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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO

André Luiz Freire

CAPÍTULO 2 – LINGUAGEM E DIREITO


PARTE II
ONTOLOGIA DO DIREITO

Imagine que um marciano vem à Terra com objetivo de entender as


semelhanças e as diferenças entre as diversas espécies de animais que aqui habitam.
Ele perceberá duas coisas: há uma grande semelhança e uma diferença fundamental
entre esses animais. Em relação à semelhança, nosso marciano perceberá que todos
os seres vivos foram criados na base de sistemas de desenvolvimento que leem uma
linguagem universal codificada em pares de DNA. A vida é estruturada
hierarquicamente com fundamento em unidades (genes) capazes de se combinar e
formar ilimitadas variedades de organismos.
Por outro lado, nosso visitante verde notará a ausência de um código universal
de comunicação entre as espécies. E mais, perceberá que a faculdade de mediar a
comunicação é extremamente diferente entre humanos e outros animais. Mas nosso
visitante extraterrestre também concluirá que a faculdade da linguagem nos humanos
parece estar organizada como um código genético: de forma hierarquizada,
generativa, recursiva e potencialmente ilimitada.1
De fato, uma das diferenças entre os seres humanos e outras espécies animais é
a complexidade da sua comunicação. No processo comunicativo, há sempre o emissor
de uma mensagem (ou informação), que a transmite por meio de um canal e código
específicos, a um receptor. Neste livro (o canal), tenho (sou o emissor) passado diversas
informações (mensagem) a você (receptor); para isso, tenho me utilizado da língua
portuguesa (o código). Nessa estrutura comunicativa, o código é o que define a linguagem
que utilizamos, estabelecendo sua estrutura.2
Nós já vimos que o direito é uma instituição social. E, como tal, a linguagem é
parte constitutiva dela. Por isso, é evidente que temas de linguagem influenciam de
forma marcante o direito. Mas antes de entrar nessa relação, é preciso saber
exatamente o que é linguagem.

1. A linguagem
A linguagem é a instituição social de que nos servimos para nos comunicarmos. É um
sistema de símbolos que têm a função de servir à comunicação. Sistema é um conjunto de
elementos que se relacionam entre si; é um conjunto de elementos ordenados.
Símbolos (os elementos desse sistema) são signos artificiais. O signo é um fenômeno

1 O exemplo é de Marc D. Hauser, Noam Chomsky e W. Tecumseh Fitch (The faculty of language: what
it is, who has it and how did it evolve? Science, v. 298, p. 1569).
2 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al

conocimiento científico, p. 19.


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(isto é, algo que ocorre) que se relaciona com outro fenômeno. Um


Linguagem é um sistema de signo é algo que, por convenção, está no lugar de outra coisa, que
signos que têm a função de ser está para algo.3 A existência de nuvens negras no céu é um sinal de
um instrumento para a chuva; a fumaça é um sinal de fogo. Esses são signos naturais
comunicação. (índices ou sintomas), pois fixam uma relação de causalidade entre
dois fenômenos da natureza (as nuvens negras com a possibilidade
Sistema é um conjunto de
forte de chuva; a fumaça com a possibilidade de fogo). No entanto,
elementos que se relacionam
os signos também podem ser fruto de uma decisão individual ou
entre si, isto é, de elementos
coletiva. Nesse caso, esses signos artificiais (os símbolos) tem a
ordenados.
função de representar um fenômeno. O símbolo “+” traz à nossa
Signo é um fenômeno que se mente a ideia de adição, soma; o símbolo “$”, de dinheiro. Os
relaciona com outro fenômeno, símbolos são signos artificiais porque foram fixados
cuja representação vem à nossa arbitrariamente pelos seres humanos.
mente. Os signos artificiais são
Note que uma mensagem é composta por símbolos, que
aqueles derivados de uma possuem uma significação. Trata-se da relação entre o signo e o
decisão humana, individual ou fenômeno cuja representação o signo traz à nossa mente. Quando
coletiva. alguém sorri, isso pode significar alegria. A representação mental
Símbolo é um signo artificial, do signo “fumaça” é de que, em algum lugar, está pegando fogo.
isto é, um fenômeno fixado por Quando essa representação é feita por meio de símbolos, estamos
convenção que se relaciona falando do significado.4
com outro fenômeno, cuja Portanto, uma linguagem é formada por símbolos, os quais
representação vem à nossa deverão estar relacionados de determinada forma, a fim de que
mente. cumpram o seu objetivo de transmitir uma determinada
Significado é a representação mensagem. E a linguagem é fenômeno unitário que possui, tal
mental do símbolo. É a relação como consagrado a partir de Charles W. Morris, três dimensões: (i)
entre o símbolo com outro sintática, por meio do qual são fixadas as normas para a combinação
fenômeno, cuja representação entre os símbolos; (ii) semântica, que determina o significado das
vem à nossa mente.
palavras e morfemas; e (iii) pragmática, que estabelece as bases para
o uso da linguagem.5 Aliás, esses três aspectos são estudados pela
Semiótica é a ciência que ciência que tem por objeto os elementos representativos do
estuda os elementos processo comunicativo, chamada de semiótica. Como você verá, o
representativos do processo direito – como linguagem específica – também possui uma sintaxe,
comunicativo. uma semântica e uma pragmática.
O tema que vamos enfrentar agora é bastante complexo e são
muitos os autores que discorrem sobre o assunto e, não raro, com posições
divergentes sobre cada um dos temas envolvidos na discussão. Por isso, é
conveniente indicar para você um ponto de partida. O escolhido aqui é – pela sua

3 ECO, Humberto. Tratado geral de semiótica, pp. 11-12.


4 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al
conocimiento científico, p. 20.
5 MORRIS, Charles W. Fundamentos da teoria dos signos, p. 19.

Também há um quarto elemento: a fonética, responsável pela pronúncia das sentenças e palavras de
determinada língua. Como não se trata de um aspecto relevante para os fins desta Introdução ao Estudo
do Direito, deixemos ela de lado.
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didática e clareza – a obra de Ricardo Guibourg, Alejandro Ghigliani e Ricardo


Guarinoni (Introducción al conocimiento científico. 3. ed. 4. reimp. Buenos Aires: Eudeba,
2004, Capítulo I), com alguns acréscimos das lições dos autores que serão indicados
abaixo.

2. Sintaxe
Seu colega de classe olha para você e diz “perdeu o para Fluminense
Corinthians ontem o”. Como você sabe que no dia anterior o Fluminense ganhou do
Corinthians, talvez você tenha condições de responder ao seu colega algo como “é
verdade”, ou “sim, eu vi o jogo”. No entanto, você pensará que seu colega precisa ter
algumas aulas de português. Afinal, pelas regras da gramática da língua portuguesa
as palavras não se combinam desse modo. Para que a frase fosse bem construída e
fosse entendida por qualquer pessoa que não soubesse o resultado dos jogos do
Campeonato Brasileiro, ele deveria ter dito “ontem, o Corinthians perdeu para o
Fluminense”, ou ainda “o Corinthians perdeu ontem para o Fluminense”. Essas duas
últimas sentenças são combinações possíveis no português, já que observaram as
regras sintáticas desse idioma. São sentenças bem construídas.
O que vale para a língua portuguesa também se aplica para outras formas de
linguagens, como a linguagem da lógica formal, a linguagem contábil e a linguagem
do direito positivo. Isso porque a sintaxe tem por objeto as normas que disciplinam
as possibilidades de combinação dos signos de determinada linguagem.
No âmbito da sintaxe, é possível fazer referência a três tipos de conjuntos, que
se diferenciam pelos seus elementos:6
 Conjunto de signos primitivos. Neste, estão as entidades
Sintaxe consiste nas normas significativas de uma linguagem que não requerem definição
que disciplinam as explícita por outros signos da mesma linguagem. Na linguagem
possibilidades de combinação natural, os morfemas são as unidades significativas mínimas, que
dos signos em sequência de integram a palavra.
determinada linguagem.  Conjunto de regras de formação. Aqui, encontramos as normas
que fixam o modo pelo qual os signos se combinam. Assim,
sabemos que, no português, o verbo concorda com o sujeito, de tal
modo que a frase “eles estuda muito” está errada, enquanto que “eles
estudam muito” está correta.

6 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al


conocimiento científico, pp. 31-33.
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 Conjunto de regras de derivação (ou de transformação7). São as normas que


possibilitam a transformação de determinadas expressões em outras, ou
então que estabelecem o modo pelo qual é possível obter novas
expressões. Exemplo: um verbo no particípio pode funcionar como
A sintaxe é
adjetivo (ex.: “ele é um professor adorado por todos”). Mas a mesma
formada por informação pode ser transmitida de outra forma (“Todos adoram aquele
conjuntos de professor.”).
signos primitivos,
Na linguagem do direito (mais precisamente, do direito positivo), também há
de regras de
uma sintaxe. Há signos primitivos, como os conceitos de “ordenamento jurídico”,
formação e de
regras de “norma jurídica”, “direito subjetivo”, “dever”, “poder”, “sujeição”, “relação
transformação jurídica”, “ato jurídico”, “validade” e outros. Há regras sobre o reconhecimento de
um sistema normativo como “direito”, bem como das normas como “jurídicas”
(regras de formação). Igualmente, podemos falar de regras de derivação, tal quando
tratamos das chamadas “normas jurídicas implícitas”. Muito do que será exposto
neste livro diz respeito à sintaxe do direito (em especial, Capítulos I a V da Parte IV).

3. Semântica
Se a sintaxe está voltada para o estudo dos signos primitivos, das regras de
formação e das regras de derivação de uma dada linguagem, a semântica tem como
foco o significado. Ela trata da relação dos signos com os objetos designados. Assim,
na semântica, são estudadas as regras que possibilitam que as expressões dessa
linguagem sejam interpretadas. Quando se fala em “sistema semântico”, tem-se em
vista o conjunto de regras que determinam as condições de verdade
das sentenças de uma linguagem.8
Semântica é o campo da
investigação que tem por Note que há forte relação entre a sintática e a semântica. De
objeto o significado e a teoria acordo com John Searle, a sintática envolve três aspectos. As
da verdade. sentenças são formadas por palavras, que significam algo. A
sentença, por si só, possui um significado. No entanto, mesmo se
houver uma nova combinação entre as palavras, estas continuarão
a ter sua identidade, o seu próprio significado. Quando se faz um bolo, todos os
ingredientes perdem a sua identidade, formando uma coisa só. Já na linguagem, isso
não ocorre. Cada palavra não perde sua identidade. A isso, Searle denomina
distintividade. Além dessa característica, Searle menciona que a ordem das palavras
numa sentença afeta o seu significado. Assim, se houver uma inversão na ordem das
palavras, é possível que o significado da sentença mude. “João ama Maria” tem um
sentido diferente de “Maria ama João”. Trata-se da composicionalidade. Por fim, a
linguagem natural possui uma infinita capacidade gerativa, o que ele chama de
generatividade. A partir das regras dessa linguagem, é possível formar um número
infinito de sentenças.

7 MORRIS, Charles W. Fundamentos da teoria dos signos, p. 18.


8 CARNAP, Rudolf. Introduction to semantics, p. 22.
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Na lição de Searle, distintividade, composicionalidade e generatividade não são


apenas características da sintaxe. Eles são princípios por meio dos quais a sintaxe
organiza a semântica. As unidades semânticas mantêm a sua identidade mesmo
Distintividade, diante da transformação sintática. O significado da sentença é uma função
composicionalidade composicional do significado dos seus componentes e da sua posição na sentença. E
e generatividade a possibilidade de gerar um número infinito de sentenças nos permite criar um
são características número infinito de novos significados.9
da sintaxe e
princípios por meio No âmbito da semântica, são diversos os temas relevantes. A que realidade nos
dos quais a sintaxe referimos quando falamos de significado? Existem significados naturais, aprendidos
organiza a a partir da observação? O significado depende da nossa vontade, ou ela está
semântica. relacionada à estrutura da realidade? Que condições uma palavra e sentença devem
ter para serem significativas? O que é referência? Quando é possível afirmar que certa
proposição é verdadeira? Essas são apenas algumas das questões tratadas no estudo
da semântica.

3.1. Significado e realidade: essencialismo e convencionalismo


Quando nascemos, passamos a desenvolver a capacidade de nos comunicar.
Quando um bebê está com fome, ele chora com toda força, até que aquela pessoa que
lhe traz uma sensação de segurança coloque na sua boca algo com o qual esse desejo
de comer acabe. Aos poucos, o bebê passa chamar aquela pessoa de “mamã” e aquilo
com o qual ele se alimenta de “papa”. Conforme vai crescendo, ele percebe que
“mamã” é “mamãe” (ou “mãe”), e “papa”, “comida”.
Durante nosso desenvolvimento, as palavras e seus significados se apresentam
como algo dado, como algo já posto. Isso pode nos levar a achar que o significado das
palavras tem relação direta com a realidade a que nos referimos. Essa confusão não
seria sem sentido. Afinal, durante muito tempo, pensou-se que as
palavras designavam a realidade, de tal forma que os significados
Essencialismo é a concepção
das palavras exprimiriam a própria essência das coisas nominadas.
da linguagem por meio da
Trata-se da chamada teoria essencialista da linguagem
qual se sustenta que as
(essencialismo).10 A palavra “bola” deveria exprimir a essência do
palavras exprimem a essência
objeto bola (o “ser” da bola), independentemente de outras
dos objetos designados.
características acidentais, como a cor e o tamanho.
Convencionalismo é a
Essa concepção se opõe à teoria convencionalista (ou
concepção da linguagem por
convencionalismo).11 De acordo com essa linha, as palavras foram
meio da qual se sustenta que o atribuídas arbitrariamente pelo ser humano. Não existe qualquer
significado das palavras são relação essencial ou natural entre a palavra “bola” e o objeto bola.
fruto de uma decisão humana. Outra palavra (ex.: “quadrado”, “liberdade”, “xykly”) poderia ter

9 SEARLE, John R. Making the social world: the structure of human civilization, pp. 63-64.
10 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 14; NINO,
Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho, pp. 11-12.
11 O debate entre essencialistas e convencionalistas não é recente. Manfredo Araújo de Oliveira

(Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 18 e ss.) aponta que, em Crátilo, Platão


discutia as duas posições.
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sido utilizada para indicar esse objeto esférico. Mas o fato é que, no idioma português,
a comunidade dos falantes utiliza a expressão “bola”. Aliás, a natureza não essencial
das palavras fica mais clara quando passamos a aprender outros idiomas. Em inglês,
aquilo que o bebê chama de “mamã” é “mother”; “papa”, “food”. No exemplo, “bola”
se refere ao mesmo objeto que “ball”.
Por isso, quando aprendemos o nome de um objeto, nós não aprendemos algo
sobre o objeto, mas sim sobre os costumes linguísticos de certo grupo ou povo. E esse costume
muda ao longo do tempo. Basta pensar na palavra “vosmecê”, muito utilizada no
século XIX. Este pronome pessoal de tratamento – que é uma contração de
“vossamecê” (que, por sua vez, é a contração de “vossa mercê”) – era usado para
tratar com a pessoa com quem se fala. Ao longo do tempo, o termo foi substituído por
“você”. E não será de estranhar que, num futuro, a expressão “vc” seja reconhecida
pelos dicionários como sinônimo (ou até mesmo substituto) de “você”. Dentro da
concepção convencionalista, falar da “essência” de algo significa apenas indicar as
características necessárias para o uso da palavra, o que pode mudar com o tempo e o
contexto.12 Assim, quando há uma mudança no nome de algo, o que muda não é esse
objeto. O que há é uma mudança no costume linguístico de uma comunidade, isto é, na
forma como essa comunidade nomeia tal objeto. Ou ainda, o que há é uma mudança
das regras para o uso de determinada palavra.
Em vista disso, fica claro que as coisas não possuem nomes “verdadeiros”. O
que existem são palavras comumente aceitas e utilizadas por um grupo, enquanto
outras palavras não o são. Essa capacidade de criar nomes às coisas se chama
liberdade de estipulação. Logo, podemos criar, conforme nossos
Liberdade de estipulação é
próprios interesses, os nomes que bem desejarmos para fazer
capacidade dos seres humanos
referência à realidade. No entanto, como bem apontam Guibourg,
Ghigliani e Guarinoni, essa liberdade de estipulação traz um risco.
de criar nomes para fazer
Se estipularmos livremente um nome que se afasta do seu uso
referência a objetos.
comum, temos sempre que indicar ao nosso interlocutor o que
queremos dizer quando usamos determinada palavra. E quanto
mais fugimos do uso comum, maior será a nossa dificuldade de comunicação,
tornando ainda mais relevante a necessidade de se aclarar o sentido de certo vocábulo
ou expressão.13

12NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho, p. 13.


