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LOMBARD, Maurice - Espaces et réseaux du haut Moyen Age.

Paris : Mouton,
1972.
Tradução feita por: Fernando Mouta (estudante de História Económica e Social
na Época Medieval em 2012-13).

Cap. III
A evolução urbana durante a alta idade média

É tradicional centrar a problemática urbana da alta idade média quase unicamente no


Noroeste Europeu (França, Países Baixos, nas regiões à volta do Reno) e, assim centrados, de
a inscrever entre dois dados irrefutáveis: um ponto de partida e um ponto de chegada muito
claros. Na origem, temos uma decadência urbana, que começa com a crise económica do
Império Romano no século III e que marca a eliminação progressiva da cidade antiga, das
instituições urbanas e do género de vida urbana no Ocidente, que se barbariza e ruraliza cada
vez mais. No final, dá-se uma renovação urbana, que se inicia no Ocidente a partir dos séculos
X e XI. As cidades e formas urbanas reaparecem, esporádicas e cada vez mais densas. O
movimento cresce paulatinamente e a cidade ganha forma, ganhando o nome de cidade
medieval. Essa cidade, mesmo quando parece renascer das cinzas da cidade antiga e se
instala sobre o mesmo local da cidade galo-romana ou nas suas proximidades, apresenta
características completamente diferentes.

A cidade romana apresenta-se sobre a forma de um núcleo monumental, bastante


constrito, onde encontramos o fórum, o templo e o praetorium. Todo o restante espaço urbano,
ao qual chamamos cidade antiga, afecta uma ordem dispersa: villas, cabanas, jardins e
culturas formam uma zona urbana mal delimitada; não há muralha para estabelecer uma
separação material entre a cidade e o campo, o subúrbio não existe. A noção de subúrbio é
uma noção medieval: aquilo que está para lá da cintura urbana, Pelo contrário, na cidade
romana temos a impressão de um espaço indefinido de novos bairros residenciais. Aqui está a
cidade antiga, toda ela influenciada pela vida camponesa. No Ocidente, esta cidade romana é
habitada por funcionários que vivem dos seus emolumentos e por proprietários agrários que
tiram rendimentos dessa terra que circunda a cidade. E são esses proprietários que formam a
classe dirigente, o elemento abastado da cidade antiga. Note-se também a presença de alguns
artesãos e mercadores atraídos pelos amplos mercados de consumo disponíveis. Então, esta
cidade administrativa e militar (na sua origem, pelo menos), criada ao longo de vias
estratégicas romanas e sobretudo nos seus cruzamentos; mas também criadas ao longo de
antigas vias gaulesas que preexistiam a rede romana. Um pequeno comércio e uma pequena
indústria citadina não tarda a desenvolver-se para suprir as necessidades dessa população de
administradores e militares. Depois, os proprietários dos arredores instalam-se no novo
aglomerado, atraídos por um modo de vida melhor, por comodidades trazidas por
fornecedores, atraídos também pelos espetáculos, pelo teatro, por anfiteatros, enfim, pelo
desejo de preencher as funções municipais, onerosas mas muito honoríficas.

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A cidade medieval, se percorrermos de uma só vez toda a evolução, apresenta um
esquema bastante diferente e bem conhecido: individualizada pela sua muralha que encerra
habitações estreitamente prensadas umas contra as outras; os subúrbios (artesanais e
comerciais) localizados para além da muralha e que, pouco a pouco, serão englobados pelo
perímetro urbano; o plano urbanístico oferece-nos uma típica sucessão de cinturas fortificadas.
Adquire então formas urbanas que se destacam das formas rurais dos arredores que englobam
uma parte significativa da paisagem. Mesmo as zonas que, topograficamente, não são tocadas
pela proliferação monumental provocada pelo desenvolvimento urbano, submetem-se à
influência da cidade e são penetradas por essas influências. Esta nova cidade é habitada por
burgueses, que vivem sobretudo do comércio e da produção industrial e que formam um
patriciado urbano, uma classe rica e dirigente. É também habitada por um proletariado urbano
que permite à cidade jogar um papel de centro produtor. Numa palavra, a cidade medieval é,
antes de mais, uma cidade de função económica.

Como e porquê, no nosso Ocidente profundamente rural, florestal mesmo, se passou


dessa primeira forma urbana, a da cidade da antiguidade, para a cidade medieval? Sobretudo,
em que momentos se colocam, no Ocidente bárbaro, essa decadência urbana e posterior
recuperação? E, finalmente, que traçado preciso e que cronologia atribuir à curva de evolução
urbana do Séc. III até ao Séc. XI? Curva essa que sabemos descer até um momento (momento
esse a determinar) e que sobe de seguida. Qual é o ponto mais baixo da curva, de acordo com
os locais considerados, e qual a sua progressão no espaço dessa renovação urbana, que se
estende como uma mancha de óleo?

É este problema global, muito vasto, da evolução urbana na alta idade média, e não os
diferentes problemas da história urbana, que gostaria de estudar, limitando-me aos
pressupostos da questão

Para tentar traçar com a maior precisão possível a curva da evolução urbana, a sua
cronologia e a sua geografia, é preciso escapar do estreito círculo do horizonte ocidental:
durante a alta idade média, o ritmo do movimento urbano não decorre em ambientes fechados
no interior dos países do Ocidente. Começando no Ocidente do Séc. III e para chegar ao Séc.
XI, devemos cumprir um longo périplo, mediterrânico e oriental, e compreenderemos melhor a
chamada renovação urbana, a sua cronologia e seus itinerários.

Este é um périplo bastante longo e, difícil sobretudo, devido à multiplicidade de línguas


utilizadas pelas nossas fontes: latim e grego, mas também árabe, hebreu, siríaco, persa, etc.
Se o medievalista conhece suficientemente bem o latim e também o grego, a maior parte das
vezes não conhece, salvo honrosas excepções, as línguas orientais. É justamente por esta
ignorância linguística de uma parte da documentação utilizada que explica o erro daqueles que
introduziram os factores “Oriente”, “Islão” ou “Maomé”, sem sair do estreito quadro imposto
pelas fontes ocidentais; particularmente é este o erro de Pirenne. O grande historiador belga
traduziu por uma ruptura na história das relações entre o Oriente e Ocidente o que não foi mais

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que uma ruptura nas suas fontes e nos dados que delas podia retirar. Um outro erro aparece
na obra de Pirenne (sobretudo nas suas duas obras de síntese “Maomé e Carlos Magno” e “As
cidades da idade média”, onde ele desenvolveu as suas teorias gerais): uma falha de
perspectiva histórica que fez com que adoptasse uma cronologia demasiado curta e demasiado
específica para as influências que acreditava ter revelado e que não podiam propagar-se tão
rapidamente como afirmou, isto nas condições gerais da economia da alta idade média. Para
ele, as conquistas “árabes” ainda não estão concluídas e a economia no Ocidente está, ipso
facto, estagnada: a cidade, que seja mantida depois da Antiguidade, entra em decadência.
Notemos de passagem que ele dispunha de muito pouco tempo para posicionar essa descida
na curva, provocada segundo ele pela expansão do Islão, antes de perceber, graças às fontes
que dispunha e que conhecia bem, o início da subida, da renovação urbana do Ocidente. Esta
rapidez, atribuída por ele ao contragolpe das conquistas islâmicas sobre a economia do
Ocidente bárbaro não é explicada, mas parece-me baseada na projecção imprudente das
teorias económicas contemporâneas num passado muito distante: os economistas actuais
vivem numa parte do nosso mundo moderno; as economias da Ásia Central, da África negra ou
das ilhas polinésias são pouco representadas nos tratados de economia política. A matéria dos
economistas é a parte mais evoluída, a mais febril do nosso planeta, aquela onde um evento
que se passa em Nova Iorque pode ter uma reacção imediata em Londres ou Paris; é neste
quadro de acções e reacções quase instantâneas que os economistas modernos elaboraram
as suas teorias e leis. Os historiadores devem-lhes muito; não se trata de uma questão de
minimizar a importância da sua contribuição para os novos pontos de vista onde se situa a
ciência histórica de hoje. Somente precisamos fazer a separação entre o método de trabalho e
os resultados desse trabalho. Esses resultados, válidos para o nosso tempo na maior parte dos
casos, não podem ser transportados para o passado; e sobretudo para um passado tão
longínquo como o da alta idade média, com um clima económico completamente diferente em
que a principal característica é a lentidão dos processos, dos ciclos económicos, das acções e
das reacções; lentidão devida naturalmente à dificuldade de comunicações, à imensidão dos
espaços caracterizados outra vez por uma economia muito pouco diferenciada. Se, nos dias de
hoje, as zonas de economia primitiva nos aparecem como ilhotas no meio do fluxo da
circulação moderna, na época que nos ocupamos – a alta idade média -, essas zonas de vida
primitiva estendem-se pelo conjunto do globo; pelo contrário, eram ínfimos os pontos em que
se tinha adquirido já uma certa técnica de relações gerais e uma relativa diferenciação
económica. Não eram mais que minúsculas ilhotas ligadas umas às outras por ligações muito
ténues no meio de imensos espaços selvagens e quase vazios.

É preciso ter em conta, quando projectamos problemas económicos no passado, nas


condições materiais completamente diferentes das nossas e em quadros mentais ainda mais
distintos. É nesse momento que o historiador deve virar-se para o sociólogo, que o esclarecerá
sobre essas mentalidades tão estranhas às nossas. Aqui impõem-se uma colaboração
permanente entre o economista “puro”, o sociólogo “puro” e o historiador que, em oposição,
poderemos qualificar de “impuro”, porque nele se misturam todas os passos e todos os

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inquéritos para “ influenciar as teorias com as curvas do real”, como dizia Bergson; ao corrente
dos últimos trabalhos dos economistas, ele projecta no passado os problemas que se passam
no nosso tempo, os problemas e não os resultados, os métodos e não as teorias já feitas, e
tendo presente na melhor conta o tempo e o meio social para onde esses problemas são
transportados, ou melhor, transpostos.

Assim, uma das constatações feitas no curso das nossas pesquisas é a correlação
íntima que existe entre o afluxo de metais preciosos e o aumento de moedas em circulação,
por um lado, e, por outro, o desenvolvimento urbano, a multiplicação e o crescimento das
cidades. Dito de outra forma, os ritmos monetários e urbanos confundem-se durante a alta
idade média. Qualquer restrição na circulação monetária (quebra da exploração mineira, o
corte das rotas de fornecimento de ouro, fuga para o exterior causada por uma balança
comercial deficitária, entesouramento) traduz-se numa decadência urbana, numa quebra da
actividade económica das cidades e uma perda da sua pujança social. Pelo contrário, todo o
novo influxo de metais preciosos (descobertas de jazidas, captura de rotas comerciais que
trazem materiais de novas minas, afluxo de moeda causada por uma balança comercial
excedentária, reposição na circulação do ouro entesourado) traduz-se num desenvolvimento
urbano bastante líquido, uma retoma da actividade económica e da pujança social da cidade,
em detrimento do campo e do domínio. É o verdadeiro problema dos vasos comunicantes:
assim que a circulação monetária se torna mais intensa apagam-se progressivamente as
formais rurais e a pujança social dos campos; pelo contrário, essas formas rurais dominam
quando o fenómeno é inverso – como se uma economia monetária equivalesse
necessariamente a uma economia urbana.

Esta afirmação de uma ligação íntima entre a circulação monetária e o


desenvolvimento urbano não tem nada de revolucionário; ela vai simplesmente permitir-nos
melhor precisar as etapas cronológicas, a extensão geográfica e as modalidades da evolução
urbana durante a alta idade média, para melhor colocar a questão do problema global.

Primeira Fase: Séculos III a IV


A decadência urbana no Ocidente romano e o desenvolvimento urbano na zona oriental
do Império

André Piganiol, resumindo as suas ideias num dos volumes da colecção Glotz, fala-nos
da ruína das cidades do Séc. III e do Séc. IV: essas cidades foram arruinadas pelas invasões
bárbaras e pelos abusos governamentais. No Ocidente, essas invasões foram possíveis pelas
lutas de legiões rivais do Reno e do Danúbio, que abandonaram as suas posições no limes e
se dirigiram para a Itália para melhor combaterem entre si e tentar que os seus candidatos
triunfassem na contenda pelo trono Imperial. Os Bárbaros puderam então encetar grandes
incursões através do mundo romano do Ocidente: os Francos na Gália e na Hispânia, de 253 a
268; os Alamanos na Gália e na Itália em 268; Os Suevos no norte da Itália em 270-71. Depois,
foi a terrível invasão da Gália pelos Germanos, em 275. O Imperador Probus teve de

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reconquistar 70 cidades antes de rechaçar os Bárbaros de volta para lá do Reno. Os ataques
combinados multiplicam-se: Alamanos em 268, Vândalos em 288, Burgúndios em 291. As
cidades sofrem: pilhagens, desgastes consideráveis, são tomadas, saqueadas, incendiadas,
etc. Como disse um autor da época, “as hordas bárbaras levaram para a Germania as riquezas
da Gália”. Seguem-se uma série de movimentos, de roubos, de revoltas sangrentas nos
campos, durante todo o séc. IV. É a ruína das cidades:

“No meio dos escombros das grandes cidades, grupos dispersos de miseráveis,
testemunhas de calamidades passadas, ainda nos testemunham os nomes de antigamente.”

