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1. A linguagem
A linguagem é a instituição social de que nos servimos para nos comunicarmos. É um
sistema de símbolos que têm a função de servir à comunicação. Sistema é um conjunto de
elementos que se relacionam entre si; é um conjunto de elementos ordenados.
Símbolos (os elementos desse sistema) são signos artificiais. O signo é um fenômeno
1 O exemplo é de Marc D. Hauser, Noam Chomsky e W. Tecumseh Fitch (The faculty of language: what
it is, who has it and how did it evolve? Science, v. 298, p. 1569).
2 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al
Também há um quarto elemento: a fonética, responsável pela pronúncia das sentenças e palavras de
determinada língua. Como não se trata de um aspecto relevante para os fins desta Introdução ao Estudo
do Direito, deixemos ela de lado.
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire
2. Sintaxe
Seu colega de classe olha para você e diz “perdeu o para Fluminense
Corinthians ontem o”. Como você sabe que no dia anterior o Fluminense ganhou do
Corinthians, talvez você tenha condições de responder ao seu colega algo como “é
verdade”, ou “sim, eu vi o jogo”. No entanto, você pensará que seu colega precisa ter
algumas aulas de português. Afinal, pelas regras da gramática da língua portuguesa
as palavras não se combinam desse modo. Para que a frase fosse bem construída e
fosse entendida por qualquer pessoa que não soubesse o resultado dos jogos do
Campeonato Brasileiro, ele deveria ter dito “ontem, o Corinthians perdeu para o
Fluminense”, ou ainda “o Corinthians perdeu ontem para o Fluminense”. Essas duas
últimas sentenças são combinações possíveis no português, já que observaram as
regras sintáticas desse idioma. São sentenças bem construídas.
O que vale para a língua portuguesa também se aplica para outras formas de
linguagens, como a linguagem da lógica formal, a linguagem contábil e a linguagem
do direito positivo. Isso porque a sintaxe tem por objeto as normas que disciplinam
as possibilidades de combinação dos signos de determinada linguagem.
No âmbito da sintaxe, é possível fazer referência a três tipos de conjuntos, que
se diferenciam pelos seus elementos:6
Conjunto de signos primitivos. Neste, estão as entidades
Sintaxe consiste nas normas significativas de uma linguagem que não requerem definição
que disciplinam as explícita por outros signos da mesma linguagem. Na linguagem
possibilidades de combinação natural, os morfemas são as unidades significativas mínimas, que
dos signos em sequência de integram a palavra.
determinada linguagem. Conjunto de regras de formação. Aqui, encontramos as normas
que fixam o modo pelo qual os signos se combinam. Assim,
sabemos que, no português, o verbo concorda com o sujeito, de tal
modo que a frase “eles estuda muito” está errada, enquanto que “eles
estudam muito” está correta.
3. Semântica
Se a sintaxe está voltada para o estudo dos signos primitivos, das regras de
formação e das regras de derivação de uma dada linguagem, a semântica tem como
foco o significado. Ela trata da relação dos signos com os objetos designados. Assim,
na semântica, são estudadas as regras que possibilitam que as expressões dessa
linguagem sejam interpretadas. Quando se fala em “sistema semântico”, tem-se em
vista o conjunto de regras que determinam as condições de verdade
das sentenças de uma linguagem.8
Semântica é o campo da
investigação que tem por Note que há forte relação entre a sintática e a semântica. De
objeto o significado e a teoria acordo com John Searle, a sintática envolve três aspectos. As
da verdade. sentenças são formadas por palavras, que significam algo. A
sentença, por si só, possui um significado. No entanto, mesmo se
houver uma nova combinação entre as palavras, estas continuarão
a ter sua identidade, o seu próprio significado. Quando se faz um bolo, todos os
ingredientes perdem a sua identidade, formando uma coisa só. Já na linguagem, isso
não ocorre. Cada palavra não perde sua identidade. A isso, Searle denomina
distintividade. Além dessa característica, Searle menciona que a ordem das palavras
numa sentença afeta o seu significado. Assim, se houver uma inversão na ordem das
palavras, é possível que o significado da sentença mude. “João ama Maria” tem um
sentido diferente de “Maria ama João”. Trata-se da composicionalidade. Por fim, a
linguagem natural possui uma infinita capacidade gerativa, o que ele chama de
generatividade. A partir das regras dessa linguagem, é possível formar um número
infinito de sentenças.
