Você está na página 1de 6

BOLETIM DO CEIB Belo Horizonte, Volume 19, Número 61, julho/2015

EDITORIAL A CRUZ E CRUCIFIXOS EM ACERVOS MINEIROS


Com muita satisfação, apresentamos,
nesse número 61 do Boletim do Ceib, Adalgisa Arantes Campos*
artigo de Adalgisa Arantes Campos, Foto: Beatriz Coelho
sócia fundadora do Centro de Estudos
da Imaginária Brasileira, doutora em
História Social pela Universidade de
São Paulo (1994) e profa. titular do
Departamento de História da UFMG.
A preparaçãqo para a realização do IX
Congresso Internacional do Centro de
Estudos da Imaginária Brasileira está
bem adiantada e já contamos com o
patrocínio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes) e estamos aguardando
resposta da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp) e do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
Teremos quatro importantes
conferências: do Prof. Dr. Joaquim
Garriga Riera, catedrático
em História da Arte Moderna da
Universidade de Girona, na Espanha;
Profa. Dra. Gabriela Siracusano,
Pesquisadora do Conselho Nacional
de Pesquisas Científicas e
Figura 1 - Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana, Minas Gerais.
Tecnológicas (Conicet) e docente da
Universidade Nacional San Martín,
Argentina; Prof. Dr. José Manuel
Alves Tedim, do Departamento de O acervo e o objeto em estudo: a Cruz mesa do altar, são facilmente removidos e
Turismo, Patrimônio e Cultura, da e o Crucifixo acabam por se tornar alvos dos ladrões de
Universidade Portucalense e do Prof.
Dr. Percival Tirapeli, Titular no obras sacras. Assim, eles chegam com
Recentemente obtivemos a facilidade às coleções privadas sob o
Instituto de Artes da Universidade
aprovação do projeto de pesquisa ‘Os argumento de que seriam oriundos de
Estadual Paulista (UNESP).
crucificados na imaginária do barroco oratórios e capelas de culto doméstico.
Teremos também três mesas redondas luso-brasileiro: acervos mineiros’ pela
com a participação de conhecidos Fundação de Amparo à Pesquisa Estado Denomina-se Crucifixo de pousar a
profes-sores: 1- A imaginária de Minas Gerais (Fapemig). O texto a imagem do crucificado que tem uma base ou
devocional: primeiros tempos. Prof. Dr. seguir constitui uma abordagem
André Luiz Tavares Pereira (Unifesp), pé e assim constitui um bem móvel. Como a
preliminar a ser burilada diante da quantidade de Crucifixos de pousar é bem
Prof. Dr. Benedito Lima de Toledo (FAU/
USP), Prof. Dr. Carlos Alberto Cerqueira observação mais atenta do acervo em superior ao acervo de imagens do culto
Lemos (FAU/USP); 2- Conservação e estudo. santoral e mariano, muitas vezes eles foram
restauro em acervos paulistas. O Museu Arquidiocesano de esquecidos pelo estudioso da arte. A
Restaurador Júlio Moraes, Profa. Ms. Mariana (FIG.1), e o de Arte Sacra de São expressão numérica de crucificados se
Marcia Mathias Rizzo (PUC/SP); 3- justifica pelas seguintes razões:
João del-Rei (FIG.2) situados em Minas
Imaginária: História, Teologia e Arte.
Prof. Dr. Luciano Migliaccio (FAU/USP); Gerais, possuem expressivos exemplares a) O Crucifixo constitui o “elemento
Prof. Dr. Mario Henrique Simão de crucifixos, boa parte oriunda dos iconográfico mais importante, e o único
D’Agostino (FAU/USP) Profa. Dra. templos dos respectivos bispados, tendo obrigatório, pois representa e rememora a
Maria Ângela Vilhena Moraes Furquim em vista que as duas cidades se Paixão de Cristo e sua vitória sobre a morte.
