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PERIFÉRICOS:
O DISTRITO DE ANGRA DO HEROÍSMO, 1860-1910
1 - Introdução
*
Instituto Universitário Europeu de Florença. Bolseiro de Doutoramento da FCT-MCES.
1
Para uma discussão em torno do conceito de meios burgueses e burguesia veja-se o clássico volume
dirigido por Jurgen Kocka e Allen Mitchell (eds.) (1993), Bourgeois Society in the Nineteenth Century
Europe, Oxford: Berg. Para Portugal ver Maria Antonieta Cruz (1999), Os Burgueses do Porto na
Segunda Metade do século XIX, Porto: Fundação Eng. António de Almeida.
2
Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas: Poder, Trajectórias, e Reprodução Social dos
Grupos Dominantes no Distrito de Angra do Heroísmo (1860-1910), Dissertação de Mestrado, Lisboa:
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
1
e todos aqueles que se localizavam nas fronteiras imprecisas entre a pequena
burguesia e as classes populares.
3
Ver Paulo Silveira e Sousa (2003), “Elites e espaços políticos locais na segunda metade do século
XIX: um estudo sobre os concelhos do distrito de Angra do Heroísmo”, Boletim do Instituto Histórico
da Ilha Terceira, no prelo.
4
Cristophe Charle (1978), “Les Milieux d’Affaires dans la structure de la classe dominante vers 1900”,
Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 20-21, p. 96.
2
2 - Grandes negociantes e comerciantes: o capital, a importação, a exportação e a
distribuição
5
Podemos pensar na linha de autores como Schumpeter que o empresário é apenas aquele que é capaz
de inovar e de conceber novas linhas estratégicas para os negócios: veja-se Joseph Schumpeter (1944),
Capitalism, Socialism and Democracy, Londres: Allen & Unwin. No entanto, o que muitas vezes
parece rotina é tão somente cautela e adaptação a conjunturas económicas bastante oscilantes. Nesse
sentido, preferimos a utilização da expressão investidores, em vez de empresários. Muitos podem
investir na indústria ou nos negócios e não ter a postura agressiva, profissional e de risco que
normalmente associamos ao empresário. Mas fica-nos a ideia de que em toda esta discussão se poderá
estar a cair na configuração dos empresários oitocentistas à luz de ideias e representações bem mais
contemporâneas, acabando por cair ou num cronocentrismo conceptual, ou na velha ideia de uma
burguesia incipiente e com pouca vontade de arriscar os seus capitais.
6
Para dados mais consistentes sobre estas actividades vejam-se dois estudos meus já anteriormente:
publicados Paulo Silveira e Sousa (2000), “As actividades industriais no distrito de Angra do
Heroísmo, 1852-1910: Um mundo de possibilidades escassas”, Arquipélago (série História), IV, 1, pp.
113-172, e (2002), “Gerir o dinheiro e a distinção: as caixas económicas de Angra do Heroísmo e os
seus corpos dirigentes (1845-1915)”, Arquipélago (série História), vol VI, nº 1, pp. 293-346.
3
Nas freguesias da Terceira, na vila da Praia da Vitória ou nas pequenas ilhas,
como São Jorge e a Graciosa, o comércio permaneceu um mundo diferente e ainda
mais particular. Acima da pequena troca, por vezes monetarizada, entre os
camponeses, estavam os comerciantes estabelecidos nos principais lugares das
freguesias, explorando uma taberna e uma pequena venda que distribuía localmente
alguns produtos adquiridos nas vilas ou na cidade de Angra, caso se estivesse na Ilha
Terceira. Era um pequeno comércio multifacetado, onde se procurava vencer a
pequenez do mercado e do consumo pela diversidade dos produtos oferecidos e pelos
reduzidos stocks: características que afectavam a maior parte do comércio insular.
Estes pequenos comerciantes, de socos nos pés e poucas letras, formavam ao nível das
pequenas comunidades um grupo com algum capital, mas menos envolvido nas lutas
políticas que os proprietários da terra. Muitos deles oscilavam entre a posse de alguns
recursos e a possível queda para o campesinato e para a emigração. Os seus sonhos
centravam-se, por isso, na reconversão do dinheiro em terras, e numa instalação a
prazo como mais um dos proprietários e lavradores abastados do lugar. No entanto,
mesmo depois de mais ricos e influentes, podiam continuar a ser os donos de um
pequeno estabelecimento. Em freguesias mais destacadas e populosas, alguns destes
comerciantes podiam ser, igualmente, médios proprietários, filhos segundos de
antigos oficiais da milícia, com um património fundiário já razoável, um saber letrado
consolidado e um poder político que lhes permitia serem galopins de peso no meio
local.
7
Veja-se Paulo Silveira e Sousa (1994), Território, Poder, Propriedade e Elites Locais: a Ilha de São
Jorge na Segunda Metade do Século XIX, tese de licenciatura em Sociologia apresentado no ISCTE,
Lisboa: policopiado. Para listas dos provedores da Misericórdia da vila das Velas cf. João Gabriel de
Ávila (1993), A Vila das Velas na História das suas Ruas. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da
Ilha Terceira, pp. 182-183.
8
Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas: Poder, Trajectórias, e Reprodução Social dos
Grupos Dominantes no Distrito de Angra do Heroísmo (1860-1910), sobretudo o capítulo II.
4
açoriano ou nas praças brasileiras, que se concentravam em Angra e integraram o
grupo compósito que constituía a elite de distrito. Infelizmente, as informações sobre
os nomes mais importantes do negócios das outras vilas da Terceira e ilhas vizinhas
são ainda mais difíceis de obter.
9
Para os negociantes açorianos e em especial da ilha de São Miguel veja-se Fátima Sequeira Dias
(1996), “Os empresários micaelenses no século XIX: o exemplo de sucesso de Elias Bensaúde (1807-
1868)”, Análise Social, vol XXXI, nº 136-137, pp. 437-464, e (1996b), Uma Estratégia de Sucesso
numa Economia Periférica: a Casa Bensaúde e os Açores (1800-1873), Ponta Delgada: Jornal de
Cultura. Para o Antigo Regime e para a praça de Lisboa vejam-se os trabalhos de Jorge Miguel
Pedreira, por exemplo, (1996), “Tratos e contratos: actividades, interesses e orientações dos
investimentos dos negociantes da praça de Lisboa (1755-1828)”, Análise Social, nº 136-137, pp. 355-
379 assim como (1995), Os Homens de Negócios da Praça de Lisboa, de Pombal ao Vistismo (1755-
1820), Dissertação de Doutoramento em Sociologia Histórica, Lisboa: FCSH-UNL, policopiado.
5
retalho que alguns homens de negócio ainda praticavam mas em que não
concentravam as suas energias”10.
