolável na sua solidão e perda. Ela é feita
 prisioneira dos anéis de uma serpente gigante, mas é salva por um jovem. Durante três dias
vagueia sem rumo. Um bando de ascetas diz4he que logo encontrará seu marido, livre de sua
loucura e restituído à sua dignidade real. Os ascetas desaparecem; tinha sido apenas uma
visão.

73

Damayanti se junta a um bando de mercadores a caminho de Suvahu, a Cidade da


Verdade. Acampam ao lado de um lago de lótus. No meio da noite uma manada de elefantes
selvagens destrói o acampamento, indignados com o que o homem tinha feito ao domesticar
seus irmãos. Damayanti viaja sozinha à Cidade da Verdade, onde a rainha a reconhece e lhe
oferece proteção.
 Nala deu-se um pouco melhor. Ele vê um incêndio na floresta e ouve Naga, a serpente
do mundo, gritar do meio das chamas pedindo ajuda. Nala salva a serpente, mas é
recompensado com uma mordida. Naga explica que esta mordida é a única cura para sua
loucura, mas o pagamento por esta cura será a perda de sua juventude, beleza e graça. Nala,
transformado, vai à Cidade da Verdade para trocar sua habilidade em lidar com cavalos pela
habilidade com os dados.
Damayanti é encontrada por seus pais na Cidade da Verdade e levada para casa. Seus
 pais se põem a procurar Nala por meio de uma armadilha: eles anunciam outro Swayamvara

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 para Damayanti. Ao saber disso, Nala fica agoniado. Trabalha para um homem que planeja
competir no Swayamvara. O senhor lhe pede que lide com os cavalos e fica tão
impressionado com a habilidade precisa de Nala que lhe oferece trocar sua própria habilidade
com os dados pela habilidade de Nala com os cavalos. Nala pode agora expurgar sua loucura.
 No Swayamvara, ao lidar com os cavalos, Nala faz sons que são caracteristicamente

só dele. Damayanti
Damayanti, reconhece
Nala recebe Nalasua
de volta pelaposição
audição, mas não ainda pela visão. Ao toque de
de rei.

74

11
Duas Histórias de Amor
Enquanto viajamos pela mitologia será instrutivo mostrarmos mais duas breves
histórias de amor do Mahabharata. Elas ressaltam a importância central da força do amor e
da afinidade enaSavitri.
Shakuntalal vida hindu. Em ambas as histórias o personagem principal é uma mulher,

SHAKUNTALAL E O ANEL

Shakuntalal é a enteada de um sábio que mora num singelo ashram na floresta. Um


dia, o rei vai à caça e encontra-a colhendo flores na floresta. É claro que eles se apaixonam
imediatamente. Casam-se e o rei dá a Shakuntalal um anel com o seu selo. O rei

75

 parte parapossível.
logo que reassumir seuso deveres
Com anel ela reais,
poderádizendo a Shakuntalal
entrar na queseu
corte. O sábio, venha ao seu tinha
padrasto, encontro
estado
ausente, e na volta descobre Shakuntalal grávida. Ele se alegra com o casamento com o rei e
 promete ajudá-la a partir quando a criança estiver em idade de viajar com segurança. Mas
enquanto o pai de Shakuntalal esteve ausente, outro sábio veio visitá-los. Tão embevecida no
seu amor pelo rei estava ela que ofendeu o sábio, esquecendo-se das formalidades devidas a
um iogue visitante. Ele a amaldiçoou, dizendo que a pessoa que causava a sua distração iria
esquecê-la. Ela implorou-lhe que assim não fosse, e então ele modificou a maldição,
 prometendo que se o homem visse o anel que estava usando, iria lembrar-se dela. Eis que
ela perde o anel durante sua viagem até o rei. Certamente ele a esquecerá.
Shakuntalal exprime sua fúria e angústia por ter sido esquecida. Seu monólogo na
corte
maiorsobre a irresponsabilidade
dramaturgo dos homens
da Índia, Kalidasa, tomados
é uma heróica pelo do
defesa desejo ardente,
domínio escritofemininos
dos valores pelo
no mundo: estabilidade, conforto, afinidade e amor singelo.
Shakuntalal é levada pelos deuses ao céu para lá viver enquanto o rei pondera sobre
o estranho curso dos fatos, este algo” que esquecera. Finalmente um pescador encontra no
lago o anel com o selo real e o leva ao rei, que então se lembra de tudo. Parte em busca de
Shakuntalal, encontrando-a e a seu filho numa montanha celestial, e todos se reúnem.

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SAVITRI NA FLORESTA

Savitri é a forma feminina de uma das muitas palavras que designam o sol em

sânscrito. ao
sacrifício Umsol,
reisão
e uma rainha que com
recompensados não tinham filhos, depois
uma maravilhosa de Savitri
filha. oferecerem
cresceume se
grande
torna
uma mulher tão esplêndida que nenhum homem ousa pedi-la em casamento. Então seu pai
sugere que ela vá pelo mundo afora numa carruagem, acompanhada de um séquito, à procura
de um marido.
É o que ela faz. Após longas jornadas pela maravilhosa terra da Índia, ela vislumbra
um belo jovem à beira da floresta. No mesmo instante sua vida muda. Satyavan é o filho de
um rei exilado que vive a vida simples de um asceta na floresta, porque ao se tornar cego
não podia mais desempenhar suas tarefas reais.
Savitri volta ao reino de seus pais para contarlhes sua escolha. Narada, o mensageiro
e músico divino, aparece para informar à corte reunida que Savitri fez uma perfeita escolha.
Mas existe um problema: Satyavan morrerá transcorrido um ano após o casamento. A
rainha fica perturbada e pede que Savitri reconsidere. Savitri, porém, insiste já ter feito sua
escolha. O casamento se realiza e Savitri vai à floresta para viver com o seu marido e seus
 pais. Ela os serve bem e todos a amam. Continua bela e graciosa apesar da vida difícil na
floresta.
Com a aproximação do dia em que Satyavan deve márrer, Savitri começa a jejuar
 para ganhar força interior. O dia fatal chega e ela pede ao marido

77

que a leve junto para cortar lenha para o fogo. Ele concorda. Satyavan morre ao golpear o
machado.
A Morte se aproxima para levar sua alma enquanto Savitri segura a cabeça de
Satyavan no colo. Incansavelmente, ela segue a Morte até o reino infernal e para livrar-se
dela, a Morte oferece vários dons para Savitri escolher: a visão para o seu sogro cego, o
retorno do rei para o seu lugar de direito, uma centena de filhos para ela, o que fora sua
escolha. A admiração que nutre por Savitri faz com que a Morte esqueça que, para ela poder
ter filhos, Satyavan deve permanecer na Terra. A Morte liberta a alma de Satyavan. Savitri,
 portanto, conquistara a morte por meio do amor.