de Almeida (PUC/SP). constituem como sedes de arquidioceses. Jesus teve existência histórica, a divindade
Contamos com a participação do maior Tais objetos muitas vezes foram e ainda se fez carne: Em razão disso o corpo humano
número possível de sócios e de pessoas ficam no Museu, depositados por motivo de Jesus Cristo pode ser representado”.1 Não
que atuam na área. de segurança, pois não sendo afixados à se trata apenas da invocação fundamental,
2 Belo Horizonte, Volume 19, Número 61, julho/2015 BOLETIM DO CEIB
Foto: Vanessa Taveira
livro registra, ano após ano, o patrimônio
móvel da Sé (bens da fábrica da catedral)
inaugurado com a banqueta completa de
prata lavrada, à moda italiana, doada por
D. João V, para suprir a falta de
ornamentos da nova catedral. No
manuscrito há separação dos
ornamentos completos a partir de suas
cores (branco, verde, roxo, dourado,
encarnado), da prataria, dos livros e das
imagens. Nele há menção à cruz
processional com imagem de crucificado
de prata, que servia aos acom-
panhamentos, com o peso de 14 marcos
e duas onças; outra cruz processional
de 20 marcos e três onças; uma cruz
grande do altar-mor com seu pé e com
Santo Cristo em prata lavrada, de 83
marcos e seis onças (com seis castiçais
respectivos, é a banqueta enviada por
D. João V); uma cruz grande com seu
Crucifixo de “pao” (madeira);5 uma cruz
peitoral 5 de ouro com “trancelim de
Figura 2 - Museu Arquidiocesano de São João del-Rei, Minas Gerais. retrós”, de uso do bispo; à manga da cruz
de renda, 6 assim como a um “coxim”
(almofada) de veludo roxo com franjas e
garantia da salvação, mas também a mais inteira (pedestal e cruz com Jesus borlas de ouro e ao tecido de damasco
querida entre os cristãos: crucificado). A prescrição “em redondo” para cobrir o dito coxim e nele se colocar
quer dizer que em três dimensões como o pequeno Crucifixo para oração da
A cruz revela-nos um Deus
requer a arte da escultura. Adverte-se que Cruz, 6 na Sexta-feira da Paixão. A
transcendente, mas próximo; um Deus
que quis vencer o mal com sua própria
a confecção seria na ausência de modelo referência à “imagem de Cristo de marfim,
dor; um Cristo que é juiz e Senhor e, ao para observação, o que levaria o escultor com cruz de galhos, que se acha na
mesmo tempo, servo que quis entregar- a se basear nas obras já vistas na vida sacristia” nos permitiu identificar a
se totalmente; imagem plástica do amor cotidiana ou mesmo nas estampas de imagem.
e da condescendência de Deus; um Cristo missais ilustrados3 ou mesmo imaginadas
que, em sua páscoa-morte e ressurreição, a partir das narrativas dos quatro O documento em foco arrola
deu ao mundo a reconciliação e a nova evangelhos. apenas as peças de alçada da
aliança entre a humanidade e Deus. 2 administração da catedral, deixando de
(grifos nossos) Nosso estudo se baseia nos fora aquelas que pertenciam às
exemplares dos sobreditos museus, irmandades coevas. Presume-se que no
b) Segundo a legislação acrescentando-se, ainda, aqueles caso de a irmandade ficar inativa, seus
diocesana, o altar-mor e os altares laterais provenientes das banquetas4 dos altares bens acabavam sendo cuidados pela
devem expor imagens de Cristo e de sua laterais da Catedral de São João del-Rei, fábrica paroquial. Há menção à cruz e à
sagrada cruz (Constituições Primeiras do que, surpreendentemente, continuam almofada usadas na cerimônia da
Arcebispado da Bahia, 1707, título XX, expostos à veneração, graças ao intenso Adoração da Cruz feita às 15 horas da
parágrafo 696). A imagem poderia ser fixada fervor devocional e à longevidade de suas Sexta-feira da Paixão.