O grupo dos grandes negociantes era caracterizado por não possuir segmentos
de actividade muito especializados, a nosso ver não só uma marca dos muito ricos,
como também uma característica própria de uma economia periférica, com um
mercado estreito e uma procura tradicional. No entanto, o mundo dos comerciantes
locais, apesar de mais especializado, não deixava de ter alguma diversificação,
tentando-se ampliar as actividades para vários segmentos de mercado, para vários
produtos, ou para o investimento na terra ou em especulações monetárias de pequena
escala. A diversificação das actividades, em que estavam envolvidos, parece-nos ter
sido uma estratégia inteligente para combater as possibilidades oscilantes que a
economia local oferecia, uma forma de dominar melhor os circuitos em que a sua
actividade mercantil se encontrava inserida, e uma maneira de dispersar os riscos
envolvidos. Se as actividades ligadas ao capital e ao crédito eram igualmente
praticadas nos dois universos, a ligação mais pronunciada ao sector da importação e
exportação em grosso, à navegação e às especulações com moeda, assim como uma
maior base imobiliária estabelecem as principais fronteiras entre estes dois grupos. Do
mesmo modo, o comércio de grosso trato e o comércio de retalho não se confundiam
ao nível dos seus protagonistas e do estatuto social que os rodeava13. No caso de
Angra, os grandes negociantes casavam já, desde pelo menos, os finais do Antigo
Regime, com membros da elite terratenente tradicional. Se bem que não fosse comum
o herdeiro de um grande morgado associar-se à filha de um grande negociante, era
normal que no mercado matrimonial das elites, os negociantes e os seus descendentes
se consorciassem com os filhos e filhas segundos das grandes casas vinculares. Esta
estratégia de ligação era ainda auxiliada pelos elevados investimentos em bens de
raiz. Ao contrário da velha ideia de territorialização e de transformação da burguesia
em elites de recorte tradicional, onde o importante era o lazer e as formas de
consumo, esta era, simplesmente, uma das melhores maneiras de diversificar
actividades e de apostar num sector que trazia não só segurança, como bons
rendimentos. Esta aposta no imobiliário passava quer pela compra de foros a trigo,
10
Jorge Miguel Pedreira (1996), “Tratos e contratos…”, Análise Social, nº 136-137, p. 358.
11
Fátima Sequeira Dias (1996), “Os empresários micaelenses no século XIX…”, p. 437.
12
Joseph Schumpeter, 1978 (1912), Teoria del Desarollo Economico, Mexico: Fondo de Cultura
Economica.
13
Idem, Jorge Miguel Pedreira (1996), “Tratos e contratos”..., p. 358.
6
quer de domínios úteis, de propriedades em domínio pleno e de prédios urbanos na
cidade de Angra ou de quintas de recreio e produção de laranja nos seus arredores.
14
Idem, Jorge Miguel Pedreira (1996), “Tratos e contratos”..., p. 370.
7
ingleses ou em Lisboa. Anos mais tarde, no princípio dos anos de 1860, o inventário
do comendador António da Fonseca Carvão Paim da Câmara mostrava-nos como este
estava envolvido na exportação de laranja e cereais, recebendo tais produtos à
consignação. Nestas mesmas décadas, outro navio, o brigue Terceirense, que antes
pertencera ao negociante António José Rodrigues Vieira Fartura, estava agora nas
mãos de uma sociedade de vários capitalistas da ilha, com o mesmo uso15. Por sua
vez, António Pedro Simões, negociante, armador e homem muito ligado ao trato
comercial com o Brasil era proprietário do lugre Flor de Angra16. Se até à década de
1860 o porto de Angra ainda tinha vários navios, a era da navegação a vapor e os
contratos de monopólio com a Empresa Insulana de Navegação, bem mais equipada e
dotada de um generosos subsídio estatal, acabaram por reduzir a menos de meia dúzia
os navios. Em 1885 a livre cabotagem entre os portos das ilhas e entre estes e os do
continente é uma das medidas mais pedidas para fomentar o comércio local. Segundo
o jornal regenerador A Terceira o sector da navegação na ilha achava-se numa
profunda decadência: de 15 navios que existiam há cerca de 20 anos apenas restavam,
nesse ano 3. Mas se a navegação a vapor e o monopólio acabaram com a velha frota à
vela e fizeram diminuir as hipótese de negócios na cabotagem entre as ilhas e o
continente, mesmo assim surgiram novas possibilidades de fazer dinheiro.
15
BPARAH, Inventário de António Tomé da Fonseca Carvão Paim da Câmara/ Maria Isabel da
Fonseca Ornelas Bruges, maço 738, ano de 1864; e Pedro de Merelim (1974), A Laranja na Ilha
Terceira...
16
O Boletim Oficial do Distrito de Angra do Heroísmo, nº 104 de 23-10-1862, p. 606 diz-nos que
António Pedro era o capitão da Escuna União Vencedora que partia nessa dias para a Terra Nova. No
mesmo periódico nº 34 de 27-08-1863, p. 137 é já o capitão do Brigue Escuna Flor de Angra.
17
Para São Miguel, cf. Fátima Sequeira Dias (Dir.) (1994), Em Defesa dos Interesses da Ilha de São
Miguel, As Súplicas da Associação Comercial de Ponta Delgada à Monarquia (1835-1910), Ponta
Delgada: Edição da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada; e Fátima Sequeira Dias (Dir.)
(1996), Em Defesa dos Interesses da Ilha de São Miguel, Relatórios Anuais da Mesa da Direcção
(1835-1910), Ponta Delgada: Edição da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada.
8
passageiros ficava à sua guarda, dando ocasião para outros negócios relacionados com
as constantes correntes de emigração18.
18
Joaquim Costa Leite (1996), “Os negócios da emigração (1870-1914)”, Análise Social, nº 136-137,
pp. 381-396.
19
Joaquim da Costa Leite (1996),”Os negócios da emigração (1870-1914)”, pp. 381-396. E Paulo
Silveira e Sousa (1995), "Emigração e Reprodução Social no Contexto Açoriano: o caso da ilha de São
Jorge na segunda metade do século XIX", Islenha, nº17, Funchal, DRAC, pp. 31-49.
9
na terra de origem, comportavam um grupo de actividades que normalmente tem
estado arredado das investigações. Tal como sugere Joaquim Costa Leite, os
engajadores não eram propriamente um conjunto de usurários marginais no seio das
suas comunidades. Pelo contrário, eles formavam um grupo onde se concentravam
comerciantes e proprietários abastados, funcionários públicos e mesmo sacerdotes.
Directamente associados a esta actividade estavam os agentes locais das principais
companhias de navegação, numa teia de interesses que também abrangeria os
representantes em Angra e mesmo a própria companhia20.
20
Joaquim da Costa Leite (1996), “Os negócios…”, pp. 383 e 389-391. Para uma descrição do papel e
da posição social dos engajadores das comunidades rurais açorianas ver Ernesto Rebelo (1885), “Notas
açorianas”, parte IX, “No mar”, in Arquivo dos Açores, vol VII, Ponta Delgada: Tip. do Arquivo dos
Açores, pp. 137-142.
21
BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 758, ano de 1872, maço 790, ano de 1880.