13 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al
conocimiento científico, pp. 34-35.
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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Esse é um tema importante na definição de “direito”. Ao tratar do tema, Carlos


Santiago Nino expõe que a busca pela natureza ou essência do direito é vã e obscura.
A busca por uma
“essência” do O que se deve é investigar quais são os critérios vigentes em relação ao uso comum
direito é uma do vocábulo “direito”. O autor ainda critica os juristas que defendem a existência de
tarefa vã e obscura, um único e verdadeiro conceito de direito, afirmando que isso deriva da concepção
derivando de uma essencialista da língua.14 E Tércio Sampaio Ferraz Junior segue a mesma linha,
concepção sustentando a impossibilidade de definições reais. “Definições reais” são as que
essencialista da procuram refletir, por palavras, a coisa referida. Segundo o Prof. Tércio, em relação à
linguagem
definição do direito, embora os juristas não neguem o caráter vago da palavra,
também não deixam de tentar descobrir o que é o “direito em geral”. E, com isso,
acabam entrando numa discussão que, sem dúvida, deriva da sua concepção de
língua.15

3.2. Conceito e classificação


Até aqui, você já aprendeu que o significado das palavras não deriva das
características do objeto nominado. O fato de um objeto ser chamado de “mesa” não
possui qualquer relação com as características físicas do objeto a que os seres
humanos entendem como tal. Esse objeto se chama “mesa” apenas porque a
comunidade que fala português assim o denominou. Os falantes da língua inglesa o
chamam de “table”.
Perceba que a palavra “mesa” é utilizada para indicar uma determinada classe
de objetos, qual seja, qualquer móvel composto por um tampo horizontal. Com essa
palavra, podemos nos referir a mesas redondas, quadradas, retangulares, de madeira,
de plástico, de vidro etc. Como se pode perceber, utilizamos a palavra “mesa” para
nos referir a qualquer objeto que atenda aos critérios contidos em seu conceito (no nosso
exemplo, móvel composto por um tampo horizontal). Todos os bens móveis que
atenderem a tais critérios serão incluídos na classe dos objetos que chamamos de
“mesa”. Eles serão classificados como “mesa”. Por isso, “mesa” é uma palavra de classe.
Como você já deve ter percebido, ao conceituarmos determinada palavra, nós
agrupamos os objetos referidos em classes. Nós classificamos. Como crescemos num
A linguagem é mundo em que as palavras e os conceitos se apresentam para nós como um dado,
composta por um usualmente não pensamos sobre isso. Mas, em verdade, toda linguagem é composta
complexo sistema por um complexo sistema de classificações, estando repleta de palavras de classe. Um
de classificações
determinado objeto, a rigor, pode fazer parte de várias classes. Enquanto escrevo em
meu computador, a mesa que serve de suporte é retangular, de madeira e marrom.
Então, este objeto faz parte da classe das mesas, da classe dos objetos retangulares, da
classe dos objetos de madeira e da classe dos objetos da cor marrom.
Conforme aprendemos outro idioma, passamos a absorver o sistema de
classificação criado por outra comunidade linguística. No entanto, essa classificação
tende a ser parecida em culturas semelhantes à nossa. Mas esse não é um fenômeno

14 NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho, p. 13.


15 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 15.
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necessário em toda as culturas. No Brasil, denominamos de “futebol” o jogo de


futebol de campo, de futebol de salão, de futebol americano e de futebol de botão.
Nos Estados Unidos, o nosso futebol é denominado “soccer”, enquanto que o jogo a
que chamamos “futebol americano” é lá nomeado de “football”. No Brasil, “neve” é o
termo usado para fazer referência a um determinado fenômeno natural em que
cristais de gelo são usualmente agrupados em flocos. Costuma-se indicar que, entre
os esquimós, há mais de uma palavra para identificar o que chamamos de “neve”,
segundo uma classificação que leva em consideração sua consistência, textura e
outras características.
Portanto, o conceito atribuído às palavras envolve um sistema de classificações
feitas pelos seres humanos ao longo da história, que são elaborados a partir dos mais
variados critérios (cor, tamanho, composição etc.). As palavras de classe indicam tipos
de conjuntos (isto é, agrupamentos de elementos formados a partir de um critério).
Isso tem como objetivo facilitar a comunicação. Afinal, imagine como seria a vida se
todo objeto do mundo tivesse um nome específico. Certamente, a comunicação seria
muito mais difícil.
Você já deve estar supondo que, no direito, esse processo de classificação por
meio das palavras é fundamental. Imagine que uma lei ordinária federal estabeleceu
que a pessoa que auferiu renda no ano calendário anterior está obrigada a pagar
determinado valor a título de imposto de renda. A identificação do que é “pessoa”,
“renda” e “ano calendário” é, pois, a chave para identificar quando essa pessoa estará
obrigada a recolher para os cofres públicos certa quantia. O direito – como qualquer
linguagem – é recheado de palavras de classe. E saber o que elas significam é
determinante para saber quando alguém pode ou não fazer algo, ou ainda quando
está obrigada ou não a fazer algo.

3.3. Denotação (extensão) e conotação (intensão)


No item anterior, você viu que o conceito (o significado) das palavras é
estabelecido pelos seres humanos com base em critérios que tem em vista alguma
conveniência humana. Quando os seres humanos fazem isso, eles agrupam os objetos
do mundo (os referentes) em classes diferentes.
Mas, em relação aos nomes próprios, a questão é diferente. Quando minha mãe
me deu o nome “André Luiz”, ela o fez apenas em vista de uma preferência dela, e
não para tornar a comunicação mais fácil. Isso ocorre também quando os vereadores
decidem que determinada rua terá o nome “Rio Branco”, “Sete de Setembro” ou
“Vereador Pipoca”. Uma dúvida que surge com a introdução de nomes próprios é a
seguinte: eles têm significado?
Para responder a essa questão, vamos introduzir a distinção entre denotação e
conotação. Essa diferença foi criada para lidar não apenas com nomes próprios, mas
com palavras que fazem referência a objetos imaginários, como, por exemplo, “chupa
cabra”, “ciclope”, “fada”, “unicórnio” e “kraken”. Diante desse problema, os lógicos

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passaram a distinguir duas formas de significado: a denotação (ou extensão) e a


conotação (ou intensão).
Tomemos como exemplo a palavra “automóvel”. Podemos defini-la como
qualquer carro (logo, veículo que trafegue sobre rodas) capaz de se mover por si
próprio. Dentro desse conceito, estão incluídos o Gol 1000, o Ford Focus, o BMW X6
e uma Ferrari da Fórmula 1. No caso de “automóvel”, é muito útil indicar suas
características definitórias (“carro” e “capacidade de se mover por si próprio”). Isso
facilita em muito a tarefa de identificar, na realidade, os seus referentes, isto é, os
objetos que se enquadram no conceito. Este – cujas características definitórias indicam
as propriedades da classe dos objetos referidos – é o que se chama de conotação ou
intensão. Por sua vez, falar em Gol 1000, Ford Focus, BMW X6 e Ferrari da Fórmula 1
é indicar a extensão (denotação) da palavra “automóvel”. Por esse processo, é
possível identificar as classes de objetos que constituem a denotação do termo.
Tal como no exemplo de “automóvel”, há palavras que
Denotação (ou extensão) possuem conotação e denotação. No entanto, existem as palavras
indica o(s) objeto(s) a que o que têm apenas conotação. “Chupa cabra” é uma criatura que, no
conceito faz referência. folclore, mata cabras e outros animais domésticos e drenam todo o
Conotação (ou intensão) seu sangue. Um “kraken” seria um animal marinho imenso,
consiste no critério (ou semelhante a um polvo, que emerge das profundezas do mar. Mas
critérios) que permitem alguém já registrou (em foto ou vídeo) um chupa cabra e um
identificar o(s) objeto(s) a que o kraken? Ninguém. Essas são palavras que têm intensão, mas não
conceito faz referência. possuem extensão. Por outro lado, alguns termos possuem somente
extensão. É justamente o caso dos nomes próprios, tal como “André
Luiz Freire”. Nas três hipóteses (palavras com conotação e
denotação, somente com conotação e somente com denotação), temos significado.
No direito, o tema da conotação/denotação é fundamental. Como veremos na
Parte IV, Capítulo II (item 5.2), as normas jurídicas podem ser formuladas em termos
conotativos ou denotativos. Trata-se da questão das chamadas normas gerais ou
individuais, abstratas ou concretas.

3.4. Vagueza
Imagine a seguinte situação. Você e seu colega estão na sala de aula, assistindo
à aula de Introdução ao Estudo do Direito. Como a aula não está lá muito interessante,
vocês começam a discutir sobre o professor. Mais especificamente, sobre o fato de ele
ser ou não careca. O professor possui entradas bastante salientes, cabelo na parte
lateral, atrás da cabeça e um pouco na parte de cima da cabeça. Na sua visão,
decididamente o professor é careca. Na opinião de seu colega, ele não é careca; ele é
apenas “calvo”. A discussão flui até que o professor solicita que vocês fiquem quietos
para não atrapalhar mais a aula, ou então que se retirem da sala.
A questão, então, é a seguinte: quando podemos afirmar que alguém é careca?
Certamente, há casos muito claros de pessoas que, sem qualquer discussão, são
carecas. Há outras pessoas que também temos certeza de que não são carecas. Mas há
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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
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pessoas em que restará uma dúvida se ela se enquadra ou não no conceito de


“careca”.
Diz-se, portanto, que o conceito da palavra é vago quando seu significado não é
preciso. Com base somente nos critérios para o uso da palavra, há situações em que
não é possível decidir se determinado caso se enquadra ou não no conceito.
A vagueza é algo bastante comum na linguagem, não sendo necessariamente
um defeito. Pense na seguinte situação: combino com um amigo de me encontrar na
esquina da Rua João Ramalho com a Rua Monte Alegre, em Perdizes, no Município
de São Paulo. Meu amigo, então, pergunta: “Qual das esquinas? Afinal, são quatro
esquinas diferentes”. E respondo: “a esquina em que a PUCSP está situada”. Ele,
então, continua: “mas o que você está querendo dizer com esquina? Exatamente no
ponto de encontro das duas ruas, formando um ângulo reto? Como fazer já que, em
tal ‘esquina’, a guia é rebaixada e arredondada? Ou em frente ao portão você já
entende ser a esquina?” Neste ponto, já sem paciência, peço apenas para ele me
encontrar na esquina e ponto final.
Dessa discussão, podemos perceber duas coisas: a primeira pergunta do meu
amigo (“Qual das esquinas? Afinal, são quatro esquinas diferentes”) tinha alguma
relevância. Ela deixou mais preciso o significado do que eu entendia por “esquina da
Rua João Ramalho com a Rua Monte Alegre”, embora dificilmente não nos
encontraríamos se eu estivesse numa esquina e ele em outra. Isso mostra que, para
lidar com a vagueza, podemos incluir novas características definitórias, a fim de
eliminar a incerteza (foi o que fiz ao dizer “a esquina em que a PUCSP está situada”).
Mas, por outro lado, as perguntas adicionais foram totalmente impertinentes. Em
vista do contexto comunicativo em questão, não era mais necessário incluir qualquer
critério adicional. O complemento que apresentei (o fato de ser a esquina da PUCSP)
já era suficiente para passar a mensagem pretendida. Por isso, a vagueza não é
propriamente um defeito da linguagem. Por vezes, ela será necessária para que a
comunicação ocorra com maior fluidez.
Note que, no direito, são inúmeras as situações em que a vagueza leva a
problemas jurídicos. Convém exemplificar. O art. 37, caput, da Constituição prevê que
a Administração Pública deverá observar o princípio da moralidade. Isso significa,
dentre outras consequências, que um agente público não poderia nomear, para
ocupar cargo em comissão, um parente. Afinal, isso pode gerar favoritismos ao
nomeado. Mas seria uma conduta imoral a nomeação, pelo Prefeito, de seu irmão,
que é Doutor em Direito Administrativo, e com uma reputação ilibada, sendo
conhecido pela sua competência, trabalho duro e imparcialidade, para o cargo de
Procurador-Geral do Município? O Prefeito, ao nomear o seu irmão com tal currículo,
atuou de forma “imoral”? No direito administrativo, essas questões são lidadas sob o
título “conceitos jurídicos indeterminados”. No direito civil, é comum fazer
referências às “cláusulas gerais”. Em ambos os domínios, o que está em pauta é a
figura da vagueza. O direito é repleto de conceitos vagos e que geram problemas
dessa ordem.

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3.5. Ambiguidade
A vagueza não se confunde com a ambiguidade. Neste caso, a palavra possui
mais de um significado. Pense na palavra “manga”, que significa parte da roupa que
cobre o braço (a manga de uma camisa), mas que também designa o nome de uma
fruta. A palavra “mesa” é outro exemplo: além de ser o objeto com uma tampa
horizontal que serve para que coloquemos coisas em cima dela, o termo é igualmente
usado para falar do corpo diretivo do Poder Legislativo (há a mesa da Câmara dos
Deputados, a mesa do Senado Federal etc.).
É fácil lidar com a ambiguidade. De modo geral, o contexto (linguístico e fático)
será suficiente para entender em qual sentido certa palavra está sendo usada. Se
alguém está comendo uma fruta amarela e lhe pergunta “quer um pedaço de
manga?”, certamente ele não está lhe oferecendo o pedaço da camisa, mas sim a fruta
“manga”. Em outros casos, se os sentidos da palavra podem trazer confusão, basta
explicitar o significado em que a palavra está sendo usada.
No direito, é possível encontrar palavras ambíguas. A palavra “mandato”, pode
significar duas coisas diferentes. Num primeiro sentido, “mandato” é um contrato em
que alguém recebe de outra poderes para praticar certos atos (como fazer a matrícula
do outorgante na universidade). O instrumento que formaliza isso é a “procuração”
(art. 653 do Código Civil). Ou seja, o mandato é uma espécie de contrato disciplinado
pelo Código Civil. Mas, no direito, “mandato” também é o período determinado no
tempo (ex.: 4 anos) em que um agente político eleito (deputado, senador, governador
etc.) e outros agentes públicos (ex.: diretores de agências reguladoras) atuarão no
exercício da função pública de que foram investidos.