REFLEXÕES

 Nestas duas belas histórias, assim como na nossa história principal, é na força do
feminino, na mulher-herói, que reside o fator da redenção. Em todas, os homens não
conseguem por qualquer razão o enfoque da feminilidade para complementar a sua força
externa. Ocorre assim uma crise divisora que pode ser resolvida somente pelo heroísmo
feminino.
A tradição ocidental oferece três contos que nos surpreendem por inverter as três
histórias do Mahabbarata no seu trágico desfecho. O conto de Orfeu e Eurídice é uma
inversão da busca de Savitri. Uma figura masculina usa sua força feminina, representada pela
música, para chegar ao inferno e convencer Plutão a libertar sua mulher. Esta feminilidade,

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 porém, não resiste até o fim, e ele fracassa. O problema de Medéia com Jasão é análogo ao de
Shakuntalal

78

com seusão
Julieta rei. amantes
Mas Medeia mata seuscomo
adolescentes dois Nala
filhose por vingançaJulieta,
Damayanti. e o amorno se perde. cai
entanto, Romeu e de
vítima
um sacerdote bem intencionado mas ineficiente, e os amantes morrem.
Todas as mitologias apresentam sempre o mesmo tema, isto é, a interação entre as
figuras arquetípicas e/ou humanas. Passamos a maior parte de nossa vida no jogo horizontal
entre forças oponentes, o perpétuo cabo-de-guerra entre eventos pessoais tais como eles são
e como desejaríamos que fossem. Isto gera energia humana, fonte daquilo que fazemos na
qualidade de humanos. Podemos chamar a isto de drama da vida. Existe ainda o jogo vertical
que é o drama de níveis, a interação de deuses e pessoas. Este é o reino da mitologia, todo um
nível de drama superior ao jogo humano comum. A palavra com a qual designamos esta
dimensão de experiência é destino.
O destino desempenha um papel igualmente poderoso no mito de Édipo e nas
histórias hindus. Édipo cumpre um destino que lhe foi designado bem antes do seu
nascimento e por isso não podemos culpá-lo por sua herança. O destino também figura no
mito de Nala e Damayanti, onde as circunstâncias fazem com que eles se encontrem e onde
os deuses intervêm e desejam modificar o comportamento humano.Somente a mitologia e o
destino são suficientemente fortes para resolver o dilema de Nala e Damayanti quando eles
querem se casar, mas os deuses desejam Damayanti para si. A inteligência humana comum,
 projetada para trabalhar com o jogo humano do gostar e não gostar, do bem e do mal,

79

não consegue lidar com esta brecha vertical, e assim a história deve continuar o seu curso
destinado para encontrar a solução.
 Não podemos ser responsabilizados pelo destino, pois não o criamos; mas a maneira
como prosseguimos com este destino é de nossa inteira responsabilidade. Embora a história
tenha escapado das dimensões humanas ao fazer sua brecha vertical, ainda assim, são as
ações nobres ou ignóbeis dos humanos que levarão a história a um final nobre ou desastroso.
Édipo comprovou o poder da nobreza humana; Creonte provocou o desastre dele mesmo e da
casa de Tebas. Nos limites do seu destino, Édipo agiu com humanidade e afinidade; Creonte
 jogou jogos de poder e destruiu tudo que estava ao seu alcance. Um trouxe o maior
florescimento cultural jamais registrado na História, a Idade de Ouro de Atenas; o outro
estabeleceu um padrão de relacionamentos deficientes, atuante até os dias de hoje. É esta
ação humana que chama nossa atenção nos dois mitos. É esta ação que determina a nobreza
ou o desastre da história.
Primeiro, é triste ver como os homens agem mal tanto no mito grego quanto no hindu.
As mulheres, porém, mantêm-se firmes no mito da Índia, coisa que as mulheres no mito
grego são incapazes de fazer. Este tema de jogo entre os elementos masculino e feminino
desafia cada um de nós. Podemos aprender com isto. Se o elemento feminino se mantiver
firme, a história fatídica pode chegar a uma solução de afinidade positiva. Qualquer que seja
o nosso destino, mesmo se for muito tenebroso, estaremos seguros se o feminino conseguir se

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manter firme.

80

 Nossa história hindu fala do impacto dos deuses sobre a vida humana quando os

indivíduos
início são arrebatados
o elemento masculinodos caminhospelo
é engolido comuns de comportamento
seu lado obscuro, o jogo convencional. Desde
de dados. O jogo podeo
ser considerado como uma dimensão profundamente arraigada do comportamento
masculino. O pai de Nala perde seu reino porque não consegue controlar sua paixão pelo
 jogo. Os deuses sabem exatamente onde atingir Nala para castigá-lo por sua interferência
em seu reino divino. Para se ver este comportamento na nossa época, basta ouvir uma mãe
tentando dissuadir seu filho de participar de uma perigosa corrida de motos. Uma amiga
telefonou-me outro dia dizendo que estava tentando manter-se calma aquela tarde enquanto
seu filho tinha ido saltar de pára-quedas. O jogo de dados possui seus equivalentes nas mais
diferentes épocas.
 Nala e Damayanti seguem um curso normal de vida humana quando os deuses
intervêm, um sinal seguro de evolução iminente. Nala é obrigado a suportar a tensão de estar
dividido entre sua lealdade para com os deuses e seus próprios desejos com relação a
Damayanti. Uma ruptura desse tipo pode ser curada somente por uma ação heróica. Nala
finalmente realiza esta ação e traz a cura. Damayanti permanece firme na sua lealdade,
devoção e insight,  possibilitando a Nala que prossiga no seu caminho heróico. Isto
também é heroísmo, no seu aspecto feminino.
Damayanti é a figura-chave da história, pois é sua força e sabedoria que a levam a
uma conclusão feliz. Primeiro, ela tem a capacidade da persistência.

81

Espera na casa de seu pai até que seu príncipe a encontre. Em seguida, porém, ela escolhe,
isto é, mantém uma perspectiva humana realista quando lhe oferecem um deus por marido.
Isto é extremamente importante e representa um momento na feminilidade (e um momento
na vida de uma mulher) em que uma mulher permanece fundamentada no seu aspecto
humano. Ela evita a fantasia romântica de um amante divino. Isto requer uma sutileza bem
sintonizada para fazer distinções psicológicas e emocionais. Ela sabe que somente o homem
 precisa piscar os olhos, característica inexistente nos deuses. Ela está ciente dos limites e
 prefere um ser humano limitado, que precisa piscar os olhos, a um divino, que seria eterno e
imortal. Ela é capaz de ver que a condição humana é preferível à divina num momento
específico de sua vida.
Então Damayanti deve esperar e agüentar durante um tempo que parece não ter fim.
Observa seu homem, Nala, mergulhar na sua loucura do jogo e mesmo assim permanece
leal a ele. Fosse isto tomado ao pé da letra, poderíamos pensar que uma mulher deve seguir
seu homem como uma escrava, por mais insensatas que sejam suas atividades. Estamos
discutindo, porém, a masculinidade e feminilidade interiores, o que não deve ser tomado
literalmente. Consiste numa total incompreensão da realidade psicológica quando uma
sociedade ou cultura defende uma ordem patriarcal onde a mulher deve servir ao homem sem
questionar. A feminilidade pode servir à masculinidade, mas isto deve ser entendido como
uma dinâmica interior e não como uma mera convenção de exterior relacionamento. A
 própria

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8/18/2019 Robert A. Johnson - FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA

 
82

essência da feminilidade é saber quando agir baseando-se na afinidade e quando ficar em


silêncio e agüentar. Nenhum homem pode dizer à mulher qual dessas reações é apropriada

num dado
mulher semmomento,
erro. mas existe um centro de sabedoria feminina que pode guiar uma
Damayanti nunca abandona seu senso de afinidade: a cada instante da história, ela é o
 princípio orientador de sua vida. Quando usa sua qualidade masculina de diferenciação, ela o
faz a serviço de seu espírito de afinidade. É a sua capacidade de agir quando necessário e
agüentar quando é apropriado que produz o poder de redenção.
Próximo ao final da história, Damayanti deve reconhecer Nala na forma de um velho
feio. Ela o faz pelo som, a única característica do passado que Nala conservou. Isto lhe basta
 para fazer a identificação correta. Nos seus relacionamentos com os homens as mulheres
muitas vezes sentem que os homens desapareceram psicologicamente e emocionalmente.
Esta habilidade de identificar um pequeno sinal da verdadeira natureza do homem e ligar-se a
isto pode ajudá-lo na sua integração.
O final da história é um grande triunfo, resultante principalmente da sabedoria de
Damayanti. Firme, forte e silenciosa, agindo ou ficando quieta, permanentemente ligada à
sua sabedoria feminina, leva a história à sua conclusão tipicamente indiana. Esta e outras
histórias indianas são os exemplos mais verdadeiros que conheço do poder redentor da
feminilidade. Quando a feminilidade se mantém livre e forte, ela propicia sabedoria e poder
 para atravessar um momento negativo do destino.

83

TERCEIRA PARTE

QUE REALMENTE QUER A MULHER?

12
A Feminilidade Perdida
Os ingredientes eternos da alma nunca podem ser forçados à submissão por muito
tempo. O feminino, colocado num papel inferior tanto pelo mundo grego quanto pelo
hebraico, fez no século vinte uma petição dramática e poderosa por um lugar ao sol da
consciência. Uma explosão, uma onda de energia, surgiu do inconsciente coletivo e foi
imediatamente reprimida, mas ainda ressoa em nosso inconsciente até os dias de hoje.7 O
homem ocidental, especialmente na França, entregou-se à adoração da natureza fugaz da
feminilidade e inventou uma expressão especialmente

7. Jung chama de inconsciente coletivo” o arrimo fundamental da humanidade, a alma do


mundo, aquilo de que todos nós compartilhamos. Freqüentemente o inconsciente coletivo é

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 produzido pela alma da humanidade numa época especifica como o Renascimento, o período
gótico, o Iluminismo.

87

carinhosa
 palavra para isso.originária
“cortesia”, Cavalheirismo, amor cortês
de “cortejar”), ou cortesania
os trovadores, os(ainda a honramos
menestréis com a nossa
e os cantores
surgiam como rebentos no solo ressequido, recém-irrigado pela chuva. A devoção à mulher
tornou-se a ordem do dia. Era costume um jovem viajar de uma corte para outra de alaúde em
 punho para cortejar as damas que cativaram seu coração. Cantava trovas de amor a uma bela
dama, talvez recebesse de suas mãos um talismã e quando este namoro sutil terminava, ia
embora em busca de outra bela dama para dedicar-lhe sua devoção. Nesta época estava
acontecendo uma separação dolorosa e extremada entre a dimensão mundana e a dimensão
ideal da vida, manifestando-se na arte do amor cortês. As regras sociais não permitiam ao
casal expressar fisicamente sua devoção. Um cavalheiro podia sitiar o coração de uma
dama, mas não era permitido testar a ligação na prática, assumindo a forma de um
relacionamento humano. Florescia a dimensão divina de amor, sem o compromisso da
 praticidade. Um poema de Chrétien de Troyes conta a história melancólica do amor cortês:

De todos os males o meu difere; ele me alegra; eu me regozijo nele;


Meu infortúnio é o que almejo E minha dor, meu alimento!
 Não há, portanto, de que me queixar,
Pois meu infortúnio vem de minha própria vontade;
É meu querer

88

que se torna meu infortúnio,


Mas encontro tanta satisfação em assim querendo
Que sofro agradavelmente,
E há tanta alegria em minha dor,
Que estou doente de delícias.

Compreenderemos melhor este fenômeno se lembrarmos que na sua retaguarda


estava a idade gótica. O ideal gótico permite que a matéria seja apenas uma base, a mais
tênue possível de onde o espírito possa alçar vôo. A arquitetura gótica exige da pedra quase o
impossível. Uma construção gótica é projetada nas proporções básicas de cinco unidades de
altura para uma unidade de largura. Os arquitetos conseguiram moldar a pedra nesta
 proporção e aquelas grandiosas construções ainda estão em pé, para a edificação do nosso
espírito. A alma humana, porém, talvez mais bem informada que o intelecto humano, não
suporta esta predominância da altura sobre a largura.
Durante cerca de cinqüenta anos de romantismo inebriante o cavalheirismo reinou
supremo nas cortes da Europa. Servia-se à feminilidade talvez com uma nobreza nunca vista
nem antes nem depois. Era, no entanto, um ideal tão limitado e frágil que caiu por sua própria
falta de substância. A Igreja considerou que esta efusão muito feminina da alma humana era
demasiado unilateral e baniu como heresia o canto do trovador: a heresia albigense, assim

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8/18/2019 Robert A. Johnson - FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA

89

chamada porque o novo culto cavalheiresco concentrava-se nas cercanias de Albi, a cidade
do sul da França.
Uma vez visto e experimentado, um florescimento assim não pode ser totalmente

esquecido;
aqueles diaspor isso oHá
até hoje. cavalheirismo
pouco tempo,manteve um pequeno
fui ao meu canto de
cofre no banco nossa
e uma atenção desde
funcionária
levou-me à caixa-forte. Na saída recusei-me a tomar a dianteira, e diante do impasse eu disse:
“O cavalheirismo ainda não está totalmente morto”. Houve um sorriso: a doçura e
cordialidade encheram aquela moderna caixa-forte de ação. Portanto, o feminino manteve
um tênue fio nos nossos costumes desde aquela época de alaúdes e trovadores. Numa faixa
estreita da experiência humana, o poder pode ceder ao amor. Assim, a feminilidade
corajosamente exigiu a dignidade humana, mas suas formas eram muito delgadas e etéreas
 para que se firmasse. Deixou a brilhante luz, embora evidentemente artificial, da época
francesa do cavalheirismo e sumiu da superfície novamente.
Antes mesmo de sua repressão masculina e dominação do feminino nesse momento
histórico específico, a atitude da Igreja era clara. A Igreja cristã tem vivido com uma visão
trinitária da realidade a maior parte da vida teológica. Do ponto de vista masculino, isto é
 bem satisfatório, já que resulta numa atitude ordenada, bem formada e predizível. Em outras
 palavras, combina bem com uma mentalidade masculina. A conseqüência inevitável de um
 ponto de vista trinitário é a exclusão do elemento feminino. No entanto, este nos persegue,
exigindo ser incluído em nossa vida, ocupando um lugar de honra.

