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Reflexões sobre Peirce, Dewey, Mead e Goffman

1) A teoria Semiótica de Peirce considera a singularidade da experiência vivida por


um indivíduo em seu contato com os objetos (pessoas, cores, cheiros, materiais
diversos, sons, espaços, etc.). Assim, porque o interpretante associado ao signo é
algo produzido por um intérprete situado socialmente e historicamente?

O conceito de interpretante perpassa inevitavelmente pela subjetividade do intérprete,


uma vez que diz respeito à ideia produzida quando o sujeito entra em contato com um
objeto, através da mediação do signo e a partir de seu repertório linguístico. Tal
repertório, por sua vez, se constrói de maneira dinâmica e contextualizada, com base
nos encontros que o indivíduo tem ao longo de sua vida, em uma determinada
conjuntura temporal e cultural.

Ao originar outro signo, o interpretante abre uma cadeia semiósica única para cada
intérprete, justamente por estar atrelado ao campo de memória do sujeito e à sua forma
particular de experimentar o mundo. Em outras palavras, um mesmo objeto, observado
por indivíduos diferentes, evoca significados distintos a partir das vivências de quem o
percebe.

Como exemplo, podemos analisar rapidamente a relação de alguns personagens de O


Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronte, com a casa na propriedade de Wuthering
Heights. Enquanto o locatário da Granja, recém chegado à região, enxerga o local como
uma construção vazia e esquecida pelo tempo, Catherine Earnshaw - em seus devaneios
febris - olha para casa com nostalgia, por remetê-la à infância ao lado de seu amor.
Heathcliff, por sua vez, se relaciona com a propriedade de uma maneira complexa, que
varia ao decorrer do tempo: um palco de humilhações, um local de tormento e um
símbolo material de sua vingança, após conseguir tomá-la de seu algoz, Hindley
Earnshaw.

2) A abordagem de Dewey sobre o significado do conceito de experiência atravessa


toda a sua obra. A definição que ele elabora, nos desafia a tentar entender a
dimensão estética presente em toda experiência transformadora: “A experiência
constitui-se de um material cheio de incertezas, movendo-se em direção à sua
consumação através de uma série de vários incidentes” (2005, p.95). Comente a
relação que ele estabelece entre esses incidentes e a reflexividade que articula o
fazer e o padecer de uma experiência.

Para Dewey, há uma diferença essencial entre o ter e o fazer uma experiência. O
primeiro caso pode ser comparado à primeiridade peirceana, na medida em que o sujeito
é afetado, mas não passa do estágio de pura afetação, atendo-se à percepção inicial (não
reflexiva). Para que seja possível fazer uma experiência, é necessário um esforço por
parte do indivíduo, que deve readequar sua conduta para conhecer o mundo de outra
forma. Como o ritmo do fazer uma experiência não é o ritmo da rapidez do cotidiano, a
pessoa deve estar disposta a manter-se engajada pelo tempo necessário para a
contemplação ativa dos incidentes. Este trabalho árduo constitui o padecer de uma
experiência, ou seja; há, ao longo do caminho, um elemento de sofrimento ou choque
que é essencial para a busca da consumação da experiência. Em outras palavras, a
trajetória rumo ao fim da experiência não é linear e contínua, mas sim entrecortada por
pausas que permitem que o sujeito absorva material e se empenhe para produzir sentido
sem invalidar as etapas anteriores. Os obstáculos, nesse sentido, não são prejudiciais,
mas sim um instrumento essencial para o avanço.

3) Vimos que Mead elabora um conceito de interação intersubjetiva que privilegia


o caráter simbólico da ação social. Para ele, a ação conjunta é reciprocamente
referenciada e os gestos significantes dos interagentes produzem uma afetação
mútua. Mead enfatiza que o grupo social participa da experiência de cada um dos
membros individuais, ao mesmo tempo em que cada indivíduo deixa sua marca no
grupo. Explique como a relação entre “mente, self e sociedade” definem, para
Mead, a especificidade da interação social.