3.6. Textura aberta


A vagueza também difere da chamada textura aberta. Por um largo período da
nossa história, “família” era uma palavra usada para fazer referência àquela
constituída pelo casamento, o qual era indissolúvel. Eram esses os termos da
Constituição de 1934 (art. 144), Constituição de 1937 (art. 124), da Constituição de
1946 (art. 163), da Constituição de 1967 – tanto o texto original (art. 167) como aquele
dado pela Emenda Constitucional 01/1969 (art. 176). Dentro dessa concepção, a
família era a constituída pelo homem e pela mulher, unidos pelo matrimônio e seus filhos.
Àquela época, o conceito estava delimitado. Seria possível até mesmo dizer que,
durante um largo período, era esse o conceito não apenas jurídico, mas também o
aceito pela sociedade brasileira. Nesse momento histórico, não se cogitava da união
homoafetiva (isto é, entre pessoas do mesmo sexo) como incluída no conceito de
família. Até pouco tempo atrás, apenas cogitar da relação homoafetiva como unidade
familiar era até mesmo motivo para perplexidade e reações furiosas. Contudo, com a
Constituição de 1988, algumas relações passaram a ser incluídas no conceito de
“família”. Em primeiro lugar, o art. 226, § 4º, ampliou o conceito para admitir também
a família monoparental (formada apenas por um dos pais e seus descendentes). Mas,
além disso, o Supremo Tribunal Federal passou a reconhecer a união homoafetiva

11
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

como sendo também uma unidade familiar, isto é, incluindo tal união na denotação
(extensão) do conceito de família.16
Perceba que, em 1934, a sociedade em geral não cogitaria que uma união
homoafetiva estaria incluída na extensão do significado de “família”. Não estava em
pauta qualquer vagueza ou ambiguidade quanto a esse aspecto. Durante algum
tempo, havia um debate se a unidade monoparental e a homoafetiva estavam ou não
incluídas no conceito de família. O conceito se tornou vago. Este é um exemplo de
textura aberta. Atualmente, não só a união homoafetiva passou a ter esse
reconhecimento jurídico e em muitos segmentos sociais.
O conceito de textura aberta foi introduzido por Friedrich
Vagueza é o significado Waismann, no final da primeira metade do século XX. Este autor,
impreciso de uma palavra ou ao tratar da verificação das proposições, asseverou que todos
expressão. nossos conceitos empíricos têm uma textura aberta, tendo em vista
Ambiguidade consiste na
não ser possível indicar todas as condições possíveis para o uso do
termo. Isso pode ocorrer em razão da imperfeição do nosso
existência de mais de um
conhecimento sobre o mundo e em função da impossibilidade de
significado para uma mesma
se prever o futuro. Sempre existe a possibilidade, ainda que
palavra ou expressão.
pequena, de que não tenhamos verificado todos os aspectos
Textura aberta é a relevantes para o uso de um conceito empírico. Para Waismann,
possibilidade de vagueza de sempre existirá uma margem de incerteza. Ele afirma que não há
toda palavra ou expressão. conceito que seja de tal modo delimitado que não exista margem
para dúvida. Conforme pontua, textura aberta não é o mesmo que
vagueza. Textura aberta é a possibilidade de vagueza. A vagueza pode
ser resolvida mediante a introdução de mais algumas regras. A textura aberta, não.17
Ter clareza quanto à diferença entre vagueza, ambiguidade e textura aberta da
linguagem é de extrema importância para o jurista. Esses aspectos da linguagem
influem decisivamente na atividade de interpretação dos textos jurídicos e de
aplicação das normas jurídicas aos casos concretos. Nós trataremos desse tema na
Parte IV, Capítulo VI, sobre a interpretação.

16Cfr.: STF, ADI 4.277/DF, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Ayres Britto, Julgamento 05.05.2011, DJe
13.10.2011; e, STF, ADPF 132/RJ, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Ayres Britto, Julgamento 05.05.2011,
DJe 13.10.2011.
17 WAISMANN, Friedrich. Verifiability. Proceedings of Aristotelian Society. Supplementary
Volumes, vol. 19, pp. 121-123. Sobre o tema, vide ainda: SCHAUER, Frederick. Playing by the
rules: a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life, pp. 34-37.
12
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

3.7. Definição e tipos de definição


No Capítulo anterior, o conceito de “intencionalidade” foi exposto nos
seguintes termos: “intencionalidade é a capacidade da mente de representar objetos
e estados de coisas”. Ao indicarmos o conceito de “intencionalidade”, nós definimos
essa palavra. Definição consiste, portanto, na tarefa de indicar o
significado de uma palavra ou expressão. Ao definirmos,
Definição é a indicação do
indicamos o seu conceito.
significado (definiens) de uma
palavra ou expressão A definição é composta por dois elementos: o definiendum e o
(definiendum). definiens. O definiendum é a palavra ou expressão a ser definida (no
nosso caso, “intencionalidade”). Por sua vez, o definiens contém as
características definitórias de “intencionalidade”, isto é, nele há a
enunciação do significado da palavra ou expressão. O definiens de “intencionalidade”
é a “capacidade da mente de representar objetos e estados de coisas”.
Existem vários tipos de definições e convém apresentar algumas delas abaixo.

3.7.1. Definições verbais e ostensivas (ou demonstrativas)


A definição de “intencionalidade” dada acima é verbal: ela transmite o
A definição verbal
significado por meio de outras palavras de classe (“capacidade”, “mente”,
transmite o
significado por “representar”, “objetos”, “estados de coisas”).
meio de palavras Por meio das definições ostensivas, é utilizada outra técnica de indicação do
de classe.
significado. Aqui, há a apresentação de exemplos que se enquadram no conceito.
Imagine que o aluno faz a seguinte pergunta ao professor: “o que é ‘lei’?” Aqui, o
professor dará uma definição ostensiva se disser algo do tipo: “lei é o Código Civil, o
Código Penal, o Código de Processo Civil, o Código Brasileiro de Trânsito, a Lei de
Licitações, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação etc.”. Nessa definição, o professor
não apresentou ao aluno qualquer critério que permitisse a ele, por si só, identificar o
que é uma lei. Ele simplesmente indicou exemplos que se enquadram no conceito de
“lei” e deixou ao aluno a tarefa de isolar, sozinho, as características definitórias do
termo. Assim, o aluno poderá pensar: “uma lei é um ato do Estado Brasileiro e que é
obrigatório, já que estou obrigado a cumprir essas leis”. Trata-se da função explicativa
do exemplo.18
A definição ostensiva tem uma desvantagem: ela não é um meio seguro de
A definição transmitir os conceitos, já que a delimitação das características definitórias depende
ostensiva tem
da capacidade do seu interlocutor. No caso do termo “lei”, o aluno talvez não consiga
vantagens e
identificar que temos leis estaduais e municipais. E ficará em dúvida se uma
desvantagens.
Constituição, medida provisória e decreto estão dentro ou fora do conceito de “lei”.
Essa desvantagem, porém, não implica afirmar a inutilidade das definições
ostensivas, e o uso exclusivo das definições verbais. Isso porque as definições verbais
demandam, por parte do receptor da mensagem, conhecimento de todos os termos

18 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al


conocimiento científico, pp. 34-35.
13
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

que formam o definiens. Se o professor disser que “lei, no direito brasileiro, é todo ato
jurídico praticado no exercício de função legislativa”, o aluno ficará com algumas
dúvidas. O que se entende por “direito brasileiro”? O que é “ato jurídico”? O que é
“função legislativa? Por isso, uma definição ostensiva também pode ser bastante útil.

3.7.2. Definições denotativas (extensionais) e conotativas (intensionais). A questão do gênero


próximo e diferença específica
Como mencionamos acima (item 3.3), o significado de uma palavra pode ser
intensional ou extensional. Logo, podemos ter definições intensionais ou
extensionais. No primeiro caso, são indicados os critérios que permitem a
identificação dos objetos que se enquadram no conceito. No segundo, são indicadas
as propriedades que permitem identificar os objetos referidos.
Convém exemplificar. A palavra “lei” pode ser definida, no direito brasileiro,
como todo ato jurídico praticado no exercício de função legislativa [Definição 1].
Portanto, “lei” é a lei complementar, a lei ordinária, a lei delegada, a medida
provisória, o decreto legislativo e a resolução, que são as espécies normativas
previstas no art. 59, II a VII, da Constituição de 1988 [Definição 2]. Você já deve ter
percebido que a Definição 1 de “lei” é conotativa ou intensional, enquanto a Definição
2 é denotativa ou extensional.
Note que definição denotativa não é o mesmo que definição ostensiva. Isso
porque, na definição denotativa, é possível indicar classes de objetos, e não
Definição propriamente exemplos (que é o caso da definição ostensiva). Assim, na Definição 2
denotativa e (denotativa), estão a lei complementar, a lei ordinária, a lei delegada, a medida
ostensiva não se provisória, o decreto legislativo e a resolução. A “lei ordinária” é um tipo de lei (uma
identificam. das suas subclasses), que exige determinado quórum para sua aprovação, o qual é
diferente do quórum para aprovação da lei complementar (ex.: a Lei de
Responsabilidade Fiscal e a Lei Complementar 95/1998). Como exemplo de lei
ordinária, temos o Código Civil de 2002, a Lei de Licitações e a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação. Uma definição ostensiva de “lei” é aquela que indica o Código
Civil, a Lei de Licitações, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a Lei de
Responsabilidade Fiscal e a Lei Complementar 95/1998.
Em relação às definições conotativas, há algumas formas de realizá-la. Uma
maneira consiste em simplesmente indicar um sinônimo, o que é muito comum em
dicionários destinados a explicar termos estrangeiros. Ex.: God – Deus; ball – bola. O
problema nesse tipo de técnica é quando o termo sinônimo não é perfeito.
Talvez a forma mais usual de definir em termos conotativos seja mediante o
método do gênero próximo e diferença específica (também chamada de definição per

14
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

genus et differentia, ou definição por divisão, ou definição analítica19). As classes


A definição podem ser subdivididas em subclasses. Essas subclasses são dividas com base num
analítica (por critério que as diferencie. Pensemos num exemplo simples: a palavra “livro” pode ser
gênero próximo e definida como um conjunto de páginas contendo algum tipo de trabalho. Como a
diferença classe dos livros é muito grande, podemos estabelecer um critério para diferenciar os
específica).
diversos livros. Um critério é o do tipo de capa; então, teríamos os livros de capa dura
e os livros de capa mole. Outro critério é o do conteúdo do livro; assim, teríamos livros
de romance, livros biográficos, livros de direito, livros de arquitetura, livros de
engenharia, dentre outros. Também há o critério da forma de publicação: livros
impressos e livros eletrônicos.
Pensemos em outro exemplo, mais próximo do direito: a classe “função estatal”.
Dentro dessa, estão as diversas tarefas que deverão ser executadas pelo Estado em
vista do interesse público, cabendo-lhe utilizar as posições ativas (poderes e direitos
subjetivos) necessárias para tanto. Ao falarmos de função estatal, estamos nos
referindo às tarefas estatais de resolver conflitos de interesse em caráter definitivo,
promover a guerra, declarar a paz, prestar os serviços de saúde e educação, editar
atos de observância obrigatória pelos cidadãos com objetivo de conformar a sua
conduta ao interesse público, dentre outras tantas. Como essas tarefas são inúmeras,
podemos dividi-las em subclasses. Mas, para isso, é necessário estabelecer um critério
que se mostre relevante. No nosso exemplo, vamos eleger o critério do “regime
jurídico”, isto é, o critério dos efeitos jurídicos que os atos jurídicos estatais produzem
no direito brasileiro. Nesse caso, podemos dividir em três subclasses: função
legislativa, função administrativa e função jurisdicional. Assim, na função legislativa
serão praticados atos jurídicos diretamente fundados na Constituição (e, portanto,
que inovam em caráter originário a ordem jurídica) e sujeitos a controle de
constitucionalidade pelo Poder Judiciário. A função administrativa reside na edição
de atos sujeitos à lei e submetidos a controle de legalidade e constitucionalidade pelo
Poder Judiciário. Já a função jurisdicional consiste nos atos editados pelo Poder
Judiciário e que possuem o atributo da definitividade.20 Assim, função estatal é o
gênero, do qual são espécies a função legislativa, a função administrativa e a função
jurisdicional. A diferença específica, dentro do critério utilizado, está no regime
jurídico de cada uma das funções.
Note que não existe critério certo ou errado, verdadeiro ou falso. O critério a ser
utilizado para diferenciar as subclasses depende, basicamente, da finalidade e dos
interesses de quem define. Logo, uma definição conotativa não é verdadeira ou falsa,
mas sim útil ou inútil.

19COPI, Irving M. Introdução à lógica, p. 128.


20Sobre a distinção entre as funções estatais, vide: FREIRE, André Luiz. Apontamentos sobre
as funções estatais no direito brasileiro. Revista de direito administrativo, nº 248, pp. 13-53.
15
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

3.7.3. Definições informativas e estipulativas


Um aluno pergunta ao professor de Introdução ao Estudo do Direito: “o que é
uma norma jurídica?” O professor, então, responde: “norma jurídica é uma
proposição prescritiva que integra o sistema de direito positivo”. Essa definição dada
pelo professor é denominada informativa (descritiva ou lexicográfica). Isso porque o
objetivo do professor foi passar uma informação ao aluno sobre o que são as normas
jurídicas.
Note que, por meio de uma definição descritiva, pode ser passada uma
informação verdadeira ou falsa. No caso da definição de norma jurídica, a informação
passada pelo professor é verdadeira. Mas, se ele respondesse que norma jurídica é
todo texto (artigos, incisos, parágrafos, alíneas) contido em leis, a informação seria
falsa.
Ainda no exemplo, o aluno agora está insatisfeito com a resposta e pergunta ao
professor: “mas o que é sistema de direito positivo?” O professor – sabendo que as
discussões sobre o conceito de “direito” não são simples – decide facilitar a vida do
aluno, que quer ter um conceito com o qual trabalhar, e responde: “Nesta aula, vamos
estipular que ‘direito’ é um sistema de normas cuja eficácia está suportada por
sanções institucionalizadas; então, o direito positivo é esse sistema de normas
vigentes num dado Estado”. Com essa resposta, o professor procurou pacificar um
pouco a alma do aluno e reduzir as complexidades inerentes ao conceito de direito.
Como você aprenderá, o conceito estipulado deixa ainda algumas perguntas em
aberto (é necessária a internalização dessas normas pelos sujeitos? Somente o direito
do Estado é direito? E o direito internacional, não é direito?). Porém, ao estipular o
conceito de direito dessa forma, o professor teve condições de caminhar para o
próximo tópico.
Neste último exemplo, o professor procedeu a uma definição estipulativa. Tal
definição não é verdadeira, nem falsa. Definições estipulativas não são avaliadas
como “certas” ou “erradas”, mas como convenientes ou inconvenientes em vista da
finalidade pretendida pela pessoa que define. Para os fins da aula, a definição do
professor foi útil, porque lhe permitiu dar uma ideia de “direito” para o aluno e seguir
em frente. Mas, se ele estivesse num seminário de filósofos do direito de alto nível,
provavelmente sua definição seria descartada por ser inútil para representar todo o
fenômeno jurídico.
O uso de definições estipulativas é extremamente útel, principalmente na
ciência. Isso porque, no discurso científico, são frequentemente introduzidos termos
novos, que não possuíam significado anterior. Então, o cientista estipula um sentido
a essa nova palavra. Ou ainda, a discussão em torno de certo conceito seria irrelevante
para a exposição da teoria que o cientista pretende expor; com isso, ele reduz a
complexidade do tema e chega de forma mais rápida ao ponto em que deseja. Além
disso, definições estipulativas são relevantes para afastar a vagueza dos conceitos e
ambiguidade de certos termos.