90

Jung destacou que o cristianismo ocidental construiu inconscientemente sua cruz, a


representação pictórica de sua teologia, com um dos braços mais comprido que o outro. Já
que o cristianismo ocidental colocou a matéria e a feminilidade numa posição abaixo do
que merecem, foi compelido a compensar, alongando o braço inferior da cruz, resultando
num mandala distorcido como seu símbolo fundamental. Os ramos orientais do cristianismo
 permaneceram menos presos à heresia da negação da divindade da matéria e feminilidade, e
sua cruz recebeu braços iguais. Sentimos ainda hoje que os gregos honram as dimensões
terrenas da vida mais que nós. Sua cruz é um testemunho eloqüente disto.

CONVIDANDO A SOMBRA PARA O JANTAR

Repetimos o óbvio ao dizer que a energia feminina é e foi um elemento excluído na


cultura ocidental. O que se torna ainda mais complexo para o crescimento e entendimento
humanos é que um elemento excluído freqüentemente parece uma energia ”escura” ou ”de
sombra” antes de ser reintegrado. Jung perguntou certa vez: ”Se você for perseguido por um
leão no sonho (perseguição é a forma favorita dos elementos excluídos apresentarem-se nos
sonhos), que deverá fazer?” Ora, vire-se, é claro, e diga ao leão: ”Por favor, tenha a
 bondade de me comer”. Então o leão explica que ele é o emissário de Deus e pergunta por
que você lhe dificultou tanto a tarefa de entregar um presente divino para você.

91

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“R ançoso” é o termo eloqüente que a psicóloga Marie-Louise von Franz usa para uma
qualidade degradada, sem um lugar ao sol. Negamos dignidade e consciência a uma quarta
 parte de nossa natureza, que ficou rançosa por isso. É de extrema importância entender que o
 perigo está em usar errado ou colocar num lugar errado a qualidade, e não a qualidade em
si. Cometemos este erro psicológico e espiritual repetidas vezes em nossa vida tanto pessoal

quanto cultural.
Quando um elemento excluído é restituído à sua dignidade e recebe seu valor
verdadeiro, torna-se rapidamente positivo e criativo. Um dia estava eu num estúdio de
gravação em Hollywood com o meu cravo, dolorosamente ciente da atmosfera insensível,
rude e competitiva dessa indústria. Parece que o sentimento se torna especialmente frágil
quando a arte se transforma em indústria. Usando meu instrumento de transparência
costumeiro para me proteger, tive o prazer de ouvir uma voz inglesa suave, bem modulada
atrás de mim. O calor e a apreciação contidos inundaram minha consciência e eu disse: ”Que
voz bonita você tem!” A jovem, tomada de surpresa, prorrompeu em lágrimas e fugiu. Nunca
mais a vi, mas imagino que nunca esqueceremos um ao outro. Num ambiente rude, o
sentimento e a feminilidade carregam um poder irresistível. Isto fica em nossa memória
durante toda a vida, mesmo se for um olhar de um estranho.
A tarefa mais profunda de nossa época é conceder esta dignidade aos elementos
sensíveis e femininos, mesmo nas pequenas coisas, para restituir-lhes sua verdadeira
criatividade. Quem sabe quantos de

92

nossos sintomas, tanto pessoais como coletivos, tornar-se-ão brilhantes se pudermos


dar-lhes dignidade?
Jung e von Franz encontraram nos sonhos das pessoas de nossa época o tema
universal da mudança ”do três para o quatro”. Este tema onírico, constrangedor e poderoso,
sinaliza a perda de um elemento essencial, o quarto faltante, e sua tentativa de retornar às
vidas pessoais e culturais da humanidade ocidental.
De maneira contrastante, este ”quatro escuro” ocupa um lugar de dignidade e beleza
na teologia indiana. Há uma trindade de deuses: Brahma, o criador, Vishnu, o conservador, e
Siva, o destruidor (que retira as velhas formas para dar lugar às novas). Estes deuses são
retratados predominantemente masculinos, embora tenham contrapartes femininas. A
grande alegria da concepção indiana deste assunto é que o quatro, tomando o lugar do nosso
demônio cristão, é Krishna, o deus dançante, cheio de vida e alegria e exuberância, que
traz felicidade a qualquer um que esteja próximo. Ele possui dezesseis mil esposas,
diverte-se com as Gopis (ordenhadeiras, leiteiras), toca sua flauta para o eterno deleite do
mundo e geralmente leva uma sensualidade luminosa onde quer que vá. Que prazer encontrar
os elementos chamados satânicos tratados de uma maneira tão alegre e feliz!
Krishna e Cristo têm muitas características em comum, a começar por seus nomes.
Krishna nasceu numa terra hostil, onde o tirano reinante decretara que todas as crianças
abaixo de determinada idade deveriam ser mortas para que a nova encarnação não

93

suplantasse o tirânico e velho rei. Krishna foi pintado de azul para protegê-lo dos soldados,
cujos olhos maldosos não enxergavam esta cor. Assim a imagem de Krishna é geralmente

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azul, o que indica sua elevada espiritualidade. Sua cor celeste protege-o da velha ordem.
 Num país onde ao sensual-feminino é atribuído um papel alegre, pode-se esperar
um conjunto diferente de atitudes. A Índia tradicional é um lugar onde a feminilidade e as
dimensões sensuais da vida ganham a dignidade e nobreza que merecem.

O ANSEIO FINAL
A perda da energia feminina, com sua vitalidade cálida, não é difícil de ser
documentada. É evidente nas tradições míticas de nossa cultura, na pobreza lingüística e na
falta de sentimento pelos relacionamentos humanos, e finalmente na nossa fome de sentido.
O sentido é o reino do feminino. Sem uma feminilidade segura em nosso mundo
 psicológico interior, não é possível nenhum contentamento ou sentido. Nós nos alienamos
deste fato do nosso ser. Nós nos carregamos com centenas de diferentes exigências ou
expectativas, que disfarçam nossa necessidade simples de ser e de ter um sentido. Mesmo
assim, experimentamos momentos de paz, que nos lembram da qualidade essencial do
sentido. A refeição mais comum merece ser lembrada por uma vida inteira se for
 portadora de sentido e de ligação humana.

94

13
A Feminilidade Reconquistada
Afeminilidade é uma parte tão básica e fundamental da personalidade humana que
não pode ser esquecida por muito tempo. Pode ser relegada por um tempo, para que a
masculinidade possa consolidar os valores patriarcais da lei, da ordem, da forma e da
ciência.
recebamÉdireitos
improvável que esses
exclusivos valores
no palco dapossam ser como
evolução, estabelecidos e enraizados
foi o caso nos últimosa três
não ser
milque
anos. Mas o feminino retornará e tomará seu lugar de direito tão logo a evolução masculina
esteja assegurada. Alguns exemplos brilhantes deste retorno podem ser vistos em nossa
época. Provavelmente a humanidade nunca tenha estado numa posição tão privilegiada
como agora; há a disponibilidade de

95

uma idade de ouro de poder mecânico e a possibilidade de uma nova era no sentido dos
valores femininos. Estabelecer uma base para o lazer, que o mundo moderno oferece a um
grande número deconsciente
uma mentalidade pessoas, foié oumapróximo
realização nobre.
passo. Acrescentar
Na qualidade deos insights
pessoas femininos a
verdadeiramente
modernas, estamos na crista da onda onde o melhor dos dois mundos pode ser conseguido
se formos suficientemente sábios para escapar do preconceito moderno de unilateralidade.
Fracassar nesta sabedoria é convidar o pior dos dois mundos, o que nos levaria de volta à
Idade das Trevas.
A Igreja Católica Romana está tentando do seu jeito reintegrar a dimensão feminina
à sua teologia e à vida católica. Em 1950 um marco significativo foi alcançado com a