ou mesmo móvel. O relevante é atender ao irmandades. Na Catedral de Mariana,
princípio de não duplicar imagens em um entretanto, as mesas de altares estão A incursão ao interessante
mesmo altar, bastando, portanto um despojadas de suas banquetas primitivas. manuscrito revela a presença de cruzes,
exemplar sobre a mesa do altar, sacrário ou Crucifixos e acessórios aludidos
mesmo nos degraus do trono. Como historiadora participei dos consoantes ao tempo litúrgico em
trabalhos de revitalização do Museu de questão, demonstrando que tais objetos
c) Na Época Moderna (1500- Arte Sacra de São João del-Rei, em 2010, o nem sempre eram expostos à veneração
1800) a confecção de um crucifixo era que me permitiu conhecer de perto o sem adornos e vestimentas, e que há uma
matéria de exame pelas câmaras municipais acervo. Nas ocasiões em que ministrei distinção entre a cruz e o crucifixo que é
ao aspirante à categoria de oficial de cursos na Faculdade Arquidiocesana de a imagem de Cristo Crucificado6, embora
escultor/imaginário: “E o que se quiser Mariana, aproveitei para pesquisar as ambas sejam alvo da devoção.
examinar de imaginária ou escultura de fichas de inventários do Museu.
madeira, fará um Cristo de três palmos de A precedência do Crucifixo no altar: a
comprido posto na cruz com seu calvário” Esclarecido nosso objeto de legislação sinodal
[...]“fará mais uma imagem de Nossa estudo, sua abragência e relevância,
Senhora, o Menino Jesus no colo, a qual cuidemos agora do Livro de Inventário de A imaginária religiosa
será do mesmo tamanho de Cristo lavrada Alfaias da Sé Catedral de Mariana, 5 compreende as representações da
toda em redondo”.2 O palmo contem 22cm, manuscrito iniciado com a instalação do Santíssima Trindade, de Jesus Cristo e
de modo que os três palmos referidos Bispado em 1748, com Dom frei Manoel da sua cruz, de Nossa Senhora, dos
resultam em 66cm, compreendendo a obra da Cruz, seu primeiro prelado. O precioso santos, dos coros angélicos e dos
BOLETIM DO CEIB Belo Horizonte, Volume 19, Número 61, julho/2015 3
mistérios que são venerados e honrados médias ou da própria elite. Esses Se a representação do Calvário incluir
pelos católicos. A cristandade latina rebaixamentos decorrentes do Nossa Senhora, São João Evangelista (e
privilegiou as esculturas, enquanto o desconhecimento da doutrina ou até mesmo Maria Madalena) é costume
Oriente difundiu durante séculos os ícones mesmo da intimidade excessiva com os a denominação “calvarinho”. Essa
bidimensionais (imagens pictóricas). A santos e com a divindade foram iconografia refere-se ao Evangelho de
imagem é uma representação sensível - com frequentes nos dois primeiros séculos João que não deixou Cristo sozinho no
forma, suporte, materiais e técnica - da da colonização9. Calvário, confortando-o com a presença
realidade invisível, ou seja, do sagrado. Ela da Mãe, do discípulo amado e das santas
apresenta atributos e adereços que auxiliam A hierarquia inerente à Igreja mulheres (Jo 19,25-26). A título de
na determinação daquela invocação Triunfante deveria ser reconhecida na exemplo, podemos citar o oratório da
específica e deve ser tratada com decoro e apresentação das imagens no templo, sacristia do Pilar de Ouro Preto que já
reverência. que não era aleatória e nem ficava à perdeu a figura de São João Evangelista;
mercê da veneração do paroquiano. As outro completo do Museu Regional de
O culto dos santos tem destaque
Constituições Primeiras do São João del-Rei, bem como o precioso
na liturgia da Igreja Católica, ora traduzido
Arcebispado da Bahia, legislação Calvário do Museu Mineiro em Belo
sob a forma de veneração (veneratio), e/
sinodal de 1707 dotada do ideário Horizonte, em terracota modelada,
ou invocação (invocatio). Contudo, a graça
reformado colocam: dourada e policromada, embora com as
não é dada pelo santo, mas sob a sua
