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MEIOS BURGUESES E NEGÓCIOS EM TERRITÓRIOS

PERIFÉRICOS:
O DISTRITO DE ANGRA DO HEROÍSMO, 1860-1910

Paulo Silveira e Sousa *

1 - Introdução

O estrato burguês, dada a sua heterogeneidade, não é fácil de definir.


Imaginando uma definição muito simples, que diria que burgueses eram todos aqueles
que detinham os meios de produção e não eram originários de linhagens fidalgas ou
da nobreza local, estaríamos, por um lado, a colocar de parte os assalariados - como
era o caso dos funcionários do Estado -, assim como os profissionais liberais; por
outro, esqueceríamos muita da importância da pluri-actividade e de uma estrutura dos
rendimentos, normalmente, segmentada em várias áreas. Por fim, acabaríamos por
não dar a devida atenção às trajectórias, às disposições incorporadas, aos capitais
simbólico, cultural e social herdados pelos indivíduos e que contribuem de uma forma
decisiva para a posição dos indivíduos no espaço social e para a sua reprodução nas
gerações seguintes1.

Para analisar e estabelecer as distinções entre os estratos burgueses vamos


retomar uma divisão em vários grupos que estabelecemos num trabalho anterior2.
Como escrevemos então os meios burgueses estariam divididos em três grandes
fracções. A primeira formava o que podemos chamar de grande burguesia e incluía
quer um patriciado urbano de antigas famílias de negociantes, de dinheiro velho, quer
um mundo mais vivo de empreendedores de recente fortuna em ascensão
pronunciada. Quase ao nível destes últimos em termos de reconhecimento social, mas
com menor capital económico, embora, por vezes, possuindo capitais simbólicos,
sociais e escolares mais elevados, encontramos uma segunda fracção, a que
chamaremos classe média abastada; esta estava ligada às profissões liberais, ao
emprego público e ao desempenho de cargos políticos, podendo ter uma ligação
ocasional ao negócios, algum património fundiário e uma origem social em famílias
de antigos morgados e do patriciado urbano. À terceira fracção daremos o nome de
média burguesia ou classe média; ela era formada, no topo, por um estrato de
comerciantes médios, normalmente ligados à distribuição, algumas famílias
descendentes de filhos segundos de morgados e burgueses abastados relativamente
empobrecidos, mas ainda com a possibilidade de viver de pequenas rendas e negócios
ocasionais; abaixo destes ficavam os pequenos funcionários, empregados dos serviços

*
Instituto Universitário Europeu de Florença. Bolseiro de Doutoramento da FCT-MCES.
1
Para uma discussão em torno do conceito de meios burgueses e burguesia veja-se o clássico volume
dirigido por Jurgen Kocka e Allen Mitchell (eds.) (1993), Bourgeois Society in the Nineteenth Century
Europe, Oxford: Berg. Para Portugal ver Maria Antonieta Cruz (1999), Os Burgueses do Porto na
Segunda Metade do século XIX, Porto: Fundação Eng. António de Almeida.
2
Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas: Poder, Trajectórias, e Reprodução Social dos
Grupos Dominantes no Distrito de Angra do Heroísmo (1860-1910), Dissertação de Mestrado, Lisboa:
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

1
e todos aqueles que se localizavam nas fronteiras imprecisas entre a pequena
burguesia e as classes populares.

A caracterização destes grupos revela-se um trabalho relativamente difícil. As


fontes para determinar as fortunas dos principais negociantes, comerciantes,
industriais, donos e escassos administradores de empresas ou de sociedades, assim
como dos principais profissionais liberais, médicos e advogados, são pouco
numerosas. Tentaremos, portanto, reconstruir as fracções mais elevadas dos meios
burgueses de Angra a partir da informação indirecta que possuímos relativamente a
parte dos seus elementos, retirada em grande medida de inventários orfanológicos e
genealogias. Como corolário deste análise veremos como o senso comum oitocentista,
que nos fala de uma Terceira de touros e fidalgos pobres, esquecia uma cidade que
possuía um sector burguês rico e influente e um giro comercial reduzido, mas
desembaraçado. Ao nível das pequenas vilas poderemos observar como a terra
permaneceu o grande critério da riqueza, apesar da relativa redistribuição da
propriedade realizada através da emigração para os EUA. Nestes mesmos espaços, as
classes médias locais associadas ao comércio, aos serviços e à administração pública
foram tomando um papel crescente, perante a escassez e o abandono dos
protagonistas oriundos dos grupos terratenentes tradicionais3.

O conhecimento mais vasto e exacto da origem social dos burgueses de Angra


permitir-nos-á perceber até que ponto existia uma continuidade social importante
dentro deste grupo, ou se, pelo contrário, a mobilidade era vigorosa e a burguesia
local constituída por homens que subiram a vida a pulso nos negócios do pequeno
retalho, do comércio e da navegação. Ficaremos também a conhecer quem dominava
os negócios na praça de Angra e qual era a origem social dos principais negociantes e
membros das classes médias abastadas. No entanto, questões importantes sobre as
suas trajectórias no comércio ficarão para um outro trabalho. A partir da presente
amostra não será possível saber se os principais protagonistas tinham transitado do
comércio retalhista para os grandes negócios; se estavam ligados à exportação dos
principais produtos agrícolas ou tinham a sua base na importação e distribuição de
mercadorias, ou ainda se os articulavam; se os interesses dos grandes proprietários e
dos grandes negociantes eram os mesmos, ou se entravam em conflito, e mesmo
dentro do sector comercial que prováveis fracturas poderiam suceder entre pequenos e
grandes, ricos e remediados. Para perceber com mais exactidão os meios burgueses e
as suas inserções e estratégias sociais e económicas seria necessário conceber um
outro olhar, mais profundo, mais alargado e de preferência quantificado, sobre, pelo
menos, algumas das principais firmas e empresas do distrito, tentando, sem cair na
caracterização meramente monográfica, avaliar a sua origem, o seu percurso, a sua
duração, o seu ciclo de vida e a passagem de testemunho entre as diferentes gerações4.
Porém, estas são intenções que, de momento, apenas podemos satisfazer parcialmente.

3
Ver Paulo Silveira e Sousa (2003), “Elites e espaços políticos locais na segunda metade do século
XIX: um estudo sobre os concelhos do distrito de Angra do Heroísmo”, Boletim do Instituto Histórico
da Ilha Terceira, no prelo.
4
Cristophe Charle (1978), “Les Milieux d’Affaires dans la structure de la classe dominante vers 1900”,
Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 20-21, p. 96.

2
2 - Grandes negociantes e comerciantes: o capital, a importação, a exportação e a
distribuição

O médio e grande comércio estava instalado nas principais vilas e, sobretudo,


na cidade capital de distrito: urbanidade e negócios ligavam-se estreitamente. Na
segunda metade do século XIX, a traça geométrica da cidade de Angra, as suas
amplas ruas e praças davam-lhe um ar de relativa prosperidade. Mas, quando
comparado com Ponta Delgada, o seu movimento comercial permaneceu
relativamente fraco, as indústrias escassas e o porto com uma reduzida afluência de
tráfego internacional. A cidade parecia adormecida, remetida para um papel
secundário na pouco integrada economia açoriana que se centralizava, cada vez mais,
em São Miguel. Contudo, no final do século, Angra possuía já um número razoável de
estabelecimentos, não só em dimensão como em qualidade dos produtos. As lojas de
fazendas, de artigos de mercearia, por atacado e a retalho, os estabelecimentos de
ferragens, relojoarias e ourivesarias, espalhavam-se pelas principais ruas como em
qualquer cidade de província do País.

Em Angra, as transacções do grande comércio envolviam já quantias


importantes. A ligação à importação e exportação de bens levava a que fosse
necessário um abundante capital fixo, alguns bens de raiz para armazenar produtos,
um recurso recorrente ao crédito, ligações eficazes com casas comerciais do exterior,
uma relação forte com o sector dos transportes e uma atenção permanente às
oscilações dos mercados e às estratégias a tomar para conseguir manter-se bem
integrado nas conjunturas instáveis. Para fazer funcionar bem toda esta actividade e
mantê-la a níveis estáveis e compensadores era preciso jogar com os mercados
externos, com as representações e com o sector dos transportes, fugindo de uma
especialização excessiva num qualquer ramo do comércio. Ao mesmo tempo,
tentavam-se outras participações em actividades económicas vizinhas como o
investimento em prédios rústicos e urbanos, na pequena e média indústria local e nos
negócios do crédito5. Esse era o jogo protagonizado por um grupo vasto de
negociantes e comerciantes cuja influência se estendia, ainda, às pautas municipais, à
pequena política, à junta geral, às Misericórdias e instituições de caridade e às caixas
económicas6.

5
Podemos pensar na linha de autores como Schumpeter que o empresário é apenas aquele que é capaz
de inovar e de conceber novas linhas estratégicas para os negócios: veja-se Joseph Schumpeter (1944),
Capitalism, Socialism and Democracy, Londres: Allen & Unwin. No entanto, o que muitas vezes
parece rotina é tão somente cautela e adaptação a conjunturas económicas bastante oscilantes. Nesse
sentido, preferimos a utilização da expressão investidores, em vez de empresários. Muitos podem
investir na indústria ou nos negócios e não ter a postura agressiva, profissional e de risco que
normalmente associamos ao empresário. Mas fica-nos a ideia de que em toda esta discussão se poderá
estar a cair na configuração dos empresários oitocentistas à luz de ideias e representações bem mais
contemporâneas, acabando por cair ou num cronocentrismo conceptual, ou na velha ideia de uma
burguesia incipiente e com pouca vontade de arriscar os seus capitais.
6
Para dados mais consistentes sobre estas actividades vejam-se dois estudos meus já anteriormente:
publicados Paulo Silveira e Sousa (2000), “As actividades industriais no distrito de Angra do
Heroísmo, 1852-1910: Um mundo de possibilidades escassas”, Arquipélago (série História), IV, 1, pp.
113-172, e (2002), “Gerir o dinheiro e a distinção: as caixas económicas de Angra do Heroísmo e os
seus corpos dirigentes (1845-1915)”, Arquipélago (série História), vol VI, nº 1, pp. 293-346.

3
Nas freguesias da Terceira, na vila da Praia da Vitória ou nas pequenas ilhas,
como São Jorge e a Graciosa, o comércio permaneceu um mundo diferente e ainda
mais particular. Acima da pequena troca, por vezes monetarizada, entre os
camponeses, estavam os comerciantes estabelecidos nos principais lugares das
freguesias, explorando uma taberna e uma pequena venda que distribuía localmente
alguns produtos adquiridos nas vilas ou na cidade de Angra, caso se estivesse na Ilha
Terceira. Era um pequeno comércio multifacetado, onde se procurava vencer a
pequenez do mercado e do consumo pela diversidade dos produtos oferecidos e pelos
reduzidos stocks: características que afectavam a maior parte do comércio insular.
Estes pequenos comerciantes, de socos nos pés e poucas letras, formavam ao nível das
pequenas comunidades um grupo com algum capital, mas menos envolvido nas lutas
políticas que os proprietários da terra. Muitos deles oscilavam entre a posse de alguns
recursos e a possível queda para o campesinato e para a emigração. Os seus sonhos
centravam-se, por isso, na reconversão do dinheiro em terras, e numa instalação a
prazo como mais um dos proprietários e lavradores abastados do lugar. No entanto,
mesmo depois de mais ricos e influentes, podiam continuar a ser os donos de um
pequeno estabelecimento. Em freguesias mais destacadas e populosas, alguns destes
comerciantes podiam ser, igualmente, médios proprietários, filhos segundos de
antigos oficiais da milícia, com um património fundiário já razoável, um saber letrado
consolidado e um poder político que lhes permitia serem galopins de peso no meio
local.

Nas vilas e entre os principais negociantes é que podemos encontrar um grupo


que não sendo tão rico como os grandes morgados, em certos casos lhes ficava
próximo. Entre os comerciantes das vilas, por vezes, encontrávamos alguns filhos e
netos de boas famílias que juntavam ao comércio o rendimento da terra, que era ainda,
sem sombra de dúvidas, o grande capital, a principal fonte de riqueza e de
acumulação. Simultaneamente, era relativamente comum que um grande proprietário
e criador de gado ou exportador de vinhos, vindo de um ramo secundário de uma
família de morgados, fosse um importante usurário local. No entanto, o seu estatuto
nada tinha que ver com o mundo do pequeno comércio das periferias. Mas se bem que
claramente abaixo do grupo dos morgados, os pequenos homens do negócio eram
presença constante nas vereações e nas mesas das Misericórdias e confrarias, embora
o seu acesso às provedorias tenha sido mais lento, formando peças importantes na
segunda linha da política dos concelhos. O seu tempo só viria com a viragem do
século7. O peso económico e político que detinham não lhes permitia integrarem-se na
elite de distrito ou sequer aspirar a relações de parentesco com o círculo restrito dos
morgados locais, alguns dos quais eram ainda muito ricos, mesmo quando
comparados com os seus congéneres de Angra8.

Este artigo irá concentrar-se nos grandes negociantes, comerciantes abastados


do sector do retalho, usurários e capitalistas enriquecidos após anos no comércio

7
Veja-se Paulo Silveira e Sousa (1994), Território, Poder, Propriedade e Elites Locais: a Ilha de São
Jorge na Segunda Metade do Século XIX, tese de licenciatura em Sociologia apresentado no ISCTE,
Lisboa: policopiado. Para listas dos provedores da Misericórdia da vila das Velas cf. João Gabriel de
Ávila (1993), A Vila das Velas na História das suas Ruas. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da
Ilha Terceira, pp. 182-183.
8
Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas: Poder, Trajectórias, e Reprodução Social dos
Grupos Dominantes no Distrito de Angra do Heroísmo (1860-1910), sobretudo o capítulo II.

4
açoriano ou nas praças brasileiras, que se concentravam em Angra e integraram o
grupo compósito que constituía a elite de distrito. Infelizmente, as informações sobre
os nomes mais importantes do negócios das outras vilas da Terceira e ilhas vizinhas
são ainda mais difíceis de obter.

As figuras de topo da burguesia formavam um grupo de indivíduos ligados ao


comércio de grosso trato - mas que podiam, igualmente, possuir interesses directos
nas redes de distribuição -, à importação de bens de consumo e à exportação de
produtos agrícolas em grande escala, à usura e ao crédito, à compra e venda de
propriedades ou de bens mobiliários, e às representações nos sectores da banca, dos
seguros ou da navegação9. As relações com estas actividades eram feitas em doses
desiguais consoante os negociantes e tinham muitas vezes que ver com a trajectória da
sua casa e da sua fortuna, assim como com a trajectória das próprias oportunidades de
negócio. Podia-se começar ligado ao comércio e à navegação e acabar ligado à banca,
à actividade creditícia ou aos investimentos em indústrias como a do álcool. Se a
ligação à distribuição, à importação e exportação eram pontos de passagem
incontornáveis, o ponto de chegada numa estratégia de sucesso era frequentemente o
crédito, a acumulação de capital e de bens fundiários urbanos e rurais. No entanto,
dada a necessidade de diversificar actividades e interesses, não é de estranhar que
encontremos nos patrimónios dos grandes negociantes armazéns, granéis, e por vezes
lojas onde vendiam por grosso e a miúdo. Estes negociantes abasteciam os mercados
urbanos, importavam e distribuíam bens de consumo produzidos no exterior,
compravam à comissão e à consignação as colheitas de laranja e de cereais aos
principais proprietários, adiantando-lhes os pagamentos. Os mais poderosos
chegavam a formar redes associados a outros comerciantes ou grandes negociantes
noutros pontos do arquipélago, sendo, muitas vezes, os representantes das principais
companhias de navegação, quando não eram mesmo proprietários de navios.