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doutrina da Assunção corpórea da Virgem Maria, uma afirmação audaciosa que ligou a
Virgem Maria em seu corpo físico à Trindade exclusivamente masculina. Jung, jubiloso
com este avanço evolucionário, comentou que este fato marcara o mais grandioso momento
da história da Igreja desde a Reforma. Para um corpo tão tradicionalmente conservador como
a Igreja Católica, honrar as novas dimensões femininas é sem dúvida um grande momento

na história
mas da civilização.
a doutrina O Ano
está aí, abrindo seuMariano
caminhoveio e se foi, exclusivamente
na teologia deixando pouco masculina
efeito aparente;
da
Trindade.
Uma lição profunda sobre o meio pelo qual esta energia feminina pode voltar à
vida moderna é ilustrada por uma das lendas do Rei Arthur. Novamente retornamos à
dimensão mítica da vida para

96

conhecermos nossa dinâmica psicológica interior. Em geral, as histórias arthurianas relatam


a nova idéia da cavalaria e nobreza, mas recontam apenas uma libertação parcial da
feminilidade de sua prisão. Uma história, no entanto, está bem adiantada para seu tempo
(estaríamos tão atrasados em nossa compreensão?), aludindo à transformação das trevas em
luz. É a história de Arthur e a pergunta intrigante: ”Que realmente quer a mulher?”
Arthur quando jovem foi apanhado caçando ilicitamente nas florestas do reino
vizinho, sendo aprisionado pelo rei. Ele podia ter sido morto imediatamente, pois este era o
castigo por transgredir as leis de propriedade e posse. Mas o rei vizinho, comovido pela
 juventude e simpatia do rapaz, ofereceu-lhe a liberdade com a condição de ele encontrar a
resposta para uma pergunta muito difícil no prazo de um ano. A pergunta: Que realmente
quer a mulher? Isto atordoaria o mais sábio dos homens e parecia insuperável para o
 jovem. Era melhor, porém, que ser enforcado, e assim Arthur voltou para casa e se pôs a
 perguntar a todos que encontrava no caminho. Prostituta e freira, princesa e rainha, sábio e
 bobo da corte, todos foram inquiridos, mas ninguém conseguiu dar uma resposta
convincente. Cada um deles avisou, no entanto, que havia uma pessoa que saberia a resposta,
a velha bruxa. O custo seria muito alto, pois era proverbial no reino que a velha bruxa
cobrava preços exorbitantes por seus serviços.
Chegou o último dia do ano e Arthur finalmente viu-se obrigado a consultar a velha.
Ela concordou em fornecer a resposta satisfatória, mas o preço deveria ser discutido
 primeiro. E o seu preço era

97

casar-se com Gawain, o cavaleiro mais nobre da Távola Redonda e o amigo mais íntimo de
Arthur. O jovem fitou a velha bruxa horrorizado: ela era horrorosa, tinha um dente só,
cheirava tão mal que enojaria até um bode, emitia sons obscenos e era corcunda. Enfim, a
criatura mais detestável que já vira. Arthur tremeu diante da perspectiva de pedir a seu
grande amigo que assumisse este terrível fardo por ele. Mas Gawain, ao saber do trato,
assegurou a Arthur que isto não era pedir demais para salvar a vida de seu companheiro e
ainda preservar a Távola Redonda.
O casamento foi anunciado e a velha bruxa revelou sua sabedoria infernal: ”Sabe o
que realmente quer a mulher? Ela quer ser senhora de sua própria vida! Todos reconheceram
na hora a grande sabedoria feminina e o Rei Arthur estava salvo. Ao ouvir a resposta, o

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soberano vizinho sem hesitar concedeu-lhe a liberdade.


Mas e o casamento?! A corte toda presente, e ninguém estava mais dividido entre o
alívio e a tristeza que Arthur. Gawain portou-se com cortesia, delicadeza e respeito. A velha
 bruxa exibia o seu pior comportamento, devorava a comida do seu prato com as mãos,
emitia horrendos grunhidos e cheiros pavorosos. Até então a corte de Arthur jamais se havia

sujeitado a tamanhauma
Puxaremos tensão. A cortesia
cortina prevaleceu
de prudência sobreeao casamento se realizou.
noite de núpcias, com exceção de um
momento espantoso. Quando Gawain, preparado para o leito nupcial, esperava sua noiva,
ela apareceu na forma da moça mais linda que um homem pudesse desejar!

98

Gawain estupefato perguntou o que tinha acontecido. A moça respondeu que como Gawain a
tinha tratado com gentileza, ela lhe mostraria sua aparência horrenda durante a metade do
tempo e sua aparência graciosa na outra metade: qual delas ele escolhia para o dia e qual
 para a noite? Que pergunta mais cruel a ser colocada para um homem! Gawain fez seus
cálculos rapidamente. Será que ele queria uma linda jovem para mostrar durante o dia,
quando todos os seus amigos a veriam, e uma bruxa horrenda à noite na privacidade do seu
quarto, ou a queria como bruxa durante o dia e linda nos momentos íntimos? O nobre
Gawain respondeu que preferia que sua noiva escolhesse por si mesma. Com isto, ela
anunciou que seria a bela donzela para ele tanto durante o dia como de noite, já que ele
demonstrara respeito por ela e concedera-lhe soberania sobre sua própria vida.
Se a feminilidade for levada a mostrar sua face horrenda, o melhor que um homem
 pode fazer é manter o respeito e a cortesia. Esta é a magia da transformação, a mais rápida
maneira de restituir à feminilidade sombria a sua verdadeira beleza. Esta história sobre a
dinâmica da energia feminina interior é da mesma importância para o homem que tenta
relacionar-se com o seu lado feminino interior como para a mulher tentando sobreviver com
a sua identidade básica. E é um princípio que não se deve perder nos relacionamentos
externos entre homem e mulher.
Recentemente encontrei um exemplo de feminilidade reconquistada num lugar
inesperado. Na obra de James Joyce, Ulysses, há um momento

99

culminante de sentimento e redenção. O romance é tão difícil e duro de agüentar que partes
dele causariam indigestão até a um bode. A história se prolonga infinitamente pela ruína de
Dublin na virada do século: a hipocrisia da Igreja, corrupção dos funcionários municipais,
um sistema escolar que causaria pesadelos nas gerações futuras, fracasso da amizade e da
confiança. O princípio de vida feminino foi tão destruído que até as mulheres da história
 perderam o caminho. Nosso herói está tão exaurido pelo desespero que não vê saída. Joyce,
certamente um dos gênios do mundo moderno, encontra a redenção de todo este caos no
lugar mais inusitado. Ele coloca, num monólogo pronunciado por uma mulher pouco
atraente, nas páginas finais do romance, uma das mais grandiosas afirmações de vida já
escritas. Esta afirmação torna-se mais poderosa ainda por estar colocada num ambiente tão
lúgubre. Tive de tentar várias vezes até que consegui sobreviver à leitura do romance até o
final. O prêmio pela persistência foi uma gloriosa afirmação de vida que somente se poderia
localizar numa alma feminina. Vemos nossa época falida ser redimida pela genialidade de

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um profeta moderno.
Molly Bloom, mulher de um personagem nada atraente, que pouco faz além de ir na
onda do dia, está deitada na cama, vagando em devaneios. Ela passa em revista as pequenas
coisas de sua vida, coisas de pouca importância. Eis que acontece um milagre no palco de
sua simples natureza feminina. Ela pontua sua interminável sentença de devaneio com a

 palavra ”sim” cada vez com maior freqüência, até que no final essa interminável sentença
se transforma

100

num grandioso grito de esperança e afirmação e fé. A poderosa repetição do ”sim” redime
tudo que o cerca e transforma em obra de arte coisas espalhafatosas que representam o
desespero para um olho menos perspicaz. Molly Bloom redime a vida, algo que somente o
feminino pode conseguir em meio à ruína do mundo masculino.

