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Os animais têm linguagem?

Parte 01: Introdução e principais conceitos


É bem comum que, em discussões com psicólogos evolucionistas e com biólogos, os
linguistas sejam taxados de anti-evolucionistas por acreditar que humanos são especiais e
que os primatas não-humanos não possuem linguagem. Esse post vem tratar desse assunto
e mostrar que, na grande maioria das vezes, essa afirmação não passa de ruído
terminológico (o que não quer dizer que a discussão não é válida, como veremos nos
próximos posts).

É normal que as pessoas tenham uma noção geral de alguns conceitos no dia a dia e essas
mesmas palavras sejam usadas com um significado mais específico em pesquisas
científicas. Também é relativamente comum que diferentes áreas usem o mesmo termo
com significados diferentes. Um exemplo é o conceito de calor, que usamos nos dias de
verão ou quando encontramos alguém muito querido e o abraçamos (calor humano).
Porém, em termodinâmica, o conceito de calor é basicamente a troca de energia
térmica, independente de temperatura.

Então é errado usar o termo calor como usamos em conversas cotidianas? Não! O que é
errado é tentar entender termodinâmica usando esse conceito.

Eu sei que o objetivo da Divulgação Científica é ser mais geral. Algumas vezes, porém, é
necessário esclarecer alguns termos como forma de acabar com mal entendidos. Então
vamos lá:

1. Comunicação, Linguagem, Língua e Fala: um pouquinho de chatice


terminológica
Vou dar alguns conceitos que podem não ser universais dentro da Linguística, mas ao
menos é a forma como a maioria das abordagens tratam de cada um desses termos. Se
quiser uma explicação mais detalhada, você pode acessar o post roteiro de minha fala no
Pint of Science 2017, ou o Spin de Notícias #118 onde falo pela primeira vez sobre o tema.

Comunicação:
Qualquer tipo de troca de informação. Pode se referir à comunicação, humana, a de outros
animais ou até mesmo a comunicação entre computadores;

Linguagem:
O objeto de estudo da linguística é a comunicação humana. Por mais que linguistas possam
se interessar pela comunicação de outras espécies, o estudo desses sistemas de
comunicação será comparativo. O linguista que estuda os animais busca compreender as
diferenças da comunicação humana para as outras que existem na natureza. Assim,
convencionou-se chamar essa forma de comunicação de “Linguagem”;

Línguas:
Apesar de a linguística usar o termo linguagem para se referir à comunicação dos humanos,
essa comunicação pode se concretizar através de diferentes formas. Existem diversos
sistemas de regras lógico-estruturais de formação de palavras (morfologia), de frases
(sintaxe), do som (fonética/fonologia), etc. Observe que língua e linguagem não são
sinônimos;
Fala:
O último dos termos que nos serão importantes aqui é a Fala, que é somente o meio pelo
qual transmitimos essas línguas, da mesma forma como os sinais manuais são o meio de
transmissão das línguas sinalizadas. Novamente, observe que fala e linguagem não são
sinônimos.

Repare que, seguindo essa terminologia, não é possível dizer que chimpanzés e outros
primatas tenham linguagem. Isso independe de suas capacidades comunicativas, do
conhecimento de uma ou de outra área da ciência ou de achismo. Se trata simplesmente da
definição terminológica. De todo modo, independente de terminologia, podemos revisar e
questionar os achados científicos sobre as diferentes formas de comunicação existentes na
natureza, como faremos a partir da seção seguinte.

2. Comparações com outros animais


Algumas áreas da linguística como a Biolinguística, Neurolinguística Experimental e a
Psicolinguística possuem relações estreitas com a Biologia e com a Psicologia Cognitiva e
Evolutiva. Através de seus achados é possível ter base de comparação da comunicação
humana com a comunicação de outras espécies. Vejamos alguns exemplos (subseções
baseadas nesse post):

2.1 Comunicação dos insetos


Diversos insetos, como as formigas, conseguem transmitir informação através de sinais
químicos. Mesmo entre os animais, além da comunicação pela via auditiva, a
comunicação de alguns aspectos da vida por via química ainda é bem marcante. Já as
abelhas possuem uma dança milimetricamente calculada capaz de informar a posição
do alimento para suas companheiras. Esta dança leva em consideração fatores ambientais
como a distância e a posição do sol. Se estudarmos toda a biodiversidade e suas formas de
comunicação, provavelmente encontraremos sistemas cada vez mais impressionantes de
comunicação.