O Oriente é também atacado pelos povos iranianos, os Sármatas ou Caucasianos, os


Alanos, e sobretudo pelos Germanos orientais, os Godos. Os Godos, em 256, chegam a
Tessalónica. A seguir, através do Mar Negro, os navios godos e sármatas lançam-se através
do Helesponto: quase todas as cidades costeiras da Ásia Menor são destruídas. Em 269, uma
verdadeira coligação de todos os Bárbaros das estepes atravessa o Danúbio. São somente
derrotados, com grandes dificuldades, por Cláudio II em Naissos, na Alta Sérvia.

As cidades, para resistir aos Bárbaros e ladrões que se seguiam, cercam-se de


muralhas nos séc. III e IV. Na Gália fecham-se em cinturas bastante estreitas, e essas cinturas,
facto interessante, utilizam muitas vezes o traçado original do velho oppidum gaulês. A cidade,
ou o que continuamos a apelidar de cidade, toma o aspecto, tão característico das cidades
medievais, de uma fortaleza, ou seja, a forma do castrum, do burgus.

No início, o que arruinou as cidades foi a pilhagem dos invasores bárbaros. Mas
também, como nos diz André Piganiol, pelos abusos governamentais e pela política dos
imperadores em relação às cidades, que as privavam das suas riquezas e dos seus recursos
humanos. Privavam-nas das suas riquezas ao suprimir os rendimentos que elas tiravam das
terras que as circundavam, em benefício do lucro do grande domínio imperial. Para além disso,
as magistraturas não são mais que munera. Aos ricos, impõem-se serviços gratuitos e aos
pobres exige-se a força dos seus braços. Uns e outros, para escapar a estas cargas cada vez
mais pesadas, fogem da cidade. O rico dirige-se para o seu domínio rural e o pobre refugia-se
também no campo; abandonam a cidade onde estão mais sujeitos à inquisição do Estado. A
população urbana empobrece, a cidade é progressivamente privada do seu material humano,
da sua resiliência social. Se as invasões bárbaras demoliram materialmente as cidades, a
política dos imperadores demoliu-as socialmente, e por isso a decadência urbana, local cada
vez mais tomado pelo grande domínio, pela ruralização.

Esta análise é bem verdadeira. No entanto, não toma em conta o desenvolvimento


urbano bem real na zona oriental do Império. A criação de Constantinopla, que será uma das
maiores cidades da idade média – durante bastante tempo a maior de todas – e que não
cederá o primeiro lugar para Bagdad senão no séc. IX, acontece entre 324 e 331: feito imenso
para a história urbana geral e que não encaixa numa ideia de decadência urbana generalizada
a partir do séc. III.

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A causa profunda da decadência urbana do Ocidente romano e, por outro lado, da
pujança urbana do Oriente romano, deve ser procurada noutro lugar: na repartição desigual
dos stocks de ouro entre o Oriente e o Ocidente. A actividade económica que entra em declínio
no Ocidente, mas que se mantêm no Oriente, relata-nos essa deslocação de condições
económicas e urbanas entre as duas bacias do mundo mediterrâneo nos séc. III e IV. O artigo
de G. I. Bratianu sobre a repartição do ouro no final do Império romano traz à luz essa
diferença de volume de stocks do metal amarelo entre as duas metades do mundo romano. O
Ocidente esvazia-se cada vez mais do ouro que as conquistas romanas haviam acumulado nas
pilhagens sistemáticas dos tesouros guardados no Oriente helenístico. Esse ouro, a partir do
fim do séc. II, e sobretudo durante os séc. III e IV, foge para o Oriente para pagar as compras
de produtos de luxo orientais, tornados essenciais para a civilização mediterrânica. O comércio
dessas ricas mercadorias orientais está todo nas mãos dos Levantinos: Gregos, Egípcios e
sobretudo Sírios. As cidades do Egipto e da Síria são os centros do trânsito entre os países
fornecedores dos objectos de luxo (de uma forma geral, o Oceano Índico e a Ásia) e os
grandes mercados consumidores, que são ainda, antes do séc. IV, Roma e as cidades
ocidentais. É a partir do séc. II o momento em que os Levantinos vão iniciar o seu papel de
mestres do comércio do Ocidente. Até essa altura a sua actividade estava sobretudo voltada
para o Oriente. Eles percorrem e dominam as rotas do Mar Vermelho, da Mesopotâmia e do
Irão. O Império Parta é explorado por eles e o Oceano Índico é sulcado por navios de
Alexandria. Assim, no decurso do séc. III, no Oriente, organiza-se o Império dos Persas
Sassânidas, que substitui o Império Parta Arsácida. A uma dominação que podemos chamar
amiga da cultura grega, que deixava os estrangeiros da Pars Orientis do Império penetrar no
seu território e aí comerciar frutuosamente, sucede um Estado xenófobo, de base
estreitamente nacionalista; e os homens de negócio levantinos, no decorrer do séc. III, são
lentamente afastados das rotas do Oriente. Viram-se então para o Ocidente, e é nesse
momento em que o comércio ocidental começa a passar para o domínio desses Levantinos, os
Syri da alta idade média. É também este o momento em que se inicia, pelas suas importações,
a drenagem do ouro ocidental, que vai conduzir à exaustão quase total das reservas no final do
séc. VI, inícios do séc. VII. O ouro escapa-se do Ocidente romano, esse ouro que é o motor de
uma vida económica activa e o suporte de uma vida urbana próspera.

Pelo contrário, a circulação de ouro na parte oriental do Impérios, durantes os séc. III,
IV e V, continuam activa. Será ela que permitirá às velhas metrópoles helenísticas, Alexandria
e Antioquia, continuar a sua actividade económica, e que também permitirá a criação, e
posterior desenvolvimento da nova grande cidade, Constantinopla. Esta criação constantiniana
deve ser ligada a um outro facto, também obra de Constantino: a cunhagem de uma moeda
sólida, o solidus aurens, que se chama, nas províncias orientais, dènarion chrusoûn ou denário
de ouro, que está na origem da palavra árabe dinâr, a grande unidade monetária do califado.

O movimento urbano é atraído ao Oriente por esta circulação monetária que se


mantém intensa, enquanto que no Ocidente pára e decresce: a anemia urbana não é mais que
o corolário da anemia monetária.

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Segunda Fase: Séculos V a VII
Acentuada decadência urbana no Ocidente bárbaro – Estagnação e posterior recuo do
movimento urbano no Império bizantino – Desenvolvimento urbano no Oriente sassânida

Novos invasores chegam ao Ocidente, concluindo a ruína das cidades da Pars


Occidentalis já sujeitas a duras privações durante os séc. III e IV e que, na maioria dos casos,
não puderam levantar as suas ruínas: conhecemos as dificuldades, ou mesmo impossibilidade,
da reconstrução em períodos de depressão económica, quando falta o dinheiro. As cidades –
ou o que resta delas – são novamente pilhadas e arrasadas pelas grandes invasões do séc. V,
nomeadamente as cidades da Gália, em 406-407. Um autor diz-nos que toda a Gália ardeu
como uma tocha: Uno fumavit Gallia tota rogo. As cidades da Hispânia e da África do Norte são
devastadas pelos Vândalos, as cidades da Itália pelos Hunos, Visigodos e Vândalos: em 451,
Aquileia é completamente destruída e, passado um século, não se reconhece a localização de
tão pujante cidade, durante muito tempo a principal praça de comércio da Itália do Norte e a
grande fornecedora do limes danubiano. Os habitantes de Aquileia fugiram para todos os
lados; muitos refugiaram-se nas lagoas do delta do Pó e seus afluentes; aí chegados,
instalaram-se num local um pouco mais elevado, dominante sobre as terras baixas, rivum
altum, Rialto, a futura Veneza. Mas Veneza não começa imediatamente o seu crescimento; o
seu magnífico desenvolvimento urbano é atribuído a um outro momento, ao momento em que a
moeda afluirá a esta região do fundo do Adriático, permitindo a Veneza jogar um papel de
árbitro entre o mundo ocidental, com o padrão prata, e o mundo oriental, bizantino e
muçulmano, com o padrão ouro. Nesta altura, somente algumas cabanas de pescadores
marcam o território onde se elevará uma das primeiras cidades a ser alcançada pelo
movimento de renovação. Os dois saques de Roma – em 410 pelos Visigodos de Alarico, em
455 pelos Vândalos de Genserico – completam a lista de novas desgraças a somar às antigas.

Mas aquilo que torna essas ruinas irreparáveis é a acentuação da fuga do ouro do
Ocidente para o Oriente. Se a moeda pudesse afluir a esta região afligida pelos bárbaros, as
tarefas da reconstrução teriam sido facilitadas e as cidades destruídas, após o primeiro
momento brutal da conquista, mas poderiam ter-se levantado das suas ruínas mais fortes que
antes. Mas o volume de ouro em circulação vai cada vez mais diminuindo nos reinos
germânicos: diminui, em primeiro lugar, no seguimento de um entesouramento massivo que
acontece na época das invasões; encontraram-se muitos tesouros enterrados nas vizinhanças
das muralhas pontilhando o perímetro urbano dos castra e dos burgi. Esse ouro foi
inteiramente perdido para a circulação monetária da época. Quanto ao ouro não entesourado,
foi utilizado para comprar aos países do Oriente alguns artigos de um luxo que a decadência
das técnicas não permitia ao Ocidente produzir ele mesmo; e os Bárbaros eram entusiastas de
bons vestuários e ricas joias. Esse comércio de importação, se estivermos localizados no
Ocidente, é cada vez mais monopólio dos Syri. É um comércio de sentido único, sem

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contrapartida de mercadorias, já que o Ocidente não tinha nada para exportar para o Oriente
que este não encontrasse no Egipto, na Síria, nos países do Mar Negro ou dos Balcãs.

Insistamos sobre este aspecto do comércio ocidental. O grande comércio dos países
do Ocidente, na bela época romana, era essencialmente um comércio de exportação de
alimentos e de matérias-primas, com destino sobretudo ao grande mercado de consumo que
era Roma (que continha cerca de um milhão de habitantes, o que a tornava um enorme centro
apelativo): o chamado comércio de materiais pesados. Esse comércio vai desaparecer com o
declínio do mercado urbano de Roma, com o seu abandono em favor de Constantinopla. Uma
prova, entre outras, é encontrarmos nas margens do Tibre, o Monte Testaccio, uma colina
inteiramente constituída pelos detritos das ânforas utilizadas para guardar o óleo da Hispânia,
trazido para ser consumido na capital: estas ânforas estão datadas e 257 é a última data
registada.