9 SEARLE, John R. Making the social world: the structure of human civilization, pp. 63-64.
10 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 14; NINO,
Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho, pp. 11-12.
11 O debate entre essencialistas e convencionalistas não é recente. Manfredo Araújo de Oliveira
sido utilizada para indicar esse objeto esférico. Mas o fato é que, no idioma português,
a comunidade dos falantes utiliza a expressão “bola”. Aliás, a natureza não essencial
das palavras fica mais clara quando passamos a aprender outros idiomas. Em inglês,
aquilo que o bebê chama de “mamã” é “mother”; “papa”, “food”. No exemplo, “bola”
se refere ao mesmo objeto que “ball”.
Por isso, quando aprendemos o nome de um objeto, nós não aprendemos algo
sobre o objeto, mas sim sobre os costumes linguísticos de certo grupo ou povo. E esse costume
muda ao longo do tempo. Basta pensar na palavra “vosmecê”, muito utilizada no
século XIX. Este pronome pessoal de tratamento – que é uma contração de
“vossamecê” (que, por sua vez, é a contração de “vossa mercê”) – era usado para
tratar com a pessoa com quem se fala. Ao longo do tempo, o termo foi substituído por
“você”. E não será de estranhar que, num futuro, a expressão “vc” seja reconhecida
pelos dicionários como sinônimo (ou até mesmo substituto) de “você”. Dentro da
concepção convencionalista, falar da “essência” de algo significa apenas indicar as
características necessárias para o uso da palavra, o que pode mudar com o tempo e o
contexto.12 Assim, quando há uma mudança no nome de algo, o que muda não é esse
objeto. O que há é uma mudança no costume linguístico de uma comunidade, isto é, na
forma como essa comunidade nomeia tal objeto. Ou ainda, o que há é uma mudança
das regras para o uso de determinada palavra.
Em vista disso, fica claro que as coisas não possuem nomes “verdadeiros”. O
que existem são palavras comumente aceitas e utilizadas por um grupo, enquanto
outras palavras não o são. Essa capacidade de criar nomes às coisas se chama
liberdade de estipulação. Logo, podemos criar, conforme nossos
Liberdade de estipulação é
próprios interesses, os nomes que bem desejarmos para fazer
capacidade dos seres humanos
referência à realidade. No entanto, como bem apontam Guibourg,
Ghigliani e Guarinoni, essa liberdade de estipulação traz um risco.
de criar nomes para fazer
Se estipularmos livremente um nome que se afasta do seu uso
referência a objetos.
comum, temos sempre que indicar ao nosso interlocutor o que
queremos dizer quando usamos determinada palavra. E quanto
mais fugimos do uso comum, maior será a nossa dificuldade de comunicação,
tornando ainda mais relevante a necessidade de se aclarar o sentido de certo vocábulo
ou expressão.13
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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3.4. Vagueza
Imagine a seguinte situação. Você e seu colega estão na sala de aula, assistindo
à aula de Introdução ao Estudo do Direito. Como a aula não está lá muito interessante,
vocês começam a discutir sobre o professor. Mais especificamente, sobre o fato de ele
ser ou não careca. O professor possui entradas bastante salientes, cabelo na parte
lateral, atrás da cabeça e um pouco na parte de cima da cabeça. Na sua visão,
decididamente o professor é careca. Na opinião de seu colega, ele não é careca; ele é
apenas “calvo”. A discussão flui até que o professor solicita que vocês fiquem quietos
para não atrapalhar mais a aula, ou então que se retirem da sala.