quatro figuras, mãos e pernas do Cristo
intercessão (intercessio) junto a Deus. Os E no que toca á preferência dos lugares, danificadas.9
santos, por pertencerem à “Igreja que si devem ter nos Altares,
Triunfante”, vivem em comunhão com Deus declaramos, que as Imagens de Christo
Desenho de Mirella Spinelli
e podem interceder por seus devotos que nosso Senhor devem preceder a todas,
os invocam da “Igreja Peregrina”. e estar no melhor lugar; e logo as da
Compreende-se como Doutrina da Virgem Nossa Senhora; e depois a de
Comunhão dos Santos a coesão espiritual S. Pedro Príncipe dos Apóstolos: e que
a do Patrão [santo patronímico], e
obtida por meio do corpo místico da Igreja
Títulos da Igreja terá o primeiro, e
composto pelas três igrejas: a Peregrina ou
melhor lugar, quando no mesmo Altar
Militante, a Padecente (Almas do não estiveram Imagens de Christo
Purgatório) e a Triunfante. nosso Senhor, ou da Virgem Nossa
Na prática religiosa da baixa Idade Senhora... (título XX, parágrafo 696,
Média a imitatio, isto é, seguir o exemplo grifos nossos).
de Cristo, foi sendo preterida em favor da As imagens são veneradas
invocatio: “Na consciência do povo o pelo que elas representam e não pelas
santo, cada vez mais, passou de intercessor suas características imanentes, o que
a auxiliador”.8 A Reforma tentou conter o seria idolatria. Entretanto a Deus, ao
apreço dado a uma rede interminável de Cristo redentor e ao Lenho da cruz
intercessores. Lutero afirmava a imitatio, reserva-se a “latria” justificando-se
mas rejeitava a invocatio; Calvino refutava assim, a existência da cerimônia de
absolutamente o culto aos santos; Zwinglio Adoração da Cruz na Sexta-feira Maior,
aboliu radicalmente as peregrinações, o pois, da cruz, objeto de martírio, pendeu 1 - Peanha
2 - Stipes
culto aos santos e às relíquias. A reforma a salvação do gênero humano 3 - Patíbulo
católica teve que travar uma luta bifronte: (Constituições Primeiras do 4 - Ponteiras
de um lado os protestantes com a Arcebispado da Bahia, Título VII, 5 - Resplendor
6 - Supedâneo
perspectiva iconoclasta, de outro, os parágrafo 19). Fora do período
abusos dos católicos com aquela tendência quaresmal, a cruz é adorada com ritos
em 3 de maio (Invenção da Cruz), 16 de Figura 3 - Partes de uma cruz.
visceral a ter muita intimidade com o
sagrado: “Jamais uma doutrina humana julho (Triunfo da Cruz) e em 14 de
aproximou, de fato, tanto como o setembro (Exaltação da Cruz)9. Dessa Em seguida, temos a Cruz, que
cristianismo, Deus e o homem; nenhuma, devoção surge o costume de se consiste em duas peças – uma vertical e
aliás, o teria podido” (...) “Em suma, o enfeitar as cruzes com papel colorido.9 outra horizontal – que são encaixadas uma
dogma do homem-deus tornou os cristãos na outra. A haste vertical (stipes) era
insolentes. É um pouco como se Deus O Crucifixo e suas partes enterrada como um poste fixo no Monte
tivesse sido demasiado fraco... por excesso Calvário,9 à espera dos condenados que
O Crucifixo é composto chegavam sustentando a parte móvel
de concessões.” 7
basicamente de três partes e de alguns (horizontal) ou patibulum. O supliciado era
acessórios (FIG.3): pregado pelos punhos e pelos pés, o que
Como abusos no contexto da
Primeiro temos a peanha ou base: levava à morte por asfixia. Por sua vez, os
religiosidade colonial poderíamos citar a
aparece simulando o Calvário; um trono artistas, por uma questão de gosto,
retirada do Menino Jesus das imagens de escalonado com a base retangular,
Santo Antônio, com o intuito de se obter preferiram representar a cravação na palma
trono com formato piramidal ou uma
marido, os inúmeros desacatos à cruz e a simples base. Os Crucifixos de das mãos. O termo stipes significa “tronco
ridicularização do Senhor dos Passos, dependurar, de fixar ou de apoiar às de árvore, estaca e ainda estaca pontiaguda.