Pelo contrário, o comércio de luxo oriental vai sobreviver. É um comércio de objectos


muito leves e ao mesmo tempo muito caros, que gera grandes lucros para um pequeno volume
de mercadorias. Este comércio vai-se manter, tanto que durará no Ocidente a possibilidade (e
não somente o desejo) de comprar os ornamentos e os ricos vestuários oferecidos pela
indústria oriental, enquanto subsistir no Ocidente uma classe de ricos, possuidores de ouro: os
soberanos, os grandes senhores ou as igrejas. São eles que procuram os produtos de luxo do
Oriente, trazidos pelos Syri. Este comércio vai-se afunilando, de forma continuada, até ao fim
do séc. VI. Nesse momento assiste-se a uma secagem completa das correntes comerciais no
Ocidente bárbaro. Os Syri deixam de vir ao Ocidente porque o Ocidente deixa de lhes poder
fornecer as moedas de ouro a que antes estavam acostumados. Constatamos uma verdadeira
atonia monetária que se traduz por um aspecto miserável das moedas, por uma circulação
reduzida ao extremo, pelo término das relações comerciais gerais. É neste momento que
podemos colocar o fundo da curva económica e o ponto mais alto da decadência urbana: o fim
do séc. VI, início do séc. VII. O aspecto rural, dominial, prevalece cada vez mais em todas as
regiões do Ocidente: na Inglaterra, na Gália, na Hispânia e na Itália. A paisagem rural, no
Ocidente, e a paisagem florestal, na parte nórdica do Ocidente, reaparecem cada vez mais. Na
África, não é o domínio rural que triunfa, mas a tenda, o nomadismo; o deserto ganha à estepe
e invade tudo. O cavaleiro nómada, o “númida”, sobre o seu cavalo com barbela (os berberes),
tinha sido afastado ou fixado pelo desenvolvimento urbano trazido por Cartago, e seguido
sobretudo por Roma. Mas o nómada vai reclamar e ampliar esses terrenos de passagem a
partir do séc. III, momento em que dispõe de um novo instrumento, o camelo, que é introduzido
na Berbéria pela Cirenaica. A criação de dromedários desenvolve-se e, com ele, a tribo de
camelos. Zonas cada vez mais importantes são reclamadas para a pastorícia e para os
percursos, rasgados aos terrenos de cultivo fornecedores de alimentação aos aglomerados
urbanos; a grande luta começa entre o nómada e o sedentário, entre o cameleiro e o agricultor:
conflito ainda em curso, mas que nos nossos dias se encontra em detrimento do nómada
cameleiro. A cidade da África do Norte não foi devorada pelo campo. Ela morreu porque não
havia campo à sua volta, porque as terras de cultura foram reclamadas pela pastorícia, pela

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estepe, pelas áreas de percurso do nómada. As cidades africanas contraem-se, perdem
população face aos nómadas, exactamente o que acontece nas cidades da Europa ocidental
em relação aos grandes domínios rurais.

Ruralização por um lado, nomadização por outro, deflação urbana e barbarização em


ambos os lados: a cidade não consegue defender-se com a sua arma própria, a moeda. Mais
tarde, sem que as condições naturais tenham mudado, quando a moeda regressa, quando os
países forem novamente irrigados por esse meio privilegiado de trocas, a vida urbana
renascerá, tanto na Europa ruralizada como na África nomadizada.

Se passarmos agora pela bacia oriental do Mediterrâneo, constatamos primeiro a


paragem do grande movimento urbano marcado pela criação e primeiros progressos de
Constantinopla, depois uma estagnação e, em breve, um recuo da actividade urbana no
Império bizantino. O desenvolvimento urbano desacelerou na segunda metade do séc. VI. É
então que se produz um estreitamento e reforço da actividade urbana e, paralelamente, uma
evolução para o grande domínio, para a ancilose dominial. Sobre o plano social, constrói-se a
senhoria fundiária e está-se em vias de cristalizar a grande casa senhorial. Sobre o plano
económico, a célula dominial fechada está em formação. No séc. VII, no Oriente mediterrânico,
ainda não chegamos à forma quase perfeita que a senhoria toma neste momento no Ocidente
bárbaro, mas para lá se caminha. Podemos seguir as etapas nos papiros egípcios, essa massa
de documentos emanada pela maioria dos serviços dos grandes proprietários. Um outro
testemunho permite-nos também apreender essa evolução no conjunto dos territórios
bizantinos: os registos imperiais, que nos falam da luta incessante travada pelos imperadores
contra as usurpações das grandes aristocracias fundiárias, e dos esforços paralelos feitos para
dar uma nova vida às cidades. No Oriente bizantino, que conserva as suas formas de estado, a
economia dirigida por estruturas centrais, os basileis esforçam-se por travar, com níveis de
sucesso diverso, a evolução natural para a fórmula dominial. No entanto, não conseguem
impedir o declínio do movimento urbano. As cidades do delta egípcio, antes tão ricas e
populosas, empobrecem em moeda e em homens. Os burgueses das cidades do interior,
afectados mais rapidamente, afluem a Alexandria, que continua um centro económico ainda
activo e que, cada vez mais parece um mundo à parte, justaposto à restante terra egípcia, que
regressa pouco a pouco às suas formas rurais primitivas. No interior, permanecem somente as
massas de camponeses indígenas (os coptas, os fellahs), os sacerdotes e os monges que
capturaram todas as terras à volta dos seus mosteiros fortificados, e também os grandes
proprietários fundiários que vivem no seu domínio com os seus agentes, os seus guardas e
servidores: em resumo, os servos e o seu senhor, quer seja laico ou eclesiástico.

As crónicas eclesiásticas sírias dizem-nos o mesmo: na Síria como no Egipto, a


actividade mantem-se nas cidades comerciais da costa, mas no interior deixa de haver cidades
verdadeiramente importantes; não encontramos mais que populações rurais escravizadas

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pelos grandes proprietários fundiários, incluindo aquelas onde os nómadas árabes se
começam a infiltrar.

A mesma evolução na Ásia Menor: as cidades do planalto anatólio declinam, ao


mesmo tempo que alguns portos do Mar Egeu continuam activos. No interior, edificam-se as
grandes casas senhoriais, cuja independência e turbulência será, posteriormente, causa de
tanta preocupação para o Império bizantino. Aí desenvolvem-se formas de nomadização:
extensão de zonas de pastagem e a multiplicação dos grandes rebanhos de ovelhas, toda uma
vida pastoral que se estende ao mesmo tempo que desvanece o aspecto urbano tão
característico da Ásia Menor à época do início do cristianismo e dos primeiros concílios.

O mesmo se passa na península dos Balcãs, onde toda a actividade económica e


urbana se concentra em Tessalónica e Constantinopla, e o resto do país está submetido a uma
ruralização muito clara, acentuada pela instalação dos Eslavos, no séc. IV, na Macedónia,
Grécia Central e Peloponeso. Trouxeram consigo uma forma muito particular de ocupação dos
solos: aldeia dispersa, com pequenas casas separadas por culturas, a Zadrouga eslava, que
não tem nem aspecto nem função de cidade no sentido que nós entendemos – um núcleo
monumental de valor económico.

As cidades, no Oriente bizantino do fim do séc. VI e do início do séc. VII, aparecem-nos


como ilhotas no meio de vastos espaços ganhos cada vez mais por uma economia rural e
pastoral: recuo muito claro, malgrado a luta desesperada dos imperadores para apoiar o
movimento urbano, lutar contras as grades casas senhoriais e manter em respeito as hordas
nómadas. São estes os grandes factos aparentes da história urbana bizantina dos séc. VI e VII.
A razão profunda deve ser procurada – aqui também – numa restrição da circulação monetária.
É neste momento que as rotas, que traziam para as oficinas bizantinas o ouro dos Urais e da
Núbia, são cortadas pelas incursões dos nómadas; o momento em que diminui a corrente de
ouro cunhado que chegava do Ocidente pela intermediação dos Syri; o momento em que se
acentua a fuga de ouro para o interior do Império sassânida que é agora o transitário
obrigatório e dominante sobre todas as rotas de comércio entre o Oceano Indico e o
Mediterrâneo. Os dois processos sobrepõem-se um ao outro: a decadência urbana e, ao
mesmo tempo, diminuição do volume de ouro em circulação.

Continuamos mais longe para Este, para além do Império sassânida. O Irão, bem como
a Mesopotâmia, são regiões secas, zonas desérticas pontilhadas de oásis que se sucedem
como uma corrente desde a Ásia Central até ao Mediterrâneo e Golfo Pérsico. Nestes oásis
desenvolve-se um estilo de vida particular muito ligado à irrigação e que permite a cultura
extensiva de palmeiras, de árvores frutíferas, bem como de plantas de cariz tropical: o arroz, a
cana-de-açúcar, o algodão. Estas culturas irrigadas e ajardinadas, são culturas intensivas e
trazem imensas possibilidades para a alimentação e vestuário de grandes aglomerados
urbanos. Podemos dizer que o oásis chama e suporta a vida. Assim como a floresta ocidental é
hostil à cidade (tanto que as grandes clareiras cultivadas não a areja nem enriquece), o oásis

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oriental é favorável ao desenvolvimento de grandes metrópoles. No vasto oásis central que é a
Mesopotâmia, sucederam-se as grandes capitais do Oriente: Babilónia, depois Selêucia,
depois Ctésiphon. A cada impulso urbano corresponde uma extensão das terras cultivadas.

A época sassânida caracteriza-se por um desenvolvimento das irrigações, das


plantações e, ao mesmo tempo, por um movimento urbano em pleno crescimento. É um facto
capital sobre o qual ainda não foi dada suficiente importância. Numerosas cidades foram
criadas pelos soberanos sassânidas, que foram grandes construtores, e que encontramos
ainda na toponímia iraniana, com o seu nome seguida pela terminação abad, “a cidade”:
Firoûzabad, Bahramabad… ou incorporados nos nomes das novas cidades: Rêv-Ardachîr,
Nêv-Chahpoûhr, Râm-Kavâdh… Em torno do núcleo duplo antigo Selêucia-Ctésiphon surgem,
entre os sec. IV e VI, novas aglomerações satélites: Vêh-Ardachîr, Mâhôzé…

Estas cidades sassânidas são habitadas por uma população de artesãos,


comerciantes, por uma “burguesia” enriquecida pelo comércio, população essa que não era
nobre mas era livre, que pagava um imposto pessoal ao Estado, mas que não se apresentava
nem às tarefas, nem ao serviço militar. É o momento em que às tradicionais classes da Avesta
– sacerdotes, guerreiros e agricultores – se junta uma quarta classe, a dos Hûtukhsh (“os
industriosos”, em língua pehlvi), que inclui os artesãos e os comerciantes. Esta classe activa da
população não surgiu depois, mas a consagração que ela obtém no quadro religioso indica
claramente o crescimento da sua pujança económica e social. No séc. VI, o vasto e profundo
movimento do zoroastrismo – movimento social colorido, como sempre no Oriente, de
messianismo religioso – torna plenamente consciente a importância crescente das massas
urbanas no Império sassânida.

Paralelamente, assistimos ao declínio progressivo dos senhores fundiários, os dihqâns


(“os nobres proprietários de terras”). Eles perdem cada vez mais a sua influência social e a sua
riqueza económica; e, no Irão e na Mesopotâmia sassânida, começa uma verdadeira crise
nobiliárquica, uma crise das fortunas dos nobres, da fortuna fundiária, em oposição da nova
força que surge, a dos citadinos, dos “burgueses”, dos mercadores da fortuna móvel.

No Império sassânida, o sentido da evolução é assim completamente diferente daquilo


que constatamos no Império bizantino e no Ocidente bárbaro. Aqui, a nota dominante é dada
pelo desenvolvimento das cidades e o recuo dos grandes proprietários fundiários. Estamos
perante um império com grande circulação monetária. Não é a moeda de ouro que circula, mas
a moeda em prata. O ouro é entesourado sob a forma de lingotes, de ourivesaria ou de
mobiliário precioso, e o que circula de uma maneira intensa é a dracma sassânida, o direm.
Estas peças de prata foram emitidas em enormes quantidades por variadas oficinas
monetárias, um pouco por todo o Império. Nas suas escavações em Susa, J. de Morgan
recolheu uma imensa quantidade de dracmas de Chosroès II (590-628), com as mais variadas
marcas monetárias, representativas da maior parte das cidades do Império sassânida: prova de
uma intensa circulação monetária e de um grande desenvolvimento do comércio no Oriente
sassânida nos inícios do séc. VII, na véspera das conquistas muçulmanas. É o momento em

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que o direm persa de prata irradiava não somente no interior do grande Império sassânida,
mas também bastante longe para Sudeste ou Noroeste: Oceano Indico e estepes ponto-
caspianas onde conquistou as posições ocupadas anteriormente pelas nomisma bizantinas.

Do séc. V ao VII podemos constatar uma espécie de retirada monetária do Ocidente


em relação ao Oriente, e essa retirada monetária vai a par com o movimento urbano: o ritmo
urbano está de acordo com o ritmo monetário.

