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A BÍBLIA DE ÁLEF A ÔMEGA

Copyright © 2020 by Rodrigo Silva


Todos os direitos desta publicação reservados para
Ágape Editora e Distribuidora Ltda.

EDITOR RESPONSÁVEL: Omar Souza


PREPARAÇÃO DE TEXTO: Luiz Werneck, Omar Souza
REVISÃO DE TEXTO: Pedro Nagem
REVISÃO TÉCNICA: Clodoaldo Tavares dos Santos e Evandro L. Cunha
CAPA: Rafael Brum
PROJETO GRÁFICO: Sonia Peticov
DIAGRAMAÇÃO: Bruna Casaroti
PRODUÇÃO DO EBOOK: Schäffer Agência Editorial

Imagens reproduzidas sob licença de Shutterstock.

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor
desde 1o de janeiro de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Silva, Rodrigo
A Bíblia de álef a ômega : um guia para entender como a Bíblia chegou até nós / Rodrigo Silva. -- São
Paulo : Ágape, 2020.

Bibliografia
1. Bíblia - História 2. Bíblia - Miscelânea 3. Bíblia - Antiguidades 4. Arqueologia I. Título

20-1885 CDD 220.09


Índice para catálogo sistemático:
1. Bíblia - História

ISBN versão impressa: 978-65-5724-007-6


ISBN versão ebook: 978-65-5724-008-3

ÁGAPE EDITORA E DISTRIBUIDORA LTDA.


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“O dr. Rodrigo Silva conseguiu uma proeza da alquimia literária: fundir
elementos tão distintos e divergentes numa solução elegante e honesta. A
magia desta obra consiste em nos guiar passo a passo ao mundo descrito nos
textos bíblicos. O autor abrange desde noções de crítica textual, passando
pelos delicados e complexos temas da canonização, até nos convidar a
confiar na veracidade das Sagradas Escrituras. Um texto singular por dizer
tanto em tão poucas páginas. Mais que um texto, um convite à teologia
bíblica.”

Evandro L. Cunha, Ph.D.,


professor de Teologia,
Religião e Filosofia no
Uninta, doutor em Línguas e
Culturas Antigas pela
Universidade de Barcelona
“Compreender as nuances da construção do texto bíblico sempre se
demonstrou um grande desafio para todos os que buscaram empreender essa
nobre tarefa. Neste livro, o dr. Rodrigo Silva apresenta um estudo detalhado
sobre elementos imprescindíveis e basilares da constituição do livro sagrado
para os cristãos, a Bíblia. O livro trata da Bíblia como obra divino-humana e
suas nuances históricas, literárias e teológicas. E para todos os que desejam
ampliar seu conhecimento e tentar mudar a realidade temerária da
desculturalização bíblica emergente brasileira, o estudo desta literatura é uma
ótima opção.”

Pr. Clodoaldo Tavares dos


Santos, professor de Grego e
Novo Testamento na Faama,
mestre em Teologia — EST,
doutorando em Novo
Testamento na UAP
SUMÁRIO

1 A Bíblia como literatura

2 Como surgiu a Bíblia

3 Seleção dos livros

4 Livros perdidos, banidos, adotados

5 Organização dos livros

6 A História da escrita

7 Escrevendo a Palavra de Deus

8 A transmissão do texto bíblico

9 Do pergaminho à internet

10 Crítica textual do Novo Testamento


11 Crítica textual do Antigo Testamento

12 Compreendendo as Escrituras

13 A Bíblia hoje

14 Conhecimento que liberta

15 Como ler e entender a Bíblia?

16 Que tradução devo usar?

17 Uma coletânea de histórias

18 Fatos e curiosidades bíblicas

19 Considerações finais

Referências
INTRODUÇÃO

A BÍBLIA, UM LIVRO FASCINANTE

Ainda me lembro com nostalgia quando, aos sete anos, pedi a meus pais uma
Bíblia Ilustrada de presente. Era uma manhã de domingo e um vendedor
chegou à minha casa oferecendo o precioso livro, já que meu pai não
comprara dele a enciclopédia que tentou lhe vender. Com muita insistência,
acabei ganhando aquele exemplar sob a forte advertência de que aquele seria
meu presente de Natal e que não adiantava pedir outra coisa. Eu nem liguei.
Já tinha o que queria. Apesar de crescer num ambiente não religioso ― meus
pais eram “católicos não praticantes” ―, minha devoção pelo Santo Livro
começara desde cedo.
Era uma Bíblia grande, capa preta e dourada, ilustrada a quatro cores,
repleta de quadros renascentistas, alguns Caravaggio e outros tipos que
ilustravam as histórias do Antigo e do Novo Testamentos. Eu decorei cada
desenho e ficava me exibindo para as visitas, passando uma por uma as
páginas ilustradas e dizendo do que se tratava. Coisa de criança.
Depois vieram os estudos teológicos, o tempo passado em Israel e outros
estudos mais. Porém, nunca me desliguei desse livro. Eu sempre soube que
alguma coisa dentro dele daria um rumo especial à minha vida. Não deu
noutra: aqui estou eu publicando pela Editora Ágape mais um título, visando
tornar conhecido o conteúdo do maior livro de todos os tempos.
A emoção é tanta que tomei a liberdade de escrever esta introdução num
tom autobiográfico. Como dizia Karl Barth, “tenho lido muitos livros, mas a
Bíblia é o único livro que me lê”. Verdade! Nas páginas do Gênesis, sinto-me
objeto do desejo do Deus que a si mesmo bastava, mas resolveu contar com a
humanidade. Quando vou para Êxodo, é como se estivesse fugindo a pé do
Egito na companhia dos hebreus. O livro de Jó parece falar das minhas
tragédias e o de Eclesiastes, de minhas inquietudes. Os evangelhos falam do
meu herói (Jesus) e o Apocalipse, da minha esperança.
Dizem que um casal resolveu, certa vez e por conta própria, estudar
junto uma velha Bíblia que tinha em sua casa. Depois de uma semana lendo
todos os dias vários capítulos, o marido virou para a esposa e falou:
― Se esse livro estiver certo, nós estamos errados.
Uma semana depois, foi a vez de a esposa falar para o marido:
― Se esse livro estiver certo, nós estamos é perdidos!
Na terceira semana, o marido concluiu, maravilhado:
― Se esse livro estiver certo, acho que nós podemos ser salvos!
E eu posso garantir para você: o livro está certo! São anos de
investigação acadêmica confirmando isso. Contudo, a convicção com a qual
escrevo agora ultrapassa em muito as ideias expressas nesta pesquisa. Trata-
se de uma certeza que advém da experiência com o Autor do livro, Deus.
Aquele que nos criou e inspirou os profetas a traduzir verdades celestes num
“sotaque” humano.
Homilético demais? Talvez. Então venha comigo conhecer a história da
Bíblia Sagrada. Aprenda como seus livros foram escolhidos, como podemos
saber que se trata de um livro divino, quem o dividiu em capítulos e
versículos, como podemos confiar na transmissão de seu conteúdo… essas e
outras temáticas, tenho certeza, falarão à sua alma e fascinarão sua mente. Se
você permitir, o mesmo Deus que tocou em minha vida tocará hoje na sua. A
Bíblia ainda continua fascinando pessoas. Seja mais um a se deixar ler pelo
Sagrado Livro.
CAPÍTULO UM

A BÍBLIA COMO
LITERATURA

O QUE É A BÍBLIA?
A Bíblia Sagrada é, sem dúvida, um dos maiores livros da História. Para
aqueles que possuem a fé judaica ou cristã, ela é muito mais que um livro
antigo e interessante. É a voz de Deus expressa em linguagem humana. Um
compêndio por meio do qual o Espírito Santo usou homens para se dirigir
com amor à humanidade e revelar os propósitos divinos para ela.
Victor Hugo declarou: “A Inglaterra tem dois livros principais,
Shakespeare e a Bíblia. A Inglaterra fez Shakespeare, mas a Bíblia fez a
Inglaterra.” Poderia ter dito mais. A Bíblia quase fez o mundo inteiro.
Praticamente todo o Ocidente e boa parte do mundo oriental. Em que pesem
as críticas feitas ao Livro Sagrado, há de se admitir que muitas vidas foram
transformadas pela Bíblia, e pessoas dotadas de grandiosíssima envergadura
intelectual creram piamente no que ela diz. Logo, não se trata de um livro
qualquer.
Ninguém nega que seu texto foi produzido por homens. A Bíblia não
caiu pronta do céu nem foi ditada por anjos. Contudo, seus autores não
falaram sozinhos, eles foram inspirados e movidos pelo Espírito de Deus.
Noutras palavras, emprestaram sua voz e estilo para que Deus pudesse falar
com “sotaque” humano. E o que o Todo-Poderoso tinha de tão importante
para nos dizer? Que ele nos ama e que, aconteça o que acontecer, ainda temos
um Pai celestial que em breve intervirá uma última vez na História para trazer
a justiça e inaugurar a eternidade.
Essa mesma visão da inspiração bíblica como um todo pode ser vista em
2Timóteo 3:16: “Toda Escritura é divinamente inspirada por Deus”
(theópneustos, lit. “soprada pelo Espírito de Deus”; em hebraico, beruach há-
kodesh). Logo, pode-se dizer que a Bíblia foi um presente dado pelo céu a
cada um de nós.
Nenhuma obra literária enfrentou maior questionamento crítico-
científico do que o texto da Bíblia Sagrada. Muitos a acusaram de ter sido
modificada ao longo dos anos para satisfazer os interesses políticos da Igreja.
Mas isso não é verdade. Graças a diferentes critérios acadêmicos e
laboratoriais, podemos dizer que temos em mãos praticamente o mesmo
conteúdo dos livros canônicos originais, da forma como saíram das mãos dos
autores inspirados. Ainda que um texto ou outro seja tema de disputas
hermenêuticas e tenhamos reconhecidos problemas de crítica textual (como
algumas discrepâncias entre os diferentes manuscritos), aquilo que era
importante para a salvação dos homens foi maravilhosamente preservado.
Tanto a origem como a preservação do texto bíblico são fortes
argumentos para a existência do Deus que inspirou essas páginas. Afinal de
contas, sempre que alguém precisa confirmar algo a seu favor, apela-se para
uma testemunha superior (ainda que circunstancialmente) que possa
apresentar um depoimento em sua defesa. É assim que funcionam os
procedimentos jurídicos em geral, e também algumas questões corriqueiras
do dia a dia. Um pai que confirma para o diretor que o filho de fato esteve
doente pode ajudar tremendamente na reposição de uma prova.
Por isso, pode-se dizer que a testemunha tem autoridade singular, pois
confere certeza ao depoimento de uma pessoa. Deus, no entanto, por ser
incomparavelmente maior, não precisaria de outro (circunstancialmente
superior) que desse testemunho a seu respeito. Ele em si mesmo se basta.
Contudo, por sua infinita bondade, Deus preferiu contar conosco. É neste
sentido que sua Palavra é, ao mesmo tempo, um testemunho que ele dá de si
usando seres humanos para reproduzi-la. A Bíblia é, em síntese, um grande
testemunho da existência de Deus.

O LIVRO MAIS FAMOSO DO MUNDO

A Bíblia é, sem dúvida, o livro mais impresso e divulgado no mundo inteiro.


Seria também o mais estudado? Difícil dizer. Mas o fato é que uma pesquisa
das Sociedades Bíblicas Unidas (UBS, a sigla em inglês) concluiu que cerca
de 2,5 bilhões de cópias tinham sido impressas e distribuídas entre 1815 e
1975. Porém, mais recentemente, o livro Guiness de recordes publicou que
esse número superaria 5 bilhões de exemplares distribuídos em 349 idiomas
(algumas fontes falam em 6 bilhões).1 Se considerarmos ainda aqueles que
têm pelo menos partes da Bíblia em seu vernáculo, esse número saltaria para
mais de 2,4 mil línguas e dialetos ao redor do mundo que possuem a Bíblia
traduzida no todo ou em parte.2
Somente os Gideões Internacionais distribuem por dia mais de 170 mil
exemplares da Bíblia em todo o mundo. Isso significa que, a cada minuto —
ou o tempo em que você levar para ler toda essa página —, 120 novas bíblias
foram entregues em diferentes cantos do planeta.
O segundo livro no ranking dos mais publicados e distribuídos do
mundo seria o famoso Livro Vermelho, do líder comunista Mao Tsé-Tung,
que trazia citações do ditador chinês compiladas por Lin Piao, seu ministro da
Defesa. Diferentemente da Bíblia, a distribuição e a leitura eram obrigatórias,
impostas pelo governo. Mesmo assim, o que se tem aqui é um distante
segundo lugar, pois, de acordo com as fontes oficiais, o Livro Vermelho
estaria disponível em menos de quarenta idiomas, com uma tiragem de pouco
mais de 1 bilhão de cópias distribuídas pela China e restante do mundo.
Que contraste, não é mesmo? E as diferenças não param por aí. O
conteúdo de ambos os livros é assombrosamente diferente. De acordo com o
Livro Vermelho de Mao, “devemos apoiar tudo o que o inimigo combate e
combater tudo o que o inimigo apoia”. E mais: “A revolução é uma
insurreição, um ato de violência pelo qual uma classe derruba a outra.”
Já na contramão dessa cultura, temos os ensinos de Cristo, que diz:
“Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho
também vós a eles; porque esta é a lei e os profetas” (Mateus 7:12). Além
disso, temos o conselho de Paulo: “Não te deixes vencer do mal, mas vence o
mal com o bem” (Romanos 12:21).
O Livro Vermelho tornou-se uma espécie de bíblia para a juventude
chinesa dos anos 1960 e 1970, e foi peça-chave do maior fervor ou fanatismo
revolucionário do século 20, a chamada Revolução Cultural, que ceifou a
vida de muitas pessoas e tornou a China um dos países mais isolados do
mundo inteiro.

Alguns podem
argumentar que a Bíblia
também provocou muitas
mortes nos tempos da
Inquisição, mas isso não é
verdade. Foi a autoridade
eclesiástica de então que
mandou matar em nome da
fé. A leitura da Bíblia, além
de proibida para a
população em geral, era um
dos motivos da pena
capital, pois muitos foram
mortos apenas por ter em
casa um exemplar do Livro
Sagrado ou tentar lê-lo por
conta própria sem
autorização da Igreja.
Autoridade eclesiástica e
ensinamentos bíblicos não
são, necessariamente,
sinônimos perfeitos. A
história, portanto, das
Escrituras Sagradas está
bem distante daquela
relacionada ao Livro
Vermelho da China
comunista.

NOMES PARA A PALAVRA DE DEUS


▶ Bíblia

Não encontramos nas Escrituras o nome “Bíblia”. Esse título foi usado pela
primeira vez, em relação à Palavra de Deus, por João Crisóstomo, patriarca e
reformador de Constantinopla (354-407 d.C.).
O nome Bíblia deriva de Byblos, que é o nome de uma importante
cidade portuária da região dos fenícios que hoje fica no Líbano. Foram os
gregos que deram esse nome ao lugar devido à sua importância no comércio
de papiro, um tipo de papel importado do Egito. Aliás, Byblos também era o
nome que os gregos davam ao papel que os egípcios preferiam chamar de
“wadj” (ou ).
Com a diferença de apenas uma letra, Byblos virou Biblos e passou a
significar “livro”. O diminutivo de livro em grego é biblion, que quer dizer
“livrinho”, e o plural é bíblia, que quer dizer “livrinhos”. Foi justamente por
ser uma coleção de pequenos livros que a Escritura Sagrada passou a ser
chamada de Bíblia, nome este que ficou até os dias de hoje.

Tudo indica que foi


Crisóstomo, um autor
cristão do século 4, que
usou pela primeira vez o
nome Bíblia para se referir
ao Antigo e Novo
Testamentos. Contudo, há
indícios de que já em 223
d.C. o título era vez ou
outra usado por seguidores
do cristianismo para
referirem-se aos escritos
dos apóstolos e, antes
deles, judeus helenistas que
viviam em Alexandria
valiam-se da expressão “ta
bíblia” (os livrinhos) para
indicar uma tradução grega
do Antigo Testamento
normalmente conhecida
como Septuaginta. Mais à
frente você conhecerá a
história dessa tradução.

▶ Escritura Sagrada

No contexto do judaísmo, a expressão Escritura Sagrada é preferível à


palavra Bíblia, tida pelos judeus como um apelido cristão. No próprio
contexto neotestamentário também sempre se faz uso de termos como
“Escritura”, “Oráculos Sagrados”, mas nunca de Antigo ou Novo
Testamentos. Essa divisão surge com a perspectiva teológica de antiga e nova
alianças. Eles também se valem muito do termo Tanak, que seria uma
abreviatura de três palavras hebraicas, a saber: Torá (lei), Neviim (profetas) e
Ketuvim (escritos). Estas, por sua vez, representam as três maiores divisões
da Escritura, embora também seja comum referirem-se a ela como apenas a
Torá, ou a Lei e os Profetas. Essa divisão, aliás, já era conhecida nos tempos
do Novo Testamento, pelo que Jesus fez uso dela em diversos momentos de
seu ministério (cf. por ex. Mateus 7:12; 11:13; 22:40; Lucas 10:26; 16:16, 17;
24:44; João 1:45; 10:34).
Hoje em dia, os cristãos
costumam dividir a Bíblia
em Antigo e Novo
Testamentos. Essa é uma
nomenclatura que não pode
ser confundida, pois, com o
advento de uma cultura
tecnológica repleta de
updates e novas versões, a
palavra “Antigo” ou
“Velho” Testamento pode
indicar algo obsoleto, sem
valor para atualidade, fora
de moda. Contudo, não é
nada disso. Toda a Palavra
de Deus, do primeiro ao
último livro, será sempre
atual para aquele que crê.

▶ Antigo e Novo Testamento

O nome Antigo Testamento foi criado por Melito de Sardes em cerca de 170
d.C. para referir-se aos livros sagrados escritos antes da vinda de Jesus Cristo
a este mundo. Ele não menciona a expressão Novo Testamento, mas o
conceito parece implícito em seu comentário, pois seria a sequência natural
de escritos, tanto que um documento antimontanista da mesma ocasião
referiu-se ao cânon cristão como sendo a palavra do “Novo Concerto
(Testamento) do Evangelho”. A expressão Novo Testamento, neste caso,
tornou-se o título da coleção de livros canônicos que foram escritos depois do
nascimento de Cristo. A primeira parte, portanto, seria uma espécie de
prenúncio do Messias que haveria de vir, e a segunda, um anúncio do
Messias que veio e que voltará. A primeira conta a história da criação do
mundo e da queda da humanidade, mas se concentra na história de Israel. Já a
segunda concentra-se no ministério de Jesus e na história da igreja cristã
primitiva.
E por que Antigo e Novo Testamento, e não Antiga e Nova Escritura? A
bem da verdade, algumas antigas versões gregas preferiam chamar essas
porções de Antiga e Nova Alianças (palaia diathéke e kainé diathéke). Mas,
ao que tudo indica, os teólogos consideraram que, sendo a aliança ou o
acordo de Deus com a humanidade algo que demanda muito mais a ação
divina que a ação humana, seria preferível traduzir o termo por testamentum,
que quer dizer justamente isso, um testamento que Deus, em pessoa, deixou
para nós. Uma herança em forma de livro, daí o uso dos nomes latinos Vetus
Testamentum (Antigo Testamento) e Novum Testamentum (Novo
Testamento).

PECULIARIDADES DE UM LIVRO

Além da grande tiragem mencionada anteriormente, há muitos outros


detalhes que fazem da Bíblia um livro incomum, ou, mais propriamente, um
livro sem igual.

A Bíblia foi o primeiro livro impresso no Ocidente por Johannes


Gutenberg, entre 1450 e 1455. Ela também foi o primeiro livro impresso
em português, no ano de 1487, na região do Algarve, Portugal.
Foi também o livro mais proibido, perseguido e que sofreu tentativas de
destruição em toda a História. Só à guisa de ilustração, em 303 d.C.
Diocleciano decretou que toda cópia da Bíblia cristã fosse queimada.
Presume-se que centenas, se não milhares de cópias tenham se perdido.
Por pouco não teríamos o Novo Testamento. Muitos foram mortos
apenas por ter uma cópia parcial da Bíblia em seus lares.
Até mesmo a igreja foi contrária à divulgação bíblica. Em 1199, o papa
Inocêncio III proibiu a tradução da Bíblia para o vernáculo francês e
decretou que seria um perigo se ela fosse lida por pessoas simples do
povo. Quem fosse apanhado lendo-a ou ensinando-a na França seria
morto. Várias bíblias foram queimadas a mando da igreja.
Apesar de tantas destruições textuais, a Bíblia é o livro da Antiguidade
com a maior quantidade de cópias manuscritas de que se tem notícia.
Enquanto a Ilíada de Homero (o clássico com maior número de cópias
preservadas) conta com apenas 1.757 manuscritos, a Bíblia tem mais de
40 mil cópias, se incluirmos os textos em grego e hebraico, as traduções
antigas e porções preservadas antes da invenção da imprensa.
A Bíblia é, sem dúvida, o livro mais controverso da História. Nomes de
peso, como Immanuel Kant (1724-1804), Abraham Lincoln (1809-1865)
e Isaac Newton (1643-1727) o amaram e o recomendaram sem qualquer
hesitação. Por outro lado, nomes igualmente de peso rejeitam e
desprezam sua leitura — Voltaire (1694-1778), Friedrich Nietzsche
(1844-1900) e Jean-Paul Sartre (1905-1980) são alguns deles. Seja como
for, percebe-se que não é um livro necessariamente dos menos
intelectuais, pois, embora haja mentes brilhantes que o rejeitem, há
outras que o amam profundamente.
Curiosamente, o texto bíblico não se setoriza em apenas um grupo de
pessoas. Ele desperta o interesse e atende as necessidades de jovens,
adultos, crianças, cultos, iletrados, ricos e pobres. É a obra mais
ecleticamente social de toda a História tanto do Ocidente como do
Oriente.
Embora existam muitos livros de autoajuda ou reflexivos que tenham
mudado a mente de várias pessoas, nenhuma produção literária da
História modificou tantas vidas como a Bíblia Sagrada. Bêbados,
traficantes, prisioneiros, depressivos, suicidas potenciais e assassinos
são apenas alguns dos milhões e milhões que tiveram a vida
transformada pelo contato com esse livro em particular.

Certa vez, ouvi que a


Bíblia poderia ser
comparada a uma piscina
cheia de água. Uma piscina
com uma parte tão rasa que
as crianças poderiam ficar
de pé e outra tão profunda
que um elefante poderia
nadar nela sem qualquer
dificuldade. Pois bem, a
Bíblia é um maravilhoso
compêndio que contém
passagens, em alguns
casos, bem densas e
profundas, mas, de maneira
geral, se apresenta como
um conteúdo simples o
bastante para que qualquer
um possa, por conta
própria, ler e entender os
desígnios de Deus para
cada pessoa. (Bruce
Metzger, especialista em
crítica textual do Novo
Testamento)3
LIVRO PERIGOSO?

A Bíblia foi escrita por homens como nós, escolhidos pela providência divina
para colocar em linguagem humana aquilo que Deus queria revelar a seus
filhos. Mas o que quer dizer esse “como nós”? Não seriam homens especiais?
Claro que sim, porém não no sentido que muitos interpretam. As calejadas
mãos que escreveram a Bíblia não eram de super-heróis, mas de pessoas
errantes, sujeitas às mesmas paixões de qualquer ser humano.
A diferença, portanto, não estava em que fossem perfeitos ou jamais
errassem, mas no fato de que amavam a Deus e não recusaram o chamado
recebido do céu. Dentre esses autores, temos nomes como Moisés, Davi,
Daniel, Isaías, Pedro e Paulo, sujeitos comuns dotados de uma grande paixão
pela causa divina. Eles são indiretamente referidos no texto de 2Pedro
1:20,21, que diz: “… sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da
Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida
por vontade dos homens, mas os homens da parte de Deus falaram movidos
pelo Espírito Santo.”
A Bíblia traz sobre si uma reinvindicação muito séria que, se for
verdadeira, faz dela o livro mais importante de todos os tempos, mas, se for
mentirosa, o mais terrível que a humanidade já produziu. Ela diz que é de
origem divina: “Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para
ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça” (2Timóteo
3:16). Por isso o escritor George Bernard Shaw estava parcialmente correto
quando chamou a Bíblia de “o livro mais perigoso do mundo”.
Afinal de contas, um livro que se declara vindo de Deus só pode ser
creditado a dois fatores: histerismo ou inspiração. Seja qual for a alternativa
adotada, é impossível ficar neutro em relação a ele, principalmente nós, que
vivemos no Ocidente. Ou ela é inteiramente absoluta ou incrivelmente
obsoleta.
Imagine agora que a Bíblia nunca tivesse sido escrita ou preservada até
nossos dias. O que teria acontecido? Uma resposta precisa é difícil de ser
dada, mas James Kennedy e Jerry Newcombe lançaram-se ao desafio de
encontrar uma resposta. Eles escreveram juntos o livro What if the Bible Had
Never Been Written? [E se a Bíblia nunca tivesse sido escrita?], e concluíram
que praticamente todos os grandes exploradores, cientistas, escritores,
artistas, políticos e educadores do Ocidente foram tão influenciados por este
livro que, sem ele, esses homens jamais teriam oferecido tantas contribuições
ao mundo.
Exagero? Difícil dizer. Mas pelo menos uma coisa pode ser dita e que
calaria muitos que consideram a Bíblia um livro sem significado positivo.
Conta-se que, em 1936, um antropólogo descrente da Bíblia estava
entrevistando Kata Ragoso, um líder tribal da Nova Guiné. Em uma de suas
perguntas ele quis saber o que o nativo achava de ter sua cultura
terrivelmente modificada pelos hábitos trazidos por esse livro de brancos. Era
realmente um motivo de agradecimento? “Se é motivo para eu agradecer, não
sei” — respondeu Ragoso —, “mas para você, deveria ser, caso contrário eu
agora o estaria degolando e encolhendo sua cabeça, conforme o costume de
meus ancestrais.”
Imagine os milhões de pessoas que tiveram sua vida mudada para
melhor por causa da leitura desse livro chamado Bíblia Sagrada! É claro que
houve muitos outros clássicos que trouxeram benefícios para a humanidade,
mas nenhum deles transformou diretamente tantas multidões de diferentes
níveis sociais e culturais. Tome por exemplo um livro como O capital, de
Karl Marx. Ele realmente influenciou muito os rumos da economia moderna,
mas quantos presidiários poderiam ser citados que deixaram o mundo do
crime por terem lido os escritos de Marx? Quantos assassinos se
arrependeram de seus crimes e mudaram de vida por terem lido os
pensamentos do marxismo? Quantas pessoas tiveram uma morte mais
tranquila porque, em seu leito, um amigo leu trechos sobre a dialética e a luta
de classes? Logo, por mais que alguns se mostrem apaixonados por Marx e
suas teorias econômicas, seus escritos, nem de perto, produziram as
transformações de vida que testemunhadas por aqueles que se apaixonaram
por Cristo.
Isso mostra que o mundo pode estar repleto de bons e excelentes livros,
mas só a Bíblia pode se dizer inspirada por Deus. E o que significava
originalmente essa palavra “inspiração”?
De um modo bastante simplificado, podemos dizer que inspiração, no
sentido bíblico do termo, significa “o que vem diretamente de Deus”, isto é,
que tem origem divina. Em latim, esse termo significa “soprar para dentro”,
assim como um adulto faz ao insuflar um balão de ar. Seria também essa a
imagem figurativa de Deus soprando o Espírito na mente de uma pessoa. Em
seu correspondente grego, esse termo só aparece uma vez no Novo
Testamento, em 2Timóteo 3:16.
Em 2Timóteo, o termo vem da junção de duas palavras gregas: Theos
(que quer dizer “Deus”) e pneustos (que quer dizer “sopro”, “espírito”).
Logo, algo que foi soprado por Deus ou simplesmente “inspirado” por ele —
o mesmo sentido da versão latina. Assim, a melhor tradução para 2Timóteo
3:16 talvez fosse “expirado” ou “soprado” por Deus.
1 Disponível em http://www.statisticbrain.com/bibles-printed/. Acesso em 9/6/2015.

2 Disponível em http://www.guinnessworldrecords.com/world-records/best-selling-book-of-non-fiction.
Acesso em 2/6/2015.

3 Disponível em https://www.visionvideo.com/files/DTB_ColorBookLR.pdf.
CAPÍTULO DOIS

COMO SURGIU
A BÍBLIA

A LINGUAGEM E DEUS
“No princípio era o Verbo” ou “a Palavra”. Assim inicia o Evangelho de
João. Tal afirmação, no entanto, implica uma série de questões que
demandam a mais profunda reflexão sobre a gênese da linguagem humana.
Tema que, apesar de reunir muitas discussões e especialistas, não encontrou
consenso algum sobre como e quando tudo isso começou.
O que surgiu primeiro: o pensamento ou a linguagem? Como, quando e
por que o ser humano passou a falar? Estas são questões que realmente
intrigam os antropólogos, especialmente os que buscam uma compreensão
das origens da humanidade abstendo-se de qualquer participação divina no
processo.
Para os que creem no relato bíblico do Gênesis, isso não é problema,
pois Deus teria criado Adão com a capacidade de falar e entender a
linguagem que, no princípio, seria do próprio Deus. Já para os que advogam a
teoria da evolução, isso pode ser um dilema insolúvel. Afinal, se não existe
Criador, se somos frutos de uma geração espontânea, como adquirimos a
capacidade de falar? Com quem aprendemos a nos expressar por meio da
linguagem?
Essas perguntas fazem todo sentido se entendermos que todos os estudos
realizados até hoje no campo da linguagem demonstram inequivocamente
que, para falar, precisamos de alguém que nos ensine e nos estimule, pois
sozinhos nunca aprenderemos. Segundo os especialistas, toda criança nasce
com um órgão biológico no qual estão inseridos dados de previsões daquilo
que é comum a todas as línguas naturais e das variações que poderão ser
encontradas.
Isso é o que eles chamam de gramática universal. Ela só é desenvolvida
se houver a exposição, isto é, se a criança for exposta a uma determinada
língua para, então, desenvolver o órgão da linguagem. É por meio dos dados
que recebeu que a criança irá “montar” a sua gramática. Mas isso tem um
limite. Se ela não for exposta a uma língua até os 6 anos, em média, terá
sérias complicações. Após esse período, adquirir a fala não será mais um
processo natural, e a expressão pela linguagem será algo impossível.
Veja que não se trata de um mistério que a ciência simplesmente ainda
não desvendou. Os especialistas já descobriram. O ser humano, para
desenvolver a linguagem, precisa aprendê-la com alguém que já a utilize
previamente. E se não houve esse alguém no princípio, é complexo teorizar
como foi que nossos ancestrais começaram a falar.
É justamente por essa dificuldade até agora insolúvel que, apesar do
grande número de propostas sobre como, por quê, quando e onde a
linguagem começou, trata-se de um assunto reconhecido por vários
especialistas como “o mais difícil problema das ciências humanas”.4
Por meio do testemunho bíblico, sabemos que Deus, desde os mais
remotos tempos, se comunicou com a humanidade, e esta respondeu à sua
voz interagindo com ela em expressões e falas que hoje se perderam no
tempo. Alguns rabinos afirmam que Adão falava hebraico, porém essa é uma
declaração teológica sem qualquer tipo de comprovação bíblica ou
acadêmica. Seja como for, embora configure ser tarefa inglória decifrar a
língua de Adão, é possível dizer que ele conversava com Deus, ouvia-lhe a
voz e compreendia suas palavras.
Mais que isso — Adão e Eva interagiam em diálogos com Deus.
Expressões como: “Ordenou o Senhor Deus ao homem…” (Gênesis 2:16);
“Assim o homem deu nomes a todos os animais…” (Gênesis 2:20); “E,
ouvindo a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim à tardinha…”
(Gênesis 3:8) deixam registrado que a linguagem humana é tão antiga quanto
o próprio ser humano.
Tal processo de comunicação divino-humana continuou por um tempo
após a expulsão do Jardim do Éden. Não somente os seres humanos
continuaram conversando entre si, apesar da confusão na torre de Babel
(Gênesis 11), como continuaram recebendo mensagens divinas seja por
sonhos ou aparições especiais da divindade.
Todos os patriarcas bíblicos, Noé, Abraão, Isaque e Jacó tiveram
revelações de Deus, isso muitos séculos antes de Cristo. Porém, com o passar
do tempo, falhas de memória e imprecisões na transmissão das mensagens
fizeram com que a comunicação oral de Deus com um ou outro indivíduo se
tornasse um meio inadequado para preservar o conteúdo da revelação dada
aos homens. É aí que surge o fenômeno de escrituração das mensagens de
Deus por intermédio da Bíblia Sagrada.
Contudo, mesmo que de forma escrita, a comunicação ainda continua
sendo por meio da palavra. A Bíblia é a maior testemunha de que Deus
estabeleceu sua comunicação com indivíduos, povos e, por fim, com a Igreja.
A mais importante comunicação divina, no entanto, se deu por intermédio do
envio de Jesus Cristo, o próprio Filho de Deus, que revelou na carne o caráter
do Pai.
O livro de Hebreus inicia dizendo: “Havendo Deus antigamente falado
muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos
dias a nós nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas
[…] sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder […]” (Hebreus
1:1-3). O que estas palavras significam? Que muitos homens e mulheres, de
várias partes e em diferentes línguas, registraram em linguagem humana a
comunicação que receberam de Deus. Os profetas e hagiógrafos (escritores
sacros) são instrumentos humanos que Deus usou para registrar, em
linguagem humana, sua revelação especial. Daí o surgimento da Bíblia
Sagrada, Palavra escrita de Deus.

INSPIRADOS POR DEUS

Quando Paulo diz que toda Escritura é inspirada por Deus, está
evidentemente fazendo referência à já mencionada coleção de livros sagrados
que ele conhecia em sua época, a saber: a Lei, os Profetas e os Salmos,
conforme vimos em Lucas 24:44. Ele também já considerava os evangelhos
ou, pelo menos, os evangelhos de Mateus e Lucas, pois em 1Timóteo 5:18 ele
cita Deuteronômio 25:4, associado a Mateus 10:10 e Lucas 10:7, e chama de
“Escritura” (ver 1Coríntios 9:9,14). Ambos, Antigo e Novo Testamentos
vieram de Deus para os cristãos, e são igualmente considerados Escrituras
(1Coríntios 2:10-13; 1Timóteo 5:18; 2Pedro 3:15,16).
Isso nos leva a entender que a inspiração envolve, via de regra, um
agente humano usado por Deus. É, em outras palavras, a operação divina que
toma conta do autor sagrado, esclarecendo-o, guiando-o, assistindo-o na
execução de sua tarefa. Foi isso que o autor aos Hebreus quis dizer ao afirmar
que Deus falou nos tempos antigos aos pais pelos profetas (Hebreus 1:1).
Mas como se dava esse processo?
O teólogo alemão Karl Rahner (1961) encontrou um modo interessante
de explicar o fenômeno da inspiração bíblica. Ele percebeu que o uso do
termo latino autor para designar Deus como quem compôs as Escrituras
poderia ser um tanto dúbio. Então ele se lembrou de que, em alemão, você
pode falar de alguém como autor literário (Verfasser) ou como originador de
um livro (Urheber). Assim, segundo Rahner, Deus originou os livros
sagrados, isto é, propiciou que fossem produzidos, mas não os escreveu no
sentido de que ditou suas palavras ou utilizou-se do profeta como se fosse
uma máquina de escrever ou um teclado de computador. Na verdade, Deus
inspirou os pensamentos e os ensinos na mente de seus servos, mas a
linguagem e as imagens usadas nas Escrituras eram do próprio profeta de
acordo com a cultura e com a cosmovisão em que ele estava inserido.

A Inspiração é uma
operação do Espírito Santo,
atuando nos homens, de
acordo com as leis da
constituição humana; que
não é neutralizada pela
influência divina, mas
aproveitada como um
veículo para a expressão
completa da mensagem de
Deus. […] a Inspiração está
geralmente combinada com
o progresso moral e
espiritual do Doutrinador,
de maneira que há no todo
uma conformidade moral
entre o Profeta e a sua
doutrina. (Westcott apud
APOLINÁRIO, 1989)
Veja esta declaração de Davi em 2Samuel 23:2: “O Espírito do Senhor
fala por mim […]” Somando o que foi dito com essa declaração de Davi,
podemos concluir que a Bíblia é um livro divino, mas não caiu pronto do céu.
Ela foi se formando ao longo do tempo, admitiu rascunhos, contextos,
pequenas edições. Para que a Bíblia se concretizasse, o Espírito Santo se
serviu de instrumentos que eram humanos e que conservavam a respectiva
personalidade, caráter, talento e gênio, os hábitos intelectuais e poderes de
estilo típicos de sua época. Deus não violentou nem destruiu as faculdades
daqueles que escolheu para transmitir sua mensagem. O autor continuava
sendo um ser humano com suas peculiaridades e seu próprio modo de pensar.
É claro que Deus não permitiria à humanidade do profeta intervir de
modo a prejudicar o conteúdo da revelação. Não obstante, é notório, por
exemplo, que homens simples como Pedro e João escreveram de modo
simples, com vocabulário reduzido e expressões mais simplórias, bem
diferente de Salomão ou Paulo com toda a erudição que lhes dizia respeito.
Por isso a carta aos Romanos é muito mais primorosa e repleta de figuras
literárias que o discurso de Pedro expresso no livro de Atos, capítulo 3.
De acordo com o que a própria Bíblia nos dá a entender, com a história
de Gênesis, capítulos 1 a 3, não era plano original de Deus usar um livro para
se comunicar com os seres humanos. Ao que tudo indica, Adão e Eva tinham
franca comunhão com seu Criador e, possivelmente, com outros agentes
celestiais. Mas a entrada do pecado causou uma ruptura entre criatura e
Criador (Isaías 59:2). O Senhor agora tinha de usar outros meios de se
comunicar com o ser humano, e a revelação nos indica alguns deles:

Anjos vindo em forma humana (Zacarias 1:9; Lucas 1:11,18,19).


Visões (Daniel 7:2; Apocalipse 1:19).
Sonhos (Gênesis 37:5,9; Números 12:6).
A impressão do Espírito Santo (2Samuel 23:11,12; 2Pedro 1:21) .
As obras da natureza (Romanos 1:20; Colossenses 1:13-18).
Revelações especiais feitas até por quem não era profeta (Mateus 27:19).

Algumas dessas formas de comunicação divina podem ocorrer ainda em


nossos dias, mas a Providência não as considerou o canal mais seguro para
garantir a preservação dos oráculos celestiais, por isso o Senhor resolveu
escolher algumas pessoas em especial para que fossem usadas como
escritores inspirados por ele para produzirem o seu livro especial, inspirado e
autenticado pelo próprio Espírito de Deus. Esse livro traria a revelação
especial de Deus dada aos homens.

OS PROFETAS

Os que foram eleitos para a tarefa de produzir a Bíblia eram “movidos pelo
Espírito Santo” (2Pedro 1:21); logo, as palavras, as expressões e a
concatenação das ideias poderiam até ser humanas, mas a autoria, em última
instância, era divina. Os agentes humanos poderiam, portanto, se valer de
pesquisa, depoimento de testemunhas, descrição de eventos e até material que
não fosse inspirado (Lucas 1:1-4). Todos esses métodos, no entanto, tinham a
direção do Espírito Santo a fim de que o lado humano não afetasse a essência
daquilo que Deus intentava transmitir (João 16:13 cf. Apocalipse 22:19).
Esses escritores eram chamados profetas ou videntes de Deus. Mas o
quem seriam eles? Como reconhecê-los na História? Embora o texto bíblico,
especialmente o Antigo Testamento, traga várias palavras hebraicas para
definir esses autores inspirados, chama-nos a atenção que a palavra mais
comum em português, “profeta”, vinha originalmente do mundo grego e
servia para referir-se ao que fala algo em lugar de uma autoridade
especialmente divina ou sobrenatural. Por isso, o vidente bíblico é aquele que
fala “por Deus” aos homens e como tal ele pode, algumas vezes, dar uma
advertência, revelar uma situação específica ou ainda antever acontecimentos
futuros.
Vários povos, além dos judeus, diziam possuir mensageiros com dom
profético. Entre eles estavam os babilônios, hititas, gregos, entre outros. No
caso bíblico, a orientação é checar se um profeta vem ou não de Deus, pois,
assim como há verdadeiros profetas, também há falsos líderes dizendo-se
inspirados por Deus quando, na verdade, não receberam nenhuma mensagem
do Altíssimo (cf. Deuteronômio 18:20-22; Mateus 7:15-20; Romanos
16:17,18; 1Tessalonicenses 5:20,21).
Como podemos reconhecer um falso profeta? Estudando a Bíblia. Se
alguém prega algo que vai contra as Escrituras, é falso profeta. Mas note que
este argumento se torna circular, a menos que tenhamos primeiramente
estabelecido que a Bíblia é, de fato, a Palavra de Deus. Somente depois dessa
certeza podemos tomá-la como parâmetro de verificação da autenticidade
profética de uma pessoa.
Também é importante ver se a profecia se cumpre. Se não se cumprir,
provavelmente é porque veio da imaginação da pessoa, e não de uma
revelação de Deus. Há casos, no entanto, que um prognóstico pode ocorrer
por coincidência, previsibilidade comum ou manipulação de fatos.
Novamente, em caso de dúvida, a Bíblia será a regra de fé, prática e
validação da mensagem apresentada.
Por isso, é possível dizer que a Escritura tem, em última instância,
autoridade e característica normativa. Ela não pode ser desrespeitada (João
10:35) nem violada sem consequências (Mateus 5:17-20). Ela vem de Deus
(Mateus 22:31; 2Pedro 1:18-20). Foi revelada e inspirada pelo Senhor.

Uma impressão de selo de


argila de 2,7 mil anos de
idade, encontrada em 2018
em Jerusalém, pode ser a
primeira referência ao
profeta Isaías fora da
Bíblia. Na Antiguidade, as
cartas eram seladas com
argila e enviadas aos seus
remetentes, que quebravam
o lacre para poder ler o
conteúdo do documento.
No exemplar encontrado,
há uma inscrição com as
letras hebraicas usadas no
período do Primeiro
Templo, que parecem
soletrar l’Yesha’yahw
(“Pertence a Isaías”). Na
linha abaixo, há a palavra
parcial nabi, que quer dizer
“profeta”.

O problema, porém, é que,


como o selo está quebrado,
falta a letra final da palavra
“profeta” em hebraico, o
que torna difícil ser
dogmático quanto ao que
estaria originalmente
escrito ali. Se a última letra
for mesmo um álef, então
não restaria dúvidas de que
se trata da palavra
“profeta” e que este seria
um selo original do vidente
de Deus. De qualquer
forma, só a possibilidade
que essa inscrição levanta
já é motivo de celebração
em termos de arqueologia
bíblica.
REVELAÇÕES DE DEUS

A declaração de que a Escritura é inspirada por Deus é feita de várias formas


ao longo da Bíblia. No Novo Testamento, encontramos referências aos
profetas mais antigos como “Homens que falaram da parte de Deus”; “que
foram movidos pelo Espírito Santo”; e “o Espírito de Cristo que estava neles
testificou”. Existem, portanto, cinco textos principais que você deveria
decorar para entender essa ideia de revelação e inspiração bíblica.

1. 2Timóteo 3:16 — “Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa


para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça.”
2. 2Pedro 1:20,21 — “[…] sabendo primeiramente isto: que nenhuma
profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia
nunca foi produzida por vontade dos homens, mas os homens da parte
de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo.”
3. Mateus 5:17,18 — “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas;
não vim destruir, mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que
o céu e a terra passem, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só
til, até que tudo seja cumprido.”
4. João 10:35 — “[…] a Escritura não pode ser anulada.”
5. João 17:17 — “[…] a tua Palavra é a verdade.”

A Bíblia ainda está repleta de expressões como: “E falou o Senhor”;


“Eis o que diz o Senhor”; “Veio a mim a palavra do Senhor”. Daí estar
corretíssimo referir-se a esse conjunto de revelações como sendo a “Palavra
de Deus”. A palavra “revelação”, como a temos em português, vem do latim
re+velo, que significa “descobrir”, “desvendar”, “levantar o véu”. Revelação
significa, portanto, descobrimento, manifestação de algo que está escondido.
A palavra grega correspondente à latina “revelação” é “apocalipse”.
Revelação é outro termo que aparece na literatura teológica como
paralelo a inspiração. Por isso ambos são, muitas vezes, usados de modo
indistinto, quase como sinônimos. A razão é porque eles exprimem apenas
aspectos diferentes de uma mesma verdade grandiosa. As Escrituras podem,
em resumo, ser definidas como uma produção literária de escritores
inspirados contendo uma série de revelações dadas diretamente por Deus aos
seres humanos. Revelação bíblica é Deus tornar conhecido seus pensamentos,
suas intenções, seus desígnios, seus mistérios (Isaías 55:8,9; Romanos
11:33,34; Apocalipse 1:1).