A questão, então, é a seguinte: quando podemos afirmar que alguém é careca?
Certamente, há casos muito claros de pessoas que, sem qualquer discussão, são
carecas. Há outras pessoas que também temos certeza de que não são carecas. Mas há
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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3.5. Ambiguidade
A vagueza não se confunde com a ambiguidade. Neste caso, a palavra possui
mais de um significado. Pense na palavra “manga”, que significa parte da roupa que
cobre o braço (a manga de uma camisa), mas que também designa o nome de uma
fruta. A palavra “mesa” é outro exemplo: além de ser o objeto com uma tampa
horizontal que serve para que coloquemos coisas em cima dela, o termo é igualmente
usado para falar do corpo diretivo do Poder Legislativo (há a mesa da Câmara dos
Deputados, a mesa do Senado Federal etc.).
É fácil lidar com a ambiguidade. De modo geral, o contexto (linguístico e fático)
será suficiente para entender em qual sentido certa palavra está sendo usada. Se
alguém está comendo uma fruta amarela e lhe pergunta “quer um pedaço de
manga?”, certamente ele não está lhe oferecendo o pedaço da camisa, mas sim a fruta
“manga”. Em outros casos, se os sentidos da palavra podem trazer confusão, basta
explicitar o significado em que a palavra está sendo usada.
No direito, é possível encontrar palavras ambíguas. A palavra “mandato”, pode
significar duas coisas diferentes. Num primeiro sentido, “mandato” é um contrato em
que alguém recebe de outra poderes para praticar certos atos (como fazer a matrícula
do outorgante na universidade). O instrumento que formaliza isso é a “procuração”
(art. 653 do Código Civil). Ou seja, o mandato é uma espécie de contrato disciplinado
pelo Código Civil. Mas, no direito, “mandato” também é o período determinado no
tempo (ex.: 4 anos) em que um agente político eleito (deputado, senador, governador
etc.) e outros agentes públicos (ex.: diretores de agências reguladoras) atuarão no
exercício da função pública de que foram investidos.
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como sendo também uma unidade familiar, isto é, incluindo tal união na denotação
(extensão) do conceito de família.16
Perceba que, em 1934, a sociedade em geral não cogitaria que uma união
homoafetiva estaria incluída na extensão do significado de “família”. Não estava em
pauta qualquer vagueza ou ambiguidade quanto a esse aspecto. Durante algum
tempo, havia um debate se a unidade monoparental e a homoafetiva estavam ou não
incluídas no conceito de família. O conceito se tornou vago. Este é um exemplo de
textura aberta. Atualmente, não só a união homoafetiva passou a ter esse
reconhecimento jurídico e em muitos segmentos sociais.
O conceito de textura aberta foi introduzido por Friedrich
Vagueza é o significado Waismann, no final da primeira metade do século XX. Este autor,
impreciso de uma palavra ou ao tratar da verificação das proposições, asseverou que todos
expressão. nossos conceitos empíricos têm uma textura aberta, tendo em vista
Ambiguidade consiste na
não ser possível indicar todas as condições possíveis para o uso do
termo. Isso pode ocorrer em razão da imperfeição do nosso
existência de mais de um
conhecimento sobre o mundo e em função da impossibilidade de
significado para uma mesma
se prever o futuro. Sempre existe a possibilidade, ainda que
palavra ou expressão.
pequena, de que não tenhamos verificado todos os aspectos
Textura aberta é a relevantes para o uso de um conceito empírico. Para Waismann,
possibilidade de vagueza de sempre existirá uma margem de incerteza. Ele afirma que não há
toda palavra ou expressão. conceito que seja de tal modo delimitado que não exista margem
para dúvida. Conforme pontua, textura aberta não é o mesmo que
vagueza. Textura aberta é a possibilidade de vagueza. A vagueza pode
ser resolvida mediante a introdução de mais algumas regras. A textura aberta, não.17
Ter clareza quanto à diferença entre vagueza, ambiguidade e textura aberta da
linguagem é de extrema importância para o jurista. Esses aspectos da linguagem
influem decisivamente na atividade de interpretação dos textos jurídicos e de
aplicação das normas jurídicas aos casos concretos. Nós trataremos desse tema na
Parte IV, Capítulo VI, sobre a interpretação.