Terceira Fase: Séculos VII a XI


Desenvolvimento urbano no Mundo muçulmano – Início da renovação urbana no
Ocidente bárbaro – Desenvolvimento urbano de Bizâncio

Se nos colocarmos no interior do mundo muçulmano uma vez formado, constatamos


por todo o lado um prodigioso desenvolvimento urbano e, onde estivesse em curso, a paragem
do processo dominial que os papiros egípcios nos permitiram traçar com algum detalhe.
Continuamos a ter o testemunho desses papiros para os primeiros séculos do período
muçulmano; ele é-nos precioso na perseguição do traçado da curva que, agora, muda de
aspecto e sentido.
Na véspera da conquista muçulmana, o domínio, a senhoria, estava em vias de se
organizar economicamente e socialmente no Egipto: o senhor e os servos. Antes da conquista,
encontramos nos papiros de Aphrodito, fórmulas deste género: “O miserável servo Anoup
(Anúbis) prostra-se perante o muito magnifico patrício; ele rasteja sob os passos imaculados do
poderoso duque Athanasios.” Depois da conquista, esta evolução termina. Dá-se a ruptura da
célula dominial, em vias de completa realização e, doravante, o servo e o senhor, o muito
magnífico duque Athanasios e o seu miserável escravo Anoup são colocados face ao novo
Estado muçulmano numa posição quase idêntica. Ambos pagam a capitação e o imposto
fundiário a que estão obrigados os não-muçulmanos. O produto do tributo assim conseguido é
repartido entre os membros da comunidade muçulmana. Estes vivem nas cidades, não
cultivam a terra e são verdadeiros arrendatários do solo, tributando os lucros das gentes rurais.
Assim, o regime senhorial, que se estava a consolidar no período precedente, se dissocia e
transforma.
Esta derrota do sistema dominial é mais acentuada pela importância cada vez maior da
moeda, da fortuna móvel. Assim como para muitas das nossas prósperas cidades
contemporâneas, o crescimento rápido das metrópoles muçulmanas é provocada pela inflação
– neste caso metálica – e pela subida de preços consequente. O brusco enriquecimento da
classe mercadora das cidades vai-lhes permitir investir os seus ganhos em compras de
propriedades rurais. O proprietário recebe o rendimento das suas terras, mas permanece nas
cidades; é também um arrendatário do solo. Assim, cada vez mais, economicamente e
socialmente, a cidade domina o campo circundante e o mercado urbano está em pleno
desenvolvimento: apelo aos produtos do solo para abastecimento da cidade; apelo à mão-de-
obra rural para o estaleiro urbano. A época capital para uma cidade é efectivamente quando

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ela é criada; e o estaleiro, pelo ponto de vista económico e social, é um enorme centro de
apelo que faz sentir ao longe a sua influência. O velho adágio – “quando a construção arranca,
tudo vai” – é totalmente aplicável a esse estaleiro urbano que agrupa milhares de
trabalhadores, reunidos apressadamente de todo o lado para o rápido levantamento da nova
cidade. Deste movimento populacional rural para a cidade em construção - vemos numerosos
exemplos nas longas listas fornecidas pelos papiros egípcios, de campesinato requisitado nas
aldeias do vale do Nilo para os estaleiros urbanos: enviam-nos para Foustât para construir os
edifícios públicos, o palácio do governador, as mesquitas; ainda mais longe: para Damasco,
para participar na construção da Grande Mesquita dos Omíadas; a Túnis, para lá construírem
os edifícios e os barcos do novo arsenal marítimo. Para fornecer a mão-de-obra dos arsenais
sírios, as populações são trazidas das costas do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho para os
portos mediterrânicos.
Assim, acontece uma mistura das populações, progresso técnico, quadros mentais
essencialmente contrários à conclusão do processo dominial em curso. As trocas mais estreitas
entre a cidade e o campo mudaram o sentido da evolução; a célula dominial desagrega-se sob
o choque do intenso apelo dos centros urbanos em expansão.
Esta expansão urbana, este prodigioso desenvolvimento das cidades, da economia e
da civilização que elas representam, aparece-nos como a característica essencial do mundo
muçulmano entre os séc. VII e XI. Este “período muçulmano” é um dos maiores momentos da
história geral do movimento urbano. Facto capital e tão pouco conhecido. Os outros momentos
do desenvolvimento das cidades foram largamente estudados. Mas não o momento
muçulmano. Os trabalhos de síntese enumeram “os grandes períodos urbanos”: época
helenista, Império romano, Ocidente do séc. XIII e do séc. XIX. Mas esquecem-se, entre o
Império romano e o Ocidente do séc. XIII, o admirável desenvolvimento urbano que conheceu
o mundo muçulmano do séc. VII até ao séc. XII.
Qual é o sentido de propagação do movimento urbano através do imenso domínio
económico criado pelas conquistas muçulmanas? Vemos que se dirige de Este para Oeste:
amplifica-se no antigo Império sassânida (Irão, Mesopotâmia), já num período de
desenvolvimento antes da conquista muçulmana; reinicia-se nas antigas províncias bizantinas
(Síria, Egipto), onde tinha desacelerado; renasce nos países do Ocidente muçulmano (África,
Hispânia, Sicília), onde tinha desaparecido há muito.
Esta intensa pujança urbana no mundo muçulmano toma duas formas: seja ela o
desenvolvimento dos antigos centros que ganham uma nova vida e se estendem
topograficamente e demograficamente, economicamente e socialmente (Damasco, Córdova,
Palermo); seja a criação ex nihilo de novas cidades (Kairouan, Bagdad, Fez).
No antigo domínio sassânida, destacam-se sucessivamente: Koufa, sobre o Eufrates;
Bassora, o grande porto, ao fundo do Golfo Pérsico (637-638); e sobretudo a grande fundação
abássida, Bagdad, sobre o Tigre, em 762. Desde o séc. IX, menos de cem anos após a sua
criação, Bagdad torna-se a maior cidade do mundo. Em 836 uma nova cidade-califado surge
no Tigre, rio acima de Bagdad,: Samarra, que rapidamente se torna um importante centro

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económico. O comércio muçulmano, pelos seus entrepostos da Costa Oriental de África,
introduz as formas urbanas nessa zona do continente negro: são fundadas Mogadíscio,
Barawa, Kilwa, Melinda, Mombaça, cidades onde chegam filas de carregadores negros com o
seu carregamento de ouro e marfim e de onde partem as correntes de islamização para o
coração de África.
No antigo domínio bizantino, por todo o lado se assiste a uma recuperação urbana; as
cidades desenvolvem-se, as mesmas cidades que quase desapareceram na época precedente
(Damasco, Alepo), e numerosas pequenas cidades crescem na Síria e no Egipto. A história
urbana no vale do Nilo é dominada pelo enorme desenvolvimento do antigo pequeno centro da
Babilónia do Egipto, na ponta do Delta, que prolifera projectando à sua volta uma série de
novas cidades populosas: Foustât (séc. VII), Al-Askar (séc. VII), Al-Qata’i tulúnida (séc. IX), Al-
Qâhira, o Cairo fatimita (séc. X).
No Mediterrâneo ocidental, criam-se as cidades de Kairouan (670), Túnis (698),
Mahdia, Tahert (761), Tlemcen, Fez (867), Argel (946), Al Qala’a dos Benî Hammad (1007),
Marraquexe (1077). A sul do Magrebe, surgem na entrada do deserto grandes cidades
caravanistas, pontos de chegada do ouro do Sudão: Sidjilmâsa (787), Ouargla, as cidades do
Mzab, Ghadamés, etc. Na outra extremidade dos caminhos do Sahara, o comércio muçulmano
introduz formas urbanas no mundo sudanês: as cidades do ouro e dos escravos nascem no
Sahel nigeriano, Awdaghost, Tadmekka, Timbuctu. E, por contragolpe, a abertura desse novo e
imenso horizonte comercial não deixa de jogar o seu papel na renovação urbana que a África
do Norte muçulmana conhece entre o séc. VIII e o séc. XI: renovação urbana mais importante e
mais ampliada que a urbanização na época romana.
Na Hispânia, Córdova, Toledo, Saragoça, Sevilha, Málaga, centros antigos reduzidos a
nada durante o período bárbaro, reganham vida, força e influência como nunca tinham tido. O
grande porto de Almería – a Aumaria das canções de gesta – é criado à época muçulmana. À
volta de Córdova, como à volta de Kairouan, enxameiam as cidades-residência: Madinat az-
Zahrâ, Madinat as-Zâhira. Na Sicília, Palermo agarra o seu desenvolvimento monumental e
económico.
E não citamos aqui mais que as metrópoles, as cidades mais importantes. Perto delas,
existem uma infinidade de aglomerações urbanas, mais ou menos povoadas, e que terão
sucessos diversos, mas que contribuem, neste momento, para aumentar a densidade da rede
urbana.
*
Quais são os aspectos gerais desta cidade muçulmana em plena pujança de
crescimento, e qual o seu aspecto demográfico? No perímetro urbano, a regra é uma grande
concentração de população. Muitas destas metrópoles tornar-se-ão, em algumas dezenas de
anos, as maiores cidades do mundo. Na falta de recenseamentos precisos, podemos dar uma
ordem de grandeza tendo em conta aquilo que sabemos, não as casas térreas amplamente
difundidas mas, pelo contrário, aquilo que os Latinos apelidavam de insulae: grandes blocos de
sete ou oito andares, onde viviam cerca de duzentos e cinquenta, ou mesmo trezentas

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pessoas. Bagdad, nos finais do séc. IX e no séc. X, o seu período de apogeu, tinha certamente
mais de um milhão de habitantes. A sua superfície urbana era equivalente aos limites de Paris
das avenidas exteriores. Damasco e Córdova formam aglomerações de trezentos a
quatrocentos mil habitantes. O Cairo tem um pouco mais, cerca de quinhentos mil. Se
juntarmos a estes números – que são aproximações – os números das cidades medievais do
Ocidente do momento do seu pleno desenvolvimento económico, isto é, no séc. XIII, ficamos
impressionados pela diferença imensa que as separa: as cidades mais populosas da Itália do
Norte ou da Flandres não tiveram mais de trinta ou quarenta mil habitantes; e teremos de
esperar pelo séc. XIV para que Paris, cidade ímpar do Ocidente cristão, chegue às trezentas
mil almas. Ponhamos de parte Bizâncio, que se aproxima certamente do milhão de habitantes,
já que é uma cidade do Oriente e a grande rival de Bagdad. Bagdad e Bizâncio, “os dois olhos
do mundo”, como dizem os historiadores bizantinos reconhecendo também a proeminência da
capital dos califas.
O aspecto económico e social: estas grandes cidades muçulmanas são, antes de tudo,
centros de comércio, cidades com um papel essencialmente económico; isto traduz-se no
traçado da cidade. No centro, e através dele de uma porta à outra: o soûq, o mercado, a rua
comercial e industrial onde os objectos são fabricados e postos à venda sob os olhos do
cliente. Hoje em dia ainda temos uma imagem fiel do soûq nos mercados das cidades do
Oriente e do Magrebe. Nos arredores do soûq eleva-se a grande mesquita, centro moral do
mercado, cuja sombra protege e torna as transações mais honestas. Ao lado, estendem-se os
fondoûqs, albergues para os mercadores, e a Kaîsaria, grande salão fechado, com pesadas
portas reforçadas com ferro, que serve de entreposto para as mercadorias preciosas
provenientes do exterior. Pegado à Kaîsaria encontramos o soûq assaghâ, o mercado de
câmbios e, se a cidade é suficientemente importante, a casa da Moeda, o Dar as-siqqa. À volta
desse núcleo central de organismos comerciais, instalam-se os diferentes corpos de
profissões, agrupados cada um no seu quarteirão, na sua rua própria. O soûq, pólo da
actividade urbana, mantém uma população industriosa e comerciante, com uma vida
fervilhante e turbulenta, mais o porteiro, o artesão, o intermediário, até ao grande comerciante,
o dominador do mercado. É aí que se desenvolve o tipo de grande comerciante enriquecido
pelo comércio longínquo, que vive a maior parte do tempo no seu albergue opulento, rodeado
de uma trupe de escravos e familiares: “armadura de prata” da sociedade urbana do mundo
muçulmano. Ao mesmo tempo acentua-se a miséria das classes inferiores da população
citadina, escravos ou livres, plebe urbana onde as revoltas são por vezes terríveis: no início do
séc. IX os “nus” tornam-se mestres das ruas de Bagdad e saqueiam diversos quarteirões da
capital. Ebulição social, oposição brutal, e que nos dá conta da intensidade da vida urbana
desta época.
O último e menos conhecido aspecto desta expansão urbana no mundo muçulmano do
séc. VII ao séc. XI é, talvez, o mais importante, pois sugere-nos elementos explicativos: o
aspecto monetário. A moeda é, efectivamente, o medium por onde se cria, se mantém e se
caracteriza melhor esta pujante actividade urbana: construção material da cidade e gradne