Quando falarmos de comerciantes referimo-nos a um grupo que lhes ficava


imediatamente abaixo na estrutura de poder e de riqueza do sector e que englobava os
donos das pequenas lojas que formam a rede de distribuição, podendo funcionar
também como pequenos prestamistas, mas cuja capacidade económica não lhes
permitia entrar nos negócios em grande escala com o exterior da ilha. Como notou
Jorge Pedreira para os grandes negociantes da praça de Lisboa nos final do Antigo
Regime “o peso dos créditos de diferentes proveniências e a importância menor das
mercadorias no conjunto dos seus patrimónios mostram que a finalidade das
operações que conduziam era, antes de mais, a reprodução e a acumulação do capital
e, não a reprodução das existências: nisso se distinguia o grosso trato do comércio a

9
Para os negociantes açorianos e em especial da ilha de São Miguel veja-se Fátima Sequeira Dias
(1996), “Os empresários micaelenses no século XIX: o exemplo de sucesso de Elias Bensaúde (1807-
1868)”, Análise Social, vol XXXI, nº 136-137, pp. 437-464, e (1996b), Uma Estratégia de Sucesso
numa Economia Periférica: a Casa Bensaúde e os Açores (1800-1873), Ponta Delgada: Jornal de
Cultura. Para o Antigo Regime e para a praça de Lisboa vejam-se os trabalhos de Jorge Miguel
Pedreira, por exemplo, (1996), “Tratos e contratos: actividades, interesses e orientações dos
investimentos dos negociantes da praça de Lisboa (1755-1828)”, Análise Social, nº 136-137, pp. 355-
379 assim como (1995), Os Homens de Negócios da Praça de Lisboa, de Pombal ao Vistismo (1755-
1820), Dissertação de Doutoramento em Sociologia Histórica, Lisboa: FCSH-UNL, policopiado.

5
retalho que alguns homens de negócio ainda praticavam mas em que não
concentravam as suas energias”10.

O mundo comercial de Angra, à semelhança do de Ponta Delgada, era


dominado por um “universo repleto de patrões de minúsculas empresas votadas ao
comércio retalhista não especializado, com fracos recursos em capital”11. No entanto,
na capital terceirense, esta realidade atingia uma escala ainda mais reduzida, com um
núcleo bem mais pequeno e perfeitamente identificável pelo nome do dono da loja,
pela sua alcunha, ou pela sua localização na cidade. Contudo, tal facto não impediu
que alguns comerciantes tivessem conseguido triunfar e criar firmas e casas que se
reproduziram ao longo de gerações, tornando-se pequenos potentados no comércio
local. Infelizmente, não podemos descortinar quais as práticas de gestão do capital e
dos stocks destas casas, nem sequer saber se triunfaram por terem sido capazes, na
linguagem schumpeteriana, de introduzir inovação12.

O grupo dos grandes negociantes era caracterizado por não possuir segmentos
de actividade muito especializados, a nosso ver não só uma marca dos muito ricos,
como também uma característica própria de uma economia periférica, com um
mercado estreito e uma procura tradicional. No entanto, o mundo dos comerciantes
locais, apesar de mais especializado, não deixava de ter alguma diversificação,
tentando-se ampliar as actividades para vários segmentos de mercado, para vários
produtos, ou para o investimento na terra ou em especulações monetárias de pequena
escala. A diversificação das actividades, em que estavam envolvidos, parece-nos ter
sido uma estratégia inteligente para combater as possibilidades oscilantes que a
economia local oferecia, uma forma de dominar melhor os circuitos em que a sua
actividade mercantil se encontrava inserida, e uma maneira de dispersar os riscos
envolvidos. Se as actividades ligadas ao capital e ao crédito eram igualmente
praticadas nos dois universos, a ligação mais pronunciada ao sector da importação e
exportação em grosso, à navegação e às especulações com moeda, assim como uma
maior base imobiliária estabelecem as principais fronteiras entre estes dois grupos. Do
mesmo modo, o comércio de grosso trato e o comércio de retalho não se confundiam
ao nível dos seus protagonistas e do estatuto social que os rodeava13. No caso de
Angra, os grandes negociantes casavam já, desde pelo menos, os finais do Antigo
Regime, com membros da elite terratenente tradicional. Se bem que não fosse comum
o herdeiro de um grande morgado associar-se à filha de um grande negociante, era
normal que no mercado matrimonial das elites, os negociantes e os seus descendentes
se consorciassem com os filhos e filhas segundos das grandes casas vinculares. Esta
estratégia de ligação era ainda auxiliada pelos elevados investimentos em bens de
raiz. Ao contrário da velha ideia de territorialização e de transformação da burguesia
em elites de recorte tradicional, onde o importante era o lazer e as formas de
consumo, esta era, simplesmente, uma das melhores maneiras de diversificar
actividades e de apostar num sector que trazia não só segurança, como bons
rendimentos. Esta aposta no imobiliário passava quer pela compra de foros a trigo,

10
Jorge Miguel Pedreira (1996), “Tratos e contratos…”, Análise Social, nº 136-137, p. 358.
11
Fátima Sequeira Dias (1996), “Os empresários micaelenses no século XIX…”, p. 437.
12
Joseph Schumpeter, 1978 (1912), Teoria del Desarollo Economico, Mexico: Fondo de Cultura
Economica.
13
Idem, Jorge Miguel Pedreira (1996), “Tratos e contratos”..., p. 358.

6
quer de domínios úteis, de propriedades em domínio pleno e de prédios urbanos na
cidade de Angra ou de quintas de recreio e produção de laranja nos seus arredores.

Os investidores não estavam retraídos, nem a burguesia da cidade, os grandes


negociantes e grandes proprietários apostaram apenas na terra e no comércio com o
exterior, vivendo uma vida suave de rentistas alheados. Perante os condicionalismos
que os investimentos na terra e na indústria colocavam, não é de espantar que os
dinheiros aplicados no sector comercial, na importação e no desenvolvimento de
sociedades bancárias tenham crescido, sem que a sua articulação com a agricultura
aumentasse. A dispersão insular e a fractura entre os mercados de cada ilha levavam a
que a actividade de importação e exportação, de distribuição e comercialização dos
produtos se desdobrasse nas várias ilhas, engrossando um elevado número de
pequenas e médias casas comerciais. Dos capitais assim acumulados surgiram
algumas casas de relativo tamanho, que se caracterizavam por apostar em diferentes
actividades.

No entanto, quando comparados com os negociantes de Ponta Delgada, os


angrenses eram parentes pobres. Se bem que se estabelecessem relações com praças
estrangeiras, pensamos que o movimento devia ser relativamente pequeno, caso
saíssemos da escala local. No seio deste grupo acabavam por escassear as
competências, as redes de conhecimentos, os capitais e mesmo os produtos de
exportação ou importação que permitiriam a entrada em grande escala dos seus
membros no comércio nacional e internacional. No entanto, esta é mais uma hipótese
que só poderá ser confirmada por novos e mais intensivos trabalhos.

O comércio das pequenas ilhas permaneceu um mundo diferente que


continuou a reger-se por três princípios básicos: a garantia de autoabastecimento, a
concentração de todas as exportações nos principais portos de relevo internacional, e a
distribuição das mercadorias importadas também efectuada a partir destes centros.
Embora se tivessem vindo a atenuar, estas marcas permaneceram fortes durante todo
o século XIX. A pequenez dos mercados, a escassez de bons portos, a reduzida escala
dos consumo de produtos importados, e as dificuldades em se integrarem nas
dinâmicas do comércio internacional, após a queda da exportação da laranja e dos
cereais, dificilmente poderiam permitir o estabelecimento de trocas directas com o
exterior numa escala relativamente ampla.

Um dos negócios mais importantes e que diferenciavam os grandes


negociantes dos comerciantes era a importação e exportação em larga escala e os
negócios da navegação. Estes investimentos podiam ser feitos por conta e risco de
uma grande casa comercial ou estar mais repartidos. Tal como refere Jorge Pedreira
para os negociantes lisboetas do final do antigo regime, a posse de quinhões em
navios era comum, sendo “corrente que a sua propriedade fosse repartida, o que
funcionava como meio de economizar capital e reduzir os riscos”14. Nestes
investimentos os grandes comerciantes eram acompanhados por outras fortunas. Em
1840, o 1º visconde de Bruges, então ainda senhor de uma vasta fortuna e envolvido
nos negócios da exportação de cereais e laranja, era proprietário de um patacho que
ostentava o seu nome e que lhe servia para colocar as suas produções nos mercados

14
Idem, Jorge Miguel Pedreira (1996), “Tratos e contratos”..., p. 370.

7
ingleses ou em Lisboa. Anos mais tarde, no princípio dos anos de 1860, o inventário
do comendador António da Fonseca Carvão Paim da Câmara mostrava-nos como este
estava envolvido na exportação de laranja e cereais, recebendo tais produtos à
consignação. Nestas mesmas décadas, outro navio, o brigue Terceirense, que antes
pertencera ao negociante António José Rodrigues Vieira Fartura, estava agora nas
mãos de uma sociedade de vários capitalistas da ilha, com o mesmo uso15. Por sua
vez, António Pedro Simões, negociante, armador e homem muito ligado ao trato
comercial com o Brasil era proprietário do lugre Flor de Angra16. Se até à década de
1860 o porto de Angra ainda tinha vários navios, a era da navegação a vapor e os
contratos de monopólio com a Empresa Insulana de Navegação, bem mais equipada e
dotada de um generosos subsídio estatal, acabaram por reduzir a menos de meia dúzia
os navios. Em 1885 a livre cabotagem entre os portos das ilhas e entre estes e os do
continente é uma das medidas mais pedidas para fomentar o comércio local. Segundo
o jornal regenerador A Terceira o sector da navegação na ilha achava-se numa
profunda decadência: de 15 navios que existiam há cerca de 20 anos apenas restavam,
nesse ano 3. Mas se a navegação a vapor e o monopólio acabaram com a velha frota à
vela e fizeram diminuir as hipótese de negócios na cabotagem entre as ilhas e o
continente, mesmo assim surgiram novas possibilidades de fazer dinheiro.

Numa ilha e no seio de um arquipélago periférico os negócios ligados ao


comércio marítimo, ao sector dos transportes, a tudo o que se importava e exportava
eram, de certo, os mais rentáveis. Mas o principal centro económico do arquipélago
estava sediado em Ponta Delgada e o porto de Angra não estava dotado das melhores
condições físicas e das melhores infraestruturas para ser um importante ponto de
escala na navegação transatlântica tal como sucedia com a ampla baía da cidade da
Horta. Contudo, os grandes negociantes nunca deixaram de reivindicar junto do
centro político e nos níveis distritais com vista a melhorar as infraestruturas e a
adequar ou reduzir a carga fiscal e a burocracia alfandegária17.

Se os grandes negociantes de Angra deixaram de ser donos de navios,


passaram a ser os agentes das todo-poderosas empresas de navegação. Uma vasta rede
de agentes locais era indispensável para garantir a ocupação com carga e passageiros
dos navios e para proceder ao embarque atempado e ao abastecimentos dos vapores.
Os agentes das principais companhias eram normalmente importantes negociantes,
ligados a outras actividades, muitas vezes com casa comercial própria. Eles estavam a
par do que se passava no tráfego e no comércio internacional, desfrutavam de fortes
ligações aos mercados externos onde eram reconhecidos e faziam uso de ampla
publicidade nos jornais locais. A captação, organização e apresentação dos

15
BPARAH, Inventário de António Tomé da Fonseca Carvão Paim da Câmara/ Maria Isabel da
Fonseca Ornelas Bruges, maço 738, ano de 1864; e Pedro de Merelim (1974), A Laranja na Ilha
Terceira...
16
O Boletim Oficial do Distrito de Angra do Heroísmo, nº 104 de 23-10-1862, p. 606 diz-nos que
António Pedro era o capitão da Escuna União Vencedora que partia nessa dias para a Terra Nova. No
mesmo periódico nº 34 de 27-08-1863, p. 137 é já o capitão do Brigue Escuna Flor de Angra.
17
Para São Miguel, cf. Fátima Sequeira Dias (Dir.) (1994), Em Defesa dos Interesses da Ilha de São
Miguel, As Súplicas da Associação Comercial de Ponta Delgada à Monarquia (1835-1910), Ponta
Delgada: Edição da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada; e Fátima Sequeira Dias (Dir.)
(1996), Em Defesa dos Interesses da Ilha de São Miguel, Relatórios Anuais da Mesa da Direcção
(1835-1910), Ponta Delgada: Edição da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada.

8
passageiros ficava à sua guarda, dando ocasião para outros negócios relacionados com
as constantes correntes de emigração18.

Quadro 1 - Companhias de Navegação e seus agentes na ilha Terceira na Segunda


Metade do Século XIX

Agências de Vapores Agentes Ano


Companhia de Navegação Tomé de Castro Sénior 1873
Transatlântica
Companhia Espanhola de Frederico A. de Vasconcelos 1884-1885
Navegação
Dominion Line Alfredo de Mendonça 1904, 1905
White Star Line Alfredo de Mendonça 1908, 1913
Companhia Hamburguesa Henrique de Castro 1913
Prince Line Limited Amadeu Monjardino 1908
Fabre Line Manuel Vieira Mendes da Silva 1908, 1913
Companhia Madeirense e Açoriana António Pedro Simões 1908
de Navegação a Vapor
Empresa Insulana de Navegação Jacinto Inácio dos Reis 1871-1881
Joaquim José de Sousa Freitas 1881-?
João Nogueira de Freitas ?-1904
Tomé de Castro Jr 1904-1913
Linha de Vapores Portugueses para João Carlos Silva 1904-1905
New York e New Bedford
Fontes: Almanaque Açores para 1904, 1905, 1908, e 1913.

A maior parte dos agentes referenciados no quadro 1 eram ou homens


importantes e já muito abastados, ou membros prestigiados e em ascensão na praça de
Angra, pertencendo a famílias com uma antiga associação a este sector. De quase
todos eles falaremos nas páginas seguintes. A ligação à navegação era, de facto, um
das áreas de investimento chave numa estratégia de expansão dos negócios. A
Companhia Espanhola de Navegação, de que era agente Frederico Augusto de
Vasconcelos Sénior, viajava para Boston e Nova Iorque, destino de uma parte da
emigração do distrito que até ao início do século XX se deslocava, esmagadoramente,
para as terras quentes do Brasil. Todas estas companhias tinham ligações
privilegiadas com os destinos da emigração açoriana. Na verdade, a emigração
estabelecia um conjunto alargado de relações económicas com outros sectores que
começavam ainda antes da partida, durante as operações exigidas para o
financiamento da deslocação, prolongando-se muitas vezes no tempo através das
remessas de dinheiro19.