16
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

3.8. Sentenças, estado de coisas e proposição


Conforme já destacamos acima, às palavras atribuímos um significado. Por
meio delas, identificamos aspectos da nossa realidade, a fim de nos comunicarmos.
Mas também já dissemos que a linguagem tem, como característica, a distintividade.
Apesar de as palavras terem significado, elas compõem sentenças, orações. Essas
sentenças possuem, por si só, um significado. Assim, além do significado individual
das palavras, quando inseridas numa sentença, esta também possui um significado.
E o enunciado das sentenças são uma função do significado de seus componentes e
sua posição na oração (sujeito, predicado etc.). Daí vem a composicionalidade.
Ao produzirmos um enunciado (uma sentença, uma oração),
Referência é a relação entre os procuramos fazer referência a algo. Esse “algo” pode ser um fato,
enunciados linguísticos e o uma ação, uma situação hipotética, um sentimento etc. Em suma,
fenômeno por ele enunciado. sempre fazemos referência a um estado de coisas. Assim, quando
digo que “o Fluminense é um time de futebol”, estou fazendo
referência ao time chamado Fluminense Football Club, que está
situado no bairro das Laranjeiras e disputa o Campeonato Brasileiro.
Porém, o mesmo estado de coisas pode ser descrito por enunciados diferentes.
Vejamos um exemplo:
1. Está chovendo no Município de São Paulo.
2. Na Terra da Garoa, está chovendo.
3. It is raining in the City of São Paulo.
Perceba que, nas sentenças 1 e 2, apesar de estarem no mesmo idioma, estão
descrevendo o mesmo estado de coisas, mas com palavras diferentes. Por sua vez, na
sentença 3, o mesmo estado de coisas é descrito no inglês. Contudo, nas três hipóteses,
a referência e a predicação são as mesmas. O conteúdo semântico
(referência e predicação) é o mesmo. A proposição que se extrai
Proposição é o conteúdo
delas é a mesma. No exemplo, elas têm o mesmo significado, pois
semântico de um enunciado.
o conteúdo semântico e a sua função (força ilocucionária) são as
mesmas.
Nós vamos falar mais sobre isso abaixo. E você verá que essa distinção é
fundamental para a adequada compreensão do direito. Afinal, normas jurídicas são
uma forma de proposição, obtida a partir da interpretação de um dado enunciado.

4. Pragmática
Nas duas dimensões da linguagem estudadas nos itens 2 e 3, a sintaxe tem por
objeto as normas que disciplinam as relações entre os signos entre si; já a semântica,
o estudo do significado. Neste item, estudaremos a terceira dimensão da linguagem,
a pragmática.
Conforme Charles W. Morris, a pragmática diz respeito à relação dos signos
com os seus usuários. Na perspectiva pragmática, a linguagem é um sistema de

17
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

comportamento.21 John Searle, ao sustentar que a linguagem é uma forma de


comportamento disciplinada por regras, adota uma perspectiva pragmática. Para
Searle, falar uma língua nada mais é do que dominar as regras que a disciplinam e,
com isso, as pessoas passam a usar os elementos da língua de forma sistemática e
regular.22
Como se pode perceber, a sintaxe e a semântica são
Pragmática é o estudo da pressupostos da pragmática. Sem o estudo das regras que
relação dos signos com os seus disciplinam a combinação dos signos (sintaxe) e do significado
usuários.
(semântica), os usuários da língua não têm como usá-la, isto é, não
conseguem realizar atos linguísticos (atos de fala), como falar e
escrever, tampouco obter os efeitos desejados com esse
comportamento linguístico (ex.: informar alguém, fazer com que um sujeito se
comporte de certo modo, emocionar o receptor da mensagem etc.).
Dentre os diversos aspectos da pragmática, vamos focar apenas em alguns
deles. Em especial, trataremos da teoria dos atos de fala e a distinção entre as funções
da linguagem e efeito emotivo e ideológico.

4.1. Teoria dos atos de fala (ou atos linguísticos)


A teoria dos atos da fala (ou atos linguísticos) foi desenvolvida a partir do
movimento da linguagem ordinária (uma das ramificações da filosofia analítica). O
autor que deu início a investigações sobre os atos de fala foi John Langshaw Austin,
que os denominava “atos ilocucionários”.23 Essa teoria foi aprofundada por John
Searle, especialmente nas seguintes obras: Speech acts: an essay in the philosophy of
language (Cambridge: Cambridge University Press, 1969); Expression and meaning:
studies in the theory of speech acts (Cambridge: Cambridge University Press, 1979); e,
em conjunto com Daniel Vanderveken, Foundations of illocutionary logic (Cambridge:
Cambridge University Press, 1985). Nesta Introdução ao Estudo do Direito, essas obras
de Searle serão a base do nosso estudo sobre atos de fala.
Conforme foi comentado acima, John Searle entende que falar uma língua é
uma forma de comportamento fundado em normas. E falar uma língua é executar
atos de fala (ou atos linguísticos), tais como afirmar, promoter,
Atos de fala (ou atos ordenar, perguntar etc. A possibilidade e a execução desses atos
linguísticos) são as unidades decorrem da existência de regras que disciplinam a sua produção.
mínimas de comunicação, Para Searle, toda comunicação linguística envolve atos linguísticos,
consistindo na produção ou
sendo que, para ele, a unidade mínima de comunicação não é o
enunciação de símbolos,
símbolo, a palavra ou a sentença, mas sim a produção ou emissão do
símbolo, da palavra ou da sentença na execução de um ato de fala.24
palavras e sentenças.

21 MORRIS, Charles W. Fundamentos da teoria dos signos, pp. 50 e 54.


22 SEARLE, John R. Speech acts: an essay in the philosophy of language, pp. 12-13.
23 AUSTIN, John L. How to do things with words, p. 98 e ss.
24 SEARLE, John R. Speech acts: an essay in the philosophy of language, p. 16.

18
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

Para tratar dos atos de fala, convém inicialmente indicar as diversas espécies de
atos linguísticos.

4.1.1. Atos de enunciação, atos proposicionais e atos ilocucionários


Searle assevera que, ao se executar um ato de fala completo, há três tipos
diferentes de atos linguísticos que são realizados:
(a) a enunciação dos morfemas, palavras e sentenças: os atos de enunciação;
(b) a referência e a predicação, que são atos proposicionais; e
(c) a descrição, o questionamento, a ordem, o comando, a promessa, a
declaração etc., que são os atos ilocucionários.
Em verdade, Searle observa que tais atos não são três coisas diferentes que os
falantes fazem, mas sim que, para a realização de um ato ilocucionário, é preciso
praticar atos de enunciação e atos proposicionais. A rigor, o ato de fala completo é o
ato ilocucionário, já que a prática de um ato ilocucionário pressupõe o ato de
enunciação e o ato proposicional.

Atos de enunciação Atos proposicionais Atos ilocucionários

Um exemplo deixará essa diferenciação mais clara. Vejamos os seguintes


enunciados:
1. O professor aplica a prova.
2. O professor aplica a prova?
3. Professor, aplique a prova!
4. Seria fundamental que o professor aplicasse a prova.
Nos enunciados (1) a (4), fica claro que foram enunciadas sentenças em
português. Mas a pessoa, ao emitir essas sentenças, está dizendo algo, e não apenas
balbuciando ou escrevendo algumas palavras. Nós conseguimos perceber que,
embora parecidos, os enunciados são diferentes.

19
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

Eles são parecidos porque, em todos os casos, a referência e a predicação são as


mesmas. O referente é “professor”, cuja predicação é “aplicar a prova”. Perceba que,
Um mesmo ato apesar da forma gramatical em que é enunciada, o ato proposicional é o mesmo nas
proposicional pode quatro situações. Para Searle, quando dois atos ilocucionários tiverem a mesma
ser comum a referência e a mesma predicação, então eles expressam a mesma proposição.
diferentes atos de
enunciação e Porém, vale destacar que o ato ilocucionário é diferente nas quatro situações.
ilocucionários. Em (1), o emissor está asseverando, afirmando, descrevendo algo. Por sua vez, em (2),
Mesmo ato é realizada uma pergunta. No enunciado (3), o emissor está proferindo uma ordem,
proposicional e um comando ao professor. Por fim, em (4), o emissor expressa um desejo.
ilocucionário, mas
É importante destacar que essa distinção é extremamente relevante, já que o
diferente ato de
critério de identificação dos atos de enunciação, dos atos proposicionais e dos atos
enunciação.
ilocucionários é distinto. Tanto isso é verdadeiro que um mesmo ato proposicional
Ato de enunciação
pode ser comum a diferentes atos de enunciação e atos ilocucionários, tal como nos
sem qualquer ato
casos (1) a (4). Além disso, é possível que um mesmo ato proposicional e ato
proposicional e
ilocucionário.
ilocucionário possuam diferentes atos de enunciação. É o que ocorre quando
comparamos o enunciado (1) com o seguinte enunciado:
5. O docente põe em prática o exame.
Como é possível perceber, os enunciados (1) e (5) possuem o mesmo ato
proposicional e ilocucionário. Eles têm o mesmo significado, embora o ato de enunciação
tenha sido diferente. Já um ato de enunciação pode ser executado, sem que seja
realizado qualquer ato proposicional ou ato ilocucionário. É o que ocorre quando
alguém diz “Bfgyid vaj daokdhy pffff”.
Na lição de Searle, atos proposicionais e atos ilocucionários consistem,
basicamente, na enunciação de palavras em sentenças em certos contextos, sob certas
condições e com intenções específicas.
No direito, como veremos ao longo deste livro, é muito importante diferenciar
os atos de enunciação do seu conteúdo proposicional. E você verá que os atos
linguísticos no direito possuem, predominantemente, uma força ilocucionária
diretiva.

4.1.2. Atos perlocucionários


Um ato de fala completo consiste no ato ilocucionário. Nele, são enunciadas
palavras (atos de enunciação) e é executado um ato proposicional (referência e
predicação), tal como nos enunciados (1) a (5) acima citados.
Uma noção correlata a de atos ilocucionários é a de atos perlocucionários. Neste
caso, pretende-se fazer referência às consequências ou efeitos dos atos ilocucionários
O ato
nos pensamentos, crenças, ações, emoções etc. dos receptores da mensagem. Se um
perlocucionário diz
respeito aos efeitos aluno se dirige ao seu professor e emite a sentença (2), certamente o professor ficará
nos receptores da um tanto quanto perplexo. Afinal, o aluno não tem autoridade para dar ordens ao
mensagem. professor. Porém, se o diretor da instituição de ensino emite a mesma sentença a um
professor omisso na execução dessa tarefa, o efeito sobre o professor certamente será
20
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

outro: provavelmente, o professor se sujeitará a tal ordem, aplicando a prova; ou


então, ele correrá o risco de perder o emprego.
Os advogados de defesa, no Tribunal do Júri, executam uma série de atos
ilocucionários com o objetivo de persuadir os membros do júri a absolver o réu; já os
promotores procuram persuadi-los para que os membros do júri condenem o réu. O
legislador, ao editar uma lei (ato ilocucionário), pretende que os sujeitos a cumpram;
no entanto, estes podem cumprir ou descumprir os atos linguísticos constantes na lei
(atos perlocucionários).
Portanto, de um lado, há a produção em si dos atos ilocucionários (o que
pressupõe atos de enunciação e atos proposicionais). De outro, há os efeitos que tais
atos ilocucionários geram nos receptores da mensagem, isto é, os atos
perlocucionários.

4.1.3. A força ilocucionária


Já vimos que uma proposição é enunciado que possui a mesma referência e a
mesma predicação, isto é, o mesmo conteúdo semântico. Assim, nos enunciados (1) a
(5), há uma só proposição. No entanto, de (1) a (4), temos atos ilocucionários
diferentes. Para que seja possível identificarmos quais atos ilocucionários estão sendo
praticados, é preciso verificar qual é a sua força ilocucionária. Esta – obtida a partir da
ordem das palavras na sentença, da entonação, da pontuação, do contexto, da posição
do emissor, dentre outros – indica como a proposição deverá ser considerada.
É bastante útil formalizar os atos ilocucionários. Assim, sendo “F” a força
Um ato ilocucionária e “p”, a proposição, temos que o ato ilocucionário terá a estrutura
ilocucionário tem a “F(p)”. Nos casos (1) a (4), a proposição “p” é a mesma; mas a força ilocucionária é
estrutura “F(p)”,
diferente. Em (1), “F” é uma assertiva (“A”) e, em (3), uma diretiva (“D”). Logo, (1) e
sendo “p” a
proposição e “F”, a
(3) podem ser formalizadas da seguinte forma, respectivamente: “A(p)” e “D(p)”.
força ilocucionária. Uma das utilidades da formalização consiste na melhor visualização da negativa, que
pode incidir na força ilocucionária [“~F(p)”] ou na proposição [“F(~p)”].
Searle e Vanderveken indicam sete componentes da força ilocucionária. Desses
sete, é interessante para os nossos fins, fazer menção a cinco deles:
 Ponto ilocucionário. Trata-se da finalidade de cada ato ilocucionário.
Quando alguém descreve algo, como no enunciado (1), o fim desse ato
ilocucionário é a de ser uma representação de um estado de coisas. Já a
finalidade de uma ordem – como no enunciado (2) – é fazer com que
alguém se comporte de determinada maneira.
 Grau de força do ponto ilocucionário. Os atos ilocucionários podem
atingir a mesma finalidade com graus de força diferentes. Um aluno pode
sugerir a seu colega que faça a prova na próxima sexta-feira. Essa diretiva,
no entanto, será mais forte quando o professor ordenar que o aluno faça a
prova na próxima sexta-feira. A ordem é mais forte do que a sugestão,
embora ambas tenham o mesmo ponto ilocucionário, qual seja, o de
influenciar a conduta de outrem.
21
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

 Modo de cumprimento. Para que alguns atos ilocucionários sejam


executados, é necessária uma forma ou condição especial para que o seu
ponto ilocucionário seja atingido. Suponha que você, sem perceber,
estaciona seu carro em local proibido, em frente a uma banca de jornal. O
jornaleiro aponta uma placa de “proibido estacionar” e lhe avisa: “remova
seu carro, pois é local proibido; você tomará uma multa”. Quando muito,
você toma as palavras do jornaleiro como um conselho e pode se ver
inclinado a não retirar o carro. No entanto, se um guarda de trânsito faz a
mesma observação, você provavelmente retirará o carro do local. Isso
ocorre porque o guarda de trânsito possui uma posição de autoridade,
podendo efetivamente lhe autuar por estacionar em local proibido, algo
que o jornaleiro não pode. Por vezes, o grau de força e o modo de
cumprimento são interdependentes.
 Condições do conteúdo proposicional. Os atos ilocucionários têm, como
mencionado, a estrutura “F(p)”. Há casos em que a força “F” irá impor ao
conteúdo proposicional “p” condições para que o ato seja executado.
Assim, para que uma promessa (força ilocucionária) seja bem-sucedida, é
preciso que a proposição “p” faça referência a uma conduta no futuro.
Ninguém pode prometer realizar algo no passado.
 Condições preparatórias. De igual modo, há atos ilocucionários que
somente serão bem-sucedidos se certas condições se verificarem. Alguém
somente pode se desculpar se a conduta realizada for repreensível. A
necessidade de que a conduta seja censurável é uma condição
preparatória para o ato ilocucionário de se desculpar. Por isso é que a
afirmativa “desculpe por existir” é uma ironia, já que a “existência” não é
uma conduta de quem se desculpa, tampouco censurável. Note que as
pessoas internalizam as regras que estabelecem quando determinado
estado de coisas consiste numa condição preparatória.