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apelo do estaleiro; compra de víveres ao campo para consumo corrente e de mercadorias
preciosas aos centros de produção longínquos para o consumo de luxo; fabrico e venda local
ou à distância dos produtos da indústria; compra pela classe rica de bens fundiários no
campo… Na economia geral, o mercado urbano é um centro privilegiado de recursos e de
redistribuição das massas monetárias. E por sua vez, o desenvolvimento urbano do mundo
muçulmano foi permitido e alicerçado pelo afluxo de ouro e sua circulação cada vez mais
intensa: ouro entesourado e posto em circulação e sobretudo pelo afluxo de ouro novo, ouro
minado e mais particularmente do ouro sudanês, cujo fluxo aumenta na medida que
avançamos no tempo, a partir dos séc. VIII-IX.
O facto capital para a história do movimento urbano durante a alta idade média é a
reintrodução das cidades, ou seja dos grandes centros de apelo ao consumo no Mediterrâneo
Ocidental, às portas do Ocidente bárbaro. E esse movimento de urbanização profundo, de vida
citadina, de civilização, e de influência urbana, que conhecem o Magrebe, a Hispânia e a Sicília
nos séc. IX-X, é criado pela flor de ouro do Sudão. Os países do Islão Ocidental – que os
autores árabes englobam sob o nome de Magrebe, “terra do Ocidente” – são, para os
Orientais, um verdadeiro Eldorado que atrai os aventureiros, os mercenários, os escritores, em
busca de ouro, de rendas e de pensões. É o ouro do Sudão, que faz afluir à Andaluzia, ao
Oriente, principalmente ao grande centro radiante que é Bagdad, os poetas da Corte, os
músicos, os artistas, os que apelidamos de pioneiros da cultura oriental, e graças a quem as
técnicas, as formas de pensamento refinados, em resumo a civilização urbana, são passados
do Oriente ao Ocidente muçulmano, às portas do Ocidente bárbaro.
*
O apelo ao consumo lançado pelas grandes cidades do mundo muçulmano vai permitir
ao comércio e ao movimento urbano propagar-se e desenvolver-se no Ocidente bárbaro.
Os centros urbanos muçulmanos precisam de certas mercadorias (escravos, madeira
para a construção naval, ferro e armas, estanho, peles), que somente o Ocidente bárbaro pode
fornecer; para pagamento dessas mercadorias, enviam ouro: com a infiltração de ouro dá-se o
desenvolvimento do comércio e a renovação urbana, nos séc. IX-X.
Quando os medievalistas começaram a escrever a história da renovação urbana do
Ocidente, começaram por dizer: a renovação urbana é consequência das Cruzadas; faz-se
sentir no séc. XII. Depois, indo mais fundo na sua pesquisa, recolocaram essa renovação no
séc. XI. Depois, encontraram indicações muito claras para o séc. X. As pesquisas mais
recentes falam do final do séc. IX e, em certos pontos muito localizados, que são justamente os
pontos onde chegam as rotas comerciais e monetárias vindas do mundo muçulmano,
aparecem as primeiras manifestações de renovação das cidades, de crescimento urbano, no
final do séc. VIII e início do séc. IX: no momento em que o ouro muçulmano, sob a forma de
mancus, começa a irrigar o Ocidente bárbaro.
É nesta época que se desenvolvem as cidades da Itália: Amalfi, Nápoles, Gaeta no Mar
Tirreno, e sobretudo Veneza no Mar Adriático. Veneza que deve o seu precoce
desenvolvimento económico à sua localização no ponto de encontro entre três domínios

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comerciais: Bizâncio, o mundo muçulmano e o Ocidente bárbaro. Contribui para o
abastecimento de Constantinopla, que estava privada pelas conquistas muçulmanas dos
abastecimentos das suas antigas províncias do Egipto e Síria. Faz um proveitoso tráfico de
contrabando com os portos muçulmanos. Importa produtos preciosos da indústria bizantina que
são depois vendidos nas feiras de Pavia, onde os seus mercadores têm o monopólio do
comércio de objectos orientais que o Ocidente ainda consegue adquirir, graças à reentrada do
ouro muçulmano. Podemos dizer que os primeiros e rápidos progressos de Veneza dos séc.
VIII-IX são uma consequência – directa e indirecta – das conquistas árabes e do apelo lançado
pelos grandes centros urbanos do mundo muçulmano.
Segue-se o circuito das cidades do Norte da Hispânia, do Languedoque e do corredor
do Reno, continuando no Saône, Mosa, países renanos e a Flandres.
Ao mesmo tempo, do outro lado do mundo islâmico, também se faz sentir o apelo dos
grandes centros orientais, criados ou reanimados na época muçulmana, sobretudo por Bagdad
cuja influência se estende sobremaneira. Apelo também lançado ao Ocidente bárbaro pelas
rotas do Norte, as rotas do Volga, do Báltico e da Europa Central. Por aí também se infiltram as
moedas muçulmanas. Encontramos imensos depósitos ao longo dos rios russos, nas margens
do Báltico e mesmo na Islândia! E segue-se a criação de centros comerciais, de embriões de
cidades. Assim nasceu “o País das cidades”, gardariki, como os Escandinavos chamarão à
região dos rios russos: cidades de madeira construídas ao longo dos cursos de água
navegáveis, nos pontos escolhidos pelo grande comércio, nos endereços onde levam as
correntes de dinheiro vindas do mundo muçulmano: Itil (Astrakhan depois disso) sobre o delta
do Volga, Boulghâr (perto do local da futura Kazan) na confluência do Volga e do Kama, a
“cidade dos Bourtâs” (mais tarde Nijni-Novgorod) na confluência do Volga e do Oka, Novgorod
sobre o Volkhov a norte do lago Ilmen, e sobretudo Kiev sobre o Dniepr cujo horizonte
comercial abraçava por sua vez o mundo muçulmano a este, Bizâncio a sul, os países
germânicos do alto Danúbio a Oeste e as costas do Báltico a Norte. Pelas rotas continentais da
Europa central e pelas rotas marítimas dos mares nórdicos, o influxo comercial e urbano
propaga-se para os países renanos, para a Flandres e para a Inglaterra onde encontra as
correntes partidas do Mediterrâneo.
Assim, o desenvolvimento urbano no Ocidente bárbaro localiza-se muito cedo nas
zonas de entrada das correntes monetárias vindas do mundo muçulmano. É o momento em
que aparecem os termos portus, “lugar de mercado”; vic, vicus, “subúrbios de mercadores”; o
momento em que a cidade transborda as suas estreitas muralhas e onde se constituem
subúrbios comerciais e industriais. Os vestígios desse crescimento urbano, na condição de os
procurar nas zonas onde se ligam as relações comerciais entre o Oriente muçulmano e o
mundo bárbaro, podem ser detectados tão cedo como o fim do séc. VIII.
*
Na mesma época, Bizâncio conhecia uma renovação semelhante que prepara o
apogeu dos séc. X-XI, a segunda idade de ouro da arte bizantina, o apogeu urbano de
Constantinopla: pensamos nos detalhes fornecidos pelo Livros das Cerimónias, na descrição

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de Constantino de Rhodes que aí celebra as belezas do séc. X, às expressões admiradas do
rabi Benjamin de Tudela que vista Bizâncio no início do séc. XII, no maravilhamento dos
Cruzados em 1204 quando penetram na cidade “do mármore, da seda e do ouro”.
Os princípios desse novo desenvolvimento da velha criação constantina situam-se no
final do séc. VIII-IX, quando o ouro muçulmano, pelo desvio do Ocidente bárbaro, volta a pôr
em movimento as indústria de luxo oferecendo novos escoamentos para os produtos bizantinos
e às mercadorias transitadas por Bizâncio vindas do Oriente muçulmano para o Ocidente
cristão. Aqui, como em Veneza, a frutuosa posição de intermediária entre o mundo oriental e o
mundo ocidental – e o afluxo monetário resultante – está na origem da pujança urbana.
Por sua vez, Bizâncio exporta uma parte do seu ouro para o mundo muçulmano para aí
comprar as matérias-primas necessárias ao seu luxo e indústrias: especiarias, perfumes, seda
em bruto, marfim, pérolas, pedras preciosas, etc. E esse ouro irá apoiar e amplificar a
actividade das grandes cidades muçulmanas.
Do Oriente muçulmano ao Ocidente muçulmanos, do Ocidente muçulmano ao Ocidente
bárbaro, do Ocidente bárbaro a Bizâncio, de Bizâncio ao Oriente muçulmano: o circuito
monetário e urbano está fechado.
*
Geograficamente e cronologicamente, a evolução urbana da alta idade média segue
exactamente a evolução monetária.
O mundo muçulmano do séc. VII até ao séc. XI, onde o ouro aflui, aparece assim como
o centro – e a origem – de um vasto movimento de renascimento urbano que se propagou ao
longo das grandes rotas comerciais reavivadas ou novamente criadas pelo apelo de consumo
partido das metrópoles do Oriente Islâmico: amplificação do desenvolvimento urbano no antigo
domínio sassânida; renovação das cidades do antigo domínio bizantino, na Hispânia ruralizada
e África do Norte nomadizada; progresso de Constantinopla; criação de formas urbanas no
mundo negro (costas de África oriental e Sudão), na região dos rios russos e do Báltico;
finalmente a retoma da actividade urbana no Ocidente cristão.
Pela sua extensão, sua intensidade e também pela nova era que abriu para a Europa
ocidental, esse movimento marca uma época capital da história urbana

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Cap. IV
A rota do Mosa e as relações longínquas dos países circundantes entre
os séculos VIII e XI

Estas notas – que são mais interrogações lançadas pelo historiador à arqueologia que
pontos tornados definitivos – permitirão, talvez, ligar alguns problemas da história da arte do
Mosa pelo denominador comum que é a rota: essa rota comercial, guerreira, religiosa onde, ao
mesmo tempo que passavam os homens, as mercadorias, as moedas, passavam também as
ideias, as técnicas, as fórmulas arquitéctonicas, os repertórios decorativos.
Como é que, sem um estudo geográfico, cronológico, e económico das rotas, podemos
colocar correctamente a questão das origens da arte do Mosa, da sua autonomia, da
precocidade das obras saídas dos ateliers da região do Mosa em comparação aos das regiões
vizinhas do Mosela e do Reno, e que formam, em conjunto, o que podemos chamar de
complexo histórico, económico e artístico lotaríngio? Como compartilhar as tradições locais e
as influências exteriores, próximas ou longínquas, que deram à arte do Mosa a sua
sensibilidade particular, sem situar o Mosa na rede de relações gerais que a liga – e de forma
tão forte, como veremos! – ao resto do mundo medieval? Sem precisar o valor posicional que
dá aos Países do Mosa a sua virtude de receptividade e sua força de influência: situando-se
entre, a oeste, a Francia occidentalis, Reims e St. Denis, e, a este, os países renanos, os
confins germano-eslavos e, continuando nessa direcção para além da fronteira germânica e da
imensidão do mundo eslavo, no final das faixas florestais da Europa central e oriental, as
pujantes civilizações de Bizâncio e do Oriente muçulmano; situando-se entre, a norte, a
abertura do delta do Reno-Mosa sobre o Mar do Norte, as ilhas Britânicas e as vias marítimas e
fluviais que conduzem ao Império bizantino e ao mundo muçulmano, e, a sul, o leque das rotas
para a França do Midi, a Hispânia, a Itália e, por fim, o Mediterrâneo bizantino e muçulmano?
Conservação de tradições antigas romanas e gaulesas da Gália romana; contribuições
bárbaras no trabalho da madeira e do metal; chegada de influências longínquas – processos
técnicos e tendências decorativas – vindas do Oriente bizantino e do mundo muçulmano;
depois, difusão dessas formas particulares assim elaboradas para a Inglaterra, para os ateliers
de St. Denis e Limusinos, para a Boémia e Polónia… Acolhimento e depois difusão: num e
noutro momento, as rotas são as mesmas, inscritas na natureza e na história. Mas as correntes
que lhes sucedem são mais ou menos intensas, e a sua produção – gentes, coisas e ideias –
aumenta ou ameniza-se seguindo o deslocamento dos centros motores da economia e da
civilização.
O período que se estende entre os séc. VII e XI e que corresponde à formação, às
primeiras obras-primas e ao início da expansão da arte do Mosa, representa para o Ocidente
um momento capital, o do despertar: o despertar económico e urbano; renovação da civilização
material e da civilização em pleno. Sob a influência do apelo proveniente das ricas metrópoles
em pleno desenvolvimento do mundo muçulmano, o comércio externo do Ocidente bárbaro
muda de sentido e de actores: de importador passa a exportador, e de passivo a activo. O ouro

