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da acumulação senhorial
à acumulação mercantil (1650-1750)
Antonio Carlos Jucá de Sampaio
uma pequena elite, profundamente envolta na atividade mercantil. Essa elite si
tua-se no cume de um sistema creditício que, em sua base, encontra-se extrema
mente capilarizado, entranhando-se em todos os segmentos sociais.
Deve-se ter em conta, no entanto, que essa não é uma característica ex
clusiva da nossa sociedade colonial, encontrando-se presente em todas as forma-
,
ções sociais do Antigo Regime. E, por exemplo, a longa e complexa rede de endi-
vidamento existente na Europa que permite a existência, no século XVI, da cha
mada feira de Plaisance, na qual se dava o encontro das dívidas passivas e ativas
da verdadeira elite mercantil européia de então, formada fundamentalmente
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o mercado carioca de crédito
Seja como for, o fato de depender do mercado para adquirir parte consi
derável de sua mão-de-obra contribuía para o aumento do endividamento dos
setores rurais, inclusive (ou principalmente) de sua elite. Além disso, significava
a transferência antecipada de parte do sobretrabalho a ser produzido pelo escra
vo para o comerciante responsável por sua venda, reduzindo a capacidade de
acumulação do senhor e contribuindo para seu endividamento ainda maior face
ao capital mercantil (Fragoso, 1997: 161-2).
No período aqui estudado, a dependência estrutural de um financia
mento constante influenciou decididamente a evolução do agrofluminense, es
pecialmente no que se refere ao setor açucareiro, onde a disponibilidade de cré
dito e o investimento direto foram fundamentais para a definição de suas diver-
sas conjunturas.
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Fonte: Escriruras públicas dos Cartórios do Primeiro e Segundo Oficios de Notas do Rio de Janeiro
(I65()'1750). Obs: I) Não há escrituras públicas para a primeira década do século XVUJ; 2) valores em
mil-réis; 3) a soma das porcentagens pode ser diferente de cem por causa dos arredondamentos.
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da alforria. E o caso, por exemplo, de Elena, parda, que em 1735 tomou empresta-
do o valor de 200$000 a lnácia Rodrigues de Castro para comprar sua alforria
(CSON, I. 47, f. 64v). Logo, evidencia-se a importância do estudo do mercado de
crédito para nossa análise das estruturas socioeconômicas do período.
Com essas tabelas buscamos responder a duas perguntas básicas. A pri
meira é sobre o caminho percorrido pelo crédito no Rio de Janeiro colonial, ou
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Período Valor % N %
Periodo Valor % N %
seja, por um lado, quem empresta dinheiro e, por outro, quem recebe o dinheiro
emprestado. Em outras palavras, quais são as fontes da liquidez nessa sociedade e
o destino de tais recursos.
Para que conseguíssemos atingir plenamente tal objetivo, seria necessá
rio que tanto credores quanto devedores fossem divididos conforme suas ocupa
ções principais e/ou status social. O problema, porém, era como fazer tal divisão,
tendo-se em vista que a maioria, tanto de uns quanto de outros, não aparecia nas
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mais favorável gerou uma maior diversificação das fontes de recursos. E impor-
tante considerar, nesse sentido, que a partir da década de 1680 temos a fundação
da Colônia de Sacramento e, com ela, um acesso mais direto do Rio de Janeiro à
prata espanhola (Sampaio, 2000: capo 3), com um provável aumento da disponi
bilidade de moeda e, sobretudo, um acentuado desenvolvimento das atividades
comerciais que acabava gerando recursos que podiam ser disponibilizados atra
vés de empréstimos.
O papel desempenhado pelo Juízo de órfãos no Rio de Janeiro seiscentis
ta demonstra, como bem apontou]oão Fragoso (1997: 157-8), a importância cru
cial do controle dos cargos da República nessa sociedade, ou seja, dos ofícios da
administração local. Falando especificamente desse ofício, Fragoso demonstra
que ele era controlado pela elite senhorial local, o que significava o seu acesso pri-
o
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trole exercido pela elite agrária sobre a então principal instituição creditícia
fluminense.