feitos não tanto pelos negros, mas, paredes não necessitam de base de Era a esta parte que, primitivamente, se
sobretudo, por elementos das camadas apoio. dava o nome de cruz. [...] O significado da
4 Belo Horizonte, Volume 19, Número 61, julho/2015 BOLETIM DO CEIB

palavra “cruz” estendeu-se, em seguida, (Iesus Nazarenus Rex Iodeorum) ou pendida sobre o peito, geralmente do
ao conjunto dos dois paus ajustados um “JNRJ” (Jesus Nazarenus Rex lado direito. Por ser a modalidade
ao outro”.8 As obras artísticas tenderam Judeorum). 13 Há também acessórios frequente é nomeado genericamente
a aumentar o tamanho da cruz: “A finales artísticos em madeira, prata e ou mesmo como “Cristo Crucificado”. Se o Cristo
de la Edad Media la cruz se vuelve em ouro como: o resplendor envolvendo está morto, tudo já foi consumado (Jo
desmesuradamente pesada, su carga es total ou parcialmente Cristo ou apenas sua 19,30). Ele pode estar morto sob duas
cada vez más aplastante, para apiadar cabeça; as ponteiras ou terminais nas maneiras: segundo os evangelhos
a los fieles con los sufrimientos del extremidades no formato de folhas e sinóticos que realçam os aspectos
Redentor”. 9 Nas obras artísticas pode flores. Por vezes aparece o coração humanos e factuais, enquanto o
aparecer o supedâneo, espécie de consolo trespassado da Virgem no stipes evangelho joanino glorifica o Cristo que
colocado para apoio dos pés. destacando que Maria é corredentora com tem onisciência e assumiu o amor até o
a Salvação. fim e, portanto se fez soberano em sua
Paixão e Morte: “Na cruz, Ele surge
E finalmente, o mais importante, o entronizado. Deus-Homem e Homem-
Crucificado que é a representação Deus” 13. Essa subdivisão da obra a partir
humana do Cristo na cruz, presente na da fonte bíblica merece um estudo
iconografia a partir do século V: “Hasta interdisciplinar à parte.
mediados del siglo XI, Cristo en la cruz Foto: Adalgisa Arantes

está representado vivo, con los ojos


abiertos.”12 A partir do século XI começa
a ser representado com os olhos cerrados,
morto de fato, com a cabeça pendendo
sobre o ombro direito e o corpo
flexionado, perdendo por completo a
majestade anterior.
A partir dessa extraordinária
revolução iconográfica, por vezes
sintonizada com a mística contemporânea
(dolorismo de Santa Brígida e de São
Bernardo), o Crucificado foi representado
em diversos estilos artísticos, mas sempre
pregado na cruz, com três cravos desde o
século XIII, e com os braços bastante
Figura 4 - Alguns tipos de Cruz. abertos numa alusão à salvação da
humanidade. Réau adverte sobre a
No Ocidente Cristão a cruz variação da posição dos braços
assumiu uma incrível variedade de formas, (amplamente abertos ou fechados),
destacando no século VI a cruz grega (+); aspecto que não aprofundaremos no
nos séculos XI até à Renascença com a momento. A coroa de espinhos, signio de
versão em T (tau) (FIG.4): “Os primeiros escarnio mais do que instrumento de
Crucifixos (V e VI séculos) serão imagens tortura, não é representada siste-
triunfantes de Jesus Cristo vivo, maticamente 13 . Essa coroa também só
colocadas diante da cruz. Somente na apareceu na baixa Idade Média e em Figura 5 - Senhor do Bonfim.