4.1.4. A direção de correspondência entre as palavras e o mundo


Ao praticar determinados atos ilocucionários, o emissor pretende – como parte
do ponto ilocucionário – que as palavras (em realidade, o conteúdo proposicional)
correspondam ao que ocorre no mundo. De outro lado, há situações em que a
finalidade é justamente oposta: que o mundo corresponda ao conteúdo proposicional.
Por isso, é possível diferenciar os atos ilocucionários com base na direção de
correspondência entre as palavras e o mundo.
Quando alguém assevera algo do tipo “o Fluminense é um time de futebol”, o
objetivo do emissor da mensagem é que esse conteúdo proposicional corresponda ao
fato de que existe um time de futebol chamado Fluminense. Ele pretende que sua
frase corresponda com o que ocorre no mundo dos fatos. Por isso, asserções (tal como
descrições e explanações) tem uma direção de correspondência das palavras-para-o-
mundo, a qual pode ser representada pela flecha voltada para baixo (“↓”).

22
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

Por outro lado, suponha agora que alguém faz a seguinte enunciação: “prometo
que o Fluminense será campeão da Taça Libertadores”. Aqui, o objetivo do emissor
não foi a de representar um determinado estado de coisas. O seu ponto ilocucionário
é outro: o de fazer com que o mundo corresponda às suas palavras. É o que ocorre
também com as diretivas do direito positivo. Quando a Constituição prescreve, em
seu art. 3º, I, que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é “construir uma
sociedade livre, justa e solidária”, certamente o constituinte não pretendeu descrever
um estado de coisas. Ele procurou dizer como o Estado Brasileiro deve atuar para a
realização desse estado de coisas. O que se deseja é que o mundo corresponda ao
enunciado. Nessa hipótese, a direção de correspondência é do mundo-para-as-palavras,
sendo representada pela flecha voltada para cima (“↑”).

Palavras [F(p)]

↓ ↑

Mundo

Essa é uma distinção relevante, pois ela nos ajuda a enxergar a diferença entre
os diversos níveis de linguagem no âmbito do direito. A direção de correspondência
na ciência do direito é das palavras-para-o-mundo (“↓”). Assim, quando um jurista
afirma que “a Constituição determina, em seu art. 3º, I, que a República Federativa
do Brasil tem como objetivo construir uma sociedade livre, justa e solidária”, sua
finalidade consiste em representar adequadamente o mundo do qual ele fala, no caso,
o direito positivo brasileiro. Já as proposições contidas no direito positivo (como a do
constituinte ao enunciar a proposição contida no art. 3º, I, da Constituição) tem outra
direção de correspondência, qual seja, do mundo-para-as-palavras (“↑”), pois sua
pretensão é a de fazer com que o mundo corresponda ao que está previsto no direito
positivo.

4.1.5. Classificação dos atos ilocucionários


Searle procura classificar os atos ilocucionários a partir do seu ponto
ilocucionário e seus corolários, como a direção de correspondência. Para o filósofo,
existem apenas cinco categorias de atos ilocucionários.
 Assertivas. Todos os atos ilocucionários que são assertivas têm, como
Os atos
ponto ilocucionário, fazer com que o emissor da mensagem se
ilocucionários são
comprometa de como algo é. Isto é, nas assertivas (tal como as descrições
de cinco tipos:
assertivas, e testemunhos), o emissor afirma que algo é de determinada maneira e se
diretivas, compromete com a verdade da proposição. Por isso, a direção de
comissivos, correspondência das assertivas é das palavras-para-o-mundo (“↓”). Além
expressivos e disso, as assertivas serão avaliadas como verdadeiras ou falsas.
declarações.  Diretivas. O ponto ilocucionário das diretivas é a tentativa (manifestada
em vários graus) de que o emissor da mensagem faça com que o receptor se
comporte de determinada maneira. Convites, pedidos, conselhos,
23
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

recomendações, perguntas, ordens e comandos são tipos de diretivas. Em


todos esses casos, o conteúdo proposicional é o mesmo: o de que alguém
faça algo no futuro. Por isso, trata-se de um “ato de vontade” (em oposição
ao “ato de conhecimento”; Searle não faz essa distinção, mas faço aqui
porque isso será importante para você quando entrarmos mais no mundo
do direito), em que a direção de correspondência é do mundo-para-as-
palavras (“↑”). Até mesmo por isso, não há que se falar em verdade ou
falsidade; as diretivas não são avaliadas com base nesse critério, mas em
outros (como justiça/injustiça, validade/invalidade,
conveniência/inconveniência, eficácia/ineficácia, dentre outros).
 Comissivos. Os atos ilocucionários comissivos têm, como ponto
ilocucionário, comprometer o emissor (em vários graus) a adotar alguma
conduta no futuro. Note que ela difere das diretivas pelo fato de que,
nestas, o objetivo é influenciar a conduta do receptor da mensagem; nos
comissivos, é o emissor quem atuará no futuro. É o que ocorre nas
promessas. Também aqui a direção de correspondência é do mundo-para-
as-palavras (“↑”).
 Expressivos. Quando alguém agradece a alguém, ou se desculpa por
alguma conduta, ou ainda faz uma saudação, o emissor pratica um ato
ilocucionário expressivo. Para Searle, um expressivo não possui direção
de correspondência, que é pressuposta.
 Declarações. As declarações são atos ilocucionários cuja finalidade
consiste em fazer uma correspondência entre o conteúdo proposicional e
o mundo, a fim de que esse conteúdo proposicional corresponda à própria
realidade. As declarações trazem uma alteração no status ou na condição
do objeto apenas em razão da sua execução. Assim, quando o juiz
pronuncia “eu vos declaro, marido e mulher”, os até então “noivos”
passam a ser considerados “casados”. Quando alguém se confessa na
Igreja Católica e o padre diz “eu te perdoo”, o antes pecador deixa de ter
essa condição. Nos dois casos, a mera pronúncia das palavras, em
determinadas condições, altera a própria realidade; há uma mudança no
status das pessoas. Justamente por tal razão, Searle reputa que a direção
de correspondência é tanto das palavras-para-o-mundo como do mundo-
para-as-palavras. Por isso, é representada pela flecha bidirecional (“↕”).
Note que, a rigor, a força ilocucionária dos atos de fala é basicamente o que
outros autores denominam de funções da linguagem, que é o tema do item 4.2 deste
Capítulo.

4.1.6. Atos ilocucionários indiretos


Os casos de atos de fala mais simples são aqueles em que alguém enuncia uma
sentença e pretende significar exatamente aquilo que é literalmente enunciado.
Imagine que você está à mesa com sua família, no almoço. Ao experimentar a carne
que está no seu prato, você nota que ela está sem sal. Você percebe que há um saleiro

24
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

na mesa, repleto de sal. Então, como seu irmão está próximo do saleiro, você realiza
o seguinte ato: “irmão, por favor, passe-me o saleiro”. Neste exemplo, você deseja
algo (o saleiro) e solicita a outra pessoa (o seu irmão) que realize uma conduta para
que esse desejo seja realizado (no caso, que se irmão lhe entregue o saleiro para que
você possa colocar um pouco de sal na carne).
No entanto, existem casos mais complexos em que, ao ser executado um ato de
fala, indiretamente é executado outro. O emissor da mensagem produz um enunciado
que, interpretado literalmente, tem uma força ilocucionária; no entanto, por meio
desse ato ilocucionário, outro é praticado. Vamos usar o mesmo exemplo. Suponha
que você tenha pronunciado as seguintes palavras: “irmão, você alcança o saleiro?”
Nesse caso, perceba que, se seu irmão resolver apenas interpretar literalmente a sua
pergunta, ele responderá “sim” e você ficará decepcionado e talvez irritado. Isso
porque, por meio da pergunta, você não desejava saber se o seu irmão conseguiria
Os atos de fala alcançar o saleiro; o que você desejava era que ele passasse o saleiro para você, e não
indiretos que lhe desse alguma informação sobre a possibilidade de ele alcançar o saleiro. Nesse
comunicam mais caso, por meio de uma pergunta, o que você praticou foi o ato de fala indireto de pedir
do que o emissor o saleiro.
efetivamente
enuncia Portanto, nos atos de fala indiretos, o emissor da mensagem comunica ao
receptor mais do que ele efetivamente enuncia ao confiar nas informações
(linguísticas e não linguísticas) comuns que possuem, no contexto da situação e na
habilidade do receptor em realizar inferências.
No direito, é muito comum a presença de atos de fala indiretos. Tome como
exemplo o art. 37, II, da Constituição, o qual dispõe que “os cargos, empregos e
funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”. A interpretação
literal desse ato linguístico indica uma assertiva: os cargos, empregos e funções
públicos são acessíveis aos brasileiros e estrangeiros, nos termos da lei. No entanto,
essa assertiva possui uma força ilocucionária de diretiva. O constituinte não
pretendeu descrever que os cargos públicos são acessíveis a todos os que preencham
os requisitos da lei; ele determinou ao legislador que crie requisitos para o acesso aos
cargos públicos tanto a brasileiros como a estrangeiros e também determinou à
Administração Pública que não crie embaraços ao acesso aos cargos, empregos e
funções públicas àqueles que preencham os requisitos legais. Logo, por meio de uma
assertiva, o constituinte praticou um ato de fala indireto, qual seja, uma ordem ao
legislador e à Administração Pública. Você verá que, nos enunciados da Constituição,
das leis, dos regulamentos, das sentenças, dos contratos e de outros atos jurídicos, são
inúmeros os atos de fala indiretos, todos reveladores de uma diretiva.

4.1.7. A utilidade da teoria dos atos de fala


Dentro da teoria dos atos da fala de Searle, quando as pessoas se comunicam,
os atos ilocucionários que elas realizam serão asserções, diretivas, comissivos,

25
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

expressivos ou declarações. A teoria dos atos linguísticos é útil na medida em que nos
permite entender de forma clara o seguinte:
 O ato de enunciação (emissão de sons pela boca, atividade de escrever
num pedaço de papel etc.) é diferente do ato proposicional (que envolve
a referência e a predicação) e do ato ilocucionário (que é o ato de fala
completo).
 Um ato de fala tem a estrutura “F(p)”, em que “F” é a sua força
ilocucionária (assertivas, diretivas, comissivos, expressivos e declarações)
e “p”, a proposição.
 Os atos de fala possuem uma direção de correspondência, que será: do
mundo-para-as-palavras (“↑”), das palavras-para-o-mundo (“↓”), ou
bidirecional (“↕”).
 Por vezes, por meio de um ato ilocucionário, o que se pretende é que outro
ato ilocucionário (aquele que não é obtido da mera interpretação literal)
seja praticado. Ou seja, há atos de fala indiretos.
 Uma coisa são os atos de fala produzidos (cujo ato completo é o
ilocucionário); outra, são os efeitos ou consequências que esse ato causa
no receptor da mensagem. Neste caso, estamos falando dos atos
perlocucionários.
Quando conseguimos, por abstração, diferenciar essas situações, temos
melhores condições para visualizar melhor o fenômeno que estudamos. Isso nos
confere um instrumento analítico relevante.
Note que essa teoria não tem sido muito estudada no âmbito da teoria do direito
(ao menos não na teoria do direito no Brasil). Isso não significa que diversos temas
que a teoria faz referência já não tenham sido estudados, ainda que sob outra
roupagem. Assim, quando falamos da força ilocucionária de um ato de fala, estamos
fazendo alusão às finalidades da emissão da mensagem no âmbito do processo
comunicativo. Há autores que discutem esse tema sob a perspectiva das funções da
linguagem. Por outro lado, ao falar dos atos perlocucionários, o foco de atenção é
alterado. O que se analisa não é mais o que o emissor pretendeu, mas sim de que
modo o ato de fala impactou nas ações, pensamentos, emoções etc. do receptor da
mensagem. Por vezes, falar que uma pessoa é “preta” em vez de “negra” ou “afro-
brasileira” pode gerar um sentimento diverso nas pessoas. É a questão dos efeitos
emotivos da linguagem. Além disso, num discurso, o emissor pode pretender persuadir
seu público, pela fixação de conceitos não muito precisos, voltados ao mero
convencimento. Trata-se do tema da definição persuasiva. E ainda o discurso, em
especial o científico, pode revestir de um efeito ideológico que é necessário depurar.
É a função ideológica da linguagem.
Por tal razão, é conveniente que você tenha uma ideia de quais são as funções
da linguagem, efeito emotivo da linguagem, definição persuasiva e função ideológica
da linguagem. Esses são os temas dos próximos itens.