16Cfr.: STF, ADI 4.277/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Ayres Britto, Julgamento 05.05.2011, DJe
13.10.2011; e, STF, ADPF 132/RJ, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Ayres Britto, Julgamento 05.05.2011,
DJe 13.10.2011.
17 WAISMANN, Friedrich. Verifiability. Proceedings of Aristotelian Society. Supplementary
Volumes, vol. 19, pp. 121-123. Sobre o tema, vide ainda: SCHAUER, Frederick. Playing by the
rules: a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life, pp. 34-37.
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que formam o definiens. Se o professor disser que “lei, no direito brasileiro, é todo ato
jurídico praticado no exercício de função legislativa”, o aluno ficará com algumas
dúvidas. O que se entende por “direito brasileiro”? O que é “ato jurídico”? O que é
“função legislativa? Por isso, uma definição ostensiva também pode ser bastante útil.
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4. Pragmática
Nas duas dimensões da linguagem estudadas nos itens 2 e 3, a sintaxe tem por
objeto as normas que disciplinam as relações entre os signos entre si; já a semântica,
o estudo do significado. Neste item, estudaremos a terceira dimensão da linguagem,
a pragmática.
Conforme Charles W. Morris, a pragmática diz respeito à relação dos signos
com os seus usuários. Na perspectiva pragmática, a linguagem é um sistema de
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Para tratar dos atos de fala, convém inicialmente indicar as diversas espécies de
atos linguísticos.
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Por outro lado, suponha agora que alguém faz a seguinte enunciação: “prometo
que o Fluminense será campeão da Taça Libertadores”. Aqui, o objetivo do emissor
não foi a de representar um determinado estado de coisas. O seu ponto ilocucionário
é outro: o de fazer com que o mundo corresponda às suas palavras. É o que ocorre
também com as diretivas do direito positivo. Quando a Constituição prescreve, em
seu art. 3º, I, que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é “construir uma
sociedade livre, justa e solidária”, certamente o constituinte não pretendeu descrever
um estado de coisas. Ele procurou dizer como o Estado Brasileiro deve atuar para a
realização desse estado de coisas. O que se deseja é que o mundo corresponda ao
enunciado. Nessa hipótese, a direção de correspondência é do mundo-para-as-palavras,
sendo representada pela flecha voltada para cima (“↑”).
Palavras [F(p)]
↓ ↑
Mundo
Essa é uma distinção relevante, pois ela nos ajuda a enxergar a diferença entre
os diversos níveis de linguagem no âmbito do direito. A direção de correspondência
na ciência do direito é das palavras-para-o-mundo (“↓”). Assim, quando um jurista
afirma que “a Constituição determina, em seu art. 3º, I, que a República Federativa
do Brasil tem como objetivo construir uma sociedade livre, justa e solidária”, sua
finalidade consiste em representar adequadamente o mundo do qual ele fala, no caso,
o direito positivo brasileiro. Já as proposições contidas no direito positivo (como a do
constituinte ao enunciar a proposição contida no art. 3º, I, da Constituição) tem outra
direção de correspondência, qual seja, do mundo-para-as-palavras (“↑”), pois sua
pretensão é a de fazer com que o mundo corresponda ao que está previsto no direito
positivo.
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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na mesa, repleto de sal. Então, como seu irmão está próximo do saleiro, você realiza
o seguinte ato: “irmão, por favor, passe-me o saleiro”. Neste exemplo, você deseja
algo (o saleiro) e solicita a outra pessoa (o seu irmão) que realize uma conduta para
que esse desejo seja realizado (no caso, que se irmão lhe entregue o saleiro para que
você possa colocar um pouco de sal na carne).