Contudo, não devemos considerar os dados extraídos das escrituras pú-
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blicas como retrato fiel da realidade. E importante lembrarmos que em boa parte
os empréstimos não eram formalizados por meio de escrituras, até porque faziam
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parte das transações cotidianas. E o caso das contas-correntes, que já vimos aci-
,
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monta pelo menos ao início do século XVII (Rheingantz, 1965: 276). Sua partici
pação no comércio estava ligada, portanto, à tentativa de participar dos altos lu
cros proporcionados pelo abastecimento das Gerais, fenômeno de grande ampli
tude entre a população fluminense da primeira metade do Setecentos (Sampaio,
2000: capo 5). Para isso, no entanto, tiveram que entrar na rede de endividamento
daquele que era provavelmente o maior negociante carioca na virada do século
XVII para o XVllI, como veremos mais abaixo.
Outro bom exemplo da importância dessas contas está no inventário de
Francisco de Seixas da Fonseca (AMSB, doc. 284), onde encontramos um grande
número de dívidas, quase todas de pequeno valor, que se encontravam escritura
das em seu "livro de razão e contas".
Por sua vez, os empréstimos concedidos por insti tuições como oJuízo de
órfãos deviam, pelo menos a princípio, ser registrados em escrituras públicas.
Portanto, a participação dessa instituição no mercado de crédito, tal como este se
reflete nas escrituras, deve ser vista como um percentual máximo, certamente
superior ao que se verificava na prática. Isso não modifica nossa conclusão mais
geral sobre seu papel na economia fluminense do período, e sobretudo não con
tradiz sua participação como indicador de uma baixa taxa de acumulação mer
cantil. Tal fato fica mais claro quando vemos que a queda de sua participação no
conjunto dos empréstimos coincide, não por acaso, com o desenvolvimento do
capital mercantil carioca, ao longo da primeira metade do século XVIII.
Esse desenvolvimento mercantil setecentista evidencia-se ainda mais
quando analisamos a participação de senhores de engenho e homens de negócio
no mercado de crédito, tanto como credores quanto no papel de devedores. Para
essa análise, contudo, é necessário que tomemos cuidado com as tabelas 1 e 2. Os
dados por elas revelados, sobretudo em relação à segunda metade do século
XVII, devem ser analisados com vagar.
Inicialmente, vejamos a ausência de homens de negócio nas três primei
ras décadas de nossa amostra. Na verdade, o próprio termo "homem de negócio"
aparece em nossa documentação apenas na última década do Seiscentos (Sam
paio, 2000: cap. l ). Assim, aqueles para os quais utilizamos essa denominação nas
duas últimas décadas desse século somente são assim designados posterior-
mente. •
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sos advindos daquela. Não há ainda aquele moto-contínuo em que o capital ini
ciai investido gera continuamente um volume maior de capital. Por isso mesmo
não havia, até a última década do Seiscentos, uma elite mercantil que se distin
guisse claramente da elite agrária.
No século XVIII, pelo contrário, se evidencia o estabelecimento de uma
clara diferenciação entre homens de negócio e senhores de engenho. Estes últi
mos perdem muito de sua importância no mercado de crédito, tanto como credo
res quanto no papel de devedores. No primeiro caso, sua participação torna-se
extremamente reduzida, chegando quase à ausência absoluta na década de 1720.
De fato, os senhores de engenho deixam, na prática, de ser uma alternativa em
termos de fonte de crédito, e o seu aparecimento como credores dá-se somente
em ocasiões mui to específicas, ligadas a empréstimos a parentes, por exemplo,
ou à regularização de antigas dívidas.