PALAVRA DE HOMENS?

Considerando que existe um Deus que transcende o Universo, é razoável


supor que esse mesmo Deus se revele às suas criaturas numa linguagem que
elas possam compreender. Caso contrário, ficaria sem sentido a comunicação
divino/humana e o conhecimento do Altíssimo permaneceria uma utopia. A
Bíblia é a mensagem de Deus posta em palavras humanas porque ele resolveu
revelar-se à humanidade para que ela compreenda suas verdades. A Escritura,
pois, tem a ver mais com o conteúdo dessa revelação.
É importante, ao se falar de “inspiração” bíblica, ter bem claro também o
que ela não é:

Não é uma inspiração humana natural. Muitos pensam que os autores da


Bíblia eram apenas gênios literários, como Carlos Drummond de
Andrade ou Cora Coralina. A Escritura é muito clara em dizer que a
genialidade de sua mensagem não veio da capacidade natural deles.
Deus falava através deles (2Samuel 23:2 c/c Atos 1:16; Jeremias 1:9 c/c
Esdras 1:1; Ezequiel 3:16,17; Atos 28:25).
Não é uma inspiração emocional ou mesmo espiritual como a que
sentimos hoje diante de uma música inspiradora ou oração fervorosa. A
emoção de um culto inspirador pode até conter graus de elevação
espiritual, momentos em que nos sentimentos mais cheios de poder ou
mais emotivos. Isso não se dava com o profeta de Deus; ou ele era
plenamente inspirado por Deus ou não era. Não havia graus de
inspiração. Além disso, a sensação comum da presença de Deus pode ser
algo permanente (1João 2:27), ao passo que a manifestação profética era
algo ocorrido num dado momento em que o vidente mal esperava
(Daniel 10:4,5).
A inspiração não admite hierarquias proféticas. Ou seja, um profeta não
é mais ou menos inspirado que outro. Uns podem ter tido visões
historicamente mais relevantes, outros podem ter recebido apenas a
mensagem audível e nada mais. Porém, uma vez reconhecidos como
legítimos, nenhum deles foi mais ou menos inspirado que o outro. O
profeta simplesmente é ou não inspirado, não existe graus de inspiração
profética.
Inspiração não é onisciência. Ou seja, o profeta muitas vezes se limitava
a reproduzir aquilo que via, conforme o Senhor lhe mostrava. Ele
mesmo, muitas vezes, não entendia plenamente todas as nuanças daquilo
que o Senhor comunicava nem discernia os detalhes do futuro
cumprimento de suas profecias. Daniel é um caso clássico. A Bíblia diz
que ele chegou a adoecer por não compreender perfeitamente tudo o que
recebera em visão e, ao que tudo indica, mesmo por ocasião de sua
morte, ainda guardava muitas incógnitas em seu coração. Muitos que
vieram depois dele entenderiam suas profecias melhor que ele mesmo
(Daniel 12:4,9).
A inspiração não se prende às intenções do profeta. Foi por perceber esta
realidade que os exegetas usaram uma expressão latina, sensus plenior,
cuja tradução literal seria “um sentido mais amplo”. Isso significa que o
texto pode nos dizer mais do que o profeta intentava transmitir, pois as
intenções de Deus podem ser mais profundas e abrangentes que o
contexto imediato do autor bíblico. Por exemplo, Isaías, ao profetizar em
7:14 que uma virgem daria à luz um menino especial, provavelmente
tinha em mente um príncipe de seus dias que nasceria da casa de Acaz.
Ele dificilmente imaginaria a figura de uma virgem de Nazaré
carregando um recém-nascido numa manjedoura da cidade de Belém. É
importante, porém, que se diga que esse conhecimento mais profundo do
texto só pode ser descoberto pela iluminação que o Espírito Santo
concede à medida que a Igreja vai se aprofundando no entendimento da
revelação dada por Deus.
A inspiração também não é um ditado de Deus ao profeta. Existe uma
ideia popular de origem desconhecida, segundo a qual Deus teria feito
um ditado verbal ao ouvido do escritor bíblico, de modo que não
houvesse espaço para a atividade pessoal nem para o estilo do escritor
inspirado. Isso não é verdade. Lucas, por exemplo, fez cuidadosa
investigação de fatos conhecidos (Lucas 1:4) e Pedro reconhecia que o
estilo de Paulo às vezes era difícil de ser entendido (2Pedro 3:16). Essa
teoria do ditado faz dos escritores bíblicos verdadeiros gravadores de
áudio sem nenhum tipo de noção ou raciocínio. Pelo contrário, eles eram
seres pensantes que interagiam com a mensagem que recebiam de Deus.
A inspiração não é mera reflexão. Essa ideia, hoje pouco em voga, fez
sucesso nos anos 1920, quando foi pela primeira vez exposta no livro Eu
e tu, escrito pelo filósofo existencialista Martin Buber. Ele a chamou de
Teologia do Encontro. Em sua opinião, Deus e o profeta se encontravam
misticamente, mas Deus não falava nada. Apenas deixava-se sentir.
Então, depois de um tempo, o profeta escreve uma reflexão pessoal de
seu encontro com Deus e os homens a canonizam. Um dos grandes
divulgadores dessa teoria para os arraiais do cristianismo foi Emil
Brunner.

Em suma, as verdades contidas na Bíblia são divinas, mas o modo de


expressá-las é humano. Noutras palavras, este é um livro onde Deus fala com
sotaque humano.
4 Christiansen, Morten H; Kirby, Simon (eds.) Language Evolution: the Hardest Problem in Science?
[Evolução da linguagem: o problema mais difícil da Ciência?). Oxford, Nova Iorque: Oxford
University Press, 2003. p. 77-93. Allerman, Maggie; Gibson, Kathleen Rita. The Oxford Handbook of
Language Evolution [Manual Oxford da evolução da linguagem]. Oxford, Nova Iorque: Oxford
University Press, 2012.
CAPÍTULO TRÊS

SELEÇÃO DOS
LIVROS

COMO FORAM ESCOLHIDOS OS LIVROS DA BÍBLIA?


Conforme você viu anteriormente, pode-se dizer que, do ponto de vista de
seu conteúdo, a Bíblia não seria um livro propriamente dito, mas uma coleção
de pequenos livros devidamente organizados numa ordem lógica. Eles foram
escritos por cerca de quarenta autores num período de quase 1,6 mil anos, que
vai do século 15 a.C. ao fim do século 1 d.C.
Esses livros são normalmente referidos como o cânon bíblico ou o
cânon das Escrituras. Por esse nome (cânon) entenda a lista dos livros
considerados sagrados pela comunidade religiosa. E mais uma vez
precisamos recorrer ao grego para entender isso. É que a palavra quer dizer
“regra” ou “vara de medir”. O termo foi então escolhido pelos cristãos para
diferenciar livros sagrados (ou canônicos) de livros comuns, mas alguns
dizem que a ideia já vinha dos judeus.
A Bíblia Sagrada hoje é composta de uma série de livros que são
reconhecidos tanto por católicos como por protestantes, evangélicos e
cristãos ortodoxos. Os católicos e ortodoxos, é claro, acrescentam alguns
livros à coleção que serão analisados mais adiante. Eles são chamados
deuterocanônicos ou apócrifos, dependendo da fonte que se lê.
Por ora, o que nos interessa é descobrir por que estes, e não outros
livros, foram incorporados no cânon das Escrituras. A resposta é simples:
porque eles foram inspirados por Deus para esse fim. Mas como saber que
foram inspirados?
Tanto os judeus quanto os primeiros cristãos reconheceram, desde o
princípio, os livros que eram ou não inspirados por Deus. Isso se torna ainda
mais claro com o Concílio de Jamnia e os concílios de Hipona Régia e
Cartago, que foram os primeiros da Igreja Cristã a reconhecer o cânon que
temos. De igual modo, os próprios autores desses livros também sabiam que
estavam escrevendo uma obra especial. Isso, portanto, já vem desde os
tempos do Antigo Testamento, quando um profeta iniciava sua mensagem
dizendo “Veio a mim a Palavra do Senhor dizendo […]” ou “Assim diz o
Senhor”.
Estas expressões indicam que eles sabiam de antemão que estavam
escrevendo uma Escritura Sagrada e que sua mensagem era de procedência
divina. A questão era confirmar se sua “consciência profética” era verdadeira
ou charlatã, e havia critérios para isso. Afinal, embora houvesse a advertência
dada pelo próprio Deus para que não se desprezasse as profecias
(1Tesssalonicenses 5:20) e que se cresse nos profetas a fim de prosperar e
estar seguros (2Crônicas 20:20), o povo também era orientado a não acreditar
rapidamente em qualquer um que se dissesse mensageiro do Senhor.
“Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se
procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo
afora” (1Joao 4:1; veja tambem Mateus 7:15).
Em primeiro lugar, o verdadeiro profeta deveria promover a obediência
a Deus (Deuteronômio 13:1-4). Suas profecias, quando não fossem
claramente condicionais, deveriam se cumprir para que o povo soubesse que
o Senhor realmente falou por intermédio dele (Jeremias 28:9). O verdadeiro
profeta sempre discursaria em harmonia com a Lei de Deus e com as outras
revelações anteriormente dadas (Isaías 8:19,20). Finalmente, as obras desse
profeta, isto é, os frutos de sua vida, revelariam a veracidade ou não de suas
credenciais divinas (Mateus 7:25). E o principal de seus frutos seria, para os
cristãos do primeiro século, o enaltecimento da pessoa de Jesus Cristo (1João
4:1-3).
Os apóstolos receberam a promessa de que o Espírito Santo lhes faria
lembrar todas as coisas que Cristo havia dito (João 14:26). Esse mesmo
Espírito os conduziria a toda verdade (João 16:13). Eventos fenomenais
ocorridos por ocasião do Pentecostes e testemunhados por milhares de
pessoas em Jerusalém confirmavam que sua mensagem não era fruto de uma
histeria ou alucinação (Atos 2:4).
O mesmo se pode dizer da inesperada e espantosa conversão de Paulo,
um dos principais inimigos do cristianismo. Sendo ele mesmo autor de boa
parte do Novo Testamento, a Igreja, com o tempo, reconheceu suas
credenciais proféticas e recebeu suas cartas como Palavra de Deus
(1Tessalonicenses 2:13). Essas mesmas cartas ou cópias delas circulavam
pelas igrejas ainda durante o período apostólico (Colossenses 4:16), e o
próprio apóstolo Pedro reconheceu-as como inspiradas por Deus,
equivalentes às demais Escrituras Sagradas (2Pedro 3:15,16). Paulo, por sua
vez, citou uma expressão de Cristo possivelmente retirada de Lucas 10:7 e a
introduziu com a expressão “Pois assim declara a Escritura” (1Timóteo 5:18).
▶ Critérios judaicos

De acordo com Gerald Larue (1968), os critérios utilizados na seleção dos


livros sagrados para serem incluídos no cânon judaico não foram
estabelecidos numa “delineação clara”, mas parecem ter incluído os seguintes
itens:

1. O escrito tinha de ser composto em hebraico. As únicas exceções, que


foram escritas em aramaico, foram Daniel 2:4-7:28; trechos atribuídos a
Esdras (Esdras 4:8―6:18; 7:12-26), que foi reconhecido como o
fundador do judaísmo pós-exílico, e Jeremias 10:11. O hebraico era a
língua da Sagrada Escritura, e o aramaico era a língua da fala comum.
2. O escrito tinha de ser sancionado pelo uso da comunidade judaica. O uso
de Ester em Purim tornou possível que este fosse incluído no cânon. O
livro de Judite, sem esse apoio, não era aceitável.
3. Os escritos tinham de conter um dos grandes temas religiosos do
judaísmo, como a eleição ou a aliança. Reclassificando o Cântico dos
cânticos (ou Cantares de Salomão) como uma alegoria, foi possível ver
neste livro uma expressão do amor de aliança.
4. O escrito tinha de ser composto antes da época de Esdras, pois era
popularmente acreditado que a inspiração havia cessado depois.

Alguns biblistas sugerem que o status canônico dos livros do Antigo


Testamento foi decidido, pelo menos em parte, em razão da data de
composição de cada um deles. Nenhum livro, acreditava-se, teria sido escrito
após o período em que Esdras foi incluído. Isso foi baseado, em grande parte,
na tese farisaica de que a inspiração profética terminou depois de Esdras e
Neemias.
Ressalta-se, no entanto, que essa tese possa ser um critério problemático
para os cristãos que afirmam que o Espírito Santo inspirou os livros do Novo
Testamento, que foram evidentemente posteriores ao período de Esdras. Ele
também pode ser problemático para aqueles estudiosos que acreditam que
vários livros canônicos, como Daniel, Ester, Cântico dos Cânticos,
Provérbios, os livros de Crônicas, datam de um período muito posterior.
Segundo alguns autores liberais, Daniel teria sido escrito bem depois de
alguns livros “apócrifos”, embora teólogos mais conservadores tendam a
discordar disso.

▶ Critérios cristãos

Que critérios, portanto, Igreja Cristã primitiva teria usado para reconhecer os
livros que eram inspirados por Deus? Por evidências indiretas e citações de
vários autores antigos, eis algumas perguntas básicas que eles provavelmente
fariam:

1. Este livro foi escrito por um profeta ou seguidor direto de Cristo de


quem as pessoas davam bom testemunho?
2. Os apóstolos ainda vivos aprovavam seu conteúdo ou eram seus autores
diretos?
3. O escritor tinha episódios miraculosos ou sobrenaturais que
confirmavam sua vida, sua obra e sua mensagem?
4. O livro que ele escreveu era doutrinariamente harmônico com a
inspiração prévia encontrada em outros autores reconhecidamente
inspirados?
5. Os demais profetas vivos reconheciam sua autenticidade?
6. Sua mensagem edificava a Igreja e atraía pessoas para Cristo?
7. Sua mensagem evidenciava a capacidade divina de transformar vidas?
8. A Igreja, a quem a mensagem era dirigida, sentia inspiração divina em
seu conteúdo assim que o recebia?

Lembre-se de que esses critérios tinham um sentido especial aplicado a


uma época em que havia testemunhas oculares ainda vivas, que presenciaram
os acontecimentos ocorridos no período apostólico, especialmente
relacionados ao tempo em que Jesus esteve entre eles.

HISTÓRIA DO CÂNON

Segundo a Bíblia, a civilização pós-diluviana iniciou-se na Mesopotâmia, e


de lá se espalhou para o resto do mundo. Embora em diferentes versões, essa
mesma afirmação pode ser vista nas primeiras inscrições humanas e
testemunhada por eminentes especialistas em História Antiga. Mesmo autores
não religiosos comentam admirados sobre o testemunho mundial das mesmas
histórias presentes no livro do Gênesis.
Lévi-Strauss, que considerava o relato da Criação um mito, admitiu que
“grande surpresa e perplexidade surgem do fato de que esses temas básicos
para os mitos da criação são mundialmente os mesmos em diferentes áreas do
globo”, principalmente fora do Oriente Médio.5
No que diz respeito à Mesopotâmia, pode-se dizer que naquela região
nasceu a civilização humana por volta do quarto milênio a.C. Os sumérios
são normalmente considerados a primeira civilização a ocupar os territórios
entre os rios Tigre e Eufrates. A primeira cidade por eles fundada teria sido
Eridu ou Kish, seguidas pelo surgimento de Nipur, Lagash, Uruk e Ur, de
onde veio o patriarca Abraão.
Ali os sumérios inventaram a roda, a matemática, os números, a
agricultura e os carros com tração animal. Canais de água foram cortados,
trazendo irrigação constante para as plantações. Depois, fizeram altares e
torres foram erguidas em homenagem aos deuses — algo muito semelhante
ao relato de Babel (Gênesis 11). Em torno das elevadas torres, construíram
muralhas fortificadas que deram origem às primeiras cidades reconhecidas
como berços da civilização humana.
Embora os sumérios tenham inventado também a escrita e esta já
estivesse bem desenvolvida em Ur, tudo parece indicar que, no período
patriarcal, que vai de Abraão ao período da escravidão no Egito, o povo
hebreu não possuía nenhum escrito sagrado. Sua tradição teológica era
passada oralmente de pai para filho. As comunicações divinas eram feitas a
certos “videntes” (profetas, no caso) por meio de sonhos, visões ou vozes,
prática essa ainda existente mesmo nos tempos da monarquia israelita (cf.
1Samuel 28:6).
Com Moisés, portanto, quebra-se o “silêncio escriturístico” e começa-se
a redação de livros que formariam posteriormente o conjunto da Bíblia
Sagrada. A própria preocupação dos antigos em preservar com cuidado esses
manuscritos indica que eram textos muito especiais, assim reconhecidos
desde sua origem (Êxodo 40:20; Deuteronômio 17:18; 31:24-26; Josué 24:26;
1Samuel 10:25; 2Reis 22:8).

Até o início do século 20,


acadêmicos céticos da
escola alemã de
Wellhausen afirmavam que
Moisés não poderia ter
escrito o Pentateuco por
uma razão muito simples: a
escrita só seria inventada
séculos depois dele!
Contudo, escavações
arqueológicas feitas um Ur
mostram que, já no tempo
de Abrão, havia um sistema
de escrita altamente
sofisticado, com escolas até
para crianças aprenderem a
ler. Isso sem contar as
inscrições alfabéticas
descobertas no Sinai, em
Biblos e em Ras Shamra, e
que são igualmente
anteriores ao tempo de
Moisés. É digno de nota
que pelo menos uma dessas
escritas foi encontrada na
península do Sinai, no
mesmo lugar onde Moisés
recebeu a incumbência de
escrever seus livros,
conforme lemos em Êxodo
17:14: “Então disse o
Senhor a Moisés: Escreve
isto para memória num
livro e repete-o a Josué.”
Antiga escrita cuneiforme, certa de 3 mil anos a.C.

Referências posteriores às Escrituras (Isaías 1:10; 2:3; Oseias 4:6; 8:1;


Amós 2:4; Miqueias 4:2) indicam que o povo tinha um conjunto de textos
legais e religiosos aos quais deveriam prestar atenção. Passagens como
Jeremias 18:18; Zacarias 3:4 e Ageu 2:11 aumentam a hipótese de que era
obrigação dos sacerdotes preservar o conteúdo desses escritos e ensiná-los ao
povo.
É, no entanto, no reinado de Josias que encontramos a evidência mais
direta de um conjunto de livros sagrados que foram apresentados e
reconhecidos oficialmente pelo povo. A narrativa conta da redescoberta do
livro da Lei dentro de algum lugar secreto localizado no Templo de Jerusalém
(2Reis 22:8-10 e 2Crônicas 34:14-18). Tal achado provocou uma reforma
religiosa sem precedentes. Mas, como o próprio texto indica, não se trata da
preparação de algo inédito, mas do achado de um texto sagrado antigo, já
previamente conhecido, mas que, por alguma razão, caíra no esquecimento
do povo. Então veio o exílio da Babilônia, e novamente os livros sagrados
precisaram ser preservados e reapresentados diante do povo na reforma
religiosa promovida por Esdras e Neemias após os anos de cativeiro.

▶ Cânon hebraico

Existe uma história na tradição judaica segundo a qual Esdras, na qualidade


de escriba e sacerdote, havia presidido um conselho de 120 anciãos chamado
Grande Sinagoga, e ali determinaram quais livros fariam ou não parte da lista
de escritos sagrados. O Talmude também faz referência a esse suposto
encontro que envolveu nomes importantes como Neemias, Ageu, Zacarias,
Malaquias, Daniel (não o profeta) e Simão, o Justo. Isso teria acontecido por
volta do ano 450 a.C.
Contudo, persistem sérias dúvidas quanto à historicidade desse evento, e
muitos acadêmicos não acreditam em sua ocorrência. A. Kuenen (apud
LEUCHTER, 2011) foi o mais acirrado crítico dessa tradição. Ele argumenta,
principalmente, que ela é fruto de uma interpretação legendária de Neemias,
capítulos 8 a 10, e, de fato, não existe nada ali que indique que eles tomaram
qualquer decisão formal de estabelecer um cânon fechado do Antigo
Testamento. O texto bíblico fala de uma reforma religiosa que se voltou para
livros que já eram sagrados na tradição do povo judeu.
O livro de 2Macabeus — que não faz parte do cânon judaico, mas é
histórico — afirma que, por volta de 450 a.C., Neemias “fundou uma
biblioteca, recolheu os livros sobre os reis e profetas e os escritos de Davi e
as cartas dos reis sobre ofertas voluntárias” (2:13-15). Isso está em harmonia
com o relato de Neemias 8 e 9, segundo o qual o sacerdote e escriba Esdras
havia trazido a Lei (ou uma cópia dela) de volta da Babilônia para Jerusalém.
Tanto 1 quanto 2Macabeus sugerem ainda que Judas Macabeus coletou,
em 167 a.C., alguns livros sagrados do judaísmo e os trouxe para o povo.
Novamente, nenhuma dessas passagens sugere que o cânon hebraico tenha
sido fixado nesse tempo. Eles apenas ratificaram uma lista previamente
reconhecida.

O Talmude é uma coleção


de 63 tratados judaicos
envolvendo assuntos
religiosos, legais, éticos e
históricos compilados por
antigos rabinos. Ele foi
publicado no século 5 d.C.
na Babilônia, onde viviam
muitos judeus. É a mais
importante coleção de leis e
interpretações do judaísmo
seguida até hoje pelos
judeus ortodoxos.
Em 1871, Heinrich Graetz sugeriu que houve um concílio de rabinos em
Jamnia por volta do ano 90 d.C., e ali foi estabelecido o cânon das Escrituras
segundo o judaísmo. Hoje, no entanto, essa teoria caiu no esquecimento e
praticamente nenhum especialista dá crédito a ela (BROWN, 1990; LEWIS,
1992).
Não existe ainda um consenso que permita afirmar quando, como e por
que o cânon hebraico foi criado. Nem o achado dos manuscritos de Massada
ou do Mar Morto lançou qualquer luz adicional a esse respeito. Autores
conceituados como Jacob Neusner (2001) chegam a supor que, até o segundo
século, e mesmo mais tarde, nenhum cânon foi formalmente criado pelos
judeus, e que, ao contrário, o conceito de Torá (Lei) teria sido ampliado para
incluir também a Mishná, a Toseftá, o Talmude e o Midrashin, todos
documentos e comentários legais sobre religião escritos pelos rabinos do
judaísmo tardio.
Por outro lado, a ausência de debates quanto ao conteúdo oficial das
Escrituras judaicas, imediatamente antes e depois de Jesus, pode sugerir que
isso não era um problema para eles, provavelmente porque já tinham sua lista
bem definida. O historiador Flávio Josefo testemunhava no primeiro século:
“Os profetas escreveram o original dos primeiros relatos das coisas que eles
aprenderam do próprio Deus por meio da inspiração” (Contra Ápio I, 7).
Foi somente após o surgimento do cristianismo que houve no judaísmo
uma disputa acerca dos “livros que sujam as mãos”, isto é, livros que fossem
realmente inspirados por Deus. A ideia por trás dessa expressão judaica era a
de que, se um livro fosse realmente inspirado por Deus, ele sujaria as mãos
de quem o manuseasse indevidamente.
De fato, até hoje na sinagoga o rolo da Torá é o objeto mais sagrado que
existe. Não se pode tocar suas letras com o dedo. Por isso, ao lê-la, é preciso
que se use um “Yad”, isto é, um ponteiro de metal com o formato de uma
haste e, na extremidade, uma mão e um dedo estendido. Se alguém derruba
acidentalmente a Torá, toda a congregação deve jejuar por quarenta dias para
reparar o erro.
O cânon judaico contém 24 livros. Cada um era disposto num rolo de
pergaminho conforme o costume mais antigo. Já o Antigo Testamento,
conforme adotado pelo cristianismo, tem muito mais que isso, e as razões não
são difíceis de entender. Primeiro, porque os cristãos dividiram alguns dos
livros que, na versão hebraica, aparecem como um só volume. Por exemplo,
Samuel, Reis e Crônicas agora aparecem como 1 e 2Samuel, 1 e 2 Reis e 1 e
2 Crônicas. O mesmo se dá com Esdras e Neemias, originalmente um só
livro, mas que hoje aparecem como diferentes compêndios, e assim por
diante.

No fim do século I, ou
início do II e seguintes da
Era Cristã, alguns judeus
empregavam a expressão
“sujar as mãos” para se
referir à sua literatura
sagrada. Neste período,
alguns judeus começaram
os debates sobre quais
livros “sujam as mãos”
ritualmente, isto é, quais
textos religiosos são
Escritura Sagrada. O
significado dessa expressão
é um tanto obscuro, mas ela
se refere aos livros que os
judeus consideravam
sagrados. […] “Sujar as
mãos” era uma referência à
sacralidade dos livros
sagrados. Aceitar a
propriedade das Escrituras
de sujar as mãos era uma
forma de aceitar seu caráter
sagrado. (McDonald, 2013,
p. 119)

▶ Cânon Alexandrino?

É muito comum nos manuais de introdução à Bíblia fazer alusões à


Septuaginta ou LXX. Trata-se de uma tradução das escrituras judaicas para o
grego realizada por volta de 3º. Século a.C. (mais à frente falaremos dela).
Ocorre que as cópias mais completas que temos dessa versão grega das
Escrituras parecem incluir no cânon os apócrifos ou deuterocanônicos, que os
cristãos de confissão protestante não reconhecem como inspirados por Deus.
Em virtude disso, e considerando que os primeiros cristãos (incluindo
Paulo) parecem ter feito largo uso da LXX, alguns teorizam eu isto seria um
forte indicio para o fato de que a igreja cristã primitiva e os judeus da época
de Cristo aceitavam uma lista de livros canônica maior do que aquela que
aparece nas versões protestantes e na Bíblia Hebraica.
Esta suposta lista é chamada de Cânon Alexandrino, pois entende-se que
era seguida pelos judeus de Alexandria como sendo a lista completa dos
livros sagrados dos cristãos que, por extensão, teria mais livros que a
listagem tradicional, além de extensões aos livros de Ester e Daniel.
Ocorre, no entanto, que aspectos históricos conspiram contra veracidade
dessa teoria:
Em primeiro lugar, não existe nenhuma fonte histórica anterior ao 4º
século d.C. que evidencie algo como “cânon alexandrino”. Não há nada que
indique que os primeiros escritores cristãos, ou mesmo seus contemporâneos
judeus, tivessem ciência de tal listagem mais ampla. Ademais, o nome LXX,
ao que tudo indica, referia-se primariamente à tradução grega do Pentateuco
apenas, isto é, os cinco primeiros livros de Moisés. Somente nos tempos de
Justino o Mártir (165 d.C.) é que o termo passou a encampar todo o Antigo
Testamento, às vezes, configurando uma lista de livros maior que a do cânon
hebraico. Porém, Flávio Josefo, historiador judeu do primeiro século era claro
em afirmar que os judeus “de toda parte” só reconheciam 22 livros sagrados,
o que obviamente, exclui os deuterocanônicos.
Em Contra Ápio 1.38, Josefo diz:

Pois não temos uma infinidade de


livros entre nós, discordando e se
contradizendo [como os gregos têm],
mas apenas vinte e dois livros, que
contêm todos os registros de todos os
tempos passados; que justamente se
acredita ser divino.

A aparente discrepância dos números (se 22 ou 24 livros), pode ser


explicada, ainda que hipoteticamente, pelo fato de que, de acordo com a
tradição oral judaica (Baraíta Babilônico 13b e 14b), todos os livros sagrados
que não faziam parte do Pentateuco (Torá) deveriam ser copiados de maneira
separada livro a livro. Juntos eles formariam os profetas e os hagiógrafos.
Porém, alguns escribas, para economizar pergaminho, colocavam Rute junto
com Juízes ou com os Salmos de modo a formar um único rolo. O mesmo
faziam com Lamentações e Jeremias, de modo a formar outro rolo. Assim,
nalgumas sinagogas, os rolos seriam contados como 22, enquanto os livros
eram, na verdade, 24.
Portanto, nem Filo de Alexandria, Josefo ou qualquer outro autor judeu
ou cristão dos tempos apostólicos jamais citou os deuterocanônicos como
parte da Escritura Sagrada. Sua incorporação no cânon foi um fenômeno
tardio, como veremos mais adiante. O que se pode afirmar, em última
instância, é que desde o 1º século a.C. até o século 4 d.C. as listas canônicas
da Bíblia Hebraica são concordantes em apresentar como sagrados os
mesmos livros que hoje compõem o cânon hebraico das Escrituras sem
nenhum texto a mais ou a menos.
Admite-se que uns poucos Pais da Igreja citam estes livros como
autoritativos em sua argumentação teológica. Porém, além de não se tratar de
uma unanimidade, pois outros autores da mesma época foram taxativos em
negar a inclusão desses livros, leve-se em conta que estes escritores não eram
profetas inspirados por Deus, pelo que sua opinião contra ou a favor não deve
ser o determinante final para aceitação ou rejeição da lista deuterocanônica.

Antigos autores cristãos


que mencionam a lista de
22 livros sagrados do
Antigo Testamento

A UTOR D ATA F ONTE

Melito de Sardes 170 AD História Eclesiástica de Eusébio, 26.4.14

Orígenes 210 AD História Eclesiástica de Eusébio 6.25


Hilário de Poitiers 360 AD Tratado sobre os Salmos, Prólogo 15

Atanásio 365 AD Carta 39.4

Cirilo de Jerusalém 386 AD Palestras Catequéticas 2, 4,33

Gregório Nazianzo 390 AD Carmina 1.12

Membros do Concílio de Laodiceia 391 AD Cânon 60

Epifânio ⸺ ⸻

Rufino 410 AD Comentário sobre os Símbolos dos Apóstolos, 37

Jerônimo 410 AD Introdução a Samuel e Reis

▶ Cânon cristão

Existe uma acusação muito conhecida de que os livros da Bíblia foram


decididos por questões políticas, desenvolvidas especialmente em
convocações eclesiásticas, como o famoso Concílio de Niceia, realizado no
ano 325 d.C.
Dizem que esse concílio, convocado pelo imperador Constantino, foi o
primeiro encontro de todos os bispos da Igreja Cristã, e que nele inventaram
ou editaram o Novo Testamento, removendo, por exemplo, outros evangelhos
que narravam um casamento entre Jesus e Maria Madalena ou que negavam a
divindade de Cristo.
Tais afirmações, no entanto, não são precisas e não coincidem com a
verdade dos fatos. Basta para isso pesquisar as atas que mostram o que foi
discutido no concílio e o que os mais antigos historiadores falaram a respeito
dele. O imperador Constantino, por exemplo, que convocou o encontro, não
tinha nenhuma cultura formal ou teológica para decidir nada.
Embora ele fosse realmente um líder político, sua intenção não era tomar
partido de um ou outro lado, mas fazer com que a igreja que ele estava
apoiando eliminasse divisões internas que poderiam prejudicar o processo de
reunificação do território romano a partir de uma suposta cristianização do
império. Essas divisões eram concernentes à relação divina entre Jesus e
Deus Pai, a construção da primeira parte de um credo da Igreja, a fixação da
data da Páscoa e a promulgação do chamado Direito Canônico, conjunto de
leis e regulamentos adotados pelos líderes da igreja para a organização do
cristianismo em Roma.
O próprio registro bíblico implica claramente que, durante o tempo dos
apóstolos, os primeiros cristãos estavam em estreita comunicação e
concordância, e foi nessa época que as cartas de Paulo foram escritas para
diferentes congregações, ajudando a uni-las. Paulo faz referência a textos que
estão nos evangelhos chamando-os de Escritura e Pedro enaltece as epístolas
paulinas como sendo proveitosas. Parece bastante claro, desde o início do
cristianismo, quais dessas cartas e textos foram ou não aceitas no cânon e isso
se tornou mais evidente a partir da segunda metade do século II, quando as
contendas sobre doutrinas começaram a se espalhar pelas igrejas
estabelecidas no mundo mediterrâneo.

Conspiração em Niceia?

Os 318 bispos reunidos em


Niceia expediram um credo
(symbolum), vinte cânones
e uma carta à igreja de
Alexandria. As atas, é
claro, chegaram até nós de
forma fragmentária, mas
em nenhuma delas, nem
mesmo no registro dos
historiadores que
descreveram o encontro, há
qualquer indício que afirme
que, no Concílio de Niceia,
discutiu-se quais
evangelhos fariam ou não
parte do Novo Testamento.
Não há menção a esse
assunto em nenhuma das
pautas, muito menos em
relação ao estabelecimento
de uma lista oficial de
livros que comporiam a
Bíblia Sagrada.

Uma obscura citação de


Jerônimo sobre o livro de
Judite, levou alguns a
crerem que houve, sim,
uma discussão no encontro
acerca do cânon e os livros
deuterocanônicos. Sabemos
pelos Cânones Apostólicos
(Cânon LXXXV) e pelos
Cânones do Concílio local
de Cartago, em 397, que a
maioria dos livros
deuterocanônicos foram
incluídos no cânon do
Antigo Testamento, mas
não há nenhum registro
disso sendo confirmado
pelo Concílio de Niceia.
Além disso, causa
estranheza que Cartago
tenha emitido Cânones
relacionados ao cânon das
Escrituras em 397 se Niceia
já tivesse emitido um
cânone em 325.

Portanto, ainda que tenha


havido alguma discussão
sobre a canonicidade
bíblica no Concílio de
Niceia, não há razão para
duvidar da evidência de
que os cristãos primitivos,
muito antes desse encontro,
já tinham uma boa noção
do que deveria ser incluído
ou não na lista de livros
inspirados por Deus. Pode-
se argumentar que a
confusão veio depois, não o
consenso. E que houve
amplo acordo a esse
respeito desde os tempos
apostólicos.

▶ Antigos cânones
As evidências indicam que, embora houvesse por algum tempo certa disputa
quanto aos livros de Hebreus, Tiago, 2Pedro, 2João, Judas e Apocalipse, os
cristãos primitivos já tinham em mente quais livros eram ou não inspirados
por Deus para compor as escrituras cristãs.
O Cânon Muratoriano, escrito 150 anos antes do concílio, já mencionava
os evangelhos que fariam parte da Bíblia. Esse mesmo cânon, juntamente
com Orígenes (outro escritor antigo do cristianismo), possivelmente já
utilizava os 27 livros que temos hoje no Novo Testamento. Igualmente,
outros autores que viveram bem antes do concílio — como Papias, Justino e
Ireneu de Lion — já abordavam a questão dos evangelhos e dos livros
neotestamentários que seriam ou não inspirados por Deus.
Taciano foi outro autor convertido ao cristianismo pela pregação de
Justino, o Mártir, em torno de 150 d.C. Após longos estudos de doutrinação,
ele retornou à Síria e organizou uma composição dos quatro evangelhos com
o objetivo de harmonizá-los em todas as suas narrativas. Essa composição
recebeu o nome de Diatessaron, que quer dizer “[harmonia] através dos
quatro”. Em pouco tempo essa obra serviu de texto litúrgico para a igreja
siríaca centralizada em Edessa.
Mesmo entre os autores controversos, reconhecidos como hereges pela
Igreja do século 2, encontramos pistas de um cânon formalizado pela maioria
da Igreja Cristã. Marcião de Sinope é um exemplo clássico. Atuando ainda
como bispo na Ásia menor, ele propôs uma cisão teológica entre o que ele
chamou de “Deus do Novo Testamento” e “Deus do Antigo Testamento”.
O primeiro seria um Deus bom, caridoso e cheio de misericórdia para
com os homens. Já o segundo seria um Deus legalista, condenador, pronto
para condenar a quem cometesse o menor deslize. Em virtude desse
raciocínio, Marcião rejeitou praticamente todo o Antigo Testamento e só
aceitou partes do Novo. Seu cânon constava apenas das epístolas de Paulo
(menos as epístolas pastorais) e do Evangelho de Lucas, com exceção dos
textos que ligavam Jesus ao Antigo Testamento.
Embora alguns acadêmicos reputem o cânon de Marcião como original
ou como evidência de que não havia ainda uma lista oficial de livros
inspirados dentro do cristianismo, é possível ver aqui outra hipótese: de que
já havia um cânon quase totalmente sistematizado. Caso contrário, a tarefa de
Marcião se limitaria a criar um cânon e não rejeitar uma lista já existente.
Em favor dessa ideia é possível citar uma passagem de Tertuliano que
diz:

Desde que Marcião separou o Novo


Testamento do Antigo, ele segue
necessariamente aquilo que ele
mesmo separou, ao passo que foi
apenas por sua própria autoridade
que ele separou o que antes estava
unificado. Sendo, pois, algo
unificado antes de sua separação, o
fato dessa subsequente separação
prova o fato de que foi um homem
que efetuou essa separação. (De
praescriptione haereticorum, 30).

Portanto, embora pudesse haver ainda uma ou outra disputa acerca de


alguns livros, pode-se dizer que grande parte do Novo Testamento já era
reconhecida como tal na metade do segundo século d.C. ou até antes disso.
Numa carta escrita no ano 367 d.C., Atanásio, bispo de Alexandria,
apresentou uma lista dos livros que comporiam os 27 que temos hoje no
Novo Testamento. Ele foi o primeiro a usar a palavra “canonizados” para se
referir a eles.
LISTAGEM SAGRADA

Os nomes com os quais estamos mais acostumados a nomear os livros do


Antigo Testamento vêm do grego através da titulação que aparece na
Septuaginta, uma antiga versão grega das Escrituras que será apresentada
mais adiante. Já os judeus costumavam chamar os cinco primeiros livros de
Moisés a partir das duas primeiras palavras que apareciam no texto. Assim,
seus títulos hebraicos seriam:

▶ Torá

Bereshit (No princípio…) ― Gênesis


Shemot (Os nomes…) ― Êxodo
Vayikra (E Ele chamou…) ― Levítico
Bamidbar (No deserto…) ― Números
Devarim (As palavras…) ― Deuteronômio
▶ Neviim (Profetas)

Yehoshua (Josué)
Shoftim (Juízes)
Shmuel (1 e 2Samuel)
Melakhim (1 e 2Reis)
Yeshayah (Isaías)
Yirmyah (Jeremias)
Yechezqel (Ezequiel)

▶ Os Doze (tratados como um livro)

Hoshea (Oseias)
Yoel (Joel)
Amos (Amós)
Ovadiá (Obadias)
Yoná (Jonas)
Mikhá (Miqueias)
Nachum (Naum)
Chavakuk (Habacuque)
Tzefanyá (Sofonias)
Chagai Zecharia (Zacarias)
Malachi (Malaquias)
▶ Ketuvim (Escritos)

Tehilim (Salmos)
Mishlei (Provérbios)
Iov (Jó)
Shir Ha-Shirim (Cântico dos cânticos)
Ruth (Rute)
Eichá (Lamentações)
Kohelet (nome do autor) (Eclesiastes)
Esther (Ester)
Daniel
Ezra e Nechemyah (Esdras e Neemias — tratados como um só livro)
Divrei Ha-Yamim (As palavras dos dias) (Crônicas)

Além disso, existe uma discussão (mais à frente falaremos dela)


concernente aos chamados livros apócrifos ou deuterocanônicos. Trata-se de
um conjunto adicional de livros e capítulos que não faziam parte do cânon
original hebraico (e por isso foram rejeitados pelos protestantes), mas que
terminaram aceitos e incluídos pelas igrejas ortodoxa, etíope, siríaca e
católica. A lista não é uniforme, alguns livros reconhecidos pelas igrejas
orientais não são aceitos pelo catolicismo ocidental.
É o caso, por exemplo, do Testamento dos Doze Patriarcas, por um
tempo considerado parte da Bíblia adotada pela Igreja Apostólica Armênia,
mas nunca canonizado pelas igrejas do Ocidente. Outros livros ou trechos,
como Oração de Manassés, Oração de Jeremias, também constam em alguns
cânones do Oriente, e os livros de Macabeus são tão diferentes da versão
católica que foram, por isso mesmo, chamados “Macabeus etíopes”.
Seja como for, é ponto pacífico que todos estes livros foram compostos
nalgum período entre 200 e 100 a.C. Os que aparecem a mais nas bíblias
católicas são os seguintes:
Tobias
Judite
1Macabeus
2Macabeus
Eclesiástico
Sabedoria
Baruque
Acréscimos a Ester
Acréscimos a Daniel

LISTA CRISTÃ

O cânon cristão seria o que chamamos de Novo Testamento, e que


complementa o cânon judaico. São 27 livros ao todo, assim distribuídos:

▶ Evangelhos

Mateus
Marcos
Lucas
João
▶ Livro histórico

Atos dos apóstolos

▶ Cartas (Epístolas)

Romanos
1Coríntios
2Coríntios
Gálatas
Efésios
Filipenses
Colossenses
1Tessalonicenses
2Tessalonicenses
1Timóteo
2Timóteo
Tito
Filemon
Hebreus
Tiago
1Pedro
2Pedro
1João
2João
3João
Judas

▶ Livro profético

Apocalipse (Revelação)

Se levarmos em conta o fenômeno da inspiração profética, podemos


dizer que Deus determinou o cânon e a Igreja apenas o reconheceu e aceitou.
Não foi ela quem o criou. A Palavra de Deus era reconhecidamente inspirada
e tinha autoridade religiosa desde a sua concepção. Sua origem era celestial,
como afirma o salmo 119:89: “Para sempre, ó Senhor, está firmada a tua
palavra no céu.”
A revelação de Deus também inclui a preservação daquilo que Ele
queria que permanecesse dos textos inspirados. O texto do Antigo
Testamento comumente usado entre os judeus durante o ministério terreno de
Cristo era inteiramente confiável. Jesus disse: “Porque em verdade vos digo
que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei,
sem que tudo seja cumprido” (Mateus 5:18). “É mais fácil passar o céu e a
terra do que cair um til da lei” (Lucas 16:17). A mesma providência divina
que preservou o Antigo Testamento preservara o Novo Testamento. Implícito
na “grande comissão”, que tem aplicação com a Igreja de Cristo de todos os
tempos, está a promessa que a Igreja sempre possuirá o registro infalível das
palavras e obras de Jesus. Cristo declarou: “O céu e a terra passarão, mas as
minhas palavras não hão de passar” (Mateus 24:35; Marcos 13:31; Lucas
21:33).
5 Claude Levi-Strauss, “The Structural Study of Myth”, in: Structural Anthropology [Antropologia
estrutural]. Nova Iorque : Basic Books, 1963, p. 208.
CAPÍTULO QUATRO

LIVROS PERDIDOS,
BANIDOS, ADOTADOS

ESCRITOS PERDIDOS
A Bíblia Sagrada menciona diversos livros dos quais nada sabemos por que
desapareceram da História. Seu conteúdo provavelmente tornou-se perdido
desde cedo e, por alguma razão, não foram preservados nem pela geração que
se seguiu imediatamente à época de sua produção.
Quanto à lista desses livros, é importante esclarecer que não se trata de
livros perdidos da Bíblia, no sentido de que um dia fizeram parte dela e
depois foram excluídos. Também é importante diferenciá-los dos chamados
pseudoepígrafos, isto é, livros escritos muito tempo depois dos eventos
mencionados e falsamente atribuídos a personalidades famosas, como
Enoque, Melquisedeque e até Adão e Eva.
Começando pelo Antigo Testamento, costuma-se mencionar como
exemplos de livros perdidos o chamado “Livro das Guerras do Senhor”,
mencionado em Números 21:14; o “Livro do Justo”, Josué 10:14; o “Livro do
profeta Natã”, 1Crônicas 29:29, entre outros. Seriam, neste caso, livros
inspirados que se perderam?
Esta é uma pergunta difícil de se responder, pois comporta duas
possibilidades. A primeira de que pelo menos alguns deles seriam inspirados
por Deus, mas apenas para uma situação específica e, por isso, não tinham
necessidade de entrar no cânon. Este seria o caso de um registro escrito pelo
profeta Isaías sobre o rei Uzias, e do qual nada sabemos (2Crônicas 26:22). A
segunda possibilidade é que nem todas eram obras inspiradas, mas apenas
históricas e, com esse fim, foram citadas pelo autor inspirado. De fato, muitas
delas serviram de base à composição dos livros de Samuel, Reis e Crônicas.
A inspiração profética, portanto, não significa ineditismo ou originalidade,
mas orientação do Espírito de Deus no uso correto das fontes que menciona.
Quanto ao Novo Testamento, a Igreja Cristã foi definida em Efésios
2:20 como uma casa “fundamentada nos apóstolos e profetas”. Tal expressão
indica que eles já trabalhavam com escritos tanto de um grupo quanto de
outro. Logo, essa larga aceitação de livros, ainda nos tempos apostólicos, em
contraste com umas poucas disputas ocorridas posteriormente, indica que eles
já tinham bem amadurecida a ideia de possuir uma coleção de escritos
inspirados. É possível, contudo, que alguns desses escritos não tenham
sobrevivido até nossos dias.
Um caso exemplar seria a forte suspeita de que Paulo havia escrito mais
de duas cartas aos coríntios, e que, infelizmente, se perderam. Em duas
passagens, ele se refere a conteúdos enviados à igreja, mas que não estão em
nenhuma parte das cartas atuais.
Em 1Coríntios 5:9 ele fala de uma carta anterior, de modo que a que
chamamos “Primeira” Coríntios, na verdade, não foi a primeira. Já em
2Coríntios 2:4 ele diz que escreveu anteriormente aos membros em meio a
muita tribulação e angústia, mas os estudiosos não conseguem ligar tais
circunstâncias com o conteúdo de 1Coríntios, de modo que são grandes as
possibilidades de haver outra(s) carta(s) perdida(s) de Paulo.
E temos ainda uma referência em Colossenses 4:16 a uma carta enviada
aos cristãos de Laodiceia, cujo conteúdo ninguém atualmente conhece. De
igual modo, alguns estudiosos pensam que a carta aos Filipenses seria, na
verdade, uma coleção de vários bilhetes.
Por volta do fim do primeiro século d.C., Clemente de Roma atuava
como presbítero da Igreja Cristã e, estando em Roma, enviou cartas para a
igreja em Corinto. Ele se demonstrou familiarizado com as cartas de Paulo e
as tratou como palavra de Deus. Alguns pensam que esse Clemente seria o
mesmo mencionado por Paulo em Filipenses 4:3 (veja Eusébio de Cesareia,
[História Eclesiástica, III. 38, 4). Clemente também faz menções ocasionais
a certas “palavras de Jesus”, e embora elas fossem autoritativas para ele, não
são tratadas como “evangelhos”, muito menos como escritos inspirados. Ao
que tudo indica, eram sentenças que ele tinha de memória, possivelmente
transmitidas de maneira oral, mas que não foram preservadas de forma
escrita, como no caso dos evangelhos. Um exemplo seria Atos 20:35, onde
Paulo atribui uma frase a Cristo que não se encontra nos evangelhos.
Eusébio de Cesareia (Ecclesiastical History, III, 25), após apontar os
livros do Novo Testamento na ordem como os temos hoje, faz menção a
outros títulos que circulavam pelas igrejas cristãs de seu tempo, mesmo sem
serem reconhecidos como inspirados por Deus. Dentre eles estariam um certo
Evangelho dos Hebreus, Cartas de Barnabé e um Apocalipse de Pedro.