No entanto, existem casos mais complexos em que, ao ser executado um ato de
fala, indiretamente é executado outro. O emissor da mensagem produz um enunciado
que, interpretado literalmente, tem uma força ilocucionária; no entanto, por meio
desse ato ilocucionário, outro é praticado. Vamos usar o mesmo exemplo. Suponha
que você tenha pronunciado as seguintes palavras: “irmão, você alcança o saleiro?”
Nesse caso, perceba que, se seu irmão resolver apenas interpretar literalmente a sua
pergunta, ele responderá “sim” e você ficará decepcionado e talvez irritado. Isso
porque, por meio da pergunta, você não desejava saber se o seu irmão conseguiria
Os atos de fala alcançar o saleiro; o que você desejava era que ele passasse o saleiro para você, e não
indiretos que lhe desse alguma informação sobre a possibilidade de ele alcançar o saleiro. Nesse
comunicam mais caso, por meio de uma pergunta, o que você praticou foi o ato de fala indireto de pedir
do que o emissor o saleiro.
efetivamente
enuncia Portanto, nos atos de fala indiretos, o emissor da mensagem comunica ao
receptor mais do que ele efetivamente enuncia ao confiar nas informações
(linguísticas e não linguísticas) comuns que possuem, no contexto da situação e na
habilidade do receptor em realizar inferências.
No direito, é muito comum a presença de atos de fala indiretos. Tome como
exemplo o art. 37, II, da Constituição, o qual dispõe que “os cargos, empregos e
funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”. A interpretação
literal desse ato linguístico indica uma assertiva: os cargos, empregos e funções
públicos são acessíveis aos brasileiros e estrangeiros, nos termos da lei. No entanto,
essa assertiva possui uma força ilocucionária de diretiva. O constituinte não
pretendeu descrever que os cargos públicos são acessíveis a todos os que preencham
os requisitos da lei; ele determinou ao legislador que crie requisitos para o acesso aos
cargos públicos tanto a brasileiros como a estrangeiros e também determinou à
Administração Pública que não crie embaraços ao acesso aos cargos, empregos e
funções públicas àqueles que preencham os requisitos legais. Logo, por meio de uma
assertiva, o constituinte praticou um ato de fala indireto, qual seja, uma ordem ao
legislador e à Administração Pública. Você verá que, nos enunciados da Constituição,
das leis, dos regulamentos, das sentenças, dos contratos e de outros atos jurídicos, são
inúmeros os atos de fala indiretos, todos reveladores de uma diretiva.
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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expressivos ou declarações. A teoria dos atos linguísticos é útil na medida em que nos
permite entender de forma clara o seguinte:
O ato de enunciação (emissão de sons pela boca, atividade de escrever
num pedaço de papel etc.) é diferente do ato proposicional (que envolve
a referência e a predicação) e do ato ilocucionário (que é o ato de fala
completo).
Um ato de fala tem a estrutura “F(p)”, em que “F” é a sua força
ilocucionária (assertivas, diretivas, comissivos, expressivos e declarações)
e “p”, a proposição.
Os atos de fala possuem uma direção de correspondência, que será: do
mundo-para-as-palavras (“↑”), das palavras-para-o-mundo (“↓”), ou
bidirecional (“↕”).
Por vezes, por meio de um ato ilocucionário, o que se pretende é que outro
ato ilocucionário (aquele que não é obtido da mera interpretação literal)
seja praticado. Ou seja, há atos de fala indiretos.
Uma coisa são os atos de fala produzidos (cujo ato completo é o
ilocucionário); outra, são os efeitos ou consequências que esse ato causa
no receptor da mensagem. Neste caso, estamos falando dos atos
perlocucionários.
Quando conseguimos, por abstração, diferenciar essas situações, temos
melhores condições para visualizar melhor o fenômeno que estudamos. Isso nos
confere um instrumento analítico relevante.