Idade Média é que se desenvolveria a muitas obras ela foi preterida ou até Madeira esculpida e policromada, com
imagem e o culto da Paixão, a ideia mística mesmo perdida por ser avulsa e muito incrustações em marfim.
da Compaixão” (...). “No século XVII, frágil. Por uma questão de decoro e não Museu Arquidiocasano de Mariana.
porém em todos os países, a cruz latina de verdade histórica, o Cristo não é
prevalece; geralmente muito elevada, em representado totalmente nu, mas com o b) Passemos então ao Cristo
composições pomposas e grandilo- perizônio (perizonium) cingido por uma Crucificado, mas ainda vivo e
quentes [...].”1 Além de formatos diversos, ou duas cordas, com arranjos complexos. presumivelmente pronunciando algumas
o tratamento pode variar desde cruzes com A partir desses elementos, temos as palavras, o Cristo da Clemência ou
incrustações de lâminas de madrepérolas modalidades iconográficas abaixo que Misericórdia (FIG. 6). Sua cabeça está
de fatura indo-portuguesa12, até aquelas poderão ser enriquecidas com estudos pendida, os olhos semiabertos dirigidos
lisas com ou sem molduras, e mesmo as posteriores. Enriquecemos aqui a tipologia para a base da cruz, isto é, simbolicamente
que imitam os troncos de árvores (lignum colocada pelo Catálogo do Museu para a humanidade que foi salva. Se tiver
vitae), para sugerir a árvore da vida.13 Mineiro, cotejando as vertentes as presenças de Maria e de João
iconográficas com as palavras ditas por Evangelista, é pertinente a fala: “Mulher,
A haste vertical ou stipes Jesus no Calvário, segundo o Evangelho aí está teu filho Aí está a tua mãe...” (Jo
comporta, logo acima da cabeça de Jesus, de João e dos sinóticos. 13 19, 26). A partir de então Maria torna-se a
o titulus (dístico, cartela, tabuleta ou mãe da humanidade, da Igreja e
cártula) com a explicitação da causa da a) Senhor do Bonfim: (FIG.5) é o corredentora da Salvação 13. Para
sentença capital, a inscrição latina “INRI” Cristo representado morto, com a cabeça Crucifixos de banqueta (eles são despro-
5 Belo Horizonte, Volume 19, Número 61, julho/2015 BOLETIM DO CEIB

Foto: Marcos Vinicius Correa Foto: Adalgisa Arantes Foto: Pedro David

Figura 8 - Bom Jesus de Matosinhos


Figura 6 - Cristo da Clemência ou da Figura 7 - Senhor da Agonia. Manoel Dias (Atrib.)Madeira dourada e
Misericórdia. Madeira policromada. Madeira policromada. policromada, Igreja do Bom Jesus de
Museu Arquidiocesano de São João Museu Aquidiocesano de Mariana. Matosinhos, Piranga, MG.
del-Rei
vidos de figuras no sopé da cruz) é A fala “Eu te asseguro que hoje Agradecimentos
pertinente a representação de Cristo com estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43) dita
ênfase na dor. O sofrimento físico, o rosto ao ladrão que se converteu (Bom Ladrão) Agradeço à Maria da Conceição Brito,
contorcido e a boca também semiaberta é coerente com o tema do perdão afeito museóloga do Museu Arquidiocesano
sugerem nesse caso as palavras ao evangelista Lucas, mas não condiz de Mariana pela disposição dos
contundentes: “Tenho sede” (Jo 19,28). com as modalidades acima, porque o olhar inventários e ao Marcos Vinicius Correa,
Para as palavras de Lucas “Pai, perdoa- do Cristo deveria estar no mesmo plano monitor de História da Arte em 2013,
lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc daquele dos dois ladrões, implicando pelas fotografias feitas na Catedral de
23,34) que se inserem nessa intercessão portanto a presença das três cruzes. Por São João del-Rei, por ocasião de nossa
em favor da humanidade, ou seja, pela isso não diz respeito aos Crucificados de visita com a turma de Barroco, da UFMG.
misericórdia e clemência, supomos que a banqueta. O olhar dirigido para o alto ou
posição da face deveria estar voltada para para baixo é incongruente com tais Notas e referências
cima, pois o diálogo é com Deus. palavras.