22
Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas…, especialmente o capítulo II. Para o caso do
Alentejo ver Helder Adegar da Fonseca (1996), O Alentejo no Século XIX: Economia e Atitudes
Económicas, pp. 252-272.
23
Para um maior desenvolvimento destas questões ver Paulo Silveira e Sousa (2004), “As elites, o
quotidiano e a construção da distinção no distrito de Angra do Heroísmo durante a segunda metade do
século XIX”, Arquipélago (série História), no prelo.
10
do distrito convinha que ela decorresse num processo relativamente longo, que durava
duas ou três gerações. No caso da passagem ser feita de forma mais rápida, o burguês
nunca conseguiria fazer desaparecer a aura embaraçosa de novo rico ou de
“brasileiro” que pairava sobre si. Ao contrário do que pode sugerir um primeiro olhar,
o patriciado urbano era um grupo bastante móvel. Se nas décadas de 1860 e 1870 ele
agregava as famílias abastadas ligadas ao comércio da laranja e dos cereais, no final
do século ele juntaria as fortunas do álcool. Na verdade, havia sempre novo dinheiro a
ser reconvertido e herdeiros a tentarem integrar-se nas elites, fosse pelo casamento,
práticas culturais e de sociabilidade, desempenhos políticos ou elevação da formação
escolar. Ao mesmo tempo que esse dinheiro novo se elevava, algum do dinheiro velho
começava a desvalorizar-se e a repartir-se pelos herdeiros. E aí as famílias mais
antigas tinham que escolher entre casamentos com filhos segundos de fidalgos e
morgados, com profissionais liberais ou com negociantes em ascensão. A outra
hipótese era a aposta na escolarização superior e a pequena queda para posições na
classe média alta, onde, mesmo assim, ainda tinham boas hipóteses de se reproduzir
enquanto elite. Se uns subiam, outros desciam, mas quer as subidas quer as descidas
eram lentas e negociadas.
24
Para o papel político da Associação Comercial de Ponta Delgada cf. Fátima Sequeira Dias (Dir.)
(1994), Em Defesa dos Interesses da Ilha de São Miguel, As Súplicas da Associação Comercial de
Ponta Delgada à Monarquia (1835-1910); e Fátima Sequeira Dias (Dir.) (1996), Em Defesa dos
Interesses da Ilha de São Miguel, Relatórios Anuais da Mesa da Direcção (1835-1910)…
25
Estatutos da Associação Comercial de Angra do Heroísmo, Angra: Tip do Visconde de Bruges.
Infelizmente a documentação da Associação Comercial depositada na BPARAH não contém quaisquer
registos para o nosso período, iniciando-se em 1914.
11
conjunturas externas e com a capacidade de integração das economias locais nos
mercados mais vastos.
26
Félix José da Costa (1867), Angra do Heroísmo, Ilha Terceira (Açores). Os seus títulos, edifícios,
estabelecimentos públicos. Angra: Tip. do Governo Civil, p. 12-13.
27
Almanach Açores para 1904, Angra: Tip. Sousa e Andrade, 1903, p. 4. Outra hipótese para perceber
os negócios e o comércio do distrito seria possível caso se localizasse a documentação do Tribunal
Comercial, que não se encontra agregada à da Associação Comercial de Angra depositada na
BPARAH. Quanto ao tribunal de Comércio apenas sabemos que, em 1886, foram eleitos para a sua
composição: Gregório Carlos Sanches Franco, Frederico Augusto de Vasconcelos, João Carlos da
Silva, Guilherme Martins Pinto, José Júlio da Rocha Abreu, Bento José de Matos, José Luís de
Sequeira, Francisco José da Costa Vidal, José dos Reis Fisher. Uma amostra suficientemente ampla
para incluir pequenos negociantes como Gregório Carlos Sanches Franco, comerciantes influentes
como Guilherme Martins Pinto ou Francisco José da Costa Vidal, grandes negociantes como Frederico
Augusto de Vasconcelos e João Carlos da Silva, e homens de carteira diversificada como José Luís de
Sequeira, ganadeiro, negociante, prestamista, exportador de gado e industrial de lacticínios.
28
Vejam-se as descrições destas tertúlias políticas em casas de pequenos lojistas em Francisco
Lourenço Valadão Júnior (1964), Evocando Figuras Terceirenses, Angra: Tip. Angrense, pp. 59-65.
12
quantificada e panorâmica deste grupo, podemos de qualquer forma encontrar no seu
desenho algumas das mais destacadas dinastias de homens de negócios e arriscar uma
primeira abordagem mais global.
A pertença a certos grupos de origem social inclina os seus membros para uma
familiaridade com a gestão de patrimónios relativamente importantes, facto que
constitui a primeira etapa para o seu lançamento no mundo dos negócios. Este mesmo
lançamento é com frequência feito a partir de um capital económico inicial herdado
ou emprestado pela família, que assim assiste e garante a reprodução de uma posição
social. A antiguidade no meio burguês dos negócios e a pertença a famílias nele já
bem colocadas, incluindo-se aqui as redes de parentesco ou de afinidades com outras
parentelas do meio, são, pois, condições que favorecem as estratégias de sucesso e a
ocupação das posições mais altas no seio do campo29.
Porém, o que é o sucesso? Numa acepção muito simples, ele pode ser visto
como um movimento de mobilidade social no qual um indivíduo ou um grupo se
deslocam da sua posição social original para uma que manifestamente possui uma
maior quantidade e combinação de capitais. Quer isto dizer que tem sucesso quem
começando de marçano chega a grande negociante, mas também que quem começou
filho de negociante e engrossou a sua casa, casou bem os seus descendentes e teve
acesso a níveis de poder mais elevados igualmente alcançou uma boa dose de sucesso.
O sucesso não será, portanto, uma espécie de atributo ideológico destinado aos
poucos self-made-men.
29
Cristophe Charle (1978), “Les Milieux d’Affaires dans la structure de la classe dominante vers
1900”, nº 20-21, p. 86.
13
Bensaúde, ainda em maior profundidade e extensão, nas décadas de 1840 a 1860. Os
ascendentes e parentes de Frederico Augusto de Vasconcelos estavam disseminados
por Angra e Ponta Delgada30.
30
Fátima Sequeira Dias (1996), “Os empresários micaelenses no século XIX: o exemplo de sucesso de
Elias Bensaúde (1807-1868)”, p. 447. Agradeço ao Dr. Jorge Forjaz a referência ao caso da família
Dart. Thomas Dart em 1856 era cônsul se sua majestade britânica no Faial e no Pico. Cf. BPAR da
Horta, Livro de Registo dos diplomas, títulos de nomeação dos empregados deste distrito da Horta e
termos dos seus respectivos juramentos, escriturados desde 20 de Junho de 1853 até 1862, fl 27 frente.