...ah sim eu conheço-os bem quem foi a primeira pessoa no universo antes que
houvesse alguém que criou tudo quem ah que eles não sabem nem eu sei então aí está
você eles bem que poderiam tentar impedir que o sol nascesse amanhã o sol brilha
 para você ele disse no dia em que estávamos deitados entre os rododendros no
monte Howth vestido com um terno de lã cinza e seu chapéu de palha no dia em que
eu o fiz pedir-me em casamento sim primeiro eu lhe dei um pedaço de bolo de
cominho tirando da minha boca e era ano bissexto como agora sim há 16 anos meu
Deus depois daquele longo beijo quase perdi meu fôlego sim ele disse que eu era
uma flor da montanha sim então todas somos flores um corpo de mulher sim aquela
era a única verdade que ele disse na vida e o sol brilha para você hoje sim é por isso
que eu gostei dele porque vi que ele entendeu ou sentiu o que é uma mulher e eu
sabia que podia sempre agradá-lo e dei-lhe todo o prazer que podia levando-o até
que ele me pediu para dizer sim e primeiro não respondi apenas olhei para o mar e
o céu pensava sobre tantas coisas que ele desconhecia de Mulvey e do Sr. Stanhope e
Hester

101

e papai e o velho capitão Groves e os marinheiros jogando todos os pássaros voando e


eu fiquei agachada e lavando louça eles o chamaram no cais e a sentinela na frente
da casa do governador com a coisa em torno de seu capacete branco pobre diabo
meio assado e as meninas espanholas dando risadas envoltas nos seus xales e seus
 pentes altos e os leilões pela manhã os gregos e os judeus e os árabes e o diabo sabe
quem mais de todos os cantos da Europa e rua Duke e o mercado de galinhas todas
chocando perto da casa de Larby Sharon e os pobres burros caindo de sono e os
rapazes distraídos metidos em capas adormecidos na sombra sobre os degraus e as
rodas grandes das carretas dos bois e o velho castelo de milhares de anos de idade
sim e aqueles belos mouros todos de branco e turbantes como rei pedindo-lhe para
sentar na sua pequenina loja e Ronda com as velhas janelas das pousadas olhos
olhando furtivamente uma gelosia escondidos para que seu amante beijasse o ferro e
as casas de vinho meio abertas de noite e as castanhetas na noite em que perdemos o
 barco em Algeciras o guarda andando sereno com sua lâmpada e Oh aquela terrível

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torrente profunda lá embaixo Oh e o mar o mar vermelho carmesim às vezes como o


fogo e os gloriosos pores-do-sol e as figueiras nos jardins de Alameda sim e todas
as pequenas ruas esquisitas e casas cor-de-rosa e azuis e amarelas e os jardins de
rosas e os jasmins e gerânios e cactos e Gibraltar como uma menina onde fui uma
Flor da montanha sim quando coloquei a rosa nos

102

meus cabelos como costumavam as meninas andaluzas ou devo usar uma vermelha
sim e como ele me beijou sob o muro mourisco e pensei tanto faz ele como outro e
então pedi-lhe com os olhos que me pedisse novamente sim e então ele me
 perguntou se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro joguei
meus braços em torno dele sim e puxei-o para mim de maneira que ele podia sentir
meu peito todo perfume sim e seu coração batia como louco e sim eu disse eu quero
sim.

 Não se muda a corrente de quase quatro mil anos de patriarcado num momento só de
história. Os problemas estão cada vez mais bem definidos e afetam cada parte de nossa
sociedade. Esperemos que isto continue, o que acontecerá se todos unirmos os aventureiros
da paisagem interior na busca heróica.

103

14
A Tarefa Heróica
A tarefa
nossa época  heróica éde
gostaríamos diferente
embaçarpara os homens Este
as diferenças. e para as mulheres,infeliz
embaçamento apesar indica
de queumem
entendimento equivocado fundamental dos níveis da ação humana. A dificuldade reside na
diferenciação dos níveis. A confusão dos níveis é tão comum nas atitudes psicológicas
que poucas pessoas consideram o assunto. Algo é autêntico somente no nível onde é
apropriado. Por exemplo: a mitologia é verdade (verdade sublime!) num nível interior, mas
não faz sentido num nível histórico. A virilidade é um atributo físico externo de metade da
humanidade; masculinidade é um atributo de todo o ser humano. Conclui-se que se deve ser
extremamente cuidadoso

105

em como referir masculinidade ou feminilidade à personalidade. Pode-se formular uma lei


muito poderosa com base nesta informação: se uma mulher permanecer firmemente
 plantada em sua feminilidade, pode fazer um uso excelente das características masculinas.
Por outro lado, se as características masculinas dominarem sua personalidade básica, o
melhor que ela poderá fazer é ser uma imitação de homem. Um homem pode fazer um
excelente uso da feminilidade enriquecendo sua personalidade básica. Por outro lado, se for
dominado por estas qualidades femininas, será subjugado pelos seus humores e

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comportamento irracional. Assim como o fogo, se dominadas, as virtudes do sexo oposto que
temos dentro de nós transformam-se num maravilhoso servo; não dominadas, são um terrível
senhor.
O manter-se alerta às diferenças entre homens e mulheres, masculinidade e
feminilidade e aos níveis psicológicos foi-me graficamente ilustrado durante uma visita à

Catedral de Canterbury,
maravilhado na Inglaterra.
com a grandiosidade Passeiconstrução
daquela o primeiro gótica,
dia doscom
doisseu
queretrato
ia ali permanecer
majestoso de
Cristo na cruz. Estive empenhado em meu próprio processo analítico em Londres durante
muitas semanas, e a construção gótica como símbolo de Cristo na cruz fora uma
 peça-chave de um longo sonho. Fiquei sabendo que a idade gótica honrou a Crucifixão de
Cristo na sua arquitetura com o coro do edifício sendo sua cabeça, os dois transeptos como
seus braços, a nave como seu corpo e as duas torres a oeste como seus pés. Não há entrada
 para o edifício gótico pelo coro, significando que não há acesso para a