Entretanto, o padre Luiz Miguel Duarte .
1
ZILLES, Urbano. Significação dos
coloca que os olhos do Cristo estariam d) Bom Jesus de Bouças ou de símbolos cristãos. Porto Alegre:
atentos “ao que se passa ao pé da cruz”, EDIPUCRS, 2001.5 ed. P.87.
Matosinhos (FIG. 8): Uma iconografia que
ou seja, à dimensão humana.13
merece estudo à parte, pois aparece,
2
sobretudo, Crucificados de tribunas e não Temas comuns nos missais, na ordem de
c) Senhor da Agonia (FIG.7): Cristo é
em Crucifixos de pousar, é a do Senhor do ocorrência: 1- Anunciação, 2- Natividade,
representado vivo com os olhos e boca
Bom Jesus de Matosinhos. O Cristo é 3- Adoração dos Magos, 4- Crucificação,
abertos, a cabeça dirigida para o alto (para
representado vivo, com o olhar divergente, 5- Ressurreição, 6- Ascensão de Cristo, 7-
Deus). Há um grande esforço para a cabeça
ou seja, um olho mirando para o alto (Deus) Pentecostes, 8- Santa-Ceia, 9- Assunção
ficar alinhada com o stipes e, para isso, a
e outro mirando para baixo (a humanidade), da Virgem e 10- Santíssima Trindade. Tais
caixa torácica se eleva. Predomina o
o perizônio é longo e grudado no corpo, devoções constituem as gravuras
abandono, a dor e o sofrimento físico que
representam a contingência do deus que quatro cravos, visto que os pés estão principais, as outras são secundárias e
se fez homem para salvar a humanidade. separados13. variam de missal para missal e de época
Nas composições eruditas recorre-se à para época.
expressão patética e ao corpo com realismo O Crucifixo constitui também, atributo de
3
muitos santos, destacando-se no período A banqueta pode ser o degrau da parte
anatômico. A fala pertinente seria “Meu
Deus, meu Deus, porque me em estudo: Francisco da Penitência, posterior da mesa do altar, de mesma
abandonaste?” (Mt 27,46). Por sua vez a Francisco Xavier, Francisco Bórgia, extensão da mesa, e por extensão o
fala “Pai, perdoai-lhes, porque eles não Francisco de Paula, Gertrudes, João conjunto de castiçais com sua cruz. Cf.
sabem o que fazem (Lc 23,24) pressupõe Nepomuceno, Luís Gonzaga, Maria verbete baqueta in: ROWER, Basílio.
semblante mais ameno, enquanto que a Madalena, Pedro Nolasco, Rita de Cássia, Dicionário Litúrgico. Petrópolis: Vozes,
cabeça pode estar mais inclinada. Rosa de Lima.13 1947. P.37.
6 Belo Horizonte, Volume 19, Número 61, julho/2015 BOLETIM DO CEIB

4
A cruz peitoral ou simplesmente peitoral IX CONGRESSO INTERNACIONAL DO
era de ouro, pendurada em corrente de CENTRO DE ESTUDOS DA IMAGINÁRIA BRASILEIRA
ouro ou cordão de seda. Essa insígnia
pontifical, com relíquias, era trazida ao
peito de autoridades (Cardeais, bispos e
abades) em celebrações. Cf. verbete Cruz
peitoral in: ROWER, Basílio. Dicionário
Litúrgico. 1947. P.81.
5
Cf. verbete cruz, crucífero, crucifixo e
cruzeiro in: BLUTEAU, Raphael.