O negociante e capitalista Georges Philips Dart em 1831 emprestaria a quantia de 10 contos á Regência
liberal instalada na Ilha Terceira, Vitorino Nemésio (1929), “A Terceira durante a Regência (1830-
1832)”, in Memorial da Muito Notável Vila da Praia da Vitória no Centenário da Acção de 11 de
Agosto de 1829, Coimbra: Imprensa da Universidade, p. 217.
14
mundo comercial da cidade. Décadas depois, Casimiro Mourato, seu tio por afinidade,
era, em Angra, uma espécie de rei dos remédios e das pastilhas. Em 1882 estabeleceu-
se por conta própria e quando faleceu em 1900, aos 47 anos, dispunha da Farmácia da
Praça Velha e da Farmácia da Rua da Sé, por baixo de sua casa31. Deste exemplo,
podemos concluir que, apesar da dispersão da herança por 14 filhos, não só existe
uma relativa reprodução nas posições e nas ocupações dos negócios, como os
casamentos são feitos com indivíduos do meio burguês ou com membros
desvalorizados, porque falidos, dos grupos nobres. Ainda não chegara o tempo dos
casamentos em força entre os protagonistas dos dois grupos. Se observarmos uma
trajectória familiar mais longa, vemos como o comendador foi negociante, tal como
seu filho veio a investir no comércio e nas boticas, e seu neto continuou a tradição
com a sortida loja Havaneza.
Outro exemplo podia vir de Gabriel de Sousa Pereira, que nas décadas de 1850
e 1860 era um dos maiores, se não o maior capitalista de Angra. Gabriel de Sousa
Pereira havia estado envolvido no Brasil nos negócios da navegação, tendo casado no
Rio de Janeiro com uma sua sobrinha, Emília Amélia Pereira. Dele serão herdeiros os
filhos do casamento Guilherme de Sousa Pereira, Emília Amélia, Eulália, Gabriel,
Maria Carlota, Carlota Laura, todos residentes em Angra, e uma filha legitimada de
uma união anterior, Carolina Augusta de Sousa Pereira, casada com Jorge Soares de
Avelar, comerciante, residente na vila das Velas32.
No seu testamento Gabriel recomendava que não queria luxo, nem pompa e
que tudo quanto se gastasse fosse com pobreza. Não só ele parecia apreciar um
comportamento de rigoroso e discreto burguês, como a composição do seu conselho
de família assim o demonstrava. Nele veremos, principalmente, negociantes e
comerciantes locais: João António Nogueira, José Maria Gonçalves Branco, Bento
31
Eduardo de Azevedo Soares (1908-1909), Nobiliário da Ilha Terceira, vol. II, pp. 145-147, Braga:
Edição de Autor; Pedro de Merelim (1974), As Dezoito Paróquias de Angra..., pp. 631-634.
32
Inventário de Gabriel de Sousa Pereira/ Emília Amélia Pereira, Maço 752, ano de 1870.
15
José de Matos Abreu, Joaquim Machado de Freitas e Lucindo Machado de Freitas. Os
homens dos grupos tradicionais da elite angrense e da grande burguesia ainda não se
haviam mesclado. E quer Gabriel Pereira de Sousa, quer o comendador Mendonça e
Meneses, apesar de muito ricos, eram ainda demasiado novos no meio para se
começarem a misturar com as elites mais tradicionais, cujos rendimentos ainda não
tinham entrado em quebra.
A maior parte dos bens de Gabriel eram imobiliários, muitos deles foros a
trigo, e dívidas activas. As mercadorias e géneros resumiam-se a uma dúzia de moios
de trigo e uma grande quantidade de pranchas de madeira, provavelmente para fazer
caixas para exportar laranja. Os foros, que formavam a maior parte do património,
foram em boa parte comprados à Fazenda Nacional e a alguns comerciantes e
proprietários mais decaídos. Os domínios plenos foram igualmente comprados em
sucessivas hastas públicas. As suas casas nobres em Angra, na Rua do Barcelos,
haviam sido alcançadas por hipoteca feita a José Tristão da Cunha Silveira
Bettencourt e estavam ricamente mobiladas, tal como a sua quinta em São Carlos, a
de Santo Antonino, que havia sido comprada à viscondessa de Almeida Garrett. Para
além destas, Gabriel era ainda proprietário de três casas altas na cidade. Os seus
títulos e acções eram quarenta apólices da dívida pública, umas poucas acções da
praça de touros e do Teatro Angrense, assim como catorze inscrições de
assentamento, tudo no valor de quase 19 contos. Se uma parte das dívidas activas
eram rendas e foros em atraso, a outra, mais significativa, eram hipotecas e letras,
uma parte das quais vinha da massa falida de alguns negociantes judeus que se
afundaram durante a crise comercial e cambial do distrito em inícios dos anos de
1860.
À data da sua morte a casa de Gabriel de Sousa Pereira era bem mais abastada
que a do próprio conde da Praia da Vitória (que já entrara numa espiral de dívidas), e
16
que a de muitos dos outros morgados e grandes proprietários da Terceira33. Porém, as
diferenças ainda eram bem perceptíveis no luxo e na sofisticação do recheio das
respectivas habitações. O ouro, a prata e as jóias que constavam no inventário de
Gabriel de Sousa Pereira estavam avaliados em 931$000, no caso do conde ascendiam
a 1.410$000. O total do recheio da casa orçava em 1472$000, o velho senhor do
palácio de Santa Luzia só em móveis e no impressionante trem de cozinha totalizava
1573$290 réis, a ele se juntavam madeiras, loiças de várias proveniências, como
serviços ingleses, franceses, de Saxe, de Sévres e cristais vários, compondo tudo junto
2.174$980. Os livros somavam ainda 174 lotes no valor aproximadamente de
120$000, formando um conjunto com várias centenas de volumes34.
Nenhum dos filhos de Gabriel de Sousa Pereira será capaz de refazer a fortuna
paterna. Todos viveram com conforto numa classe média de funcionários, pequenos e
médios negociantes e proprietários. Alguns ligaram-se a outros negociantes e
comerciantes locais, parte dos quais, como Joaquim Luís de Magalhães, haveriam de
ter uma razoável trajectória na praça de Angra35.