2.2 Comunicação de primatas


Vocalizações
Primatas não humanos têm vocalizações que geralmente se dividem no tripé da vida:
alimentação, sobrevivência e reprodução. Dentre estas três categorias, é possível encontrar
uma variação nas vocalizações referentes a subcategorias. Por exemplo, se a comida é
comum ou rara, ou se o perigo vem pelo alto (ex. aves de rapina), por terra (ex. onças) ou é
rasteiro (ex. cobras). A forma da vocalização muda completamente o comportamento do
grupo, que pode fugir subindo ou descendo das árvores. Isso indica que estas variações
na informação são relevantes para a comunicação. Além disso, as variações ou são
razoavelmente bem compreendidas por outros grupos da mesma espécie, ou usam
uma mesma forma para novas funções.

A forma de comunicação dos primatas não-humanos também é bastante complexa e nós,


como humanos, não conseguimos compreender de ouvido e também não existem cursos
de ‘língua chimpanzé’ ou de ‘língua gorila’. Pra compreender essas formas de comunicação
precisamos passar algum tempo explorando o seu comportamento, gravando as
vocalizações e comparando-as através de softwares, de forma semelhante as do filme “A
Chegada” com o heptápode. Se nossa forma de comunicação fosse igual ou se a
comunicação humana fosse apenas mais complexa, não haveria razão para termos
dificuldades de compreedê-los.

Comunicação Gestual
Além das vocalizações, chimpanzés e outros grandes primatas possuem uma complexa
comunicação gestual. E embora os primatas de diferentes grupos em diferentes localidades
compartilhem o mesmo repertório de vocalizações (inatos e estruturas muito diferente das
línguas humanas), o repertório de expressões faciais e gestos podem ser inventados ao
ponto de termos diferenças menos sutis entre diferentes grupos da mesma espécie. Além
disso, as expressões manuais como apontar para objetos e as expressões faciais também
possuem diferenças menos sutis entre primatas humanos e não-humanos. Mas, para a
linguística, esse tipo de comunicação não está no centro das pesquisas ou, em outras
palavras, não é, exatamente, linguagem. Algumas áreas irão chamá-la de comunicação não-
verbal mas repare que essas expressões são diferentes das línguas de sinais, consideradas
verbais por terem estrutura lógica iguais as das línguas orais.

2.3 Comunicação de humanos


Entre humanos como grupo social, podemos dizer que todos nós compartilhamos a
capacidade de comunicação através de sons estruturados e composicionais. Estes sons se
diferenciam uns dos outros através de pequenas variações dotadas de sentido (compare a
diferença entre: [b]ia, [d]ia, [p]ia, [t]ia, [ch]ia, [r]ia, [v]ia, [l]ia etc). Apesar disso, nem todos
compartilham a mesma língua, nem as mesmas formas com novos sentidos como parece
acontecer em primatas. A comunicação humana através de linguagem pode ser
impraticável se um falante de Karajá tentar se comunicar com um falante de Maori usando
apenas suas línguas maternas. Se a necessidade e insistência forem grandes, porém, é
possível que os indivíduos criem uma língua de contato.

2.4 Comunicação Primata: Humanos vs. Não-Humanos


Aspectos Linguísticos
Repare aqui que, caso os linguistas não acreditassem que outras espécies não têm
comunicação complexa (“linguagem” no sentido do senso comum), não haveria razão para
seu interesse nessas formas de comunicação. A diferença da “linguagem” (agora no sentido
dos linguistas) e da comunicação de qualquer outro animal, é que cada espécie possui sua
própria forma de comunicação, que evoluiu ao longo do tempo. Nós sabemos que as
diferentes espécies primatas, incluindo os humanos, se distanciaram umas das outras ao
longo de milhões de anos. Seria necessária muita boa vontade para acreditar que a
comunicação dessas espécies também não se distanciou ao longo de tanto tempo.