26
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

4.2. Funções da linguagem


Ao produzirmos enunciados procuramos sempre expressar um estado
psicológico, a fim de influenciar, de alguma forma, o receptor da mensagem. O
emissor pode usar a linguagem para informar, perguntar, apreciar, examinar,
orientar, aconselhar, comandar, emocionar, entreter, desculpar, declarar, enganar etc.
É grande a complexidade da comunicação humana e os propósitos visados pelos
agentes.
Para facilitar a identificação das diversas situações, os autores procuram reduzir
essa complexidade a algumas categorias. Vimos acima que Searle entende haver
apenas cinco categorias de forças ilocucionárias (asserções, diretivas, comissivos,
expressivos e declarações). No entanto, há outras formas de classificar as finalidades
visadas pelas proposições expressas por meio dos enunciados que produzimos.
Irving Copi, por exemplo, indica que há três funções básicas da linguagem
(informativa, diretiva e emotiva), embora reconheça ser essa uma excessiva
simplificação.25 Guibourg, Ghigliani e Guarinoni, por sua vez, enumeram cinco
funções da linguagem (descritiva, diretiva, expressiva, operativa e usos mistos). Já
Paulo de Barros Carvalho faz referência a dez funções diferentes: descritiva,
expressiva de situações subjetivas, prescritiva de condutas, interrogativa (ou das
perguntas e pedidos), operativa (ou performativa), fática, propriamente persuasiva,
afásica, fabuladora, metalinguística.26
Você já está ciente de que essas classificações são sempre redutoras da
As classificações
complexidade da realidade analisada. Por meio delas, procuramos agrupar os
são redutoras da
complexidade da fenômenos observados em categorias, a fim de melhor identificá-los nas situações
realidade analisada concretas. Então, não existe classificação certa ou errada, mas sim útil ou inútil em
razão dos propósitos perseguidos por quem classifica.
Nesta obra, o que se deseja é apenas lhe proporcionar uma visão geral dos
problemas existentes nessa área. E, além disso, fornecer um instrumento para melhor
analisar o direito e as diversas dimensões desse fenômeno social. Você ainda vai
perceber que esse tema é de fundamental importância para examinar o discurso do
direito positivo, da ciência do direito, da filosofia do direito, dentre outros. Por isso,
vamos fazer referência a apenas quatro funções (declarativa, diretiva, expressiva e
operativa), sem que isso represente uma lista fechada de funções.

4.2.1. Função declarativa (ou informativa)


Os enunciados como “o Fluminense venceu ontem”, “Londres é a capital da
França”, “a Constituição brasileira vigente foi promulgada em 5 de outubro de 1988”
e “estou gripado” possuem uma característica comum: todos procuram descrever
uma situação ontologicamente objetiva (como nas duas primeiras sentenças) ou uma

25 COPI, Irvin A. Introdução à lógica, p. 48.


26 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método, pp. 40-53.
27
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

situação ontologicamente subjetiva (como na última). Por isso, em todos esses casos,
diz-se que a linguagem cumpre uma função descritiva ou informativa.
Como você já deve imaginar, quando usamos a linguagem com essa função,
podemos transmitir uma informação verdadeira ou falsa. Nem sempre o Fluminense
ganha e nem sempre estou gripado; logo, é possível que a descrição dessas situações
(ontologicamente objetiva e subjetiva, respectivamente) não sejam verdadeiras. E,
com certeza, Londres não é a capital da França! No entanto, é verdadeiro o fato de
que a Constituição brasileira atual foi promulgada em 5 de outubro de 1988. Isso
indica que, na sua função descritiva, as proposições serão verdadeiras ou falsas.
A linguagem
científica tem uma A linguagem científica possui essa função: a de descrever uma determinada
função descritiva. realidade. Por isso, o objetivo é o de enunciar proposições que sejam verdadeiras. As
Suas proposições proposições que se revelam falsas – como “a Terra é plana” – são simplesmente
serão verdadeiras descartadas do discurso científico. No direito, ou melhor, na ciência do direito, o seu
ou falsas.
propósito é o de descrever o direito positivo (ou seja, o ordenamento jurídico vigente
em dado tempo e lugar).
Para usar um conceito de Searle, aqui, a direção de correspondência é das
palavras-para-o-mundo (“↓”), pois desejamos saber se a proposição descritiva está de
acordo com o mundo.

4.2.2. Função diretiva (ou prescritiva)


Agora, vejamos as seguintes sentenças: “[a]s leis delegadas serão elaboradas
pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso
Nacional”; “soldado, sentido!”; “qual é o melhor caminho para São Paulo?”; “ame ao
próximo como a ti mesmo”.
Em todos esses enunciados, há uma finalidade comum: o emissor da mensagem
deseja influenciar o comportamento do receptor. No primeiro caso, o texto do art. 68
da Constituição obriga o Presidente da República a requerer ao Congresso Nacional
a delegação da atividade de elaboração de lei (por isso, ela se chama “lei delegada”).
No segundo, o oficial dá uma ordem direta ao soldado. Na pergunta, o objetivo é
fazer com que o receptor indique um caminho. Por fim, o mandamento cristão prega
que as pessoas adotem uma atitude de amor em face das demais pessoais.
O mundo prescritivo é bastante grande. Toda experiência normativa é
As normas prescritiva. Assim, normas de etiqueta, normas morais, normas religiosas etc. têm a
(jurídicas, morais,
função prescritiva. Até mesmo as perguntas têm função prescritiva, pois pretendem
de etiqueta,
que o receptor se comporte de determinada maneira (responda algo). E, como você já
religiosas etc.) são
proposições com deve ter percebido, é a função exercida pela linguagem do direito positivo. Essa é uma
função diretiva. grande diferença entre ciência do direito e direito positivo; a linguagem da ciência
jurídica tem função descritiva; a do direito positivo, prescritiva.
Proposições diretivas não são verdadeiras e falas. Suponha que seu pai lhe dê o
seguinte conselho: “meu filho, acho que você deveria fazer a Faculdade de Direito”.
Se você responder “isso é falso”, certamente seu pai ficará confuso e pensará em

28
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

contratar aulas de reforço para você. Afinal, um conselho não é verdadeiro ou falso;
ele pode ser conveniente ou inconveniente, bom ou ruim, mas nunca verdadeiro ou
falso. O mesmo vale para normas morais, normas de etiqueta e normas jurídicas. Elas
serão, em face de um dado sistema normativo, válidas ou inválidas. Quanto à sua
possibilidade de modificação da realidade referida, eficazes ou ineficazes. Ao se
comparar com outro sistema normativo, justas ou injustas, compatíveis ou
incompatíveis, mas nunca verdadeiras ou falsas. Isso ocorre porque, na linguagem
diretiva, o que se deseja é fazer com que o mundo corresponda às proposições
diretivas; por isso, sua direção de correspondência é do mundo-para-as-palavras
(“↑”).

4.2.3. Função expressiva


Nós não usamos a linguagem apenas para descrever estados de coisas e
influenciar no comportamento alheio. Nós também exprimimos nossos sentimentos,
nossas emoções. A mãe, ao olhar para o seu filho, diz “eu te amo”. Se você prender o
dedo indicador na porta do carro, certamente gritará um “porcaria!”, ou algo pior.
Outro exemplo típico é a poesia.
Portanto, ao exprimirmos nossas emoções (seja por meio de sentenças bem
construídas, seja por meio de outras expressões, como um “Aí!”), a linguagem
cumprirá uma função expressiva.
As proposições expressivas não podem ser verdadeiras ou falsas. No entanto,
sob a perspectiva psicológica, serão autênticas ou artificiais; sob o ponto de vista
estético, belas ou sem valor.

4.2.4. Função operativa (ou performativa)


“Eu vos declaro marido e mulher”. Ao pronunciar essas palavras, o padre altera
a condição de duas pessoas perante Deus. Antes, eram solteiros; com a declaração do
padre, passam a ser casados aos olhos divinos. Na minha cerimônia de colação de
grau, o diretor da Faculdade de Direito de Curitiba me chamou e disse: “proclamo-te
bacharel em direito”. Quando o diretor pronunciou essas palavras, ele realizou uma
ação específica, a de modificar a minha condição de estudante de direito para bacharel
em direito. Nessas situações, a linguagem também cumpre a função importante: pela
enunciação de certas palavras, sob determinadas condições, uma conduta é realizada.
Trata-se da função operativa (ou performativa).
Nos exemplos acima, houve ainda a criação de um status novo. Mas isso não é
necessário. Em expressões do tipo: “desculpe-me”, “salve, meu amigo!” e
“parabéns!”, não há criação de status. No entanto, a enunciação de tais palavras, por
si só, é a realização de uma conduta: a de se desculpar, de saudar e a de congratular.
Os casos de criação de status correspondem, na teoria dos atos da fala de Searle, às
declarações.

29
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

Na função operativa, as proposições não possuem valor de verdade ou


falsidade.

4.3. Funções da linguagem, formas gramaticas e usos mistos


Em muitas situações, a forma gramatical usada pelo emissor da mensagem
corresponde à função pretendida. Suponha que alguém lhe pergunta onde fica o
Museu de Arte de São Paulo, o MASP, e você responde: “O MASP fica na Avenida
Paulista, em frente ao Parque Trianon”. No exemplo, você usou o modo indicativo
para transmitir uma informação (função descritiva). A forma gramatical coincidiu
com a função da proposição do enunciado.
No entanto, como bem disse Irvin Copi, a linguagem raramente vem em seu
“estado químico puro”.27 No uso diário da língua, a forma gramatical e sua função
não são necessariamente correspondentes, e, não raro, os enunciados cumprem mais
de uma função (além daquela obtida a partir de uma interpretação literal da
sentença).
Assim, por vezes, quando alguém faz uma pergunta, ela não deseja receber a
resposta exata para a questão, mas algo além disso. Suponha que você faça a seguinte
Não raro, a forma
pergunta ao seu colega: “você sabe que horas são?” Se ele simplesmente olhar para o
gramatical e a
função do relógio e responder “sim”, não há dúvidas de que você ficará frustrado. Afinal, você
enunciado não são não desejava receber a informação sobre o grau de conhecimento do seu colega sobre
coincidentes o horário atual, mas sim saber o horário em si. A rigor, a função da sua pergunta era
diretiva, prescritiva, podendo ser traduzida por algo do tipo: “por favor, informe-me
sobre o horário atual”.
Tal como destacamos acima (item 4.1.6), na teoria dos atos da fala de Searle, é
O significado de comum a presença de atos ilocucionários indiretos. Por meio de um ato linguístico,
um enunciado cuja interpretação literal leva à identificação de uma força ilocucionária, uma análise
depende também mais profunda nos permite ver que há ainda outra força ilocucionária.
do contexto em que Provavelmente, quando você era criança, sua mãe afirmava o seguinte quando
é emitida passava das 21 horas: “está na hora de você ir para a cama”. Uma interpretação literal
nos leva a considerar ter sido produzido um ato ilocucionário classificado como
assertiva. No entanto, há algo além disso: a rigor, o que sua mãe desejava não era
descrever um fato, mas sim lhe dar uma ordem: “vá para a cama já!” Portanto,
indiretamente, o ato ilocucionário emitido era uma diretiva.
Dessa forma, para saber exatamente o significado do enunciado por vezes não
é suficiente a mera interpretação literal. É preciso entender também o contexto, isto é,
as circunstâncias que levaram à produção do enunciado.
Além da forma gramatical, há ainda outro aspecto a ser considerado. Ao se
pretender produzir um enunciado, mais de uma função é exercida. Suponha que
numa manifestação sobre os direitos humanos, há alguém fazendo um discurso, mais
ou menos assim: “precisamos agir rapidamente contra as condições sub-humanas e

27 COPI, Irvin. Introdução à lógica, p. 50.


30
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

indignantes vivenciadas pelos presos brasileiros!” Ao escutar esse discurso, talvez


você se sinta impelido a agir, a fim de defender a causa do direito dos presos a
condições dignas nas prisões. O discurso cumpriu, nesse caso, uma função diretiva
explícita. Mas, além disso, ele também atendeu às funções descritiva e expressiva.
Descritiva, porque o emissor da mensagem o informou sobre as condições de vida
dos presos (no Brasil, ao menos, são péssimas). E expressiva, porque o emissor
indicou estar indignado com essa situação.
Neste livro, você aprenderá no momento devido que nos diversos níveis de
linguagem que tratam do direito (direito positivo, ciência do direito, filosofia do
direito etc.) podemos encontrar situações em que a forma gramatical e a função da
proposição não são correspondentes. De igual modo, também existem proposições
que atendem a mais de uma função.
Apenas para ter um ponto de partida, tome como base a ideia de que a
linguagem do direito positivo tem uma função prescritiva, enquanto a linguagem da
ciência do direito, descritiva. Veremos que nem sempre uma proposição da ciência
do direito atende, por exemplo, apenas a essa função. Nós voltaremos ao tema em
diversos pontos desta Introdução ao Estudo do Direito, mas principalmente quando
tratarmos de ciência.

4.4. Efeito emotivo da linguagem e definição persuasiva


Imagine que você está conversando com um amigo comunista de barba
comprida e camisa vermelha, quando você vê seu vizinho, vestindo um terno azul
bem cortado, gravata amarela e cabelo cuidadosamente penteado com gel. Neste
momento você se vira para o seu amigo e diz: “Está vendo aquele ali? É o João, meu
vizinho. É um ‘coxinha’!” Para o seu amigo comunista, isso é suficiente para causar
nele uma certa repulsa quanto à atitude política do seu vizinho e, provavelmente,
uma certa precaução quanto a qualquer enunciado que ele emita. Esse sentimento que
a expressão “coxinha” causou em seu amigo é o que se chama “efeito emotivo da
linguagem”.
Do mesmo modo que seu amigo pode ter um sentimento ao escutar a palavra
“coxinha”, o mesmo pode acontecer com você em relação a outras palavras ou
sentenças (como um “eu te amo” vindo de sua namorada) e com relação a um grupo
inteiro de pessoas. O fenômeno, como explicam Guarinoni, Ghigliani e Guarinoni,
pode ser não o resultado de um condicionamento individual, mas sim social. Certas
palavras e sentenças estão associadas a determinados efeitos emotivos para
determinadas pessoas e comunidades.28 Pense na palavra “nazista”, por exemplo.
Os autores citados apontam ainda que o efeito emotivo de certas palavras e
sentenças está generalizado na sociedade e seu uso tem duas funções: (i) fazer
referência ao objeto denotado; e (ii) provocar determinadas emoções nos destinatários

28 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al


conocimiento científico, p. 74.
31
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

da mensagem. Em especial, esta segunda função é muita usada por advogados no


Tribunal do Júri, com objetivo de fazer com que os jurados tenham sentimentos
favoráveis ao acusado.
No discurso jurídico, o efeito emotivo é marcante quando falamos que certa lei
ou certa política pública é contrária à “Constituição”. Os ouvintes dessa mensagem
são levados à ideia de que certa lei ou política pública é ruim (ainda que, sob outra
perspectiva, não seja). Ou ainda, se falamos que certa ação estatal fere os “direitos
humanos”, ela também é valorada pelas pessoas como errada. Se dissemos que
alguém é um “criminoso”, as demais pessoas começam a olhar para ela de modo
diferente, como se fosse necessariamente um mau sujeito.
Por vezes, faz-se uso de definições persuasivas (ou retóricas).
Definição persuasiva (ou Nesse tipo de definição, certo conceito usualmente aceito para fazer
retórica) é aquela em que o referência a determinado estado de coisas é manipulado, a fim de
emissor manipula o causar determinado efeito emotivo. O objetivo será o de persuadir
significado usualmente aceito os receptores da mensagem em certo sentido. Assim, no Golpe
de uma palavra (limitando-o, Militar de 1964, utilizou-se a palavra “Revolução”. A razão para
estendendo-o, mudando-o), isso está clara no preâmbulo do Ato Institucional 1, de 9 de abril de
conforme seu interesse. 1964: “[a] revolução se distingue de outros movimentos armados
pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um
grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”. Com isso, pretendeu
o movimento militar persuadir os cidadãos brasileiros a encarar a mudança de regime
como algo positivo para o povo e isso levasse a um maior apoio. E, ao longo do tempo,
outros termos com efeitos emotivos positivos (como “democracia”, “liberdade”,
“dignidade da pessoa humana”) foram usados, como, por exemplo, no Preâmbulo
do Ato Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968.
Carlos Santiago Nino observa que a carga emotiva das expressões linguísticas
prejudica o seu significado cognoscitivo. Se uma palavra funciona como uma
condecoração ou estigma, elas são usadas arbitrariamente para serem aplicadas aos
fenômenos que se aceita ou repudia.29
Ter consciência quanto a esse efeito que a linguagem pode causar é
extremamente relevante para quem lida com o direito. Ao se ter clareza, podemos nos
prevenir desse risco, evitando ser influenciados por um uso distorcido das palavras.