Em ilhas onde a emigração foi um traço que não só permaneceu mas se


acentuou à medida que se caminhava para o século XX e onde a navegação assumia
um papel central nos negócios dos principais protagonistas locais, os dinheiros que se
emprestavam, o movimento dos que partiam, as quantias remetidas para os familiares

18
Joaquim Costa Leite (1996), “Os negócios da emigração (1870-1914)”, Análise Social, nº 136-137,
pp. 381-396.
19
Joaquim da Costa Leite (1996),”Os negócios da emigração (1870-1914)”, pp. 381-396. E Paulo
Silveira e Sousa (1995), "Emigração e Reprodução Social no Contexto Açoriano: o caso da ilha de São
Jorge na segunda metade do século XIX", Islenha, nº17, Funchal, DRAC, pp. 31-49.

9
na terra de origem, comportavam um grupo de actividades que normalmente tem
estado arredado das investigações. Tal como sugere Joaquim Costa Leite, os
engajadores não eram propriamente um conjunto de usurários marginais no seio das
suas comunidades. Pelo contrário, eles formavam um grupo onde se concentravam
comerciantes e proprietários abastados, funcionários públicos e mesmo sacerdotes.
Directamente associados a esta actividade estavam os agentes locais das principais
companhias de navegação, numa teia de interesses que também abrangeria os
representantes em Angra e mesmo a própria companhia20.

Para além destes negócios, muitos dos homens da burguesia empreendedora


de Angra estabeleciam relações comerciais próximas com as grandes casas de
fidalgos e morgados. O barão de Noronha tinha o seu trigo vendido à consignação a
João de Freitas, que era ainda seu credor. A viscondessa de Noronha tinha várias
hipotecas a Frederico Augusto de Vasconcelos, a quem mais tarde vendeu vários
prédios21. Tal como fizemos menção num estudo precedente, o crédito e as hipotecas
a casas de morgados e fidalgos já entradas em vorazes espirais de dívidas pode ter
sido um excelente negócio associado a estratégias de transferência imobiliária, tal
como sucedeu, a uma outra escala, no Continente com a aristocracia de corte e as
grandes propriedades do sul22.

Entre os grandes negociantes uma das marcas de fronteira social que os


aproximava dos grandes morgados e os separava dos comerciantes, era a posse de
quintas de recreio e cultivo de laranja no Caminho do Meio ou em São Carlos, zona
aristocrática por excelência dos arredores de Angra. Estas quintas não se ficavam por
uma confortável residência e jardins ou pomares, podendo envolver uma componente
agrícola mais forte. No entanto, tratava-se aqui de proceder à chamada reconversão
dos capitais, fazendo-se com que o capital económico se transformasse em capital
simbólico e capital social. A distinção proporcionada por um padrão de vida nobre era
meio caminho andado para entrar no grupo mais restrito da elite terceirense23.

A reconversão continuada dos recursos económicos, a imersão num estilo de


vida onde o lazer e o tempo livre jogavam papéis centrais e a partilha de espaços e
práticas de sociabilidade irão transformando, ao fim de uma ou duas gerações, parte
do grupo dos grandes negociantes, colocando-os num patamar mais alto a que já
chamámos patriciado urbano. Ao nível das categorias da época podemos ver bem essa
passagem, quando estes grandes burgueses deixam de ser denominados por
negociantes e passam a ser classificados como proprietários, vivendo já das rendas da
terra e do crédito, mantendo uma ligação mais ocasional ao comércio. Para que a
passagem para o patriciado urbano pudesse englobar uma completa integração na elite

20
Joaquim da Costa Leite (1996), “Os negócios…”, pp. 383 e 389-391. Para uma descrição do papel e
da posição social dos engajadores das comunidades rurais açorianas ver Ernesto Rebelo (1885), “Notas
açorianas”, parte IX, “No mar”, in Arquivo dos Açores, vol VII, Ponta Delgada: Tip. do Arquivo dos
Açores, pp. 137-142.
21
BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 758, ano de 1872, maço 790, ano de 1880.
22
Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas…, especialmente o capítulo II. Para o caso do
Alentejo ver Helder Adegar da Fonseca (1996), O Alentejo no Século XIX: Economia e Atitudes
Económicas, pp. 252-272.
23
Para um maior desenvolvimento destas questões ver Paulo Silveira e Sousa (2004), “As elites, o
quotidiano e a construção da distinção no distrito de Angra do Heroísmo durante a segunda metade do
século XIX”, Arquipélago (série História), no prelo.

10
do distrito convinha que ela decorresse num processo relativamente longo, que durava
duas ou três gerações. No caso da passagem ser feita de forma mais rápida, o burguês
nunca conseguiria fazer desaparecer a aura embaraçosa de novo rico ou de
“brasileiro” que pairava sobre si. Ao contrário do que pode sugerir um primeiro olhar,
o patriciado urbano era um grupo bastante móvel. Se nas décadas de 1860 e 1870 ele
agregava as famílias abastadas ligadas ao comércio da laranja e dos cereais, no final
do século ele juntaria as fortunas do álcool. Na verdade, havia sempre novo dinheiro a
ser reconvertido e herdeiros a tentarem integrar-se nas elites, fosse pelo casamento,
práticas culturais e de sociabilidade, desempenhos políticos ou elevação da formação
escolar. Ao mesmo tempo que esse dinheiro novo se elevava, algum do dinheiro velho
começava a desvalorizar-se e a repartir-se pelos herdeiros. E aí as famílias mais
antigas tinham que escolher entre casamentos com filhos segundos de fidalgos e
morgados, com profissionais liberais ou com negociantes em ascensão. A outra
hipótese era a aposta na escolarização superior e a pequena queda para posições na
classe média alta, onde, mesmo assim, ainda tinham boas hipóteses de se reproduzir
enquanto elite. Se uns subiam, outros desciam, mas quer as subidas quer as descidas
eram lentas e negociadas.

Um trabalho mais detalhado sobre a elite dos negócios no distrito de Angra


poderia concentrar-se intensivamente na Associação Comercial desta cidade, tentando
caracterizar os seus membros, a sua origem e trajectória económica, social e
política24. Tal como em Ponta Delgada e na Horta, a maior parte dos grandes
negociantes e interessados nas transacções do sector importador e exportador estavam
concentrados na Associação Comercial de Angra. Fundada em 1852, 17 anos mais
tarde que a sua congénere de Ponta Delgada, a terceira mais antiga do País, ela
agremiava todos os comerciantes e proprietários exportadores, pretendendo assim
representar o conjunto do corpo comercial da cidade25. O critério de admissão estava
longe de ser circunscrito. Pequenos lojistas, boticários, grandes negociantes do
import-export, que recebiam as colheitas à consignação, proprietários de navios,
agentes das empresas de navegação, donos de oficinas e pequenos industriais, grandes
proprietários ligados à laranja, aos cereais ou ao gado, cambistas e pequenos
usurários, tudo aqui podia caber. No entanto, o pagamento de quotas e o carácter
elitista das suas direcções devem ter criado uma certa selecção, ficando o conjunto
dos seus sócios restrito aos principais lojistas, aos grandes negociantes, aos principais
proprietários de navios e agentes de navegação, e aos grandes proprietários locais
mais dinâmicos e com interesses directos nas principais exportações de produtos
agrícolas. A agregação em Associações deste género era não só uma forma destes se
protegerem da intervenção do Estado, mas sobretudo uma forma de o influenciar, a si
e aos seus agentes. As grandes discussões surgiam normalmente associadas à questão
dos cereais. E mais do que um problema de doutrina política, o proteccionismo ou
livre-cambismo eram reclamados pelos agentes económicos de acordo com as

24
Para o papel político da Associação Comercial de Ponta Delgada cf. Fátima Sequeira Dias (Dir.)
(1994), Em Defesa dos Interesses da Ilha de São Miguel, As Súplicas da Associação Comercial de
Ponta Delgada à Monarquia (1835-1910); e Fátima Sequeira Dias (Dir.) (1996), Em Defesa dos
Interesses da Ilha de São Miguel, Relatórios Anuais da Mesa da Direcção (1835-1910)…
25
Estatutos da Associação Comercial de Angra do Heroísmo, Angra: Tip do Visconde de Bruges.
Infelizmente a documentação da Associação Comercial depositada na BPARAH não contém quaisquer
registos para o nosso período, iniciando-se em 1914.

11
conjunturas externas e com a capacidade de integração das economias locais nos
mercados mais vastos.

Na década de 1860, o gabinete de leitura da Associação Comercial, cujas


paredes estavam ornamentadas com mapas geográficos, recebia os Boletins do
Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, os jornais da ilha, os jornais
comerciais de Lisboa e Porto, o Shipping Mercantil de Londres e os Mapas Gerais
Estatísticos do Comércio de Portugal e Ilhas, fazendo ainda o registo do movimento
comercial do porto26. Como podemos ver o seu peso era central para o funcionamento
da economia do principal centro do distrito e as suas direcções deviam ter um peso
político considerável no meio local, servindo como o lugar por excelência para
contestar taxas e impostos municipais. No princípio deste século passaram pelas
direcções da Associação homens como José Júlio da Rocha Abreu, abastado
negociante ligado ao comércio, às representações de casas bancárias e à gestão das
caixas económicas locais - cuja casa se tornará um potentado local e cuja trajectória
ilustraremos adiante -, Jacinto Carlos da Silva, pai do visconde da Agualva e uma das
primeiras famílias da burguesia de Angra, agente de várias companhias de navegação
e primo de Jacinto Cândido da Silva Sénior, ou Alfredo de Mendonça um comerciante
abastado, neto de um grande capitalista brasileiro, cunhado de Jacinto Sénior e
igualmente o agente de várias companhias de navegação e proprietário da Loja
Havaneza27.

O peso político de alguns grandes negociantes era importante e muitos deles


podem ser encontrados nas pautas das vereações camarárias, nos conselhos de
distritos e nas juntas gerais, instituições onde se jogava a política de importação e
exportação de cereais. A sua intenção de influenciar os mercados era aqui um facto
iniludível, embora tivesse que lutar neste palco com outros actores. Algumas lojas e
as boticas eram, simultaneamente, locais de encontro e de discussão política, onde se
faziam e desfaziam pequenos acordos e reputações. Elas não precisavam de pertencer
a destacados burgueses, bastava serem um lugar central e terem um dono loquaz que
agregasse um conjunto de amigos e visitantes ocasionais que podiam, inclusive,
pertencer à elite mais restrita da cidade28.

O próximo ponto pretende caracterizar os principais empresários e negociantes


do distrito. Se ainda nos faltam os dados necessários para uma visão simultaneamente

26
Félix José da Costa (1867), Angra do Heroísmo, Ilha Terceira (Açores). Os seus títulos, edifícios,
estabelecimentos públicos. Angra: Tip. do Governo Civil, p. 12-13.
27
Almanach Açores para 1904, Angra: Tip. Sousa e Andrade, 1903, p. 4. Outra hipótese para perceber
os negócios e o comércio do distrito seria possível caso se localizasse a documentação do Tribunal
Comercial, que não se encontra agregada à da Associação Comercial de Angra depositada na
BPARAH. Quanto ao tribunal de Comércio apenas sabemos que, em 1886, foram eleitos para a sua
composição: Gregório Carlos Sanches Franco, Frederico Augusto de Vasconcelos, João Carlos da
Silva, Guilherme Martins Pinto, José Júlio da Rocha Abreu, Bento José de Matos, José Luís de
Sequeira, Francisco José da Costa Vidal, José dos Reis Fisher. Uma amostra suficientemente ampla
para incluir pequenos negociantes como Gregório Carlos Sanches Franco, comerciantes influentes
como Guilherme Martins Pinto ou Francisco José da Costa Vidal, grandes negociantes como Frederico
Augusto de Vasconcelos e João Carlos da Silva, e homens de carteira diversificada como José Luís de
Sequeira, ganadeiro, negociante, prestamista, exportador de gado e industrial de lacticínios.
28
Vejam-se as descrições destas tertúlias políticas em casas de pequenos lojistas em Francisco
Lourenço Valadão Júnior (1964), Evocando Figuras Terceirenses, Angra: Tip. Angrense, pp. 59-65.

12
quantificada e panorâmica deste grupo, podemos de qualquer forma encontrar no seu
desenho algumas das mais destacadas dinastias de homens de negócios e arriscar uma
primeira abordagem mais global.

3 - As Dinastias dos Negócios

A pertença a certos grupos de origem social inclina os seus membros para uma
familiaridade com a gestão de patrimónios relativamente importantes, facto que
constitui a primeira etapa para o seu lançamento no mundo dos negócios. Este mesmo
lançamento é com frequência feito a partir de um capital económico inicial herdado
ou emprestado pela família, que assim assiste e garante a reprodução de uma posição
social. A antiguidade no meio burguês dos negócios e a pertença a famílias nele já
bem colocadas, incluindo-se aqui as redes de parentesco ou de afinidades com outras
parentelas do meio, são, pois, condições que favorecem as estratégias de sucesso e a
ocupação das posições mais altas no seio do campo29.

Porém, o que é o sucesso? Numa acepção muito simples, ele pode ser visto
como um movimento de mobilidade social no qual um indivíduo ou um grupo se
deslocam da sua posição social original para uma que manifestamente possui uma
maior quantidade e combinação de capitais. Quer isto dizer que tem sucesso quem
começando de marçano chega a grande negociante, mas também que quem começou
filho de negociante e engrossou a sua casa, casou bem os seus descendentes e teve
acesso a níveis de poder mais elevados igualmente alcançou uma boa dose de sucesso.
O sucesso não será, portanto, uma espécie de atributo ideológico destinado aos
poucos self-made-men.

No comércio misturavam-se aqueles que já tinham atrás de si capitais e uma


tradição nesta actividade com os recém-chegados que, iniciando a sua vida como
simples empregados, tinham subido a pulso os vários patamares da riqueza e do
reconhecimento social. Nos negócios dos pequenos lojistas e comerciantes com casa
estabelecida nas principais ruas de Angra ainda se poderia pensar numa estratégia de
self made man, mas nos negócios mais elaborados do import-export e da navegação o
acesso já era mais difícil a homens sem origem familiar no meio e sem capitais
económicos de partida.

Algumas famílias de grandes negociantes e de comerciantes que se foram


destacando no meio, dispunham de amplas redes de parentesco que abrangiam um
largo espectro geográfico, contribuindo para uma maior mobilidade económica,
aumentando as hipóteses de negócios e os mercados. A família de Tomé de Castro,
natural do Funchal, pode ser a esse nível um bom exemplo. Casado com a filha de um
negociante alemão, parte dos seus filhos estabeleceram-se em locais tão longínquos
como o Rio de Janeiro ou Londres. Outro exemplo poderá vir de George Dart e seus
irmãos. Na altura de maior destaque do comércio da laranja eles espalhavam-se pelas
três principais cidades do arquipélago, uma estratégia semelhante à que tentou Elias

29
Cristophe Charle (1978), “Les Milieux d’Affaires dans la structure de la classe dominante vers
1900”, nº 20-21, p. 86.

