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Cânticos do Realismo

Cesario Verde /

Contextualização histórico-literária

Cesário Verde viver num período histórico de grandes transformações na sociedade:


arranque industrial
desenvolvimento dos meios de transporte
progressos na agricultura e no comércio
formação da alta burguesia
Em 1851, iniciava-se em Portugal o período da Regeneração, um movimento simultaneamente político e social, na medida
em que pretendeu conciliar as diversas fações do Liberalismo e harmonizar os interesses da alto burguesia com os das
camadas rurais e da pequena e médias burguesias.

Regeneração Regeneração Regeneração Regeneração

política social citadina sociocultural


L b .
l 1-

Alternância de dois partidos Assunção e prática da


Aburguesamento da nobreza e Desenvolvimento de Lisboa e
liberais no poder durante 40 mentalidade e cultura
de enobrecimento da nobreza. do Porto.
anos. românticas.

Cesário escreveu numa época em que a burguesia liberal se tinha estabelecido firmemente no poder, levando a cabo
uma política de desenvolvimento capitalista.
A “Geração de 70” procura opor-se ao status burguês, abrindo os caminhos da modernidade a uma sociedade altamente
estratificada.
– grande descontentamento em relação à decadência da realidade política, cultural e social do país.
– novo olhar dos escritores «revolucionários» sobre a cidade em evolução e sobre a sociedade burguesa.
Assiste-se, nesta altura, ao crescimento e transformação da capital, através dos progressos na indústria, meios de
transporte e comércio, e uma grande migração oriunda do campo. Sem estar preparada para este crescimento urbano,
Lisboa evidencia várias fragilidades, entre elas:
– muitas ruas eram de terra batida e mal iluminadas.
– nos bairros mais antigos as condições de higiene eram péssimas
– a falta de saneamento urbano básico provocava graves epidemias, tais como tuberculose, febres,
cólera.
– precariedade nas condições de trabalho.
Tendo Lisboa como personagem principal dos seus poemas, Cesário Verde observa atentamente o que se passa,
filtra e capta o real nos seus múltiplos ângulos e descreve o que vê:
– uma cidade de contrastes
– bairros modernos onde se instala a nova burguesia
– as condições precárias dos trabalhadores
– o lado miserável da cidade, destacando o povo que trabalha e sofre
Estas circunstâncias dão origem a uma poesia pautada pelas seguintes características:
– tom declamatório e antirromântico
– objetividade na observação e realidade
– poetização do real e do quotidiano
– crítica social da era industrial
Cesário escreveu uma poesia inovadora, seguindo os princípios do Impressionismo e do Realismo, mas também precursora
do Modernismo e do Surrealismo.

Valorização da impressão captada, da perceção imediata.


Caráter fragmentário e fugaz das sensações e perceções.
Impressionismo Importância da cor e da luminosidade, em quadros ao ar livre.
Anteposição das características do objeto à sua definição.
Sobreposição das sensações.

Poetização do real, incluindo a sua vertente mais sombria e mórbida.


Modernismo
Temáticas modernistas: tédio existencial, «o desejo absurdo de sofrer», o desejo de evasão
(no tempo, no espaço, na imaginação, no onírico)

Transfiguração poética do real.


Surrealismo
Associação de imagens inesperadas e experimentalismo vocabular.

Quem foi Cesário Verde?

José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de fevereiro de 1855, em Lisboa e morre 19 de julho de 1886, no
Lumiar, com apenas 31 anos.
Inscreveu-se no Curso Superior de Letras, em 1873, onde conhece António José Silva Pinto, e nesse mesmo
ano dá início à sua aventura literária, com a publicação dos seus primeiros poemas no jornal Diário de Noticias.
Em 1877, surgem os primeiros sintomas de tuberculose, não o impedindo de continuar a sua vida literária, e em
1879 publica o poema “Cristalizações” na Revista de Coimbra. “O Sentimento dum Ocidental” é publicado em 1880.
A partir de 1881 começou a integrar o «Grupo do Leão» - grupo de jovens escritores e artistas que se reunia
na Cervejaria Leão de Ouro, em Lisboa.

A Lisboa de Cesário

Em Lisboa, quando Cesário Verde começou a trabalhar, observava tudo e deixava-se impressionar por pequenas
coisas sem importância que o deslumbravam e o deixavam estático, a olhar, como se abrisse os olhos pela primeira vez.
Tudo isto, o que via, ouvia ou julgava ver e ouvir, sempre igual e sempre diferente, dava-lhe uma sensação de
plenitude, de euforia.
O seu encantamento era tão grande que errava longamente pela Baixa, numa hora em que o movimento
diminuía.
As suas digressões levavam-no, por vezes, a bairros excêntricos onde, ao crepúsculo, oficiais namoravam
burguesinhas irrequietas debruçadas às janelas ou às barreiras da cidade poluída pelo fumo das indústrias.
Porém, em certas noites, regressava a casa tristemente pois tudo lhe parecia baço, triste e inexpressivo.