▶ Lista dos livros perdidos mencionados na Bíblia


1. Livro do Convênio (Êxodo 24:4,7)
2. Livro das Guerras (Números 21:14)
3. Livro de Jasar (Josue 10:13; 2Samuel 1:18)
4. Livro dos Estatutos (1Samuel 10:25)
5. Livro dos Atos de Salomão (1Reis 11:41)
6. Livro de Natã (1Cronicas 29:29; 2Cronicas 9:29)
7. Livro de Gade (mesmo do item 6)
8. Profecias de Aías (2Crônicas 9:29; 2:15; 13:22)
9. Visões de Ido (mesmo do item 8)
10. Livro de Semaías (2Crônicas 12:15)
11. Livro de Jeú (2Crônicas 20:34)
12. Atos de Uzias, escrito por Isaías (2Crônicas 26:22)
13. Livros dos Videntes (2 Crônicas 33:19)
14. Profecias de Enoque (Judas v. 14)
15. Crônicas dos Medos e Persas (Ester 10:2)
16. Um profeta desconhecido citado por Mateus (Mateus 2:23)
17. Epístola perdida de Paulo, provavelmente aos Coríntios (1Coríntios 5:9)
18. Segunda epístola perdida de Paulo, provavelmente aos Efésios (Efésios
3:3,4)
19. Terceira epístola perdida de Paulo, aos Laodicenses (Colossenses 4:16)

PSEUDOEPÍGRAFOS

O termo “pseudoepígrafos” (ou pseudepigrapha) não é muito conhecido em


alguns meios do cristianismo. Contudo, é um título-chave para a definição de
vários livros atribuídos a personagens do Antigo e Novo Testamentos, mas
que, na verdade, foram escritos por outros autores anônimos, séculos depois
da morte do autor bíblico. Pseudoepígrafo é a junção de duas palavras gregas:
pseudos, que quer dizer “falso”, e epigrafe, que quer dizer “título” ou
“nome”. Portanto, pseudoepígrafo refere-se a livros falsamente intitulados ou
falsamente atribuídos a alguém. Dependendo do contexto, podem ser
sinônimos de livros “apócrifos”.
O apóstolo Paulo dá um testemunho que indica que já no seu tempo o
cristianismo tinha de lidar com textos falsamente atribuídos à autoria
apostólica. Dirigindo-se aos cristãos da cidade de Tessalônica, ele os orientou
a que não se deixassem levar por cartas supostamente escritas por ele, mas
que, na verdade, eram falsas (2Tessalonicenses 2:2). Por essa razão, Paulo
tomou o cuidado de escrever, em algumas de suas epístolas, uma nota que
dizia: “Eu, Paulo, escrevo esta saudação de próprio punho, a qual é um sinal
em todas as minhas cartas. É dessa forma que assino” (veja também
1Coríntios 16:21; Gálatas 6:11 e Colossenses 4:18).
Dentre os pseudoescritos que chegaram até nós, encontramos textos
atribuídos a Adão, Noé, Enoque, Moisés, Elias e a personagens do Novo
Testamento, como Tomé, Pedro, João e até Judas. Mas, repetimos, não foram
escritos por eles. No entanto, existe a possibilidade de que alguns deles
contenham alguma informação que seja legítima, baseada numa fonte oral ou
em outros manuscritos hoje desaparecidos. A Epístola de Judas, por exemplo,
pertencente ao cânon do Novo Testamento, reputa como verdadeira uma
profecia atribuída a Enoque e que consta no apócrifo de Enoque que diz:

Quanto a estes foi que também


profetizou Enoque, o sétimo depois
de Adão, dizendo: Eis que veio o
Senhor entre suas santas miríades,
para exercer juízo contra todos e
para fazer convictos todos os ímpios,
acerca de todas as obras ímpias que
impiamente praticaram e acerca de
todas as palavras insolentes que
ímpios pecadores proferiram contra
ele. (v. 14,15)
Esses manuscritos foram produzidos, aproximadamente, entre 300 a.C. a
300 d.C. e se espalharam pelo mundo greco-romano. Contudo, eles jamais
foram incluídos nas Escrituras hebraicas nem na literatura rabínica
tradicional. Entretanto, essa coleção de antigos textos judaicos tem
despertado o interesse de acadêmicos do mundo inteiro por revelar
importantes aspectos do judaísmo que existiu nos tempos antigos,
especialmente no princípio do cristianismo. Fragmentos desses livros foram
também encontrados entre os manuscritos do Mar Morto.
Existem pseudoepígrafos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento.
Uma lista parcial deles inclui os seguintes títulos:

▶ Antigo Testamento (subdivididos em categorias)

▷ Apocalipses

Apocalipse de Abraão
Apocalipse de Adão
Apocalipse de Baruque
Apocalipse grega de Baruque
Apocalipse de Daniel
Apocalipse de Elias (copta)
Apocalipse de Elias (hebraico)
Apocalipse de Esdras ou 4Esdras
Apocalipse de Sidraque
Apocalipse de Moisés
Apocalipse de Sofonias
▷ Testamentos

Testamento de Abraão
Testamento de Adão
Testamento dos Doze Patriarcas
Testamento de Isaque
Testamento de Jacó
Testamento de Jó
Testamento de Moisés ou Assunção de Moisés
Testamento de Salomão

▷ Outros pseudoepígrafos do Antigo


Testamento

Ascenção de Isaías
4Baruque ou Omissões de Jeremias
Perguntas de Esdras
1Enoque ou livro de Enoque etíope
2Enoque ou Enoque eslavo
3Enoque ou Apocalipse hebraica de Enoque
Livro dos Jubileus
Livro de Janes e Jambres
Livro de José e Asseneth
Livro de Noé
5Macabeus
Odes de Salomão
Oráculos sibilinos
Oração de José
História de Achikar
História dos recabitas
Vida de Adão e Eva
Visão de Esdras
Vidas dos profetas

▷ Pseudoepígrafos ou apócrifos presentes


na versão grega da Septuaginta

Esdras grego
Odes
Oração de Manassés
1Macabeus
2Macabeus
3Macabeus
4Macabeus
Salmos 151
Salmos 152-155
Salmos de Salomão
Judite
Eclesiástico (Sirac)
Baruque
Epístola de Jeremias
Suzana
Bel e o Dragão
A LXX não é unânime

Os mais antigos
manuscritos gregos da
LXX, exceto aqueles
fragmentos descobertos no
deserto da Judeia e no
Egito, datam da época de 3º
e 4º séculos d.C. Nenhum
deles contém a lista exata
de livros aceitos,
reconhecidos como
deuterocanônicos pelo
Concílio de Trento (1545-
63). Apenas à guisa de
ilustração: o Códice
Vaticano (“B”) não tem 1 e
2Macabeus (canônicos,
segundo o entendimento
católico), mas inclui
1Esdras (não canônico,
segundo o entendimento
católico). O Códice
Sinaítico ( ) omite
Baruque canônico, segundo
as versões católicas), mas
inclui 4Macabeus (não
canônico, segundo as
mesmas versões). O Códice
Alexandrino (“A”) contém
três livros apócrifos “não
canônicos” (1Esdras e 3 e
4Macabeus). Vê-se,
portanto, que até os três
mais antigos manuscritos
da LXX demonstram
considerável falta de
certeza quanto aos livros
que comporiam a lista dos
apócrifos ou
deuterocanônicos.

▷ Textos considerados apócrifos pelos


protestantes, mas presentes na Bíblia
católica

Judite
Tobias
1Macabeus
2Macabeus
Sabedoria
Eclesiástico ou Sirácide
Baruque
Carta de Jeremias
Oração de Azarias (Daniel)
História de Susana (Daniel)
Bel e o Dragão
Versão grega de Ester

▶ Pseudoepígrafos do Novo Testamento


▷ Evangelhos apócrifos

Evangelhos da infância de Jesus


Protoevangelho de Tiago ou Evangelho da infância de Tiago ou
Evangelho de Tiago
Evangelho da infância de Tomé ou Evangelho do pseudo-Tomé
Evangelho da infância de Mateus ou Evangelho do pseudo-Mateus

▷ Evangelho árabe da infância

Evangelho armênio da infância


Livro sobre o nascimento de Maria
História de José, o carpinteiro

▷ Evangelhos judaico-cristãos

Evangelho dos ebionitas


Evangelho dos nazarenos
Evangelho dos hebreus

▷ Evangelhos gnósticos
Apócrifo de João ou Livro de João evangelista ou Revelação secreta de
João
Diálogo do Salvador
Livro secreto de Tiago ou Apócrifo de Tiago
Livro de Tomé
Pistis Sophia ou Livro do Salvador
Evangelho de Apel
Evangelho de Bardesane
Evangelho de Basilide
Evangelho copta dos egípcios
Evangelho grego dos egípcios
Evangelho de Eva
Evangelho segundo Filipe
Evangelho de Judas
Evangelho de Maria ou Evangelho de Maria Madalena
Evangelho de Matias ou Tradição de Matias
Evangelho da perfeição
Evangelho dos quatro ramos celestes
Evangelho do Salvador ou Evangelho de Berlim
Sabedoria de Jesus Cristo ou Sofia de Jesus Cristo
Evangelho de Tomé ou Evangelho de Dídimo Tomé ou Quinto
Evangelho.
Evangelho da verdade

▷ Evangelhos da Paixão

Evangelho de Gamaliel
Evangelho de Nicodemos
Evangelho de Pedro
Declaração de José de Arimateia

▷ Outros evangelhos

Interrogatio Johannis ou Ceia secreta ou Livro de João evangelista


Evangelho de Barnabás
Evangelho de Bartolomeu ou Questões de Bartolomeu
Evangelho de Tadeu

▷ Evangelhos perdidos, mas citados por


outras fontes

Pregação de Pedro
Evangelho de André
Evangelho de Cerinto
Evangelho dos Doze
Evangelho de Mani
Evangelho de Marcião
Evangelho secreto de Marcos
Evangelho dos Setenta

▷ Atos apócrifos
Atos de André
Atos de André e Matias
Capítulo 29 dos Atos dos Apóstolos
Atos de Barnabé
Atos de Bartolomeu ou Martírio de Bartolomeu
Atos de Santippe e Polissena
Atos de Felipe
Atos de João
Atos de Marcos
Atos de Mateus
Atos de Paulo
Atos de Paulo e Tecla
Atos de Pedro
Atos de Pedro e André
Atos de Pedro e dos Doze
Atos de Pedro e Paulo
Atos de Pilatos
Atos de Simão e Judas
Atos de Tadeu
Atos de Timóteo
Atos de Tito
Atos de Tomé

▷ Cartas apócrifas

Carta dos Apóstolos


Carta de Barnabé
Carta de Inácio
Carta dos Coríntios a Paulo
Carta aos Laodicenses
Carta de Paulo e Sêneca
3Coríntios
Carta de Pedro a Felipe
Carta de Pedro a Tiago Maior
Cartas de Jesus Cristo e do Rei Abgar de Edessa
Carta de Públio Lêntulo

▷ Apocalipses apócrifos

1Apocalipse de Tiago
2Apocalipse de Tiago
Apocalipse da Virgem (etíope)
Apocalipse da Virgem (grego)
Apocalipse de Pedro (grego)
Apocalipse de Pedro (copta)
Apocalipse de Paulo (grego)
Apocalipse de Paulo (copta)
Apocalipse de Estêvão
Apocalipse de Tomé

▷ Ciclo de Pilatos

Sentença de Pilatos
Anáfora de Pilatos
Paradosis de Pilatos
Cartas de Pilatos e Herodes
Cartas de Pilatos e Tibério
Vingança do Salvador
Morte de Pilatos
Cura de Tibério

▷ Outros pseudoepígrafos

Descida ao Inferno (de Jesus)


Doutrina de Addai
Duas vias ou Juízo de Pedro
Doutrina de Paulo
Doutrina de Pedro
Martírio de André apóstolo
Martírio de Mateus
Ressurreição de Jesus Cristo (de Bartolomeu)
Testamento de Jesus
Tradição de Matias
Dormição da Beata Maria Virgem ou Trânsito de Maria (de João, o
Teólogo)
Trânsito da Beata Maria Virgem (de José de Arimateia)
Vida de João Batista (de Serapião de Alexandria)

A Igreja Primitiva se desenvolvia, por isso os cristãos gentios


precisavam aprender a “sã doutrina” (Tito 2:1). Paulo e os apóstolos usarem
essencialmente o Antigo Testamento como Escritura Sagrada (pois já
reconheciam alguns textos neotestamentarios como inspirados). Leitores
gentios também se mostraram confiantes nos textos religiosos judaicos
encontrados entre os rolos gregos disponíveis.Muitos cristãos gentios, sem
dúvida, adotaram esses livros como confiáveis, e o debate sobre o seu lugar
nas igrejas se intensificou desde então.6
Por isso, pode-se dizer que, ainda nos tempos apostólicos, os líderes das
igrejas cristãs deixaram de usar exclusivamente o Antigo Testamento como
Escritura. Há fortes indícios de que os apóstolos Paulo e Pedro reconheciam,
já em seu tempo, certos livros do Novo Testamento como canônicos.

[…] como igualmente o nosso


amado irmão Paulo vos escreveu,
segundo a sabedoria que lhe foi
dada, ao falar acerca destes assuntos,
como, de fato, costuma fazer em
todas as suas epístolas, nas quais há
certas coisas difíceis de entender,
que os ignorantes e instáveis
deturpam, como também deturpam
as demais Escrituras, para a própria
destruição deles.

2Pedro 3:15,16

LIVROS A MAIS OU A MENOS?

Edições católicas da Bíblia possuem uma lista de livros mais extensa que as
edições protestantes. Teólogos católicos denominam essa lista de
deuterocanônicos, isto é, livros que foram canonizados num segundo
momento pela Igreja, mas não na antiguidade judaica. Costuma-se também
argumentar que, conquanto não fizessem parte da Bíblia hebraica, esses
livros seriam reconhecidos pelos judeus de Alexandria.
Autores protestantes, por sua vez, discordam dessa assertiva e preferem
classificar esses livros como apócrifos ou apócrifa. Este termo vem da língua
grega e significa literalmente “aquilo que está oculto”, “escondido” ou que é
“difícil de entender” (Xenofonte, Memorabilia 3.5,14). Seu uso na literatura
antiga era, às vezes, pejorativo e, às vezes, neutro. Podia se referir tanto a
livros supostamente sagrados, mas de origem duvidosa ou desconhecida,
como a livros esotéricos que só eram lidos em lugares secretos.
Contudo, nos séculos 4 e 5 da nossa era, autores cristãos tornaram-se
quase unânimes no uso pejorativo do termo para se referir àqueles escritos
que não deveriam fazer parte da Bíblia Sagrada. A questão é saber que livros
os antigos cristãos colocariam na prateleira dos “apócrifos”.
São sete livros ao todo cuja canonicidade é disputada: Judite, Tobias,
Baruque, 1 e 2Macabeus, Sabedoria de Salomão e Eclesiástico. Além disso,
temos alguns acréscimos aos livros de Ester e Daniel. Os protestantes, no
entanto, embora não reconheçam a inspiração profética dessa coleção,
admitem o estudo deles como meio de conhecer melhor o judaísmo dos
tempos antigos. Os católicos, é claro, por considerarem esse material como
escritura inspirada por Deus, evitam chamar-lhes de apócrifos, preferindo
referirem-se a eles como deuterocanônicos.
Essa questão não pode ser discutida sem a devida referência a São
Jerônimo, que, no quarto século, iniciou, a pedido do papa Dâmaso, uma
revisão das bíblias que culminou numa nova tradução comumente chamada
Vulgata latina. Ele acrescentou à sua tradução os livros a mais que as bíblias
católicas trazem até hoje e que também apareciam, de modo diversificado, na
versão grega do Antigo Testamento chamada Septuaginta.
Sua classificação, no entanto, gera diferentes interpretações entre os
acadêmicos, pois, pelo menos numa passagem do Prologus Galeatus,
Jerônimo definirá esses sete livros como apócrifos — termo que continua
negativo em todos os seus escritos. Noutras partes, porém, o mesmo
Jerônimo denomina-os como livros eclesiásticos e de leitura proveitosa,
usados até em liturgias da igreja.
Seja como for, uma coisa é certa: Jerônimo não os definiu como
canônicos, isto é, não poderiam ser lidos na conta de escritura autoritativa da
Igreja, nem usados como fundamentação doutrinária. O mesmo
posicionamento incerto acerca desses livros a mais perdurou nos séculos
seguintes, sendo percebido em muitos autores reconhecidos da Igreja. João
Damasceno, papa Gregório Magno, Walafrid, Nicolau de Lyra e Tostado
foram alguns dos que continuaram duvidando da canonicidade dos livros
deuterocanônicos.
Em 1540, o reformador Andreas Carltadt, munido do Prologus de
Jerônimo, afirmou dogmaticamente, em seu De Canonicis Scripturis Libellus,
que aqueles livros deveriam ser banidos das bíblias cristãs. A Igreja,
respirando o espírito da Contrarreforma que havia na época, respondeu
oficializando-os em seu cânon. Assim, no famoso Concílio de Trento,
realizado em 8 de abril de 1546, oficializou-se que os textos
deuterocanônicos (que os protestantes chamavam de apócrifos) deveriam
fazer parte das bíblias aprovadas pelo Papa.
A bem da verdade, a disputa entre católicos e protestantes é apenas parte
da história. Como dissemos anteriormente, diferentes tradições cristãs
possuem diferentes apócrifos ou deuterocanônicos, como podemos ver nas
tradições orientais. Contudo, as diferenças mais conhecidas no Ocidente são
aquelas que marcam as bíblias publicadas por protestantes e aquelas
publicadas por editoras católicas.

A teologia cristã criou


termos técnicos para se
referir aos diferentes livros
da Bíblia e que são
aplicados a partir da forma
como eles entraram ou
foram excluídos do cânon.
São eles:

Livros aceitos por todos — Homologoumena.


Livros rejeitados por todos — Pseudoepígrafos (ou Apócrifos).
Livros questionados por alguns — Antilegomena.
Livros aceitos por alguns — Deuterocanônicos (ou Apócrifos).

O QUE DIZEM OS CATÓLICOS?

Apócrifos são livros que não fazem parte do cânon inspirado por Deus e não
podem ser reputados como Bíblia Sagrada. Vários de seus autores usam
pseudônimos, isto é, afirmam ser uma personagem importante do Antigo
Testamento, como Abraão ou Enoque, mas tais livros foram, de fato,
compostos séculos depois da época em que viveu o suposto autor. Nisso não
há discordância entre os segmentos católico e protestante. A divergência
surge quanto ao grupo de livros presentes nas edições católicas que os
protestantes, por negarem sua inspiração, denominam de livros apócrifos, e
os católicos de deuterocanônicos, isto é, canonizados posteriormente.
Os deuterocanônicos são livros do Antigo Testamento questionados
pelos protestantes, mas legitimados pela Igreja Católica e algumas igrejas
orientais. São assim chamados por não constarem na Bíblia Judaica
Palestinense (definida pelos judeus da Palestina em 90 d.C.), mas na Bíblia
Judaica Alexandrina (por referência aos judeus que viviam nesta cidade do
Egito). Os livros que coincidem em ambas versões são chamados de
protocanônicos.
Foi Lutero que os denominou de “apócrifos” no século 16,
principalmente por conterem ensinos defendidos pela Igreja, mas negados
pelos reformadores, como a intercessão dos santos, a oração pelos mortos e a
realidade do purgatório.

▶ Argumentos para inclusão


▷ Inclusão na Septuaginta

Esses livros foram incluídos na tradução grega do Antigo Testamento como


livros canônicos. Essa tradução foi largamente usada pelos judeus que viviam
em Alexandria e noutras comunidades da diáspora. Os autores do Novo
Testamento usaram grandemente o texto da Septuaginta em seus escritos, o
que mostra que a aceitavam como um todo, incluindo os livros
deuterocanônicos que ela contém.

▷ Inclusão nos Manuscritos do Mar Morto

Fragmentos desses textos são encontrados na Biblioteca do Mar Morto, o que


indica que eram respeitados por determinado segmento do judaísmo.

▷ Uso no cristianismo primitivo

Antigos autores cristãos citavam passagens dos deuterocanônicos. Dentre


eles, temos Clemente de Alexandria, citando Tobias e Eclesiástico, e Ireneu
de Lion, citando Sabedoria de Salomão.

▷ Aceitação por antigos concílios


eclesiásticos
Muitos concílios, como os de Roma (382), Cartago (393) e Hipona (397),
aceitaram esses livros. Esses concílios são citados por protestantes para
sustentar o cânon do Novo Testamento, mas se esquecem que eles também
validaram os deuterocanônicos.

▷ O Concílio de Trento (1546)

Apenas sancionou o que já estava decidido em concílios anteriores ao


movimento de Reforma, como o de Florença (1442).

▶ A Igreja Ortodoxa aceita os apócrifos

Isso indica que estamos diante de uma crença cristã comum, e não apenas de
um dogma católico. As catacumbas de Roma, construídas por cristãos
primitivos, são pintadas com cenas descritas nos deuterocanônicos, o que
indica que eles tinham grande apreço por esses livros. Importantes
manuscritos bíblicos, como o Códex Álef e B, intercalam os
deuterocanônicos entre os livros do Antigo Testamento, o que mostra que
realmente faziam parte da Bíblia Sagrada. Até ao século 19, versões
protestantes da Bíblia costumavam trazer os livros deuterocanônicos, o que
indica que até eles reconheciam sua canonicidade.
A versão grega do Antigo
Testamento (Septuaginta),
usada pelos judeus
alexandrinos, contém mais
livros que as versões
católica, ortodoxa ou
protestante. Os livros
presentes na Septuaginta,
conforme a ordem original,
são:

Gênesis
Êxodo
Levítico
Números
Deuteronômio
Josué
Juízes
Rute
1Samuel (1Reis)
2Samuel (2Reis)
1Reis (3Reis)
2Reis (4Reis)
1Crônicas (1Paralipômenos)
2Crônicas (2Paralipômenos)
1Esdras
2Esdras (Esdras e Neemias)
Ester
Judite
Tobias
1Macabeus
2Macabeus
3Macabeus
4Macabeus
Salmos
Odes
Provérbios
Eclesiastes
Cântico dos Cânticos

Sabedoria
Eclesiástico (Sirac)
Salmos de Salomão
Oseias
Amós
Miqueias
Joel
Obadias
Jonas
Naum
Habacuque
Sofonias
Ageu
Zacarias
Malaquias
Isaías
Jeremias
Lamentações
Baruque
Epístola de Jeremias
Ezequiel
Suzana (7)
Daniel
Bel e o Dragão.

Seria esse um antigo cânon


judeu mais amplo,
reconhecido por Jesus e
seus discípulos?

O QUE DIZEM OS PROTESTANTES?

Para os teólogos de confissão protestante, evangélicos e outras ramificações


não católicas, como mórmons e Testemunhas de Jeová, existem duas
categorias básicas de livros apócrifos: os pseudoepígrafos, falsamente
atribuídos a personalidades bíblicas que não foram seus verdadeiros autores,
e aqueles que a Igreja Católica denomina deuterocanônicos, assim
oficializados no Concílio de Trento. Tais livros, ainda que válidos para uma
contextualização histórica do antigo judaísmo, não devem servir de
autoridade canônica para a Igreja ao lado de livros inspirados, como dos
profetas ou dos apóstolos de Cristo.

▶ Argumentos para a exclusão

É disputável se esses livros realmente faziam parte do cânon original da


Septuaginta — as mais antigas cópias que temos dela foram feitas por
copistas cristãos, de modo que não podemos dizer se as cópias judaicas
originais continham estes livros. Essas cópias cristãs datam do quarto século
em diante, e o mais importante é que as três cópias mais extensas não estão
de acordo quanto ao cânon dos apócrifos (ou deuterocanônicos), pois trazem
diferentes listas. E nelas estão incluídos os salmos 151 a 155, Salmos de
Salomão, Oração de Manassés, 3 e 4Macabeus, Odes e Esdras grego, que as
versões católicas não reconhecem como livros inspirados. Filo, um antigo
autor judeu de Alexandria que usou extensivamente a LXX (uma das
maneiras de se referir à Septuaginta), não faz qualquer menção aos livros
deuterocanônicos incluídos nas bíblias católicas, o que seria estranho, caso
fosse unânime a sua inclusão nos manuscritos gregos mais antigos.
Quanto aos manuscritos do Mar Morto, leve-se em conta que muitos
textos encontrados nas grutas de Qumran não são canônicos; nenhuma lista
canônica foi encontrada ali indicando quais seriam os livros inspirados ou
não inspirados. Assim, a presença de qualquer texto dentre os achados do
deserto da Judeia pouco concorre para a confirmação de sua natureza
escriturística.
Os mais antigos autores cristãos parecem ter rejeitado os
deuterocanônicos, mesmo que os citem vez ou outra. As eventuais citações
que fazem deles não prova que eram canônicos. Foi apenas quando a Igreja
Cristã iniciou seu rompimento com o judaísmo que essa questão se tornou um
ponto a ser discutido. A mais antiga lista de livros cristãos do Antigo
Testamento foi composta por Melito de Sardes em 170 d.C., e não menciona
nenhum desses textos controversos.
Os concílios mencionados como endossando a inclusão de tais livros
não eram concílios universais do cristianismo, mas sínodos locais, apenas de
expressão regional — Hipona, Roma e Cartago não tinham autoridade para
propor um entendimento universal acerca do assunto, e todos eles tinham
sido influenciados pelo mesmo teólogo, Santo Agostinho, pelo que
possivelmente ecoaram o mesmo pensamento em razão de serem dirigidos
pelo mesmo mentor.
Até mesmo antigos autores católicos foram contrários à inclusão de
alguns ou de todos os livros da coleção dos deuterocanônicos. Por exemplo:
Jerônimo, papa Gregório Magno, o Venerável Bede, Hugo de São Victor,
Nicolau de Lyra, William de Ockham.
O Cardeal Caetano foi um dos mais importantes opositores de Lutero,
comissionado pela Igreja para refutar os ensinos do protestantismo. Ele
escreveu um comentário dedicado ao papa no qual exprime sua opinião de
que os apócrifos (ou deuterocanônicos) não eram inspirados, muito menos
canônicos num sentido stricto senso, de modo que eles não foram incluídos
em seu comentário do Antigo Testamento.
O Novo Testamento não reconhece tais livros como inspirados por Deus
― os autores jamais fazem menção direta de qualquer desses livros
introduzindo a fórmula “Está escrito” ou “Como declarou o profeta X”. O
máximo que se pode encontrar (mas não para além de qualquer
questionamento) seria uma hipotética alusão indireta que demonstra apenas
que o autor bíblico conhecia tais livros, mas não que os considerasse Palavra
de Deus. Ainda que tal citação realmente exista, isso pouco contribui para a
conclusão de que se trata de livros inspirados, pois obras seculares também
são citadas no Novo Testamento, como Atos 17:28, em que Paulo cita um
trecho do Phaenomena escrito por Arato. Nem por isso poderíamos
argumentar que esse poeta grego seria inspirado por Deus.
Mesmo os deuterocanônicos atestam que, no seu tempo, a inspiração
havia cessado — 1Macabeus 9:27 declara: “Então houve grande tumulto em
Israel, tal como nunca havia tido desde o tempo em que os profetas cessaram
de aparecer no meio do povo.”

A Glossa Ordinária, um
comentário católico da
Idade Média, trouxe a
seguinte declaração sobre
os apócrifos (ou
deuterocanônicos),
demonstrando que a
aceitação deles não era um
consenso entre os teólogos
da época:

Os livros canônicos
são fruto do ditado do
Espírito Santo. Não
sabemos, no entanto,
em que tempo ou por
quais autores os não
canônicos ou
apócrifos foram
produzidos. Desde,
porém, que eles sejam
proveitosos e úteis e
não contenham
qualquer contradição
com os demais livros
canônicos, é permitido
à Igreja lê-los para sua
devoção e edificação.
Sua autoridade,
contudo, não é
considerada adequada
naqueles assuntos que
ainda são dúbios, nem
servem para confirmar
a autoridade
eclesiástica de um
dogma, como o bem-
aventurado Jerônimo
declara em seu
prólogo ao livro de
Judite e também aos
livros de Salomão. Por
outro lado, os livros
canônicos possuem tal
autoridade que tudo
que está contido neles
é para ser considerado
uma firme verdade e
um assunto
indiscutível.
6 Bíblia de Estudo Arqueológica. São Paulo: Editora Vida, 2013, p. 1973.
CAPÍTULO CINCO

ORGANIZAÇÃO
DOS LIVROS

A DIDÁTICA DOS TEXTOS


As bíblias modernas são normalmente divididas em duas grandes seções: O
Antigo Testamento e o Novo Testamento. Estes, por sua vez, se subdividem
em vários blocos e livros. Não podemos esquecer, contudo, que os títulos
Antigo e Novo Testamento são uma convenção cristã, se levarmos em
consideração que a Bíblia se refere ao conjunto dos livros como “Escritura”
etc., mas nunca como Antigo ou Novo Testamento, uma forte evidência da
hermenêutica de continuidade, e não de ruptura.
A Bíblia hebraica, que corresponde ao Antigo Testamento, é dividida
em três partes, que podem ser englobadas na palavra TaNaK: Torá
(Pentateuco), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos). Estas partes englobam
vários livros em cada uma delas. Já a Bíblia cristã tem a mais os evangelhos,
o livro de Atos, as epístolas, o livro de Hebreus e o Apocalipse.
Jesus, certa vez, afirmou que aqueles dentre Israel que rejeitassem a
mensagem de Deus seriam responsabilizados “desde o sangue de Abel até ao
sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o santuário” (Lucas 11:51).
Ora, alguns especialistas entendem que aqui Jesus estava fazendo referência
ao cânon do Antigo Testamento, que já estaria fechado em seus dias. Abel,
representando o Gênesis, seria o primeiro livro da coleção, e Zacarias, o
último. A dificuldade com essa ideia está em saber se esse Zacarias
mencionado por Cristo seria o filho de Baraquias (Mateus 23:35; Zacarias
1:1; Esdras 5:1), que teria escrito o último livro do cânon hebraico, ou
Zacarias, filho de Joiada, mencionado em 2Crônicas 24:20,21.
Seja como for, uma das mais antigas listas dos livros hebraicos das
Escrituras menciona 2Crônicas como o último livro do cânon. Ali é dito:

Nossos rabinos disseram: a ordem


dos profetas é esta: Josué, Juízes,
Samuel, Jeremias, Ezequiel, Isaías,
os doze… A ordem dos Escritos é
Rute, o livro dos Salmos, Jó,
Provérbios, Eclesiastes, Cantares,
Lamentações, Daniel, o rolo de
Ester, Esdras e Crônicas. (Talmude
Babilônico, tratado Baba Bathra,
14b)
Não obstante, essa questão da canonização dos textos talvez mereça um
aprofundamento por parte dos acadêmicos. Tem-se a impressão de que essa
ordem que aparece no Talmude e em outras fontes judaicas reflete a ideologia
anticristã por parte do rabinismo da época. Um exemplo disso foi o proposital
deslocamento do livro de Daniel da seção de profetas para a seção de
Escritos. Devido ao aspecto profético messiânico de Daniel, que apontava a
chegada do Messias nos dias do Segundo Templo, tornou-se incômodo o
estudo desse livro, uma vez que o Templo já não existia e, na compreensão
rabínica, o tão sonhado Messias não havia se manifestado entre os judeus. Só
para esclarecer: os judeus não reconhecem Jesus como o prometido Messias.
Não devemos nos preocupar com a ordem dos livros, considerando que
Malaquias é o último autor do Antigo Testamento nas edições modernas da
Bíblia, pois, em versões hebraicas, a ordem dos livros muda. O Códex de
Leningrado (datado de 1009 d.C.) e três das oito listas mais antigas do cânon
judaico trazem Crônicas como o primeiro, e não o último livro da coleção de
escritos (Encyclopaedia Judaica, vol. 4:829-830).
Ainda, segundo a tradição judaica, é dito que o espírito de profecia
cessou com a última parte da exortação de Malaquias (tratado Sanhedrin 11ª).
Isso em razão do fato de que nenhum livro escriturístico deveria ser
acrescentado à lista dos livros inspirados de Israel.
Por volta do ano 90 d.C., o historiador judeu Flávio Josefo também
declarou que o cânon hebraico estava fechado e que, “desde Artaxerxes, a
sucessão de profetas chegou ao seu fim”. Isso ele escreveu em argumentação
contra Ápio, demonstrando que, em seu tempo, a coleção de livros inspirados
já estava decidida. Vejamos sua citação completa:

Pois não temos uma multidão


inumerável de livros entre nós,
discordando e contradizendo um ao
outro, [como os gregos têm], mas
apenas 22 livros, que contêm os
registros de todos os tempos
passados; que são justamente cridos
como divinos. Destes, cinco são os
livros de Moisés, que compreendem
as leis e a história tradicional desde
o nascimento do homem até a morte
do legislador. Este período só cai
um curto tempo de três mil anos.
Desde a morte de Moisés até
Artaxerxes, que sucedeu a Xerxes
como rei da Pérsia, os profetas
posteriores a Moisés escreveram a
história dos eventos de suas próprias
épocas em treze livros. Os restantes
quatro livros contêm hinos a Deus e
preceitos para a conduta da vida
humana. Desde Artaxerxes até os
nossos dias a história completa foi
escrita, mas não foi considerada
digna de crédito igual aos registros
anteriores, por causa da falta de
sucessão exata dos profetas. Nós
damos prova prática de nossa
reverência de nossas próprias
Escrituras. Pois, embora essas
longas eras já tenham passado,
ninguém se aventurou nem a
adicionar, remover, nem alterar uma
sílaba, e é um instinto com cada
judeu, desde o dia do seu
nascimento, considerá-las como os
decretos de Deus, respeitá-las, e, se
necessário, alegremente morrer por
elas.

Contra Ápio, 1.38-41

Se colocássemos os livros da Bíblia numa estante de biblioteca, eles


estariam assim organizados, segundo a forma cristã:
Como se pode ver na ilustração a seguir, os cinco primeiros livros foram
escritos por Moisés e recebem o nome de Pentateuco. Eles trazem o relato da
criação do mundo até a primeira parte da História do povo hebreu e seu
período de peregrinação no deserto, quando ainda não era uma nação
propriamente dita. Isso vai desde as origens da humanidade até por volta do
século 14 a.C.
Depois do Pentateuco temos mais três livros que narram episódios
ocorridos no tempo em que Israel se assentava na Terra Prometida e era
governado por juízes e sacerdotes. Já a coleção seguinte dá sequência à
História, contando uma nova fase administrativa em que Israel agora era
governado por reis. Essa fase foi interrompida pela tragédia do cativeiro da
Babilônia, que pôs fim à monarquia de Israel. Ambas as coleções são
classificadas como Livros Históricos e cobrem um período de
aproximadamente 700 anos, que vai do século 14 ao 6 a.C.
Os três livros na sequência (Esdras, Neemias e Ester) narram episódios
ocorridos após o cativeiro Babilônico, quando o povo já não tinha mais um
rei e lutava para reconstruir sua identidade nacional. Eles também fazem
parte dos Livros Históricos, e podem ser situados no século 5 a.C.
A próxima coleção poderia ser chamada de um parêntese na cronologia
dos fatos, pois traz uma coletânea de músicas, poesias, dramas e ditos
populares que narram a sabedoria do povo de Israel. Tanto o é que os
especialistas costumam chamar essa coleção de Livros Poéticos ou Sabedoria.
Um destaque especial é a história de Jó, o homem que representa o
sofrimento de todos os que se sentem abandonados por Deus.
Em seguida, a História dá um recuo para apresentar um conjunto
especial de livros chamados Proféticos. Trata-se da coleção de oráculos e
episódios históricos envolvendo homens que tiveram o dom de profecia e
exortaram Israel e outros povos a se voltar para Deus, especialmente nos
tempos da monarquia e no período pós-cativeiro. Note que eles estão
divididos em dois grupos.
Os primeiros quatro livros (Isaías, Jeremias, Lamentações e Ezequiel)
são — devido ao seu volume de conteúdo literário — chamados Profetas
Maiores, e os demais (que na Bíblia hebraica aparecem como um só livro),
Profetas Menores. O livro de Daniel, que aqui aparece no grupo dos profetas
menores, é um caso à parte. Os cristãos o reconhecem como profeta, mas no
meio judaico ele é reconhecido apenas como um homem sábio, não um
profeta — embora, a bem da verdade, os sábios do Talmude fossem divididos
quanto a isso,7 e Jesus tenha chamado Daniel de profeta (Mateus 24:15).
Concluindo essa parte, temos então as coleções que formam o Novo
Testamento. Os quatro primeiros livros são os evangelhos, que narram a vida
e o ministério de Jesus Cristo. A seguir, temos, isolado dos demais, o livro de
Atos, que conta a história da Igreja Cristã primitiva, com destaque para o
ministério do apóstolo Paulo.
A longa coleção que se segue são as cartas ou epístolas cristãs.8 A
autoria das treze primeiras são atribuídas a Paulo e, por isso, chamadas
Epístolas Paulinas. As demais são conhecidas como Epístolas Universais, e
foram escritas por outros autores.
Um caso especial é Hebreus. Os autores ainda estão divididos quanto à
autoria dele, se pertence ou não à pena do apóstolo Paulo. Há quem diga que
ela nem pode ser considerada uma epístola, mas que seria, antes, um sermão
ou tratado teológico baseado nos ensinamentos de Paulo. Seja como for,
ainda que a autoria não seja diretamente paulina, o conteúdo certamente é.
Finalmente, o último livro é o Apocalipse, cujo conteúdo traz revelações
dadas por Deus ao apóstolo João para mostrar os eventos que ocorreriam no
mundo e na História da Igreja desde os dias apostólicos até a segunda vinda
de Cristo e a restauração de todas as coisas no paraíso restaurado por Deus.

CAPÍTULOS E VERSÍCULOS

O sistema de capítulos da Bíblia foi introduzido em 1214 d.C. pelo arcebispo


Estevan Langton, professor da Universidade de Paris. Já a divisão em
versículos ou versos se deu em 1528, quando o padre dominicano Santos
Pagnino publicou em Lion a primeira Bíblia organizada em pequenas
subdivisões. Mais tarde, porém, em 1551, Roberto Stefano, um editor
protestante, reelaborou o trabalho de Pagnino. Nessa época já havia sido
inventada a imprensa.
Há quem afirme que muitos versos foram divididos enquanto Stefano
estava hospedado em pensões ao longo da estrada ou montado em seu cavalo.
Por isso, em virtude dessa condição incômoda, alguns versos ficaram mal
divididos até hoje.
Se tomarmos por base a versão bíblica da King James, de tradição
protestante, descobriremos que a Bíblia tem 1.189 capítulos e 31.102
versículos. Esses números vão depender de qual escola textual (texto Crítico,
Receptus ou Majoritário) se auferiu essa informação. À guisa de comparação,
a versão católica da editora Ave Maria tem 1.334 capítulos e 35.774
versículos. Essa diferença se deve ao fato de a Bíblia católica contar com os
livros apócrifos (ou deuterocanônicos), totalizando 73 livros, enquanto a
protestante conta com apenas 66 livros.
Embora existam pouquíssimas diferenças entre bíblias católicas e
protestantes quanto à divisão dos capítulos, sua essência é praticamente a
mesma. Um exemplo é o salmo do Pastor, que na Bíblia protestante é o salmo
23, já nas católicas é o 22. Mas não há, neste caso, perda de conteúdo, e o
padrão de busca de um texto continua o mesmo.
Tanto em tablets, smartphones ou na versão impressa, o capítulo é a
unidade maior dentro do livro, e os versículos, subdivisões dentro do
capítulo.
As referências bíblicas são muitas vezes representadas das seguintes
formas: João 3:16 ou João 3,16. O primeiro modo, usando dois pontos (:), é
mais comum nas literaturas evangélicas e protestantes. Já o segundo, usando
vírgula (,), é mais comum em publicações católicas. O sentido de ambos é o
mesmo: refere-se ao Evangelho de João, capítulo 3, versículo 16. Antes tem-
se o nome do livro: Evangelho Segundo João. O primeiro número, que segue
o nome do livro, indica o capítulo: 3. O segundo número indica o versículo:
16.
Para encontrar essa citação em sua Bíblia, é necessário abrir o
Evangelho Segundo João, virar as páginas até o capítulo 3, geralmente em
negrito e com fonte bem maior que as palavras, e procurar nessa subdivisão o
número 16, que corresponde ao versículo. Ali você encontrará uma bela
promessa: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
Unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna” (versão King James Atualizada).
Por vezes, o nome de um livro tem antes o número 1 ou 2 (em
algarismos romanos ou arábicos). Neste caso, o número faz parte do nome do
livro. É o caso de 1 e 2 Samuel, 1 e 2Reis, 1 e 2Crônicas, 1 e 2Coríntios, 1 e
2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, 1 e 2Pedro, 1, 2 e 3João. Isso significa que
cada um desses livros tem dois volumes ou duas cartas para o mesmo
destinatário (no caso de João, são três cartas). Daí a colocação dos números
antes do nome. 2Coríntios 4:1, por exemplo, quer dizer que o texto
mencionado se encontra na segunda carta ou epístola de Paulo para os irmãos
de Corinto, no capítulo 4, versículo 1.
É comum também que as citações apareçam com o nome do livro
abreviado. Em geral, tanto católicos como protestantes e evangélicos podem
valer-se desta lista que se segue acrescentada dos livros apócrifos ou
deuterocanônicos:

A NTIGO TESTAMENTO

A BREVIAÇÃO DO LIVRO L IVRO BÍBLICO Q UANTIDADE DE CAPÍTULOS

Gn Gênesis 50
Ex Êxodo 40

Lv Levítico 27

Nm Números 36

Dt Deuteronômio 34

Js Josué 24

Jz Juízes 21

Rt Rute 4

1Sm 1Samuel 31

2Sm 2Samuel 24

1Rs 1Reis 22

2Rs 2Reis 25

1Cr 1Crônicas 29

2Cr 2Crônicas 36

Ed Esdras 10

Ne Neemias 13

Et Ester 10

Jó Jó 42

Sl Salmos 150

Pv Provérbios 31
Ec Eclesiastes 12

Ct Cantares ou Cânticos dos Cânticos 8

Is Isaías 66

Jr Jeremias 52

Lm Lamentações de Jeremias 5

Ez Ezequiel 48

Dn Daniel 12

Os Oseias 14

Jl Joel 3

Am Amós 9

Ob Obadias -

Jn Jonas 4

Mq Miqueias 7

Na Naum 3

Hc Habacuque 3

Sf Sofonias 3

Ag Ageu 2

Zc Zacarias 14

Ml Malaquias 4
N OVO TESTAMENTO

A BREVIAÇÃO DO LIVRO L IVRO BÍBLICO Q UANTIDADE DE CAPÍTULOS

Mt Mateus 28

Mc Marcos 16

Lc Lucas 24

Jo João 21

At Atos dos Apóstolos 28

Rm Romanos 16

1Co 1Coríntios 16

2Co 2Coríntios 13

Gl Gálatas 6

Ef Efésios 6

Fp Filipenses 4

Cl Colossenses 4

1Ts 1Tessalonicenses 5

2Ts 2Tessalonicenses 3

1Tm 1Timóteo 6
2Tm 2Timóteo 4

Tt Tito 3

Fm Filemom -

Hb Hebreus 13

Tg Tiago 5

1Pe 1Pedro 5

2Pe 2Pedro 3

1Jo 1João 3

2Jo 2João -

3Jo 3João -

Jd Judas -

Ap Apocalipse 22

Assim, quando citamos a Primeira Epístola de João, basta escrever 1Jo.