13
Bensaúde, ainda em maior profundidade e extensão, nas décadas de 1840 a 1860. Os
ascendentes e parentes de Frederico Augusto de Vasconcelos estavam disseminados
por Angra e Ponta Delgada30.

Nas formas de reprodução familiar os nomes e as redes económicas a que se


acedia pelo casamento eram um factor importante. Um bom casamento podia ser uma
excelente aliança no campo dos negócios e uma forma de aliar uma riqueza de
extracção mais recente ao prestígio de uma velha família, podendo ser realizado
dentro de um grupo restrito com parentescos já próximos e onde a riqueza circulava
entre uns poucos há já umas gerações. Tratando-se de uma fonte qualitativa muito fina
e que necessitaria de uma investigação genealógica profunda e de um tratamento
quantitativo posterior nem sempre fácil, vamos somente olhar para alguns casos que
pensamos serem mais significativos. Se algumas referências quanto aos nomes das
esposas poucos dados extra nos permitem induzir, outras permitem-nos associar aos
apelidos uma árvore genealógica mais precisa, uma parentela e uma posição social
bem definidas no espaço local. Este capital social introduzido pelas alianças
matrimoniais, ao acumular-se sucessivamente em várias gerações, acabava por ser
uma peça chave nas estratégias de mobilidade social ascendente.

Por volta da década de 1860, as grandes fortunas ainda se concentravam entre


as famílias da fidalguia e da nobreza rural e entre alguns grandes lavradores. Nos
meios burgueses, até sensivelmente à década de 1870, aos grandes negociantes e
homens do sector da navegação e da exportação, que formavam os grandes
capitalistas de Angra, juntavam-se, apenas, alguns emigrantes regressados após uma
passagem triunfal pelos negócios no Brasil. Tal era o caso do comendador Joaquim
António de Mendonça e Meneses, vice-cônsul do Brasil na ilha Terceira, durante
longos anos. Na década de 1850, o ricaço instalou-se luxuosamente em Angra, onde
permutou por uns terrenos no Posto Santo a casa do morgado miguelista António
Almeida Tavares do Canto, na Rua da Sé. Tendo uns vagos antecedentes nobres, o
brasileiro mandou acrescentar-lhe o seu recente brasão de armas, concedido em 1854.
Dos 14 filhos que teve o casal, duas casaram com os irmãos António e César Augusto
de Castro Coelho, pequenos negociantes; uma terceira com Miguel Peixoto Palhinha,
funcionário público; outra contraiu matrimónio em Ponta Delgada com um indivíduo
que desconhecemos; uma quinta consorciou-se com um pequeno fidalgo
empobrecido, Joaquim Meireles Pamplona; a sexta filha uniu-se a António Casimiro
Mourato, farmacêutico pela Universidade de Coimbra, que se estabeleceu em Angra
em 1878, para trabalhar na nova botica que António de Mendonça, seu futuro
cunhado, abrira na praça da Restauração. Este último António de Mendonça, casado
com uma senhora da família do barão da Fonte do Mato, será o pai de Alfredo de
Mendonça, mais tarde presidente da Associação Comercial e figura de prestígio no

30
Fátima Sequeira Dias (1996), “Os empresários micaelenses no século XIX: o exemplo de sucesso de
Elias Bensaúde (1807-1868)”, p. 447. Agradeço ao Dr. Jorge Forjaz a referência ao caso da família
Dart. Thomas Dart em 1856 era cônsul se sua majestade britânica no Faial e no Pico. Cf. BPAR da
Horta, Livro de Registo dos diplomas, títulos de nomeação dos empregados deste distrito da Horta e
termos dos seus respectivos juramentos, escriturados desde 20 de Junho de 1853 até 1862, fl 27 frente.
O negociante e capitalista Georges Philips Dart em 1831 emprestaria a quantia de 10 contos á Regência
liberal instalada na Ilha Terceira, Vitorino Nemésio (1929), “A Terceira durante a Regência (1830-
1832)”, in Memorial da Muito Notável Vila da Praia da Vitória no Centenário da Acção de 11 de
Agosto de 1829, Coimbra: Imprensa da Universidade, p. 217.

14
mundo comercial da cidade. Décadas depois, Casimiro Mourato, seu tio por afinidade,
era, em Angra, uma espécie de rei dos remédios e das pastilhas. Em 1882 estabeleceu-
se por conta própria e quando faleceu em 1900, aos 47 anos, dispunha da Farmácia da
Praça Velha e da Farmácia da Rua da Sé, por baixo de sua casa31. Deste exemplo,
podemos concluir que, apesar da dispersão da herança por 14 filhos, não só existe
uma relativa reprodução nas posições e nas ocupações dos negócios, como os
casamentos são feitos com indivíduos do meio burguês ou com membros
desvalorizados, porque falidos, dos grupos nobres. Ainda não chegara o tempo dos
casamentos em força entre os protagonistas dos dois grupos. Se observarmos uma
trajectória familiar mais longa, vemos como o comendador foi negociante, tal como
seu filho veio a investir no comércio e nas boticas, e seu neto continuou a tradição
com a sortida loja Havaneza.

Outro exemplo podia vir de Gabriel de Sousa Pereira, que nas décadas de 1850
e 1860 era um dos maiores, se não o maior capitalista de Angra. Gabriel de Sousa
Pereira havia estado envolvido no Brasil nos negócios da navegação, tendo casado no
Rio de Janeiro com uma sua sobrinha, Emília Amélia Pereira. Dele serão herdeiros os
filhos do casamento Guilherme de Sousa Pereira, Emília Amélia, Eulália, Gabriel,
Maria Carlota, Carlota Laura, todos residentes em Angra, e uma filha legitimada de
uma união anterior, Carolina Augusta de Sousa Pereira, casada com Jorge Soares de
Avelar, comerciante, residente na vila das Velas32.

Quadro 2 - Composição do património de Gabriel de Sousa Pereira em 1870 à data da


sua morte

Componentes Valor em mil réis Percentagem


Dívidas Activas 53.590$ 33.25
Bens de Raiz 81.524$ 50.6
Dinheiro 4204$ 2.6
Apólices e Títulos 18.973$ 11.8
Mercadorias e Géneros 368$ 0,2
Ouro e Prata 931$ 0.6
Recheio da Casa 1472$ 0.9
Animais de carga e recreio 99$ 0.06
Dívidas passivas 726$ 0.5
Património Ilíquido 161.161$ 100
Património Líquido 161.435$ 99.5
Fonte: BPARAH, Inventários orfanológicos, maço 752. Estes
quadros são uma adaptação dos modelos utilizados por Jorge
Pedreira (1996) e Helder Adegar da Fonseca (1992).

No seu testamento Gabriel recomendava que não queria luxo, nem pompa e
que tudo quanto se gastasse fosse com pobreza. Não só ele parecia apreciar um
comportamento de rigoroso e discreto burguês, como a composição do seu conselho
de família assim o demonstrava. Nele veremos, principalmente, negociantes e
comerciantes locais: João António Nogueira, José Maria Gonçalves Branco, Bento

31
Eduardo de Azevedo Soares (1908-1909), Nobiliário da Ilha Terceira, vol. II, pp. 145-147, Braga:
Edição de Autor; Pedro de Merelim (1974), As Dezoito Paróquias de Angra..., pp. 631-634.
32
Inventário de Gabriel de Sousa Pereira/ Emília Amélia Pereira, Maço 752, ano de 1870.

15
José de Matos Abreu, Joaquim Machado de Freitas e Lucindo Machado de Freitas. Os
homens dos grupos tradicionais da elite angrense e da grande burguesia ainda não se
haviam mesclado. E quer Gabriel Pereira de Sousa, quer o comendador Mendonça e
Meneses, apesar de muito ricos, eram ainda demasiado novos no meio para se
começarem a misturar com as elites mais tradicionais, cujos rendimentos ainda não
tinham entrado em quebra.

A maior parte dos bens de Gabriel eram imobiliários, muitos deles foros a
trigo, e dívidas activas. As mercadorias e géneros resumiam-se a uma dúzia de moios
de trigo e uma grande quantidade de pranchas de madeira, provavelmente para fazer
caixas para exportar laranja. Os foros, que formavam a maior parte do património,
foram em boa parte comprados à Fazenda Nacional e a alguns comerciantes e
proprietários mais decaídos. Os domínios plenos foram igualmente comprados em
sucessivas hastas públicas. As suas casas nobres em Angra, na Rua do Barcelos,
haviam sido alcançadas por hipoteca feita a José Tristão da Cunha Silveira
Bettencourt e estavam ricamente mobiladas, tal como a sua quinta em São Carlos, a
de Santo Antonino, que havia sido comprada à viscondessa de Almeida Garrett. Para
além destas, Gabriel era ainda proprietário de três casas altas na cidade. Os seus
títulos e acções eram quarenta apólices da dívida pública, umas poucas acções da
praça de touros e do Teatro Angrense, assim como catorze inscrições de
assentamento, tudo no valor de quase 19 contos. Se uma parte das dívidas activas
eram rendas e foros em atraso, a outra, mais significativa, eram hipotecas e letras,
uma parte das quais vinha da massa falida de alguns negociantes judeus que se
afundaram durante a crise comercial e cambial do distrito em inícios dos anos de
1860.

As dívidas oriundas da actividade creditícia atingiam, assim, mais de 53


contos, e eram de facto importantes no conjunto dos bens. Porém, ficavam bem atrás
do imenso património imobiliário, cerca de 82 contos, comprado ao longo de
aproximadamente duas décadas. Tal desproporção permite-nos pensar que a terra e os
foros a trigo continuavam a ser, nas décadas de 1840 a 1860, um bom negócio onde
investir, sobretudo num distrito muito afectado pelas crises monetárias.

Apesar da sua riqueza, nem o comendador Mendonça, nem Gabriel de Sousa


Pereira tiveram um papel destacado na vida política local. Por um lado, ela continuava
cativa dos fidalgos e grandes negociantes de maior antiguidade, e por outro nenhum
deles precisava de se preocupar muito com o assunto. O dinheiro que tinham chegava
para uma vida faustosa e a aceitação social e a reconversão dos capitais era antes feita
através da caridade, do apoio às iniciativas locais e da colagem à norma religiosa. Só
como exemplos, Mendonça era o presidente e irmão de várias confrarias e Sousa
Pereira esteve na base do sindicato que, juntando Joaquim Teixeira Brasil, o
comendador Rodrigues Fartura, outros grandes negociantes, emprestou dinheiro a
baixo juro à Câmara Municipal de Angra para esta poder acabar os vastos Paços do
Concelho.

À data da sua morte a casa de Gabriel de Sousa Pereira era bem mais abastada
que a do próprio conde da Praia da Vitória (que já entrara numa espiral de dívidas), e

16
que a de muitos dos outros morgados e grandes proprietários da Terceira33. Porém, as
diferenças ainda eram bem perceptíveis no luxo e na sofisticação do recheio das
respectivas habitações. O ouro, a prata e as jóias que constavam no inventário de
Gabriel de Sousa Pereira estavam avaliados em 931$000, no caso do conde ascendiam
a 1.410$000. O total do recheio da casa orçava em 1472$000, o velho senhor do
palácio de Santa Luzia só em móveis e no impressionante trem de cozinha totalizava
1573$290 réis, a ele se juntavam madeiras, loiças de várias proveniências, como
serviços ingleses, franceses, de Saxe, de Sévres e cristais vários, compondo tudo junto
2.174$980. Os livros somavam ainda 174 lotes no valor aproximadamente de
120$000, formando um conjunto com várias centenas de volumes34.

Nenhum dos filhos de Gabriel de Sousa Pereira será capaz de refazer a fortuna
paterna. Todos viveram com conforto numa classe média de funcionários, pequenos e
médios negociantes e proprietários. Alguns ligaram-se a outros negociantes e
comerciantes locais, parte dos quais, como Joaquim Luís de Magalhães, haveriam de
ter uma razoável trajectória na praça de Angra35.

Não sendo muito ricos, Joaquim Luís e Amélia Pereira de Magalhães, filha do
capitalista Gabriel, eram, em 1874, donos de algum património e dão bem o exemplo
de uma classe média mercantil em ascensão. De facto, a firma Magalhães & Sobrinho
ainda estava no seu começo. O mobiliário da residência do casal era confortável e
todo ele recente; as pratas e os ouros marcavam um pequeno lugar, atingido estes dois
tipos de bens um valor de 854$000. Contudo, é certo que a maior parte dos bens do
casal vieram ter às suas mãos pela escritura de dote de Amélia e pela legítima a que
esta teve direito por morte de seu pai. O valor dos imobiliários chegava aos
8.997$000 e ainda havia dinheiro em ser no valor de 626$000, num total de
10.478$000 de património ilíquido. Nos imobiliários destacam-se alguns foros a trigo,
algumas propriedades de terras lavradias e pastos em domínio pleno, uma casa de alto
e baixo com pátio e pomar contíguo, no Caminho do Meio em São Pedro, medindo
77,44 ares, que fora comprada pelo casal com a ajuda da sogra em 1873, uma outra
casa também de alto e baixo no mesmo lugar mas com menor dimensão, e o domínio
útil de uma propriedade de criação, medindo cerca de 140 hectares que estava
subaforada desde 1872 por 2376 litros de trigo. O valor dos foros a trigo fica-se pelos
8539 litros deste cereal, prevendo ainda 264 litros de milho, onze galinhas, 4,4 litros
de manteiga, e 2,54 kg de linho anuais. A ascendência da esposa, a boa casa de Angra
e a casa de recreio no Caminho do Meio davam ao casal a possibilidade de se

33
Em 1862, sendo um dos mais ricos e antigos morgados da Terceira, senhor de 25 vínculos, o conde
da Praia da Vitória, registaria 180 contos de bens vinculados. No entanto, aquando da sua morte em
1870 o património ilíquido constante no seu inventário era de apenas 109,4 contos, valor que se
reduziria a 42,4 contos dado existirem 66,99 de dívidas acumuladas. Cf. Paulo Silveira e Sousa (1998),
As Elites Periféricas…, capítulo II, pp. 79-83.
34
Idem, pp. 79-83.
35
Por exemplo, um dos filhos e homónimo de Gabriel de Sousa Pereira casará com Francisca da Costa
e Silva, oriunda de uma família de comerciantes e ricos ganadeiros, CF. BPARAH, Inventários
Orfanológicos, Gabriel de Sousa Pereira/ Francisca da Costa e Silva Pereira, maço 898, ano de 1887, nº
8. À data da sua morte os seus bens eram quase os mesmos que havia herdado do Pai. Para além de
uma confortável e bem equipada casa em Angra, eles eram quase todos foros a trigo espalhados pelos
concelhos de Angra e da Praia. Outro filho do capitalista Gabriel, Guilherme de Sousa Pereira, seria
em 1888 nomeado escrivão da administração do concelho de Angra; era ainda cunhado de outro nome
importante dos negócios da praça da cidade, José Luís de Sequeira.