Repare também que é possível então dizer que a comunicação vocal de chimpanzés é inata
por não variar dentro da espécie, embora seu uso possa ser ligeiramente variável. Porém, no que
diz respeito à linguagem humana, só é possível dizer que a capacidade de aprender e usar uma
língua (linguagem) é inata, mas as línguas em si são fruto do contexto sócio-histórico da
comunidade que a usa.

Por outro lado, a comunicação gestual dessas espécies parece ser mais aberta a variação e
criatividade, embora ainda não variem tanto quanto as línguas humanas.
Aspectos biológicos
Há trabalhos que comparam diferentes aspectos da comunicação primata não-humana,
incluindo estudos neurocientíficos. Em aves, quanto maior o cérebro maior o número de
pios. Em primatas, porém, a diferença está nas estruturas cerebrais envolvidas com a
comunicação. E se compararmos com a comunicação humana, existe uma região cerebral
chamada LMC (Cortex Motor Laringeal) que é relacionada à aspectos da comunicação.
Caso danificada, essa estrutura causa perda de comunicação oral em humanos, que
mantém apenas as vocalizações inatas como choro, riso e gritos de dor. Por outro lado,
danos nessa área do cérebro em primatas não-humanos não resultaram em qualquer
modificação aparente na comunicação dessas espécies segundo as pesquisas. (KUMAR &
SIMONYAN, 2018).

3. Pra finalizar… só que não…


Com essas informações já é possível responder a pergunta do título: Os animais têm
linguagem?

Assim como no exemplo da termodinâmica, se pensarmos em linguagem o senso comum,


todos eles têm algum tipo de comunicação. Não apenas os primatas, mas também
golfinhos, baleias, pássaros e, com boa vontade, até seu cachorro. Por outro lado, se
pensarmos no significado técnico da linguística, hoje, apenas os humanos teriam linguagem
simplesmente por… bem, fazer parte da própria definição do termo.

Seriam os pesquisadores das emoções anti-termodinâmica?


Isso não significa que os linguistas são cabeça dura e que achem a comunicação humana
melhor que a dos outros animais (ok, às vezes quer dizer sim, mas isso é papo pra outra
série =P ). É pura definição terminológica dentro de uma área da ciência. Linguistas
pesquisam sobre a comunicação humana e chamam de linguagem. Nada impede que um
biólogo estude a comunicação dos golfinhos a também a chame de linguagem. E quem vê
as duas áreas de pesquisa vai reparar que quando o biólogo dos golfinhos falar sobre
linguagem, (quase) nada terá a ver com a humana, e vice-versa (a não ser algumas
comparações superficiais). Da mesma forma, alguém que pesquisa aspectos psicológicos do
calor humano dirá coisas bem sensatas que (quase) nada tem a ver com termodinâmica. Só
não podemos dizer que o psicólogo das emoções humanas são anti-termodinâmica por não
considerarem as trocas físicas de energia térmica entre dois corpos.

Ainda assim, o estudo das linguagens (formas de comunicação) animais podem nos trazer
bons pontos de comparação para compreender as nossas próprias capacidades e evolução,
e esse é um dos caminhos da Biolinguística.

Podemos recorrer à decisão do juiz!


E o tema não acaba aqui. É comum recorrermos aos argumentos do ensino de línguas de
sinais aos primatas não humanos. Outro argumento recorrente é que se a anatomia dos
chimpanzés e dos bonobos não fosse tão diferente da dos humanos, seria possível bater
um papo com a riqueza com que conversamos com algumas crianças [1 (Canal do Pirula) e
2 (Podcast Alô Ciência) – vale ressaltar que confio nas duas fontes, embora ninguém seja
isento a preconceitos epistemológicos, ao menos não antes de uma boa conversa =)].
Artigo/Livro citado sobre comparação da comunicação primata humana e não-
humana
KUMAR; Veenea; SIMONYAN, Kristina. Evolution of the Laryngeal Motor Cortex for Speech
Production, In: Boë et al. eds. Origin of Human Language: Continuities and
Discontinuities with nonhuman Primates – Speech Production and Perception Vol.
4.Peter Lang, 2018.

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