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2 em Torno Do Conceito de Política Social
2 em Torno Do Conceito de Política Social
NOTAS INTRODUTÓRIAS
No resto da frase, com objetivos específicos está a segunda armadilha. Pois cabem,
igualmente, perguntas que qualificam a locução: especificados por quem, em que esferas,
com que legitimidade? De novo, faz imensa diferença se a demarcação dos objetivos de
determinada ação governamental se dá em circunstâncias democráticas ou autoritárias, se
leva em conta interesses amplos ou restritos da sociedade, etc.
Assim, percebe-se que, mais do que conferir rigor absoluto ao conceito de política
pública, é importante considerar seu caráter político1, e, portanto circunstancial, o que
equivale a dizer historicamente inteligível. Como política pública, portanto, a política social
deve ser entendida em sua dimensão política e histórica. E é contemplando estas
dimensões, sempre articuladas, que se pode avançar um pouco mais na definição de política
social e na identificação de seu objeto.
1
A língua inglesa exibe maior precisão terminológica ao distinguir policy (no plural, policies) - política no
sentido de ação, de medida - de politics, política no sentido de fazer política. A afirmação "policies require
politics", esclarecedora da natureza política da política pública, perde grande parte de seu sentido quando
traduzida para o português (políticas requerem política).
.
1
Um autor sempre citado quando se estuda política social, T. H. Marshall, em livro
publicado em 1965 e reeditado seguidas vezes, em Londres, assinala aspectos cruciais para
conceituar política social. "Política social é um termo que, embora amplamente usado não
possui definição precisa. O significado que lhe é dado em contextos particulares é em
grande medida matéria de conveniência ou convenção"2. Os referidos aspectos cruciais
contidos no trecho são os seguintes: a) em contextos particulares, isto é distintos,
significados também distintos são atribuídos ao termo política social; b) tais distintos
significados decorrem de conveniência ou convenção, ou seja, são estabelecidos mediante
escolhas e/ou acordos. O primeiro aspecto sugere, enfatizando a dimensão histórica3, que
pode-se entender e praticar política social – que, como política pública é ação de governo –
de diversos modos, dependendo, conforme mencionado acima, da natureza do Estado e dos
processos decisórios em vigor. O segundo aspecto reitera a importância dos atores sociais e
de sua capacidade de negociar politicamente suas posições na agenda pública.
Mais uma vez, se repõe o caráter aparentemente óbvio e vago da afirmação. Agora,
porém, considerando o que foi mencionado anteriormente, sabe-se que é possível e
necessário qualificá-la mediante certas interrogações, que no caso são: a quem proteger?
Como proteger? De que proteger? A argumentação desenvolvida até aqui permite perceber
que as respostas dadas pelas nações a estas perguntas foram historicamente diversas e são
ainda hoje diversas em função de suas estruturas político-institucionais, configurando
modelos diferenciados de proteção social.
Ações governamentais com objetivos voltados para a proteção social começam a ser
produzidas contemporaneamente à consolidação dos modernos Estados nacionais, no
Ocidente Europeu, lá pelos séculos XVI e XVII. É então que se institucionaliza o que
Weber considera o núcleo definidor do Estado moderno: o monopólio da violência
2
Marshall, T.H. - Social Policy in the Twentieth Century, Hutchinson University Library, Londres, 1975, 4a
edição. Há tradução em português, publicada por Zahar editores, com o título Política Social, em 1967. O
trecho citado não consta da edição brasileira porque foi incluído, pelo autor, na introdução especialmente
escrita para a 4a edição inglesa.
3
. Vale sublinhar que a dimensão histórica deve ser compreendida no tempo e no espaço, implicando
elementos econômicos, sociais, políticos, culturais, tecnológicos, etc, que tanto diferenciam uma mesma
sociedade em momentos que se sucedem historicamente como diferenciam as sociedades umas das outras,
num mesmo momento, em função de condicionamentos históricos.