Para Mead, a interação social não se dá por meio de reações estímulo-resposta - como
colocado por correntes behavioristas -, mas sim por um trabalho reflexivo do sujeito,
que constrói sua presença cooperativamente, desempenhando papéis em sociedade.

Destrinchando a relação triádica entre a sociedade, o self e a mente; a primeira


constitui-se de comportamentos cooperativos - tornados possíveis pelo uso de símbolos
compartilhados (linguagem). Tais ações conjuntas se dão pelo contato entre sujeitos,
que constroem sua presença no mundo no Mead chama de self. O self se faz em um
tensionamento entre o eu mesmo e o mim; a parte espontânea e criativa do sujeito e a
internalização das expectativas dos outros sobre ele. Este trabalho reflexivo constante é
feito na mente, que funciona como um espaço mediador na busca pela construção de um
self unificado.

Sendo assim, as interações não se baseiam puramente na externalização de uma


percepção previamente definida (desconsiderando a mútua afetação) ou em uma reação
automática à ação do outro (desconsiderando o trabalho mental). Interagir socialmente,
então, diz respeito a antecipar o que o outro espera, trabalhar esta antecipação e pôr em
prática um curso de ação de forma contínua e maleável, enquanto os demais
interlocutores fazem o mesmo.

4) A sociologia de Goffman, ao assumir o pressuposto de que as mudanças de


footing revelam assimetrias e desigualdades nas interações face a face, adquire
uma profunda significância moral e política. Que relações possíveis podemos
estabelecer entre o footing e as disputas pela integridade e soberania dos
interlocutores? Cite um exemplo para ilustrar sua resposta.

O footing é responsável por conferir dinamicidade ao enquadramento, possibilitando


que os sujeitos se readequem constantemente durante a interação. Os interlocutores, a
partir de mudanças em sua postura, interferem na situação inicial; assim como a
situação impacta em seus comportamentos, simultaneamente. O principal objetivo
destas adaptações, segundo Goffman, é proteger-se da perda da face perante o outro, ou
seja, evitar sofrer embaraços ou humilhações. Além disso, ao mesmo tempo em que se
resguarda, o indivíduo pode alterar sua linguagem para tentar desarmar aquele com
quem está interagindo. Tal possibilidade confere ao footing uma dimensão política de
disputa por poder, na medida em que os interlocutores escolhem o que esconder ou
revelar, a fim de conquistar ou manter sua soberania.

Como exemplo, podemos analisar a seguinte cena de Harry Potter e a Ordem da Fênix,
que mostra uma discussão entre a professora Minerva McGonagall e Dolores Umbridge,
Secretária do Ministério da Magia. O enquadramento é constituído inicialmente por um
embate profissional, que se reconfigura por não estar em um local esperado - em uma
sala particular para docentes, por exemplo -, mas sim em um espaço comunal ocupado
por diversos alunos. Em um primeiro momento, as duas sobem as escadas no mesmo
ritmo, o que coloca Minerva acima de Dolores por causa de sua altura. Quando sente
que sua autoridade está sendo questionada, Umbridge sobe um degrau na escada,
igualando sua altura; ao mesmo tempo em que chama a professora por seu primeiro
nome - ação que pode ser interpretada como desrespeito ou afronta. McGonagall rebate,
também usando o primeiro nome de sua oponente, enquanto sobe um degrau e recupera
sua vantagem. Dolores, então, usa sua influência no governo como argumento para
reforçar sua superioridade e ameaça Minerva ao acusá-la de deslealdade - o que faz com
que esta volte para o degrau abaixo, reconhecendo sua derrota e perdendo a face. Por
fim, Umbridge dá outro passo para cima, consolidando seu poder, e se dirige aos alunos
no patamar inferior. Esta atitude final dá a entender que ela tinha consciência das
imediações da interação e que usou a presença dos alunos, enquanto espectadores, para
solidificar sua soberania perante a professora.

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