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que fugia para Oriente para pagar as mercadorias preciosas (sedas, marfins, especiarias, etc,)
importadas pelos mercadores levantinos, os Syri, aflui agora para o Ocidente para comprar
escravos, armas, peles, etc. que os mercadores ocidentais e nórdicos, os Judeus do Império
carolíngio, os Italianos, os Anglo-Saxões, os Escandinavos, exportam para o mundo
muçulmano.
Esta recuperação comercial, esta profunda transformação na estrutura de trocas
traduz-se por uma maior actividade das relações a longa distância e pela organização de uma
vasta rede de rotas onde circulam as influências mais diversas, (carolíngias, bizantinas,
muçulmanas) que deve conduzir à “internacionalização” da primeira arte românica. E não é
indiferente referir, logo de início, que todas estas rotas – rotas de comércio e civilizacionais –
confluem na região do Mosa.
*
Um mapa esquemático das grandes correntes de civilização entre os séc,. VIII e XI
mostra-nos imediatamente uma grande banda circular de relações gerais envolvendo – e
começando a irrigar pelas fronteiras – a Europa central e ocidental, perdida ainda numa imensa
área nas brumas das suas florestas pantanosas e sua economia primitiva. Pelo Mediterrâneo,
pelo Atlântico, pelos mares nórdicos, pela região dos rios russos, pelo Cáspio e Mar Negro,
começa a desenhar-se um verdadeiro circuito de rotas – rotas marítimas ou fluviais conectadas
por alguns troços terrestres – onde os pontos motores são Bagdad, Bizâncio, o Egipto e a
Hispânia muçulmana, com o apelo das suas grandes cidades em contínuo desenvolvimento,
com as necessidades das suas civilizações sumptuosas e também pelo desenvolvimento das
suas técnicas e pela pujança de compra que lhe dá a posse de quase todo o outro do mundo.
Deste desenho conjuntural, os geógrafos da idade média muçulmana tinham plena
consciência. Um anónimo persa do séc. X indica-nos este facto quando nota que “Baritânya (as
Ilhas Britânicas) é o empório de Roûm (Constantinopla é, geralmente, o Império bizantino) e do
Andâloûs (a Hispânia muçulmana)”. O historiador Mas’oûdî esboça-o quando descreve as rotas
seguidas pelo comércio das preciosas peles de raposa negra desde as zonas de caça do país
dos Bourtâs, na confluência do Volga e do Orka, onde irão mais tarde fixar-se as célebres
feiras de peles de Nijni-Novgorod:
“São exportadas do país dos Bourtâs as peles de raposa negra que são as mais
procuradas e mais caras das peles. A raposa negra é o luxo dos príncipes desses povos não-
árabes. Este artigo circula pelas regiões de Bâb al-abwâb (Derbend, no Mar Cáspio) e de
Berdaa (na Arménia) e noutros países, os dos Khorâssan e dos Kharezm (na Ásia Central, a
sul do Mar de Aral) onde são trabalhadas. São exportadas para os países do norte, os países
dos Eslavos, porque os Bourtâs estão próximos desses países do norte. Daí, são transportadas
para o país dos Francos, para a Hispânia muçulmana e por todo o Magrebe.”
As duas extremidades destas rotas, Saragoça sobre o Ebro, e Gourgandj sobre um
braço do Amu-Daria que desagua no Cáspio, são indicadas pelos viajantes árabes como os
grandes centros de transformação de peles nórdicas do mundo muçulmano. Destas duas
cidades manufacturam-se os ricos mantos, bonés e luvas de pele que depois serão distribuídos

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nas grandes cidades muçulmanas do Oriente e Ocidente: Bagdad, Fustat-Cairo ou Córdova.
São essas mesmas rotas para este e oeste, que passam pelos territórios de caça – a imensa
floresta russa –, que percorrem as trupes de escravos “saqâlîbâ” (eslavos) destinados aos
corpos de guarda e haréns dos palácios muçulmanos. Itil, na embocadura do Volga, e Verdun,
sobre o Mosa, são os grandes entrepostos, os centros de agrupamento, de castração e de
redistribuição para o comércio mundial de escravos com destino aos países do Islão. Essas
mesmas rotas que seguem, desde o séc. IX, os mercadores de armas ocidentais que exportam
para os países muçulmanos, seja pela via do norte (Báltico e rios russos), seja pela via do sul
(Mediterrâneo ocidental e portos do Levante), as famosas espadas de “Firandjâ” (a França, o
Império carolíngio), forjadas entre o Sena e o Reno e vendidas pelo vale do Mosa, pelos portos
do delta do Reno-Mosa a norte ou pela cabeça da linha de Verdun a sul: “ferro flamingr” das
Sagas ou o “aço de Verdun” das canções de gesta.
Peles nórdicas, escravos eslavos, espadas francas formam o grosso das mercadorias
que as cidades comerciantes de Itália – Veneza, Amalfi, Gaeta – e os Judeus “râdhânitas” (de
Rhodes) do Midi francês exportam para os locais comerciais do Oriente muçulmano. Os
itinerários desses mercadores judeus, itinerários marítimos desde Narbona às escalas da Síria,
ou continentais pela Hispânia, pelo Magrebe e Egipto, descrita por um dos mestres dos postos
de cavalos do Império abássida nos meados do séc. IX, o mesopotâmio Ibn Khordâdhbeh,
representando um segmento – o segmento meridional – da zona circular de relações a longa
distância que encerra a Europa. Os numerosos achados de moedas muçulmanas ao longo dos
rios russos, sobre os rios do Báltico e do Mar do Norte, e mesmo na Islândia, marcam o
segmento setentrional. Por aí passam, com os dirhams abássidas e samânidas, as conchas do
Oceano Indico encontradas nos arredores de Visby nos túmulos da época dos Vikings, um
sistema de pesos emprestado à Pérsia pelo mundo escandinavo, e talvez também, as
influências que, partindo das cidades redondas da Bagdad abássida e da Boukhara samânida,
deram origem aos edifícios de planta circular recentemente descobertos na Dinamarca. Noutro
sentido viajam os mercadores “Roûs” (russos: eslavos ou escandinavos), transportando peles e
armas, ou conduzindo os escravos com destino aos grandes centros urbanos de Khorâssan,
Kharezm ou do Iraque. As fontes árabes mostram esses mercadores a descer os rios russos, a
traficar em Boulghâr, perto da confluência do Volga e do Kama, semente da futura Kazan,
dedicando preces aos ídolos de madeira para que as suas operações comerciais fossem
frutuosas, ou incinerando o corpo de um dos seus chefes na sua barca, no meio de mulheres
imoladas sobre o seu cadáver. Em Itil, capital dos Khazaars, terminava a sua navegação fluvial.
Aí, pagam ao soberano um direito de trânsito sobre as suas mercadorias, atravessam o Cáspio
e continuam viagem no dorso de camelos até Bagdad onde escravos eunucos lhes servem de
intérpretes. Além das metrópoles do Oriente muçulmano, o principal ponto de destino dos
mercadores “Roûs” é o Império bizantino e o “Mar Romano” (o Mediterrâneo); em
Constantinopla tinham um bairro destinado – o de S. Mammas – e o Basileu cobrava um direito
de entrada sobre as suas mercadorias. Chegam de Kouyâba (Kiev) pelo Dniepre e regressam
por Samakhars, “a cidade dos judeus” (Tmutarakan: Fanagoria sobre o estreito de Kertch). De

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Kiev, a rota continua para o norte por um dos afluentes do Dniepre superior, depois segue o
curso do Lovat, o lago Ilmen, Novgorod-a-Grande, alcançando o domínio marítimo escandinavo
do Báltico: é o “Caminho dos Varângios até aos Gregos” dos primeiros cronistas russos.
Através da floresta e da estepe da Europa oriental, as rotas dos rios russos para o
Cáspio e Mar Negro ligavam a região nórdica à região oriental e mediterrânica. A oeste, pelo
Atlântico, desde as Ilhas Britânicas à Península Ibérica e ao estreito de Gibraltar, o domínio do
norte comunicava com o do Mediterrâneo. As navegações sobre o “Oceano Tenebroso” dos
Ocidentais, o “Mar Circundante” dos geógrafos árabes – mesmo sem cronista desde Festus
Avienus e a sua Ora Maritima – não pararam durante toda a alta idade média, mesmo depois
da conquista da Hispânia pelos Muçulmanos. Jamais as relações foram interrompidas entre os
portos da Bretanha, da Irlanda, da Armórica, do Golfo da Gasconha e os portos muçulmanos
da costa lusitana, do Algarve e do estuário do Guadalquivir: as-Oûshboûna (Lisboa), al-Qars
Abî Dânis (Alcácer-do-Sal), Ishbiliya (Sevilha). Algumas notícias, tiradas à literatura geográfica
árabe ou aos cronistas latinos, provam este intercâmbio e indicam a chegada, por essa via, de
peles, de escravos, de armas, de estanho proveniente da ilha da Bretanha. A partir do séc. IX,
os Normandos – os “Madjoûs” dos autores muçulmanos – tomam, durante as suas expedições
de comércio e pirataria ao longo das costas atlânticas, as mesmas rotas, atacam os portos do
emirado de Córdova e, passando o estreito, propagam-se pelo Mediterrâneo. Foi a um dos
seus chefes, residente numa das ilhas dinamarquesas, que o Omíada de Córdova ‘Abd ar-
Rahman II (822-852) envia em embaixada o seu poeta da corte, al-Ghazal. É esta rota do
Atlântico que permitia, no séc. XI, aos navios de peregrinos ingleses chegar a Santiago de
Compostela ou Jerusalém e à frota de Winnemer de Bolonha chegar segura a Balduíno de
Bolonha, entretanto estabelecido em Tarso depois da primeira cruzada. Não esquecer que
Moine de Saint-Gall, escriba dos finais do séc. IX, menciona, num dos portos de Narbona, a
presença de navios “bretões” (ou seja, ingleses) ao lado de navios comerciais judeus e barcos
piratas normandos.
Assim o circuito – comércio, pirataria, trocas de todos os géneros – se encerra: Báltico,
rios da Europa oriental. Cápio ou Mar Negro, Mediterrâneo, Oceano Atlântico, canal da
Mancha, Mar do Norte, Báltico. Deste traçado dá-nos conta o duplo ataque conjugado, lançado
em 859-860, pelos Normandos de Rurik e Hasting contra Constantinopla pelas rotas comerciais
dos rios russos e Mar do Norte por um lado e, por outro, pelas rotas do Atlântico e
Mediterrâneo.
*
Sobre essa vasta corrente anelar que circula a Europa da alta idade média, os feixes e
ramificações dessas rotas vão todas confluir na região do Mosa. O Médio-Mosa tem, sobre o
mapa, o aspecto de um centro onde passam, ou cruzam, os principais itinerários comerciais
originários do Mar do Norte, da Bacia parisiense e dos Países do Reno, do domínio
mediterrânico (França do Midi, Hispânia, Itália) e os territórios da Europa central e oriental. Por
essas rotas, ligadas a longínquas e pujantes civilizações do Oriente bizantino e muçulmano, os
Países do Mosa jogam, entre os séc. VIII e XI, um papel que se pode apelidar de “mundial”,