106

consciência de Cristo pelo caminho da cabeça. Existem entradas em cada transepto,


significando que é possível contatar Cristo através de suas mãos. A entrada oficial, porém,
é pelos pés, as duas torres a oeste. A entrada oficial para uma construção gótica é por uma
das torres oeste ou pelo portal central no meio delas. A cada dez anos o papa bate na porta
central da Catedral de São Pedro em Roma pedindo permissão para entrar. Até ele deve vir
humildemente aos pés de Cristo pedindo permissão para entrar. É através da parte mais
terrena de nossa natureza que Cristo está disponível. A mentalidade medieval acreditava
que a alma podia entrar e sair do corpo somente pela sola dos pés. É por esta razão que alma
(sou/, em inglês) e sola (sole, em inglês) levam o mesmo significado.
Estive meditando o dia inteiro sobre este fato admirável e humilhante e procurando
ver o que acontecia aos meus sentimentos e intuição quando entrava ou saía da catedral
 por um transepto ou pela porta oeste. Os transeptos sempre inspiravam um senso de
assimetria ou unilateralidade. A porta oeste inspirava um senso de simetria e equilíbrio. As
implicações disto em relação aos negócios práticos de minha vida fluíam por mim. Em
seguida veio uma confirmação inesperada. Este grande edifício era sem dúvida a figura de
Cristo estendida na cruz! Seguiu se um insight muito maior: cada pessoa que eu encontrava
na High Street de Canterbury era uma figura viva de Cristo, em carne e osso! Saí da catedral
e passei o resto de minha estada naquela cidade andando pela High Street, observando as
 pessoas e presenciando a Crucifixão no tempo e espaço. Ainda

107

amava a grandiosa construção gótica, mas ela tinha sido suplantada pelo drama vivo
espaço-temporal na High Street.
Foi uma profunda revelação para mim, mas o assunto ainda não estava terminado.
Semanas mais tarde, ao contar a uma amiga o que havia acontecido comigo em Canterbury,
ela exclamou espantada que exatamente o mesmo lhe acontecera naquele lugar, só que ao
contrário! Ela se sentiu em casa com o drama humano na High Street. Num momento de
 perspicácia, porém, ela descobriu que a catedral gótica incorporava tudo o que ela precisava
experimentar e que ela não necessitava mais da rua com sua vida fervilhante.
É uma história profunda de um homem descobrindo a verdade feminina de carne e

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osso retratada no tempo e no espaço, e uma mulher encontrando sua verdade masculina na
abstração de um símbolo. Deus permita que os homens e as mulheres, ao cruzarem seus
caminhos no meio da jornada sagrada, encontrem-se e respeitem um ao outro.
É certo que novas atitudes num assunto tão básico como este serão desajeitadas no
início. Por exemplo, é fácil cair na armadilha e pensar que imitar o homem é o mesmo que

adquirir masculinidade.
adolescência, No primeiro
vi uma produção rompante
italiana onde umdequarteto
alegria,de
aovozes
descobrir a ópera
cantava na minha
uma ária
famosa. Para harmonizar os personagens e as vozes, a voz contralto devia representar um
homem. A mulher que cantava no papel de contralto e representava um homem exagerou
tanto a valentia e as qualidades dominantes da masculinidade estereotipada

108

que fiquei horrorizado. Era esta a imagem do homem aos olhos da mulher? Naquele
momento iniciava-se a minha indagação quanto à diferença entre o macho e o masculino.
Poucas coisas neste mundo são tão ridículas quanto um homem ou uma mulher inseguros
adotando os estereótipos dos respectivos papéis para compensar a deficiência. Igualmente
ridícula é a mulher adotando estereótipos masculinos para romper a ”barreira patriarcal`; ou
um homem adotando os estereótipos da feminilidade no seu esforço de tornar-se mais
sensível. Nenhum dos dois soa autêntico e ambos podem criar tiranias tanto culturais
quanto no campo dos relacionamentos.
 No seu livro The Wounded Woman, Linda Schierse Leonard8 destaca um fato
muito importante sobre a mitologia ocidental, isto é, não há heroínas. A ausência de heroínas
na literatura mítica do Ocidente parece estar vinculada a outro importante fato, igualmente
espantoso. Todas as grandes histórias de amor da Índia chegam a uma conclusão
”bem-sucedida” . Todas as grandes histórias de amor do Ocidente, por outro lado, são
trágicas. Isto significa que no Ocidente a morte é o único meio de se chegar a uma união
final. O Ocidente concebe a unidade como algo que pode ocorrer somente além do reino
da realidade física. A Índia, no entanto, graças à sua intensa disciplina espiritual, não
consegue conceber um fim trágico para o amor.
Por que seria assim? Devemos dirigir-nos para o elemento do heroísmo feminino
 para encontrar a resposta. O heroísmo feminino é o que é exigido de

8. Linda Schierse Leonard. The Wounded Woman (Boston: Shambhala Publications, 1982).

109

nós agora, de todos nós, homens e mulheres. Nas forças divisoras da cultura mundial
masculinizada, devemos ater-nos às coisas básicas simples que nos mantêm unos e
inteiros. Esta é A Grande Busca dos dias de hoje. Não temos condições mais de sermos o
herói conquistador (masculino), que defende seu território, seus princípios, sua mulher,
seus direitos. Devemos transformar-nos no herói compreensivo que encontra o lugar certo
 para cada relacionamento na vida, que alimenta e protege e conforta para que o crescimento
 possa acontecer, não num campo de ilusões, mas num campo de amor e integridade.
Este heroísmo exige toda a habilidade e inteligência, toda a força e coragem do
heroísmo que já conhecemos. Talvez mais até. Porque é menos pomposo, menos
gratificante para o ego, não satisfaz nossos instintos básicos imediatamente. Sem ele, porém,

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o prognóstico para o futuro da humanidade neste planeta verde e perigoso é bem tenebroso.
Pensamos que o amor é natural, que não requer nenhuma habilidade, nenhuma
criatividade para manter. Achamos que há algo de artificial em sermos bem educados e
gentis e esforçarino-nos a aprender a amar. Poucas atitudes na história da raça tiveram
repercussão mais desastrosa que esta.

Todosonde
aprendizado os grandes
adquiremheróis
suasguerreiros não têm seu
condutas marciais? tempoesperar
Podemos de treinamentó,
menos do seu
amor?
 Nossa nova busca, nosso novo heroísmo não exige ao menos o mesmo, se não mais? Que
um dos mestres deste heroísmo, Rainer Maria Rilke, fale por nós:

110

 jovens, principiantes em tudo, ainda não sabem amar, eles devem aprendê-lo. Com todo o
seu ser, com todas as suas forças, concentrados junto ao coração solitário, tímido, aspirante,
eles precisam aprender a amar. O tempo de aprendizado é sempre longo, um tempo de
isolamento, e por isso o amor que dura a vida toda é estar só, é solidão intensa e profunda
 para aquele que ama. De início, o amor não é algo que significa fundir-se, ceder e unir-se ao
outro (pois o que seria a união de algo não esclarecido e individual), amadurecer, tornar-se
algo de si mesmo, tornar-se mundo, tornar-se mundo para si mesmo em benefício do outro;
é um chamado grandioso e exigente, algo que o elege para realizar coisas incomensuráveis.
É somente neste sentido, o da tarefa de trabalhar em si mesmos (”obedecer e martelar dia e
noite”), que os jovens poderiam usar o amor que lhes é dado.
Talvez todos nós ainda sejamos principiantes no amor. Como Rilke diz mais adiante
neste belo trecho: ”Fundir -se e entregar-se e todo tipo de comunhão... seja o ponto
culminante, seja talvez aquilo para o qual o homem, com seu tipo de vida, ainda não esteja
suficientemente preparado” .9
Portanto, talvez não devêssemos nos entristecer demais com nossos fracassos numa
tarefa tão exigente. É uma tarefa que devemos assumir com seriedade, ou seja, recolocar a
verdadeira feminilidade na

9. Ranier Maria Rilke, Letter to a Young Poet (New York: W. W. Norton, 1934), p.54.

111

 posição de dignidade, poder e respeito, aprender a amar, se quisermos que nosso planeta e
nossa civilização sobrevivam à presente época.