2
legítima4, e que se fazem presentes as condições que tornam possíveis e necessárias ações
governamentais naquele sentido. Num contexto de transição para o capitalismo, de
expansão do comércio e de valorização das cidades, a pobreza se torna visível, incômoda, e
passa a ser reconhecida como um risco social. A primeira fase da evolução da política
social consistiu nas chamadas Leis dos Pobres, bastante disseminadas pelos países
europeus, embora com diferenças marcantes entre eles.
A pobreza, nesta fase, é o risco social predominante. O Estado age para proteger a
sociedade da ameaça representada pela pobreza (à qual se associam a indigência, a doença,
o furto, a degradação dos costumes) e para proteger os pobres. Como mostra Polanyi, sem a
“proteção” levada a efeito pelas Leis dos Pobres seguramente as sociedades européias não
teriam resistido aos cataclismos sociais produzidos pelas mudanças operadas com a
mercantilização da produção e o advento do capitalismo6. Quanto aos pobres, foram
protegidos ora pela distribuição de alimentos, ora por meio de complementação salarial, ora
através do recolhimento a asilos, ora mediante recrutamento para as manufaturas públicas.
Em fins do século XIX, uma segunda fase da política social se inaugura. Seguros
sociais compulsórios, para fazer face a riscos sociais associados ao trabalho assalariado,
despontam como o modelo dominante de proteção social. No novo cenário, de capitalismo
4
. Weber, Max – Economia e Sociedade. Weber se refere às capacidades que só o Estado legitimamente tem
de exercer os poderes de dispor sobre a vida (prender, e, no limite, matar) e sobre os bens (tributar) dos
cidadãos em circunscrição territorial reconhecida.
5
. O modelo mais conhecido são as Poor Laws inglesas. A primeira foi promulgada no reinado de Elizabeth I,
em fins do século XVI.
6
. Polanyi, Karl – A Grande Transformação, Campus, Rio de Janeiro, 1980.
7
. A reforma da Poor Law inglesa, em 1834 é esclarecedora. Precedida de intenso debate dominado pela idéia
de que o mercado, e não o Estado, é que devia cuidar dos pobres, aboliu a concessão de qualquer “assistência
externa” (abonos salariais e distribuição de alimentos) e reintroduziu a experiência dos albergues sob novo
formato, pelo qual ficava a critério do candidato (o pobre) pleitear o “ benefício” com o que, entretanto,
perdia seu status de cidadão livre.
3
industrial consolidado, aparecem novos atores – sindicatos, partidos políticos – e arranjos
institucionais capazes de incluir, na agenda pública, demandas de setores emergentes no
mundo do trabalho.
O primeiro seguro social de que se tem notícia foi instituído por Bismarck, na
Alemanha, nos anos 1880. Não resultou do jogo parlamentar, como ocorreu na Dinamarca e
na Suécia, na década seguinte, na Inglaterra, no início do século XX, e em outros países na
mesma época. Mas foi uma opção claramente política, ainda que autoritária. A política
social de Bismarck tinha por objetivo o enfrentamento do movimento operário e
conformava uma proposta intencional de organização do universo do trabalho – o
corporativismo submetido ao Estado – e de controle social. Buscava conter o avanço da
social-democracia e, assim trocou benefícios (a cobertura dos riscos, para os assalariados,
decorrentes de doenças, acidentes de trabalho e incapacidade laborativa devida à idade)
pelo cerceamento da atividade sindical. Os propósitos e os efeitos da legislação social
bismarckiana foram, de fato, muito mais políticos do que sociais. Os problemas de maior
urgência para os assalariados alemães, naquela oportunidade (inspeção das condições de
trabalho, regulamentação da jornada de trabalho, fiscalização dos contratos de trabalho),
não foram tocados. Bismarck compartilhava com os liberais (e com os empresários) a firme
opinião de que qualquer interferência nos negócios privados seria nociva ao sistema. Mas,
reprimindo reivindicações mais vigorosas, por um lado, e, por outro, oferecendo concessões
em termos de política social, infringiu uma derrota ao movimento sindical e consolidou o
recém-unificado Reich.