17
manterem ligados a determinados comportamentos de lazer e a sociabilidades
provavelmente mais refinadas que a de alguns comerciantes cujos cofres guardavam
quantidades mais pesadas de moeda ou títulos de propriedade mais numerosos.

A sociedade Magalhães & Sobrinho, formada por Joaquim e seu tio António,
também casado com a filha de uma família de brasileiros abastados, foi criada por
escritura de Dezembro de 1871. Do dinheiro em caixa dos lucros até Junho de 1873,
num total de 1665$000, apenas existia de quantia líquida 276$000. Mas a empresa foi
prosperando e, em 1885, a firma vendia novidades a retalho e era agente de várias
companhias bancárias36. O seu leque de oferta ia desde as modas finas, tecidos e
panos diversos, até sabonetes, licores e vinhos engarrafados37. Os dois Magalhães
viviam em boas e amplas casas na cidade e qualquer um deles era também
proprietário de alguns foros e de casas de recreio nos arredores de Angra.

Também nas ilhas mais pequenas os ex-emigrantes vieram diversificar as


famílias das elites locais, alargando o leque do recrutamento social para as posições
do topo. Na Graciosa, temos o caso de João Correia da Silva, que viveu até 1878 na
sua quinta no sítio da Boa Vista, a qual era, ao tempo, considerada uma das melhores
casas da ilha. João Correia da Silva, que retornou do Brasil com grande fortuna,
estabeleceu posteriormente residência em Lisboa, sendo casado com uma neta do
barão da Fonte do Mato, D. Joaquina da Costa Celeste da Silveira Bettencourt38. Na
ilha de São Jorge a chegada dos grandes ricaços da emigração foi mais tardia. Os
pecúlios dos “calafonas”, que voltavam para junto das suas famílias, eram mais
reduzidos. E eles, camponeses com cintos cheios de águias de ouro e mãos calejadas
pelo trabalho agrícola, não traziam o verniz que os ex-negociantes brasileiros
gostavam de exibir. Os efeitos do seu regresso fizeram-se sentir, sobretudo, ao nível
da modernização das pequenas e médias explorações camponesas. A penetração dos
dobrões tropicais junto das famílias da mais exclusiva elite de grandes proprietários
de São Jorge não se efectuou da mesma forma. Os seus descendentes casavam antes
entre si, com famílias das classes médias, de grandes negociantes da capital, com
funcionários públicos, bacharéis, ou abandonavam a ilha. A esmagadora maioria dos
comerciantes das Velas e da Calheta eram homens de pequena fortuna a trabalhar
num mercado estreito e, quando comparados com as grandes casas locais detentoras
de largas dezenas e em algumas casos centenas de hectares, o seu peso económico
mal se fazia sentir.

A única excepção vem de Gaspar Silva, que comprou prédios por todo o
concelho da Calheta e aqui se instalou como proprietário no final do século.
Regressado do Havai com a sua família e uma fortuna que alguns avaliavam em bem
mais de 100 contos ele construiu uma enorme casa em estilo colonial na Ribeira Seca,
36
Cf. BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 769 (ano de 1874). António Luís de Magalhães era
casado com uma filha de Maria Luísa Fialho Martins. Com o seu já falecido marido, o casal havia
estado emigrado no Brasil, em São Luís do Maranhão, onde tinham sido comerciantes. Em 1865, data
da morte do marido, Maria Luísa ainda possuía bens no Brasil. Para além de uma boa casa na cidade de
Angra, a sogra de António Magalhães era também proprietária de uma quinta na Boa Hora, com casa,
jardim e amplo prédio de árvores de espinho, o que a faz entrar no grupo da classe média abastada. Cf.
BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 751 e 752.
37
A Terceira, 14 de Fevereiro de 1885.
38
António Borges do Canto Moniz (1883), Ilha Graciosa (Açores), Descrição Histórica e
Topográfica, Angra do Heroísmo: Imprensa da Junta Geral, p. 182.

18
cuja enorme chaminé cónica podia ser vista em quilómetros em redor, e instalou-se
como um perfeito rentista. No entanto, num concelho tão periférico e onde as antigas
elites já tinham decaído ou abandonado este território, Gaspar Silva apareceu como
um substituto, como o grande benemérito do concelho, cuja bolsa se abria a quase
todos os pedidos de melhoramentos39.

Na ilha Terceira, assim que o ciclo das remessas dos emigrantes brasileiros
começou a decair em finais da década de 1870, os grandes capitalistas passaram a ser
homens de antiga riqueza como os Silvas, ou indivíduos em crescente afirmação no
meio como Frederico Augusto de Vasconcelos, Henrique de Castro ou José Júlio da
Rocha Abreu, que tinham atrás de si uma tradição familiar de ligação ao meio
comercial. A emigração para os EUA, mais tardia que nos outros territórios insulares
e tal como nestes notoriamente camponesa, não veio a formar grandes casas.

Os seus efeitos foram fortes e reestruturadores, sobretudo ao nível das


explorações camponesas localizadas nos pequenos lugares e freguesias. As grandes
casas que se mantiveram entre a elite do distrito ao longo das sucessivas décadas da
segunda metade do século XIX e que inauguraram ainda importantes o século
seguinte, nasceram, normalmente, da associação das famílias da velha fidalguia e da
nobreza local, às famílias de negociantes mais destacados e de comerciantes com
trajectórias de rápido sucesso que, em alguns casos, acrescentaram ao capital
económico acumulado o investimento no capital escolar dos filhos, tornados bacharéis
no seu regresso a casa.

Frederico Augusto de Vasconcelos Sénior era o filho de um outro grande


negociante, e seu homónimo, e neto de um outro homem da praça de Angra que,
tendo tido um lugar de destaque, se encontrava quase falido à hora da sua morte40. Em
1880, Frederico Sénior já se podia considerar um homem abastado. Tinha uma fortuna
avaliada em 83 contos, estando os seus bens localizados na comarca de Angra e da
Praia da Vitória. O seu nome surgia já nos documentos com a classificação de
negociante e proprietário.

O mobiliário de sua casa é confortável, se bem que não opulento. As pratas,


porcelanas e cristais são em pequena quantidade. No armazém na sua casa de
residência à rua de São João existiam dezanove pipas de vinho, seis de vinagre, três
de aguardente, e quantidades menores de genebra, licor de canela, vinho do Porto e
azeite. Havia ainda um tanque com petróleo, caixas de sabão e velas de sebo. Na
alfândega existia uma grande quantidade de melaço para a produção de álcool e barris
com óleo de linhaça. O total dos valores mobiliários, incluindo géneros e mercadorias,
atinge os 6175$. A casa de dois andares da Rua de São João foi arrematada em 1871,
aquando da execução da massa falida de Abraão Benarus, negociante judeu. A casa
alta telhada de um andar na Rua da Palha foi também comprada numa arrematação

39
José Cândido da Silveira Avelar (1902), Ilha de São Jorge (Açores):apontamentos para a sua
História, Horta: Tip. Minerva Insulana, p. 97; Pe. Manuel Azevedo da Cunha da 1981 (1906), Notas
Históricas. I Estudos sobre o Concelho da Calheta (S. Jorge). II Anais do Município da Calheta (S.
Jorge).(Recolha introdução e notas de Artur Teodoro de Matos), Ponta Delgada: Universidade dos
Açores, vols. I e II, pp. 231, 825, 829; Fernando Gaspar da Silva (2001), Os Gaspar Silva: memórias
de raízes e percursos familiares, Angra: Instituto Açoriano de Cultura.
40
Agradeço ao dr. Jorge Forjaz estas indicações genealógicas.

19
judicial em 1877. Uma propriedade de casas altas parte de dois andares e parte de um
só, na rua do Faleiro, foi adquirida da mesma forma em 1866, tal como uma
propriedade de casas baixas telhadas na Rua de Santa Luzia. Em 1871 seria a vez de
uma propriedade de casas altas na Rua de Cima, na freguesia de Santa Luzia. Umas
casas de dois andares na Rua de São João foram adquiridas ao conde da Praia, em
1876. Em 1879, o granel da Rua de São João seria comprado a João Marcelino de
Mesquita Pimentel. No mesmo ano, Frederico Augusto de Vasconcelos Sénior
compraria ainda uma casa de telha abarracada na Rua da Boa Nova e 45 ha de terra na
Ribeirinha, em grande parte adquiridos a D. Ana Guilhermina Fisher, de Ponta
Delgada, avaliados em 40.668$000, e que faziam anteriormente parte de um vínculo.

Quadro 3 - Composição do Património de Frederico Augusto de Vasconcelos Sénior


em 1885 por morte sua esposa Margarida Augusta de Bettencourt Vasconcelos

Componentes Valor em mil réis Percentagem


Dívidas Activas 11.460$ 13.8
Bens de Raiz 64.945$ 78.2
Dinheiro 500$ 0.6
Apólices e Títulos - -
Mercadorias e Géneros 5.170$ 6.2
Ouro e Prata 140$ 0.16
Recheio da Casa 798$ 0.96
Dívidas passivas 500$ 0.6
Património Ilíquido 83.013$ 100
Património Líquido 82.513$ 99.4
Fonte: BPARAH, Inventários orfanológicos de Angra, maço 790.

Para além destes bens, existia a fábrica de destilação no lugar da Rocha na


freguesia da Sé, junto à Rua da Boa Nova e ao Caminho do Porto Novo, em que parte
da propriedade estava em domínio pleno e parte era foreira a Teotónio de Ornelas
Bruges, e uma quinta de recreio no Caminho do Meio, em São Carlos, da qual apenas
possuía o domínio útil, que fora comprado em 1878.

Os domínios directos e foros em sua posse na comarca de Angra eram em


número de 11, pagando 3074 litros de trigo e 24$000 reis. As propriedades totalizam
cerca de 6 hectares, aos quais se acrescentava uma quinta com 23 ha e suas casas
nobres da qual era proprietário do subforo. Todos estes bens foram comprados, 8
deles à viscondessa de Noronha em 1871, 2 foram arrematados no inventário por
óbito do comendador António Borges Leal Corte Real em 1867, e o subforo da quinta
fora comprado ao dr. Fernando Rocha em 1878, o qual antes pertencera aos bens do
extinto convento da Conceição. Os domínios directos foram avaliados em cerca de 6
contos. Os bens na comarca da Praia são 6 foros a trigo num total de 6085,2 litros e
algumas galinhas, impostos em 6 prédios que foram comprados à viscondessa de
Noronha em 1872, sendo ainda proprietário de um prédio de rocha e vinha, também
comprado em 1872 à mesma viscondessa. As suas dívidas passivas são pequenas e,
somente, decorrem da sua actividade na venda de bens imobiliários à comissão.
Frederico pai deixou a seu filho, Frederico Júnior, uma boa herança que este,
apostando no desenvolvimento da indústria do álcool, conseguiu engordar muito

20
significativamente, fundando uma grande casa com vários interesses no comércio e na
indústria, que sobreviveu até aos nossos dias.

O segundo dos grandes homens de negócios que se ligou a partir de 1880 à


indústria do álcool foi Henrique de Castro. Ele não vinha de uma família tão rica, mas
a sua educação havia sido bem mais esmerada. A sua família tinha ligações ao
comércio por ambos os lados. A sua mãe, era uma senhora alemã, filha de um
comerciante da mesma nação, o seu avô paterno, Tomé de Castro, natural do Funchal,
já estava estreitamente ligado à navegação e ao comércio. No entanto, o primeiro
Tomé de Castro deve ter decaído a sua fortuna, pois o seu filho e homónimo não
figura entre os grandes exportadores de laranja e vinho41. Ele era apenas o dono de
uma loja de fazendas estabelecida na rua Direita, onde também residia. Dos sete filhos
que este último teve, Tomé de Castro Júnior e Guilherme de Castro eram
comerciantes, um em Londres e outro no Rio de Janeiro, e Henrique de Castro será,
mais tarde, um dos principais capitalistas da ilha. Os bens móveis do pai de Henrique,
avaliados no inventário por morte de sua mãe em 1860, não testemunham tanta
opulência e conforto como os de Gabriel de Sousa Pereira, assim como a quantidade
de prata e ouro que detinha era muito mais reduzida.

Tomé de Castro era um comerciante de razoável dimensão no meio local, mas


ainda não tinha a sua riqueza e o seu estatuto definitivamente consolidados. Os bens
mais significativos eram o seu estabelecimento de fazendas de lã, seda e algodão,
situado na esquina entre a Rua Direita e a Rua da Sé, avaliado em pouco mais de 5
contos, e alguns imóveis. Estes, embora escassos, eram importantes, sendo compostos
das casas altas de sua residência e estabelecimento, herdados de seu pai, por umas
outras casas altas adjacentes, que serviam de granel e cavalariça, por outra moradia de
casas altas na cidade, e pela quinta de São Bernardo, no Caminho de Baixo, com
aposentos, água, ermida e licença para missa, comprada aos herdeiros do capitão
Manuel de Lima da Câmara em 1831. Para além destes bens era detentor de 272
pequenas dívidas à sua loja no valor de pouco mais de dois contos. Todos estes bens
foram avaliados em cerca de 14 contos, o que não o faz passar adiante da barreira dos
comerciantes. Quando Tomé de Castro morre em 1876, deixando entre os herdeiros
alguns netos ausentes em Inglaterra, três dos seus descendentes, Guilherme de Castro,
Frederico de Castro e João de Castro, eram então moradores no Rio de Janeiro. Em
Angra apenas residiam as suas restantes três filhas e Henrique. Nesta data o total dos
bens ainda se revelou mais escasso que anteriormente, ficando-se pelos 3300$, dos
quais 3 contos são a parte da casa. Somente há referência à casa da Rua Direita e ao
seu recheio. A loja de fazendas, assim como todo o seu negócio, deve ter sido passada
para as mãos de Henrique de Castro. Não sabemos exactamente como é que Henrique
se tornou um homem tão rico e influente. Mas pensamos que a sociedade na fábrica
do álcool com Frederico de Vasconcelos - da qual também foi gerente -, deve tê-lo
ajudado muito. Fez ainda um bom casamento, com uma descendente de George
Philipe Dart, ficando através de sua mulher aparentado com algumas famílias da elite
terratenente tradicional e da antiga burguesia da laranja e dos cereais. A sua carreira
política foi importante no partido Progressista da Terceira, onde pertenceu aos orgãos
distritais, subindo a Governador Civil substituto em 1891. Em 1897, Henrique de

41
Dados sobre a família retirados de Pedro de Merelim (1974), As 18 Paróquias da Ilha Terceira,
Angra: Tip. Minerva comercial, pp. 361-364.

21
Castro comprará ao morgado Vital de Bettencourt Vasconcelos e Lemos a quinta com
casas nobres, pátio, chafariz e ermida de Jesus, Maria, José nos arredores de Angra42.