Em seguida vem o capítulo e o versículo, como nos exemplos anteriores.
Citações mais elaboradas podem valer-se de outros sinais. O travessão, tanto
para católicos como evangélicos e protestantes, representa uma sequência
ininterrupta de capítulos ou versículos. Por exemplo: Ap 18-20 quer dizer
Apocalipse, capítulos 18, 19 e 20. O mesmo vale para versículos, de modo
que 1Pe 2:4-6 (ou 1Pe 2:4-6) quer dizer Primeira Epístola (ou carta) de
Pedro, capítulo 2, versículos 4, 5 e 6.
A vírgula (ou o ponto, no caso das versões católicas) sempre representa
uma unidade isolada, pode ser um capítulo ou um versículo. Por exemplo, a
sugestão de leitura de Is 50, 54, 56 (ou Is 50.54.56) quer dizer a leitura do
livro do profeta Isaías nos capítulos 50, 54 e 56. Os capítulos 51, 52, 53 e 55
não fazem parte da citação e, portanto, não precisam ser lidos.
Em caso de versículos, o procedimento é o mesmo. Mateus 5:17,19,21
(Mateus 5,17.19.21) significa uma referência ao Evangelho de Mateus
capítulo 5, versículos 17, 19 e 21. Os demais versículos não fazem parte da
citação.
Alguns autores ainda optam por um modo moderno usando s ou ss.
Neste caso, Gn 1:5s quer dizer livro do Gênesis capítulo 1, versículo 5 e 6 (s
= seguinte). Se for ss, refere-se aos versículos seguintes, sem delimitação. Gn
1:5ss (ss = seguintes), portanto, seria Gênesis, capítulo 1, versículo 5 em
diante.
Por fim, existe ainda o recurso do ponto e vírgula (;). Assim como a
vírgula funciona para as versões evangélicas e o ponto para as versões
católicas, esse sinal demarca isolamentos maiores. Por exemplo: Gênesis
1:24; 2:3; 3:5; Mateus 7:17; 8:1. Aqui temos uma série de passagens bíblicas
divididas por ponto e vírgula para não confundir o leitor.
7 Veja Halachot Gedolot, capítulo 76; Seder Olam Rabbah, capítulo 20; comentário do Rabino Shlomo
Ytizchaki Rashi ao Megillah, ibid.

8 Epístola vem do grego antigo epistolê, e significa uma espécie de carta especial enviada a um amigo
ou a uma comunidade em particular, tratando de assuntos políticos, filosóficos, morais ou teológicos.
CAPÍTULO SEIS

A HISTÓRIA DA ESCRITA

A ESCRITA NA ANTIGUIDADE

O cristianismo e o judaísmo, por causa de sua forte conexão com a Bíblia


Sagrada, são consideradoss as religiões do livro, ou seja, a legitimidade
histórica de suas crenças está intimamente ligada à veracidade de uma
Escritura Sagrada que permeia seus ensinamentos. Sendo assim, uma busca
religiosa por qualquer ensinamento bíblico não pode prescindir do
conhecimento acerca das origens da escrita na História da humanidade.
Pode-se, de fato, afirmar que a escrita foi a maior invenção do homem
após a descoberta do fogo. Sem os antigos e atuais sistemas de escrita, jamais
teríamos evoluído como organismo social, pois toda a comunicação e
comércio que caracterizam as sociedades ao longo do tempo dependem de
alguma forma de escrita para serem eficazes.
Pode parecer incrível, mas os historiadores acreditam que a escrita foi
inventada quatro vezes, quase simultaneamente. Por volta de 4.000 a.C.,
China, Egito, Mesopotâmia e povos da América Central começaram a
desenvolver os primeiros sistemas para registrar a comunicação. Nada de
letras, sílabas ou palavras. Apenas desenhos.
Naquela época, se alguém quisesse escrever “boi”, provavelmente
desenharia uma cabeça de boi em um tijolo de barro ou em um pedaço de
cerâmica. Por isso, esses sistemas foram chamados pictóricos ou
ideográficos. Um exemplo muito conhecido desse tipo de escrita é o
hieróglifo egípcio. É claro, porém, que os seres humanos já viviam em
agrupamentos antes da invenção da escrita e, nesta condição, aquelas antigas
sociedades se baseavam num sistema de tradições orais passadas de boca em
boca, de pai para filho.
Embora os habitantes dessas sociedades estivessem acostumados a esse
processo mais do que nós em nossos dias, é claro que eles também pecavam
no detalhamento dos relatos e faltavam com a precisão em um ou outro ponto
da mensagem transmitida. Daí a imperiosa necessidade de tornar “físico” o
conceito oralmente expresso.
Muitos acreditam que alguns sinais feitos em casco de tartaruga e
encontrados em Jiahu, na província chinesa de Henan, seriam os mais antigos
traços de comunicação feitos pelo ser humano. Contudo, sua interpretação
ainda é motivo de disputa entre os especialistas e não se tem claro se esses
sinais representavam qualquer valor sonoro. Sendo assim, ainda prevalece a
posição mais tradicional de que a escrita humana tenha se originado na antiga
Mesopotâmia, atual região da Síria e do Iraque.
▶ Sumérios

Foram os sumérios que desenvolveram a escrita e as primeiras escolas de


escribas. E o ensino começava bem cedo, ministrado aos juvenis, mas não era
um ensino geral para todos. Infelizmente, apenas filhos de famílias ricas ou
nobres tinham acesso à escola, que poderia funcionar numa casa ou nas
dependências de um palácio ou templo. Um exemplo disso seria o sistema
educacional associado ao Templo de Ur Nammu, que ficava no centro da
cidade natal de Abraão.
Naquela sociedade sumeriana, tornar-se um escriba era sinal de status. O
mais interessante é que, mesmo sendo um sistema patriarcal, há evidências de
que os sumérios ensinavam pelo menos algumas meninas a ler e escrever, o
que era um grande avanço para a época.

Não era nada fácil


aprender a ler e escrever
nos dias de Abraão.
Inscrições da época
descrevem o dia a dia na
sala de aula e revelam que
os alunos recebiam castigos
físicos, como golpes de
vara nas costas, toda vez
que erravam uma lição ou
falavam sem a permissão
do professor. Um simples
atraso para a aula resultava
numa surra em frente a
todos os colegas.

Antigos tabletes
desenterrados no Curdistão
mostram os exercícios que
os alunos faziam.
Normalmente, consistiam
em cópias na argila de
sentenças previamente
escritas pelo professor, cuja
leitura era exigida
posteriormente na frente
dos colegas. O aluno,
portanto, deveria copiar nas
costas do tablete a mesma
coisa que estava na frente
sem errar, caso contrário,
seria punido.
A princípio, a escrita era pictogrâmica e ideogrâmica onde os sinais
representavam coisas ou ideias. Mais tarde, os sinais passaram a representar
sons, primeiramente silábicos, algo como lulu, que quer dizer homem, e lu-
gal, que quer dizer rei, e assim por diante. Por serem inicialmente feitas em
tabuinhas de argila cunhadas com uma pequena vara de junco, a escrita ficou
conhecida pelo nome de cuneiforme, isto é, feita a partir de cunhas. Os
tabletes de argila, portanto, foram as primeiras “folhas de papel” usadas na
Antiguidade. É por isso, aliás, que os sumérios chamavam as primeiras
escolas de eduba, que quer dizer “casa das tabuinhas”, isto é, dos tabletes de
argila sobre o qual escreviam suas lições.
Com o passar do tempo, os símbolos deixaram de representar apenas
objetos, como cavalos, bois ou carneiros, e começaram a representar a
linguagem humana. Atualmente, alguns arqueólogos afirmam poder localizar
o mais antigo registro dessa transformação: uma tábua suméria de 3.000 a.C.
encontrada na cidade de Jemdet Nasr, no Iraque.
Nela, os pesquisadores encontraram o desenho de uma haste de junco
em posição horizontal numa lista de objetos do templo. O que o desenho de
uma haste de junco estaria fazendo numa relação de objetos sagrados? Até
que um dos responsáveis pela tradução percebeu que o mesmo som que
significava “junco” na língua dos sumérios — gi — também significava
“fornecer” ou “pagar”. O responsável pela contabilidade do templo percebeu
a semelhança entre os sons das duas palavras e “pegou emprestado” o
símbolo do junco para criar outra palavra, em outro contexto.
E não pense que eles escreviam apenas coisas simples, ideias soltas.
Grandes obras literárias, poemas, tratados médicos, matemáticos e
astronômicos foram escritos pelos sumérios e depois pelos babilônios, seus
primeiros herdeiros literários.

▶ Egípcios

Enquanto esse sistema se desenvolvia na Mesopotâmia, quase que paralelo


aos sumérios, os egípcios também produziam sua forma de escrita.
Localizados às margens do Rio Nilo e cercados pelo deserto do Saara,
desenvolveram uma forma peculiar de anotar sua História. Assim como na
escrita sumeriana, a linguagem também era uma mistura de sons silábicos e
ideogramas que exigiam grande destreza artística do escritor.
Por estar presente em grande parte de paredes de túmulos e templos,
essa forma de escrever ficou conhecida como escrita sagrada ou, como se diz
em grego, hieroglífica. Com o tempo, porém, esse modo de escrever dos
egípcios evoluiu para formas mais simplificadas, como o hierático, que era
uma variante mais cursiva que se podia pintar em papiros ou placas de barro
e, ainda mais tarde, com a influência grega, o demótico, fase em que os
hieróglifos iniciais ficaram bastante estilizados, havendo mesmo a inclusão
de alguns sinais gregos na sua escrita.
Diferentemente dos sumérios e mesopotâmicos, que usavam mais a
argila e as pedras para escrever, entalhando literalmente seus fonemas nos
tabletes, os egípcios optaram pela invenção de um tipo de papel que suprimia
a falta de pedra e argila em seu território. Afinal, eles moravam em pleno
deserto. Esse papel era feito do papiro, uma planta muito comum que nasce
às margens do Rio Nilo, e os egípcios souberam como aproveitá-la.
Rapidamente o papiro, ou papel egípcio, alcançou outros povos e se tornou
uma das principais matérias-primas na produção de livros, cartas, tratados
jurídicos e obras literárias, inclusive do mundo greco-romano.

PROVIDÊNCIA DIVINA

O Deus revelado na Bíblia Sagrada não é, de modo algum, uma força


impessoal, como propõem os panteístas, nem um ser distante, como apregoa
o deísmo. Ele age na História de modo inter-relacionado com a ação humana.
Desse modo, a invenção da escrita acabou tornando-se um instrumento usado
por Deus para revelar suas verdades.
Já nos primórdios da escrita humana, a ideia de que escritos sagrados
pudessem vir de Deus ou dos deuses rapidamente se espalhou pelo mundo da
época, formando a base da reverência que temos até hoje por livros
inspirados que estariam acima dos demais por terem uma fonte divina.
Por volta do século 11 a.C., os fenícios, que viviam na cidade de Biblos,
atual Líbano, desenvolveram uma escrita mais ou menos alfabética derivada
provavelmente de outros conjuntos alfabéticos de origem semita. Sua lista
inicial contava com pelo menos oitenta diferentes caracteres. Mas a
quantidade de sinais ou letras foi aos poucos diminuindo, até chegar a 22
letras, o que facilitou bastante o domínio da escrita por outros povos. Foi
desse alfabeto, diga-se de passagem, que se originou o alfabeto grego e
depois o latino que usamos até hoje.
O número de letras variava de um lugar para outro. Os habitantes de
Ebla, por exemplo, usavam trinta sinais, e os alfabetos que derivaram dos
fenícios ficaram em torno de vinte e poucas letras. Dentre os alfabetos que
derivaram desse sistema estão o grego, o hebraico e o aramaico, que foram os
idiomas usados na composição da Bíblia Sagrada.
Embora não tenhamos nenhuma indicação de que Abraão tivesse escrito
qualquer obra inspirada, sabe-se que, quando peregrinou em direção à Terra
Prometida, ele, como todos os demais povos nômades vindos da
Mesopotâmia, certamente usou a escrita cuneiforme, embora também possa
ter tido algum contato com os hieroglíficos criados pelos egípcios.
Ao que tudo indica, coube a Moisés a tarefa não só de tirar o povo
hebreu do Egito, mas também de iniciar o processo de escrita dos primeiros
livros da Bíblia Sagrada. A ele são atribuídos o livro de Jó, o Pentateuco e
alguns salmos. Que idioma e que forma escrita Moisés teria usado para
preparar os primeiros livros, isso não sabemos. Embora a tradição aponte que
ele usara o hebraico — o que não é uma ideia impossível —, não se descarta
a possibilidade de que ele tenha usado outra forma redacional ou até mesmo
outro dialeto distinto do hebraico bíblico que conhecemos hoje.
A língua, lembremos, é um organismo vivo que sofre transformação
semântica e se modifica de geração para geração. Quer um exemplo? Peça
para um aluno do Ensino Médio brasileiro que leia em voz alta e interprete as
cartas de Pero Vaz de Caminha. Ele certamente terá dificuldades. Então
imagine pegar um israelense de nossos dias e colocá-lo para conversar meia
hora com Moisés. Eles certamente precisarão de um intérprete para entender
um ao outro ainda que estejam falando em hebraico.
Os idiomas também mudavam no passado. Paulo não conversaria
longamente com Moisés, compreendendo 100% de sua fala. Lembre-se de
que há 1,3 mil anos entre um e o outro! O texto hebraico que possuímos hoje
de Moisés seria, portanto, uma atualização linguística daquilo que ele
escreveu originalmente e cuja forma não temos como alcançar. Essa
observação, no entanto, não anula o fato de que temos preservado o conteúdo
original da mensagem inspirada ou que Moisés possa, ainda que
hipoteticamente, ter escrito os livros já no idioma hebreu. A falta de
elementos arqueológicos não deve nos intimidar, pois grande parte do tesouro
antigo está perdida para sempre de modo que, como diz um famoso ditado
entre os arqueólogos, “ausência de evidência não significa evidência da
ausência”.
A ESCRITA E MOISÉS

Até pouco tempo atrás, afirmava-se que a invenção do alfabeto tinha ocorrido
lá pelos séculos 11 ou 12 a.C., o que representaria uma negação da autoria
mosaica dos livros que levam seu nome. Afinal, Moisés teria vivido bem
antes disso. Entretanto, escavações arqueológicas em Ur, na antiga Caldeia,
têm comprovado que, já no tempo de Abraão, ali estava uma metrópole
altamente civilizada. Nas escolas de Ur, os meninos aprendiam leitura,
escrita, aritmética e geografia. Isso sem contar, como já dizemos, as
inscrições alfabéticas descobertas no Sinai, em Biblos e em Ras Shamra e que
são anteriores ao tempo de Moisés.
É importante notar que pelo menos uma dessas escritas foi encontrada
na península do Sinai, no mesmo lugar onde Moisés esteve quando recebeu a
incumbência de escrever seus livros. Êxodo 17:14: “Então disse o Senhor a
Moisés: Escreve isto para memorial num livro, e relata-o aos ouvidos de
Josué.”
As evidências, portanto, indicam que Moisés provavelmente usou
alguma forma de escrita fonética para escrever o Pentateuco. É difícil saber
que tipo de letras estariam nessa forma original. Tudo leva a crer que os
fenícios inventaram um tipo especial de alfabeto do qual derivaram os
alfabetos grego, latino e hebraico, cujas letras foram evoluindo até chegar ao
formato que temos hoje.
A objeção apresentada por muitos críticos quanto à autoria da escrita
mosaica dos primeiros livros da Bíblia sugere que, pelos indícios atuais,
parece que o alfabeto fenício, do qual derivou o alfabeto hebraico, dataria do
século 11 a.C. Logo, a escrita hebraica que conhecemos deve ser posterior e,
por isso, muito distante dos dias de Moisés.
Sobre isso, em primeiro lugar, é hipotética a ideia de que o hebraico se
originou do fenício, pois os dados disponíveis apenas sugerem hipóteses, mas
nenhuma certeza. Além disso, o alfabeto hebraico pode até ser posterior a
Moises, mas não a língua hebraica, e essa pode ter se utilizado de outros
sinais gráficos, como os encontrados em Ugarite, na Síria, e que seriam, pelo
menos, duzentos anos mais antigos que o alfabeto fenício.
Que o hebraico poderia se utilizar de outros tipos de sinais para
reproduzir por escrito seu idioma fica claro pelo achado de uma inscrição em
Khirbet Qeiyafa, Israel, e datada do século 10 a.C. Sua tradução ainda é
motivo de disputa entre os especialistas, e há quem pense que seria um
idioma diferente do hebraico, mas tudo leva a crer que esse era um tipo de
escrita usual em Israel no primeiro milênio antes de Cristo e que não derivava
do fenício. Isso não comprova, mas permite supor que, mesmo antes da
elaboração do alfabeto que conhecemos atualmente, tanto Moisés como
outros autores hebreus teriam plenas condições de escrever um livro sagrado,
mesmo que as evidências ainda sejam fragmentárias.
Atos 7:22 declara que Moisés era versado na língua egípcia, que,
conforme visto, era registrada em forma de complexos desenhos
hieroglíficos. O mais natural, neste contexto, seria Moisés escrever seus
livros nesse idioma, que era bem mais rico que a língua dos escravos hebreus,
e que muito provavelmente era um idioma ágrafo, isto é, sem representação
escrita.
Os hieróglifos, além de mais versáteis para escrever textos sagrados,
eram chamados pelos egípcios de mdju Netjer, isto é, “palavras dos deuses”.
Eles foram não apenas a primeira e mais rica forma de escrever dos egípcios,
mas também a de maior duração. Moisés certamente sabia ler e escrever
muito bem em forma de hieróglifos. Porém, a providência divina trabalhou
para que ele rejeitasse essa língua, bem como a escrita dos sumérios, e usasse
alguma forma proto-sinaítica de redação, que era uma forma escriturística
mais vulgar (no sentido de simplicidade), rústica e própria de nômades do
deserto.
Se Moisés tivesse escrito a
Bíblia na língua dos faraós
ou dos sumerianos,
precisaríamos esperar até
os séculos 18 e 19 para
poder ler o Antigo
Testamento, pois foi
somente nessa época que
Georges Grotefen decifrou
os primeiros sinais
cuneiformes e Jean-
François Champollion, os
símbolos egípcios. A ida de
Moisés para o deserto do
Sinai antes mesmo de
libertar o povo o fez
esquecer a língua de Faraó
e se familiarizar com outra
forma mais funcional de
escrita usada em Midiã, isto
é, a alfabética ou
protoalfabética, cujos
caracteres representam
sons, ao invés de
complexos sinais e ideias.

LÍNGUAS ORIGINAIS DA BÍBLIA

Como você sabe, a Bíblia não foi originalmente escrita em nosso idioma. O
que temos é uma tradução, e muitas vezes é complexo o trabalho de traduzir.
Primeiro porque alguns elementos que em nosso idioma contam com apenas
um vocábulo para representá-lo, em outra língua pode contar com dois ou
três. Por exemplo, enquanto nos referimos à morada de Deus e ao ambiente
estelar pelo simples nome de céu, as pessoas de língua inglesa usam dois
diferentes termos, heaven e sky.
Além disso, há palavras que simplesmente não possuem um equivalente
noutra língua. É o caso de “saudade”, que, em inglês, tem de ser traduzida
por um verbo ou quase uma frase (I miss you) porque não existe um
substantivo que lhe seja equivalente.
Por fim, há também o problema de que a língua é um organismo vivo e
as palavras sofrem transformação. Isso é chamado de mutação ou
transformação semântica. Veja este caso: quando você entorna um líquido no
chão, costuma dizer que o líquido derramou, não é mesmo? Pois bem, no
tempo de seus ancestrais, derramar era cortar as ramas de uma parreira de
uvas. De modo que, quando os antigos diziam: “Vou derramar aquela
parreira”, não estavam dizendo que iam entorná-la em algum lugar.
É por essas e outras dificuldades que o trabalho dos tradutores é uma
arte difícil e sempre sujeita a críticas (algumas injustas). Os italianos
costumavam dizer “traduttore, traditore” — o tradutor é um traidor. Triste
adágio para um trabalho tão importante.

▶ Expressões idiomáticas

Millôr Fernandes contou um episódio que ilustrava bem o problema de não se


entender satisfatoriamente as chamadas expressões idiomáticas. Certa mãe,
ao sair para o trabalho, deixa o filho de quatro anos com o marido e diz:
“Meu bem, vê se não tira os olhos do Pedrinho.” No momento em que ela
fala isso, é um berreiro só. O pobre menino entendera que a ordem “Vê se
não tira os olhos do Pedrinho” significava que seu pai poderia arrancar-lhe os
olhos assim que a mãe saísse.
Segundo os especialistas, uma expressão idiomática ou expressão
popular é um conjunto de palavras que se caracteriza não por ser possível
identificar seu significado mediante o sentido literal dos termos analisados
individualmente. Em se tratando da Bíblia Sagrada, Palavra de Deus em
linguagem humana, é de se esperar que o livro mais precioso de judeus e
cristãos também contenha expressões nem sempre captadas pelas traduções
modernas ou muitas vezes mal compreendidas por causa da distância cultural
entre nós e os autores que a produziram.
A boa notícia é que o trabalho conjunto da arqueologia, papirologia,
linguística comparada, entre outras áreas, tem conseguido recuperar muito
desse sentido original e enriquecido nossa compreensão das Escrituras
Sagradas, mesmo que dependamos de traduções atuais para lê-la. Um
exemplo pode ser visto no estranho verso de Salmos 132:17, que fala dos
chifres de Davi. A maior parte das bíblias adaptou o texto, mas algumas
seguem o original hebraico que diz: “Eu farei florescer o chifre de Davi.”
Mas o que isso quer dizer?
Os chifres, nos tempos bíblicos, tinham um significado bem distinto dos
nossos dias. Eles podiam servir de instrumento musical — a famosa trombeta
de chifre chamada shofar —, podiam se transformar em objeto de libação
para conter o vinho, água ou azeite sagrado, e também podiam simbolizar
força, poder e majestade. Por isso, a palavra keren, que nos idiomas hebraico
e ugarítico significa literalmente “chifre”, pode (dependendo do contexto)
significar força, poder ou glória.
Aí fica fácil entender que os “chifres de Davi” significam a força do rei,
e não um par de chifres saindo de sua testa. Por outro lado, Deus fazendo
florescer os chifres do rei significava enaltecer o poder dos seus filhos e seus
súditos. É por isso, também, que na literatura apocalíptica da Bíblia, reis
poderosos são representados por chifres, isto é, forças políticas que atuam na
história humana. É como se Deus transformasse expressões idiomáticas em
imagens reais, e isso ajuda muito a entender alguns símbolos apocalípticos da
Bíblia Sagrada.
Lembrando que a Bíblia foi escrita em hebraico, aramaico e grego, seria
interessante conhecer um pouco algumas características desses três idiomas.
Tal conhecimento ainda que rudimentar poderá enriquecer sua compreensão
do texto bíblico. Logo, uma introdução às características desses idiomas será
bastante benéfica.

▶ Hebraico e aramaico

A maior parte da Bíblia foi escrita em hebraico, com poucos trechos em


aramaico. O aramaico era um grupo de línguas e dialetos aparentado à mesma
origem da língua hebraica. Ambas são, portanto, muito parecidas. O aramaico
era falado não apenas em Israel, mas em muitos outros povos dos tempos
bíblicos (2Reis 18:26). Na Bíblia, ele às vezes aparece com o nome de siríaco
ou caldeu (cf. Daniel 2:4).
Os poucos trechos do Antigo Testamento escritos em aramaico são
Esdras 4:8―6:18; 7:12-26 e Daniel 2:4―7:28. Todo o restante do Antigo
Testamento, com exceção de uma palavra ou outra, foi escrito originalmente
em hebraico (cf. Gênesis 31:47; Jeremias 10:11). O Novo Testamento foi
todo escrito em grego, mas algumas expressões de Jesus aparecem em
aramaico (cf. Marcos 5:41; 7:34; 15:34), e sobre Paulo é dito que ele optou
pelo aramaico para proferir um discurso a uma multidão de judeus (Atos
21:40; 22:2). O hebraico também aparece em certas passagens do Novo
Testamento, como João 5:2; 19:13,17,20; 20:16; Apocalipse 9:11; 16:16.
Linguisticamente, o povo assírio original (que viveu antes dos dias de
Abraão) falava a antiga língua assíria, que estava no ramo oriental da família
semítica. A antiga língua assíria foi perdida com o tempo, quando as pessoas
no Oriente Médio começaram a falar aramaico como língua franca, isto por
volta de 800 anos antes de Cristo.
O árabe e o aramaico têm muito mais em comum, sendo as línguas
semíticas do centro-oeste. O aramaico tem um pouco mais em comum com o
hebraico do que com o árabe, mas há muitas raízes, fonemas, regras
gramaticais e conceitos compartilhados. Embora ambos, o aramaico e o
hebraico, possuam suas diferenças, eles eram línguas cognatas. Ambas
possuíam um alfabeto de 22 consoantes. Elas não tinham, originalmente,
vogais. Estas foram acrescentadas muito tempo depois. Assim, as raízes dos
verbos (geralmente formadas por três letras) eram deduzidas pelo contexto.
Por exemplo, o verbo “escrever” era formado pelas consoantes k, t, b, que
permaneciam invariáveis em sua flexão. Mas o sentido poderia ser katab (“ter
escrito”), koteb (“escrevendo” — gerúndio), katub (“está escrito”), katob
(“escrever”) ou ketob (“escreva” ou “escreve” — imperativo). O contexto,
como dissemos, definirá o tempo verbal apropriado.
Em hebraico, o artigo definido é colocado no início da palavra
(“há’Shem” [o nome]). Em aramaico, é colocado no final (“Shem’ah” [“ah”
é o artigo definido em aramaico]).
O pão: há’lekhem (hebraico) em aramaico vira Lekhm ‘ah’ e assim por
diante.
Havia também uma mudança consonantal entre palavras compartilhadas
tanto pelo hebraico como pelo aramaico. A principal mudança era o “tav” em
aramaico que substituía a letra “shin” em algumas palavras cognatas
hebraicas. Por exemplo: alho em hebraico se escreve shum, em aramaico tum
[ah]. O numeral três em hebraico seria shalosh, em aramaico Tlat [ah].
Quando, após a destruição do segundo templo, os judeus foram novamente
espalhados pelo mundo, eles sentiram que o hebraico estava se tornando
ainda mais esquecido por causa do seu uso cada vez mais raro. Então, na
Idade Média, copistas judeus, chamados de massoretas, criaram um sistema
de pontos e sinais abaixo das consoantes hebraicas que funcionariam como
vogais. Esse sistema de vocalização do hebraico ficou conhecido como texto
massorético, e as partes em aramaico também receberam os mesmos sinais
vocálicos.
Tanto o aramaico quanto o hebraico é escrito da direita para a esquerda,
e utilizam o mesmo alfabeto. Alguns acadêmicos pensam que o hebraico
seria mais antigo que o aramaico em aproximadamente duzentos anos,
embora ambas sejam línguas semíticas. A base do hebraico seria algum
dialeto canaanita falado, sobretudo, nas cercanias da cidade de Salém (que
mais tarde viraria Jerusalém). Já o aramaico teria sua origem na Síria, mais
propriamente em Damasco, e seria mais tarde usado por povos estrangeiros,
como os assírios e persas na sua ocupação daquela terra. Isso fez com que o
aramaico se tornasse uma língua universal por muitos anos até ser suplantada
pelo grego no 4º século a.C.
O aramaico, além de ter a mesma forma de escrita que o hebraico,
possui similaridade com ele em suas flexões verbais, nominais e
pronominais. Os verbos têm dois estados, o imperfeito (indicando ação
incompleta) e o perfeito (significando ação completada). O aramaico emprega
substantivos no singular, no plural e no dual, que é uma categoria substantiva
numeral, distinta do singular e do plural, expressando a quantidade “dois” nos
substantivos contáveis. Em geral, ficam no dual os nomes de coisas que
ocorrem aos pares, como olhos, mãos, ombros etc., mas não somente estes:
palavras como céus (shammai) e águas (maim) sempre vêm escritas na forma
dual.
Os substantivos também têm dois gêneros, o masculino e o feminino.
Quanto ao som, o hebraico difere das outras línguas semíticas por demonstrar
preferência pelo som vocálico a, e, de outros modos, inclusive certas
preferências consonantais, tais como d para z, e t para sh.
De acordo com a New Strong’s Exaustive Concordance [Nova
concordância exaustiva de Strong] (1990), a Bíblia hebraica conta com
aproximadamente 8 mil diferentes palavras derivadas de 1,5 mil diferentes
raízes. Embora isso não signifique que estas seriam as únicas palavras do
hebraico bíblico, é possível afirmar que se trata de um idioma pobre em
termos de vocabulário. Só para você ter uma noção, o dicionário Aurélio On-
line traz um catálogo de 435 mil palavras!
Contudo, é uma língua rica em termos de definição de assuntos
teológicos. As descrições de Deus, do Paraíso e da História da humanidade,
na perspectiva da salvação, são bastante belas e esclarecedoras. Sua
simplicidade gramatical, neste sentido, vem para facilitar a compreensão de
sua mensagem.
O hebraico quase não possui adjetivos ou pronomes pessoais, porém é
rico em advérbios. Uma forma de dizer que alguém é inteligente seria chama-
lo(a) de “filho(a) da inteligência”; alguém bonito, “filho da beleza”. Jesus
mesmo utilizou esse recurso quando apelidou dois de seus apóstolos de
“filhos do trovão” ou quando se referiu aos que o acusavam como “filhos do
diabo” (i.e. “diabólicos”).
Igualmente, o hebraico é um idioma que praticamente não trabalha com
conceitos abstratos. Palavras abstratas para nós, como fé, verdade e
misericórdia, para eles eram completamente concretas. Fé (emunah) é
agarrar-se a algo para se salvar, verdade (emeth) é o elemento que está no
princípio, no meio e no fim do argumento e misericórdia (chesed) é aquele
que abraçamos ao peito. Diferentemente do português, seus pronomes
pessoais são ligados às formas verbais como se fossem sufixos ou prefixos e,
com raras exceções, não faz uso de palavras compostas.

▶ Grego

O grego foi a língua utilizada pelos autores do Novo Testamento para


transmitir a mensagem que Deus revelara a eles. Durante muito tempo,
alguns linguistas imaginavam que o Evangelho de Mateus e provavelmente o
de João haviam sido originalmente escritos em hebraico e, então, traduzidos
para o grego. Mas hoje praticamente nenhum especialista adota essa teoria.
De igual modo, nos séculos 17 e 18, vários acadêmicos tentaram provar
que o tipo de grego usado no Novo Testamento seria uma espécie de “grego
bíblico” sem paralelo com outras formas do grego utilizadas pelos filósofos,
poetas e escritores de origem helênica. O gramático A.T. Robertson (1919)
afirma que, naquela época, o grego do Novo Testamento chegou a ser
considerado o “idioma do Espírito Santo”, moldando uma língua conhecida
para se tornar única e nova. Uma maneira divina de formatar conceitos e
expressões já existentes com o fim de dar-lhes um significado próprio, em
acordo com a revelação cristã.
Isso, em parte, é verdade. Algumas palavras gregas que aparecem no
Novo Testamento são conceituadas de um modo bem diferente daquele usado
originalmente no grego de Alexandria ou Atenas. Também é verdade que o
grego da LXX e o hebraico do Antigo Testamento influenciaram bastante o
texto neotestamentário. Uma prova disso é a presença de hebraísmos e
aramaísmos no texto do Novo Testamento. Ou seja, vocabulários e
expressões idiomáticas não gregas, mas hebraicas e aramaicas, que se
encontram no texto do Novo Testamento.
Substantivos comuns, como Mamon (Mateus 6:24; Lucas 16:9), abba
(Marcos 14:36) e corban (Mateus 7:11), aparecem algumas vezes nos
Evangelhos. O mesmo se pode dizer de nomes próprios, como “Getsêmani”
(Mateus 26:36; Marcos 14:32) e “Tabita” (Atos 9:36,40), que são tanto
hebraicos como aramaicos.
A palavra raboni (Marcos 10:51) é corretamente chamada de “hebraica”
em João 20:16 (KUTSCHER, 1977). Note que, neste evangelho, o autor quis
deixar claro que, embora escrevesse em grego, esta não era a língua em que
Jesus se comunicava com seus discípulos. Ele chama Maria Madalena de
Mariam (forma semita do nome) e não Maria que era a forma grega e ela, por
sua vez, responde chamando-o de Rabbouni. Agora veja que interessante o
sentido do texto hebraico/aramaico que pode vir de três formas:

(a) Rab, ou mestre — o menor grau de honra.


(b) Rabino, meu mestre — um título de maior dignidade.
(c) Rabboni, meu grande mestre — o mais honorável de todos.

Do mesmo modo, palavras definitivamente aramaicas podem ser vistas


em expressões como “talitha koum” (Marcos 5:41), “Eloi, lema sabactani”
(Marcos 15:34) e “maran’atha” (1Coríntios 16:22).
No que diz respeito a expressões idiomáticas do hebraico ou aramaico
usadas no texto grego do Novo Testamento, temos alguns casos interessantes.
Por questão de espaço e propósito deste capítulo, vamos lidar com apenas um
deles. Lucas 15:18-22 diz:
Levantar-me-ei, irei ter com meu pai
e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu
e diante de ti; já não sou digno de ser
chamado teu filho; trata-me como
um dos teus empregados. Levantou-
se, pois, e foi para seu pai. Estando
ele ainda longe, seu pai o viu,
encheu-se de compaixão e, correndo,
lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.
Disse-lhe o filho: Pai, pequei contra
o céu e diante de ti; já não sou digno
de ser chamado teu filho. Mas o pai
disse aos seus servos: Trazei
depressa a melhor roupa, e vesti-lha,
e ponde-lhe um anel no dedo e
alparcas nos pés.

Em seu desespero, o filho pródigo pensa consigo de ir ter com seu pai.
Sua expressão “pequei contra o céu e diante de ti” é inteiramente hebraica.
Não fazia sentido, na mentalidade grega, alguém pecar contra o céu. Neste
caso, “céu” seria um eufemismo para “Deus”. “Encheu-se de compaixão”
também é um hebraísmo, considerando que a compaixão não seria algo
abstrato, como era para os gregos, mas um sentimento “concreto” capaz de
preencher o corpo de uma pessoa.
Do mesmo modo, diferentemente do que está na tradução em português,
não é dito no original que o pai ordenou colocarem um anel no “dedo” do
filho, mas sim “na sua mão”. Ora, era em hebraico (e não no grego comum)
que se dizia colocar um anel na mão, ao invés de colocá-lo no dedo de uma
pessoa (cf. Gênesis 41:42).
Em termos de conceitos ou redefinição de significados, Mateus 10:28,
por exemplo, traz as seguintes palavras de Jesus acerca da alma humana: “E
não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma; temei antes
aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo.” Aparentemente,
Jesus estaria fazendo eco à ideia de alma imortal, que não é partilhada no
pensamento hebraico, pois ele descreve uma situação pós-morte em que a
alma é condenada. Na visão do Antigo Testamento, a alma deixa de existir
quando o corpo desaparece. Não existe a ideia de uma alma queimando no
fogo do inferno — isso é uma criação dos gregos inspirados em certos
conceitos do mundo persa.
O teólogo protestante Hans Wolff, que lecionou por muitos anos na
universidade de Mainz, escreveu um denso estudo sobre Antropologia do
Antigo Testamento,9 no qual esclarece a palavra hebraica nefesh,
normalmente traduzida por alma, designa a “garganta”, necessária para
alimentação e a respiração. Também pode significar o pescoço, a parte
exterior da garganta. Mas, os dois significados vão traduzir o ser humano
como um todo e não partes distintas uma das outras. Wolff explica que nefesh
pode ser traduzido por “alma”, mas num entendimento diferente daquele
advindo do mundo grego.
Nefesh pode ser traduzido, também, por sentimentos sempre ligados ao
emocional. Com isso entende o significado por “vida” (traduzido no Antigo
Testamento), mas, vida no sentido concreto, o ser humano se tornando um ser
vivente. Trata-se do ser humano inteiro como um ser à procura de sua
sobrevivência. Assim, conclui-se que nefesh e “alma” não são termos que
possam ser intercambiados na Bíblia. Para Wolff, ainda existe uma
dificuldade da tradução do termo nefesh para a filosofia helênica.
É com esse pano de fundo que devemos entender o discurso de Cristo.
Lembremos, ele não estaria falando em grego, mas certamente em hebraico
ou aramaico. Assim, se olharmos atentamente o texto, observamos que Jesus
não está endossando o pensamento grego, mas questionando-o ao apresentar
um conceito mais próximo do pensamento hebraico. Ele fala de uma alma
que, juntamente com o corpo, pode perecer. No pensamento grego, a alma
nunca perece, ela vive eternamente no paraíso dos campos elísios ou no
sofrimento do inferno, chamado aqui de “tártaro”. Mateus captou bem o
sentido que Jesus queria dar, considerando que o Mestre estaria falando em
aramaico ou hebraico. Mas ao traduzir as palavras do Senhor para o grego, o
evangelista modificou o sentido original da palavra “alma” no mundo
helênico, dando-lhe uma conotação mais em harmonia com a doutrina do
Antigo Testamento.
Apesar disso, não se pode dizer que o grego do Novo Testamento seja
inteiramente uma espécie de “grego bíblico”, como pensavam muitos autores
do passado. Hoje se sabe que o grego neotestamentário era um dialeto do
grego clássico conhecido como koiné, isto é, o grego “comum”. Essa
variação do grego surgiu dentro dos exércitos de Alexandre, o Grande, à
medida que seus soldados entravam em contato com outras culturas,
especialmente do Egito e da Mesopotâmia
Em termos gerais, é possível dizer que as diferenças básicas entre o
koiné e outras formas da língua grega é que ele seria um idioma mais prático
que acadêmico, colocando mais ênfase na claridade que na eloquência. Sua
gramática era mais simplificada, com poucas exceções em comparação ao
clássico e ao ático. A construção de sentenças, as inflexões e as desinências
eram simplificadas de modo que o grego koiné pudesse se tornar uma
linguagem do povo, um idioma de vida, e não de livros complexos.
9 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. Trad. Antônio Steffen. São Paulo:
Hagnos, 2007.
CAPÍTULO SETE

ESCREVENDO A
PALAVRA DE DEUS

O PROCESSO DE ESCREVER
Hoje, escrever um livro, e-mail ou uma mensagem é relativamente fácil.
Fazemos isso apenas com o uso de dedos no teclado do computador, do tablet
ou do celular. No passado, o mesmo processo era bem mais complexo e
exigia muito mais esforço humano.
A realidade do texto escrito em tela é uma facilidade muito recente da
tecnologia e podemos cair no erro de pensar que escrever uma mensagem era
tão simples antes como o é nos dias de hoje. Mesmo que alguns considerem o
contexto bíblico antes dos teclados, ainda assim podem incorrer num erro de
anacronismo, isto é, tomar uma realidade presente e projetá-la erroneamente
para o passado.
Vejamos: o papel que conhecemos hoje é, em grande parte, feito de
celulose, que é uma matéria-prima extraída de vegetais. Ecologicamente
falando, a produção em massa de papel e seu descarte excessivo na natureza
não é o melhor negócio para a ecologia. Para fazer, por exemplo, 1 tonelada
de papel são necessários, em média, o corte de 24 árvores. A qualidade do
papel determina o tipo de madeira a ser utilizada.
É claro que o programa de reflorestamento e reciclagem de papel usado
ajuda a diminuir o impacto ambiental. Porém, não solucionam
definitivamente o problema. Por isso, nosso desafio talvez seja o excesso e
não a falta de material para escrever. Bem diferente do passado onde a
simples tarefa de mandar uma carta exigia um grande empreendimento
pessoal.
Jerônimo, que viveu no quarto século de nossa era, enumera o processo
da produção de um texto: “Aquilo que digo, que dito, que escrevo, que
corrijo, que releio”.10 Note que havia coisas que eram escritas e outras que
eram ditadas. Também havia a correção, o que implica a existência de
rascunhos. Mas cuidado com anacronismos. O papel era caro, não se tratava
de escrever, embolar o papel e jogar no lixo (embora alguns digam que os
judeus massoretas faziam isso se a cópia da Escritura não estivesse boa). O
trabalho de escrever era meticuloso e demorado a fim de se evitar muitos
erros, mas como errar é e sempre foi um elemento humano, variantes
ocorriam.
O próprio Jerônimo avaliava o que seu escriba havia produzido. Ele fala
de emendare e emendatio, com o significado de correção e retratação. Ele
fala de sinais críticos feitos por ele mesmo e colocados no texto do escriba,
fala de anotações marginais etc.
Antes de Jerônimo, a prática de usar secretários como escribas já era
corrente, especialmente em Roma. Primeiro, temos de ter em conta que
apenas um percentual insignificante da população sabia ler ou escrever. As
poucas crianças que iam à escola aprendiam a escrever em cacos de cerâmica,
no contexto da Ásia, e em tabuletas de cera, no contexto de Roma (na
Europa). Plínio fala de crianças que começavam a ser incentivadas à arte de
escrever pelo fato de desenharem na madeira.
O processo era o seguinte: passava-se cera na tabuleta de madeira e o
aluno escrevia sobre a cera. Quando errava ou queria fazer outro texto
raspava-se com um estilete e começava tudo de novo. Mesmo adultos usavam
tabuletas de cera portáteis para fazer anotações do dia a dia.
Uma análise dos costumes redacionais dos tempos bíblicos nos dá uma
boa ideia de quanto custou para o povo de Deus, no passado, a produção da
Bíblia Sagrada. De acordo com Mateus 20:2 e João 12:5, um denário era o
que se ganhava por um dia inteiro de trabalho braçal no campo. Pois bem,
tendo isso em conta, imagine que uma simples folha de papiro poderia custar
até quatro vezes mais que isso, quatro dias de trabalho para se comprar uma
única folha de papel!
Some-se a isso o preço da tinta, que também era caro, das canetas etc.
De acordo com dados da época, 450 gramas de tinta valiam 12 denários, um
conjunto de dez canetas custava 4 denários, e um recipiente de couro, 40
denários. Dá para se perceber que com tais preços não era possível fazer
rascunhos e começar de novo embolando o papel e jogando no lixo.
A solução encontrada foi a contratação de escribas ou copistas que
pudessem fazer o trabalho de transcrever para um papiro ou pergaminho o
conteúdo desejado por um cliente. Esse trabalho era, a princípio, feito por
escravos que dispunham de cultura e podiam realizar a transcrição para seus
senhores. Com o passar do tempo, porém, especialmente no período romano,
o ato de escrever foi pouco a pouco se profissionalizando e muitos passaram
a cobrar por esse serviço.
Existe, inclusive, um decreto de Diocleciano fixando os preços máximos
que poderiam ser cobrados pelos copistas11. Estes seriam os seguintes:

Para um trabalho de excelente qualidade, 25 denários por cada 100


linhas copiadas.
Para um trabalho de qualidade inferior, 20 denários por cada 100 linhas
copiadas.
Para um escrivão que preparasse uma petição legal, 100 linhas não
podiam custar mais que 10 denários.
Um secretário particular custaria 35 dracmas extras por dia. O valor da
dracma era mais ou menos equivalente ao do denário romano nos dias
de Cristo.12

Tudo isso, é claro, fora o valor dos materiais de escrita (caneta, tinta,
papel) e as taxas governamentais de direito.

POR QUE USAR SECRETÁRIOS?