Note que essa teoria não tem sido muito estudada no âmbito da teoria do direito
(ao menos não na teoria do direito no Brasil). Isso não significa que diversos temas
que a teoria faz referência já não tenham sido estudados, ainda que sob outra
roupagem. Assim, quando falamos da força ilocucionária de um ato de fala, estamos
fazendo alusão às finalidades da emissão da mensagem no âmbito do processo
comunicativo. Há autores que discutem esse tema sob a perspectiva das funções da
linguagem. Por outro lado, ao falar dos atos perlocucionários, o foco de atenção é
alterado. O que se analisa não é mais o que o emissor pretendeu, mas sim de que
modo o ato de fala impactou nas ações, pensamentos, emoções etc. do receptor da
mensagem. Por vezes, falar que uma pessoa é “preta” em vez de “negra” ou “afro-
brasileira” pode gerar um sentimento diverso nas pessoas. É a questão dos efeitos
emotivos da linguagem. Além disso, num discurso, o emissor pode pretender persuadir
seu público, pela fixação de conceitos não muito precisos, voltados ao mero
convencimento. Trata-se do tema da definição persuasiva. E ainda o discurso, em
especial o científico, pode revestir de um efeito ideológico que é necessário depurar.
É a função ideológica da linguagem.
Por tal razão, é conveniente que você tenha uma ideia de quais são as funções
da linguagem, efeito emotivo da linguagem, definição persuasiva e função ideológica
da linguagem. Esses são os temas dos próximos itens.
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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situação ontologicamente subjetiva (como na última). Por isso, em todos esses casos,
diz-se que a linguagem cumpre uma função descritiva ou informativa.
Como você já deve imaginar, quando usamos a linguagem com essa função,
podemos transmitir uma informação verdadeira ou falsa. Nem sempre o Fluminense
ganha e nem sempre estou gripado; logo, é possível que a descrição dessas situações
(ontologicamente objetiva e subjetiva, respectivamente) não sejam verdadeiras. E,
com certeza, Londres não é a capital da França! No entanto, é verdadeiro o fato de
que a Constituição brasileira atual foi promulgada em 5 de outubro de 1988. Isso
indica que, na sua função descritiva, as proposições serão verdadeiras ou falsas.
A linguagem
científica tem uma A linguagem científica possui essa função: a de descrever uma determinada
função descritiva. realidade. Por isso, o objetivo é o de enunciar proposições que sejam verdadeiras. As
Suas proposições proposições que se revelam falsas – como “a Terra é plana” – são simplesmente
serão verdadeiras descartadas do discurso científico. No direito, ou melhor, na ciência do direito, o seu
ou falsas.
propósito é o de descrever o direito positivo (ou seja, o ordenamento jurídico vigente
em dado tempo e lugar).
Para usar um conceito de Searle, aqui, a direção de correspondência é das
palavras-para-o-mundo (“↓”), pois desejamos saber se a proposição descritiva está de
acordo com o mundo.
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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contratar aulas de reforço para você. Afinal, um conselho não é verdadeiro ou falso;
ele pode ser conveniente ou inconveniente, bom ou ruim, mas nunca verdadeiro ou
falso. O mesmo vale para normas morais, normas de etiqueta e normas jurídicas. Elas
serão, em face de um dado sistema normativo, válidas ou inválidas. Quanto à sua
possibilidade de modificação da realidade referida, eficazes ou ineficazes. Ao se
comparar com outro sistema normativo, justas ou injustas, compatíveis ou
incompatíveis, mas nunca verdadeiras ou falsas. Isso ocorre porque, na linguagem
diretiva, o que se deseja é fazer com que o mundo corresponda às proposições
diretivas; por isso, sua direção de correspondência é do mundo-para-as-palavras
(“↑”).