Como pudemos ver, a família de Henrique de Castro era bem antiga no


comércio da cidade, apesar de ter atravessado altos e baixos. Embora esta possuísse,
desde cedo, certos símbolos de distinção, como uma quinta de recreio nos
aristocráticos arredores de Angra, não nos parece que a família fosse muito antiga
entre o chamado patriciado urbano. O seu património fundiário era escasso e bastava
que seu pai, Tomé, passasse os dias por detrás de uma banca de tecidos, para que a
sua posição social se visse afectada. Na verdade, seu pai também poucos
desempenhos teve na política local. Henrique de Castro foi, sem dúvida, um dos
grandes da cidade, os seus descendentes casaram com filhos de morgados e homens
em ascensão na burguesia. Mas só a geração de Henrique é que nos parece ter sido a
primeira a chegar a este ponto do topo da burguesia, esta charneira com a elite
tradicional mais fechada a que apelidamos de patriciado urbano.

São várias as famílias de grandes burgueses que começaram uma imparável


trajectória ascendente através da ligação ao sector exportador e à navegação. Talvez
um dos casos mais conhecidos seja o de Jacinto Cândido da Silva Sénior. Natural de
Lisboa, instalou-se em Angra possivelmente na década de 1830, quando ainda era
capitão de navios, tendo então iniciado uma carreira nos negócios. Em 1833 era vice-
cônsul da Bélgica e foi secretário da câmara de Angra nessa mesma década de 1830.
Os seus filhos começaram rapidamente a casar com filhas de ricos negociantes e
bacharéis. Emídio Lino da Silva Sénior casou com uma senhora da mais rica
burguesia das décadas de 1840 e 1850, os Rochas, irmã de um bacharel e advogado
local de nomeada, Fernando Rocha. A sua vida foi prosperando ligada ao comércio de
importação e de exportação e à sua actividade como agente de navegação. O seu
irmão, João Carlos da Silva, casado com uma sobrinha, era também outro importante
negociante da praça de Angra, sendo o agente de várias companhias de navegação que
faziam as viagens entre o arquipélago e os EUA43. Qualquer um dos irmãos eram
cônsules e vice-cônsules e tinham já acumulado um bom património em bens
fundiários, possuindo as suas quintas em São Carlos e no Caminho do Meio.

Os três Silvas eram já dos negociantes mais abastados em 1865 e faziam frente
no partido regenerador do distrito ao lado do conde de Sieuve de Menezes, tendo
passado por várias vereações, pelas juntas gerais e pela direcção da Associação
Comercial. Jacinto Cândido Sénior, e seus filhos eram influentes de destaque: “os três
constituíam uma grande força eleitoral”, como escreverá mais tarde o seu neto44. Mas
se esta segunda geração, tal como a precedente, esteve a maior parte da sua vida a
fazer as contas do deve e do haver, a tentar os melhores câmbios e a descontar letras,
a fretar navios e a receber comissões, a geração seguinte já pouco teve a ver com
semelhantes actividades.

Jacinto Cândido da Silva (Júnior), o filho mais velho, estava à partida


destinado à vida comercial, herdando a casa da família, continuando a sua tradição

42
Pedro de Merelim (1974), As Dezoito Paróquias de Angra..., p. 354.
43
Almanaque Açores para 1905, Angra: Tipografia Sousa e Andrade, p. 4.
44
Jacinto Cândido da Silva (1962), “Autobiografia”, Apresentação e Prefácio de José Lopes Dias,
Separata dos Estudos de Castelo Branco, pp. 10-12, 19-26.

22
nos negócios. Mas, segundo o próprio, por influência de seu tio materno, Fernando
Rocha, quis seguir a carreira de advogado. Os dois filhos de Emídio Sénior terão
carreiras políticas promissoras e um capital escolar e social muito mais desenvolvido:
Jacinto Cândido formou-se em Direito por Coimbra e Emídio Júnior tornou-se
engenheiro pela Escola Militar. O primeiro foi Ministro da Marinha, um destacado
membro da direcção do partido Regenerador, sendo posteriormente o líder da cisão
Nacionalista, em 1902; o segundo foi governador civil de Angra e deputado por várias
legislaturas, tendo permanecido o homem forte dos regeneradores do distrito, nos
anos posteriores a 1890, primeiro em associação com o irmão e depois sozinho. De
qualquer forma, esta ligação à política já era antiga na família.

A irmã de Jacinto Cândido, Maria Elvira, casará com o nosso já conhecido


Alfredo Mendonça, cuja trajectória o orientará para negociante, industrial de
lacticínios e agente de várias companhias de navegação. João Carlos Silva45, tio
paterno de Jacinto Cândido e de Emídio Lino Júnior verá o seu filho, Jacinto Carlos
da Silva, ser agraciado por D. Carlos com o título de visconde da Agualva. Toda esta
terceira geração de Silvas casará com meninas de boas famílias, todas elas com um
toque aristocrático e terá uma contínua trajectória social ascendente. Jacinto Cândido
casa com uma filha dos condes de Proença-a-Velha, grandes proprietários de origem
fidalga na Beira Baixa, sendo os seus cunhados já velhos conhecidos e amigos de
Coimbra46. Emídio Lino vai associar-se com Brites Pereira da Cunha da Silveira, filha
do mais rico proprietário da ilha de São Jorge, herdeiro de vastos vínculos. O dote
dado à sua esposa seria uma ampla casa no Vale do Pereiro, em Lisboa, avaliada em
20 contos, demolida mais tarde para dar passagem à Avenida da Liberdade47. O
primo, Jacinto Carlos da Silva, para além de agraciado com um título, casará com
Margarida de Sieuve de Menezes do Rego Botelho de Faria. Filha de famílias da mais
abastada fidalguia de Angra, o seu pai era então não só o mais rico proprietário da
Ilha, como havia sido recentemente agraciado com o título de conde de Rego Botelho.
Pode dizer-se que nestas três gerações se completou um ciclo que do dinheiro
conduziu à distinção e às maneiras aristocráticas48.

Abaixo deste primeiro grupo da burguesia de riqueza já bem assente,


encontramos comerciantes como Guilherme Martins Pinto Júnior, que herdara a loja e
o pecúlio de seu pai e homónimo, ou António Pedro Simões. Este último negociante e
exportador de cereais, comerciante a grosso e a retalho, pequeno industrial, e também
antigo capitão da marinha comercial, antes responsável por uma importante
embarcação do porto de Angra, daria origem a uma família quase dinástica que se iria
afirmar, cada vez mais, nos meios locais, fazendo na primeira década do século XX já
parte do grupo dos muito ricos.

45
Em 1883 era presidente da Associação Comercial de Angra.
46
Trajectória comum entre a elite oitocentista é na passagem pela Universidade de Coimbra que
Jacinto Cândido cimentou a sua rede de conhecimentos e o seu capital relacional, tão importantes para
poder alcançar quer peso político, quer a integração na boa sociedade de que o consórcio com uma
esposa abastada era etapa decisiva. Cf. Cabral António (1923), Alexandre Cabral: memórias políticas,
homens e factos do meu tempo, Lisboa, pp. 36-39.
47
BPARAH, Inventários Orfanológicos de São Jorge, José Pereira da Cunha da Silveira e Sousa, maço
704, ano de 1912.
48
Eduardo de Azevedo Soares (1908-1909), Nobiliário da ilha Terceira, vol II, pp. 375-378.

23
Tendo nascido na Ericeira, em 1835, filho de gente pobre, provavelmente
marítimos, António Pedro Simões teve uma trajectória de grande sucesso nos
negócios, à qual não foi indiferente o seu casamento com Catarina Máxima Mendes,
filha de um comerciante de Angra, Basílio Ferreira Mendes e de sua mulher, Maria
Dulce Mendes. Estes, não sendo muitos ricos eram, mesmo assim, senhores de alguns
bens. Em 1909, o património imóvel que adveio ao casal António Pedro e Catarina
pelas heranças da esposa atingia os 22.012$000. Os restantes 43.517$000 que
perfaziam o conjunto dos bens de raiz haviam sido comprado ao longo de décadas.

Quadro 4 - Composição do Património de António Pedro Simões em 1909

Componentes Valor em mil réis Percentagem


Dívidas Activas 73.442$ 38.2
Bens de Raiz 65.529$ 34.1
Dinheiro 17.456$ 9.1
Apólices e Títulos 2.519$ 1.3
Mercadorias e Géneros 32.816$ 17.1
Ouro e Prata 46$ 0,02
Recheio da Casa 382$ 0,19
Dívidas passivas - -
Património Ilíquido 192.189$ 100
Património Líquido 192.189$ 100
Fonte: BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 9/90 de 1909.

À data da sua morte, em 1909, a fortuna de António Pedro Simões seria


avaliada em cerca de 190 contos, dela fazendo parte três estabelecimentos comerciais,
uma estância de madeiras apetrechada com uma máquina a vapor e um velho
alambique, glória dos anos do álcool49. Não era uma grossa e patrícia fortuna que se
pudesse comparar à deixada por Gabriel de Sousa Pereira em 1870. Boa parte ainda
estava demasiado assente no movimento comercial das suas lojas, no entanto era já
uma soma muito considerável que o fazia entrar no lote das maiores fortunas do
distrito, dando garantias aos seus descendentes e à geração seguinte de atingir e
permanecer nos lugares cimeiros da escala social local. Dos 73 contos de dívidas
activas da herança de António Pedro Simões 9.812$000 vinham da sua actividade
como prestamista e usurário e do desconto de letras, 52.922$000 eram dívidas às suas
casas comerciais e 10.708$ eram transferências de uma das suas filhas que assim
pagava o enxoval e benfeitorias várias realizadas em prédios de sua propriedade50.

Ao contrário de Henrique de Castro, de Guilherme Martins Pinto ou José Júlio


da Rocha Abreu, a casa de António Pedro Simões nem sequer existia em 1865; ele foi
o seu criador, fundando mais uma empresa que, tal como a de Frederico Augusto de
Vasconcelos, sobreviveria até à actualidade e passaria para as mãos de seu filho mais
49
Os estabelecimentos compunham-se de um armazém de mercearias, líquidos, tintas e outros géneros
na Rua Direita, nº 56 a 62, um armazém de mercearias, líquidos, tintas e outros géneros estabelecido no
prédio nº 54 da Rua do Lameirinho, e um estabelecimento de venda de vinho a retalho na loja nº 10 do
prédio da Rua de São João. BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 9/90 de 1909 (António Pedro
Simões/Catarina Máxima Mendes).
50
BPARAH, Inventários Orfanológicos, maço 9/90 de 1909. Infelizmente, as contas oficiais do
inventário orfanológico não estão correctas, dando lugar a pequenas discrepâncias, que surgem aqui
corrigidas.

24
velho. Os seus descendentes viriam a casar-se com os filhos e filhas de grandes
lavradores, de outras famílias ligadas ao comércio e com as descendentes de grandes
morgados empobrecidos e condenados ao emprego público51.

A estratégia de homens como Martins Pinto, António Pedro Simões ou da


firma Magalhães foi muito semelhante. Começaram como pequenos comerciantes,
alguns tinham boas ligações e contactos com o mundo da navegação, tornaram-se
agentes de importantes companhias, fossem elas de seguros, bancárias ou de
navegação e lentamente foram também investindo na terra, emprestando dinheiro e
ligando-se às direcções das Caixas Económicas locais52. No final do século, abastados
e reconhecidos homens como António Pedro Simões ou João Carlos Silva viviam em
amplas e confortáveis casas bem no centro de Angra, na Rua Direita, tal como
Martins Pinto tinha as suas casas nobres noutra rua do centro da cidade53. De riqueza
mais recente, Simões e Martins Pinto participaram menos na vida política local. Eles
cingiram-se ao universo dos negócios, do crédito e aos cargos nas mesas da
Misericórdia e na administração do Hospital. Era preciso esperar um pouco mais para
ver os seus descendentes ganharem prestígio, nalguns casos casar com a antiga
fidalguia e o antigo patriciado, tomando maior protagonismo no campo do poder. Do
mesmo modo, nenhum deles tinha casa ou quinta na aristocrática e patrícia zona de
São Carlos.

Partindo do exemplo de uma outra importante casa comercial de Angra ao


longo de todo este período, a de Bento José de Matos Abreu, podemos ter uma ideia
da trajectória dos burgueses e negociantes de Angra que se fizeram a si próprios.
Novamente, a origem desta casa é relativamente antiga e assenta numa longa tradição
familiar e de associação com os seus empregados.

Esta história açoriana começou, sensivelmente, uma geração antes, em 1843,


quando um comerciante de origem portuense, o Comendador António José Vieira
Rodrigues Fartura, estabelecido em Angra por motivos políticos, chamou para seu
empregado Bento José de Matos Abreu, natural de Amares, Braga, até então
empregado numa firma comercial do Porto54. Rapidamente, de empregado este último
passou a sócio da firma, associando-se, posteriormente, ao filho do comendador
António Fartura numa nova sociedade. Entre 1855 e 1861, após a morte de António
Fartura Júnior, Bento José associou-se novamente ao comendador; neste último ano e
depois do falecimento do sócio, Bento passou a proprietário de toda a massa activa e
passiva da mesma sociedade. Apesar de ter centrado, numa primeira fase, a sua

51
Eduardo de Azevedo Soares (1908-1909), Nobiliário da Ilha Terceira, vol. III, p. 49.
52
Em 1885, António Pedro Simões, vendia na sua mercearia da Rua Direita todo o tipo de géneros de
vinho local e importado, ceras, petróleos, azeites e aguardentes, café e açúcar. Guilherme Martins Pinto
Júnior era o agente em Angra da Companhia de Seguros Esperança. Veja-se A Terceira, dos meses de
Fevereiro a Agosto de 1885.
53
António Pedro habitava uma confortável casa de dois andares, com pátio, lojas e meia palha de água
potável, na Rua Direita que tinha sido herança de seu sogro, em 1872. João Carlos da Silva residia na
faustosa casa que antes fora de Aniceto António dos Santos e que albergara o conde de Vila Flor
durante as Lutas Liberais. Pedro de Merelim (1974), As Dezoito Paróquias de Angra..., p. 235 e
Alfredo da Silva Sampaio (1904), Memória sobre a Ilha Terceira, Angra: Imprensa Municipal, pp.
262-263.
54
José Júlio da Rocha Abreu, 100 anos de Actividade Comercial (1864-1964), Angra do Heroísmo, p.
1.

25
actividade no comércio de fazendas, modas e ourivesaria, irá sucessivamente
alargando e aumentando o volume dos seus negócios, associando-se a alguns dos seus
empregados em diferentes e sucessivas sociedades. Numa cidade onde o mercado era
pequeno, uma especialização em apenas determinado ramo era pouco rentável, os
lojistas e comerciantes de sucesso ampliavam as suas actividades e envolviam-se em
diferentes negócios como forma de alargar os seus interesses e os seus rendimentos.
Como veremos adiante, em 1873, Bento José era o agente do Banco Aliança e do
Banco Lusitano.

Matos Abreu, tal como o seu antigo patrão, irá recrutar parte dos seus
empregados na zona do Porto e de Braga de onde era originário. Assim aconteceu
com Francisco José da Costa Vidal, chegado a Angra em 1862, que mais tarde se
estabeleceu por conta própria e chegou a ocupar um papel de relevo na vida comercial
e política da cidade, e com Luís Manuel de Matos Faria, seu primo e caixeiro.
Qualquer um deles, além de outros comerciantes como João Gomes Ferreira e Emílio
Borges de Ávila, tiveram sociedade com Bento José de Matos Abreu. Os seus
estabelecimentos foram, de facto, uma escola que formou vários dos seus ex-
empregados e os transformou em donos de várias lojas importantes de comércio,
dando um maior dinamismo à Praça de Angra. Numa época em que as empresas
comerciais eram de pequena dimensão e marcadas por uma estrutura familiar, ou
quase familiar, este sistema de cooptação não pode ser esquecido.