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antes de passar a primazia, no decorrer do séc. XII, às cidades da Flandres a oeste e às
cidades hanseáticas a este.
O delta comum do Reno, Mosa e Escalda, com os seus labirintos de braços e ilhas
baixas, abre amplamente sobre o Mar do Norte e sobre a costa em frente: o estuário do
Tamisa. A Londres (antiga Londinium; no séc. VII: Lundenwic, planeada como ponto de
comércio, ou Lundenburg, como ponto de defesa) chegavam duas velhas estradas: a Watlinga
Straete vinha de noroeste, de Chester (antiga Legionis castrum) e a Ermina Straete de
nordeste, de York (antiga Eboracum) e Lincoln (antiga Lindum Colonia). Entre os séc. IX e XI,
estas rotas servem de oportunidade de negócio a numerosas regiões economicamente
importantes, onde estão fixadas as grandes feiras: Winchester, Boston, Northampton, St. Yves.
Por intermediários comerciais anglo-saxões e sobretudo frísios, as trocas de mercadorias é
feita entre portos da costa inglesa e portos do delta do Reno-Mosa: Deventer no rio Issel,
Utrecht e principalmente Dorestad, ambas na embocadura do Reno, Tiel sobre o rio Waal,
Witla sobre o Mosa, Anvers sobre o Escalda e Bruges sobre o rio Zwyn. Todos estes centros
não existiram ao mesmo tempo como grandes pontos comerciais: eles sucederam-se através
dos tempos. Assim sempre se garantiu a abertura do interior da zona do Reno, Mosa e Escalda
para o mar. Por aí transitaram o estanho e cobre de Inglaterra, trabalhados depois pelos
fundidores e batedores de Liége, Huy e Dinant, os escravos anglo-saxões e celtas com destino
ao grande centro de redistribuição de Verdun, e, sem dúvida também, as trocas intelectuais e
artísticas que ligam tão fortemente as escolas inglesas e da zona do Mosa, entre os séc. X e
XI.
Em Maastricht (antiga Trajectum ad Mosam), o Mosa era cruzado pela antiga estrada
romana que ia de Reims a Colónia, passando por Bavai e Tongres; em Verdun, pela estrada
que ia de Reims a Estrasburgo, passando por Metz, com ramificação para Mainz e Koblenz,
passando por Trêves: na alta idade média ainda se usavam estes itinerários. Tanto a norte
como a sul da floresta das Ardenas, os Países do Médio-Mosa abriam-se por um lado sobre a
Bacia parisiense e por outro sobre a fachada renana. São conhecidas as relações entre os
miniaturistas de Reims e os da zona do Mosa, bem como os ourives desta zona e os de Saint-
Denis. Quanto ao “complexo do Reno-Mosa”, ele continua a ser objecto de pesquisas e
discussão acaloradas: o estudo preciso da geografia e da cronologia da rede viária nestas
regiões dariam a estes problemas de antiguidade e de influências uma base mais sólida e,
certamente, mais objectiva. Pela estrada de Colónia e pelo portus de Maastricht, bastante
frequentado pelos mercadores, as cidades de Dinant e Huy recebiam uma parte do cobre que
trabalhavam: inúmeros documentos dos séc. XI-XII mencionam as compras de matéria-prima
pelos habitantes dessas duas cidades nos mercados de Colónia e trans Rhenum, ou seja, nas
minas de Harz, na Saxónia. Pela estrada de Mainz, Verdun via afluir às suas casas-forte as
longas caravanas de escravos trazidos dos confins germano-eslavos da zona do rio Saale e
Meno. Aí juntavam-se aos escravos anglo-saxões transportados pelo Mar do Norte e Baixo-
Mosa e aos prisioneiros eslavos capturados nas margens do Elba inferior e que chegavam à
zona do Mosa pela Saxónia, Turíngia, Colónia ou Koblenz. Os mercadores judeus de Verdun

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transformavam-nos em eunucos, depois vendiam-nos nos mercados do emirato de Córdova,
ganhando “imensos lucros” com este tráfico. A localização intramuros de Verdun deste
importante comércio de escravos era devido à excelente localização da velha fortaleza: no
ponto onde termina a navegação fácil pelas grandes barcas e onde é necessário fazer um
transbordo; também no ponto onde a grande via de comércio norte-sul é cortada pela estrada
oeste-este que, através dos passos de Argonne e Woèvre, liga a Bacia parisiense ao vale do
Reno.
De Verdun à Espanha muçulmana, o itinerário principal, nos séc. VIII-IX, era feito pelo
sulco do Saône e do Ródano. Um trajecto terrestre, pelo vale alto do Mosa, Langres e Dijon,
conduzia os mercadores ou embaixadores aos primeiros portus do Saône onde tomavam a via
fluvial. De acordo com as épocas, os portos de embarque mais frequentados foram Auxonne,
Saint-Jean-de-Losne ou Chalon-sur-Saône. Até Lyon, o curso lento do Saône permitia uma
navegação de completo repouso. Mas aí chegados, para enfrentar o Ródano rápido e
tumultuoso, era necessário um novo transbordo. Uma rica e influente comunidade judaica
marcava a importância deste ponto sobre a rota da Hispânia. Foram sobre estes Judeus, as
suas riquezas, e o seu tráfico de escravos, que Agobardo, bispo de Lyon, na primeira metade
do séc. IX, acusou de roubarem crianças cristãs e de as misturar nos grupos de escravos
pagãos destinados aos mercados da Hispânia. O trajecto fluvial terminava em Arles, onde se
abandonavam as barcas do Ródano pelos navios de mar: Arles, descrita em 798, pelo missus
Teodulfo, bispo de Orleães, como um mercado onde afluíam as pérolas do Índico, os tecidos
de ouro orientais, os couros de Córdoboa e os dinares muçulmanos. Aqui, como em Verdun ou
Lyon, um subúrbio ocupado por uma grande colónia judaica controlava os entrepostos para os
mercadores e as casas-fortes para os escravos à espera de serem embarcados com destino a
Narbona, o grande porto cuja actividade ultrapassava o de Arles, também centro de uma
importantíssima judiaria onde o negócio era levado, por sua vez, para os portos do Levante
muçulmano e da Península Ibérica: Barcelona “onde os Judeus eram tantos quanto os
Cristãos”, Tarragona “dos Judeus” e, daí, até às costas muçulmanas: Tortosa, Valência,
Almeria onde as comunidades judaicas eram pujantes. A ligação estreita entre os Judeus de
Narbona, Barcelona e Tortosa, de um e outro lado da fronteira entre Cristandade e Islão,
encontra a sua imagem no episódio contado por Rawd al-mi’târ: em 456 da Hégira (1054-
1055), o conde de Barcelona, querendo matar a mulher de um personagem importante de
Narbona, dirige-se ao senhor muçulmano de Tortosa, o ancião escravo eslavo Nabîl (um
desses aventureiros tornados senhores de uma cidade no decorrer da decomposição do
califado de Córdova), que arquitecta um estratagema e, “por intermediação dos seus Judeus e
seus correspondentes em Narbona, põe o plano em execução”.
Contudo, a partir de Arles, nem todo o tráfico para a Hispânia tomava a via marítima:
uma rota terrestre tocava Narbona cortando os últimos picos dos Pirenéus orientais passando
pelo passo de Perthus e, por Girona e Barcelona, chegava a Tarragona, Tortosa e o vale do
Ebro.

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A esta rota principal dos Países do Mosa para a Hispânia, que faz reviver uma
orientação romana, uma outra se vem juntar, surgida no séc. X – reaparecida é o termo mais
correcto –, sendo um renascimento de uma orientação ainda mais antiga: a orientação neolítica
que atravessava o território gaulês a partir do Reno, para os vales do Sena, do Loire, do
Garona até aos passos dos Pirenéus ocidentais (Somport, Roncevaux, Vélate). A este
renascimento não está alheio a invenção das relíquias do Apóstolo Tiago na Galiza e pela
organização progressiva da peregrinagem a Compostela. Nos séc. X e XI podemos reconstituir
os itinerários dos mercadores, dos peregrinos, dos mensageiros monásticos, desde a região do
Mosa, desde Maastricht ou Verdun a Reims, Meaux ou Paris, depois Orleães, Poitiers, Blaye e
Bordéus, Baiona, passos do Vélate e Pamplona, ou Ostabat, Saint-Jean-Pied-de-Port,
Roncevaux e Pamplona, ou também Oloron, Somport, Jaca e Saragoça. Em Poitiers uma
ramificação desta grande estrada conduzia a Limoges e Toulouse, de onde se podia atravessar
tanto os Pirenéus ocidentais ou orientais. Foi por uma dessas estradas que seguiram os
negotiatores virdunenses in divitiis potentissimi, mercadores cristãos de regresso da Hispânia
passando por Meaux, a quem foram apreendidas, graças à cumplicidade de um clérigo, as
relíquias de Santo Saintin, antigo bispo de Verdun, morto em Meaux, sendo o corpo venerado
na igreja local. Foi por uma dessas estradas – mas partindo de Colónia – que, em 1050, os
mensageiros portadores do rolo funerário que anunciava a morte do conde Guifred II da
Cerdagne, irmão de Oliva, abade de Sainte-Marie de Ripoll e de Aint-Michel de Cuxa, para as
igrejas e mosteiros da zona dos Pirenéus: vale do Loire, vale do Sena, vale do Mosa e, por
Maastricht e Aix-la-Chapelle, vale do Reno; o regresso foi feito pelas casas religiosas da
Borgonha e do vale do Ródano. Um importante documento do séc. XI, uma tarifa de alfândega
de Jaca e Pamplona, indica-nos as mercadorias que passavam por essas rotas pirenaicas:
produtos do Norte (metais, armas, peles, tecidos da Flandres) contra produtos do mundo
muçulmano (moedas de ouro, sedas brocadas, corantes, especiarias) e do Império bizantino
(púrpuras de Constantinopla).
As rotas do Ródano e da Aquitânia abriam aos países do Mosa e Reno todo o
horizonte da Hispânia muçulmana: económico, intelectual e artístico. Uma moeda do Imperador
Henrique II (1002-1024) imita, no seu reverso, o dinar do califa de Córdova Hishâm al-
Mouayyad billâh (976-1013). No séc. X, a religiosa Hroswitha, dos confins da sua abadia
saxónia de Gandersheim, celebra os esplendores e alegrias de Córdova. As ciências “árabes”
penetram na Lotaríngia e irrigam o centro de Liége. O mapa de influências moçárabes
seguidas pelo estilo romano inicial reproduz muito fielmente o das relações das rotas.
Três itinerários ligam os Países do Mosa aos passos dos Alpes, os Clusas dos
documentos carolíngios: pelo Reno – as estradas partindo do vale do Mosa alcançam, como
vimos, Colónia, Mainz e Estrasburgo – até Coire, depois Ilanz, passo de Lukmanier e
Bellinzona; ou então o passo de Septimer e Como; – pelas passagens do Jura (mais
frequentemente, o passo de Jogne), Saint-Maurice d’Agaune, passo de Grand-Saint-Bernard e
Aosta; – pelo Saône, Lyon, pela Maurienne, passo de Cenis e Susa. De Como, Bellinzona,
Aosta ou Susa, todas essas rotas convergiam para Pavia, sobre o rio Ticino, perto da sua

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confluência com o Pó. Pela rede fluvial da planície do Pó e estradas terrestres, principalmente
a que passava por Brescia, Verona, Pádua e chegava a Veneza, Pavia atingia assim o plano
do Adriático. A “Via Francigena” ou “Francisca” descia do passo de Sait-Bernard por Aosta,
continuava por Pavia, para Piacenza, onde atravessava o Pó, o passo de Cisa nos Apeninos,
Pontremoli, Luni e por Siena chegava a Roma.
Até ao séc.XI, Pavia foi a capital do reino da Itália, onde os soberanos lombardos,
depois os carolíngios, e depois os germânicos, iam colocar a coroa de ferro; foi também,
durante todo este período, o grande local de feira onde se trocavam os produtos do mundo
mediterrânico e do Oriente pelos produtos do Ocidente e norte da Europa. Temos textos sobre
as duas célebres feiras anuais durante os séc. IX a XI: as que ocorriam às portas da cidade,
numa grande planície muito próxima do mosteiro de São Martinho foris portam. Os mercadores
instalavam-se sob tendas ou em lojas construídas em tijolo e pedra, com mesas de madeira,
que não eram ocupadas a não ser durante as feiras. Aí, os mercadores de Veneza e das
cidades marítimas do Mar Tirreno – Amalfi, Salrno, Gaeta – encontravam-se com os
mercadores do “outro lado dos Montes”, sobretudo anglo-saxões. Estes últimos beneficiavam
do privilégio de não pagar direitos de entrada nos postos de alfândega posicionados ao longo
das estradas alpinas, graças a presentes oferecidos todos os três anos, à corte de Pavia:
cinquenta libras de prata fina, mantos de peles, armas de primeira qualidade, mastins com trela
e coleira de metal dourado incrustado de esmalte. Metais (estanho, cobre, prata, ferro), armas,
peles, tecidos de lã e linho, escravos de ambos os sexos: essas são as mercadorias que esses
mercadores do “outro lado dos Montes” traziam para as feiras de Pavia e que os Venezianos e
os de Amalfi se encarregavam, de seguida, de fazer chegar aos mercados de Bizâncio e
sobretudo do Mediterrâneo muçulmano. Em troca, levavam de Pavia as sedas, os marfins, as
especiarias oferecidas pelos mercadores das cidades marítimas de Itália. Estes mercadores,
tanto na ida como na vinda, passavam pela rota do Mosa.
Rathier de Vérona, essa curiosa personagem, que nos deixou preciosas notas sobre a
sociedade da Itália do Norte dos meados do séc. X, insiste no carácter cosmopolita, a vida
fervilhante, as amplas relações de uma cidade como Pavia, ode ele foi, num dado momento,
enviado para a prisão. A sua vida simboliza as ligações estreitas que uniam os Países do Mosa
com a Itália do Norte, porta do Oriente grego e muçulmano: em 895 é oblato em Lobbes; em
932, torna-se bispo de Verona; deposto, aprisionado, fugitivo, refugia-se no Midi francês e
depois na corte de Otão I; em 944 está em Lobbes; entre 953 e 956 é bispo de Liége; de novo
bispo de Verona de 966 a 968; e morre em Namur em 974. A comitiva de um dos seus
sucessores no bispado de Liége, Notger (972-1008), está completamente impregnada de
influências italianas, gregas e orientais.
Pela estrada para Estrasburgo e vale do Kunzig, ou mais directamente, pela estrada
até Mainz, até às bacias do Main e do Neckar e dos desfiladeiros perfurando os lados calcários
do Jura suábio, os Países do Mosa comunicam com o vale do Danúbio e com os portos de
mundo eslavo da Boémia e Polónia: Ratisbona e Passau, bispados missionários e cidades
caravaneiras, de onde partiam as pesadas carroças dos “Ruzarii”, os mercadores judeus que