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imutável o sentido de certa palavra, fixando o significado no tempo. É por isso que a
A linguagem é
definição persuasiva – tal como asseveram Guibourg, Ghigliani e Guarinoni –
usada de forma
encaixa-se perfeitamente na teoria essencialista da linguagem.30
ideológica quando
as palavras são Quando o emissor manipula o significado de uma palavra acima da nossa
enunciadas de capacidade de análise ou sem que avise da estipulação do sentido, apenas para a fim
forma a estipular
de atender a seus interesses, está em pauta a função ideológica da linguagem. É em razão
sentidos para que
dessa função que acabamos, em muitas situações, a aceitar e utilizar estruturas de
os receptores
atuem de acordo pensamento pré-fixadas. Essas estruturas dependem da cultura de cada comunidade,
com os interesses do momento histórico. No passado, falar abertamente ser “homossexual” era algo
do emissor da muito complicado, pois era “errado” ser homossexual (em alguns países, tal estado
mensagem chegou a ser criminalizado). Chamar alguém de “comunista” ou “socialista”, pode
ser algo terrível em dada comunidade; ou ser rotulado de “liberal” pode significar a
exclusão da pessoa de determinado grupo.
Na política e no direito, é muito comum encontrar definições persuasivas. Por
vezes, certas expressões cumprem uma função eminentemente ideológica. Logo, é
preciso que estejamos sempre alertas quanto a esse efeito.
5. Classes da linguagem
A linguagem, como já mencionado, é um sistema de símbolos, isto é, um sistema
de signos artificiais. Porém, a formação de cada sistema de símbolos pode possuir
graus distintos de artificialidade. É com base nisso que Guibourg, Ghigliani e
Guarinoni fazem referência a classes de linguagem.31 Há linguagens naturais e
artificiais.
“me chama quando terminar o telefonema”, sendo que o correto seria “chama-me
quando terminar o telefonema”.
Sob o ponto de vista semântico, o uso das palavras e sentenças não é muito
preciso. Assim, quando uma menina olha para você e diz, “eu amo pássaros”, vem à
nossa mente canarinhos, sabiás ou tico-ticos. Você não pensa, por exemplo, no
pinguim e no avestruz, que também estão na categoria dos pássaros. Ou ainda,
quando você convida um amigo ou amiga para tomar um vinho, certamente seu
amigo ou amiga pensará no vinho tinto ou branco; ela dificilmente pensará em vinhos
de abacaxi, produzidos no Havaí. De igual modo, na linguagem cotidiana, um
vestibulando dirá: “os japoneses são muito inteligentes e disciplinados; se eu não
estudar muito, ele passará no vestibular e ficarei de fora”. Perceba que, por
“japoneses”, nosso vestibulando não quer se referir a quem nasceu no Japão; ele faz
referência aos vestibulandos com ascendência japonesa. Ele fez uma generalização
que, tomada ao pé da letra, será falsa: nem todo vestibulando de ascendência japonesa
é inteligente e disciplinado.
Todos esses exemplos fazem parte da linguagem ordinária. Esta é formada a
paulatinamente por determinado grupo social, a partir do seu uso. Trata-se de uma
linguagem muito rica em termos significativos, já que é utilizada para descrever fatos,
transmitir emoções, dar ordens etc. Por isso, a vagueza e a ambiguidade estão muito
presentes. Isso tem o seu lado positivo: a vagueza facilita a
Linguagem ordinária é o tipo comunicação, evitando sucessivas precisões de significado; já a
de linguagem usada no ambiguidade possibilita uma economia de palavras. Porém,
cotidiano, sem maior rigor justamente porque a vagueza e a ambiguidade estão muito
sintático, mas com grande presentes, a linguagem natural não é suficiente para a construção
riqueza semântica e do discurso científico, em que uma maior precisão e rigor se fazem
pragmática. necessários. É justamente por isso que foram criadas as linguagens
artificiais.33
enunciados emitidos “nesta aula”. Logo, trata-se de uma afirmação sobre si mesma.
Se o enunciado do professor for verdadeiro, então ela será falsa; mas, se for falsa, será
verdadeira. Como fugir dessa autocontradição?