Muitos não entendem por que nos tempos antigos um homem letrado como
Paulo, Cícero ou Sêneca usaria um copista para escrever suas cartas. Por que
não escreveriam eles mesmos com sua própria letra?
Veja o tom irônico que Cícero respondeu a um opositor jurídico quanto
ao uso de secretários para escrever suas cartas:

Você pode supor que seria uma


questão de preguiça eu não escrever
com a própria mão, e se minhas
palavras seriam exatamente aquilo.
Eu não posso dizer mais nada.
Ademais, eu também posso detectar
Alexis em sua carta. (Cartas a Ático,
16:15. 1)
Noutra feita, o mesmo Cícero justifica o ganho de tempo quando se usa
um secretário (ele queria dizer que era um homem ocupado):

Você pode tomar a própria caligrafia


de meu secretário escrevente como
um sinal de como eu sou ocupado.
Eu direi a você que não há um dia
sequer que eu não faça um discurso
de defesa. Então, praticamente tudo
o que eu faço ou penso eu o faço
enquanto caminho. (Carta a Quinto
3, 3, 1).

Em que pese o tom anedótico do testemunho de Cícero, eis algumas


outras razões de caráter pragmático:

A maioria da população não sabia escrever, e mesmo quem soubesse,


nem sempre tinha o material de escrita à mão (papiro, caneta e tinta).
Havia uma proposital dificuldade de se encontrar esse material para
venda se você não fosse um copista. Isso, é claro, protegeria o ofício dos
secretários.
Economia de tempo (você poderia escrever enquanto come ou caminha).
Neste sentido, era válida a utilização de taquígrafos. Às vezes, o estilete
(segundo Jerônimo) era para escrever na cera e a pena para escrever no
papiro ou pergaminho (veja 2Timóteo 4:13). O estilete era mais usado
pelo taquígrafo. Jerônimo dizia: “Lingua mea stillus scribae velocis”. “A
língua é minha, mas o estilete é do escriba veloz (ou do taquígrafo).”
(Patrologia Latina, 636)
O taquígrafo era excelente na hora de anotar aulas ou discursos.
Prudêncio descreve o trabalho de um taquígrafo chamado Cassiano
como sendo um homem “hábil em representar todas as palavras com
sinais rápidos e em acompanhar com muita prontidão qualquer discurso
graças a pontos muito leves”. Perist. IX, 23 (Patrologia Latina, LX, 435,
A).
Economia de trabalho — o que escrevia era o que levava a carta
(emissário).
Escrever era uma arte não dominada com destreza por todos (caligrafia,
rapidez, saber ler era diferente de “saber” escrever bem).
Estilo de produção da época (ia escrevendo à medida que falava, para
não perder o raciocínio).
Era costume usar um profissional chamado amanuensis (que trabalha
com a mão). O que trabalha sozinho, sem secretário (ou taquígrafo)
como testemunha acaba errando muito mais, o taquígrafo não liga para
os erros, pois os corrigirá depois.
Em alguns casos, em que o próprio autor escrevia na tabuleta de cera,
seria ainda necessária a figura do amanuensis para recopiar o texto da
tabuleta para o papiro ou pergaminho e outros para duplicá-lo caso
quisesse fazer mais de uma cópia.

Os tipos de ditados (vivae


vocis)

Era sempre bom ter um


escriba profissional à mão,
pois ele era um gravador da
época, principalmente em
casos de discursos. Havia
os seguintes tipos de
ditados:
Ditado muito lento — Syllabatim (ipssima verba).
Ditado lento — Verbatim.
Ditado rápido — Taquigrafia (notas tironianas) — Ipssima vox.

Neste último caso, o


copista tinha um trabalho
de compositor que era
supervisionado ao final
pelo autor/contratador.
Mesmo assim, havia
problemas: “Não ditamos
com a mesma delicadeza
que escrevemos, dizia
Jerônimo, pois a linguagem
só pode ser embelezada se
a polirmos com a nossa
mão.” Aqui temos a junção
de duas citações de
Jerônimo: Ep. a Rufino
74,6 (Patrologia Latina
XXII, 685) e Ep. a
Damasio 21,42 (Patrologia
Latina XXII 394).

MATERIAIS DE ESCRITA

Além da tabuleta de cera, o escritor mantinha ao alcance da mão um ou dois


estojos contendo o estilete (stillus ou graphium) e a caneta (calamus). A
caneta podia ser feita de pena de aves, penas metálicas (de bronze ou de
prata) e talo de cana cortada e afiada. A tinta era geralmente preta, embora
nalguns casos possa ter degradações de tom pela sua composição. Isidoro fala
da fabricação de tinta:

A tinta atramentum é a mais escura


[atrum], e seus vários tipos servem
tanto para a pintura [artística] quanto
para seu uso diário [como escrita].
Sua cor, no entanto, é artificialmente
conseguida a partir da fuligem
produzida pela fumaça que lança
uma fina resina sobre as telhas
acesas e se adere à parede do forno.
(Etymologiarum, XIX, 17), 17).

Como papel tinha-se o papiro, fabricado no Egito, e o pergaminho, seu


concorrente, cuja invenção remonta a Eumenes II, rei de Pérgamo (197-158
a.C.). Dizem que ele foi obrigado a usar esse novo processo porque Ptolomeu
IV, rei do Egito, temendo que o vizinho fizesse uma biblioteca tão boa quanto
a de Alexandria, proibiu a exportação do pergaminho para Pérgamo. Alguns
autores, no entanto, estão colocando em dúvida essa versão ou, pelo menos,
assumindo que Eumenes não inventou o pergaminho, mas usou uma técnica
― a de escrever sobre pele de animais ― já conhecida antes dele.
O papel de celulose (ou fibras vegetais) que conhecemos, parece ter sido
inventado na China no segundo século d.C., depois foi aperfeiçoado pelos
árabes em Samarcanda (uma cidade do atual Uzbequistão), no começo do
século 8.
E não podemos deixar de falar dos óstracos, que eram pedaços de
cerâmica (de ânforas quebradas) reaproveitadas para pequenas inscrições
(recibos, bilhetes, cartas, amuletos, maldições). Existem 25 óstracos
catalogados contendo partes de seis livros do NT. Eram espécies de talismãs
e sua forma rara indica que a igreja não tinha essa prática de modo comum.
Esses óstracos datam do quarto ao décimo terceiro século d.C.

QUEM PODERIA PAGAR?

O imperador Diocleciano fixou o salário de um professor de taquigrafia


(aquele que treinava os copistas desde a juventude) em 75 denários por mês,
e por aluno, o de um professor primário era de 50 denários, e os de geografia
e de línguas recebiam 200 denários.13
Diferente, porém, do que se possa imaginar, os copistas não eram a parte
mais cara do processo, veja a tabela de preços que citamos no começo desse
capítulo. Havia muitos deles que cobravam valores bem menores que os
estabelecidos no edito de Diocleciano. No Manuscrito SB XX, encontrado no
Egito e datado do segundo século, é dito que o copista cobrou apenas 12
dracmas para copiar 4 mil linhas dos versos de Aristófanes. Os preços,
portanto, variavam muito. Sem contar que muitos talvez nem cobrassem.
Faziam tudo por uma questão de ideal, como era o caso dos copistas do líder
judeu Bar Kochba, que certamente não cobraram por seus préstimos à causa
revolucionária que ele apregoava.
Além disso, temos evidência de que os judeus, especialmente os rabinos
e estudiosos como Paulo, utilizavam largamente os escribas para preservar o
conteúdo de seus ensinamentos e cartas. No tratado do Sanhedrin 17 B, era
proibido a um judeu instruído morar num lugar onde não houvesse um
escriba para copiar-lhe os ensinamentos.
Ainda no Talmude, o Rabino Joshua B. Levi mencionava o costume dos
homens do Sinédrio de jejuar por 24 dias orando para que os soferim ou
copistas não ficassem ricos e, em virtude disso, perdessem o interesse em
escrever. Eles não podiam enriquecer com grandes somas. Foi graças a essa
disponibilização cultural que Paulo, mesmo sem possuir grandes recursos,
poderia ter um copista à sua disposição.
O fato de ser homem letrado não o impediria de lançar mão desse
serviço. Cícero, Marco Antônio, Bruto, Marco Aurélio são exemplos de
cidadãos romanos letrados que usaram secretários, e por isso suas cartas
saíam, às vezes, com estilo e redação bem diferente umas das outras, mas
ninguém nega que eles eram os autores últimos dos documentos. Isso
certamente explica por que a autoria paulina das várias cartas que levam seu
nome não pode ser negada com base no fato de algumas possuírem um estilo
redacional diferente de outras.

No tempo de Augusto
Cesar, um centurião de
baixa patente ganhava
3.650 denários por ano, 10
denários por dia. No
segundo século, uma
família de seis pessoas
precisava de 1.000 dracmas
por ano para comer, vestir e
pagar aluguel em Roma.
Esses dados demonstram
que a aquisição de um livro
seria um artigo de luxo
mesmo para aqueles que
não viviam em nível de
extrema pobreza.

Para tentar controlar


problemas de inflação no
Império Romano,
Diocleciano determinou em
301 d.C. o tabelamento de
preços, incluindo o valor
máximo que poderia ser
cobrado por um serviço de
copista. No mesmo
documento há uma tabela
máxima de custo de um
pergaminho em branco.
Infelizmente, a parte que
falaria do preço do papiro
está faltando no
documento. 14

CARTAS SECULARES

O costume da época do Novo Testamento, quando se queria enviar uma


correspondência, era contratar um secretário que copiaria em tábuas de
madeira revestidas de cera o que o remetente queria dizer. Era sobre a
camada de cera que o secretário ou copista escrevia com uma espécie de
estilete. Essas tábuas eram chamadas em latim de tabula, tableta ou
ceraculum e foi desse objeto que nasceu a expressão “tabula rasa” que
significa literalmente “tábua raspada”, e tem o sentido moderno de “folha de
papel em branco”.
Ali o copista imprimia marcas simbólicas como aquelas usadas pelos
taquígrafos que conseguiam escrever em tempo real a mensagem que era dita.
Eles funcionavam como um gravador de voz da época, podendo copiar até
mesmo uma aula ou discurso enquanto eram proferidos diante do público. Foi
assim que grandes ensinos do passado foram preservados.
Há quem diga que provavelmente Jesus se beneficiou desse sistema de
registro uma vez que ele era um rabino e havia um grupo de discípulos em
redor dele. Foi talvez assim que alguns de seus ditos foram preservados e
usados como fonte posterior no momento em que os evangelhos foram
compostos. De fato, algumas falas de Jesus tem um tom discursivo que
evidenciam a possibilidade de que alguns de seus ditos foram preservados já
desde sua origem.

No século 2 de nossa era,


Papias de Hierápolis (que,
segundo uma antiga
tradição, teria sido o
secretário do apóstolo João,
que escreveu o evangelho
sob seu ditado) afirma que
Marcos teve acesso aos
ditos de Jesus por
intermédio de Pedro. Ele
não escreveu tudo
cronologicamente
organizado, mas procurou
expor ao máximo os feitos
e ditos do Senhor. Ele
também afirma que Mateus
reunira os ditos de Cristo
em língua hebraica (ou
aramaica), que cada um
depois interpretou segundo
suas capacidades. Ao que
tudo indica, essa coletânea
reunida por Mateus não
seria o “Evangelho de
Mateus” que temos hoje,
pois este foi originalmente
escrito em grego. O mais
provável é que seriam
alguns discursos e ensinos
do Senhor que foram
anotados em tempo real por
algum copista, quem sabe o
próprio apóstolo Mateus.
Segundo Papias:

Marcos, tendo se
tornado o intérprete de
Pedro, escreveu
acuradamente tudo o
que ele lembrava.
Contudo, não foi na
ordem exata que
Marcos relatou os
ditos ou feitos de
Cristo. Pois ele nem
ouviu o Senhor nem o
acompanhou
pessoalmente. Por
outro lado, porém,
como eu disse, ele
acompanhou Pedro
que proveu as
instruções necessárias
[para seus
destinatários], mas não
com a intenção de
oferecer uma regular
narrativa dos ditos do
Senhor. De qualquer
forma, deve ser dito
que Marcos não
cometeu erros ao
escrever as coisas
como ele as lembrava
[…] com respeito a
Mateus, este ajuntou
os oráculos [do
Senhor] em língua
hebraica, e cada um os
interpretou o melhor
que pôde.
Fragmento VI-10
No caso de uma carta, esta poderia ser ditada palavra por palavra ou
recriada a partir de um conteúdo. Um líder religioso, por exemplo, podia
pedir ao copista que fizesse uma carta ao prefeito solicitando ao imperador
suprimentos para o templo de Minerva, em Roma. Neste caso, ele não ditou
as palavras que o copista deveria usar, mas determinou seu conteúdo que,
obviamente, era-lhe apresentado antes do envio para a conferência de sua
forma final. Como tudo era, em princípio, escrito na cera, havia condições
hábeis de apagar o registro, raspando a camada de cera e modificando uma
palavra ou até uma sentença inteira.
Não havia uma padronização exata do tamanho de cartas, isso variava
muito. Só para se ter uma ideia, as cartas de Cícero variam de apenas 22 até
2530 palavras com média de 295 palavras por carta. No caso de Sêneca, essa
média pula para 995 palavras por correspondência.15
Em ambos os casos, do ditado verbatim, isto é, palavra por palavra, ou
do conteúdo, aquele que encomendou o documento torna-se seu autor e, após
a conferência, envia ao destinatário. O autor é aquele que encomendou a
carta, nem sempre assinava embaixo do texto, mas o autenticava com um selo
(sinete). Outra maneira de autenticar o documento era escrever o prefácio
e/ou a conclusão e supervisionar a qualidade da cópia ― caso desejasse que o
mesmo texto fosse enviado para diferentes destinatários. Logo, nos antigos
tempos, autor e escritor não eram sinônimos perfeitos.
O ensaísta romano Valério Marcial (20-104 d.C.) menciona um bom
secretário copista que teve: “Sua mão é tão rápida quanto a fala e antes que a
língua pare sua mão já terminou”.

CARTAS APOSTÓLICAS

A maior parte do Novo Testamento é composta por cartas (também chamadas


de epístolas) que foram enviadas às mais diferentes pessoas e comunidades
cristãs. No Novo Testamento, a forma literária dominante é a carta ou
epístola. Tecnicamente, carta é uma forma de comunicação menos literária e
mais pessoal, cuja finalidade é manter o relacionamento entre o remetente e o
destinatário. Ela surge sempre de uma situação determinada e fala para uma
realidade específica. Uma epístola é mais artística na forma e é projetada
como um tratado autoexplicado para um público bem extenso. Contudo, a
distinção entre ambas pode ser de forma obscura. Os escritos de Paulo
parecem colocar-se entre as duas formas. Assemelha-se a uma carta em
Filemon e, em Romanos, a uma epístola. Hoje em dia, as cartas possuem
forma literária particular (data, endereço, saudação, contexto, conclusão e
nome).
Paulo é o autor da maioria delas. Com base no contexto apresentado dos
tempos romanos quanto ao preparo e envio de uma correspondência, imagine
o grande investimento que tiveram os primeiros cristãos para que pudéssemos
ter hoje várias epístolas na relação de livros inspirados da Bíblia Sagrada.
Existe um libelo contra os cristãos datado dos tempos do imperador
Décio, que ilustra as formas de produção de um documento nos tempos
antigos. Nele há dois tipos de letras indicando dois redatores, e, entre ambas,
a assinatura daquele que solicitou o documento, Hemas. Seu nome é assinado
com letras garrafais para não haver dúvidas quanto à autoria, nem deixar
linhas órfãs no documento.
O libelo dos tempos de Décio ilustra duas passagens de Paulo, a
primeira seria Gálatas 6:11, que diz: “Vede com que grandes letras vos
escrevo de próprio punho”, e a outra é 1Coríntios 16:20,21: “Todos os irmãos
daqui vos saúdam! Cumprimentai-vos uns aos outros com o costumeiro beijo
santo! Eu, Paulo, escrevi esta saudação de próprio punho. Se alguém não ama
o Senhor, seja amaldiçoado. Agora, pois, Maranatha!”
A evidência de que Paulo usava secretários para compor suas cartas
pode ser vista no final da epístola aos Romanos, que diz: “Eu, Tércio, que
redigi esta carta, também vos saúdo no Senhor” (Romanos 16:22).
Pedro também usou o mesmo sistema em sua primeira carta apostólica
que, de acordo com 1Pedro 5:12, foi escrita por Silvano, também conhecido
por Silas, que fora igualmente secretário de Paulo de acordo com Atos
15:22,30-32.
Veja ainda a preocupação de Paulo exposta no final da epístola aos
Tessalonicenses: “A saudação é da minha própria mão, de mim mesmo,
Paulo, este é o sinal [de autenticidade] em todas as epístolas; assim escrevo”
(2Tessalonicenses 3:17).
Além da assinatura, ou de um trecho escrito com a letra do autor
(poderia ser a introdução ou a conclusão), havia outros meios de garantir a
idoneidade da correspondência contra qualquer tipo de fraude, um deles era
fazer com que o responsável pela entrega da carta fosse o mesmo que a
redigiu sob a orientação do remetente. Os que o conheciam como secretário
imediato do autor validariam a confiança no documento que ele trazia.
Outra forma de se evitar fraudes era o uso de selos de argila ou lacres
que fechavam o conteúdo impedindo sua abertura a menos que fossem
rompidos. O selo com sua marca de impressão na argila trazia uma espécie de
carimbo do proprietário que encomendou o manuscrito. Isso facilitava saber
se o destinatário de direito era o primeiro a ler aquilo após ter sido selado, ou
se alguém teria violado o conteúdo.
10 Existe uma variante no texto em latim: “Hoc ipsum quod loquor, quod dicto, quod scribo noutros
manuscritos: “quod scribitur”, “está escrito”), quod emendo, quod relego”. Gal. III, 6, 10 in
Patrologia Latina, XXVI, 433.

11 Bischoff, Latin Palaeography: Antiquity and the Middle Ages [1990] 182

12 C.f. http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/opr/t94/e553 acesso em 3 de abril de 2020.

13 Arns, 65.

14 Rex Winsbury: The Roman Book. Books, Publishing and Performance in Classical Rome. (Bristol
Classical Press, London/Nova Iorque k, 2009), p. 19 e 20.

15 Joseph R. Dodson, David E. Briones, (ed.). Paul and Seneca in Dialogue. Ancient Philosophy &
Religion, 2. Leiden; Boston: Brill, 2017, p. 68.
CAPÍTULO OITO

A TRANSMISSÃO DO
TEXTO BÍBLICO

DEUS INSPIRA E PRESERVA


De acordo com o próprio testemunho bíblico alusivo ao Antigo Testamento,
os manuscritos inspirados foram cuidadosamente preservados desde sua
origem. Eram os sacerdotes que ficavam a cargo dessa tarefa (Deuteronômio
17:18; 31:24-26). Isso não significa, contudo, que não houve perda de
algumas partes. O ponto em destaque é que o que chegou até nós foi fruto de
proteção divina e grande empenho por parte das primeiras gerações,
primeiramente de judeus e depois de cristãos.
Houve períodos, por exemplo, em que os desvios espirituais do povo
tornaram a Palavra de Deus quase desconhecida do povo de Israel. Deus, no
entanto, preservou o conteúdo essencial dos textos por meio de homens e
mulheres sinceros, pois era importante que sua mensagem sobrevivesse
através dos tempos (2Reis 22:8; 2Crônicas 15:3).
Em tempos de reforma e renovação espiritual os textos eram trazidos ao
povo, copiados e, às vezes, compilados num novo formato que preservava a
essência do que fora originalmente dito, sem alterações comprometedoras.
Depois do cativeiro babilônico, o texto bíblico continuou a ser
preservado pelos sacerdotes.
Por meio de Esdras e seus sucessores, sob a orientação do Espírito
Santo, todos os livros do Antigo Testamento foram reunidos em um cânone, e
seus textos foram purgados de erros e preservados até os dias no ministério
terreno do nosso Senhor. Naquele tempo, o texto do Antigo Testamento
estava tão firmemente estabelecido que mesmo a rejeição judaica de Cristo
não pode perturbar o texto.
Jesus Cristo em pessoa validou esse trabalho de preservação ao
reconhecer o texto do Antigo Testamento de seu tempo como Palavra de
Deus e afirmar que nem um j ou til passaria dela até que tudo se cumprisse
(Mateus 4:4 e 5:18). Então vieram os apóstolos e demais seguidores de Cristo
que produziram o Novo Testamento e contribuíram para a continuidade da
transmissão textual das Escrituras Sagradas.
O texto do Antigo Testamento comumente usado entre os judeus durante
o ministério terreno de Cristo era inteiramente confiável. Jesus disse: “Porque
em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um
til se omitirá da lei, sem que tudo seja cumprido” (Mateus 5:18). “E é mais
fácil passar o céu e a terra do que cair um til da lei” (Lucas 16:17). A mesma
providência divina que preservou o Antigo Testamento preserva o Novo
Testamento. Implícito na “grande comissão”, que tem aplicação à Igreja de
Cristo de todos os tempos, está a promessa de que a igreja sempre possuirá o
registro infalível das palavras e obras de Jesus. Cristo declarou: “O céu e a
terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar” (Mateus 24:35;
Marcos 13:31; Lucas 21:33).
É importante dizer que todos os manuscritos originais da Bíblia, isto é,
aqueles que saíram diretamente das mãos dos autores inspirados,
desapareceram. Esses textos originais são tecnicamente chamados de
autógrafos, porém, nenhum fragmento foi preservado. O que temos hoje são
cópias de cópias do original.
A fim de estabelecer com base nas cópias como seria o texto original, os
especialistas utilizam-se de áreas técnicas como a paleografia, papirologia e a
crítica textual, os quais têm realizado um excelente trabalho de recuperação
do texto bíblico e confirmação de seu conteúdo.
A preservação da Bíblia através dos séculos pode ser descrita como a
mescla entre milagre, fé e coragem. Sua história envolveu o sacrifício de
muitos homens e mulheres, piedosos, mas não ingênuos, pessoas que eram
inteligentes demais para se arriscarem por algo que não fosse verdadeiro.
Vale lembrar que vários deles faziam parte da elite cultural da época. Ao
darem sua vida pela Bíblia, testemunharam que realmente acreditavam na
veracidade desse livro e no direito universal de poderem examiná-lo.
Um exemplo seria John Wycliffe (1324-1384), doutor em Teologia pela
Universidade de Oxford. Ele foi duramente perseguido pelo governo por ter
sido o primeiro homem a traduzir toda a Bíblia para o inglês. Traduziu o
Novo Testamento, em 1380; depois, o Antigo Testamento, em 1382.
Curiosamente, 44 anos depois de sua morte, seu corpo foi desenterrado e
queimado sob a acusação de ter sido um herege por defender o livre acesso à
Palavra de Deus.
A seguir, veio Jan Hus ou John Huss (1373-1415), reformador tcheco e
reitor na Universidade de Praga, na Boêmia (região da República Tcheca).
Ele pregou a Bíblia como autoridade máxima para todos os homens, e por
isso foi condenado à fogueira no dia 6 de julho de 1415. Conta-se que Huss
morreu cantando um hino em grego que dizia Kyrie eleison, “Senhor, tem
misericórdia”.
William Tyndale (1484-1536) foi outro que jurou dar a Bíblia ao povo.
Graduado em 1515 na Universidade de Oxford, estudou grego e hebraico e
elaborou uma tradução popular da Bíblia que lhe custou a própria vida. No
dia 6 de outubro de 1536 foi estrangulado, por ordem do rei, e logo em
seguida foi queimado em público. Suas últimas palavras antes de morrer
foram: “Senhor, abre os olhos do rei da Inglaterra.”
O ano de 1456 marcou na Europa o início de uma nova era para a
humanidade. Neste ano, Johannes Gutenberg inventou a imprensa (na
verdade, os tipos móveis) e, como não poderia deixar de ser, o primeiro livro
impresso foi justamente a Bíblia Sagrada. Esse ato revolucionou o modo
como os livros eram feitos e mudou as estruturas do mundo ocidental.
Gutenberg era um cristão devoto, cujo principal intuito, segundo ele, era
“multiplicar a Bíblia, permitindo que todos pudessem lê-la”.
A história da preservação manuscrita do texto bíblico pode ser dividida
em etapas para facilitar a compreensão dessa trajetória desde os tempos em
que o texto foi produzido até os nossos dias. Em suma, podemos apontar os
seguintes períodos de desenvolvimento histórico da crítica textual, com
destaque para o Novo Testamento: 1) reduplicação (até 325); 2) padronização
(325-1500); 3) cristalização (1500-1648); e 4) crítica e revisão (1648 até o
presente).

De acordo com o escritor


Frederick Rudolph, no livro
The American College and
University [A faculdade e a
universidade americana],
estima-se que 87% das
primeiras 119 faculdades
fundadas nos Estados
Unidos foram criadas por
cristãos com o fim de
educar jovens cristãos na
Palavra de Deus e preparar
missionários. Tanto é que
mais de 25% dos 1855
primeiros formandos de
Yale, Princeton, Harvard e
Columbia tornaram-se
ministros do Evangelho.
Esses dados nos mostram
que a Bíblia e a
universidade são dois
parceiros que podem andar
de mãos dadas, sem
nenhum problema.

PUBLICIDADE JUDAICA

Conta-se uma antiga lenda de que Deus havia reunido no céu representantes
de todos os reinos a fim de escolher um povo para si. A todos o Altíssimo
fazia uma única e certeira pergunta: “Se eu escolher vocês para ser o meu
povo, o que vocês fariam por mim?” Os sumérios disseram que fariam uma
grande torre em homenagem a Deus. Os egípcios se propuseram a erguer
pirâmides colossais e os gregos a criar complexos sistemas filosóficos para
descrever as qualidades divinas.
Cada povo apresentava sua proposta até que, por fim, vieram os hebreus.
“E quanto a vocês?” Perguntou o Altíssimo a um grupo de judeus que mal
conseguia erguer o rosto de tamanha vergonha. “Bem”, disseram eles, “não
temos a engenharia dos mesopotâmicos, nem a arquitetura dos egípcios,
muito menos os complicados raciocínios dos gregos. Mas somos um povo
pastoril acostumado com o campo e que ama contar histórias. Se o Senhor
nos escolher, diremos a todos quem o Senhor é.” Não deu noutra: o Messias
acabou nascendo judeu.
É claro que esta é apenas uma anedota e, como tal, pode ser criticada por
não corresponder exatamente à realidade histórica. Porém, ela encerra uma
importante característica dos judeus ― eles são contadores de histórias, e por
isso a Bíblia foi confiada a eles, pois tratava-se da história mais bela do
mundo, a história do amor de Deus, e todos deveriam ouvir falar nela.
Mesmo antes do nascimento de Cristo, os líderes do povo se
preocupavam muito com a transmissão do conteúdo bíblico de geração para
geração. Quando, ao voltar da Babilônia, percebeu-se que muitos judeus
haviam perdido a fluência que tinham na língua hebraica, os anciãos
prepararam comentários e paráfrases do texto escriturístico em língua
aramaica que pudessem ser lidos e compreendidos pelo povo em geral. O
importante era que ninguém ficasse sem entender o Santo Livro.
Mais tarde, com a expansão da cultura grega pelo mundo, judeus
helenistas que viviam em Alexandria viram ali o desafio e a oportunidade de
compartilhar com povos não judeus os ensinamentos da Santa Palavra. Sendo
o grego a língua franca da época, encontraram aí ocasião de traduzir o Antigo
Testamento para o idioma dos gregos e assim espalhar o judaísmo pelo
mundo.

PERÍODO DE REDUPLICAÇÃO (ATÉ 325)

Após a morte de Alexandre, o Grande, em 323 d.C., a cidade de Alexandria


se tornou um grande centro de estudos e conhecimento intelectual. Sua
biblioteca era a maior do mundo antigo e sua cultura rivalizava-se com a de
Atenas.
Sendo assim, os intelectuais alexandrinos se dispuseram a colecionar ali
todos os livros produzidos no mundo inteiro, e seria importante que eles
estivessem escritos em grego para que todos os letrados pudessem ler. O
grego, lembramos, era a língua universal nesse período. Foi neste contexto
que se abriu a oportunidade para que judeus moradores da cidade
produzissem a versão grega das Escrituras chamada Septuaginta (LXX). Ela
foi produzida entre 280 e 150 a.C.
Ao que tudo indica, o fato de os cristãos usarem largamente a LXX fez
com que os judeus se empenhassem na elaboração de outras traduções gregas
do Antigo Testamento. Hoje conhecemos pelo menos três delas que poderiam
ser traduções diretas ou reelaborações de outras traduções já existentes, que
remontam a este período, cujos responsáveis foram os seguintes:

Áquila de Sinope (ca. 130 d.C.) ― foi estudante do rabino Áquiba e


desenvolveu uma tradução bastante literal do texto hebraico que muitas
vezes se tornava ininteligível aos falantes da língua grega. Acredita-se
que essa versão de Áquila foi muito usada nas sinagogas em lugar da
LXX. Os cristãos, contudo, não a apreciavam muito, embora Jerônimo e
Orígenes falassem muito bem dela.
Símaco, o ebionita (ca. 170 d.C.) ― este fez uma tradução bastante fiel
do Antigo Testamento, mas num grego elegantíssimo. Apesar do título
de “ebionita” dado por Eusébio, acredita-se que, na verdade, ele seria
um samaritano convertido ao judaísmo.
Teodócio (ca. 180 d.C.) ― um prosélito convertido ao judaísmo que
conseguiu produzir uma versão apreciada tanto por judeus como por
cristãos. Há quem pense que ele se empenhou numa revisão da LXX
tomando por base o texto hebraico.
De todas essas obras apenas fragmentos e citações sobreviveram até os
nossos dias. Por essa razão, muitos acadêmicos apostam na existência de
outras versões, das quais nem tomamos conhecimento.

Ao mesmo tempo em que várias traduções eram feitas, os estudiosos de


Alexandria tentavam restaurar antigos textos de poetas e pensadores gregos
que corriam o risco de se perder. Assim nasceu com eles o primeiro trabalho
de crítica textual de que temos notícia. Munidos de várias cópias, sua
intenção era restaurar os textos originais como saíram das mãos dos
discípulos de Sócrates, Platão e Aristóteles. A destruição da Biblioteca com
seus 700 mil volumes, ocorrida no século 7 d.C., trouxe um tremendo
prejuízo intelectual para a humanidade.
Com o passar dos anos, Alexandria também se tornou um reduto de
cristãos convertidos do judaísmo helenista, posição que se conservou até a
chegada dos conquistadores mulçumanos no século 7 d.C. Assim, é possível
que Alexandria tenha se tornado também o centro da atividade intelectual
cristã, na tentativa de preservar o texto bíblico antes de 325 d.C., embora não
encontremos nenhuma crítica textual do Novo Testamento durante esse
tempo. O período foi mais de reduplicação dos manuscritos do que de
avaliação de textos.
Enquanto isso, judeus que moravam na Galileia, de 70-100 d.C.,
efetuaram diligente trabalho textual no Antigo Testamento. De igual modo,
copistas cristãos, próximos ao ano 100 d.C., muito provavelmente fizeram
cópias de manuscritos do Novo Testamento que queriam que fossem
preservados. Provavelmente, o texto original (chamado de autógrafo) serviu
como fonte dessa duplicação.
Até o presente momento, nenhuma dessas cópias chegou até nós, de
modo que sua existência, embora provável, ainda é hipotética. A qualidade de
uma cópia, é claro, dependia da competência e profissionalismo do escriba
que a produzia. Um trabalho dessa natureza não saía barato. A partir de 150
até 325 d.C., a chance de um copista cristão usar um texto original como
padrão diminuiu acentuadamente. Então, as cópias de autógrafos deram lugar
a cópias de outras cópias.
Mas não pense que era um período calmo para a Igreja. Além de
enfrentarem oposições esporádicas e mais localizadas, os cristãos amargaram
duas grandes perseguições durante o reinado de Décio e Diocleciano. Possuir
uma cópia da Bíblia ou do Novo Testamento tornou-se um crime punido com
a morte. Centenas de cópias foram confiscadas e destruídas pelos romanos de
modo que, por pouco, nenhum exemplar da Bíblia teria sobrevivido até os
nossos dias.
Como consequência dessa condição hostil, alguns cristãos se viram
obrigados a copiar as Escrituras de modo apressado usando quaisquer
manuscritos que possuíam. Muitos deles eram copistas amadores, pois os
profissionais, além de cobrarem caro, não queriam correr o risco de serem
mortos por ordem imperial. Numa situação como esta, ficava mais fácil
surgirem erros nos manuscritos que eram copiados.
Enquanto isso, os cristãos de Alexandria, seguindo o exemplo de outros
copistas da cidade, iniciaram, entre 200 e 250 d.C., um trabalho pioneiro de
comparação textual entre os manuscritos. O exemplo foi seguido em outras
partes do império, de modo que se criou um trabalho básico de crítica textual,
quando, então, se deu a perseguição sob o imperador Décio (249-251 d.C.).
Um destaque desse período foi a obra de Orígenes (185-284 d.C.) em
Alexandria. Ele escreveu cerca de cinquenta volumes da chamada Hexapla
que, devido à enorme quantidade de páginas, jamais viria a ser publicada
integralmente. A Hexapla (i.e., “sexto”) foi uma edição do Antigo
Testamento em seis diferentes versões alinhadas lado a lado. Seu objetivo era
estabelecer o conteúdo bíblico do Antigo Testamento de um modo
minimamente científico (dentro do que podia se considerar ciência na época).
Ela consistia no texto hebraico do Antigo Testamento, da sua transliteração
em letras gregas e as quatro versões gregas que circulavam naquela época: a
de Áquila, a de Símaco, a Septuaginta e a tradução de Teodócio.
Além da Hexapla, Orígenes escreveu vários comentários sobre o Novo
Testamento que fizeram dele uma espécie de crítico textual. Sua obra teve
significativa influência no texto do Antigo Testamento e em diversos
manuscritos importantes, como o Códice Sinaítico. Mas hoje temos apenas
fragmentos do que originalmente contava com mais de 6 mil páginas.

PERÍODO DE UNIFICAÇÃO TEXTUAL (325-1500)

Com a suposta conversão do imperador Constantino para o cristianismo, a


Igreja entrou numa nova fase de conforto social, desfrutando o fim das
perseguições. Tal situação influenciou em certa medida o processo de cópia
dos manuscritos bíblicos.
Uma das primeiras atitudes do imperador romano foi solicitar ao teólogo
e historiador Eusébio de Cesareia que providenciasse a cópia de 50
exemplares da Bíblia, possivelmente para compensar a lacuna deixada pela
perseguição de Diocleciano que destruiu centenas de manuscritos bíblicos
(Vita Constantini, IV, 36–37).
Inúmeros manuscritos foram destruídos durante as perseguições e
tiveram que ser substituídos. O resultado foi uma ampla escassez de
manuscritos do Novo Testamento que se tornou ainda mais aguda quando
cessou a perseguição. Foi quando a cristandade pôde novamente se engajar
livremente na atividade missionária que houve um tremendo crescimento em
ambos os lados das igrejas existentes e no número de novas igrejas. Também
ocorreu uma súbita demanda de muitos volumes dos manuscritos do Novo
Testamento em todas as províncias do Império (Aland, O Texto do Novo
Testamento, p. 65).
Este foi um período de padronização textual no qual especialmente o
Novo Testamento começou a ser copiado por escribas profissionais
financiados pelo império. O trabalho era feito com cuidado e fidelidade a
partir de manuscritos que sobreviveram à destruição ordenada por
Diocleciano.
O texto de uma região era copiado por escribas dessa região. Assim,
podemos perceber uma gradual integração dos textos, resultante da
comparação entre diferentes manuscritos e a efetiva obtenção de um tipo
textual que não tivesse tantas variantes. Os textos locais foram, aos poucos,
cedendo lugar a um texto único.
Quando Constantino transferiu a sede do império para a cidade que
levou seu próprio nome (Constantinopla), seria bem razoável supor que tal
cidade haveria de dominar o mundo de fala grega, e que seus textos
escriturísticos haveriam de tornar-se os textos predominantes para a igreja.
Foi o que ocorreu, sobretudo tendo em mente o patrocínio do imperador, que
mandou produzir cópias cuidadosas do texto do Novo Testamento.
Em decorrência do precedente aberto por Constantino, aumentou-se
cada vez mais o número de manuscritos copiados de modo mais profissional
e cuidadoso. Todavia, revisões oficiais, planejadas com o máximo cuidado,
eram relativamente raras, de modo que não procede afirmar que houve
manipulação textual por parte do império ou mesmo da cúpula da igreja.
Prova disso reside no fato de que grandes ensinos eclesiásticos da época
jamais tiveram apoio escriturístico para suas alegações, como a assunção de
Maria, a intercessão dos santos ou o celibato dos sacerdotes.
As revisões ou recensões textuais podem ser definidas, pelo menos
genericamente, como a apreciação crítica de uma obra literária ou de um
texto. No caso dos manuscritos bíblicos é a alteração consciente e sistemática
de uma cópia em grego ou latim seguindo princípios precisos e com um
objetivo bem definido ― corrigir imperfeições. Pode-se, por exemplo,
planejar a adaptação de um texto grego existente para torná-lo mais
semelhante ao original hebraico, ou numa versão em que o estilo foi adaptado
para torná-lo mais moderado e adaptado às características linguísticas de uma
determinada época ou região.
Visto que assim se desenvolveu a padronização do texto, houve pouca
necessidade de classificar, avaliar e criticar os primeiros manuscritos do
Novo Testamento. O resultado foi que o texto bíblico permaneceu
relativamente intocado por todo o período. Mais ou menos no fim dessa
época, tornou-se possível a total padronização do texto, havendo ilimitado
número de exemplares mais ou menos idênticos, mediante a introdução de
papel barato e da imprensa. Os exemplares da Bíblia impressos em papel
tornaram-se mais abundantes depois do século 12. Por volta de 1454, Johann
Gutenberg desenvolveu o sistema de tipos móveis para a imprensa, e assim
abriu a porta para os esforços favoráveis a uma crítica mais cuidadosa do
texto, durante a era da Reforma Protestante.

Em termos reais, o Novo


Testamento é facilmente o
escrito antigo melhor
atestado, em termos da
enorme quantidade de
documentos, de espaço de
tempo entre os eventos e os
documentos, e da variedade
de documentos disponíveis
para sustentá-lo ou
contradizê-lo. Não há nada
nas evidências dos antigos
manuscritos que
comprometa tal
credibilidade e integridade
de texto (RAVI
ZACHARIAS, Can Man
Live Without God?, 1994.
p. 162).
Uma página (folio) do Papiro 46, uma das mais extensas e antigas cópias do Novo Testamento.