A representação da cidade e dos tipos sociais

A cidade

Mercantil Vazia / Cheia Triste / Alegre Burguesa Obreira


Trabalhadores
Agitada de lojistas e
Pessoas e cores. Barulho e silêncio. Casas apalaçadas. (calceteiros e
comerciantes.
peixeiras).

Cesário Verde, tal como os impressionistas, “pintou” a natureza humana. O seu olhar detém-se no campo, mas
privilegia a Lisboa do século XIX, destacando novos locais de convívio e novas personagens.
O espaço urbano é sentido como opressivo e destrutivo, como um local de corrupção, mas também de vida
dura, no qual o ser humano se desumaniza, suscitando uma reflexão sobre o percurso existencial.
No que diz respeito aos tipos sociais, sobressaem a empatia do sujeito relativamente às classes mais
desfavorecidas e um sentimento de compaixão pelos mais vulneráveis da sociedade mercantil.
A denúncia da injustiça social perpassa pelo contraste entre o trabalho duro dos elementos do povo – a força
ativa da sociedade – e o ócio das classes dominantes.
As mulheres também são apresentadas sob dois pontos de vista diferentes: a mulher simples, vulnerável, que
desperta no sujeito poético um instinto de proteção, por oposição à mulher altiva, que ostenta elegância e riqueza,
pertencente a um estrato social elevado.
– A cidade como símbolo da opressão da vida burguesa.
– A cidade moderna – atração e repulsa.
– A rua – lugar de representação das injustiças sociais.
– Análise social e dissecação dos tipos sociais.
– Intenção satírica da poesia.
– Poetização dos tipos sociais.
– Solidariedade com os mais frágeis.

Deambulação e imaginação: o observador acidental

O poeta assemelha-se ao pinto ou ao fotógrafo na criação de instantâneos quase cinematográficos,


representando o campo, mas sobretudo a cidade, percecionados através dos sentidos e, embora predominem as
sensações visuais, estas cruzam-se com a audição, olfato, o tato ou o paladar.
Enquanto caminha pelas ruas, observa ocasionalmente o que o rodeia, captando planos de conjunto ou
pormenores. É este deambular pelos vários locais que lhe dá oportunidade de sentir o pulsar da cidade e caracterizar
os espaços e as pessoas.
No entanto, o “eu” coloca um olhar seletivo e subjetivo sobre o que perceciona e a sua capacidade de recriar
a realidade, a sua imaginação poética, permite-lhe suplantar o real observado, proporcionando uma recriação
impressionista da realidade. A sua extraordinária visão pictórica capta o real concreto e filtra-o através da sua
subjetividade.
O “eu” observa simultaneamente os outros e a si mesmo. O sujeito é parte do quadro e o trivial torna-se
surpreendente, por ação da memória e dos sentidos, um dos traços fundamentais da modernidade de Cesário. A sua
capacidade de transformação poética do real favorece várias alusões ao passado, ora glorioso ora sombrio.
– Ação de deambular pela cidade coincidente com a tentativa de fixação poética desse fluxo.
– Observação realizada através de sucessivos planos fragmentados.
– Os quadros são apresentados de forma dinâmica, quer pelo movimento da «câmara» do poeta que se
desloca, quer porque há figuras que perpassam ou entram subitamente no campo de visão.
– O poeta, deambulando pelo cenário urbano, elege para si o papel de observador, tratando «poeticamente» o
que vê.
– Verbos como sair, errar, embrenhar-se ,seguir, usados na primeira pessoa, caracterizam esta poesia
itinerante.
Perceção sensorial e transfiguração poética do real

O real, apreendido pelos sentidos e pela imaginação, é transfigurado pela arte, que:
Recompõe a realidade tornando-a mais bela ou feia.
Acentua os tons sombrios ou os odores desagradáveis da cidade.

Transfiguração

Metáforas Hipérboles

Cesário Verde tem um modo especial de ver e captar o que o cerca. A sua “visão de poeta”, penetrante e
lúcida, gera-se a partir do real, mas não o substitui completamente e permite-lhe a transfiguração do observado, sem
nunca perder o vínculo com o real. A sua requintada sensibilidade e o dom da palavra inspiram-lhe a associação invulgar
de ideias, o termo exato e inesperado.
O poeta recria as cores e os objetos que o rodeiam quando iluminados pela luz do sol, “o intenso colorista”,
porque um dos poderes criativos do sol inclui as associações emocionais de cores. É neste contexto que, em “Num
Bairro Moderno”, as frutas e os legumes vão dando forma a um corpo humano, ou, em “De Tarde”, os seios
assemelham-se a duas rolas. No poema “Cristalizações”, as árvores despidas transfiguram-se em elementos náuticos,
adquirindo uma dimensão épica.
Cesário, numa to de inspiração criadora, combina uma extraordinária capacidade de observação como uma
exigência ética e estética invulgar, abrindo novos caminhos à poesia portuguesa.
– Apreensão da realidade através dos sentidos.
– A cor, a luz, o movimento, o cheiro, o som e o paladar estimulam e inspiram.
– Os estímulos conduzem à metamorfose poética do real.