Não sendo muito ricos, Joaquim Luís e Amélia Pereira de Magalhães, filha do
capitalista Gabriel, eram, em 1874, donos de algum património e dão bem o exemplo
de uma classe média mercantil em ascensão. De facto, a firma Magalhães & Sobrinho
ainda estava no seu começo. O mobiliário da residência do casal era confortável e
todo ele recente; as pratas e os ouros marcavam um pequeno lugar, atingido estes dois
tipos de bens um valor de 854$000. Contudo, é certo que a maior parte dos bens do
casal vieram ter às suas mãos pela escritura de dote de Amélia e pela legítima a que
esta teve direito por morte de seu pai. O valor dos imobiliários chegava aos
8.997$000 e ainda havia dinheiro em ser no valor de 626$000, num total de
10.478$000 de património ilíquido. Nos imobiliários destacam-se alguns foros a trigo,
algumas propriedades de terras lavradias e pastos em domínio pleno, uma casa de alto
e baixo com pátio e pomar contíguo, no Caminho do Meio em São Pedro, medindo
77,44 ares, que fora comprada pelo casal com a ajuda da sogra em 1873, uma outra
casa também de alto e baixo no mesmo lugar mas com menor dimensão, e o domínio
útil de uma propriedade de criação, medindo cerca de 140 hectares que estava
subaforada desde 1872 por 2376 litros de trigo. O valor dos foros a trigo fica-se pelos
8539 litros deste cereal, prevendo ainda 264 litros de milho, onze galinhas, 4,4 litros
de manteiga, e 2,54 kg de linho anuais. A ascendência da esposa, a boa casa de Angra
e a casa de recreio no Caminho do Meio davam ao casal a possibilidade de se
33
Em 1862, sendo um dos mais ricos e antigos morgados da Terceira, senhor de 25 vínculos, o conde
da Praia da Vitória, registaria 180 contos de bens vinculados. No entanto, aquando da sua morte em
1870 o património ilíquido constante no seu inventário era de apenas 109,4 contos, valor que se
reduziria a 42,4 contos dado existirem 66,99 de dívidas acumuladas. Cf. Paulo Silveira e Sousa (1998),
As Elites Periféricas…, capítulo II, pp. 79-83.
34
Idem, pp. 79-83.
35
Por exemplo, um dos filhos e homónimo de Gabriel de Sousa Pereira casará com Francisca da Costa
e Silva, oriunda de uma família de comerciantes e ricos ganadeiros, CF. BPARAH, Inventários
Orfanológicos, Gabriel de Sousa Pereira/ Francisca da Costa e Silva Pereira, maço 898, ano de 1887, nº
8. À data da sua morte os seus bens eram quase os mesmos que havia herdado do Pai. Para além de
uma confortável e bem equipada casa em Angra, eles eram quase todos foros a trigo espalhados pelos
concelhos de Angra e da Praia. Outro filho do capitalista Gabriel, Guilherme de Sousa Pereira, seria
em 1888 nomeado escrivão da administração do concelho de Angra; era ainda cunhado de outro nome
importante dos negócios da praça da cidade, José Luís de Sequeira.
17
manterem ligados a determinados comportamentos de lazer e a sociabilidades
provavelmente mais refinadas que a de alguns comerciantes cujos cofres guardavam
quantidades mais pesadas de moeda ou títulos de propriedade mais numerosos.
A sociedade Magalhães & Sobrinho, formada por Joaquim e seu tio António,
também casado com a filha de uma família de brasileiros abastados, foi criada por
escritura de Dezembro de 1871. Do dinheiro em caixa dos lucros até Junho de 1873,
num total de 1665$000, apenas existia de quantia líquida 276$000. Mas a empresa foi
prosperando e, em 1885, a firma vendia novidades a retalho e era agente de várias
companhias bancárias36. O seu leque de oferta ia desde as modas finas, tecidos e
panos diversos, até sabonetes, licores e vinhos engarrafados37. Os dois Magalhães
viviam em boas e amplas casas na cidade e qualquer um deles era também
proprietário de alguns foros e de casas de recreio nos arredores de Angra.
A única excepção vem de Gaspar Silva, que comprou prédios por todo o
concelho da Calheta e aqui se instalou como proprietário no final do século.
Regressado do Havai com a sua família e uma fortuna que alguns avaliavam em bem
mais de 100 contos ele construiu uma enorme casa em estilo colonial na Ribeira Seca,
36
Cf. BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 769 (ano de 1874). António Luís de Magalhães era
casado com uma filha de Maria Luísa Fialho Martins. Com o seu já falecido marido, o casal havia
estado emigrado no Brasil, em São Luís do Maranhão, onde tinham sido comerciantes. Em 1865, data
da morte do marido, Maria Luísa ainda possuía bens no Brasil. Para além de uma boa casa na cidade de
Angra, a sogra de António Magalhães era também proprietária de uma quinta na Boa Hora, com casa,
jardim e amplo prédio de árvores de espinho, o que a faz entrar no grupo da classe média abastada. Cf.
BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 751 e 752.
37
A Terceira, 14 de Fevereiro de 1885.
38
António Borges do Canto Moniz (1883), Ilha Graciosa (Açores), Descrição Histórica e
Topográfica, Angra do Heroísmo: Imprensa da Junta Geral, p. 182.
18
cuja enorme chaminé cónica podia ser vista em quilómetros em redor, e instalou-se
como um perfeito rentista. No entanto, num concelho tão periférico e onde as antigas
elites já tinham decaído ou abandonado este território, Gaspar Silva apareceu como
um substituto, como o grande benemérito do concelho, cuja bolsa se abria a quase
todos os pedidos de melhoramentos39.
Na ilha Terceira, assim que o ciclo das remessas dos emigrantes brasileiros
começou a decair em finais da década de 1870, os grandes capitalistas passaram a ser
homens de antiga riqueza como os Silvas, ou indivíduos em crescente afirmação no
meio como Frederico Augusto de Vasconcelos, Henrique de Castro ou José Júlio da
Rocha Abreu, que tinham atrás de si uma tradição familiar de ligação ao meio
comercial. A emigração para os EUA, mais tardia que nos outros territórios insulares
e tal como nestes notoriamente camponesa, não veio a formar grandes casas.
39
José Cândido da Silveira Avelar (1902), Ilha de São Jorge (Açores):apontamentos para a sua
História, Horta: Tip. Minerva Insulana, p. 97; Pe. Manuel Azevedo da Cunha da 1981 (1906), Notas
Históricas. I Estudos sobre o Concelho da Calheta (S. Jorge). II Anais do Município da Calheta (S.
Jorge).(Recolha introdução e notas de Artur Teodoro de Matos), Ponta Delgada: Universidade dos
Açores, vols. I e II, pp. 231, 825, 829; Fernando Gaspar da Silva (2001), Os Gaspar Silva: memórias
de raízes e percursos familiares, Angra: Instituto Açoriano de Cultura.
40
Agradeço ao dr. Jorge Forjaz estas indicações genealógicas.
19
judicial em 1877. Uma propriedade de casas altas parte de dois andares e parte de um
só, na rua do Faleiro, foi adquirida da mesma forma em 1866, tal como uma
propriedade de casas baixas telhadas na Rua de Santa Luzia. Em 1871 seria a vez de
uma propriedade de casas altas na Rua de Cima, na freguesia de Santa Luzia. Umas
casas de dois andares na Rua de São João foram adquiridas ao conde da Praia, em
1876. Em 1879, o granel da Rua de São João seria comprado a João Marcelino de
Mesquita Pimentel. No mesmo ano, Frederico Augusto de Vasconcelos Sénior
compraria ainda uma casa de telha abarracada na Rua da Boa Nova e 45 ha de terra na
Ribeirinha, em grande parte adquiridos a D. Ana Guilhermina Fisher, de Ponta
Delgada, avaliados em 40.668$000, e que faziam anteriormente parte de um vínculo.