Estes sócios que normalmente não traziam capitais ou os traziam em pequenas


quantidades, vinham contribuir, sobretudo, com a sua perícia técnica nos negócios e a
sua dedicação ao trabalho, aumentando a produtividade das firmas. Assim, nas
sociedades de Bento José de Matos Abreu ou de seu filho José Júlio da Rocha Abreu e
em outros casos menores, à falta dum bom capital económico como base de partida, o
acesso às posições de destaque no mundo dos negócios era feito não enquanto
fundadores e proprietários, mas enquanto gestores ou empregados, subindo daí em
diante a escada da riqueza. Mas longe de serem os estrategas e os responsáveis pelas
grandes escolhas, a eles cabia um lugar de executantes das linhas traçadas pelos
patrões das firmas. Para mais, numa altura em que as principais firmas industriais
ainda não tinham o carácter de sociedades anónimas e, muito menos, os
estabelecimentos comerciais, fazia todo o sentido a associação do patrão aos
empregados de maior confiança, que lhe garantiriam, assim, um maior zelo no
desempenho das suas funções. Era necessário recrutar novos empregados e novos
gerentes para manter o negócio em andamento ou para aumentar a própria quantidade
e circulação dos produtos oferecidos pelas firmas. Na verdade, era mais fácil
encorajar um empregado já bem formado no andamento comercial a tomar este tipo
de lugar, do que procurar que um eventual novo sócio, mesmo que detentor de amplos
capitais, o viesse fazer. Bento José não pensava, certamente, em ser um benemérito ou
em redistribuir os seus rendimentos, procurava era a melhor estratégia que lhe
permitisse recrutar novos e competentes gerentes para os seus estabelecimentos. Ao
mesmo tempo, para os seus novos sócios este era um estímulo decisivo na sua
promoção, pois de outro modo dificilmente poderiam acumular capital suficiente para

26
se lançarem nos negócios a título individual, ou mesmo para participar como
capitalistas nas firmas55.

Em 1875 é a vez de Bento José associar-se a seu filho mais velho José Júlio da
Rocha Abreu, então com 18 anos, deixando o seu outro rebento, Eduardo Abreu,
licenciar-se em Medicina e tornar-se um destacado membro do partido Progressista e
posteriormente do partido republicano. Em 1880 a Bento José de Matos Abreu &
Filho negociava no número 30 da Rua da Sé uma miríade de produtos que iam das
fazendas e modas, aos tecidos, vinhos engarrafados, licores e bebidas espirituosas,
cutelaria, ouro e prata e alguma fancaria56. Em 1885 vendia nos seus granéis cereais
para semente57.

Uma filha de Bento Abreu casou com Félix José da Costa Sotto Maior,
bacharel em Direito, advogado, notário, provedor da Misericórdia de Angra, mais
tarde professor e reitor do Liceu em Ponta Delgada, por sua vez filho de um
funcionário público do governo civil, publicista e advogado provisional. Outro
rebento Eduardo Abreu, médico e deputado Progressista, casou-se com uma filha da
falida fidalguia de Angra58. José Júlio, por sua vez, tomou como esposa Carlota
Isaura, filha do nosso já conhecido capitalista Gabriel de Sousa Pereira.

Com o passar do tempo José Júlio da Rocha Abreu foi controlando cada vez
mais esta importante casa comercial, gozando de amplo crédito e confiança nas várias
praças com que se relacionava. Em 1893, o pai, Bento José de Matos Abreu, faleceu
em Amares, sua terra de origem, e a firma foi dissolvida, passando então a girar
apenas com o nome do filho59. Em 1904, José Júlio da Rocha Abreu era presidente da
Associação Comercial. De 1892 a 1913 exerceu o cargo de director da Caixa
Económica de Angra do Heroísmo, dando um sólido desenvolvimento aos seus
negócios. Pertenceu ainda aos corpos dirigentes da Misericórdia e teve um papel
importante na vida política da cidade, participando activamente em várias iniciativas e
instituições de caridade60. Mais uma vez o acesso ao topo da burguesia só chegou
nesta última geração, embora Bento José fosse já nos últimos anos da sua vida um
homem de grandes cabedais.

Este exercício de reconstituição de algumas casas de negociantes permite-nos


ver como também aqui se formavam pequenas dinastias associadas a determinados
ramos e ao exercício de determinados cargos. O filho e sucessor de José Júlio da
Rocha Abreu, Eduardo Pereira de Abreu, foi, tal como seu pai, director da Caixa
Económica de Angra durante longos anos, continuando uma política de diversificação
dos seus interesses e ramos, fazendo as já tradicionais associações com os principais
empregados da casa. A ascensão da família foi sempre constante ao longo das

55
Cf por exemplo José Ramón Garcia López (1989), “El sistema bancario español del siglo XIX: una
estructura dual? Nuevos planteamentos e nuevas propuestas”, Revista de Historia Económica, vol VII,
I, nº 1, pp. 111-132.
56
Os Açores, nº 31 de 18 de Março de 1880.
57
A Terceira, de 10 e 17 de Janeiro de 1885.
58
Gonçalo Nemésio (1994), Uma Família do Ramo Grande, Ilha Terceira, p. 110; e Eduardo de
Azevedo Soares (1908-1909), Nobiliário da Ilha Terceira, vol. I, pp. 157-158.
59
José Júlio da Rocha Abreu, 100 anos de Actividade Comercial (1864-1964), pp. 2-4.
60
Veja-se a Homenagem Prestada ao Exmo. Senhor José Júlio da Rocha Abreu em 24 de Agosto de
1930 pela Caixa Económica de Angra do Heroísmo, Angra: Tip. Moderna, pp. 16-18.

27
sucessivas gerações. E as duas filhas únicas de Eduardo Pereira de Abreu casarão, já
na década de 1930, com descendentes de importantes casas de proprietários, como os
Parreira e de fidalgos, como os Forjaz61.

Outro caso de sucesso, de uma dinastia de negociantes que começa do chão, é


o da descendência de João de Freitas. Este homem natural do Topo, em São Jorge,
iniciou a sua vida pobre e sem vintém a apanhar lenha nos baldios para a vender pelas
ruas da cidade. Fruto de uma enorme capacidade de poupança e de boas estratégias de
investimento, tornou-se, com o passar dos anos, dono de navios que faziam ligações
com Lisboa e o Brasil, grande negociante instalado na praça de Angra, de onde
exportava cereais e gado, sendo sócio da Associação Comercial desde 1853. O
patacho Terceirense, de 222 toneladas, 10 tripulantes e que transportava 56
passageiros, era sua propriedade62.

Depois da falência do negociante Jacinto Inácio dos Reis, em 1881, o primeiro


agente em Angra da companhia Insulana de Navegação, na qual João de Freitas
interveio como parte interessada, ele tornar-se-á o novo representante, um negócio
que passará ao seu filho e que chegará ainda às mãos de seu neto. João de Freitas
morreu em 1884 e os seus descendentes continuaram nos negócios, embora não
tenham alcançado a fortuna do fundador. Em 1884, o filho mais velho, Joaquim José
de Sousa Freitas, fica senhor de bens razoáveis e de uma posição no comércio da
cidade que já havia começado a consolidar. Anos antes, em 1876, quando morre a sua
esposa, os bens de Joaquim atingiam um valor total de 17.914$000. Era já proprietário
de metade do patacho Segredo, no valor de 2500$000, de 10 casas de telha baixas,
junto ao Porto das Pipas à Conceição, foreiras a Miguel do Canto e Castro de
Sampaio, bens que lhe vieram da legítima de sua mãe, e de uma grande propriedade
de mato e biscoito no Escampadouro, com 17,5 ha. Era também dono de parte dos
foros ainda em comum com seu pai e irmãos e de parte das dívidas activas deste
último63. Não conhecemos as áreas das suas propriedades, mas sabe-se que na
Conservatória do Registo predial perfaziam um total de 57 prédios, número já bem
razoável e que ultrapassa bem as 28 quotas que tinha seu pai no mesmo registo64. O
investimento na terra parece assim ser uma das mais recorrentes estratégias de
rentabilização das fortunas.

Se Joaquim foi negociante e casou com a filha de um médio negociante, os


seus filhos serão já doutores. Joaquim casará com Júlia Augusta Nogueira, irmã de
Luís António Nogueira, futuro director geral do Ministério do Reino. Um outro seu
cunhado, João António Nogueira, foi escrivão da administração do concelho,
secretário da Associação Comercial, tendo algum peso na vida política local. O pai de
Júlia, Abílio Ponciano, por sua vez, fez fortuna como vendedor à comissão e à
consignação de prédios urbanos e rústicos. Os dois filhos do casal Joaquim e Júlia

61
José Júlio da Rocha Abreu, 100 anos de Actividade Comercial (1864-1964), pp. 6-8.
62
Pedro de Merelim (1974), “Ramo familiar materno de Fernando Pessoa - Nogueiras e Rebelos”,
Atlântida, vol. XVIII, nº 5, p. 228.
63
BPARAH, Inventários Orfanológicos, Júlia Augusta Nogueira de Freitas/ Joaquim José de Sousa
Freitas, Maço 775, ano de 1876.
64
Pedro de Merelim (1974), “Ramo familiar materno de Fernando Pessoa...”, pp. 224-229.

28
Freitas, João e Abílio, vieram estudar para Lisboa65. De novo se vê como os exemplos
familiares encaminhavam as jovens gerações para o aumento do capital escolar.
Quando morre Abílio, ainda a meio dos seus estudos, o seu funeral foi já
acompanhado por todo um cortejo de notáveis, que integrava uma filarmónica, indo o
corpo para o mausoléu de mármore que seu pai já havia construído aquando da morte
da esposa. Curiosamente, entre aqueles que no funeral pegaram nas borlas do manto
estavam quase todos os principais comerciantes e alguns grandes negociantes de
Angra.

João Nogueira de Freitas, o filho sobrevivente, veio a herdar parte dos


negócios e a fundar outros. Era o cônsul francês, tal como seu pai também havia sido
vice-cônsul inglês. Detinha as agências da Insulana e da Fidelidade seguros; em
sociedade com João Belo de Morais fundou uma fábrica de sabão que produzia vários
tipos de sabões, sabonetes medicinais, de alcatrão, ácido fénico e bórico, tendo esta
funcionado até à década de 1920. Para além dessas actividades era o agrónomo da 12ª
região e membro do partido Progressista angrense. Mas a tuberculose minava-o e
afundou-o, tal como às suas iniciativas económicas.

Todavia, em 1902, continuando a ascensão da família, João comprou a Maria


Francisca Borges Leal Corte Real, herdeira do morgado José Borges Leal Corte Real,
a casa da Miragaia, por dois contos de reis, da qual fez armazém e residência. Mas a
doença já o debilitava. No ano anterior, em 1901, passou o negócio de agente da
Insulana para Tomé de Castro neto, futuro genro do seu associado João Belo de
Morais. A agência da companhia Fidelidade também mudará de mãos em 1904, assim
como a fábrica de sabão, ficando ambas com o citado sócio João Belo66.

Quadro 5 - Composição do Património de João Nogueira de Freitas em 1904

Componentes Valor em mil réis Percentagem


Dívidas Activas - -
Bens de Raiz 12.590$ 60.4
Dinheiro - -
Apólices e Títulos 7.300$ 35,02
Mercadorias e Géneros - -
Ouro e Prata - -
Recheio da Casa 945$ 4,5
Dívidas passivas 8.748$ 42
Património Ilíquido 20.844$ 100
Património Líquido 12.096$ 58
Fonte: BPARAH, Inventários Orfanológicos de Angra, maço 1057.

Quando João Nogueira de Freitas morre em 1906 os bens que deixa não são
muitos, mas ainda demonstram alguma da antiga riqueza. O recheio da casa da
Miragaia contemplava um piano, um sofá e oito cadeiras todas estofadas a damasco.
Ele possuía ainda alguns bens em domínios úteis que perfaziam 1569$, e outros em
partes sobre domínios directos e foros no valor de 1046$. Os domínios plenos atingem

65
Pedro de Merelim (1974), “Ramo Familiar Materno de Fernando Pessoa: Cons. Luís António
Nogueira”, Atlântida, vol. XVIII, nº 1-4, pp. 47-67.
66
Pedro de Merelim (1974), “Ramo familiar...” p. 61.

29
os 9981$, de onde se destaca a casa da Miragaia. Em quase todos os bens, o pai,
Joaquim José de Sousa Freitas, ainda era proprietário de 1 quinto do valor. Para além
dos imobiliários havia vinte acções da Companhia Geral do Crédito Predial
Portuguesa no valor de 1050$, aos quais acrescia 6.250$ provenientes de um seguro
de vida. No entanto, as dívidas activas chegavam aos 8748$, em grande parte
contraídas à Caixa Económica de Angra e à Caixa do Montepio Terceirense, sendo
ainda devedor de letras sacadas em nome do seu sócio João Belo de Morais. Depois
de uma tuberculose prolongada e de disputas sobre o património com o pai, é normal
que os bens de João Nogueira de Freitas estivessem reduzidos.

Se esta não é uma história tão feliz como a de Bento José de Matos Abreu,
revela-nos à mesma uma trajectória familiar que começa no escalão mais baixo dos
negócios, passa para uma posição cimeira, e tem na terceira geração a consagração do
capital escolar e das maneiras de distinção burguesas. Por outro lado, este pequeno
caso demonstra-nos como a transmissão de certas posições cimeiras na praça de
Angra, como era o caso de agente da Insulana, se fazia por via familiar ou por outra
qualquer proximidade, sendo que somente, à falta de herdeiros, entravam os amigos e
os sócios.

Quadro 6 - Composição do Património de Guilherme Martins Pinto Sénior em 1887

Componentes Valor em mil réis Percentagem


Dívidas Activas 1.421$ 7.1
Bens de Raiz 14.893$ 74.8
Dinheiro 180$ 0,9
Apólices e Títulos - -
Mercadorias e Géneros 2.941$ 14.8
Ouro e Prata 86$ 0.43
Recheio da Casa 389$ 1,95
Dívidas passivas - -
Património Ilíquido 19.900$ 100
Património Líquido 19.900$ 100
Fonte: BPARAH, Inventários Orfanológicos de Angra, maço 889.

Guilherme Martins Pinto Sénior é o patriarca de outra família de sucesso.