Para melhor demonstrar o que estamos afirmando, tomemos como
exemplo a década de 171O. Nesse período, as participações dos senhores de enge
nho como credores referem-se a três empréstimos. Dois deles foram concedidos,
na mesma data (01/07/1719), pelo capitão Francisco Araújo de Abreu: um para
seu irmão, o alferes Manuel Alfradique de Souza, e o outro ao capitão Inácio Ran
gel de Abreu, avô de sua esposa (CSON, I. 28, f. 17 e 17v, respectivamente). O ter
ceiro empréstimo é do capitão Rodrigo de Freitas Castro aJoaquim de Siqueira.
Trata-se de um reconhecimento de dívida por parte de Siqueira, por terras com
pradas ao capitão, as quais e que não tinha como pagar. Assume, então, o valor da
dívida (1:100$000) como empréstimo (CSON, I. 28, f. 154, 1719).
Essa enorme queda da participação dos senhores de engenho está ligada
em parte à própria decadência por que passa a produção açucareira fluminense
no início do século XVIII. Entendemos que sua principal causa foi a diferencia
ção que se estabeleceu no Setecentos entre homens de negócio e senhores de en
genho; ou seja, entre a elite mercantil e a elite agrária. Não é por coincidência que
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Repare-se que isso não ocorre nem com os senhores de engenho, que
sempre tomam muito mais dinheiro emprestado do que emprestam, ou ainda
com os "outros", como denominamos todos aqueles que não conseguimos iden
tificar como senhores de engenho ou negociantes. Com exceção da década de
1680 (quando, como vimos, os senhores de engenho controlam pesadamente o
acesso ao crédito), os "outros" sempre aparecem como devedores líqüidos. A
conclusão, portanto, é que são os homens de negócio, junto com as instituições
coloniais (como o Juízo de órfãos) que controlam a liqüidez da economia coloni
al. Mais ainda, há uma transformação fundamental entre a segunda metade do
século XVII e a primeira do seguinte, já que os credores institucionais perdem
espaço para a nova elite mercantil, que torna-se entao a mais importante fornece
dora de capital da capitania fluminense. Conseqüentemente, essa elite passa a
responder praticamente sozinha por essa mesma liqüidez. As conseqüências
desse fato são maiores do que a princípio podem parecer, inclusive definindo o
aparecimento de uma nova elite colonial.
Ao controlar o crédito, os homens de negócio definem as novas feições
das relações econômicas no interior da sociedade fluminense. E isso porque ele é
estratégico numa sociedade com baixa liqüidez, como era a colonial. Nessa situa
ção, aquilo que João Fragoso e Manolo Florentino (1993: 89-100) denominaram
de cadeia de adiantamento/endividamento possui um papel evidentemente cru
cial para o estabelecimento da hierarquia nas relações entre os diversos grupos
sociais. Na primeira metade do século XVIII, os negociantes sediados no Rio de
Janeiro controlavam essa cadeia no que se refere às vinculações da praça carioca
com outras regiões do império português (Sampaio, 2000: capo 5). Pelos resulta
dos apresentados acima, torna-se evidente que também no interior dessa praça
eram esses mesmos homens de negócio que se encontravam no vértice superior
da pirâmide e em condição de arbitrar que grupos, e em que condições, teriam
acesso ao crédito, o verdadeiro "sangue" do sistema colonial. Em outras palavras,
essa nova elite mercantil passa a controlar a própria reprodução da economia co
lonial, ditando seus ritmos e sua evolução a longo prazo.
Essa perda de controle do crédito por parte da antiga elite senhorial flu
minense, que no século XVII expressava-se na importância do Juízo de órfãos e,
secundariamente, dos próprios senhores de engenho como fontes de recursos,
ajuda-nos a entender um pouco melhor a decadência da produção açucareira no
Setecentos. Essa perda estava ligada, entre outros fatores, ao fim do acesso privi
legiado, quase imediato, ao crédito disponível. Privilégio tanto maior quanto
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esse crédito era muito mais escasso no século XVII do que no seguinte. E verdade
que a elite açucareira continua com o privilégio, constantemente renovado, de
não ser penhorada em suas "fábricas" e escravos. Isso, contudo, está longe de ser
suficiente. A necessidade constante de novos recursos, típica da atividade, colo-
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