UM PENSAMENTO FINAL

Foi muito mais fácil falar de feminilidade perdida que de feminilidade reconquistada.
O que perdemos nos é tão doloroso que sempre está presente; o que ansiamos reconquistar é
vago e existe apenas na forma de dor interior, tristeza e desassossego; porém, persegue-nos
constantemente. Estamos apenas iniciando a tarefa de recuperar a preciosa qualidade
feminina da humanidade, tão infinitamente valiosa para nós. Nosso descontentamento e
nosso sofrimento sutil brotam da perda de valores femininos, e nos defrontamos com
obstáculos formidáveis para recuperar estes valores. No presente momento fazemos
frágeis tentativas para conseguir igualdade de sexos no sentido de obter remuneração igual

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 para o mesmo trabalho, obter respeito e dignidade —  nome, título e propriedade —  para


coisas especificamente femininas. Resta porém uma tarefa muito mais sutil: conquistar
tempo e dignidade iguais para os valores sentimentais que são as dimensões sutis da
feminilidade. O lazer, a espontaneidade e o trabalho artístico requerem dignidade e respeito
iguais aos das atividades relacionadas a dinheiro e segurança, consagradas pelo tempo.

Estas tarefas estão por fazer e aguardam a nossa atenção.


112

Apêndice
Segue-se uma transcrição fiel de um breve trecho da história de Nala e Damayanti
 para mostrar a beleza primitiva do original. Embora tenha perdido muito ao ser traduzido do
sânscrito para o inglês, um pouco dessa beleza original ainda transparece. Cito a referência
do texto traduzido para o inglês, caso o leitor deseje conferir a sutileza poética da história.

E Damana, satisfeito, concedeu ao rei e sua consorte um presente na forma de uma
 jóia de filha, e três filhos dotados de almas sublimes e grande fama. Receberam
respectivamente os

10 The Mahabharata, traduzido por Kishavi Mohan Ganguli (New Delhi: Munshivan
Monoharial Publishers, 54 Rani Jhansi Rd. 110055).

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nomes Damayanti, Dama e Danta, e ilustre Damana. E os três filhos eram dotados de todos os
talentos e retidão e coragem ardente. E a esbelta Damayanti, na beleza e inteligência, no bom
nome e graça e sorte, era celebrada pelo mundo inteiro. E enquanto crescia, centenas de
atendentes, e servas, vestidas ricamente, serviam-na como à própria Sachi. E a filha de
Bhima de aparência imaculada, com vestes muito ornamentadas, brilhava em meio às suas
atendentes, como o luminoso relâmpago das nuvens. E a donzela de olhos grandes era dotada
de rara beleza como a da própria Sree. E nem dentre os celestiais nem dentre os yakshas ou
dentre os homens jamais houvera alguém com tal beleza. E a bela moça preenchia de
alegria todos os corações, até dos deuses. E aquele tigre dentre os homens, Nala, também
não tinha par nos três mundos; pois em beleza ele se igualava ao próprio Kandarpa na sua
forma encarnada. E movidos pela admiração, os mensageiros celebravam repetidas vezes as
qualidades de Nala diante de Damayanti e as de Damayanti diante do soberano dos
nishadhas. E ouvindo falar dais virtudes um do outro tantas vezes, eles conceberam uma
ligação entre si que não fora criada pela visão. E esta ligação, ó filho de Kunti, começou a
crescer em força. E então Nala não conseguia mais controlar o amor que estava em seu
 peito. E ele começou a passar boa parte de seu tempo solitário nos jardins de seus aposentos
no seu palácio. E ali havia vários cisnes dotados de asas douradas a vagar por aquelas
florestas. E, dentre

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eles, capturou um com suas próprias mãos. E imediatamente aquele que voa pelos céus
disse a Nala: ”Não mereço ser morto por ti, ó Rei. Farei algo que seja do teu agrado. Ó rei
dos nishadhas, falarei de ti para Damayanti de tal maneira que ela jamais desejará outra
 pessoa”. Ao ouvir isto o rei libertou aquele cisne, que se ergueu sobre suas asas douradas.

115

Em FEMINILIDADE PERDIDA E RECONQUISTADA ,_Robert

A. Johnson usa o mito de Edipo e o mito hindu de Nala como exemplos da energia
feminina. Ele mostra também a dinâmica dessa energia e como ela age dentro da
 personalidade do homem e da mulher.

De acordo com Johnson, recuperar o poder feminino de sentir e conseguir avaliar todas as
coisas da vida é essencial para a evolução da humanidade. Para que o ser humano consiga
atingir uma maior consciência, que vai levá-lo à Paz que tanto almeja.

Como reintegrar os valores femininos em nossa atual sociedade, é o objeto dessa obra.

 Na sua meta para esclarecer o ser humano na direção de sua individuação, Johnson escreveu
mais um livro, TRANSFORMATION, ainda sem título em Português, que leva o homem a
entender os três níveis da consciência masculina.

Para isso, o autor usa os arquétipos literários de Don Quixote, Fausto e Hamlet. Cada uma
dessas figuras representaria o simples, ou o bidimensional; o complexo, ou o
tridimensional e o redentor, ou o quadridimensional.

Johnson também reescreveu HE e SHE, enriquecendo seus estudos da psicologia


masculina e feminina, que serão brevemente republicados por esta Editora.

Robert A. Johnson, o autor de HE, SHE, WE e

A CHAVE DO REINO INTERIOR  —  INNER WORK, agora aborda o que sucede


quando os valores do feminino são relegados a segundo plano. Uma das
conseqüências é a posição da mulher na sociedade. Mas não só, pois também tem
seus reflexos no mais íntimo da personalidade tanto do homem quanto da mulher.
Temos de levar em conta também que o homem tem dentro de si a anima, ou seja, o
aspecto feminino de sua personalidade, ou seja, a parte que o faz sentir e lhe dá a
capacidade para reconhecer os valores da vida. Na verdade, se o feminino é
responsável por tantas coisas na existência do ser humano, ele não pode ser perdido.
E se foi perdido, tem de ser resgatado, para que a qualidade da vida no planeta seja
melhor.

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BIBLIOTECA BRAILLE JOSÉ ÁLVARES DE AZEVEDO


GOIÂNIA, 23 DE DEZEMBRO 2014
DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR: FÁBIO PEREIRA

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