Tendo começado com uma mercearia, o seu negócio floresceu e o seu filho será já um
influente médio capitalista, fazendo parte dos notáveis de segunda linha na política
local, vice-provedor e provedor da Santa Casa da Misericórdia durante um largo
período e director por longos anos da Caixa Económica criada anexa a esta instituição
em 1893. Guilherme Martins Pinto Júnior, politicamente afecto ao partido
Progressista, foi ainda vereador e vogal da Junta Geral67. Em 1904, o Almanaque
Açores fazia-lhe um grande destaque, referindo o seu carácter empreendedor nos
negócios e na vida pública. A longa folha de serviços de Guilherme Júnior ia do
desenvolvimento de infraestruturas durante as passagens pela câmara da cidade, à
direcção da Misericórdia e das Caixas Económicas e à gestão e acumulação de um
crédito bem firmado na praça de Angra68. Contudo, nos finais da década de 1880 a

67
Pedro de Merelim (1971), Memória Histórica da Caixa Económica da Santa Casa da Misericórdia
de Angra do Heroísmo, nas suas “Bodas de Diamante”, Angra: Tip. do Diário Insular, p. 22.
68
Almanaque Açores para 1904, Angra: Tip. Sousa e Andrade, pp. 89-90.

30
fortuna da família ainda não tinha engrossado muito e os negócios do patriarca
mantinham uma sólida pequenez.

Pela análise do seu inventário orfanológico vemos que o recheio da casa de


Guilherme Sénior pouco mais era que o de uma confortável mas simples residência da
classe média burguesa. As peças em prata ou ouro eram poucas e atingiam apenas
85$550. Nos seus bens imobiliários 6743$370 eram constituídos por domínios
directos sobre foros a trigo. Os seus domínios plenos eram quase todos casas na
cidade de Angra, num total de 4, no valor de 7650$000. Existia ainda uma outra casa
que servia de granel e pagava de foro $800 reis anuais aos herdeiros do morgado
Alexandre Martins Pamplona. As duas dívidas activas são sob a forma de hipotecas
sobre bens imóveis e atingiam o valor de 1420$610. O recheio da sua loja foi avaliado
em 2642$000, aos quais teremos que juntar mais uns parcos 173$000 de bens
existentes na alfândega em seu nome e cativos a direitos, num total de 2815$000.

A loja do comerciante Guilherme Sénior era um bric à brac de loiças,


porcelanas, canecas, tigelas, copos, talheres de tipo popular ou mais sofisticado,
bacios e escarradores, ferros de engomar, moinhos para café, chaleiras, panelas,
arames, enxofre, salitre, soda, cal, pedras de amolar, pós de tingir, fechaduras,
dobradiças, pregos e outras ferragens, foices e enxadas americanas, assim como outras
ferramentas. Os produtos alimentares são escassos e ficam-se pelo chá e pelo açúcar.

Como pudemos ver pelo quadro 6, é curioso verificar que grande parte do
património deste comerciante estava já não nas mercadorias e géneros, mas em bens
de raiz. O que como vimos acontecia com frequência no grupo dos grandes
negociantes e capitalistas e que parece denunciar uma passagem desejada da
mercadoria para a acumulação de capital e de bens fundiários. Mais do que
retraimento ou fraco espírito empresarial esta parece ser uma consequência directa de
estratégias de grande prudência e adaptação às conjunturas nos negócios, sobretudo
num distrito que permanecia basicamente agrícola e rural. Nos Açores estavam em
grande medida ausentes factores que potenciassem o desenvolvimento e a
prosperidade dos negociantes e proprietários mais empreendedores, como um
mercado largo e aberto, em expansão acelerada, recursos naturais extensos, produtos
bem integrados nas dinâmicas do comércio externo, e uma vasta mão de obra
relativamente qualificada. Mais do que nos queixarmos da fraca aderência do grupo
dos mais ricos aos valores do empresário moderno, devemos antes avaliar se as
oportunidades de negócios eram, de facto, assim tão alargadas como se tem suposto.
Será que mais do que a gestão moderna e o investimento em inovação não serão as
oportunidades que farão os empresários singrar? E será que o que muitas vezes parece
retraimento não poderá ser apenas prudência e bom senso?69

Um dos factores decisivos do desenvolvimento é a existência de uma estrutura


socioeconómica dotada de agentes capazes de promover a inovação tecnológica e a
mudança. A teoria schumpeteriana põe como condição básica do desenvolvimento
económico a existência de elites empresariais dinâmicas, capazes de apostar na
inovação. Porém, a inovação para existir precisa de mercados com alguma dimensão,

69
Veja-se as referências de Helder Fonseca (1996), Economia e Atitudes Económicas no Alentejo…,
para o sector agrícola, especialmente as pp. 149-167 e 427-430.

31
de capacidade de mobilização de capitais e de acesso fácil a outros mercados e
matérias-primas. De outro modo não se podem introduzir novos bens, a organização
de novos métodos de produção torna-se mais difícil, assim como a conquista de
mercados ou fontes de matérias primas ou semi-transformadas70. Por outro lado, esta
relação não é mecânica e nem sempre a eficiência técnica corresponde à melhor
eficiência económica. Os comportamentos que à partida parecem ser conservadores,
podem mais não ser do que uma adaptação muito pragmática a uma realidade local
marcada por outros constrangimentos à mudança. A ausência de um olhar sobre estes
aspectos pode levar a que se façam interpretações de tipo “culturalista”, e a que se
caia na classificação rápida destas elites como tradicionais e refractárias à mudança.

7 - Conclusão

Como vimos nos pontos precedentes, o mundo da burguesia era bem mais
segmentado e hierarquizado do que à partida uma leitura rápida poderia fazer supor.
Ao contrário da velha imagem de uma Angra aristocrática, surge-nos uma cidade
onde burgueses, classes médias, fidalgos de antiga matrícula e outros morgados
nobres coexistiam num espaço social onde as posições de elite manifestavam uma
crescente fusão entre os vários segmentos. Contudo, esta fusão não quer dizer que não
se tenham estabelecido novas fronteiras e novas marcas de distinção, construídas
através dos diplomas, das práticas culturais, das sociabilidades e dos seus espaços e
do jogo quotidiano das boas maneiras e do saber estar e dispor de si no espaço
público.

O mundo do comércio e dos negócios era um espaço hierarquizado, onde as


heranças e um bom capital de partida eram garantias de relevo no sucesso dos mais
empreendedores. As dinastias dos negócios são bem visíveis e, muitas vezes, iniciam
modernas linhagens que continuamente se manterão bem colocadas no seio da
burguesia de Angra, nunca descendo abaixo de uma posição de classe média, mesmo
passadas duas ou três gerações. Os grandes negociantes não eram normalmente self-
made-men, nem parvenus acabados de chegar à riqueza. Nos negócios, tal como na
terra, as dinastias burguesas existiam e reproduziam-se. Muitas vezes os seus
descendentes continuavam os seus passos e a chama da velha casa de negócios
continuava acesa, mesmo quando parte dos descendentes se ia integrando noutras
carreiras e adaptando a uma vida de lazer.

Nos negócios, uma das estratégias mais bem sucedidas passava por investir em
diferentes áreas. As diferentes actividades podiam ir do comércio de grosso trato da
importação e da exportação de cereais, às representações bancárias ou de seguros, às
agências de navegação, ao sector da distribuição, às actividades industriais, passando
ainda, de uma forma muito marcada, pelo investimento na compra de propriedades
fundiárias. Num pequena ilha e num pequeno mercado não será estranho constatar

70
José Manuel Lopes Cordeiro (1996), “Empresas e empresários portuenses na segunda metade do
século XIX”, Análise Social, nº 136-137, pp. 332; e Joseph Schumpeter, 1978 (1912), Teoria del
Desarollo…

32
como o investimento na terra era comum e como as propriedades em domínio pleno e
os foros formavam o grosso dos bens dos grandes negociantes da cidade.

Um dos factores decisivos do desenvolvimento económico é a existência de


uma estrutura socioeconómica dotada de agentes capazes de promover a inovação
tecnológica e a mudança. A um olhar apressado as fortunas de carácter
essencialmente patrimonial dos grandes burgueses de Angra levariam a pensar que
estes não o seriam integralmente, dada a sua aparência de meros capitalistas do juro e
da especulação, e de rentistas da terra. Todavia, como vimos, estes homens investiram
em várias actividades, tentando diversificar os seus interesses. Para melhor perceber
os seus comportamentos e tirar conclusões definitivas, teríamos que analisar as
restrições e os constrangimentos que afectavam o tecido produtivo local. Nestas
economias periféricas, onde os mercados locais eram estreitos, fragmentados e
marcados pelo autoconsumo camponês, e as comunicações com o exterior difíceis e
dispendiosas, o crescimento económico fazia-se através de sectores muito
especializados fortemente articulados aos impulsos e aos ciclos do comércio
internacional. Esta relação com o comércio era tanto mais forte, quanto era uma boa
articulação com os mercados externos que garantia uma razoável rede de
comunicações e de trocas com o exterior e mesmo o funcionamento regular da própria
distribuição dentro do arquipélago71. O que quer dizer que sempre que as Ilhas
entravam em crise viam-se ainda mais fechadas, os seus espaços económicos
fragmentados, presas a um mercado estreito que não era capaz de garantir a
regularidade dos rendimentos. Nos anos em que a navegação inglesa frequentou os
portos do arquipélago as relações com o exterior foram mais constantes. Iam produtos
agrícolas e regressavam produtos manufacturados que, por sua vez, eram distribuídos
através de um intenso tráfego de pequena cabotagem pelos portos mais pequenos e
periféricos do arquipélago. Os terratenentes e burgueses tinham com que ostentar e
melhorar os seus padrões de vida adequando-os a uma modernidade e a um conforto
que lhes chegavam ao ritmo das velas enfunadas dos navios. A situação financeira
parecia relativamente solvente e a economia próspera. Mas mesmo neste caso convém
diferenciar internamente o arquipélago, destacando-se de um lado a prosperidade mais
evidente de São Miguel, onde nos parece que os efeitos da exportação de laranja
foram mais importantes; de outro ficava a Terceira, mais ligada aos cereais e ao gado,
o Faial bem relacionado com os serviços da navegação, garantidos pelo porto artificial
e pela ampla baía da Horta e, finalmente, as pequenas ilhas que com trajectórias e
graus de fechamento desiguais se articulavam com estes três pólos.

A exploração das vantagens naturais e de produtos agrícolas para exportação,


directamente envolvidos no comércio de longa distância, poderiam ser tão ou mais
indutores de crescimento que a inovação tecnológica, cujos custos económicos de
fixação e de manutenção poderiam ser muito elevados. Entre 1894 e 1912, no grupo
dos indivíduos autorizados pelo Governo Civil a exportar cereais em anos de relativa
crise agrícola, após consulta oficial aos seus granéis, surgem sempre os nomes dos
principais homens da praça de Angra e apenas um ou outro lavrador abastado ou

71
Veja-se o imprescindível livro de Fátima Sequeira Dias (1996b), Uma Estratégia de Sucesso numa
Economia Periférica: a Casa Bensaúde e os Açores (1800-1873), Ponta Delgada: Jornal de Cultura.

33
morgado. Novamente os principais homens do comércio que aqui nos surgem são
aqueles que como vimos atrás tinham uma carteira de interesses bem diversificada72.

Os comportamentos económicos da burguesia dos negócios, tal como vimos


para as elites da terra num trabalho anterior, só podem ser totalmente explicados à luz
de uma história da economia agrícola das Ilhas que durante todo o século XIX se
tentou adaptar, aparentemente, sem grande sucesso aos ciclos e às conjunturas dos
mercados externos. Mas para isso seria necessário um outro estudo. De qualquer
forma, pela rápida passagem que fizemos sobre o crédito e as actividades industriais,
vemos como a economia não se manteve numa estagnação ou sequer numa regressão
e como a participação dos grandes negociantes em todos esses processos se revelou
bem mais notória que a presença das velhas e já decadentes casas fidalgas. Na
verdade, o distrito modernizou-se. E essa modernização é visível não só na sociedade
como também nos sectores económicos73.

Apesar de algumas especificidades decorrentes do carácter periférico e da


forte dependência face aos transportes e às redes de navegação pensamos que a maior
parte destas conclusões podem ser utilizadas como elemento de comparação em
estudos sobre as burguesias e os meios de negócios provincianos do continente. As
ilhas mais do que universos particulares são bons estudos de caso para analisar
características que, de uma forma geral, ocorriam em todos os lugares dotados de uma
distribuição de recursos semelhante.

O capital cultural, uma escolaridade prolongada e uma ligação privilegiada ao


Estado foram factores que se tornaram decisivos na mobilidade social e na
identificação das fracções da elite de distrito. O tempo dos fidalgos cheios de
pergaminhos e de brasões, vivendo opulentos das suas rendas e vínculos, e integrados
em parentelas extensas, cobertos por um estatuto adscritivo que os fazia monopolizar
os cargos de poder e a intermediação com o exterior, começava a surgir como uma
fotografia a ganhar tons de sépia, embora vinda de um passado relativamente recente
onde ainda se reconheciam os protagonistas e as suas histórias.

Sem que se manifeste uma reprodução esmagadora, parte das velhas famílias e
alguns dos seus ramos secundários conseguiram reproduzir a sua posição no espaço
social através do capital escolar e da sua ligação ao emprego público. Este fenómeno
deu origem a algumas famílias da classe média abastada que, mais tarde, veremos a
casar com fortunas do comércio e dos negócios e a formar dinastias burguesas que se
reproduzirão por muitos mais anos. No entanto, o universo da elite de distrito, se bem
que estreito, era relativamente aberto, de modo que as entradas de novos membros
neste universo restrito foram comuns. Filhos de comerciantes e negociantes de Angra,
regressados com os seus diplomas e em cujos bolsos ou trajectória virtual se
perfilhavam as libras das heranças, eram aceites e integrados no seio da elite. Nalguns
casos, a fortuna podia mesmo ser relativamente modesta, ou o indivíduo vir de fora
dos pequenos mundos das ilhas, mas para o novo bacharel o circuito do poder, da
política e um emprego prestigiado, bem remunerado ou, pelo menos, estável, abriam-
lhe as portas das sociedades e das casas das boas famílias.
72
Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas: Poder, Trajectórias, e Reprodução Social dos
Grupos Dominantes no Distrito de Angra do Heroísmo (1860-1910), anexo II.
73
Ver Paulo Silveira e Sousa (1998), As Elites Periféricas...

34
O controle e a actividade directa no comércio e no crédito não eram
incompatíveis com uma vida de rentista, com determinados comportamentos
aristocratizantes, socialmente reconhecidos como sendo de elite ou de distinção. Esta
era uma característica que se poderia manter e aprofundar nas novas gerações,
dependendo do sucesso e das estratégias de mobilidade das famílias, num movimento
que as afastaria sempre do trabalho e da participação directa nos negócios. No último
quartel do século XIX, ao fim de umas poucas gerações de sucesso, moldava-se um
grupo relativamente coeso que se assemelhava no capital económico, mas também
nos capitais cultural, social e simbólico, capaz de ter os mesmos modos de vida, as
mesmas formas de lazer e por vezes até a mesma hexis corporal e comportamento
social em interacção com terceiros. Todas estas características eram ainda reforçadas
através do aprofundamento dos laços de parentesco - que contribuíam para unificar os
símbolos de classe - pelas manifestações de caridade e de poder, e pelas formas de
exposição pública de si e da sua riqueza.

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