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comercializavam com a Europa oriental. De Ratisbona, pelo vale de Regen, pelo passo de
Domazlice aberto através dos inóspitos arborizados da floresta de Sumava (o Wald Boémio), o
vale de Berounka e Praga. De Passau, Raffelstetten ou Linz para o limiar de Budejovice
(Budweis), o alto vale do Moldava e Praga. Na segunda metade do séc. X, o viajante judeu
hispânico Ibrâhîm ibn Ya’qoûb escreveu:
“Praga é um grande centro de comércio; os mercadores russos e eslavos vêm de
Cracóvia; do país dos Turcos (o Khazar) chegam mercadores judeus, muçulmanos e turcos
trazendo objectos de comércio e peças de ouro e regressam com escravos, peles e chumbo.”
Sabemos, pela Vida de Santo Adalberto de Praga, que o comércio de escravos,
pagãos ou cristãos, era correntemente praticado pelos comerciantes judeus que os exportavam
para este, para a Polónia e rios russos com destino ao Oriente muçulmano, seja através do
Oeste, pelos passos dos Alpes orientais, através da Itália, ou, pelo vale do Ródano, para a
Hispânia muçulmana. De Praga, o itinerário dos Judeus da Baviera continuava pelos
desfiladeiros das Sudètes, depois pelo conjunto de planícies siltosas que se alongavam entre o
sopé norte dos Cárpatos e a fronteira sul da grande floresta até Cracóvia, Przemysl, pela
Podólia, e chegando a Kiev. Kiev, a grande cidade de feira, com dois quarteirões judeus:
“Shiddy”, a oeste, e “Khozare”, a este, ligava o comércio dos Judeus ocidentais com o dos
Judeus orientais de Khazar, grande Estado judaizado que se estendia até ao Mar de Azov e
Mar Cáspio. Para sul, por Samakhars “dos Judeus”, no estreito de Kertch, abria-se a rota de
Trebizonda e de Constantinopla; para este, por Itil, na embocadura do Volga, e pelo Cáspio,
começavam as pistas caravaneiras em direcção a Bagdad ou Samarcanda. Esta rota de
mercadores judeus, “atrás de Roûm”, já tinha sido referida por Ibn Khordâdhbeh, em 864. No
séc. X, um monge escocês que ia mendigando até Kiev teve de se juntar às caravanas de
mercadores judeus nas rotas da Rússia, bem como esse clérigo de Saint-Emmeran de
Ratisbona, cujo nome – Hartwig – foi conservado pelas crónicas judias do séc. XI e que morreu
em Kiev. É o caminho que seguirá o ourives Nicolas de Verdun na sua viagem pela Rússia.
No início do séc. XI, a estabilização e conversão dos Húngaros permitiu a abertura ao
comércio ocidental de rotas mais fáceis, pelas planícies do Médio-Danúbio e pelos passos dos
Cárpatos – passo de Doukla ou passo de Deliatyn – com destino à Ucrânia e Kiev; e também
com destino ao Baixo-Danúbio, aos Balcãs e ao Império bizantino. Este último traçado foi,
desde logo, a principal rota dos peregrinos para a Terra Santa: rota seguida por Ricardo de
Saint-Vanne, depois Verdun, em 1026-1027; por Adalberto, conde de Metz, em 1032; pelo
conde de Anjou, Foulque Nerra, no regresso da sua terceira viagem a Jerusalém; e, em 1064-
1065, pela grande peregrinagem liderada pelo bispo de Bamberg, Gunther, e que tinha, entre
os seus componentes, o bispo de Mainz e os bispos de Utrecht e Ratisbona; a rota dos bandos
de Pedro o Eremita e do exército de Godofredo de Bulhões.
Mainz – e já vimos as estreitas ligações de rotas que a une ao vale do Mosa – era a
verdadeira cabeça de linha do grande comércio que, pela Europa central e oriental, abastecia o
Oriente muçulmano e bizantino. Um viajante árabe do séc. X, at-Tartoushî, descreveu-a como
uma importante e opulenta cidade que se estendia ao longo do Reno, continuando depois:

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“No mercado de Mainz encontrei dirhams cunhados em Samarcanda no ano de 301 e
302 da Hégira (913-915), com o nome do príncipe e ano da cunhagem; são moedas de Nasr
ibn Ahmad… É extraordinário encontrar aqui, no Extremo Ocidente, inúmeras especiarias que
só se colhem no Extremo Oriente: pimenta, gengibre, cravinho, nardo, costus, galinga, todas
exportadas da India.”
As especiarias, cuja presença nos mercados das cidades renanas tanto espantou o
autor árabe, não eram as únicas mercadorias a circular nas rotas do Danúbio e dos países
eslavos: as tarifas fixando os direitos que deviam pagar, em certos pontos do percurso do
Danúbio, as carroças dos “Ruzarii” dão-nos a sua enumeração: importações para o Ocidente,
escravos, peles, sedas, tecidos brocados a ouro, especiarias; exportações para o Oriente,
armas, metais, panos de lã e toalhas de linho. Notemos também que aos dirhams de prata do
Oriente muçulmano assinalados por at-Tartoushî, juntam-se as peças de ouro bizantinas, que
apareceram na Baviera em 1024-1031.
Pelas rotas comerciais do Mosa e da Boémia, pela Polónia, pela Ucrânia. Muitas
coisas, mas também muitas gentes passaram: no final do séc. X, os monges beneditinos, com
estreitas relações com a Lorena e Países do Mosa, foram estabelecer-se na Polónia, novo
Estado que Boleslau o Forte tinha acabado de fundar. No início do séc. XI, o mestre Hubaldo
de Liége é o administrador da escola estabelecida perto do castelo de Praga. Foi em Liége que
fez os seus estudos o primeiro cronista checo, Cosmas, morto deão do cabido de Praga, em
1125: ele fala dessas jovens gentes que deixaram a Boémia para ir a França alimentar-se na
mesa da Dama Filosofia e que regressavam orgulhosos com a sua nova ciência.
*
Pelas rotas onde esboçamos o traçado global e, ainda mais superficialmente, o
conteúdo económico e humano, os ateliers da zona do Mosa receberam, originalmente, o seu
primeiro impulso, as suas técnicas e suas fontes de inspiração. Pelas suas produções, suas
fórmulas artísticas, pelo seu génio, a sua fama espalhou-se até longe. Outros textos estudarão
inúmeros aspectos destes problemas do ponto de vista da história da arte. Do ponto de vista da
história económica, aqui ciência auxiliar da história da arte, podemos dizer, que por essas
rotas, os ateliers da zona do Mosa procuraram as matérias-primas – caras, raras e longínquas
– necessárias à sua produção: estanho e cobre, ouro e prata, marfim, cores e esmaltes,
pérolas e pedras preciosas. Se o estanho da Cornualha, o cobre inglês ou germânico, a prata
da França ou da Saxónia, não nos fazem sair do estreito círculo do Ocidente, os outros
materiais conduzem-nos ao fim do mundo de então, à África, ao Oceano Indico, à Ásia interior,
sobre as rotas do grande comércio internacional judeu, escandinavo, italiano, bizantino,
muçulmano. As exportações de metais, armas, peles, sobretudo de escravos, permitem ao
Ocidente absorver uma parte do ouro que aflui ao novo – e imenso – domínio económico criado
pelas conquistas do Islão. Ouro dos tesouros persas ou faraónicos reposto em circulação, ouro
da África austral transportado pelas navegações árabes e persas do Oceano Índico, sobretudo
ouro do Sudão, graças ao tráfico através do Sahara organizado nos séc. VII-IX. É com o ouro
“árabe” que, em 852-853, se dourou a caça do Santo Vaast e muitas outras obras. O marfim,

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sobre a forma de tiras rasas ou cornos preparados para a escultura, chegava ao Ocidente pela
intermediação de Bizâncio. Provinha dos países do Oceano Indico: pequenas presas de marfim
vindas da Indochina ou da India ou grandes presas de marfim vindas da costa oriental de
África. Até ao séc. XIV, não há nenhuma alusão nas obras dos geógrafos árabes – nossa fonte
principal nesta matéria – ao marfim da África Ocidental que poderia ter passado pelas rotas do
Sahara. Bizâncio, para aprovisionamento dos seus ateliers de marfim, onde a procura era mais
forte, dependia inteiramente dos grandes mercados muçulmanos do Iraque e do Egipto, onde
afluía o marfim do Índico. De lá, o comércio italiano transportava algum para as feiras de Pavia
onde era redistribuído para os ateliers lotaríngios. Os navios venezianos introduziam no
Ocidente as “cores gregas e indianas”. As pérolas do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho
encontravam destino nas oficinas de ourivesaria e na técnica de bordar por agulha levantada,
conhecida pelo nome de opus anglicanum e que imita o procedimento do sousandjird persa
das épocas sassânidas e muçulmanas. Pela mesma via eram importadas as pedras preciosas
do Índico e do Oriente muçulmano e, entre elas, as esmeraldas do Alto Egipto, em que uma
variedade era especialmente valorizada no Ocidente, se acreditamos em Mas’oûdî (c. 943):
“Existem quatro tipos de esmeraldas: mar, a mais bela; bahri, procurada pelos reis dos
reinos marítimos: Indo, Sind, Zandj e China; maghrabi, procurada pelos reis do Ocidente:
francos, lombardos, hispânicos, galegos, bascos, eslavos e russos; asamm, a menos bela.”
*
Assim se precisam, pouco a pouco, as linhas de uma rede coerente de relações
longínquas encerrando nas suas malhas a totalidade da Europa. Como é que podemos falar de
um Ocidente subitamente tornado – devido às conquistas muçulmanas – puramente terrestre,
inamovível, enclausurado, a viver de uma economia quase fechada e onde o grande comércio
internacional está morto, num momento em que este Ocidente acorda verdadeiramente à via
das trocas? Três pequenos eventos ilustram este grande feito: em 801, toca o solo da Gália o
primeiro elefante vindo da Índia, através do Mediterrâneo e rota de Itália. Em meados do séc.
IX, dromedários africanos enviados pela rota da Hispânia aparecem nos bancos do Reno. Em
986, um camelo asiático com duas bossas, depois de ter caminhado pelas rotas da Europa
oriental, entra nas muralhas de Quedlinbourg, na Saxónia. Rotas da Hispânia, da Itália, do
mundo eslavo e também dos mares nórdicos e do Atlântico, todas elas nos conduzem à região
do Mosa. Criam um meio receptivo, largamente aberto às incitações mais longínquas, vivo e
agitado, dos mais favoráveis à eclosão de um centro artístico. Qual é, efectivamente, a parte
maior ou menor que podemos atribuir às influências exteriores na formação da arte da região
do Mosa, essa arte de uma suprema habilidade técnica e de uma grande beleza plástica, que
não podia nascer nem desenvolver-se a não ser numa região de importante circulação. Não é
uma arte de “economia fechada”. Não existe verdadeiramente arte num domínio fechado,
“autárquico”. A circulação activa de homens, de coisas, de ideias, que abre aos países do
Mosa os horizontes mais variados e mais longínquos, favorece as confrontações, os
progressos técnicos, o enriquecimento do repertório decorativo e iconográfico; permite aos
ateliers abastecerem-se facilmente de matérias-primas vindas de longe para a sua indústria de

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luxo; torna possível o fluxo fácil de produtos de arte graças à existência de mercados de
consumo e mercados monetários suficientemente organizados.
Se o desenho das rotas, em estrela à volta dos Países do Mosa, pode contribuir para
explicar as origens da arte dessa região, também nos ajuda a perceber a expansão de sua
influência nos finais do séc. XI e séc. XII, quando está em plena posse do seu domínio.

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