O PERÍODO DAS IMPRESSÕES (1500-1648)

No período da Reforma, após a invenção da imprensa, o texto bíblico entrou


num período de formatação gráfica, assumindo a forma impressa em lugar da
manuscrita. Envidaram-se esforços no sentido de se publicarem textos
impressos da Bíblia com a maior precisão possível. Com frequência esses
textos eram publicados em vários idiomas ao mesmo tempo, incluindo
edições bilíngues como a “Poliglota complutense” (1514-17), a “Poliglota de
Antuérpia” (1569-72), a “Poliglota de Paris” (1629-45) e a “Poliglota de
Londres” (1657-69). Publicou-se também nesse período (ca. 1525) uma
edição modelo do Texto Massorético, sob a direção editorial de um certo
judeu chamado Jacob ben Chayyim, que se convertera ao cristianismo. O
texto se baseava em manuscritos que datavam do século 14. Assim, surgiram
cópias da bíblia hebraica, tanto em forma manuscrita como impressa.
O cardeal Francisco Ximenes (1437-1517), da Espanha, intentou lançar
uma primeira edição impressa do Novo Testamento grego, que haveria de
sair do prelo em 1502. Conquanto fosse o primeiro Novo Testamento
impresso, não foi o primeiro a ser colocado no mercado. O papa Leão X não
emitiu o imprimatur senão em março de 1520, o que causou um atraso no
lançamento.
Neste ínterim, surgiu na Europa, em 1516, o chamado Textus Receptus
(ou Texto Recebido), uma conhecida versão grega do Novo Testamento que,
como o próprio nome diz, arvorava ter sido uma dádiva de Deus aos homens.
A denominação “Textus Receptus” tem sua origem no prefácio da edição de
1633 (dos irmãos Bonnaventura e Abraão Elzevir), que diz em latim: Textum
ergo habes nunc ab omnibus receptum, in quo nihil immutatum aut
corruptum damus (Tens, portanto, o texto agora recebido por todos, no qual
nada oferecemos de alterado ou corrupto).
O Textus Receptus trata, na verdade, de uma série de impressões, em
grego, do Novo Testamento, que serviu de base para diversas traduções dos
séculos 16 ao 19, como a Bíblia de Lutero, a Bíblia King James, e para a
maioria das traduções do Novo Testamento da Reforma Protestante, inclusive
a tradução portuguesa de João Ferreira de Almeida.
A primeira compilação desse texto foi executada pelo filósofo e
humanista holandês Erasmo de Roterdã que, em 1514, já havia combinado
com o impressor Johann Froben, da Basileia, de fazer um lançamento deste
livro. Ele então viajou no ano seguinte, a fim de procurar manuscritos gregos
que pudessem ficar em paralelo com uma tradução latina feita por ele mesmo.
Embora os manuscritos que Erasmo encontrou precisassem de revisão,
isso não o impediu de prosseguir em seu trabalho. Em tempo recorde, sua
primeira edição foi publicada em março do 1516. Mas a pressa resultou em
numerosos erros na obra, tanto de natureza tipográfica como mecânica. Além
disso, os textos nos quais Erasmo se baseou não haviam passado por uma
revisão crítica, de modo que não eram muito confiáveis. A própria
receptividade dada à edição de Erasmo do Novo Testamento em grego teve
natureza mista (METZGER, 1968).
Por causa disso, em apenas três anos após a primeira tiragem foi
necessário publicar uma nova edição. E, depois dela, várias outras foram
publicadas tanto pelo próprio Erasmo, como por Beza, Estienne, entre outros.
Deve-se ressaltar, no entanto, que, apesar de todas as pesquisas e revisões dos
textos gregos nas diversas edições do Textus Receptus, entre a primeira
edição de Erasmo, em 1516, e a edição dos Elzevir, em 1633, é possível
encontrar uma diferença de menos de 300 palavras em 140.000 que compõem
o Novo Testamento, ou seja, apenas 0,002% do total.
Roberto Estéfano, impressor da corte real em Paris, publicou o Novo
Testamento grego em 1546, em 1549, em 1550 e em 1551. A terceira edição
(1550) foi a primeira edição que continha um aparato crítico, ainda que
fossem meros quinze manuscritos. Essa edição baseou-se na quarta edição de
Erasmo, e foi a base do Textus Receptus. Sendo publicada, essa terceira
edição se tornaria o principal texto da Inglaterra. Em sua quarta edição,
Estéfano divulgou sua conversão ao protestantismo e implantou a divisão do
texto em versículos.
O PERÍODO DE CRÍTICA E DE REVISÃO (1648 ATÉ O
PRESENTE)

No encerramento da era da Reforma, a Bíblia passou por um período de


críticas e revisões textuais, procurando ao máximo a apresentação impressa
do texto bíblico conforme saiu das mãos de seus autores.
De 1648 a 1831, temos uma reunião e classificação de manuscritos
bíblicos seguindo padrões acadêmicos de identificação textual. Brian Walton
(1600-1661) editou a Poliglota de Londres, incluindo os textos paralelos da
edição de Estéfano, de 1550. Essa obra poliglota continha o Novo
Testamento em grego, latim, sírio, etíope, árabe e persa (os evangelhos). Nas
anotações apareceram os vários textos paralelos então recentemente
descobertos, como o Códice Alexandrino (A) e um aparato crítico feito pelo
arcebispo Usher.
Em 1675, John Fell (1625-1686) publicou uma edição anônima do Novo
Testamento grego em Oxford que trazia evidências, pela primeira vez, das
versões gótica e boaírica. Então, em 1707, John Mill (1645-1707) reimprimiu
o texto de Estéfano, de 1550, e acrescentou cerca de 30 mil variantes tiradas
de quase 100 outros manuscritos. Essa obra foi uma contribuição
monumental para os estudiosos subsequentes, porque lhes proporcionou uma
base ampla de evidências textuais confiáveis.
Uma importante contribuição veio do trabalho editorial de Johann Jakob
Griesbach (1745-1812). Ele classificou os manuscritos do Novo Testamento
em três grupos (alexandrinos, ocidentais e bizantinos), e lançou os alicerces
de todo o trabalho subsequente do Novo Testamento grego. Em sua obra,
Griesbach estabeleceu 15 cânones de crítica textual. Em seguida ao
lançamento da primeira edição do seu Novo Testamento (1775-1777), outros
estudiosos publicaram comparações entre diferentes manuscritos que
aumentaram enormemente a disponibilidade de evidências textuais oriundas
dos Pais da Igreja, das primeiras versões e do texto grego.
Dois estudiosos de Cambridge, Brooke Foss Westcott (1825-1901) e
Fenton John Anthony Hort (1828-1892), também se destacam por suas
contribuições ao estudo do texto do Novo Testamento. Juntos, eles
publicaram em 1881 e 1882 a obra The New Testament in the Original Greek
[O Novo Testamento no original grego], em dois volumes.
O texto dessa obra ficou à disposição de uma comissão de revisão que
produziu o English Revised New Testament [Novo Testamento inglês
revisado], em 1881. O emprego de seu texto na versão inglesa revisada
aumentou a aceitação de seu texto crítico. No entanto, alguns estudiosos
defensores do Textus Receptus de Erasmo não pouparam esforços na
argumentação contra o texto de Westcott e Hort.
Uma famosa hipótese textual chamada “teoria genealógica” foi
apresentada por Westcott e Hort à comunidade acadêmica. Eles propunham
dividir os manuscritos bíblicos em quatro tipos: siríacos, ocidentais, neutros e
alexandrinos. O tipo siríaco de texto inclui os textos siríacos propriamente
ditos, os antioquinos e os bizantinos, como A, E, F, G, H, s, v, z, e a maior
parte dos minúsculos. O tipo ocidental de texto para Westcott e para Hort
tinha raízes na igreja síria, mas havia sido levado mais longe, na direção do
Ocidente. De acordo com Westcott e Hort, houve um ancestral comum (‫ )א‬na
raiz do texto neutro e do alexandrino, que teria sido primitivo e muito puro.
Hoje, as mais recentes comparações dos diferentes manuscritos do Novo
Testamento estão disponíveis nas obras de Eberhard Nestlè, Novum
Testamentum Graece e no The Greek New Testament, da United Bible
Societies, editada por K. Aland, entre outros. Em geral, essas obras fazem
uma classificação minuciosa dos manuscritos e questiona a autoridade do
Textus Receptus.
O Institut für Neutestamenttlche Testforshung (INTF) em Münster,
Alemanha, responsável pela produção do texto crítico Nestlè-Aland e do
Novum Testamentum Graecum — Editio Critica Maior, já tem mais de 5,8
mil manuscritos gregos catalogados, fora os lecionários, traduções antigas e
outros documentos recentemente descobertos que faltam ser catalogados. Se
juntarmos todo material do Antigo e Novo Testamentos, incluindo as cópias
hebraicas, Manuscritos do Mar Morto, citações da Patrística e antigas
versões, podemos dizer que temos perto de 50 mil manuscritos que ajudam a
testemunhar a confiabilidade na transmissão do texto.
A partir do fim do século 19, com a publicação do texto de manuscritos
mais antigos do Novo Testamento, a maioria das traduções bíblicas usa os
chamados textos críticos, isto é, estabelecidos por meio da crítica textual, não
sem controvérsia daqueles que ainda preferem o Textus Receptus. O Textus
Receptus guarda grande semelhança com o Texto Bizantino (ou Texto
Majoritário), por isso às vezes são tratados como se fossem o mesmo texto.
O Novo Testamento grego, normalmente, traz uma folha com o
chamado Aparato Crítico, que constitui um conjunto de sinais específicos,
indicando as mudanças que copistas, algumas vezes intencionalmente, porém,
muitas outras despercebidamente, introduziram no texto que estavam
copiando. É papel primordial da Crítica Textual detectar estas variantes
textuais, “purificando” o texto das omissões, mudanças ou acréscimos que
por acaso tenham aparecido.
CAPÍTULO NOVE

DO PERGAMINHO
À INTERNET

TRADIÇÕES E MANUSCRITOS
Antes que a Bíblia fosse iniciada, os hebreus contavam com uma tradição
oral passada de pai para filho. Contudo, mesmo com o advento da Revelação
escrita dada aos profetas, a tradição oral permaneceu em uso no judaísmo e
isso perdurou até os tempos de Cristo.
O problema estava em que a tradição oral não era uma fonte
inquestionável de verdades reveladas, pois ela estava mais sujeita à distorção
que o texto escrito. E distorções poderiam ocorrer mesmo num povo
acostumado a repassar verdades orais de geração em geração. Ademais, com
o fim do cativeiro Babilônico, tradições desnecessárias e até contraditórias ao
texto bíblico permearam a religião dos judeus por intermédio de grupos como
os escribas e fariseus.
Os rabinos citavam a tradição como autoridade para interpretar a lei. Em
contraste com isso, Jesus falou por sua autoridade como legislador. A
expressão “eu, porém, vos digo” foi várias vezes usada pelo Mestre (cf.
Mateus 5:21-44).
Certa feita, ele disse aos guias do judaísmo de seu tempo:

[…] Negligenciando o mandamento


de Deus, guardais a tradição dos
homens. E disse-lhes ainda:
Jeitosamente rejeitais o preceito de
Deus para guardardes a vossa
própria tradição. Pois Moisés disse:
Honra a teu pai e a tua mãe; e:
Quem maldisser a seu pai ou a sua
mãe seja punido de morte. Vós,
porém, dizeis: Se um homem disser a
seu pai ou a sua mãe: Aquilo que
podereis aproveitar de mim é Corbã,
isto é, oferta para o Senhor, então, o
dispensais de fazer qualquer coisa
em favor de seu pai ou de sua mãe,
invalidando a palavra de Deus pela
vossa própria tradição, que vós
mesmos transmitistes; e fazeis
muitas outras coisas semelhantes.
(Marcos 7:8-13, cf. Mateus 15:1-9)
Assim, nos dias de Cristo, havia uma tensão entre a autoridade da
tradição oral e a Escritura revelada por Deus. A aristocracia sacerdotal
formada pelos saduceus controlava o acesso à biblioteca do Templo e aos
escritos sagrados. Eles eram, contudo, liberais em muitos aspectos e sua
autoridade era a mais ameaçada pela tradição oral. Por outro lado, grupos
como dos fariseus eram majoritariamente compostos por classes mais simples
do povo — esses, sim, investiam na tradição oral como meio de dominarem e
determinarem o comportamento das massas.
Com o passar do tempo, a ideologia da tradição oral continuou
persistindo no judaísmo rabínico mesmo depois da destruição do Templo e de
Jerusalém no ano 70 d.C. pelas milícias romanas. Mas seu comportamento
era um tanto contraditório, pois eles diziam reconhecer a autoridade da
palavra Escrita de Deus. Contudo, a voz de um rabino vivo tinha valor igual
ou superior aos textos proféticos do Antigo Testamento.
O cristianismo, coincidentemente, também emergiu das classes sociais
mais simples de Israel — justamente aquelas dominadas pelos rabinos e
fariseus. Seus seguidores, no entanto, foram por alguma razão motivados a
valorizar mais a Palavra escrita e, em virtude disso, escreveram os textos que
hoje chamamos de Novo Testamento.
Sua produção literária, porém, contou com um fator novo: eles
rapidamente adotaram o Códice (ou Códex ) — uma forma de livro diferente
do rolo usado pelos judeus e que se assemelha muito aos cadernos que
usamos em nossos dias. Códices com folhas retangulares costuradas ao meio
começaram, então, a surgir no primeiro século d.C. e se tornaram muito
comuns em meados do quarto século.
A vantagem do códice, além da facilidade de transporte, é que ele
poderia comportar muito mais escritos que o rolo de pergaminho. Além disso,
era mais fácil descobrir uma passagem folheando o texto que o desenrolando
até achar a citação desejada.
No ato de conter uma coleção de rolos num só caderno, o Códice
também definiu a organização e a ordem de um conjunto de livros que mais
tarde formariam o cânon. Assim, a Bíblia tornou-se aos poucos o livro que
hoje conhecemos e admiramos.
Um importante códice bíblico é o manuscrito denominado Códex
Sinaiticus, datado de meados do século 4 d.C. Ele foi encontrado por
Constantin Tischendorf, em 1844, no monastério de Santa Catarina, aos pés
do monte Sinai (daí o nome pelo qual veio a ser conhecido). Tischendorf era
um dedicado biblista e pesquisador que vivia à caça de antigos manuscritos
bíblicos. Este, em especial, foi descoberto por acidente, quando um monge
por pouco não o lança ao fogo para aquecer a lareira do monastério.
Originalmente, o caderno tinha 1,4 mil páginas, das quais restaram
apenas 800 — a totalidade do Novo Testamento e a metade do Antigo —,
todas escritas em grego. O manuscrito hoje está na Biblioteca Britânica
(embora algumas seções estejam no Egito, Rússia e Alemanha).
Outro importante documento datado da mesma época que o Códex
Sinaiticus é o Códex Vaticanus (ou 1209) — outro dos mais antigos
manuscritos existentes da Bíblia Grega (Antigo e Novo Testamentos). Ele
está guardado na Biblioteca do Vaticano desde, pelo menos, o século 15, e
ficou conhecido por estudiosos ocidentais por causa da correspondência entre
Erasmo de Roterdã e os prefeitos da Biblioteca do Vaticano. A erudição atual
considera este um dos melhores manuscritos bíblicos ao lado do Códex
Sinaiticus.
O judaísmo, por sua vez, demorou muito para adotar os códices para
transcrever seus textos sagrados. Os mais antigos que temos em hebraico
datam do século 10 d.C. Mas ainda hoje o rolo de pergaminho é preferível
nas leituras litúrgicas usadas nas sinagogas.
Entre as versões digitais, chama a atenção do pesquisador o fato de que
até manuscritos bíblicos, como os pertencentes à coleção do Mar Morto,
estão atualmente disponíveis na internet graças a um projeto digital que se
amplia para contemplar outros manuscritos importantes relacionados à Bíblia
Sagrada.
O leitor judeu da Torá geralmente aceita e usa versões digitais, no
entanto, ele estabelece uma hierarquia, afirmando que o livro impresso será
sempre superior à versão digital, a qual servirá tão somente como uma
ferramenta adicional à leitura do texto impresso, não como um substituto. No
caso do uso litúrgico, o livro manuscrito em pergaminho copiado conforme
os preceitos rabínicos é elemento insubstituível.
O ROLO E O CÓDEX

Um exame estatístico dos fragmentos de manuscritos bíblicos que temos


referentes ao Novo Testamento demonstra uma predileção dos primeiros
cristãos pelos chamados códices, ou seja, livros em forma de cadernos que
vieram em substituição aos rolos usados tanto pelos judeus como pelos
demais leitores greco-romanos.
A diferença básica entre os dois objetos, o rolo e o códice (ou códex),
estaria em seu formato e na praticidade de um em relação ao outro. O rolo
seria uma extensão feita de papiro ou pergaminho, que permitia ao escriba
fazer suas cópias ou anotações, enquanto o códex era feito de folhas
separadas e costuradas no dorso no formato de um caderno.
O rolo também era costurado em uma extensão máxima de vinte folhas
unidas uma após a outra. Quem diz isso é Plínio, que viveu no primeiro
século d.C.16 Contudo, considerando que existem rolos de papiro e
pergaminho bem maiores que isso, tal informação pode referir-se aos tipos
mais comuns vendidos em branco para copistas em geral, e não aos livros
depois de produzidos.
O Evangelho de Lucas, por exemplo, requeriria um rolo três ou quatro
vezes maior que isso. Bruce Metzger, falecido especialista em manuscritos
bíblicos, argumentava a partir de “um acúmulo de evidências artísticas,
arqueológicas e literárias” que as escrivaninhas chegaram tarde, não se
tornando populares até o oitavo ou o nono séculos.17 Realmente ficaria
estranho escrever num rolo em cima de uma mesa.

O modo de um escriba
escrever um livro ou
documento era bem
diferente do modo como
escrevemos hoje, sentados
sobre cadeiras e apoiados
em mesas ou escrivaninhas.
Na Antiguidade, os
escribas não estavam
acostumados a escrever
sobre esse tipo de mobília.
Quando tinha de fazer uma
anotação curta, de no
máximo uma página, o
escriba a fazia em pé numa
tabuinha de cera ou em
uma folha de papiro ou
pergaminho. Ele
geralmente ficava de pé e
escrevia enquanto segurava
o material de escrita em sua
mão livre. No caso de uma
tarefa mais extensa, como a
cópia de um longo
manuscrito, aí sim, ele se
sentava, ocasionalmente no
chão, ou num banquinho ou
banco, apoiando o rolo
sobre uma tabuleta que
ficava apoiada em seus
joelhos.

Às vezes, para não correr o


risco de danificar o
material, ele copiava as
folhas em separado e
depois as costurava em um
longo rolo manuscrito.
Porém, o mais comum era
escrever em rolos pré-
montados, ou seja, o papiro
ou pergaminho já era
vendido em rolos
preparados de fábrica para
receber as letras e a tinta do
texto a ser anotado.
Na maioria das antigas culturas letradas, os rolos de pergaminhos ou
papiro eram o formato mais comum para a produção de extensos
documentos. Somente depois vieram os textos em formato de cadernos ou
códices, costurados e encadernados. Aliás, é justamente por causa do formato
mais antigo dos rolos escriturísticos que até hoje várias línguas, como o
português, referem-se ao livro pelo nome de “volume”, que vem do latim
volumen, e quer dizer “aquilo que se enrola”.
Outros objetos de escrita como tabletes de argila, madeira ou pedra
também foram usados, mas com muitas desvantagens se comparados aos
primeiros. Deste modo, o que temos é uma evolução dos meios de escrita
desde o passado mais remoto até os dias atuais.
A pergunta que se faz, no entanto, é por que os cristãos tiveram uma
preferência por este formato, o códice, e ao que tudo indica, o escolheram
como padrão para suas cópias da Bíblia Sagrada? Uma provável resposta
estaria no fato de que o códice era muito mais fácil de ser transportado de
lugar para lugar do que o rolo. A função do primeiro, considerando o aspecto
missional do cristianismo (levar a mensagem de Jesus a todo mundo), era
justamente ser passado de mão em mão, de cidade em cidade. Diferente do
segundo que poderia ficar confinado a uma sinagoga ou biblioteca enquanto
durasse.
Além disso, o formato de caderno proporcionava uma facilidade maior
no momento de encontrar um texto. No caso do rolo, ele deveria ser enrolado
e desenrolado de um canto para o outro, a fim de encontrar uma passagem
requerida. Já o segundo, bastava ser folheado.
O uso do códice trouxe ainda uma vantagem adicional ao cristianismo
que foi a diferença entre sua Bíblia ― que agora continha o Novo
Testamento ― e a Bíblia hebraica, que só continha o Antigo Testamento.
Para os cristãos, a Palavra de Deus deveria ser anunciada e não confinada
dentro de uma sinagoga, embora os judeus também fossem bastante
missionários. Por isso não foi difícil substituir um formato pelo outro.
Aliás, devido à preferência imediata dos cristãos pelos códices, houve
quem dissesse que foram estes os criadores deste novo formato de livro. Isso,
porém, não parece ser verdade. A forma básica do códice foi inventada em
Pergamon no século 1 a.C. A rivalidade entre as bibliotecas de Pérgamo e
Alexandria resultou na suspensão das exportações de papiro do Egito. Em
resposta, os bibliotecários de Pérgamo desenvolveram o pergaminho feito de
pele de carneiro.
Por causa do alto custo para se produzir pergaminho ― muito mais caro
que o papiro ― tornou-se necessário aperfeiçoar o sistema de rascunhos e,
depois de ter o texto pronto, escrevê-lo nos dois lados, o que seria impossível
no formato de rolo.
Embora nos faltem mais detalhes dessa transição, o fato é que gregos e
romanos usavam com bastante frequência uma espécie de caderno feito de
tábuas reutilizáveis de madeira cobertas de cera para rascunhos, anotações e
outros escritos informais. Você já viu detalhes sobre esse uso no Capítulo 7,
no qual falamos do uso de secretários por parte do apóstolo Paulo.
O primeiro uso romano registrado do códice para a produção de obras
literárias data do final do primeiro século d.C., quando Marcial experimentou
o formato. Naquela época, o pergaminho era ainda o meio dominante para
obras literárias e assim permaneceria até o quarto século de nossa era.
Nesse sentido, a história da disseminação do códice como modelo de
suporte de escrita está diretamente associada à difusão do cristianismo. Os
monges e padres da Igreja Cristã primitiva empenhavam-se em conservar
tanto as obras da cultura judaico-cristã quanto da tradição clássica greco-
romana, reproduzindo cópias minuciosas em pergaminhos que eram
costurados em blocos, formando o códice. Este foi o principal veículo de
difusão escrita do cristianismo e de conservação da cultura clássica.
Uma evidência da preferência cristã pelo formato de códice pode ser
vista na comparação entre o achado de duas bibliotecas: a primeira seria a da
Vila dos Papiros, soterrada nos escombros da cidade de Herculano desde o
ano 79 d.C. A segunda seria a biblioteca de Nag Hammadi, no Egito,
sepultada desde cerca do ano 390 d.C., que continha livros escritos por
sectários do cristianismo. Na biblioteca de Herculano, todos os textos
encontrados estavam em rolos, enquanto na biblioteca de Nag Hamadi
estavam em códices.

PODEMOS CONFIAR NO TEXTO?

Antes de se tornar comum a impressão com tipos móveis (a partir do século


15 d.C.), os escritos originais da Bíblia, assim como suas cópias, eram feitos
à mão. Por isso, são chamados de manuscritos (do latim: manu scriptus,
“escritos à mão”). O manuscrito bíblico é, portanto, uma cópia das Escrituras,
inteira ou em parte, feita à mão, distinta de uma cópia impressa. Os
manuscritos bíblicos foram preparados principalmente na forma de rolos e
códices.
Com isso em mente, seria interessante conhecer como o texto bíblico foi
mantido e preservado até nós e como podemos saber seu conteúdo,
considerando que os originais se perderam talvez para sempre. Lembre-se de
que somente em 1455, com a invenção da imprensa por Johannes Gutenberg,
foi que as cópias manuscritas deixaram de ser produzidas. Até então, todos os
livros da humanidade, inclusive a Bíblia Sagrada, deveriam ser copiados à
mão e isso, é claro, poderia gerar algum tipo de incompatibilidade entre o
texto original e as cópias disponíveis ao leitor.
Imagine, por exemplo, que um leitor estivesse ditando um texto para um
copista que estivesse cansado. Ele poderia dizer “Zeca Roceiro” e o copista
anotar “Zé Carroceiro”. Percebeu a diferença? Considerando que a cópia feita
poderia se tornar o texto-chave para outra cópia posterior, o erro iria aos
poucos se perpetuando nas cópias seguintes. Imagine agora que centenas de
copistas pudessem cometer erros como este. O número de contradições ou
variantes textuais iria aumentar exponencialmente. Se tivéssemos os originais
do livro copiado, seria fácil resolver o problema. Bastaria comparar o original
com a cópia, verificar onde houve a discrepância e corrigi-la. Mas se tudo
que temos são cópias e mais cópias, a tarefa se torna um pouco mais difícil de
ser executada.
Logo, surge em meio a esta realidade a seguinte pergunta: como
podemos ter a certeza de que esses livros foram bem preservados se não
temos mais o seu original? Como nos certificar de que as cópias foram
fidedignas e que os copistas não alteraram tragicamente o conteúdo dado por
Deus para o autor inspirado? Veja que se houve um erro crasso,
aparentemente ficaria difícil corrigi-lo se não temos os originais para fazer
uma comparação. Como então trabalham os especialistas neste sentido?
Existe uma especialização muito importante para o estudo dessa parte
que é a chamada crítica textual. Teremos mais adiante uma parte
exclusivamente dedicada à essa disciplina. O que você verá aqui, portanto, é
apenas uma introdução com o fim de familiarizá-lo com o assunto. Mas, em
suma, o que significa “crítica textual”?
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que a palavra “crítica” ou
“criticismo”, usada neste contexto, não possui um senso de negatividade ou
de acusações contra a Palavra de Deus. Tecnicamente, o criticismo bíblico
seria uma referência simples ao trabalho de acadêmicos que procuram se
aproximar do texto bíblico, avaliando criticamente seus aspectos literários
cujo objetivo é compreender melhor seu significado e descobrir seu texto
original.
A crítica textual é um ramo da filologia18 que tem a finalidade de se
aproximar, o máximo possível, da forma inicial de um texto cujos
manuscritos originais se perderam. Ela procura, portanto, através de rigorosas
e minuciosas técnicas, restituir o que seria sua forma original, ou seja, aquela
que saiu das mãos do autor principal.
Ela também é chamada de baixa crítica ou crítica documental, pois
estuda igualmente a preservação ou alteração de antigos textos ao longo dos
anos. Tudo isso, repetimos, visando recuperar os originais com base na
documentação atual, ou seja, nas cópias disponíveis. Já a Alta Crítica tem
como objetivo não apenas a recuperação do texto em si, mas também outros
aspectos como descobrir a autoria ou o contexto no qual ele foi produzido.
Pois bem, uma tremenda vantagem do texto bíblico é a quantidade
imensa de cópias que ele possui se comparado a outros clássicos da
Antiguidade. Só para você ter uma noção, temos apenas dez cópias das
Guerras gaulesas de Júlio César (58-50 a.C.), sendo que a cópia mais antiga
data de 1000 anos depois da obra original. Vinte cópias da História romana
de Tito Lívio (59 a.C. a 17 d.C.), com 800 anos depois de sua morte. Sete
cópias das Histórias de Plínio, o moço (61-113 d.C.), com mais de 750 anos
depois dele, e apenas duas cópias de Histórias e crônicas de Tácito (55-120
d.C.), também datadas de séculos depois do original.
Agora, veja a diferença: somente o Novo Testamento grego possui mais
de 5,8 mil cópias feitas entre os séculos 2 e 16, sendo que os fragmentos mais
antigos foram copiados poucas décadas após a morte do autor inspirado.
Atualmente, alguns especialistas em crítica textual já anunciam a existência
de prováveis cópias de Lucas e Marcos mais antigas que o Papiro 52, datado
do ano 150 d.C., hoje disposto na Biblioteca de John Rylands.
Tais números tornam-se ainda mais espantosos se incluirmos as quase
900 mil citações bíblicas feitas pelos Pais da Igreja, e as versões antigas em
latim, siríaco, copta e outras línguas mediterrâneas que juntas somam entre
20 mil e 25 mil cópias manuscritas do Novo Testamento. Isso significa que
somente o Novo Testamento tem 20 mil vezes mais manuscritos que a média
dos autores da Antiguidade Clássica. Foi por isso que Isaac Newton,
conforme o testemunho do Richard Watson, teria dito em seu tempo: “Há
mais marcas indeléveis de autenticidade na Bíblia que em qualquer história
profana.”19
16 História Natural 13, 77.

17 Bruce M. Metzger, “When Did Scribes Begin to Use Writing Desks?” in: Historical and Literary
Studies: Pagan, Jewish, and Christian, NTTS, ed. Bruce Metzger, vol. 8 (Grand Rapids: Eerdmans,
1968), p. 123-34.

18 Filologia é o estudo rigoroso dos antigos documentos escritos e de sua transmissão, com o fim de
recuperar, estabelecer, interpretar e editar esses textos na forma original como saiu das mãos de seu
autor primário.

19 Fato relatado pelo Dr. Robert Smith, falecido mestre do Trinity College, a seu aluno Richard
Watson, como algo que Newton teria expressado verbalmente ao escrever seu Comentário sobre
Daniel. Apology for the Bible. Londres: 1806, p. 57. Livro disponível em PDF em
https://archive.org/stream/twoapologiesonef00watsiala#page/56/mode/2up acesso em 16/04/2020.
CAPÍTULO DEZ

CRÍTICA TEXTUAL DO
NOVO TESTAMENTO

Pelo que vimos até aqui, é fato que não possuímos mais os autógrafos da
Bíblia Sagrada, isto é, os textos originais, conforme saíram da pena dos
escritores inspirados. Mas isso não deve ser motivo de perplexidade para a fé
de ninguém. É claro que os críticos tomaram esse fato para colocarem em
dúvida a confiabilidade do texto que possuímos, contudo, precisamos levar
em conta algumas questões de ordem histórica.
Em primeiro lugar, leve-se em conta que material no qual se escrevia
não era tão resistente como gostaríamos, eles não possuíam a diversidade de
papéis que conhecemos hoje. O mais comum deles, o papiro, era frágil, que
logo se desgastava com a leitura e o manuseio fazendo com que os textos
fossem obrigatoriamente recopiados.
A princípio, conforme você viu no capítulo 9, estas cópias eram feitas
em rolos de papiro e, mais tarde, em códices em formato de cadernos.
Nalguns momentos optou-se por escrever tudo junto de forma contínua, como
você também já estudou neste livro. Os manuscritos gregos escritos todos
com letras maiúsculas receberam o nome de unciais, e os escritos somente
com letras minúsculas de códices minúsculos.
Havia ainda os chamados lecionários, uma coletânea de textos bíblicos
compilados num livreto que serviam para o uso litúrgico. Depois começaram
a aparecer mais cópias em pergaminho ou peles de animais que a princípio
eram evitados por serem muito mais caros (os primeiros copistas cristãos
tinham de trabalhar com parcos recursos).
Some-se a tudo isso as repetidas perseguições que os cristãos sofriam e
que, certamente, causou destruição de muitos exemplares que possuíam.
Assim, é provável que os cristãos primitivos tenham lido e relido os originais
até que eles se gastassem, desfazendo-se por completo e fossem,
necessariamente, substituídos por cópias feitas à mão. Foi, portanto, uma
circunstância natural que causou o desaparecimento dos originais, e não uma
espécie de negligência ou ação tendenciosa por parte da igreja cristã
primitiva.

CONFERINDO O TEXTO

É justamente para se recuperar a forma mais próxima de um texto antigo cujo


original se perdeu no tempo que surge a crítica textual, uma especialização
que longe de ser hostil à Bíblia Sagrada (como poderia sugerir o substantivo
“crítica”) é uma ferramenta muito importante para confirmar a boa
preservação do texto.
Normalmente, os especialistas em crítica textual costumam dividir os
manuscritos bíblicos existentes em grupos de famílias. Noutras palavras, pelo
tipo, procedência e estilo é possível dizer se um texto foi copiado na Europa,
na Ásia ou no norte da África. A finalidade dessa classificação foi descobrir a
possível origem de algumas variantes e detectar quais seriam os manuscritos
mais antigos, pois estes teriam, teoricamente, maior semelhança com os
originais. Embora nem sempre o fato de ser mais antigo indique que tal
manuscrito seria melhor. Deste modo, são quatro as principais famílias de
manuscritos:

a) Bizantina, com sede em Antioquia.


b) Ocidental, com sede em Roma.
c) Alexandrina, com sede em Alexandria.
d) Cesareense, com sede em Cesareia.

Esse procedimento técnico e o incrível número de manuscritos


existentes facilitam bastante o trabalho dos críticos textuais em busca da
forma original das Escrituras Sagradas. Seu método investigativo, semelhante
ao de um detetive policial, consiste em selecionar e comparar pacientemente
as diversas versões, famílias ou cópias existentes anotando os erros, as
modificações acidentais ou involuntárias dos copistas que poderiam
eventualmente comprometer o conteúdo do texto bíblico.
DISCREPÂNCIAS?

Em anos recentes, Bart D. Ehrman, professor na Universidade de Chapel Hill,


tem posto em dúvida a confiabilidade da transmissão do Novo Testamento,
afirmando que o número de discrepância dos manuscritos seria de 400 mil.
Este número, comparado às 135 mil palavras do texto grego do Novo
Testamento, faz o autor desafiar a veracidade textual da Bíblia, dizendo que
temos mais variantes textuais (isto é, contradições entre os manuscritos) que
o texto propriamente dito.
Mas, espere um pouco! Chamar as variantes textuais de contradições
não é uma equiparação precisa entre dois termos. O que Barth não menciona
é que a maioria destas variantes são elementos redacionais pequenos e sem
nenhum comprometimento com o conteúdo original. São erros de troca de
letras, ordem de palavras, a substituição de um nome próprio por um
pronome pessoal, coisas dessa natureza.
Atualmente, uma boa parte dos especialistas em crítica textual do Novo
Testamento admite que 95% a 99% do texto original podem ser recuperados
a partir da comparação entre os antigos textos. Enquanto a já citada Ilíada de
Homero tem 764 linhas de texto ainda disputadas, o Novo Testamento ― a
despeito do montante tremendamente maior de cópias ― conta com apenas
quarenta linhas dúbias. Mesmo assim, nenhuma delas traz qualquer
comprometimento a uma doutrina ensinada pelo cristianismo.20
Essa comparação é importante por vários motivos, primeiro porque a
Ilíada é o segundo clássico grego mais bem atestado em número de
manuscritos, o que confere ao Novo Testamento o primeiro lugar inconteste.
Além disso, enquanto 5% da Ilíada são textualmente dúbios, apenas 1% do
Novo Testamento pode ser assim classificado. Contudo, é estranho que não
haja em relação à obra de Homero o mesmo ataque e desconfiança que vemos
em relação ao Novo Testamento. Infelizmente, o que aparenta ser um
arrazoado acadêmico pode configurar-se um preconceito contra a Bíblia
Sagrada.
Ainda sobre a Ilíada, acrescente-se o fato de que, quando esse trabalho
de colação textual, isto é, comparação de cópias com cópias na tentativa de
reconstruir o texto original, foi primeiramente feito por Bolling nos anos
1940,21 conheciam-se apenas 643 cópias manuscritas do texto homérico.
Hoje, o número de manuscritos catalogados é maior que isso. Mesmo assim,
desde aquele tempo até os trabalhos mais recentes, preserva-se entre os
especialistas em manuscritos gregos a ideia de que é praticamente impossível
reconstituir o texto original da Ilíada a partir de um arquétipo e por um
conjunto definido de famílias de manuscritos.22 Isso é bem diferente dos
resultados obtidos pelo mesmo trabalho realizado em relação ao Novo
Testamento. Tal comparação mostra como a crítica textual da Bíblia tem
chegado a resultados muito mais animadores do que qualquer dos mais
famosos clássicos da humanidade.
Outro elemento menos técnico que poderíamos mencionar em favor da
transmissão fidedigna do texto bíblico seriam as pequenas incongruências
históricas que o texto apresenta. São elementos periféricos, contudo vale a
pena exemplificar alguns deles: João 20:1 diz que Maria Madalena
(aparentemente sozinha) foi ao sepulcro de Jesus; já Mateus 28:1 diz que
Maria Madalena estava acompanhada de outra mulher também chamada
Maria; e Marcos 16:1-2 diz que eram Maria, mãe de Jesus, Maria Madalena e
Salomé as mulheres que foram para ungir o corpo de Cristo.
Outro exemplo seria o da cura de Bartimeu. Jesus curou dois ou um
cego em Jericó? À primeira vista, parece que existe uma confusão entre as
narrativas, pois os evangelistas Mateus e Marcos citam a cura de dois cegos,
e Lucas cita a cura de um cego. Outras dúvidas existem no texto: afinal, a
cura ocorreu quando Jesus entrou ou saiu de Jericó? (cf. Mateus 20:29-34;
Marcos 10:46-52 e Lucas 18:35-43).
O ponto que nos interessa neste momento não é predicar sobre tais
incongruências, mas tomá-las como argumento a favor da transmissão do
texto sagrado. Afinal, considerando que a acusação de muitos céticos é de
que o texto bíblico foi “editado” com o passar do tempo distanciando-se cada
vez mais do seu original, era de se esperar que, assim sendo, essas
discordâncias textuais fossem “corrigidas” pelos copistas a fim de fazer o
texto soar menos problemático aos leitores. Ou seja, tais diferenças entre os
relatos tenderiam a desaparecer com o tempo, pois a igreja medieval
censuraria as cópias discordantes fazendo um texto oficial ― o que na
verdade nunca existiu. Isto, porém, não aconteceu, de modo que o texto foi
preservado pelos copistas em sua essência como estava, a despeito de
qualquer embaraço redacional que pudesse conter. Correções mínimas foram
feitas pelos copistas, mas não a ponto de desconfigurar o texto tornando-o
irreconhecível. Tais variantes são facilmente reconhecíveis. Portanto, é
possível ― desde o ponto de vista da crítica textual ― tomar a versão bíblica
e saber que temos um texto 90% igual ao que saiu das mãos do autor
inspirado e que nenhuma das incongruências são determinantes para colocar
em dúvida a legitimidade do texto transmitido.
Um elemento pouco observado no que diz respeito ao processo de
cópias e que também merece ser comentado é o papel dos monges copistas
medievais. Já em meados do 3º século, graças à influência de homens como
Orígenes, Antão e Pacômio, muitos religiosos cristãos foram gradualmente se
retirando dos grandes centros e se organizando em grupos isolados no deserto
que vieram a se tornar os famosos mosteiros medievais. Sua vida ali, isolados
de tudo e de todos, consistia em orações, plantio (para sua própria
subsistência) e reprodução manuscrita de livros que iam desde os clássicos
gregos e latinos até à Bíblia Sagrada.
Considere-se que este era um período de muitas guerras, principalmente
com exércitos bárbaros que atacavam constantemente o império romano.
Tanto o é que a transmissão do mundo clássico para a Idade Média se deu
com a queda de Roma ocidental em 476 d.C. Os mosteiros, contudo, eram
geralmente poupados pelos exércitos que atravessavam o deserto porque,
além de não possuírem riqueza e não oferecerem qualquer tipo de reação a
soldados armados, serviam de posto de paragem às milícias que se utilizavam
de sua água, sua comida e até de sua medicina uma vez que muitos monges
eram também enfermeiros. Com isso, muitas cópias manuscritas foram
preservadas naquela terra de ninguém, sem interferência de Roma ou ameaça
bárbara. Os monges viam-se livres apenas para copiar, plantar e orar. Foi um
trabalho inerrante? Certamente que não, os copistas às vezes erravam. Mas
por que não pensar que a Providência Divina usou esse contexto para
preservar cópias bíblicas para a posteridade?
TIPOS DE ERROS

Havia muitas preocupações na Antiguidade quanto à cópia e reprodução do


manuscrito, pois o autor não teria nenhum controle dos textos derivados de
seu original. Em seu De viris illustribus [Dos homens ilustres], Jerônimo
traduziu uma nota originalmente de autoria de Ireneu de Lion que dizia: “Tu
que transcreverás este livro, eu te conjuro, em nome de nosso Senhor Jesus
Cristo e de sua vinda gloriosa, na qual haverá de julgar os vivos e os mortos:
confronta o que tiveres copiado, corrige-o com cuidado nos exemplares que
tiveres escrito. Transcreve também do mesmo modo esta súplica e coloca-a
em tua cópia.”23 Esse pano de fundo nos ajuda a entender a advertência de
Apocalipse 22:18-20.
Por outro lado, o copista também se alegrava de chegar ao final do livro
e pedia perdão por algum equívoco. O manuscrito Pasisinus Gr. 633 traz ao
fim este colofão: “Perdoem-me, por favor, se eu me equivoquei no acento
agudo ou grave, no apóstrofo, no espírito fraco ou forte, e assim Deus salvará
a todos vocês.” Um outro texto diz: “Como os peregrinos se alegram ao ver a
pátria, assim também os escribas [ao verem] o final de um livro.”24
Os erros podem ser de natureza consciente ou inconsciente. Algumas
vezes, o escriba sem perceber saltou uma palavra ou “comeu” uma letra. Em
outras situações, a mudança foi deliberada para harmonizar um texto com o
outro, para fazer uma adaptação doutrinária, litúrgica ou ainda para “corrigir”
o autor inspirado. Os erros resultam em diferentes tipos de variantes textuais.
Muitos manuscritos eram escritos numa forma escrita contínua, sem
espaço entre as palavras, o que tornava relativamente fácil confundir alguns
termos. Veja essas frases em português, seguindo o modelo de escrita
contínua dos manuscritos gregos:
CONHECIUMHOMEMCHAMADOZECARROCEIRO.

Note que podemos ler: “ZECA ROCEIRO” ou “ZÉ CARROCEIRO”.

Outro exemplo:
ENCONTREIMECOMAMADOCASTELOBRANCO.

Poderia significar:
ENCONTREI-ME COM AMADO CASTELO BRANCO.
ou
ENCONTREI-ME COM AMA DO CASTELO BRANCO.
Foi justamente uma situação assim que causou determinada textual na
redação de Romanos 6:5. Em muitos manuscritos está a conjunção ΑΛΛΑ,
que se lê “mas”. Noutros, o copista confundiu a repetição natural da letra
lambda (ΛΛ) com a letra mên (Μ), fazendo que o texto ficasse com “juntos”
(ΑΜΑ) ao invés de “mas”.
Vejamos agora alguns exemplos de erros mais comuns:

Em 1Coríntios 5:8 Paulo diz que os cristãos deveriam tomar parte em


Cristo, o cordeiro pascal, e que não deveriam mais comer o “fermento
velho, o fermento da maldade e da perversidade”. Ora, a última palavra,
perversidade, em grego é ponêras, que alguns copistas confundiram
com porneias, imoralidade sexual.
Apocalipse 22:14, em alguns manuscritos, traz: “Bem-aventurados os
que lavam suas vestes (makarioi hoi plunontes tas stolas autôn)”,
enquanto em outros temos: “Bem-aventurados os que guardam os seus
mandamentos (makarioi hoi poiountes tas entolas auton)”. Como se vê,
a semelhança é grande e difícil decidir, neste caso, qual é a leitura
correta.
Também em Apocalipse 1:5 alguns manuscritos trazem lousanti, “lavou-
nos de nossos pecados”, enquanto outros trazem lusanti, “livrou-nos de
nossos pecados”.
Em João 17:15, o Códex Vaticanus cometeu uma omissão na frase de
Cristo “não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal”.
Ele omitiu acidentalmente as palavras “mundo… do”, de modo que a
oração ficou estranhamente: “Não vos peço que os tires do mal”.
Códex Vaticanus contendo o texto citado de João 17:15

A imagem acima ilustra o texto grego completo. A parte entre colchetes,


na tradução abaixo do texto grego, foi a que ficou de fora. O exemplar
que o escriba copiava tinha provavelmente esse arranjo de linhas, então
ele confundiu e saltou uma linha inteira, resultando na redação que
acabamos de ver. No mesmo manuscrito temos ainda um outro erro de
ditografia (cópia não intencional de uma frase, palavra ou expressão);
Ele está em Atos 19:34. No Códex Vaticanus a frase “Grande é Artemis
dos Efésios” aparece duas vezes, enquanto nos outros manuscritos,
apenas uma vez.
Marcos 9:29 tem um acréscimo por questões de prática litúrgica: a
evidência textual aponta que no grego Jesus apenas disse: “Esta casta só
sai por meio de oração”, os copistas acrescentaram “e jejum”, pois isso
refletia seu estilo de piedade devocional.

Algumas mudanças litúrgicas encontram-se principalmente nos


lecionários que eram antigos livrinhos pessoais ou públicos contendo uma
colecção de leituras recomendadas para o culto cristão ou judaico de um
determinado dia ou ocasião. Os erros que aparecem nestes livrinhos são
pequenas alterações feitas no início de uma passagem ou um texto resumido
em uma frase. Alguns pensam que foi assim que surgiu a famosa doxologia
final do Pai Nosso que não está nos melhores manuscritos (outros pensam
que foi por uma anotação marginal). Noutras palavras, a oração original de
Jesus termina com “… e não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do
mal”. A parte que diz “porque teu é o reino, o poder e a glória para sempre”
quase certamente não foi dita por Cristo.
Erros oriundos de tentativas de harmonização podem ser vistos em
textos como Lucas 11:2-4 e Mateus 6:9-13, ou em Atos 9:5,6, que se alterou
a fim de ficar mais em acordo literal com Atos 26:14-15. Do mesmo modo,
algumas citações do Antigo Testamento foram ampliadas em alguns
documentos para se harmonizarem com maior precisão à LXX (cf. Mateus
15:8 com Isaías 29:13, em que a expressão “este povo” foi acrescentada). As
mudanças históricas e factuais às vezes eram introduzidas por escribas bem-
intencionados. João 19:14 foi alterado em alguns manuscritos, de modo que
neles se lê hora “terceira” em vez de “sexta”, e Marcos 8:31, em que “depois
de três dias” foi alterado para “no terceiro dia”, em alguns manuscritos. As
mudanças sincréticas resultam da combinação ou da mistura de duas ou mais
variantes, de modo que se cria um único texto, como provavelmente é o caso
de Marcos 9:49 e Romanos 3:22.
Um caso curioso de erro por escrita contínua ocorreu no Códex Bezae:
“Examinais as escrituras porque julgais ter nelas a vida eterna e são elas
mesmas que pecam contra mim”. O copista leu AIMARTYROYSAI
(testemunham) e confundiu com AMARTANOYSAI (pecam).

CASOS MAIS COMPLEXOS25


▶ A terminação de Marcos

Marcos 16:9-20 (KJV) apresenta-nos o problema textual mais grave, que nos
deixa mais perplexos, dentre todos os outros. Esses versículos estão ausentes
em muitos dos mais antigos e melhores manuscritos, como o ‫ א‬Álef, o B, o
itk (Antiga Latina), a Siríaca sinaítica, muitos manuscritos armênios e alguns
etíopes. Muitos dos antigos Pais da Igreja não demonstram ter conhecimento
desse problema, e Jerônimo admitia que essa passagem havia sido omitida
em quase todas as cópias gregas.
Dentre as cópias que contêm esses versículos, algumas também trazem
um asterisco ou óbelo, que era um sinal parecido com um travessão que o
copista usava para indicar que se trata de uma provável adição ao texto e que
não estaria no seu original.
Veja o final de Marcos no Códex Vaticanus:
A decisão sobre qual desses finais é o preferível ainda é controvertida
entre os especialistas, por isso versões modernas da Bíblia ainda a mantêm,
embora muitas a tragam entre colchetes indicando que não está presente nos
melhores manuscritos gregos.
Final de Marcos no Códex Vaticanus

▶ A perícope da mulher adúltera

João 7:53—8:11 relata a história da mulher apanhada em adultério. Está


inserida entre parênteses em algumas versões, com uma nota que diz que os
manuscritos mais antigos omitem essa passagem. A RSV coloca a passagem
em questão entre parênteses, no final do Evangelho de João, com uma nota
que diz que as antigas autoridades a colocavam ali, ou depois de Lucas 21:38.
Não existe evidência de que essa passagem faça parte do Evangelho de João
porque: 1) não está nos manuscritos gregos mais antigos e melhores; 2) nem
Taciano, nem o texto da antiga siríaca dão sinais de tê-la conhecido, estando
ausente também nos melhores manuscritos da siríaca peshita, nos da copta,
em vários da gótica e da Antiga Latina; 3) nenhum autor grego faz referência
a essa passagem senão no século 12; 4) seu estilo — e interrupção — não se
enquadram no contexto do quarto evangelho; 5) aparece inicialmente no
Códice Bezae em c. 550; 6) vários escribas colocam-na em outros lugares
(e.g., depois de João 7:36; 21:24; 7:44 ou Lucas 21:38); e 7) muitos
manuscritos que incluem essa passagem indicam haver dúvidas sobre sua
integridade, marcando-a com um óbelo. O resultado é que tal passagem pode
ser preservada como se fora uma história verdadeira, mas da perspectiva da
crítica textual, deve ser colocada como apêndice de João, com uma nota que
diga que ela não tem lugar determinado nos manuscritos mais antigos.
▶ A Comma Joanina

1João 5:7 está ausente em algumas versões e entre colchetes em outras, mas
sem explicações. Todavia, há uma explicação para essa omissão, que
representa uma historieta interessante sobre o processo da crítica textual.
Quase não existe apoio textual para a redação apresentada aqui referente à
Trindade, em nenhum documento grego, ainda que haja apoio na Vulgata.
Então, quando Erasmo foi desafiado e lhe perguntaram por que ele não
incluíra essa passagem em seu Novo Testamento grego, em 1516 e em 1519,
o estudioso respondeu rapidamente que a incluiria na próxima edição, desde
que alguém mostrasse a ele pelo menos um manuscrito antigo que lhe desse
apoio. Descobriu-se um minúsculo grego do século 16, o manuscrito de 1520,
de um frei franciscano. Erasmo cumpriu sua promessa e incluiu esse texto em
sua edição de 1522. A KJV seguiu o texto grego de Erasmo e assim foi: com
base num único manuscrito tardio, insignificante, desprezou-se todo o peso e
autoridade de todos os demais manuscritos gregos. Na verdade, a inclusão
desse versículo como sendo genuíno quebra quase todos os cânones
principais da crítica textual.

Há uma situação
embaraçosa, porém
verdadeira, de erro nos
manuscritos. Alguns
cristãos de fala grega, ao
lerem o nome de Deus
como escrito em hebraico,
confundiam as letras
hebraicas com letras
gregas, e ao invés de
chamarem a Deus de
Yahweh diziam Pipi. Quem
nos dá essa informação é
Jerônimo, tradutor da
Vulgata latina no século 4
e, de fato, existem indícios
disso nos fragmentos que
temos da Hexapla de
Orígenes. Já pensou?