8
. A industrialização enfraquece substancialmente as redes tradicionais de proteção, como a família, a igreja,
a comunidade, na medida em que a todos – homens, mulheres, crianças – recruta para o trabalho na fábrica.
Os idosos, que na produção artesanal eram figuras importantes, porque detinham o saber sobre o processo de
trabalho como um todo, são descartados, pois a produção industrial fragmenta o processo de trabalho e passa
a requer habilidades manuais mais juvenis. Os riscos relativos à saúde se agravam com as condições de
trabalho nas fábricas e com as condições de vida decorrentes da urbanização acelerada.
4
caráter meramente assistencialista9. Por sua natureza meritocrática – faz jus a um certo
benefício aquele que por sua inserção na estrutura ocupacional efetuou preteritamente a
contribuição correspondente – o seguro social destituía a política social de estigma.
Deslocando seu alvo principal, da pobreza para o trabalho assalariado, a política social
ganha papel pró-ativo no sistema: assegura direitos sociais aos que dele participam,
hierarquiza o universo dos merecedores de tais direitos segundo as suas (dele)
conveniências, e provê mecanismos de controle sobre os que dele se afastam.
5
os sistemas eleitorais, o Parlamento – se tornaram mais inclusivas; novos espaços de
negociação surgiram (câmaras consultivas ou deliberativas formadas por representantes de
trabalhadores, empresários, produtores agrícolas e técnicos governamentais para estabelecer
diretrizes macroeconômicas); a democracia, enfim, expandiu-se. Por sua vez, a organização
política dos atores sociais se fortaleceu. Identidades coletivas coesas, com alto poder de
agregação e alta representatividade adotaram estratégias de concertação, ou seja, acordos,
que permitiram aumentos substanciais na tributação (principalmente do capital) e
provimento de benefícios generosos à maioria da população.
6
No modelo liberal ou residual, o Estado somente intervém quando o mercado impõe
demasiadas penas a determinados segmentos sociais e onde os canais “naturais” de
satisfação das necessidades – o esforço individual, a família, o mercado, as redes
comunitárias – revelam-se insuficientes. Nesta concepção, o mercado funciona como o
espaço da distribuição, do que resulta a prevalência de esquemas privados e ocupacionais
de seguro social, não apenas sancionados como favorecidos pelos sindicatos. Guarda
semelhança, sob versão atualizada, com a primeira fase histórica da política social16 e se
tornou dominante em países como os EUA e, até certo ponto Austrália, Canadá e Suíça,
onde a organização dos atores sociais é fragmentada, pluralista, e, embora pujante, não se
traduz como força política, não se reconhece necessariamente em partidos políticos, e não
expressa, no cenário politico-institucional, a presença de identidades coletivas fortes.
16
. É interessante assinalar que a própria noção de welfare, nos EUA, tem sentido pejorativo, pois se associa à
dependência da assistência pública, denotando, segundo as normas tradicionais da ética do trabalho, fracasso
no mercado. O termo seguridade social é bastante popularizado naquele país, não só para designar o seguro
social obrigatório como englobando os benefícios seletivos para a população de baixa renda (food-stamps,
abrigos para os homeless, auxílios para crianças pobres), mas o significado atribuído ao termo se afasta
inteiramente da concepção forjada na Europa no pós-guerra.
17
. A respeito, ver a coletânea organizada por GERSCHMAN, Silvia e WERNECK VIANNA, Maria Lucia,
A Miragem da Pós-Modernidade (Ed. Fiocruz, Rio de Janeiro, 1998) na qual se encontram artigos e
bibliografia sobre o assunto.
7
palavras que corroboram o entendimento de que a dimensão política é fundamental no
exame das políticas públicas.
18
. ESPING-ANDERSEN, Ghosta - “O Futuro do Welfare State na Nova Ordem Mundial”, em Lua Nova
n.35, São Paulo, 1995.