29 NINO, Carlos Santiago. Introducción al analisis del derecho, p. 269.


32
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

4.5. Função ideológica


Ato Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968 [Preâmbulo] da linguagem
(...)
É evidente que o
CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, uso de definições
conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e retóricas não é
propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um explicitado. Quando são
sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na
produzidos atos com a
liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às
ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção,
finalidade de causar
buscando, deste modo, ‘os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, emoções nas pessoas, o
financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito emissor não costuma
e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem alertar o receptor sobre
interna e do prestígio internacional da nossa pátria’ (Preâmbulo do Ato Institucional esse efeito emotivo. Pelo
nº 1, de 9 de abril de 1964); contrário, não raro são
CONSIDERANDO que o Governo da República, responsável pela execução usadas expressões como
daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, não só não pode permitir que “definição verdadeira” e
pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob “essência da coisa” para
pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como
se referir ao conceito
porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2, afirmou,
fornecido. É como se o
categoricamente, que ‘não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará’ e,
portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido;
emissor, mais inteligente
do que todos nós,
CONSIDERANDO que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente
desentranhasse da
da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a
nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar ‘a institucionalização
realidade o sentido real
dos ideais e princípios da Revolução’, deveria ‘assegurar a continuidade da obra do objeto designado.
revolucionária’ (Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966); Você já deve ter
CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos notado que uma
mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos definição persuasiva
jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, nada mais é do que uma
desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e
forma de estipulação do
destruí-la;
significado. Porém, se o
CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que emissor de uma
impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem,
definição retórica
a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia
avisasse acerca da
política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra
revolucionária; estipulação (tal como o
fazem os cientistas
CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos
sérios), todo efeito
ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se
responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que
persuasivo deixaria de
evitem sua destruição, existir, ou seria
drasticamente reduzido.
Resolve editar o seguinte
Por isso, ao enunciar o
Ato Institucional significado da palavra
(...) definida retoricamente, é
comum encontrarmos o
emissor dizendo que
essa é a “natureza real” do objeto referido. E essa forma de definir procura tornar
33
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

imutável o sentido de certa palavra, fixando o significado no tempo. É por isso que a
A linguagem é
definição persuasiva – tal como asseveram Guibourg, Ghigliani e Guarinoni –
usada de forma
encaixa-se perfeitamente na teoria essencialista da linguagem.30
ideológica quando
as palavras são Quando o emissor manipula o significado de uma palavra acima da nossa
enunciadas de capacidade de análise ou sem que avise da estipulação do sentido, apenas para a fim
forma a estipular
de atender a seus interesses, está em pauta a função ideológica da linguagem. É em razão
sentidos para que
dessa função que acabamos, em muitas situações, a aceitar e utilizar estruturas de
os receptores
atuem de acordo pensamento pré-fixadas. Essas estruturas dependem da cultura de cada comunidade,
com os interesses do momento histórico. No passado, falar abertamente ser “homossexual” era algo
do emissor da muito complicado, pois era “errado” ser homossexual (em alguns países, tal estado
mensagem chegou a ser criminalizado). Chamar alguém de “comunista” ou “socialista”, pode
ser algo terrível em dada comunidade; ou ser rotulado de “liberal” pode significar a
exclusão da pessoa de determinado grupo.
Na política e no direito, é muito comum encontrar definições persuasivas. Por
vezes, certas expressões cumprem uma função eminentemente ideológica. Logo, é
preciso que estejamos sempre alertas quanto a esse efeito.

5. Classes da linguagem
A linguagem, como já mencionado, é um sistema de símbolos, isto é, um sistema
de signos artificiais. Porém, a formação de cada sistema de símbolos pode possuir
graus distintos de artificialidade. É com base nisso que Guibourg, Ghigliani e
Guarinoni fazem referência a classes de linguagem.31 Há linguagens naturais e
artificiais.

5.1. Linguagem natural (ou ordinária)


Quando tratamos da diferenciação sociológica do direito (Parte I, Capítulo I,
item 2.1), falamos que, ao entrar na faculdade de direito, você deve ter percebido que
os profissionais do direito usam uma linguagem mais formal do que aquela que
provavelmente está acostumado. Isso porque, no dia-a-dia, você e as pessoas em geral
costumam se comunicar sem maiores preocupações com a estrutura sintática ou com
a precisão do significado das palavras e orações. Ademais, o contexto em que os
enunciados são emitidos, os gestos, a expressão facial e a entonação são muito
importantes na comunicação. Por isso, a dimensão pragmática da linguagem
ordinária é muito rica.32
No nosso cotidiano comunicativo, cometemos erros sintáticos que são
relevados. É muito comum as pessoas falarem “eu vi ele ontem”, quando o
sintaticamente correto é “eu o vi ontem”. Ou então, quando alguém diz para outra

30 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al


conocimiento científico, p. 80.
31 Idem, p. 20 e ss.
32 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método, p. 57.
34
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

“me chama quando terminar o telefonema”, sendo que o correto seria “chama-me
quando terminar o telefonema”.
Sob o ponto de vista semântico, o uso das palavras e sentenças não é muito
preciso. Assim, quando uma menina olha para você e diz, “eu amo pássaros”, vem à
nossa mente canarinhos, sabiás ou tico-ticos. Você não pensa, por exemplo, no
pinguim e no avestruz, que também estão na categoria dos pássaros. Ou ainda,
quando você convida um amigo ou amiga para tomar um vinho, certamente seu
amigo ou amiga pensará no vinho tinto ou branco; ela dificilmente pensará em vinhos
de abacaxi, produzidos no Havaí. De igual modo, na linguagem cotidiana, um
vestibulando dirá: “os japoneses são muito inteligentes e disciplinados; se eu não
estudar muito, ele passará no vestibular e ficarei de fora”. Perceba que, por
“japoneses”, nosso vestibulando não quer se referir a quem nasceu no Japão; ele faz
referência aos vestibulandos com ascendência japonesa. Ele fez uma generalização
que, tomada ao pé da letra, será falsa: nem todo vestibulando de ascendência japonesa
é inteligente e disciplinado.
Todos esses exemplos fazem parte da linguagem ordinária. Esta é formada a
paulatinamente por determinado grupo social, a partir do seu uso. Trata-se de uma
linguagem muito rica em termos significativos, já que é utilizada para descrever fatos,
transmitir emoções, dar ordens etc. Por isso, a vagueza e a ambiguidade estão muito
presentes. Isso tem o seu lado positivo: a vagueza facilita a
Linguagem ordinária é o tipo comunicação, evitando sucessivas precisões de significado; já a
de linguagem usada no ambiguidade possibilita uma economia de palavras. Porém,
cotidiano, sem maior rigor justamente porque a vagueza e a ambiguidade estão muito
sintático, mas com grande presentes, a linguagem natural não é suficiente para a construção
riqueza semântica e do discurso científico, em que uma maior precisão e rigor se fazem
pragmática. necessários. É justamente por isso que foram criadas as linguagens
artificiais.33

5.2. Linguagens artificiais


Você já sabe que nossa linguagem é formada por símbolos, que são signos
artificiais (porquanto criados a partir de uma decisão humana). Então, você pode estar
achando estranho haver “linguagens naturais” em oposição a “linguagens artificiais”.
Afinal, mesmo a linguagem natural é artificial. Isso é verdadeiro. Quando se faz
menção aqui à “linguagem artificial”, o que se pretende destacar é o fato de que a
linguagem natural já se apresenta para nós como um dado. Desde o nosso nascimento,
aprendemos a linguagem do nosso grupo social sem que venhamos a estabelecer os
significados. Nós simplesmente o incorporamos a linguagem natural, sem interferir
com seu significado.
Contudo, há linguagens em que podemos ter algum grau de interferência, a fim
de trazer maior precisão significativa. É por isso que elas são chamadas por Guibourg,

33 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al


conocimiento científico, pp. 20-21.
35
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

Ghigliani e Guarinoni de “linguagens artificiais”. Na classificação desses autores,


essas linguagens podem ser “técnicas” e “formais”, as quais trataremos abaixo.34 A
estas, acrescentaremos aqui (inspirados na lição de Paulo de Barros Carvalho) a
linguagem científica. Também aqui, essa não é uma lista fechada, taxativa.

5.2.1. Linguagem técnica


Quando você compra uma televisão, um vídeo game, um telefone celular, ou
um carro, é possível que a primeira coisa que você faça seja ler o manual. Você fará
isso para entender quais são as potencialidades do seu equipamento novo e as
instruções mais importantes referentes ao uso de sua compra. Ao fazer isso, perceberá
que o manual tem uma linguagem simples, com a indicação das informações
relevantes, ainda que com a adoção de alguns termos técnicos. Os manuais dos
equipamentos, usualmente, contêm tanto elementos da linguagem natural como
termos técnicos, científicos.
Assim, a linguagem técnica é que faz uso da linguagem
Linguagem técnica é a que faz natural, mas com a utilização de significados mais restritos,
uso da linguagem natural e de próprios de determinado campo do conhecimento científico.
termos técnicos próprios de Contudo, ela não chega a ser uma linguagem científica, porquanto
um campo científico, sem, não se trata de uma estrutura sistematizada, construída com base
contudo, ter uma estrutura num método que possibilita a verificação da verdade ou falsidade
sistematizada. das proposições.
No direito positivo, o legislador se utiliza da linguagem
técnica. Ao mesmo tempo em que são usadas expressões da
A linguagem do linguagem natural, sem maior preocupação com a precisão conceitual, também são
direito positivo é usadas expressões mais restritas, próprias do discurso jurídico-científico. Isso ocorre
uma linguagem
porque o Poder Legislativo (ao menos em sociedades democráticas) tem uma
técnica, não
composição heterogênea: advogados, médicos, sociólogos, palhaços, metalúrgicos,
pertencendo à
classe da
cantores etc. Como consequência, na redação dos textos legislativos – embora haja
linguagem assessoria jurídica – termos da linguagem ordinária são utilizados ao lado de termos
científica. técnico-jurídicos como “concessão”, “apelação”, “petição inicial”, dentre outros.

5.2.2. Linguagem científica


Na Parte II, Capítulo I, você aprenderá um pouco sobre o conhecimento
científico. Por isso, neste tópico, não indicaremos o que é uma ciência, mas apenas as
características da linguagem científica.
Tal como ocorre na linguagem técnica, o discurso científico também se
aproveita da linguagem natural. No entanto, ela passa por um “processo de
depuração”, pois as expressões imprecisas são substituídas por termos mais precisos,

34 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al


conocimiento científico, pp. 21-22.
36
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

tendo em vista o objetivo de fornecer informações verdadeiras sobre o fenômeno


observado.
Quando a palavra não é precisa o suficiente, o cientista realiza
Linguagem científica é a que um “processo de elucidação”, em que explicita o sentido
utiliza termos da linguagem empregado com determinada expressão. Nesse sentido, o uso de
natural, mas faz uso de termos definições estipulativas se mostra muito útil.
com significado mais preciso. Em vista disso, as dimensões sintática e semântica se
Portanto, suas dimensões mostram rigorosas, deixando um pouco de lado o aspecto
sintática e semântica são pragmático. Como o objetivo principal da ciência é produzir
rigorosas, sendo mais fraco seu proposições verdadeiras sobre o objeto analisado, procura-se evitar
aspecto pragmático. o uso de palavras que produzam um efeito emotivo nos receptores
da mensagem.35

5.2.3. Linguagem formal


Há casos em que a necessidade de exatidão na utilização da linguagem é tão
grande que não é possível conviver com a vagueza e a ambiguidade. Por isso, em vez
de utilizar as palavras próprias da linguagem ordinária, são empregados símbolos
arbitrários. Ao se fazer isso, o emissor deixa de lado o seu significado, a fim de
destacar as relações entre os símbolos. São usadas fórmulas, tal como nos exemplos
abaixo:
(a) x + y = 4;
(b) xRy;
(c) Σp(p → r);
(d) –(Op . Vp).
Nesses exemplos, está em pauta a linguagem formal. É a
Linguagem formal é a que faz linguagem da álgebra, da lógica formal e da lógica deôntica (na
uso de símbolos arbitrários, a qual a lógica jurídica se insere), por exemplo. Por isso, seu aspecto
fim de evitar a vagueza e a sintático é bastante rigoroso, embora seus aspectos semântico e
ambiguidade. Seu aspecto pragmático sejam pobres.
sintático é muito rigoroso,
enquanto o semântico e o
pragmático são mais fracos. 6. Níveis de linguagem
Quando você está assistindo a um jogo de futebol e escuta o
comentarista falando algo do tipo “o time do Fluminense está
atacando hoje com muita velocidade”, você consegue identificar bem a referência
desse enunciado. O comentarista está fazendo referência a um dado estado de coisas,
qual seja, a forma como o Fluminense está jogando naquele dia. E você está vendo o
jogo, de tal modo que consegue avaliar se a análise do comentarista é correta ou
incorreta. Igualmente, se você abrir um livro de introdução à psicologia, verá que há
sempre um capítulo descrevendo o sistema nervoso dos seres humanos. No livro,

35 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método, pp. 59-62.