EVANGELHOS ANÔNIMOS?

Uma das acusações comumente feitas pelos críticos quanto à genuinidade


bíblica diz respeito à sua autoria. Seriam os nomes que temos nas nossas
Bíblias os mesmos que, de fato, escreveram aqueles livros que
tradicionalmente lhe são atribuídos?
No caso específico do Novo Testamento, o que dizem é que os
evangelhos são anônimos e circularam por décadas de modo anônimo. Note
que nenhum deles traz o nome do autor. Foi a Igreja, mais tarde, que teria
atribuído nomes famosos aos textos para dar autoridade a eles.
Os críticos ainda dizem que aproximadamente 70% do Novo
Testamento não foram escritos por quem pensamos. Seis das 13 cartas
atribuídas a Paulo não teriam sido escritas por ele (Efésios, Colossenses,
2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo e Tito). Os Evangelhos também não vieram
da pena de Mateus, Marcos, Lucas e João, mas de comunidades cristãs tardias
fundadas sob a teologia desses homens, e por isso atribuiu a seus nomes um
documento que eles mesmos nunca conheceram. O mesmo se dá com o
Apocalipse de João, que de modo algum teria sido escrito pelo apóstolo que
se reclinou sobre o peito de Cristo.
Nem todos os especialistas, é claro, defendem essa posição cética em
relação à autoria dos textos sagrados. Há muitos teólogos sérios que estudam
tecnicamente essa questão e afirmam, sem restrições, sua confiança na
identidade autoral do texto. Um exemplo é o papirólogo alemão Dr. Carsten
Peter Thiede por muitos anos diretor do Institut Für
Wissenschaftstheoretische Grundlagenforschung (Instituto de Pesquisa
Básica em Teoria da Ciência) localizado em Paderborn, Alemanha, um dos
mais sérios centros de estudo em papirologia da Europa. Ele escreveu: “É
inconcebível que alguém tivesse ousado inventar candidatos tão improváveis
e tão pouco conhecidos como Marcos e Mateus (ou até mesmo Lucas), se
estes não tivessem sido realmente os nomes dos autores — ou se, de alguma
forma, não tivessem uma ligação direta com aqueles escritos.”26
Devemos apenas lembrar que não havia naquele tempo os critérios de
copyright que conhecemos hoje em dia de modo que seria um anacronismo
utilizar-se de uma suspeita típica da modernidade para se questionar uma
autoria tão confirmada no passado. Ireneu de Lion, por exemplo, afirmava já
no segundo século d.C. que

… o valor dos evangelhos é tão


grande que recebe o testemunho até
dos próprios hereges… cada um
pretendia apoiar suas teorias
particulares em um dos evangelhos.
Por exemplo, a seita dos ebionitas
tinha preferência pelo evangelho de
Mateus. O herege Marcião, pelo de
Lucas. Já os valentinianos se
apegavam ao de João

Contra Heresias, 3,2,7


O que Ireneu está nos dizendo é que até mesmo os mais antigos
dissidentes do cristianismo aceitavam Mateus, Marcos, Lucas e João como
respectivos autores dos quatro evangelhos que levam os seus nomes.
Portanto, fica óbvio concluir com Domenico Grasso que: “Ninguém conhece
um autor diferente daquele conhecido pelos outros. Se em alguma região
viessem a saber que o autor de determinado evangelho não era o mesmo a
quem se atribuía sua autoria em outro lugar, era coisa fácil de ser
conhecida.”27 Sobre a autoria paulina das cartas que levam seu nome, o
argumento dos críticos circula em grande parte no fato destas possuírem
estilos diferentes entre si que, para eles, seria indicativo de serem escritas por
autores diferentes. Contudo, você viu no capítulo 7 que o costume de se
utilizar diferentes secretários e diferentes tipos de ditado explicaria com
muita razoabilidade o motivo de haver diferentes estilos num conjunto de
cartas de um mesmo autor.
Quanto aos evangelhos, conforme já adiantamos, sua autoria é
massivamente confirmada pela mais longa tradição da igreja. Não há nenhum
autor antigo que colocasse em dúvida essa realidade. O ceticismo pertence à
crítica moderna. Escritores cristãos do segundo século em diante são
unânimes em confirmar as mesmas autorias que temos hoje e nem mesmo
autores dissidentes do cristianismo ou inimigos da fé cristã colocavam em
dúvida, por exemplo, que o evangelho de Mateus fora realmente escrito pelo
apóstolo do Senhor.
O fato de não trazerem o nome de seus autores, como comumente
esperaríamos desde uma perspectiva moderna, não deve causar espanto. Na
Antiguidade, os livros em forma de rolos não tinham capa e dorso como
temos hoje em dia. Os códices, isto é, os livros em forma de cadernos
costurados, só vieram mais tarde. Na maioria das vezes o autor não tinha seu
nome dentro do rolo de papiro ou pergaminho, mas no sillybos ou sittybos —
uma etiqueta em forma de couro ou papiro que ficava colada na haste do rolo
ou aplicada em seu verso à vista do vendedor ou leitor.
Com o passar do tempo essa parte era a mais sensível e poderia
facilmente se soltar ou ser arrancada. Isso, contudo, não criaria problema para
um bibliotecário caso se tratasse de uma obra perfeitamente conhecida de
todos. Aí era só repor a etiqueta. Eram pouquíssimas as obras anônimas ou de
autoria duvidosa. Lembre-se, eles não tinham mídias eletrônicas, logo, quem
sabia ler conhecia tão bem os autores como um aficionado por futebol
conhece os jogadores apenas pelo rosto.

▶ Aplicando o contexto aos nossos dias

Um estudante de literatura não precisa da capa de Os sertões para saber que


está lendo a grande obra de Euclides da Cunha. Caso uma biblioteca pegue
fogo e sobre apenas o miolo do livro, todos saberão reconstruir o título e o
autor daquela obra. Isso também ocorria com os evangelhos, todos sabiam
quem eram seus autores.
Num futuro distante, talvez fique mais difícil para os leitores saberem
quem escreveu Os sertões. Neste caso, eles dependerão de nosso testemunho
e terão de acreditar em nossa palavra, pois hoje sabemos, sem contestações,
quem é o autor da referida obra, mas no futuro essa informação poderá não
ser tão óbvia assim. O mesmo se dá em relação aos evangelhos canônicos
que, diferente dos apócrifos, tinham sua autoria muito bem estabelecida pela
comunidade que sabia serem os demais uma peça tardia e pseudônima.
20 Metzger, B. “Chapters in the history of New Testament textual criticism” (Grand Rapids, Wm. B.
Eerdmans, 1963), 148.

21 Bolling, G. M. The Athetized Lines of the Iliad. (Linguistic Society of America: Baltimore, 1944).

22 Bird, Graeme D. “Multitextuality in the Homeric Iliad: The Witness of the Ptolemaic Papyri”
(Washington, D.C. : Center for Hellenic Studies; Cambridge, Mass.: Distributed by Harvard University
Press, 2010), p. 27-60.

23 Viris Illustribus, 35 (Patrologia Latina, XXIII, 649, B).

24 O’Callangan, 26 e 27.

25 Exemplos adaptados de: <http://introduobiblica.blogspot.com/2007/11/aula-13-recuperao-do-texto-


da-bblia.html>. Acesso em: 28/08/2019.

26 Thiede Carsten, Peter, e D’Acona, Matthew. Testemunha Ocular de Jesus [Coleção Be Reshit].
Riode Janeiro, Ed. Imago, 1996, p. 36.

27 Domenico Grasso, S.J. The Gospels, Historical and True (Surrey: Faith Pamphlets), pp. 5-8 (in The
Problem of Christ, Alba House, New York, 1969)
CAPÍTULO ONCE

CRÍTICA TEXTUAL DO
ANTIGO TESTAMENTO

INVESTIGANDO OS DOCUMENTOS
A principal fonte hebraica do Antigo Testamento são os Manuscritos do Mar
Morto e os textos copiados pelos massoretas da Idade Média. Os massoretas
eram copistas judeus que substituíram os antigos escribas (sopherins) por
volta do ano 500 até o ano 1000 d.C. Seu trabalho consistia em preservar,
cuidar e copiar as Escrituras Sagradas que hoje constituem o Antigo
Testamento. Embora grande parte dos manuscritos hebraicos medievais esteja
hoje na Europa, os massoretas centravam seu trabalho como copistas nas
cidades de Tiberíades e Jerusalém. O nome “massoretas” vem do hebraico
Masorah (ou Mesora), que quer dizer “transmissão de uma ideia religiosa ou
de qualquer tradição por escrito”. Por isso, os manuscritos por eles
produzidos são corretamente chamados de texto massorético.
Esses copistas judeus também realizaram a grande tarefa de vocalizar as
palavras em hebraico que não tinham vogais originalmente, e, por isso, ao
tornar-se língua morta, necessitou dessa indicação para poder ser lida. Além
disso, eles foram meticulosos na transmissão escrita do texto inspirado.
Eles também tentaram padronizar as divisões de parágrafos e manter a
reprodução adequada do texto para os futuros escribas, compilando listas dos
principais recursos ortográficos e linguísticos da Bíblia. Duas escolas
principais (ou famílias) de massoretas foram: Yaacov ben Naftali e Aaron
ben Asher, que preparou o texto hebraico ocidental, também chamado de
texto palestino, e Yaacov ben Naftali, responsável pelo texto oriental ou
babilônico.
Se compararmos as cópias feitas por cada uma dessas famílias,
perceberemos que ambas criaram dois tipos textuais ligeiramente diferentes.
A versão de ben Asher prevaleceu sobre a de bem Naftali e acabou se
tornando a base dos textos bíblicos modernos.
Apesar de seu valoroso esforço de preservar as Escrituras, não se pode
dizer que o trabalho dos massoretas esteja isento de deficiências. Assim,
outras versões do Antigo Testamento se fizeram importantes para suprir
certas carências do texto massorético. É o caso do Pentateuco Samaritano (os
samaritanos eram uma comunidade étnica e religiosa separada dos judeus que
só aceitavam o Pentateuco como Escritura Sagrada), dos Targuns, da LXX e
dos Manuscritos do Mar Morto.
De forma pioneira e embrionária, a primeira tentativa de padronização
de um texto a partir de diferentes manuscritos hebraicos ocorreu no século
16, por obra de Jacob ben Hayyim ibn Adonijah. Tendo muitos manuscritos,
ele sistematizou seu material e organizou a Masorah na segunda edição da
Bíblia Hebraica em Bomberg (Veneza, 1524–1525). Não obstante, o estudo
crítico do texto hebraico das Escrituras começou propriamente no fim do
século 18. Benjamin Kennicott publicou em Oxford uma lista de mais de 615
manuscritos hebraicos, massoréticos, advindos de diferentes bibliotecas da
Europa. Mais tarde, o perito italiano Giambernardo de Rossi publicou em
Parma as comparações de 731 manuscritos num pioneiro trabalho de colação
textual. Textos padrões das escrituras hebraicas foram também produzidos
pelo perito alemão Baer, e, mais posteriormente, por C.D. Ginsburg.
Rudolf Kittel, que era um famoso hebraísta, lançou em 1906 a primeira
edição da sua Bíblia Hebraica, fornecendo nela um estudo textual por meio
de notas de rodapé, que comparavam muitos manuscritos hebraicos do texto
massorético. Mas quando outros mais antigos e superiores se tornaram
disponíveis, Kittel empreendeu a produção de uma terceira edição,
inteiramente nova, que após a sua morte foi completada por seus colegas.
Hoje, o cômputo de manuscritos hebraicos do Antigo Testamento é
muito maior do que do Novo, e este é outro caso curioso da história da crítica
textual bíblica. Lembremos que os judeus, à semelhança dos cristãos dos
primeiros tempos, foram duramente perseguidos por movimentos
antissemitas da Europa (especialmente no tempo das cruzadas) e muitas
sinagogas foram incendiadas, tendo seus manuscritos destruídos. Mas havia
também outro tipo de destruição de textos motivada por uma razão oposta à
dessacralização — o respeito por um texto sagrado.
Normalmente, conforme o tratado judaico da Mishná Shabbat 16:1, uma
vez que que uma cópia da Escritura não podia mais ser usada (porque ficou
muito desgastada com o tempo), ela não poderia ser descartada casualmente
como se fosse lixo. Textos contendo o nome sagrado de Deus deveriam ser
enterrados ou, se o enterro não fosse possível, colocados em uma Geniza (ou
Genizah) que era uma sala dentro da sinagoga própria para guardar
manuscritos velhos — uma espécie de cemitério de livros sagrados. Se a
Geniza ficasse cheia, os manuscritos deveriam ser retirados e queimados
numa cerimônia de respeito.
Um fato, contudo, preservou importantes textos judaicos, tanto bíblicos
quanto não bíblicos. Provavelmente desde o início do século 11, os judeus de
Fustat, uma das comunidades judaicas mais importantes e ricas do
Mediterrâneo, reverentemente colocaram seus textos antigos na Geniza de
sua sinagoga localizada no velho Cairo. Notavelmente, no entanto, eles
colocaram não apenas as obras religiosas, como Escrituras hebraicas, livros
de oração e compêndios da lei judaica, mas também o que consideraríamos
como obras seculares e documentos do cotidiano: listas de compras, contratos
de casamento, ações de divórcio, páginas em árabe de fábulas, obras da
filosofia sufi e xiita, livros médicos, amuletos mágicos etc. Num momento
inusitado, doaram esse material para um cidadão inglês e tudo acabou sendo
preservado em Cambridge.
Foram mais de 260 mil manuscritos — o número exato varia de fonte
para fonte — e pelo menos 10 mil deles eram cópias hebraicas do Antigo
Testamento. Muitas, é claro, estavam fragmentadas e podiam ser datadas a
partir de 870 d.C. A maior parte da coleção hoje está arquivada em segurança
na universidade de Cambridge.
Some-se a essa lista os cerca de duzentos textos bíblicos encontrados
entre os manuscritos do Mar Morto, as versões da LXX, as cópias do
Pentateuco Samaritano, o papiro Nash, os targuns e outros exemplares
massoréticos (como o Códex de Alepo) e você terá a lista total de
manuscritos hebraicos disponíveis hoje para o exaustivo estudo da crítica
textual do Antigo Testamento.

O QUE AS CÓPIAS NOS DIZEM

Em termos técnicos, um manuscrito da Bíblia hebraica é uma cópia


manuscrita de uma parte do texto da Bíblia Hebraica (Tanak) feita
especialmente em pergaminho — algumas poucas em papiro — e escrita
maiormente na língua hebraica com pequenas porções em aramaico. Os
manuscritos mais antigos foram escritos em forma de rolos de pergaminho,
porém os manuscritos medievais geralmente eram escritos em forma de
códice, formato que antes era mais comum nas cópias feitas por escritores
cristãos. Os últimos manuscritos escritos após o século 9 d.C. geralmente se
baseiam no Texto Massorético que acima mencionamos.
Os manuscritos mais importantes estão associados à tradição copista de
ben Asher, que também mencionamos acima, especialmente o famoso Códex
Leningradensis copiado em 1009 d.C. Ele é o manuscrito completo mais
antigo da Bíblia Hebraica em hebraico. Antes dele temos o Códex Aleppo de
925 d.C., mas com muitas folhas faltando.
Manuscritos completos anteriores ao século 13 são muito raros. A
maioria deles sobreviveu em uma condição bastante fragmentária, mas,
mesmo assim, são válidos para o trabalho de colação textual que, como
dissemos, consiste na comparação exaustiva entre as diferentes cópias do
texto a fim de encontrar a sua possível forma original. A maior coleção
organizada desses manuscritos do Antigo Testamento hebraico está guardada
na Biblioteca Nacional Russa em São Petersburgo.
Embora tenhamos afirmado que o trabalho dos massoretas não está
isento de erros, ainda persiste a pergunta: teriam eles realizado um bom
trabalho de preservação do texto hebraico das Escrituras Sagradas?
O exaustivo trabalho de Emanuel Tov, professor emérito da
Universidade Hebraica de Jerusalém, pode ajudar a responder a essa
pergunta. Sua obra intitulada Crítica Textual da Bíblia Hebraica,28 intenta
ser um guia exaustivo de crítica textual procurando vincular a importância
dos Manuscritos do Mar Morto e da LXX ao texto base dos massoretas para o
entendimento das possíveis alterações que encontramos entre os diferentes
manuscritos.
Tov demonstra em seu livro as variantes encontradas entre os
manuscritos e tenta traçar o motivo por detrás de algumas delas. Algumas
foram acidentais, outras por razões teológicas, questões de tradução verbatim
ou ainda pseudo-variantes, isto é, alterações que parecem reais, mas não o
eram no contexto original do escriba.
Talvez a revelação de que houve alterações por motivos teológicos
possa assustar um leitor de confissão mais conservadora. É importante, por
isso, esclarecer que o sentido aqui nada tem a ver com qualquer ameaça aos
ensinamentos centrais do judaísmo e do cristianismo. Ou seja, nenhum ensino
central desses seguimentos depende ou se baseia numa “distorção” produzida
por um escriba.
Um bom exemplo de alteração por motivos teológicos está no livro de
Jó, que é quatrocentas linhas mais curto na LXX do que no texto
Massorético, provavelmente por causa do processo de tradução que procurou
simplificar o texto do estilo poético oriental para um público-alvo grego. No
entanto, as palavras adicionais da esposa de Jó (Jó 2:9a,9b,9c,9d, LXX)
encontradas na LXX, mas ausentes no Massorético, são um elemento que
chama a atenção dos exegetas.
Para os que leem a história a partir do Texto Massorético, a esposa de Jó
é muito lacônica em suas palavras. Ela economiza argumentos e fala pouco,
embora se dirija de forma incisiva a seu marido. Já na LXX ela argumenta
mais para provar sua tese.
Não sabemos ao certo se foram os tradutores da LXX que acrescentaram
palavras que não estavam no original — talvez para agradar mais ao público
grego — ou se foram os massoretas que as omitiram por complicarem ainda
mais o já desconcertante conselho quanto a uma “eutanásia teológica”, isto é,
quando ela diz a seu marido “amaldiçoe a Deus e morra”. Contudo, seja qual
for a versão original do texto, nada nesta variante compromete a teologia
moderna.
Outros exemplos de divergência entre os textos massoréticos, a LXX e
os manuscritos do Mar Morto (que a seguir comentaremos) podem ser vistos
nos livros de Samuel e Jeremias. São geralmente alterações na ordem dos
capítulos ou questões banais, como por exemplo, do tamanho de Golias que,
enquanto no texto massorético mediria algo em torno de 3,5 metros, na LXX
e nos Manuscritos do Mar Morto mediria 2,8 metros. Novamente, nenhum
ensinamento judaico-cristão se sente ameaçado por este tipo de
incongruência.
Tov também observa que a maior parte das variantes textuais ocorre
onde há uma diferença de uma ou algumas letras hebraicas entre a tradução e
a palavra no texto massorético. Os nomes pessoais fornecem uma visão
especial sobre esse assunto, pois esses nomes não dependem da técnica de
tradução. No geral, pode-se ver ainda que muitas diferenças se dão por letras
que parecem semelhantes no alfabeto hebraico: dalet e resh, yod e waw, bet e
mem, ele e het, e samek e mem. Tov também observa exemplos em que letras
ou sílabas com sons semelhantes criaram variantes (guturais, palatais,
dentais, labiais etc.)
Por questões acadêmicas, o autor preferiu evitar questões teológicas ou
de inspiração divina das Escrituras. Ele não é taxativo em afirmar que esse
era ou aquele seria o texto original, mas não esconde a confiança de que o
texto foi bem preservado e que as alterações encontradas não comprometem
seu entendimento. Pelo contrário, a análise conjunta dos diferentes textos
manuscritos só aumenta a riqueza da avaliação critico-textual.
O máximo que se pode dizer, segundo as conclusões de Tov, é que o
texto sofreu algum processo editorial mesmo nos tempos antigos, mas isso
em nada atrapalha a confiança teológica que tenhamos em seu conteúdo ou a
certeza de que os copistas, especialmente os massoretas, procuraram
preservar a Bíblia Sagrada da melhor maneira que podiam. E o fizeram!

En-Gedi e a precisão dos


massoretas

Um fato surpreendente
sobre a transmissão da
Bíblia é que novas
informações continuam
surgindo, silenciando os
céticos e reforçando a
confiança na transmissão
do texto Bíblico. Uma
dessas descobertas foi feita
em 1970, perto da área
onde os pergaminhos do
Mar Morto foram
encontrados. Um grupo de
pergaminhos foi
encontrado na região do
En-Gedi, no deserto de
Israel. Infelizmente, os
textos foram gravemente
danificados pelo fogo e era
impossível lê-los usando a
tecnologia da época. A
única coisa que se sabia é
que esses textos haviam
sido copiados por volta do
ano 300 d.C., 500 anos
antes da mais antiga versão
do texto massorético que
possuímos.

Recentemente, porém,
técnicos do centro de
computação de Brent Sales
tornaram o texto
chamuscado finalmente
legível, e o que se
encontrou foi um texto
hebraico antigo que
coincidia perfeitamente
com o Texto Massorético
de Levítico 1:1-8.

Foi incrível perceber a


semelhança. O texto de En-
Gedi duplica até as quebras
de parágrafos exatas vistas
mais tarde no hebraico
medieval. A única
diferença entre os dois é
que o hebraico antigo não
possuía as vogais que
seriam ainda criadas pelos
massoretas.

OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO

Embora o Antigo Testamento, assim como o Novo, contasse com uma


enorme quantidade de manuscritos gregos e hebraicos em favor de sua
construção, havia um problema que parecia insolúvel até à vista dos
acadêmicos mais otimistas: excetuando um fragmento do papiro Nash datado
do primeiro século a.C., todas as cópias hebraicas que possuíamos datavam
do século 10 d.C. em diante.
O papiro Nash que mencionamos aqui foi encontrado no Egito e
preservado em Cambridge, na Inglaterra. Ele deveria ser originalmente parte
de uma coleção de admoestações, escritas no segundo ou primeiro século a.C.
São quatro fragmentos de 24 linhas pertencentes a um texto pré-massorético
dos Dez Mandamentos e de alguns versículos de Deuteronômio, capítulos 5 e
6. Assim, pode-se dizer que, com exceção do fragmento de Nash, havia um
hiato de cerca de 1400 anos entre a última produção do Antigo Testamento e
a cópia hebraica mais antiga que tínhamos dele. Se falarmos do início da
produção bíblica, o distanciamento sobe para 2400 anos!
Até que em 1947 um garoto beduíno encontrou por acidente jarros que
estavam guardados há quase 2 mil anos em algumas grutas de Wadi Qumran,
a noroeste do Mar Morto. Eram, ao todo, cerca de 800 manuscritos
produzidos por escribas judeus da seita dos essênios, e pelo menos 200 desses
manuscritos eram bíblicos. Entre os arqueólogos que contribuíram para a
identificação e publicação desses textos temos L.E. Sukenik, G. Lankester
Harding, Roland de Vaux, Ygael Yadin e William F. Albright.
Os manuscritos encontrados continham cópias (algumas bem
fragmentadas) de todos os livros do Antigo Testamento, com exceção de
Ester. Só para se ter uma noção, uma das cópias de Isaías encontradas no
local foi datada em 270 anos a.C. Ou seja, 1200 anos mais velha que a cópia
que tínhamos, produzida pelos massoretas. O que se descobriu foi algo
fantástico: as cópias ali encontradas confirmavam em mais de 90% o texto
hebraico massorético. As discordâncias estão em questões periféricas, como
troca de letras ou acréscimo de uma ou outra palavra.
Se houvesse uma grande modificação intencional no texto por razões
teológicas, políticas ou administrativas da cúpula da igreja, essas mudanças
apareceriam na comparação entres os textos. Por exemplo, das 166 palavras
presentes em Isaías 53, apenas 17 letras estão diferentes da cópia encontrada
no Mar Morto e nenhuma delas oferece prejuízo ao conteúdo bíblico. Outras
alterações ou variantes textuais foram exemplificadas ao falarmos acima do
trabalho de Emanuel Tov, e como você viu, nenhuma trouxe qualquer
situação desconcertante para a crença na Bíblia Sagrada. A Palavra de Deus
demonstrou ter sido bem preservada pela providência divina.

Manuscritos Bíblicos de
Qumran

Os manuscritos de Qumran,
também conhecidos como
os Manuscritos do Mar
Morto, foram encontrados
num total de onze cavernas
(na verdade, doze, mas
uma, encontrada
recentemente, estava sem
textos antigos). Até o
momento, quase duzentos
manuscritos bíblicos foram
identificados entre esse
material, mais de cem
somente da caverna 4.
Todo livro do cânon do
Antigo Testamento está
representado em Qumran,
exceto Ester. Os livros mais
bem representados em
número de cópias são os
seguintes: o maior número
são cópias provenientes do
Pentateuco (15 manuscritos
de Gênesis, 15 de Êxodo, 9
de Levítico, 6 de Números,
25 de Deuteronômio). Dos
Profetas maiores temos 18
cópias de Isaías, 4 de
Jeremias, 6 de Ezequiel, 8
de Daniel e 8 dos Profetas
Menores. Dos Salmos
encontraram 27 cópias com
uma ordem bem diferente
do texto massorético.

Embora o termo
“Pergaminhos do Mar
Morto” seja oficialmente
aplicado apenas ao corpus
de manuscritos associado à
biblioteca de Qumran,
outros sítios na região do
Mar Morto produziram
cópias que foram
encontradas e incorporadas
à coleção. Os principais
sítios são os de Wād̂
Murabbaʿât, Naḥal Ḥeber e
Massada. Os manuscritos
de Murabbaʿt e Naḥal
Ḥeber são particularmente
interessantes, pois vêm do
tempo da Segunda Revolta
Judaica sob Bar Cochba,
(132–135 d.C.).
Portanto, sabemos que os massoretas judeus da Idade Média foram
meticulosos em seu trabalho de copiar as escrituras hebraicas. Eles se
esforçavam para garantir a confiabilidade do texto. Por isso, eles eram
altamente treinados e minuciosamente observados, copiando cada letra,
parágrafo e frase para então compará-los com o original. Um único erro
exigiria a destruição imediata do texto. Seus erros podiam se dar por
reproduzirem uma forma que já estava no manuscrito do qual copiavam e não
por uma mudança caprichosa. Eles deveriam levar a sério o conselho do
Rabino Samuel cujas palavras estão preservadas no Talmude: “Meu filho, por
ser este um trabalho celestial, não omita nem uma letra, caso contrário, o
mundo será destruído” (B. Sota 20 a). Hipérbole à parte, este é um
testemunho da seriedade daquele trabalho.
De fato, essa seriedade é hoje confirmada pela atividade acadêmica. Em
conjunto, a comparação textual entre o texto Massorético, a LXX, os
manuscritos do Mar Morto e outros geralmente suporta a precisão com a qual
o texto hebraico foi copiado.
Ao mesmo tempo, os manuscritos de diferentes períodos nos fornecem
leituras anteriormente desconhecidas e que nos dão uma maior compreensão
das variantes que já tínhamos em outros textos e versões. Graças a esse
trabalho técnico, estamos em uma posição melhor para explicar o
relacionamento entre as várias cópias manuscritas das Escrituras.
Antes das descobertas no deserto da Judeia, os trabalhos de crítica
textual do Antigo Testamento só poderiam ser feitos indiretamente com o
estado do texto, isto é, sugerindo uma forma alternativa do texto hebraico que
foi usado pelos tradutores das mais diversas versões. As descobertas em
Qumran forneceram cópias reais com os quais o crítico de texto pode
trabalhar. É justo dizer que as descobertas de Qumran revolucionaram o
campo da crítica textual.

ALTA CRÍTICA

A Alta Crítica foi um movimento intelectual nascido na Europa do século 18


e que ainda é apreciado por muito acadêmicos especializados em Bíblia e
Teologia. Ela não deve ser confundida com a baixa crítica, ou crítica textual,
que procura recuperar o texto original das Escrituras. Seu objetivo, negando a
priori qualquer virtude sobrenatural em relação à Bíblia Sagrada, é usar
ferramentas hermenêuticas e heurísticas que permitam descobrir quando,
como, onde e por que cada livro bíblico foi produzido.
Os proponentes dessa linha não trabalham com a ideia de revelação,
inspiração e dom profético. Para eles, a Bíblia é apenas um livro antigo como
outro qualquer e nada mais. Sua proposta era embalada no espírito
racionalista que envolvia a Europa de seu tempo. Johann Semler, por
exemplo, teólogo alemão, dizia naquela época que “o estudo neutro e racional
da Bíblia deve desconsiderar a inspiração divina e rejeitar o aspecto
miraculoso. A Bíblia é um livro como outro qualquer e como tal deve ser
estudada. Palavra de Deus e Escritura Sagrada são coisas distintas, e assim
devemos realizar nossa hermenêutica”.29 Sua conclusão se resume a
elementos bem complicados para os judeus e cristãos conservadores em sua
regra de fé.
Para eles, não foi Moisés quem escreveu o Pentateuco, na verdade
muitos deles até sugerem que nunca houve alguém chamado Moisés. Os
antigos judeus inventaram esse herói para dar uma esperança ao povo. Ainda
nesta linha de pensamento, os primeiros textos hebraicos só seriam
produzidos por volta do século 10 a.C., e boa parte do que chamamos Antigo
Testamento seria composto durante e após o cativeiro babilônico.
Praticamente toda história referente aos primórdios do judaísmo antes do
cativeiro seria uma coleção de lendas, exageros e mitos criados pelos escribas
judeus por motivos políticos e ideológicos, sem nenhum respaldo histórico.
Ester e Daniel, por exemplo, seriam heróis nacionalistas criados
respectivamente nos séculos 4 e 2 a.C. Ou seja, a passagem pelo Mar
Vermelho, o chamado de Abraão, o reino unificado de Davi e Salomão
seriam apenas relatos fantasiosos. Nada disso aconteceu.
A Alta Crítica continua dizendo que os livros do Antigo Testamento
foram compilados muito lentamente ao longo de vários séculos, a maioria
deles para servirem de inspiração ideológica ao povo durante a helenização
do judaísmo e a guerra dos Macabeus. Fora o cativeiro babilônico e o
domínio dos persas, não há quase nada de autêntico em sua narrativa.
Quanto ao Novo Testamento, eles dizem que os evangelhos foram
escritos ou reeditados várias vezes no final do primeiro século e início do
segundo. Ou seja, são textos igualmente tardios escritos por líderes das
comunidades locais para legitimar seus ensinos a partir de uma pretensa
ligação do texto com alguma figura relacionada a Jesus, quem sabe um
discípulo próximo, como Mateus ou João, por exemplo.
Um dos primeiros a pensar assim foi Jean Astruc, médico particular de
Luiz XV, rei da França. Baseado no texto do Gênesis, ele percebeu que Deus
às vezes era chamado em hebraico de Yahweh, às vezes de Elohim. Assim,
ele sugeriu, em 1750, que isso talvez se devesse a narrativas paralelas, ou
seja, diferentes autores, em diferentes épocas, teriam escrito textos separados
sobre a criação que somente mais tarde foram compilados, formando o livro
do Gênesis.
A ideia seria mais ou menos assim: a partir de 950 a.C., escribas que
viviam em Judá resolveram escrever textos chamando Deus de Javé, daí o
documento Javista. Então, mais tarde, escribas da parte norte de Israel,
especialmente da região de Efraim, redigiram outros documentos chamando
Deus de Elohim; este seria o documento Eloísta. Ainda depois disso, por
volta do ano 600 a.C., os levitas também resolveram escrever seu próprio
texto que foi chamado de deuteronomista e, finalmente, durante o cativeiro,
assim como após ele, os sacerdotes produziram um último texto chamado
sacerdotal.
Anos depois, alguém veio, tomou esses documentos, mudou, adaptou e
compilou os quatro, formando o que hoje chamamos de Pentateuco, e foi
assim que nasceu a chamada Alta Crítica ou Hipótese Documentária. Mas
essa proposta já se modificou muito desde suas origens, e até hoje não existe
consenso absoluto entre aqueles que a defendem.
Em que pese a aparente erudição desses conceitos e a popularidade que
ainda possuem em diversos centros de teologia, é importante dizer que
acadêmicos de peso têm abandonado o criticismo bíblico devido às
incongruências que ele possui tanto do ponto de vista histórico, como
filosófico, hermenêutico e metodológico.
A primeira coisa que se observa é a completa falta de evidência da
chamada hipótese documentária, aquela que afirma que a Bíblia é resultado
tardio de uma colcha de retalhos textuais. Milhares de manuscritos antigos
foram descobertos e nenhum deles oferece qualquer prova de que o texto que
possuímos hoje fosse dramaticamente diferente daquele lido no passado. As
diferenças são apenas periféricas.
Além disso, nenhum testemunho do passado, bíblico ou não bíblico, faz
referência a essas supostas fases preliminares ou mesmo que esta seria uma
prática redacional comum na Antiguidade. Pelo contrário, os textos antigos
parecem tão sequenciais que especialistas em literatura clássica praticamente
já abandonaram o Método Crítico Histórico ao analisarem obras gregas e
romanas como a Ilíada, de Homero, ou a Eneida, de Virgílio. Veja o que
escreveu a crítica literária Helen Gardner, especialista em literatura clássica:

Nas análises de campo, percebemos


que as teorias de composição autoral
de textos antigos, as supostas
primitivas versões do texto, os
diferentes níveis textuais etc. são
hipóteses que temos descartado.
Aquele tipo de análise crítico-
literário é hoje um conceito
ultrapassado. A tendência hoje é
assumir que estamos diante de um
único autor, a menos que tenhamos
uma clara evidência externa que
indique o contrário.
Viu que interessante? Teólogos liberais estão aplicando à Bíblia um
método de investigação textual que nos estudos clássicos já é considerado
ultrapassado, e Gardner escreveu isso nos anos 1950!
Mais recentemente, o professor John Van Seters,30 acadêmico das
universidades de Yale e Carolina do Norte, publicou um trabalho em que
questiona frontalmente a validade da Hipótese Documentária. Ele conclui que
a Hipótese Documentária nasceu no século 18 por causa de um sério erro de
anacronismo cometido pelos eruditos da ocasião.

ACRÉSCIMOS EDITORIAIS

Mesmo os que possuem uma leitura mais conservadora da Bíblia Sagrada


poderão admitir a existência de um trabalho editorial em seu conteúdo.
Afinal, ela não caiu pronta do céu com capítulos e versículos como os temos
atualmente. Mas isso é diferente do que dizia a Alta Crítica, segundo a qual a
Bíblia seria uma colcha de retalhos autorais que foram sendo colecionados ao
longo do tempo e costurados por um editor final na forma que hoje a
conhecemos.
As anotações editoriais e os arranjos que nos referimos são limitados.
Eles poderiam ser, por exemplo, uma compilação de antigos documentos que
passavam a ter novo formato. O livro de Provérbios é um caso emblemático.
Escrito originalmente por Salomão, ele recebeu esse trabalho editorial nos
dias do rei Ezequias (Provérbios 25:1).
Outro exemplo seria o livro de Daniel. Nos capítulos 7 e 8 toda a visão
do profeta aparece na primeira pessoa do singular — o que indica um relato
pessoal das visões escrito pelo próprio profeta. Contudo, no começo do
capítulo há uma anotação da data e uma referência ao autor da visão dada em
terceira pessoa que parece indicar a presença de um editor final que fez a
compilação das visões de Daniel (que possivelmente estavam separadas) e as
organizou por ordem cronológica.
Há ainda uma opinião defendida entre certos gramáticos das antigas
línguas semitas, segundo a qual essa alternância entre primeira e terceira
pessoa na narrativa seria um semitismo, isto é, uma forma de expressão típica
de antigas línguas semíticas. O próprio Jesus usou essa “fórmula” quando
dizia “o Filho do Homem”, referindo-se a si mesmo. Isso, contudo, não anula
a hipótese do editor apresentada acima.
O mesmo princípio de trabalho editorial mínimo pode ser visto em
passagens como Gênesis 11:28, que diz: “Harã morreu na presença de seu pai
Terá, em sua terra natal, chamada de Ur dos caldeus.” Ora, pela cronologia
bíblica, isso teria ocorrido no segundo milênio a.C. e fora escrito por Moisés
em torno do século 15 a.C. Ocorre, no entanto, que não há registro da
presença dos caldeus no sudeste da Mesopotâmia antes do primeiro milênio
a.C., e eles só começaram a governar cidades locais por volta do décimo
primeiro século a.C. Logo, “Ur dos Caldeus” só pode ser uma anotação feita
por alguém muito tempo depois de Moisés.
Mas não se trata de um engodo, e sim de uma anotação editorial cujo
objetivo é tornar o texto mais compreensível. Seria como se um historiador
moderno, ao descrever a descoberta do nosso país, escrevesse: “Em 21 de
abril de 1500, Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil.” Contudo, não existia
Brasil em 1500. Esse país e esse nome só vieram a existir mais tarde. A
referência, no entanto, seria um ajuste acadêmico com o fim de atualizar o
texto perante o leitor, facilitando sua compreensão. Seria como se o
historiador dissesse: “Em 21 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral
descobriu as terras que posteriormente seriam chamadas de Brasil.” O mesmo
ocorreu com o texto bíblico.
28 Tov, Emanuel. Critica Textual da Bíblia Hebraica, Niterói, RJ: BV Books, 2017.

29 Apud COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Raízes da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004., p 304.

30 Editing Bible, 2006.


CAPÍTULO DOZE

COMPREENDENDO
AS ESCRITURAS

LEITURAS SUPERFICIAIS
Um grupo de pessoas estava reunido numa espécie de “pequeno grupo” que
um pastor distrital tinha acabado de inaugurar. Elas se propuseram a estudar o
livro de Daniel. Este fato aconteceu com Ronald D. Worden, professor de
Bíblia no Houston Graduate School of Theology. Ele disse que o pastor
iniciou conduzindo um estudo sobre a festa de Belsazar. Então, ele pediu que
cada um ali presente comentasse sobre a história e seu significado. Um dos
irmãos sugeriu que a tônica do texto era a irreverência para com as coisas de
Deus, a saber, os vasos sagrados do Templo.
Outros prontamente retornaram a discussão para o que os vasos
significariam hoje. Ora, Paulo diz que nós somos os vasos de Deus (vasos
para honra ou para desonra, 2Timóteo 2:20-22), logo os vasos sagrados do
templo são pessoas. A diretora do departamento infantil não tardou em dizer
que as crianças eram os vasos mais puros e mais negligenciados de hoje e que
muitos pais, professores e membros de igreja, como o rei babilônio,
desonram esses pequenos vasos através da negligência, do abuso infantil etc.
Tudo muito lindo, gerando muitos pontos de vista interessantes. O único
problema: fugiram por completo da história e do objetivo original do livro.
Como o próprio professor Worden concluiu: talvez o senso intuitivo das
pessoas espirituais a levaram a uma aplicação até válida da Palavra de Deus
aos nossos dias, mas ao custo de fugir por completo daquilo que o livro teria
a nos dizer a partir de sua perspectiva histórica real.
Certamente devemos nos perguntar o que o texto diz para nós e que
aplicação ele teria em nossos dias, mas essa pergunta será muito mais
satisfatoriamente respondida se incluir métodos hermenêuticos de
interpretação que tenham a ver, especialmente, com o contexto histórico e
literário no qual o livro foi produzido. Afinal, os próprios autores da Bíblia
trabalharam suas narrativas dentro de uma perspectiva histórica de
compreensão da realidade. Este, portanto, é o grande desafio hermenêutico de
hoje: ensinar a Bíblia sem negligenciar o contexto histórico e o objetivo pelo
qual foi escrita.
O papel do teólogo biblista, concernente aos fatos que interpreta, deve
ser “voltar lá”,31 quebrar o lapso temporal entre ele e a testemunha e
compreender o que está por detrás das palavras. Vencer o lapso do tempo não
significa desconsiderar os aspectos históricos ou literários da narrativa nem
se prender apenas a isso. É dever do exegeta transpor o nível meramente
histórico da investigação para o nível da investigação teologica.32 Afinal, o
escritor bíblico testemunha — graças à inspiração recebida — o propósito de
um Deus eterno que lida com um povo circundado por uma realidade
histórica. Noutras palavras, o profeta capta através dos fatos e ocorrências
que viu ou ouviu a revelação de um Deus aparentemente oculto que age na
história dos homens. Mas as abordagens pós-modernas têm trazido
considerável negligência a esse exercício hermenêutico com visíveis
prejuízos à fé doutrinária.
Veja esta interessante citação de Daniel B. Wallace:

Aqueles que estão no ministério


precisam fechar a brecha existente
entre a Igreja e o mundo acadêmico.
Nós temos que educar os crentes. Ao
invés de ficar tentando criar um
preconceito (isolate) dos membros
em relação à crítica acadêmica, o
que precisamos é imunizá-los
(insulate) em relação a ela. Eles
precisam estar prontos para as
barreiras, porque elas certamente
virão. A intencional tendência de
baixar o padrão [intelectual] por
amor do preenchimento de alguns
bancos vazios pode resultar numa
perda da afeição por Cristo.33

O ideal não é alienar a igreja das discussões acadêmicas ou doutrinárias,


mas prepará-la para enfrentá-las.
HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Como bem apontou G. Hasel, a “Igreja pós-Novo Testamento dos primeiros


séculos do cristianismo não desenvolveu nenhuma teologia bíblica nem do
Novo Testamento.”34 Trata-se, portanto, de um conceito novo, próprio da
modernidade e posterior ao século 18. Contudo, isso não significa que não
havia uma hermenêutica ou uma interpretação bíblica anterior a essa época. O
que diferenciava o exercício era o contexto particular de cada situação.
Os cristãos primitivos não se deparavam com as atuais questões de
crítica textual a respeito da Bíblia. Por muitos anos após a morte e
ressurreição de Cristo eles ainda participavam do culto sinagogal com os
judeus, interpretando as Escrituras nos mesmos moldes judaicos, exceto no
fato de que viam a Jesus de Nazaré como legítimo cumpridor das profecias
messiânicas. A Torá e os Profetas eram então lidos na língua original
hebraica, embora também houvesse espaço para um largo uso da versão da
LXX, especialmente nos escritos de Paulo.
Nem todos, é claro, tinham acesso à língua hebraica (especialmente os
judeus da diáspora). Por isso, ao lado da LXX havia também os Targuns, que
eram paráfrases aramaicas (muitas vezes seguidas de comentários) de longos
ou curtos trechos da bíblia hebraica.
Embora prevaleça uma compreensão de que Cristo e os primeiros
cristãos usaram mormente o texto grego da LXX em suas citações do Antigo
Testamento, alguns autores evidenciam a possibilidade de que Cristo e seus
discípulos tivessem privilegiado o uso do texto hebraico (e não do grego) e
feito paráfrases targúnicas no momento de citá-lo em seus ensinamentos
públicos. Isso de fato é uma possibilidade, mas não uma certeza e lança luz
sobre a hermenêutica dos tempos do Novo Testamento.
O problema é que a versão targúnica refletia muito a interpretação,
chamada de Midrash, que rabinos judeus davam das Escrituras, e isso acabou
favorecendo as interpretações excessivamente alegóricas das Escrituras como
aquelas que seriam encontradas posteriormente em Orígenes (c. 185-253
d.C.) e seus seguidores, por volta do fim do segundo e início terceiro séculos
da Era Cristã. Essa interpretação foi combatida por Luciano de Antioquia,
que fundou a Escola Antioquena de interpretação literal, no quarto século.
Contudo, é importante notar que já em Ireneu de Lion encontramos o
primeiro sinal de que havia um trabalho crítico textual do Novo Testamento,
pelo menos por volta de 177 d.C., quando ele possivelmente escreveu sua
obra Adversus Haereses [Contra heresias]. Ali, ele preferiu uma determinada
leitura do Apocalipse em vez de outra. É que alguns manuscritos traziam o
número da Besta como sendo 616 e não 666. Sobre isso, Ireneu diz preferir
666 que é o número que aparece “em todas as mais antigas e aprovadas
cópias […] além de ser atestado por aqueles que viram João face a face”.
Igualmente, Jerônimo (345-420 d.C.) pesquisou em vários manuscritos
latinos a fim de produzir o texto da Vulgata. Em seu método ele
simplesmente dava prioridade a um manuscritos mais velho.35

ESCOLA ALEXANDRINA

Alexandria era a capital intelectual do Império Romano de cultura grega. Lá


havia uma escola com mais de 14 mil alunos. Grandes nomes passaram pelos
bancos acadêmicos da cidade. Foi em Alexandria que Euclides desenvolveu
sua geometria, Hiparco explicou a todos os conceitos da trigonometria e
Galeno sistematizou sua medicina. Foi o ambiente alexandrino que permitiu a
Cláudio Ptolomeu desenvolver seu conceito de universo geocêntrico em
oposição a Aristarco que, na mesma escola, defendeu posição contrária de
que o Sol seria o centro de nosso sistema planetário. Estes são apenas alguns
dos muitos famosos que foram à Alexandria aprimorar ou buscar
conhecimento.
Na mesma cidade estava a maior biblioteca dos tempos antigos e a mais
antiga escola de crítica textual (o Museion e o Serapion) que buscava
recuperar o conteúdo de antigos manuscritos. A razão disso estava em que, a
partir do terceiro século a.C., os estudiosos gregos dali tentaram restaurar os
antigos textos dos poetas e prosadores gregos. Foi nesse centro cultural que a
versão da LXX veio à luz, entre 280 a.C. e 150 a.C.
Ali também se enraizou uma curiosa escola de interpretação helenística
que atraiu gramáticos, retóricos e filósofos. Era o método alegórico de
interpretação utilizado sobretudo nas epopeias e outras obras veneradas pelos
gregos.
No período helenístico, a noção filosófica de “divino” passou a ser
equiparada pelos pensadores à ideia de um logos racional. Mas como o
fenômeno helenista era uma realidade bifurcada entre o aristotelismo e a
mitologia alexandrina, não havia meios de fugir da forçosa convivência entre
os dois. Ademais, os gramáticos e editores de Alexandria estavam muito
preocupados em preservar a herança clássica e mitológica que agora fazia
parte de sua própria identidade cultural. Por isso buscavam a todo custo
restaurar livros cuja autenticidade era duvidosa e encontrar uma interpretação
literária que justificasse o esforço de preservar tal conteúdo. A solução foi
sistematizar uma interpretação alegórica dos mitos.
Foram principalmente os estoicos os responsáveis por essa nova
interpretação. Mas não se tratava de um exercício completamente novo; ele já
existia mesmo antes dos dias de Sócrates e Platão.36 Diógenes de Apolônia
(425 a.C.), por exemplo, aplicava na Ilíada os princípios da chamada
interpretação pseudo-histórica e alegórica concluindo que Homero intentava,
com a figura de Zeus, falar na verdade do “ar”. Afinal, a realidade era melhor
expressa através de símbolos.
O que os estoicos e alexandrinos fizeram, portanto, foi ampliar o antigo
método pseudo-histórico. Sua intenção agora era restaurar os textos antigos e
encontrar, atrás do sentido literal, um significado real mais profundo e
verdadeiro.
Seu método consistia em partir do sentido literal das palavras (filologia),
mas não ficar preso a ele. Era preciso ordenar corretamente os sentidos do
texto com a ajuda da etimologia. A etimologia forneceria, na sua concepção,
indicações sobre a direção do significado oculto que ultrapassava o sentido
literal. Por isso, etimologia é uma palavra que vem do grego étymos (real,
verdadeiro) + logos (estudo, descrição, relato).37 Para os alexandrinos, a
origem natural das palavras foi modificada (mitologizada) para satisfazer os
requerimentos de cada período da História, assim como os mitos que também
foram formados para explicar antigos ritos que não eram mais
compreensíveis ao povo.
Outra maneira de compreender isso seria entender o processo da busca
humana por significado. Ora, o significado ou sentido são as ideias, ou seja,
aquilo que queremos expressar (Sócrates e Platão). Ocorre, no entanto, que os
sentidos só são expressáveis através de símbolos ou signos, isto é, palavras,
gestos, lexemas. O ideal epistemológico seria, portanto, compreender o
sentido através do signo. Em termos textuais, os gregos entendiam que
“signo” seria o alegórico e “sentido”, o literal.
É curioso, no entanto, observar que embora a prática de interpretação
alegórica já existisse por longos séculos, a própria palavra grega allêgoria
não foi utilizada senão no período romano. No final do primeiro século a.C.,
Plutarco se via às voltas com o desafio de encontrar um novo termo que se
adequasse ao exercício hermenêutico de encontrar uma realidade mais
profunda nos textos clássicos.38
Até então, os conceitos centrais da proposta de interpretação alegórica
eram expressos através de termos como symbolon (símbolo), hyponoia (sub-
significado), aenigma (enigma) e uponoia, este último usado
preferencialmente pelos estoicos para se referir a uma inescapável utilização
de certas figuras de retórica ou comunicação indireta que diz uma coisa para
levar o receptor a entender outra. Em suma, uma forma não literal e não
transparente de se transmitir uma verdade.39
Ao que tudo indica, foi o Pseudo-Heráclito (século 1 d.C.), em sua obra
Allegoricae Homericae [Alegorias homéricas], que forjou a palavra alegoria,
ou, pelo menos, deu-lhe a mais antiga conceituação que conhecemos.40 Ele a
definiu como um elemento retórico, que possibilita dizer algo e, ao mesmo
tempo, aludir a algo diverso.
No dizer de Jon Whitman, a alegoria foi, “em última instância, o
deslocamento de palavras para longe de seus objetos… [uma] linguagem
removida de seu contexto [original] para o presente”.41 Sua etimologia está
no ajuntamento de dois vocábulos gregos: allos, que quer dizer “outro”, e
agoreuin, “discursar na praça, na ágora”.42 Literalmente, alegoria significa
falar outras coisas diferentes das que aparentam estar sendo ditas. Falar
escondido, num “outro” lugar não público, fora da ágora.
É importante esclarecer que existe uma nítida distinção entre a alegoria
usada na Bíblia e essa “interpretação alegórica” promovida pelos gregos.
Como veremos mais adiante, é possível encontrar nas Escrituras específicos
recursos de alegoria, como as parábolas de Jesus, ou os chamados “atos dos
profetas”. Contudo, intentar a compreensão “mais profunda” de um
significado além daquele que está claramente exposto no texto inspirado é
forçar à narrativa bíblica abordagens estranhas que podem ser próprias para a
metafísica platônica ou a ética dos estoicos, mas nunca para a correta
compreensão da Palavra de Deus.
Tal cuidado não foi, infelizmente, tomado pelos judeus de Alexandria,
que foram tremendamente influenciados pelos intelectuais gregos da ocasião.
Tanto a filosofia grega, em meio a qual todos estavam inseridos, como o
próprio método de interpretação alegórica, nortearam sua maneira de ler e
entender as Escrituras. Mas eles também inovaram em sua aplicação do
método.