O imaginário épico - “O Sentimento dum Ocidental”

O poema longo e a estruturação do poema


“O Sentimento dum Ocidental” é um poema longo, com forte pendor narrativo, estruturado em quatro partes
de onze quadras cada uma, sendo cada quadra composta por um primeiro verso decassílabo, seguido de três
alexandrinos. Constante nas quarenta e quatro estrofes é também o esquema rimático – abba – rima interpolada e
emparelhada, bem como a correspondência entre fim de frase e fim de estrofe.
Ave-Marias
Noite Fechada
Ao gás
Horas mortas
Subversão da memória épica: o Poeta, a viagem e as personagens
Numa primeira linha de leitura, sobressai um percurso ao longo de certas ruas e locais de Lisboa, feito por um
sujeito poético, desde o fim da tarde até à noite cerrada.
Numa segunda fase, eleva-se o ponto de vista do sujeito deambulante, permeável ao sofrimento humano, que
se relaciona com a cidade e constrói uma outra urbe, visionária e poética.
Cesário tratará os temas da épica (o mar, a viagem, o herói) por um prisma de desilusão, numa clara
subversão da matéria épica. De facto, em vez de cantar uma Lisboa moderna e a vida dos seus habitantes, apresenta
uma visão crítica de uma cidade soturna, doente, triste, imoral. Ao tempo de “soberbas naus” opõe-se, o cais a que se
“atracam botes” e os feitos grandiosos são trocados por um quotidiano banal, sem grandezas nem glória.
“O Sentimento dum Ocidental” apresenta um observador em movimento que, através da memória, relembra um
passado glorioso (o Tejo, Camões) que já não pertence ao presente. A viagem pela cidade não é agora a aventura das
Descobertas e o sujeito esboça tentativas vãs de evasão de uma cidade que aprisiona, mas o sonho de um futuro
diferente também não se apresenta credível.
As pessoa das cidade não são os grandes heróis (reis, navegadores, figuras ilustres). Por um lado, são
personagens decadentes, ociosas, e por outro, elevam-se as novas figuras épicas; calafates, carpinteiros, varinas – o
povo trabalhador.
Cesário Verde afasta-se do estilo elevado, sublime de Camões e emprega o vocabulário do quotidiano das
classes trabalhadoras, num tom coloquial, tornando poético o que não o é, por mais sujo e degradante que possa
parecer. Na realidade, este poema retomando o imaginário épico, constitui um exemplo da épica possível no fim do
século XIX.

Linguagem e estrutura

Regularidade estrófica (quadras); métrica (decassílabo e alexandrino) e rimática (interpolada e emparelhada).


Abundância de recursos expressivos – a comparação, a enumeração, a hipérbole, a metáfora, a sinestesia, o
uso expressivo do adjetivo e do advérbio.
Abundância de construções sintáticas coordenadas (sindéticas e assindéticas).
Introdução do registo coloquial na poesia.
Estrutura
A perfeição formal
a estrofe: quadra e quintilha
o metro: o verso alexandrino (12 sílabas)
a rima: musicalidade
Verso longo (alexandrino e decassílabo)
Linguagem e estilo
Discurso pouco ornamentado
Associação invulgar de ideias: a exatidão e o inesperado
O “belo” e o “feio” coexistem no mesmo poema
Vocábulos e expressões de vivência citadina: “varinas”, “infeção”, “esgadelhada”
Tom coloquial: “Nós acampamos, inda o sol de via”
Forte apelo visual: “Foi quando tu, descendo do burrico”
A técnica impressionista aplicada à literatura: “Mas, todo o púrpuro a sair da renda (. . .) O ramalhete rubro
das papoulas”
Anteposição do adjetivo
Apreciação subjetiva do real: “Como é saudável ter o seu aconchego,/ E a sua vida fácil!”
Predomínio da coordenação

Recursos expressivos

Comparação: “Semelham-se a gaiolas, com viveiros”

Enumeração: “Com santos e fiéis, andores, ramos, velas”

Hipérbole: “De prédios sepulcrais, com dimensões de montes”

Metáfora: “Que grande cobra, a lúbrica pessoa”

Sinestesia: “brancuras quentes”

Uso expressivo do adjetivo: “café devasso”

Uso expressivo do advérbio: “Amareladamente, os cães parecem lobos”

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