37
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

haverá referências ao cérebro, ao hipotálamo, à medula espinhal, aos neurônios,


dentre outros. Os enunciados têm como referência uma parte do corpo humano.
A questão se torna um pouco diferente quando o objeto do enunciado é outro
enunciado. Ao abrir um livro de português, você encontrará enunciados como “não
é gramaticalmente correto separar o sujeito do verbo com vírgula”, “advérbio é uma
expressão modificadora que, por si mesma, denota uma circunstância de lugar,
tempo, modo, intensidade, dentre outros, desempenhando a função de adjunto
adverbial”. O cientista do direito também tem como foco outra linguagem, a do
direito positivo: “é um fato que a Constituição de 1988 – em seu art. 5º, I – prescreve
que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. O filósofo, por vezes,
também se refere a outra linguagem, quando, por exemplo, descreve a história das
ideias filosóficas. Ou seja, mostra como outros filósofos enunciaram suas concepções.
Portanto, ao contrário do exemplo do comentarista e do livro de psicologia, há
situações em que uma linguagem tem como objeto outra linguagem. Assim, temos
dois planos de linguagem diferentes: a do próprio enunciado e a do objeto deste
enunciado (que também é linguagem). Trata-se da diferença entre metalinguagem e
linguagem-objeto. O jurista asseverou que a Constituição determina que homens e
mulheres são iguais; ele proferiu um enunciado sobre o que prevê a linguagem do
direito positivo. Por isso, para o cientista do direito, o direito positivo é a sua
linguagem-objeto; já os enunciados por ele emitidos são uma metalinguagem em
relação à linguagem do direito positivo.
Note que a distinção entre metalinguagem e linguagem-objeto é relativa. A
depender da perspectiva, uma metalinguagem pode ser linguagem-objeto de outra
linguagem (que será metalinguagem). Assim, quando um jurista assevera que “os
cientistas do direito são unânimes ao dizerem que a Constituição de 1988 determina
que homens e mulheres são iguais”, perceba que o objeto desse enunciado não é o
direito positivo (o que prevê a Constituição). O objeto do enunciado do jurista é a
linguagem dos cientistas do direito: a assertiva dos cientistas do direito é a
linguagem-objeto do enunciado do nosso jurista. A rigor, é possível criar tantas
metalinguagens quanto nos for interessante.
Essa distinção é muito relevante. Isso porque os resultados da nossa
As condições de investigação, análise ou descrição de uma linguagem L1 (linguagem-objeto) será
verdade de uma sempre uma linguagem L2 (metalinguagem).36 Mais do que isso, as condições de
linguagem-objeto
verdade e validade de uma linguagem-objeto serão sempre enunciadas no nível da
são enunciadas no
metalinguagem.
nível da
metalingaugem Para deixar isso claro, convém trazer o paradoxo do mentiroso, citada por
Guibourg, Ghigliani e Guarinoni.37 Suponha que o professor diz em sala de aula:
“Tudo o que eu disse nesta aula é mentira”. Como o enunciado foi produzido durante
a aula, não há dúvidas de que a frase do professor também pertence ao conjunto dos

36 CARNAP, Rudolf. Introduction to semantics, pp. 3-4.


37 GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.; GUARINONI, Ricardo V. Introducción al
conocimiento científico, p. 27.
38
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

enunciados emitidos “nesta aula”. Logo, trata-se de uma afirmação sobre si mesma.
Se o enunciado do professor for verdadeiro, então ela será falsa; mas, se for falsa, será
verdadeira. Como fugir dessa autocontradição?
A distinção entre metalinguagem e linguagem-objeto ajuda a resolver isso.
Como mencionado acima, as condições de verdade de uma proposição estão sempre
em outro nível de linguagem. Deverá haver sempre uma proposição que estabelecerá
as condições de verdade (e isso também vale para as condições de validade das
proposições prescritivas) para a emissão da linguagem-objeto. A frase do professor
não tem sentido porque ela própria enuncia as suas condições de verdade. A situação
será diferente se o coordenador do curso entrar na sala de aula e disser: “Tudo o que
o professor acabou de dizer é falso”. Aqui, não há que se falar em autocontradição, já
que o enunciado do coordenador é uma metalinguagem relativa ao enunciado do
professor (linguagem-objeto).

7. A linguagem como constitutiva dos fatos institucionais


Ao final do Capítulo anterior, afirmamos que a linguagem é constitutiva de
todos os fatos institucionais. Sem a linguagem, as instituições sociais não seriam
possíveis. Chegou o momento de explicar a razão para essa assertiva. E, novamente,
vamos nos utilizar da lição de John Searle.

7.1. Fatos dependentes da linguagem e fatos independentes da linguagem.


Pensamentos dependentes e pensamentos independentes da linguagem
Searle escreve que o traço fundamental da linguagem para a criação de fatos
institucionais reside na existência de dispositivos simbólicos, tais como palavras,
gestos etc. Esses dispositivos são simbólicos porque representam (ou simbolizam) algo
além deles mesmos. Nesse sentido, sendo a linguagem constitutiva dos fatos
institucionais, estes contêm elementos simbólicos. Há palavras, símbolos e outros
dispositivos fixados por convenção que significam, expressam ou representam
alguma coisa além deles mesmos, de tal forma que isso é publicamente entendido.
Alguns fatos, para existirem, dependem da linguagem, enquanto outros
independem. “O Palácio do Planalto está situado em Brasília” é um fato que independe
da linguagem. Retire toda linguagem e encontraremos o Palácio do Planalto, caso
resolvamos ir a Brasília. Mas se afirmo que “é verdadeiro que ‘o Palácio do Planalto
está situado em Brasília’ é uma sentença do português”, então faço menção a um fato
que depende da linguagem. Isso porque este último (com a estrutura “p é uma
sentença do português”) precisa de elementos linguísticos para existir.
Além dessa distinção, Searle distingue os pensamentos dependentes da linguagem
daqueles que não dependem da linguagem. Um pensamento independente da
linguagem é aquele que um animal poderia ter mesmo sem os instrumentos
linguísticos necessários para tanto. O Punk, o cachorro que mora comigo, tem
constantemente (quase sempre) o desejo de comer (“fome”). Ele não diz “humano,

39
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

tenho fome”. Ele simplesmente olha para mim na esperança que eu entenda. Para
deixar seu estado mais claro para mim, ele usualmente bate com a pata no pote de
comida vazio. E disso pode derivar outras emoções, como raiva, frustração, tristeza,
dentre outras. Por sua vez, pensamentos dependentes da linguagem são aqueles que
um animal – sem o aparato linguístico necessário – não poderia ter. O Punk não
consegue (ainda) dizer: “é verdadeiro que ‘o Palácio do Planalto está situado em
Brasília’ é uma sentença do português”.
Os fatos institucionais são dependentes da linguagem. Sem ela, não seria possível
Os fatos falarmos em dinheiro, propriedade e direito. É fato que o dinheiro é um pedaço de
institucionais são papel ao qual atribuímos a função de meio de troca. Mas, para que possamos atribuir
dependentes da tal função a esse pedaço de papel, precisamos fazer uma representação mental de que
linguagem. E, para aquele pedaço de papel vale como como meio de troca (dinheiro). Essas
pensarmos sobre
representações mentais (esses pensamentos) são dependentes da linguagem.
estes fatos, também
precisamos de São as regras constitutivas (na forma “X conta como Y, no contexto C”) que nos
linguagem. Por permitem atribuir a um pedaço de papel a função de dinheiro. Para que o termo Y
isso, todos os fatos (função de meio de troca) funcione em relação ao termo X (o pedaço de papel), isto é,
institucionais são
para que tenhamos um fato institucional, é preciso que as pessoas representem esse
ontologicamente
fato como existindo. E, sem a linguagem, isso não é possível. Como você pode ter
subjetivos
percebido, fatos institucionais são ontologicamente subjetivos, embora possam ser
epistemologicamente subjetivos.
Isso também nos mostra que o movimento de X para Y é linguístico, já que, sem as
palavras, sem o pensamento (dependente da linguagem), não temos como
representar um pedaço de papel como tendo a função de dinheiro. E, neste ponto, fica
evidente a natureza constitutiva da linguagem.

7.2. Por qual razão alguns pensamentos são dependentes da linguagem?


A concepção de Searle é a seguinte: os fatos institucionais são dependentes da
linguagem, porque os pensamentos constitutivos dos fatos institucionais dependem
da linguagem. E existem pensamentos dependentes da linguagem por algumas
razões.
Em primeiro lugar, pensamos coisas tão complexas que seria empiricamente
impossível pensá-los sem símbolos. Como poderíamos resolver problemas como “x2 +
2xy + y2 = 20”? Somente conseguimos ter um pensamento matemático porque temos
símbolos destinados a representá-los. De igual modo, os seres humanos precisam de
palavras de classe para representar os pensamentos abstratos. Como poderíamos
pensar “a cada 4 (quatro) anos, serão realizadas eleições para Presidente e Vice-
Presidente”, sem tais símbolos?
Além disso, Searle sustenta que há uma necessidade lógica da linguagem para
representar certos pensamentos. Isso porque o próprio fato é dependente da
linguagem. “Meu aniversário é no dia 17 de fevereiro”. Aqui, precisamos das palavras
(e sinônimos), já que estamos localizando um dia no tempo, dentro de um
determinado sistema de contagem de datas. O Punk, por mais inteligente que seja
40
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

para um cachorro (e ele é!), não tem condições de pensar isso. Ele sequer sabe que seu
aniversário é em todo dia 8 de agosto, porque ele não sabe o que “8”, “agosto” e
“aniversário” representam. Ele não consegue pensar isso, pois não dispõe do aparato
linguístico necessário para tanto.
Em relação aos fatos institucionais (tal como o direito, o Estado e a saga Star
Wars), se retirarmos a linguagem, nada existirá. Se digo que “Joãozinho é um
estelionatário”, o receptor da mensagem concluirá que ele é um “criminoso”. Além
de esse fato gerar outros efeitos (como o dever do Estado de instaurar uma ação penal
e colocá-lo na prisão), sentimentos e outros estados mentais irão aflorar desse fato. As
pessoas passarão a olhar para Joãozinho de forma ruim, passarão a desconfiar de tudo
o que ele fala etc. Agora, retire a linguagem desse fato; certamente, você não
conseguirá pensar isso como um fato. Nada existirá. Isso ocorre porque a linguagem
é constitutiva do fato “Joãozinho é um estelionatário”.

7.3. A linguagem como um fato institucional


Foi dito que fatos institucionais requerem linguagem porque esta é constitutiva
daqueles fatos. Mas fatos linguísticos também são fatos institucionais. Isso não levaria
a um regresso ao infinito ou outra forma de circularidade? Ora, se a linguagem é um
fato institucional, ela também não demandaria linguagem?
A resposta mais simples apresentada por Searle é a seguinte: a linguagem não
requer linguagem porque já é, ela própria, linguagem. A exigência de marcas
linguísticas para os fatos institucionais ocorre porque é preciso haver alguma forma
de convenção para os participantes da instituição marcarem o fato de que o elemento
X tem o status Y. Ora, se não há nada de físico no elemento X que lhe leve a executar
a função Y, então o status deriva unicamente do acordo coletivo. E como propriedades
deônticas (direitos, poderes etc.) não são coisas físicas, o status não pode existir sem
dispositivos simbólicos. A linguagem existe justamente para ser esse dispositivo
simbólico (tais como sons e marcas num papel). Esta é a razão para a sua existência.
Aqui, vale destacar novamente a seguinte ideia: o movimento do termo X para
a função de status Y é linguístico, requerendo pensamentos dependentes da
linguagem. Por isso, afirma Searle, o movimento do fato bruto para o fato
institucional é linguístico, já que o termo X passa a representar algo além dele mesmo.
Apenas com base nos aspectos físicos de X não é possível atribuir o status Y. Sem a
linguagem, é possível que um pedaço de madeira possa ter a função de banco; mas,
sem a linguagem, um pedaço de papel não pode ter a função de dinheiro (meio de
troca).
Este movimento linguístico (de X para Y) apenas existirá se for coletivamente
representado como existente. Se eu utilizar um papel e escrever “Vale 100 Reais”,
certamente as demais pessoas não irão aceitá-lo como dinheiro (eu já tentei). Elas
apenas aceitariam como dinheiro o pedaço de papel que possui determinadas
características. Essa representação coletiva requer um veículo: a linguagem.

41
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

A linguagem (o termo X), portanto, tem a função de constituir os fatos


institucionais (o termo Y). E ela é um fato institucional que possui ainda outras
funções.
 A linguagem é epistemologicamente indispensável. Quando estamos diante de
uma mesa, é possível identificar suas funções causais com base em sua
estrutura física (mesas são usadas para colocarmos outras coisas em
cima). Contudo, em relação a certos objetos – como dinheiro, professores,
advogados, economistas etc. –, não é possível identificar sua função tendo
em vista suas características físicas. A linguagem se faz aqui necessária
para rotulá-las. Formas simbólicas são, aqui, necessárias.
 Os fatos institucionais – por serem sociais – devem ser comunicáveis. Para que
o sistema funcione, é preciso que as pessoas possam comunicar às outras
que alguém é marido de outra, é professor de uma universidade, é
presidente de uma empresa etc. E o meio para comunicar é a linguagem.
 Os fenômenos institucionais são, na vida real, bastante complexos, sendo que sua
representação requer linguagem. Este aspecto já foi destacado quando
fizemos menção ao primeiro dia de aula de um estudante de direito. O
simples fato de pegar um ônibus envolve inúmeros níveis institucionais
(como o fato de a empresa de ônibus ser uma concessionária, de o
cobrador e o motorista estarem numa relação de trabalho com tal empresa
etc.). Logo, como a estrutura desses fatos só é existente enquanto
representado pelas pessoas, é preciso um sistema complexo de
representação, isto é, a linguagem.
 Os fatos institucionais persistem ao longo do tempo independentemente dos
desejos dos participantes da instituição. A existência de uma instituição
depende de um meio de representação dos fatos que independe dos
estados psicológicos primitivos e pré-linguísticos dos participantes. Esse
meio de representação é linguístico.

8. O direito como fato institucional e sua linguagem


Este e o anterior têm sido duros. É muito provável que tenha sido a primeira
vez que você leu algo sobre ontologia social e linguagem. E esses são temas muito
complexos, apesar da nossa tentativa de expor da forma mais simples possível.
Ainda que um pouco complexo, você já deve ter chegado a algumas conclusões:
 O direito é uma realidade social que integra a categoria das instituições
sociais. Logo, existe um sistema de regras constitutivas (com a estrutura
“X conta como Y no contexto C”) – e que é diferente de outras instituições
sociais (como a família, a moral, a religião, a política etc.) – a que
chamamos “direito”.
 Além disso, por se tratar de uma instituição social, o direito cumpre uma
ou mais funções. Estas foram atribuídas por força de uma decisão
humana, em razão do uso da nossa intencionalidade coletiva (que nada

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
André Luiz Freire

mais é do que um resultado da nossa consciência, que é um dado


biológico). Logo, é possível ligar o direito a um dado biológico, a um fato
bruto. Por isso, nossa teoria ontológica é realista.
 Além disso, a criação e a manutenção de uma instituição social chamada
“direito” depende da aceitação ou reconhecimento social. Enquanto os
participantes desta instituição representam o direito como existindo (e
precisam da linguagem para isso), o direito permanecerá como
instituição.
 O direito, enquanto instituição social, tem na linguagem um dos seus
elementos constitutivos. Sem a linguagem, não é possível haver “direito”,
seja sob a perspectiva ontológica, seja sob a perspectiva epistemológica.
 Como qualquer fato institucional, o direito é um fato complexo.
 No direito, é possível encontrar uma linguagem prescritiva. Ora, se o
direito nos obriga a fazer coisas que não queremos (como pagar tributos),
está claro que ele possui uma função diretiva.
 Os juristas, ao falarem sobre o direito, estão no nível da metalinguagem
(descritiva ou diretiva) sobre uma linguagem-objeto (a que chamamos
“direito positivo”).
Embora essas conclusões já sejam úteis para que possamos identificar um
fenômeno como “direito”, ainda não está claro quando um certo fenômeno poderá
ser chamado como tal. Quando um dado sistema normativo (termo X) poderá ter o
status de “direito” (termo Y)?
Antes disso: se o direito é uma instituição social, ele possui uma função agentiva
a que nós, por convenção, atribuímos a ele. Que função (ou funções) é (são) essa(s)?
É o que vamos estudar no próximo Capítulo.

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