20
significativamente, fundando uma grande casa com vários interesses no comércio e na
indústria, que sobreviveu até aos nossos dias.
41
Dados sobre a família retirados de Pedro de Merelim (1974), As 18 Paróquias da Ilha Terceira,
Angra: Tip. Minerva comercial, pp. 361-364.
21
Castro comprará ao morgado Vital de Bettencourt Vasconcelos e Lemos a quinta com
casas nobres, pátio, chafariz e ermida de Jesus, Maria, José nos arredores de Angra42.
Os três Silvas eram já dos negociantes mais abastados em 1865 e faziam frente
no partido regenerador do distrito ao lado do conde de Sieuve de Menezes, tendo
passado por várias vereações, pelas juntas gerais e pela direcção da Associação
Comercial. Jacinto Cândido Sénior, e seus filhos eram influentes de destaque: “os três
constituíam uma grande força eleitoral”, como escreverá mais tarde o seu neto44. Mas
se esta segunda geração, tal como a precedente, esteve a maior parte da sua vida a
fazer as contas do deve e do haver, a tentar os melhores câmbios e a descontar letras,
a fretar navios e a receber comissões, a geração seguinte já pouco teve a ver com
semelhantes actividades.
42
Pedro de Merelim (1974), As Dezoito Paróquias de Angra..., p. 354.
43
Almanaque Açores para 1905, Angra: Tipografia Sousa e Andrade, p. 4.
44
Jacinto Cândido da Silva (1962), “Autobiografia”, Apresentação e Prefácio de José Lopes Dias,
Separata dos Estudos de Castelo Branco, pp. 10-12, 19-26.
22
nos negócios. Mas, segundo o próprio, por influência de seu tio materno, Fernando
Rocha, quis seguir a carreira de advogado. Os dois filhos de Emídio Sénior terão
carreiras políticas promissoras e um capital escolar e social muito mais desenvolvido:
Jacinto Cândido formou-se em Direito por Coimbra e Emídio Júnior tornou-se
engenheiro pela Escola Militar. O primeiro foi Ministro da Marinha, um destacado
membro da direcção do partido Regenerador, sendo posteriormente o líder da cisão
Nacionalista, em 1902; o segundo foi governador civil de Angra e deputado por várias
legislaturas, tendo permanecido o homem forte dos regeneradores do distrito, nos
anos posteriores a 1890, primeiro em associação com o irmão e depois sozinho. De
qualquer forma, esta ligação à política já era antiga na família.
45
Em 1883 era presidente da Associação Comercial de Angra.
46
Trajectória comum entre a elite oitocentista é na passagem pela Universidade de Coimbra que
Jacinto Cândido cimentou a sua rede de conhecimentos e o seu capital relacional, tão importantes para
poder alcançar quer peso político, quer a integração na boa sociedade de que o consórcio com uma
esposa abastada era etapa decisiva. Cf. Cabral António (1923), Alexandre Cabral: memórias políticas,
homens e factos do meu tempo, Lisboa, pp. 36-39.
47
BPARAH, Inventários Orfanológicos de São Jorge, José Pereira da Cunha da Silveira e Sousa, maço
704, ano de 1912.
48
Eduardo de Azevedo Soares (1908-1909), Nobiliário da ilha Terceira, vol II, pp. 375-378.
23
Tendo nascido na Ericeira, em 1835, filho de gente pobre, provavelmente
marítimos, António Pedro Simões teve uma trajectória de grande sucesso nos
negócios, à qual não foi indiferente o seu casamento com Catarina Máxima Mendes,
filha de um comerciante de Angra, Basílio Ferreira Mendes e de sua mulher, Maria
Dulce Mendes. Estes, não sendo muitos ricos eram, mesmo assim, senhores de alguns
bens. Em 1909, o património imóvel que adveio ao casal António Pedro e Catarina
pelas heranças da esposa atingia os 22.012$000. Os restantes 43.517$000 que
perfaziam o conjunto dos bens de raiz haviam sido comprado ao longo de décadas.
24
velho. Os seus descendentes viriam a casar-se com os filhos e filhas de grandes
lavradores, de outras famílias ligadas ao comércio e com as descendentes de grandes
morgados empobrecidos e condenados ao emprego público51.
51
Eduardo de Azevedo Soares (1908-1909), Nobiliário da Ilha Terceira, vol. III, p. 49.
52
Em 1885, António Pedro Simões, vendia na sua mercearia da Rua Direita todo o tipo de géneros de
vinho local e importado, ceras, petróleos, azeites e aguardentes, café e açúcar. Guilherme Martins Pinto
Júnior era o agente em Angra da Companhia de Seguros Esperança. Veja-se A Terceira, dos meses de
Fevereiro a Agosto de 1885.
53
António Pedro habitava uma confortável casa de dois andares, com pátio, lojas e meia palha de água
potável, na Rua Direita que tinha sido herança de seu sogro, em 1872. João Carlos da Silva residia na
faustosa casa que antes fora de Aniceto António dos Santos e que albergara o conde de Vila Flor
durante as Lutas Liberais. Pedro de Merelim (1974), As Dezoito Paróquias de Angra..., p. 235 e
Alfredo da Silva Sampaio (1904), Memória sobre a Ilha Terceira, Angra: Imprensa Municipal, pp.
262-263.
54
José Júlio da Rocha Abreu, 100 anos de Actividade Comercial (1864-1964), Angra do Heroísmo, p.
1.
25
actividade no comércio de fazendas, modas e ourivesaria, irá sucessivamente
alargando e aumentando o volume dos seus negócios, associando-se a alguns dos seus
empregados em diferentes e sucessivas sociedades. Numa cidade onde o mercado era
pequeno, uma especialização em apenas determinado ramo era pouco rentável, os
lojistas e comerciantes de sucesso ampliavam as suas actividades e envolviam-se em
diferentes negócios como forma de alargar os seus interesses e os seus rendimentos.
Como veremos adiante, em 1873, Bento José era o agente do Banco Aliança e do
Banco Lusitano.
Matos Abreu, tal como o seu antigo patrão, irá recrutar parte dos seus
empregados na zona do Porto e de Braga de onde era originário. Assim aconteceu
com Francisco José da Costa Vidal, chegado a Angra em 1862, que mais tarde se
estabeleceu por conta própria e chegou a ocupar um papel de relevo na vida comercial
e política da cidade, e com Luís Manuel de Matos Faria, seu primo e caixeiro.
Qualquer um deles, além de outros comerciantes como João Gomes Ferreira e Emílio
Borges de Ávila, tiveram sociedade com Bento José de Matos Abreu. Os seus
estabelecimentos foram, de facto, uma escola que formou vários dos seus ex-
empregados e os transformou em donos de várias lojas importantes de comércio,
dando um maior dinamismo à Praça de Angra. Numa época em que as empresas
comerciais eram de pequena dimensão e marcadas por uma estrutura familiar, ou
quase familiar, este sistema de cooptação não pode ser esquecido.