A distinção entre metalinguagem e linguagem-objeto ajuda a resolver isso.
Como mencionado acima, as condições de verdade de uma proposição estão sempre
em outro nível de linguagem. Deverá haver sempre uma proposição que estabelecerá
as condições de verdade (e isso também vale para as condições de validade das
proposições prescritivas) para a emissão da linguagem-objeto. A frase do professor
não tem sentido porque ela própria enuncia as suas condições de verdade. A situação
será diferente se o coordenador do curso entrar na sala de aula e disser: “Tudo o que
o professor acabou de dizer é falso”. Aqui, não há que se falar em autocontradição, já
que o enunciado do coordenador é uma metalinguagem relativa ao enunciado do
professor (linguagem-objeto).
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire
tenho fome”. Ele simplesmente olha para mim na esperança que eu entenda. Para
deixar seu estado mais claro para mim, ele usualmente bate com a pata no pote de
comida vazio. E disso pode derivar outras emoções, como raiva, frustração, tristeza,
dentre outras. Por sua vez, pensamentos dependentes da linguagem são aqueles que
um animal – sem o aparato linguístico necessário – não poderia ter. O Punk não
consegue (ainda) dizer: “é verdadeiro que ‘o Palácio do Planalto está situado em
Brasília’ é uma sentença do português”.
Os fatos institucionais são dependentes da linguagem. Sem ela, não seria possível
Os fatos falarmos em dinheiro, propriedade e direito. É fato que o dinheiro é um pedaço de
institucionais são papel ao qual atribuímos a função de meio de troca. Mas, para que possamos atribuir
dependentes da tal função a esse pedaço de papel, precisamos fazer uma representação mental de que
linguagem. E, para aquele pedaço de papel vale como como meio de troca (dinheiro). Essas
pensarmos sobre
representações mentais (esses pensamentos) são dependentes da linguagem.
estes fatos, também
precisamos de São as regras constitutivas (na forma “X conta como Y, no contexto C”) que nos
linguagem. Por permitem atribuir a um pedaço de papel a função de dinheiro. Para que o termo Y
isso, todos os fatos (função de meio de troca) funcione em relação ao termo X (o pedaço de papel), isto é,
institucionais são
para que tenhamos um fato institucional, é preciso que as pessoas representem esse
ontologicamente
fato como existindo. E, sem a linguagem, isso não é possível. Como você pode ter
subjetivos
percebido, fatos institucionais são ontologicamente subjetivos, embora possam ser
epistemologicamente subjetivos.
Isso também nos mostra que o movimento de X para Y é linguístico, já que, sem as
palavras, sem o pensamento (dependente da linguagem), não temos como
representar um pedaço de papel como tendo a função de dinheiro. E, neste ponto, fica
evidente a natureza constitutiva da linguagem.
para um cachorro (e ele é!), não tem condições de pensar isso. Ele sequer sabe que seu
aniversário é em todo dia 8 de agosto, porque ele não sabe o que “8”, “agosto” e
“aniversário” representam. Ele não consegue pensar isso, pois não dispõe do aparato
linguístico necessário para tanto.
Em relação aos fatos institucionais (tal como o direito, o Estado e a saga Star
Wars), se retirarmos a linguagem, nada existirá. Se digo que “Joãozinho é um
estelionatário”, o receptor da mensagem concluirá que ele é um “criminoso”. Além
de esse fato gerar outros efeitos (como o dever do Estado de instaurar uma ação penal
e colocá-lo na prisão), sentimentos e outros estados mentais irão aflorar desse fato. As
pessoas passarão a olhar para Joãozinho de forma ruim, passarão a desconfiar de tudo
o que ele fala etc. Agora, retire a linguagem desse fato; certamente, você não
conseguirá pensar isso como um fato. Nada existirá. Isso ocorre porque a linguagem
é constitutiva do fato “Joãozinho é um estelionatário”.
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire
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