Vocabulario Portuguez & latino- 1728, TAXAS DE INSCRIÇÃO: o pagamento deverá ser feito por depósito ou cheque
volume I link: http:// nominal ao: Ceib/congresso - Banco do Brasil, agência 3610-2 ,Cc: 63628-2
www.brasiliana.usp.br/em/dicionaio/1/ p. CNPJ: 02970571/0001-84
619-625.
CATEGORIA ATÉ 31/08 APÓS 01/09
6
KIERKEGAARD, Soren Aabye. “O Sócio titular em dia coma anuidde 120,00 180,00
desespero humano” in: Os Pensadores. Sócio estudante em dia com a anuuidade 90,00 140,00
Não sócio 140,00 200,00
São Paulo: Abril Cultural, 1984. pp. 195- Não sócio estudante 100,00 160,00
279.cit. p. 269-270.
Os estudantes deverão anexar comprovante de matrícula.
7
BARBET, Pierre. A Paixão de Cristo Fichas para inscrição poem ser encontradas no site:www.ceib.org.br
segundo o cirurgião. São Paulo:
Loyla, 2006.10 ed.p.49 ess.
CEIB
8
RÉAU, Louis. Iconografía del Arte
Presidente de Honra:
Cristiano – Iconografia dela Biblia – Myriam A. Ribeiro de Oliveira;
Nuevo Testamento. Barcelona: Presidente: Beatriz Coelho;
Ediciones del Serbal,1996, vol.2, p.483. V ice-Presidente: Maria Regina Emery
Quites;
9
BARBET. A Paixão de Cristo 1 o Secretário: Agesilau N. Almada;
segundo o cirurgião. p. 69. 2o Secretário: Bruno Perea Chiossi;
1a Tesoureira: Daniela C. Ayala;
10 2a Tesoureira: Carolina M. P. Nardi;
PAIVA, Marco Elízio. Investigações Colaboração: Marisia Flores.
formais e iconográficas sobre um
crucifixo de madeira, revestido de ENDEREÇO
madrepérola. In: Revista Imagem Escola de Belas Artes
Avenida Antônio Carlos, 6627.
Brasileira. Belo Horizonte: 2003. N.2, p. 31.270-010, Belo Horizonte, MG,
137-145. Tel: (55) 31 3409-5290
ceib@ceib.org.br;
11 site: www.ceib.org.br
RÉAU, Louis. Iconografía del Arte
Cristiano. vol.2, p.494. Facebook: Ceib

12
ABRANTES, Dalva (org). Catálogo BOLETIM
de exposição Crux crucis crucifixus o ISSN: 1806-2237;
universo simbólico da cruz. São Projeto gráfico, arte e editoração:
Helena David (In memoriam)
Paulo: Museu de Arte Sacra, s.d. sem e Beatriz Coelho;
paginação.
O IX Congresso Internacional do Tiragem 500 exemplares;
*Adalgisa Arantes Campos é sócia Centro de Estudos da Imaginária Periodicidade: quadrimestral
fundadora do Ceib, doutora em História Os artigos assinados são de
Brasileira (Ceib) já pode contar com responsabilidade dos autores e não
Social pela Universidade de São Paulo
o patrocínio da Coordenação de refletem necessariamente a opinião
(1994), pesquisadora com bolsa
Aperfeiçoamento de Pessoal de do BOLETIM DO CEIB.
produtividade do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Nível superior (Capes). É permitida a reprodução de fotos ou
Tecnológico ( CNPq), de 1996 a 2012 e Estamos aguardando resposta do artigos desde que citada a fonte.
profa. titular do Departamento de
História da UFMG. Conselho Nacional de APOIO
Desenvolvimento Científico e Centro de Conservação e
O BOLETIM DO CEIB Agradece ao Tecnológico (CNPq) e da Fundação Restauração de Bens Culturais
Cônego Nedson Pereira de Assis, diretor de Amparo à Pesquisa do Estado de Móveis (Cecor)
do MAAS, a autorização para a São Paulo (Fapesp). ESCOLA DE BELAS ARTES
publicação das fotograFias do Museu DA UFMG
e dos Crucifixos.

Você também pode gostar