26
se lançarem nos negócios a título individual, ou mesmo para participar como
capitalistas nas firmas55.
Em 1875 é a vez de Bento José associar-se a seu filho mais velho José Júlio da
Rocha Abreu, então com 18 anos, deixando o seu outro rebento, Eduardo Abreu,
licenciar-se em Medicina e tornar-se um destacado membro do partido Progressista e
posteriormente do partido republicano. Em 1880 a Bento José de Matos Abreu &
Filho negociava no número 30 da Rua da Sé uma miríade de produtos que iam das
fazendas e modas, aos tecidos, vinhos engarrafados, licores e bebidas espirituosas,
cutelaria, ouro e prata e alguma fancaria56. Em 1885 vendia nos seus granéis cereais
para semente57.
Uma filha de Bento Abreu casou com Félix José da Costa Sotto Maior,
bacharel em Direito, advogado, notário, provedor da Misericórdia de Angra, mais
tarde professor e reitor do Liceu em Ponta Delgada, por sua vez filho de um
funcionário público do governo civil, publicista e advogado provisional. Outro
rebento Eduardo Abreu, médico e deputado Progressista, casou-se com uma filha da
falida fidalguia de Angra58. José Júlio, por sua vez, tomou como esposa Carlota
Isaura, filha do nosso já conhecido capitalista Gabriel de Sousa Pereira.
Com o passar do tempo José Júlio da Rocha Abreu foi controlando cada vez
mais esta importante casa comercial, gozando de amplo crédito e confiança nas várias
praças com que se relacionava. Em 1893, o pai, Bento José de Matos Abreu, faleceu
em Amares, sua terra de origem, e a firma foi dissolvida, passando então a girar
apenas com o nome do filho59. Em 1904, José Júlio da Rocha Abreu era presidente da
Associação Comercial. De 1892 a 1913 exerceu o cargo de director da Caixa
Económica de Angra do Heroísmo, dando um sólido desenvolvimento aos seus
negócios. Pertenceu ainda aos corpos dirigentes da Misericórdia e teve um papel
importante na vida política da cidade, participando activamente em várias iniciativas e
instituições de caridade60. Mais uma vez o acesso ao topo da burguesia só chegou
nesta última geração, embora Bento José fosse já nos últimos anos da sua vida um
homem de grandes cabedais.
55
Cf por exemplo José Ramón Garcia López (1989), “El sistema bancario español del siglo XIX: una
estructura dual? Nuevos planteamentos e nuevas propuestas”, Revista de Historia Económica, vol VII,
I, nº 1, pp. 111-132.
56
Os Açores, nº 31 de 18 de Março de 1880.
57
A Terceira, de 10 e 17 de Janeiro de 1885.
58
Gonçalo Nemésio (1994), Uma Família do Ramo Grande, Ilha Terceira, p. 110; e Eduardo de
Azevedo Soares (1908-1909), Nobiliário da Ilha Terceira, vol. I, pp. 157-158.
59
José Júlio da Rocha Abreu, 100 anos de Actividade Comercial (1864-1964), pp. 2-4.
60
Veja-se a Homenagem Prestada ao Exmo. Senhor José Júlio da Rocha Abreu em 24 de Agosto de
1930 pela Caixa Económica de Angra do Heroísmo, Angra: Tip. Moderna, pp. 16-18.
27
sucessivas gerações. E as duas filhas únicas de Eduardo Pereira de Abreu casarão, já
na década de 1930, com descendentes de importantes casas de proprietários, como os
Parreira e de fidalgos, como os Forjaz61.
61
José Júlio da Rocha Abreu, 100 anos de Actividade Comercial (1864-1964), pp. 6-8.
62
Pedro de Merelim (1974), “Ramo familiar materno de Fernando Pessoa - Nogueiras e Rebelos”,
Atlântida, vol. XVIII, nº 5, p. 228.
63
BPARAH, Inventários Orfanológicos, Júlia Augusta Nogueira de Freitas/ Joaquim José de Sousa
Freitas, Maço 775, ano de 1876.
64
Pedro de Merelim (1974), “Ramo familiar materno de Fernando Pessoa...”, pp. 224-229.
28
Freitas, João e Abílio, vieram estudar para Lisboa65. De novo se vê como os exemplos
familiares encaminhavam as jovens gerações para o aumento do capital escolar.
Quando morre Abílio, ainda a meio dos seus estudos, o seu funeral foi já
acompanhado por todo um cortejo de notáveis, que integrava uma filarmónica, indo o
corpo para o mausoléu de mármore que seu pai já havia construído aquando da morte
da esposa. Curiosamente, entre aqueles que no funeral pegaram nas borlas do manto
estavam quase todos os principais comerciantes e alguns grandes negociantes de
Angra.
Quando João Nogueira de Freitas morre em 1906 os bens que deixa não são
muitos, mas ainda demonstram alguma da antiga riqueza. O recheio da casa da
Miragaia contemplava um piano, um sofá e oito cadeiras todas estofadas a damasco.
Ele possuía ainda alguns bens em domínios úteis que perfaziam 1569$, e outros em
partes sobre domínios directos e foros no valor de 1046$. Os domínios plenos atingem
65
Pedro de Merelim (1974), “Ramo Familiar Materno de Fernando Pessoa: Cons. Luís António
Nogueira”, Atlântida, vol. XVIII, nº 1-4, pp. 47-67.
66
Pedro de Merelim (1974), “Ramo familiar...” p. 61.
29
os 9981$, de onde se destaca a casa da Miragaia. Em quase todos os bens, o pai,
Joaquim José de Sousa Freitas, ainda era proprietário de 1 quinto do valor. Para além
dos imobiliários havia vinte acções da Companhia Geral do Crédito Predial
Portuguesa no valor de 1050$, aos quais acrescia 6.250$ provenientes de um seguro
de vida. No entanto, as dívidas activas chegavam aos 8748$, em grande parte
contraídas à Caixa Económica de Angra e à Caixa do Montepio Terceirense, sendo
ainda devedor de letras sacadas em nome do seu sócio João Belo de Morais. Depois
de uma tuberculose prolongada e de disputas sobre o património com o pai, é normal
que os bens de João Nogueira de Freitas estivessem reduzidos.
Se esta não é uma história tão feliz como a de Bento José de Matos Abreu,
revela-nos à mesma uma trajectória familiar que começa no escalão mais baixo dos
negócios, passa para uma posição cimeira, e tem na terceira geração a consagração do
capital escolar e das maneiras de distinção burguesas. Por outro lado, este pequeno
caso demonstra-nos como a transmissão de certas posições cimeiras na praça de
Angra, como era o caso de agente da Insulana, se fazia por via familiar ou por outra
qualquer proximidade, sendo que somente, à falta de herdeiros, entravam os amigos e
os sócios.
67
Pedro de Merelim (1971), Memória Histórica da Caixa Económica da Santa Casa da Misericórdia
de Angra do Heroísmo, nas suas “Bodas de Diamante”, Angra: Tip. do Diário Insular, p. 22.
68
Almanaque Açores para 1904, Angra: Tip. Sousa e Andrade, pp. 89-90.
30
fortuna da família ainda não tinha engrossado muito e os negócios do patriarca
mantinham uma sólida pequenez.
Como pudemos ver pelo quadro 6, é curioso verificar que grande parte do
património deste comerciante estava já não nas mercadorias e géneros, mas em bens
de raiz. O que como vimos acontecia com frequência no grupo dos grandes
negociantes e capitalistas e que parece denunciar uma passagem desejada da
mercadoria para a acumulação de capital e de bens fundiários. Mais do que
retraimento ou fraco espírito empresarial esta parece ser uma consequência directa de
estratégias de grande prudência e adaptação às conjunturas nos negócios, sobretudo
num distrito que permanecia basicamente agrícola e rural. Nos Açores estavam em
grande medida ausentes factores que potenciassem o desenvolvimento e a
prosperidade dos negociantes e proprietários mais empreendedores, como um
mercado largo e aberto, em expansão acelerada, recursos naturais extensos, produtos
bem integrados nas dinâmicas do comércio externo, e uma vasta mão de obra
relativamente qualificada. Mais do que nos queixarmos da fraca aderência do grupo
dos mais ricos aos valores do empresário moderno, devemos antes avaliar se as
oportunidades de negócios eram, de facto, assim tão alargadas como se tem suposto.
Será que mais do que a gestão moderna e o investimento em inovação não serão as
oportunidades que farão os empresários singrar? E será que o que muitas vezes parece
retraimento não poderá ser apenas prudência e bom senso?69
69
Veja-se as referências de Helder Fonseca (1996), Economia e Atitudes Económicas no Alentejo…,
para o sector agrícola, especialmente as pp. 149-167 e 427-430.
31
de capacidade de mobilização de capitais e de acesso fácil a outros mercados e
matérias-primas. De outro modo não se podem introduzir novos bens, a organização
de novos métodos de produção torna-se mais difícil, assim como a conquista de
mercados ou fontes de matérias primas ou semi-transformadas70. Por outro lado, esta
relação não é mecânica e nem sempre a eficiência técnica corresponde à melhor
eficiência económica. Os comportamentos que à partida parecem ser conservadores,
podem mais não ser do que uma adaptação muito pragmática a uma realidade local
marcada por outros constrangimentos à mudança. A ausência de um olhar sobre estes
aspectos pode levar a que se façam interpretações de tipo “culturalista”, e a que se
caia na classificação rápida destas elites como tradicionais e refractárias à mudança.
7 - Conclusão
Como vimos nos pontos precedentes, o mundo da burguesia era bem mais
segmentado e hierarquizado do que à partida uma leitura rápida poderia fazer supor.
Ao contrário da velha imagem de uma Angra aristocrática, surge-nos uma cidade
onde burgueses, classes médias, fidalgos de antiga matrícula e outros morgados
nobres coexistiam num espaço social onde as posições de elite manifestavam uma
crescente fusão entre os vários segmentos. Contudo, esta fusão não quer dizer que não
se tenham estabelecido novas fronteiras e novas marcas de distinção, construídas
através dos diplomas, das práticas culturais, das sociabilidades e dos seus espaços e
do jogo quotidiano das boas maneiras e do saber estar e dispor de si no espaço
público.
Nos negócios, uma das estratégias mais bem sucedidas passava por investir em
diferentes áreas. As diferentes actividades podiam ir do comércio de grosso trato da
importação e da exportação de cereais, às representações bancárias ou de seguros, às
agências de navegação, ao sector da distribuição, às actividades industriais, passando
ainda, de uma forma muito marcada, pelo investimento na compra de propriedades
fundiárias. Num pequena ilha e num pequeno mercado não será estranho constatar
70
José Manuel Lopes Cordeiro (1996), “Empresas e empresários portuenses na segunda metade do
século XIX”, Análise Social, nº 136-137, pp. 332; e Joseph Schumpeter, 1978 (1912), Teoria del
Desarollo…
32
como o investimento na terra era comum e como as propriedades em domínio pleno e
os foros formavam o grosso dos bens dos grandes negociantes da cidade.
71
Veja-se o imprescindível livro de Fátima Sequeira Dias (1996b), Uma Estratégia de Sucesso numa
Economia Periférica: a Casa Bensaúde e os Açores (1800-1873), Ponta Delgada: Jornal de Cultura.
33
morgado. Novamente os principais homens do comércio que aqui nos surgem são
aqueles que como vimos atrás tinham uma carteira de interesses bem diversificada72.
Sem que se manifeste uma reprodução esmagadora, parte das velhas famílias e
alguns dos seus ramos secundários conseguiram reproduzir a sua posição no espaço
social através do capital escolar e da sua ligação ao emprego público. Este fenómeno
deu origem a algumas famílias da classe média abastada que, mais tarde, veremos a
casar com fortunas do comércio e dos negócios e a formar dinastias burguesas que se
reproduzirão por muitos mais anos. No entanto, o universo da elite de distrito, se bem
que estreito, era relativamente aberto, de modo que as entradas de novos membros
neste universo restrito foram comuns. Filhos de comerciantes e negociantes de Angra,
regressados com os seus diplomas e em cujos bolsos ou trajectória virtual se
perfilhavam as libras das heranças, eram aceites e integrados no seio da elite. Nalguns
casos, a fortuna podia mesmo ser relativamente modesta, ou o indivíduo vir de fora
dos pequenos mundos das ilhas, mas para o novo bacharel o circuito do poder, da
política e um emprego prestigiado, bem remunerado ou, pelo menos, estável, abriam-
lhe as portas das sociedades e das casas das boas famílias.
72
Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas: Poder, Trajectórias, e Reprodução Social dos
Grupos Dominantes no Distrito de Angra do Heroísmo (1860-1910), anexo II.
73
Ver Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas...
34
O controle e a actividade directa no comércio e no crédito não eram
incompatíveis com uma vida de rentista, com determinados comportamentos
aristocratizantes, socialmente reconhecidos como sendo de elite ou de distinção. Esta
era uma característica que se poderia manter e aprofundar nas novas gerações,
dependendo do sucesso e das estratégias de mobilidade das famílias, num movimento
que as afastaria sempre do trabalho e da participação directa nos negócios. No último
quartel do século XIX, ao fim de umas poucas gerações de sucesso, moldava-se um
grupo relativamente coeso que se assemelhava no capital económico, mas também
nos capitais cultural, social e simbólico, capaz de ter os mesmos modos de vida, as
mesmas formas de lazer e por vezes até a mesma hexis corporal e comportamento
social em interacção com terceiros. Todas estas características eram ainda reforçadas
através do aprofundamento dos laços de parentesco - que contribuíam para unificar os
símbolos de classe - pelas manifestações de caridade e de poder, e pelas formas de
exposição pública de si e da sua riqueza.
35