FILO DE ALEXANDRIA

Filo de Alexandria certamente é o principal representante do judaísmo


helenista deste contexto. Sendo ele mesmo um filósofo judeu-helenista dos
primórdios da filosofia neoplatônica, sua obra o fez entrar para a histórica
como aquele que elaborou uma fusão entre a filosofia grega e a teologia
mosaica, criando a filosofia mosaica.
Ele intentou uma interpretação do Antigo Testamento à luz das
categorias elaboradas pela filosofia grega e pela alegoria. Foi autor de
numerosas obras filosóficas e históricas, onde expôs a sua visão platônica do
judaísmo. Entre elas destaca-se o Comentário alegórico do Pentateuco, uma
série de tratados sobre episódios bíblicos.
Mas Filo não se limitou a dar à alegoria a explicação de um sistema
religioso, como fizeram seus predecessores. Ele queria adaptar as Escrituras à
nova realidade helenística e torná-la mais aceitável ao público gentio. Por
isso, ele inovou ao usar a alegoria num sentido apologético. Seu objetivo era,
através do método alegórico, defender a idoneidade das escrituras judaicas e
facilitar sua aceitação e assimilação pelos que não vinham de uma origem
judaica. Exemplos de seu método: os que zombavam do Logos Divino
expresso na LXX estavam representados nas Escrituras como sendo os
mesmos que zombaram da advertência de Deus ao construírem a torre de
Babel, sorriram em companhia da serpente no Paraíso e fizeram anedotas do
sonho de José.43 Como você vê, ele misturava histórias bíblicas distintas e
buscava nelas simbologias para qualquer elemento que fosse conveniente
equiparar.
Sendo Filo contemporâneo de Jesus Cristo (25 a.C. — c. 50 d.C.), não
demorou para haver um contato dos cristãos com seus ensinos. Seguidores do
cristianismo convertidos de um judaísmo helenizado certamente assimilaram
algumas de suas ideias para o desenvolvimento de uma nova teologia cristã.
Não é sem razão que Clemente de Alexandria (250 d.C.), imbuído do
pensamento de Filo, chegou a afirmar que, “como a lei formou os hebreus, a
filosofia formou os gregos para Cristo. A Filosofia prepara o caminho para a
perfeição em Cristo”.44

ORÍGENES DE ALEXANDRIA

Em pouco tempo, o cristianismo alexandrino também teria um representante


à altura de Filo. Tratava-se de Orígenes, que também fez amplo uso do
método alegórico a fim de estabelecer o texto crítico do Antigo Testamento.
Ele nasceu em Alexandria por volta do ano 185 da Era Cristã. Tornou-se
asceta e procurou criar um lugar de honra para o cristianismo em meio ao
ambiente alexandrino.
Seguindo os passos de Filo, Orígenes desenvolveu uma interpretação
alegórica da Bíblia, dessa vez dentro de uma perspectiva cristã. Fora esse
detalhe, seu método nada tem de original. Era o mesmo dos gramáticos de
Alexandria que foram seus mestres, produzindo, portanto, os mesmos
resultados.
Mas nem tudo foi alegorização. Orígenes produziu um excelente
trabalho de crítica textual com sua imensa sinopse do Antigo Testamento, a
chamada Hexapla. Para produzi-la, ele dispôs seu manuscrito em seis
colunas. Na primeira, transcreveu o texto hebraico, transliterado em letras
gregas na segunda. A seguir, vinham quatro diferentes versões gregas: a de
Áquila, extremamente literal; a de Símaco, muito mais elegante; a LXX; e,
finalmente, a de Teodócio, que é apenas uma revisão da LXX harmonizada
com a tradução de Áquila.
Sua vasta obra incluía uma gigantesca coleção de comentários do Antigo
e Novo Testamento, totalizando 257 volumes. Todos, é claro, inspirados na
exegese de métodos alexandrinos que consistiam, como vimos, em descobrir
o suposto significado oculto e alegórico por detrás do texto bíblico. O Antigo
Testamento servia de alegoria para o Novo, por exemplo: os dois seios da
mulher de cantares seriam o Antigo e o Novo Testamentos; os três poços (de
Isaque, Jacó e José) seriam a Trindade, a água seria a graça, as ovelhas dos
patriarcas, o povo de Deus, e assim por diante.
Essa liberdade interpretativa se justificava no fato de que, tanto para Filo
como para Orígenes, a alegoria seria a alma do texto e o sentido literal, o seu
corpo.45 Para ambos, o sentido literal das Escrituras chegava a ser perigoso e
tendia para o absurdo, a impiedade e o legalismo.46
Alexandria tornou-se um centro de expansão do cristianismo durante os
primeiros séculos da Igreja, posição que conservou até a chegada do
islamismo, no século 7. Alguns supõem que essa cidade seria o centro de
atividade intelectual, na tentativa de restaurar o texto da Bíblia antes de 325.
Todavia, não houve basicamente nenhuma crítica textual verdadeira do Novo
Testamento durante esses séculos. Foi, antes, um período de reduplicação de
manuscritos, e não de avaliação de textos. No entanto, em contraposição a
Alexandria, na Palestina, de 70-100 d.C., estudiosos rabínicos efetuaram
diligente trabalho textual no Antigo Testamento.
POLIGLOTA COMPLUTENSE E TEXTUS RECEPTUS

Depois da invenção da impressa, o primeiro Novo Testamento impresso em


grego foi a Bíblia Poliglota Complutense, planejada em 1502 pelo cardeal da
Espanha, Francisco Ximenes de Cisneros (1437-1517). O Novo Testamento
foi terminado em 10 de janeiro de 1514, e o Antigo em 1517. Traz o texto em
hebraico, grego e latim (tradução de Jerônimo) em colunas, mas o Pentateuco
possuía um texto aramaico (Targum Onkelos) e uma tradução latina no
rodapé. O quinto volume era o texto grego do Novo Testamento ladeado de
uma tradução para o latim. O sexto volume consistia em um dicionário grego,
aramaico e hebraico. Foi feita na universidade de Alcalá (que os latinos
chamavam de Universidade de Complutum, daí o nome “complutense”). Das
600 cópias impressas, restam atualmente 123, estando uma delas na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Embora a Poliglota Complutense fosse o primeiro Novo Testamento
grego impresso, não foi o primeiro publicado. O Novo Testamento estava
completo e impresso em 1514, porém não se deu sua publicação enquanto
trabalhava-se ainda no Velho Testamento para que pudessem vir à luz como
uma única obra. Por essa época, notícia do projeto chegou até o
conhecimento de Erasmo de Roterdã, que produziu sua própria edição
impressa do Novo Testamento grego. Erasmo obteve do imperador
Maximiliano e do papa Leão X o privilégio de publicação exclusiva por
quatro anos. Esse texto tornou-se o Textus Receptus e suas edições
posteriores foram a base para o Novo Testamento da versão King James.
O Velho Testamento Complutense estava completo em 1517, mas por
força do privilégio obtido por Erasmo, a publicação da Poliglota
Complutense foi adiada até que o papa Leão X pudesse sancioná-la em 1520.
Acredita-se que sua distribuição foi reduzida até 1522. O cardeal Cisneiros
morreu em julho de 1517, cinco meses após o término da obra, e não chegou
a ver sua publicação.
A primeira edição de Erasmo em 1516 estava cheia de erros tipográficos
que ele mesmo corrigiu nas edições seguintes (1519, 1522, 1527 e 1535).
Mas o texto não foi aperfeiçoado com aparato crítico.

NOVOS MÉTODOS

Desde a época de Orígenes até o período da Reforma, a interpretação bíblica


não sofreu alterações a não ser oscilar entre o método literal e o alegórico
que, aliás, foi o mais utilizado pelos Pais da Igreja ocidental, e também por
Agostinho e Jerônimo.
A Renascença, com toda sua inovação artística e intelectual, foi que
proporcionou o ambiente para essa nova empreitada crítica da literatura
bíblica, inspirada, como dissemos, nos antigos moldes gregos de Alexandria.
Traumatizados pelo atraso cultural trazido pelo catolicismo da Idade Média,
os intelectuais queriam aproveitar os novos tempos incentivando um estudo
mais abrangente das culturas extraeclesiais com especial ênfase nos recursus
ad fontes, isto é, volta às fontes, que incluía o estudo do grego clássico, das
línguas semíticas e de antigos autores proibidos na Baixa Idade Média. Foi
então que o estudo da Bíblia passou a ser mais literário, empregando
ferramentas novas e técnicas seculares utilizadas em outras fontes textuais da
Antiguidade.
Assim, desde a época da Reforma Protestante, três métodos principais
de estudo bíblico têm sido seguidos pelos acadêmicos: o gramático-histórico,
o histórico-crítico e o estruturalista.47
Friedrich Schleiermacher (1768-1834), rejeitando a clássica distinção
entre hermenêutica secular e hermenêutica sagrada, preferiu falar de uma
hermenêutica geral, aplicável para toda a literatura, incluindo as Escrituras.
Em virtude disso, muitos autores passaram a defender um estudo
hermenêutico da Bíblia apenas a partir de um ponto de vista crítico-histórico
sem nenhuma distinção de outros livros produzidos na Antiguidade. Tal
exercício, é claro, dilui o conceito de inspiração e revelação assumidos pela
doutrina cristã em relação à Bíblia Sagrada.
Assim, é possível encontrar hoje uma gama de significados para a
expressão “hermenêutica bíblica” que justifica um esclarecimento acerca de
qual conceito estamos empregando. Para uns, a hermenêutica bíblica
(contrária à exegese) seria o abandono completo ou parcial do sentido
original do livro e do autor (objetivo exclusivo da exegese) com vistas a
descobrir qual é o seu real significado para os dias de hoje. Para outros,
porém, a hermenêutica seria a teoria que normatiza a exegese.48
E ainda temos a chamada “nova hermenêutica”, que deve ser distinta das
concepções anteriores. Expressa especialmente na teoria do Estruturalismo,
esta é a vertente mais pós-moderna do termo que nega a autonomia do texto
acreditando que qualquer interpretação só se dá a partir do leitor (e cada um
tem uma interpretação diferente).
Por muitos anos, desde o século 17 até as primeiras décadas do século
20, predominou no mundo acadêmico o estudo da Bíblia como literatura
clássica, especialmente no método crítico-histórico.49 Esse método
desenvolveu-se mais pelo esforço do teólogo holandês Hugo Grotius, do
biblista francês Richard Simon e do filósofo Holandês Baruch Spinoza,
curiosamente um protestante, um católico e um judeu. Mas o impulso maior
desse método dentro dos seminários aconteceu por ocasião da publicação
póstuma dos trabalhos de Reimarus (um teólogo deísta do século 18) e,
depois, por causa do Iluminismo e do movimento historicista alemão do
século 19.
Seu nascimento coincide com o chamado triunfo da razão (racionalismo)
e dos elementos que advieram dele. A Bíblia, nesse contexto, começou a ser
estudada como um simples objeto literário da Antiguidade Clássica, passível
de observação e compreensão crítica à luz do que já se havia obtido em
outras áreas do conhecimento racional. Ideias teológicas anteriores como
inspiração, revelação e iluminação se dissolveram neste novo ambiente. O
objetivo da nova hermenêutica era a busca exclusiva pelo significado
histórico do texto.
Assim, de maneira natural, essa busca por significado histórico chocava-
se com visões doutrinárias mais antigas e a necessidade epistemológica se
fazia evidente. A tensão entre conhecimento histórico e fé permeou
profundamente as estruturas do método, basta ver como exemplo disso as
questões envolvendo a historicidade bíblica e as distinções entre o Jesus
histórico e o Cristo da fé. Alguns, advogando a impossibilidade hermenêutica
de objetividade histórica, preferiram abandonar a busca pelo mais antigo,
entendendo já o texto como um subproduto mitológico de uma realidade bem
menos sensacional.
A análise oferecida pelo método histórico-crítico pretendia analisar o
material antigo do modo mais objetivo possível, fornecendo estruturas
científicas que permitissem coletar os fatos passados e explicá-los de acordo
com as possibilidades metodológicas existentes. Tal premissa, no entanto, só
faz sentido se for aplicada a um texto e material histórico o mais próximo
possível do original pesquisado. Daí a necessidade da crítica textual.
Foi com esse propósito em mente que teólogos liberais, sobretudo da
escola alemã, aplicaram ao estudo da Bíblia técnicas de reconstrução textual
típicas de outras obras literárias conforme o entendimento que tinham do
modo como uma unidade literária seria hipoteticamente construída ao longo
do tempo.
Estudos crítico-literários sobre o folclore alemão (especialmente os
irmãos Grimm) influenciaram muito os teólogos na ocasião. Daí o nome do
método ser “histórico-crítico”. Compreendia-se que a história era o elemento
que direcionava a produção do texto desde seus “estratos” iniciais até sua
forma final e sua especulativa “pluralidade de autores”. O problema é que a
maioria dos folcloristas de hoje critica as conclusões de outros que foram
influenciados pelo Romantismo do século 19. Atualmente, o conceito de
folclore mudou, bem como a ênfase da disciplina, abandonando a busca pelo
Urtext (texto original) e os costumes, preferindo uma abordagem de
orientação mais processual.
Ademais, a abordagem histórico-crítica — como seria de se esperar —
foi desde o início questionada por teólogos de linha mais conservadora que
compreendiam os perigos do criticismo à compreensão tradicional da Bíblia
como Palavra inspirada por Deus.50 A bem da verdade, muitos exegetas
usuários do método histórico-crítico jamais reconheceram que estariam
questionando a inspiração da Bíblia como Palavra de Deus. Apenas diziam
que, sendo um registro antigo, esta deveria ser estudada como se estudaria
um texto clássico produzido há centenas de anos. Foram os teólogos
conservadores que assinalaram os problemas desta abordagem para a
compreensão divino-humana da Bíblia Sagrada
No método histórico-gramatical utilizado originalmente pela Reforma, a
exegese era desenvolvida dentro do contexto de Sola Scriptura, cujo
pressuposto inegociável era a consideração da natureza divino-humana das
Sagradas Escrituras, ou seja, sua mensagem está em linguagem humana, mas
foram inspiradas diretamente por Deus.
Não se admira, portanto, que nos séculos que se seguiram desde suas
origens até hoje, os dois métodos (histórico-crítico e histórico-gramatical)
tenham estado em franca oposição quanto à interpretação correta das
Escrituras. Há de se admitir, contudo, que houve uma predominância do
método histórico-crítico nos principais círculos acadêmicos da Europa e dos
Estados Unidos.
31 G. E. Wright. “The Theological Study of the Bible” in The Interpreter’s One-Volume Commentary
on the Bible. Nashville, TN: Abingdon Press, 1971, p. 983.

32 G. Hasel. Old Testament Theology: Basic Issues in Current Debate. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1974, p. 75.

33 Citado por R. Price. Searching for the Original Bible. Eugene, Oregon: Harvest Publishers, 2007, p.
19.

34 G. F. Hasel, Teologia do Novo Testamento, 13.

35 Eldon J. Epp. “Issues in New Testament Textual Criticism: Moving from the Nineteenth Century to
the Twenty-First Century” in Rethinking New Testament Textual Criticism, Ed. David A. Black. Grand
Rapids, MI: Baker, 2002, p. 21.

36 J. Tate. “On the History of Allegorism”. Classical Quarterly 28 (1934): 105-114.

37 Buscar a origem da língua era descobrir a origem do mundo. Havia duas escolas de pensamento
sobre a origem da língua: a dos anomalistas (ou da língua natural), a que pertencem, sobretudo, os
filósofos estoicos e os gramáticos da escola de Pérgamo; e a dos analogistas (ou da língua
convencional), dos gramáticos de Alexandria, sobretudo Dionísio de Trácia e Apolônio Díscolo. Os
anomalistas insistiam na frequência das exceções e na presença de diversos tipos de analogias dentro de
uma mesma classe de palavras. Estabeleceram que a língua não podia depender da convenção do
homem; se assim fosse, deveria ser mais regular, porque a lógica prevaleceria sobre a irregularidade.
Resulta que a língua nasce da natureza, revelada no uso. A resistência à criação de línguas planejadas,
que acontece ainda em tempos modernos, apresenta-se como um resíduo recessivo do anomalismo
estoico. Admitiam os estoicos uma relação entre o significado da palavra e seu portador material, de
cuja forma natural este significado derivava. Ainda que o uso corrompesse a palavra natural, ela
permanecia, podendo ser procurada. Em consequência, estimularam os estoicos à ciência da etimologia
para estudo dos étimos (étymos = verdadeiro, real, étimo).

38 Rita Copeland e Peter T. Struck (Eds). The Cambridge Companion to Allegory. Cambrigde:
Cambridge University Press, 2010, p. 2.

39 G. P. Caprettini, “Alegoria” in Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda,


1994, p. 31: 247-277; e Peter Struck, Birth of the Symbol: Ancient Readers at the Limits of Their Texts.
Princeton: Princeton University Press, 2004, p. 23.

40 Theodore L. Kassier. The truth disguised: allegorical structure and technique in Gracian’s
“Criticon”. Londres: Tamesis Books Limited, 1976, 8 nota 19; Ellen Birnbaum. “Allegorical
Interpretation”. In: David Aune, Torrey Seland e Jarl Henning Ulrichsen (Eds). Neotestamentica et
Plilonica: Studes in Honor of Perder Borgen. Leiden: Brill, 2002, p. 308 e 309.

41 Jon Whitman. Allegory: the Dynamics of an Ancient and Medieval Technique Cambridge: Harvard
University Press, 1987, p. 2.

42 Rebecca Saunders. “The Agony and the Allegory: The Concept of the Foreign, the Language of
Apartheid, and the Fiction of J. M. Coetzee”. Cultural Critique, 47, (Winter 2001):223-224.

43 De Mund. Op. i.38; de conf. Ling. i. 405; Leg. All. i. 128; de Jos. Ii. 59.

44 Stromata 1.5.28.3. Veja também: Eric Orson. Clement of Alexandria. Cambridge: Cambridge
University Press, 2008, p. 88-92; e Annewies Van Den Hoek. Clement of Alexandria and his Use of
Philo in the Stromateis. An Early Christian reshaping of a Jewish model (Supplements to Vigiliae
Christianae III), (Leiden: E.J.Brill, 1988), p. 159.

45 de Mgr. Abr. i. 450.

46 e.g. Leg. all. i. 44; de Conf. Ling. i. 425; de Sosnn. 634; de Spec. Leg. ii. 329; de Agric. i. 324 etc.

47 Hoje existem autores que seguem outras abordagens alternativas, como a abordagem narrativa, a
abordagem retórica etc. Mas estes três segmentos ainda são os clássicos e modernos métodos que se
mostram apenas como desdobramentos deles. Para uma visão geral das modernas abordagens veja J. A.
Fitzmeyer, Escritura, a alma da Teologia. São Paulo: Loyola, 1997,

48 Walter C. Kaiser, Jr., Toward an Exegetical Theology. Grand Rapids: Baker, 1981, p. 47; David
Stacey, Interpreting the Bible. Nova Iorque : Seabury, 1977.

49 Veja E. Krentz, The Historical Critical Method. Filadélfia, PA: Fortress Press, 1975. Sobre o
predomínio do método nos estudos do Novo Testamento veja: W. G. Kümmel, The New Testament: the
History of the Investigation of Its Problems. Nashville, TN: Abingdon Press, 1972..
50 Cf. J. A. Fitzmyer. Escritura, a alma da Teologia. São Paulo, SP: Loyola, 1997, p. 26 e 27.
CAPÍTULO TREZE

A BÍBLIA
HOJE

NOVAS ABORDAGENS PÓS-MODERNAS


A situação de predominância do método crítico-histórico só foi modificada a
partir de meados dos anos 1960, quando houve uma nova reação acadêmica
fortemente contrária àquela abordagem literária da Bíblia. Esta, contudo, não
partiu de leigos nem de teólogos conservadores, mas de autores, igualmente
liberais, oriundos da Escola Linguística e da Teoria da Literatura.51
Os novos proponentes hermenêuticos já não se interessam mais pela
evolução textual do relato ao longo dos anos. A Redaktionsgeschichte [crítica
redacional] e a Formgeschichte [crítica da forma] não têm importância
alguma nesta nova abordagem mais estrutural e linguística. Procura-se agora
trabalhar o texto, seus parágrafos e suas frases conforme se apresentam num
dado momento, sem se preocupar com rascunhos, estratos ou formas prévias.
Em alguns casos, isso significou para a linguística uma significativa
diminuição dos estudos etimológicos e da gramática histórica ― o que, de
certa forma, é desastroso para os mais conservadores que optam pelo método
histórico-gramatical
Um livro-chave que marcou época nesta ruptura com o método
histórico-crítico foi O conflito das interpretações, de Paul Ricoeur, que
representou a tensão e a controvérsia hermenêutica marcada, por um lado, por
tradicionais exegetas da velha escola alemã e, por outro, pelos novos
intérpretes franceses que advogavam a dessubstancialização do sujeito/autor
pelo métodos estruturais daquele que lê ou recebe a redação.
Em 1959 Helen Gardner já anunciava:

No campo das pesquisas, as teorias


relativas a diferentes autores, versões
primitivas ou diferentes estratos
[literários] têm sido paulatinamente
descartadas. O tipo de análise que
antes creram ser o único dever do
criticismo literário está hoje
acentuadamente fora de moda. A
tendência atual pende mais e mais a
favor da existência de um único
autor, a menos que exista uma clara
evidência externa contrária a isso.52
As causas da reação ao criticismo histórico estavam na falha do método
em produzir significados teológicos concretos. Eles também falharam em
responder empiricamente questões relacionadas à autoria, data e objetivos das
obras. Além disso, o estudo da literatura (especialmente a literatura clássica)
migrou da historiografia para a história social, usando métodos de
interpretação (sincrônicos e diacrônicos) que se aproximassem de modelos
linguísticos e do desenvolvimento do pensamento hermenêutico
contemporâneo.
Por método sincrônico e diacrônico entenda-se, conforme a definição de
Ferdinand de Saussure, que “é sincrônico tudo quanto se relacione com o
aspecto estático da nossa ciência; é diacrônico tudo que diz respeito às
evoluções”.53 Isso aplicado ao texto, especialmente ao texto bíblico, quer
dizer que os que analisam a Bíblia com o método diacrônico se aproximam
mais do antigo método crítico histórico, pois estudam o texto sagrado em seu
suposto processo de formação (exemplo: hipótese documentária, fonte Q,
Deutero-Isaías etc.). Já os que optam pelo método sincrônico não
necessariamente negam, mas evitam a busca pela chamada “evolução do
texto”, preferindo examiná-lo tal como se encontra em nossos dias em seu
formato final.
É evidente que nem sempre há entre os exegetas atuais uma dicotomia
ou separação restrita entre as abordagens diacrônica e sincrônica. Há quem
entenda que ambas não são excludentes, mas complementárias. No que diz
respeito à proposta oferecida por uma hermenêutica mais conservadora, não
se pode excluir por completo as noções de possível evolução de um texto
bíblico. Mas, reconhecendo o caráter especulativo das reconstruções
oferecidas e a dissolução do aspecto divino que existe na Biblia, é preferível
trabalhar com o texto em sua forma final. O que não significa também uma
adoção irrestrita da abordagem diacrônica que também pode partir de
pressupostos incongruentes com a proposta adventista.
De um modo geral, a leitura sincrônica pode apresentar análises como
estas:

▷ Análise retórica: busca


compreender os discursos que
aparecem na Bíblia. Tais discursos
são analisados segundo as partes
comuns de um discurso, conforme
visto na retórica clássica (exortação,
narração, demonstração, refutação e
epílogo). O ponto falho desta análise
está no fato de que a maior parte da
Bíblia não reflete necessariamente a
forma clássica (grega, romana e
greco-romana) de um discurso. A
leitura excessivamente helenística do
texto bíblico pode torná-lo
disassociado de seu verdadeiro
contexto hebraico-oriental.

▷ Análise narrativa: estuda


unicamente os textos narrativos da
Bíblia, que são a maioria. Na
narração buscam-se o(s)
protagonista(s), o(s) antagonista(s),
os demais participantes, a ação
descrita, as circunstâncias da
ocorrência (tempo, ordem dos fatos
etc.). Em se tratando de um texto
bíblico que traz a História da
Redenção, não se pode esquecer que
existe um elemento histórico-divino
por detrás das ações humanas ali
testemunhadas.

▷ Análise semiótica: parte de dois


pressupostos. Primeiro: a
interpretação de um texto depende do
estabelecimento das várias relações
existentes dentro do próprio texto.
Segundo: as relações fundamentais
de qualquer texto são as de oposição
ou de equivalência, isto é, dos termos
antitéticos (morte/vida, luz/trevas) ou
sinônimos (santuário/templo,
desejar/amar).

Todas essas abordagens podem ter um lugar na compreensão do texto


bíblico, desde que não excluam elementos da análise histórico-gramatical e
que respeitem, acima de tudo, o espírito do texto inspirado, a autoria divina
dele e o sentido histórico-teológico que ele possui.
A construção da nova abordagem hermenêutica se dá ao mesmo tempo
em que estudiosos da sociologia pretendem oferecer maior obtividade
científica e matematização dos trabalhos acadêmicos de caráter social — é o
caso da proposta de Lévi-Strauss a partir da matemática de grupos. Essas
discussões permeiam as novas leituras e a chamada “textura” cultural
utilizada para interpretar obras fundamentais. Longe de ser unívoco, esse
novo contexto hermenêutico não se reduz a nomenclaturas ou filiações a
determinadas filosofias e escolas de pensamento. Antes, ele subjaz — na
maioria das vezes inconscientemente — na própria essência do pensamento
ocidental contemporâneo. Por isso, não é estranho que as mesmas assertivas
sejam encontradas (ainda que em palavras diferentes) em distintas obras
mesmo anteriores à década de 1960, como de Heiddeger, Walter Benjamin,
Gadamer, Habermas, entre outros.
Pluralístico como a própria pós-modernidade que o produziu, este “novo
criticismo literário” — questionador do tradicional “criticismo” usado pelo
método histórico-crítico — é diversamente denominado por vários nomes e
caracterizado por múltiplas abordagens. Fala-se da “nova crítica literária”, da
crítica narrativa, da crítica retórica, da crítica canônica, da interpretação
sociológica, da interpretação antropológica, da interpretação psicológica, da
crítica feminista, da crítica estruturalista etc. Cada uma, é claro, tem um
diferente grau de predomínio e muitas, conforme a própria condição efêmera
das filosofias atuais, já tiveram o seu ocaso anunciado pelos especialistas.
Para efeito de introdução, vamos denominá-las de maneira conjunta como
“abordagens pós-modernas das Escrituras”.
De modo geral, reconheceu-se nestas novas abordagens que a Bíblia não
é apenas a história de uma construção literária. Seja qual for a sua origem, ela
é, hoje, um conjunto semiótico unificado e como tal deveria ser analisada. A
ênfase comum que se dava a imaginárias fases de elaboração textual ou sobre
o conteúdo de supostos documentos hoje perdidos fez com que os exegetas
negligenciassem o principal elemento de análise que temos atualmente, a
saber, o texto pronto na forma como o possuímos. Por isso, a nova
abordagem literária da Bíblia procura tratar o texto bíblico como entidade
autônoma.
Olhando assim, à primeira vista, tais colocações parecem coadunar com
a abordagem tradicional vista no método histórico-gramatical, principalmente
por serem um ataque às propostas do método histórico-crítico. Contudo, não
podemos cair no dicto simpliciter (ou falácia do acidente) de uma falácia por
divisão, isto é, quando se toma a parte pelo todo. O fato de as propostas pós-
modernas afirmarem coisas semelhantes ao método histórico-gramatical não
torna uma o decalque da outra, nem as faz necessariamente condizentes em
seus pressupostos e resultados hermenêuticos.
Um exemplo pode ser visto na maneira como a nova hermenêutica
enfoca o antigo conceito de Geschichte tão essencial no método histórico-
crítico. Mas o que seria Geschichte? Entendido como história (mas não
necessariamente histórico) tanto na Redaktionsgeschichte (história da
redação) como em Formgeschichte (história da forma), esse termo passa a
discutir, na ênfase das novas hermenêuticas, não a suposta gênese histórica
dos textos ou a historicidade de seus relatos, mas, antes, a centralidade do
autor visto aqui como receptor da tradição mais antiga. Por isso vemos em
novos comentários uma sobrevalorização do lugar vivencial ou Sitz im Leben
do redator final.
O enfoque está no ponto de vista do redator final, da situação na qual se
efetuou a unidade do texto em relação aos elementos que ele mesmo recebeu.
Daí pula-se para a segunda etapa, que seria a compreensão atual do receptor
moderno que, por causa de sua autonomia cognitiva somada à relação de
causa e efeito (Aristóteles), pode ter uma compreensão igualmente legítima,
mas desassociada e independente do Sitz im Lebem do autor original.
Essas abordagens brotam da perspectiva denominada Reader Response
Criticism ou crítica da resposta do leitor. Trata-se de uma teoria literária pós-
moderna focada nas audiências ou experiências pessoais dos leitores de
qualquer obra literária. Essa teoria ganhou recente destaque entre os
acadêmicos por causa de sua ideologia contrária às teorias anteriores focadas
primariamente na forma ou conteúdo do texto.

A MORTE DO AUTOR

Embora o leitor/receptor sempre tenha tido um papel relevante no processo


de comunicação literária, foi só no século 20 que surgiram as teorias que
podemos designar, genericamente, por teorias de recepção, ou seja, teorias
cujo principal objeto de interesse é a resposta do público às obras literárias.
São duas as principais tendências teóricas orientadas para o leitor: as teorias
de resposta americanas e a estética da recepção alemã.
Em 1968, Roland Barthes escreveu um famoso ensaio intitulado “A
morte do autor”, no qual já dizia embrionariamente que “o leitor é o espaço
onde todas as palavras do texto são inscritas sem que nenhuma se perca, [e
que] a unidade do texto reside não na sua origem, mas no seu destino”. Ele
ainda dizia metaforicamente que o “nascimento do leitor” custaria a “morte
do autor”.
Barthes não queria com sua ideia dar ao leitor a palavra final sobre o
significado do texto. Ele apenas defendia a ideia de que o recebimento atual
de quem lê é a única preservação genuína que temos de uma obra literária.
Contudo, suas ideias muito contribuíram para a compreensão posterior de que
o sentido do texto não está mais no autor que o produziu, pois não temos
acesso objetivo à sua mente, mas no leitor que o interpreta.
Considerando a invalidação que estas abordagens trouxeram sobre o
método histórico-crítico, muitos cristãos conservadores tomaram
inadvertidamente seus pressupostos como princípios de uma ortodoxia
hermenêutica e acabaram, mesmo sem querer, minando a credibilidade da
Bíblia Sagrada.
Um exemplo disso é a chamada estética da recepção. Na Alemanha, essa
teoria recebeu o nome de Rezeptionästhetik [estética da recepção], e no
mundo anglo-americano, Reader Response Criticism [crítica à resposta do
leitor]. Por causa da dificuldade de tradução literal em português, autores
brasileiros geralmente se referem a ela pelo seu título inglês ou alemão.
Embora se registem diferentes pontos de vista nos proponentes desta
escola literária, os críticos parecem concordar, em síntese, que a interpretação
final do texto reside na importância do leitor não apenas como um tradutor-
intérprete do sentido do texto, mas como um interpretador criativo que pode
agir sobre esse sentido modificando-o. Em suma: pouco importa o que Paulo
tenha realmente dito ou intentado dizer ― isso está quase totalmente fora de
nosso alcance ―, o que importa é como o leitor moderno o entende a partir
de sua própria visão de mundo.
Alguns, porém, como Gadamer, defendem uma crítica centrada não
somente no leitor moderno, mas no público histórico, ou nos públicos, de
uma obra, no sentido em que o crítico deve estudar a relação entre a recepção
que ela teve no passado e a que tem no presente. A sua perspectiva é,
portanto, claramente histórica, já que sustenta que a forma como uma obra
literária, no momento histórico da sua apresentação, satisfaz, ultrapassa,
desilude ou refuta as expectativas do público. Contudo, mesmo essa
abordagem mais ampla mantém seu foco não na intenção autoral, mas
naqueles que receberam sua mensagem.
Embora haja pontos interessantes nestas abordagens, as implicações da
teoria da Rezeptionästhetik para o ensino e entendimento da Bíblia Sagrada
são deveras perigosas se tomadas em sentido extremo. Em primeiro lugar,
está o fato de que se relativiza a noção de verdade fazendo com que esta não
exista senão no nível pessoal do indivíduo. Já não existem fatos bíblicos, mas
apenas interpretações.
Em segundo lugar, há o problema crucial de considerar a Bíblia um livro
filosófico, mitológico, mas não uma redação objetiva de fatos que realmente
ocorreram na História da humanidade. Especialmente para os cristãos,
qualquer abordagem que negue a historicidade de Cristo e sua ressurreição
dentre os mortos liquida todos os valores morais, religiosos ou doutrinários
do cristianismo.
Por fim, em terceiro lugar, neste tipo de abordagem fere-se à orientação
das escrituras bíblicas como Palavra de Deus. Os proponentes da
Rezeptionästhetik geralmente abordam os textos bíblicos indevidamente.
Muitos desses críticos não conseguem ver que a Bíblia não deveria ser
classificada como literatura secular.
Interessante é notar que mesmo fora do ambiente bíblico houve autores
que criticaram fortemente essa abordagem literária (que também foi aplicada
à poesia secular). Considerados como o grande manifesto da nova crítica
americana contra o leitor, os ensaios de W.K. Wimsatt “The Intentional
Fallacy” e “The Affective Fallacy” (escrito com a colaboração de M.
Beardsley e publicado em 1954) denunciaram o estudo das causas, efeitos ou
resultados da poesia como sendo a maior falácia da crítica literária.

E A NOVA CRÍTICA LITERÁRIA?

A Nova crítica literária remonta a uma retomada do alegorismo alexandrino


proposto por Edmund Husserl (1859-1938) e sua abordagem fenomenológica.
Rompendo com o historicismo e com o empirismo, ele propôs uma nova
versão de idealismo que era a observação dos próprios processos mentais.
Para ele, a linguagem existe em um sentido “idealístico”, e a única certeza
absoluta é o conhecimento de nossa própria consciência, somado aos
processos mentais de nossa interação com a realidade.
Aplicando isso aos textos produzidos, ele dizia que o ideal era “deixar as
coisas aparecerem como elas eram” e evitar a todo custo colocar nossos
próprios pressupostos na leitura que fazemos (princípio do reducionismo
fenomenológico). O foco hermenêutico de Husserl era a experiência
imediata, pois “tudo o que não é imanente à consciência precisa ser
descartado”.
A fenomenologia de Husserl, portanto, foi um método filosófico de
interpretação da realidade (inclusive literária) segundo o qual tudo em redor
deve ser entendido como fenômeno puro. Logo, a consciência é apenas um
intencional ato da própria consciência. O sujeito que pensa, interpreta,
observa é inseparável do objeto pensado, interpretado, observado. A arte de
interpretar é uma revelação do ser e sua prática é o fenômeno pelo qual vem o
conhecimento real do mundo em redor.54
Numa tentativa de ir além da abordagem essencialista de Husserl,
Martin Heidegger, seu discípulo, apresentou uma teoria hermenêutica
existencialista no seu livro O ser e o tempo. É importante dizer que a palavra
“ser” (Dasein em alemão) tem um sentido especial nesta abordagem. Num
sentido imediato, ela significaria “estar lá” ou “estar no mundo”, mas
Heidegger argumentou que “o que é distintivo acerca da existência humana é
este ‘dom de ser’: nossas consciências não só projetam as coisas do mundo
como se sujeitam a este mesmo mundo através da própria natureza de existir
no mundo”.55
Heidegger rejeitou a noção de conhecimento histórico objetivo optando
por lançar-se no mundo da linguagem. Sua novidade em relação a Husserl é
que para ele jamais poderemos nos livrar de nossos pressupostos existenciais
a fim de lograr um conhecimento objetivo da realidade, por isso é impossível
encontrar em um texto um significado único que seja a expressão exata da
realidade. O ser, portanto, encontra-se em um círculo hermenêutico no qual o
conhecimento prévio será sempre uma leitura centrípeta do processo de
interpretação textual.
Baseado nestes insights, Hans-George Gadamer, um ex-aluno de
Heidegger e Bultmann, apresentou o que muitos consideram a primeira
sistematização que correlacionava coerentemente a linguística e a teoria
hermenêutica.56 Seguindo ainda teóricos linguísticos como Saussure, ele
ainda argumentaria que “é apenas através da linguagem que nós temos um
mundo”.57 Portanto, a fim de entender um texto nós precisamos realizar uma
fusão entre o horizonte de nosso próprio mundo e o mundo do texto com o
qual estamos interagindo. Isso cria uma dialética interpretativa e dá ao texto
um novo significado. A leitura não se limita a recriar em nossa mente as
condições contextuais do autor que estamos lendo.
Neste ponto é possível verificar o progresso, a dinâmica e a transição do
modelo de interpretação onde o autor possuía a autoridade final e única, para
o leitor, entendido como o árbitro definidor da mensagem de qualquer texto.
Como essa é a agenda interpretativa, sobretudo na América Latina, vemos
que o Reader Response Criticism projeta os outros modelos como:
hermenêutica black, hermenêutica feminista, hermenêutica ecológica,
hermenêutica da libertação, hermenêutica pós-colonialista, hermenêutica
queer etc. Muitos dizem que estas são as formas mais aceitáveis de
interpretação do texto bíblico. Leitores mais atentos, contudo, percebem os
perigos hermenêuticos de se impor ideologias externas ao texto bíblico
fazendo-o dizer o que jamais fora intentado por nenhum de seus autores.
Fora do ambiente teológico vieram então figuras-chave, como Monroe
Curtis Beardsley (1915-1985) e seu companheiro de pesquisas William K.
Wimsatt Jr. (1907-1975). Ambos ensinavam literatura e poesia em Yale e
juntos escreveram o famoso artigo “Intentional Fallacy”,58 que se tornou um
divisor de águas no mundo da teoria literária. Eles anunciavam taxativamente
a morte da intenção autoral. Em sua argumentação, uma vez que o processo
psicológico do autor estaria inacessível ao intérprete, não havia necessidade
alguma de se importar com ele. O que interessa é o leitor moderno que se
situa diante da poesia, e não o poeta e o contexto em que a escreveu.
Em pouco tempo, especialistas em hermenêutica bíblica começaram a se
interessar por essa nova abordagem. Uma das primeiras e principais
publicações voltadas a aplicar esses conceitos à Bíblia foi possivelmente a
obra de Hans W. Frei intitulada The Eclipse of Biblical Narrative: a Study in
Eighteenth and Nineteeth Century Hermeneutics, publicada em 1974. Nela,
Frei argumenta que os teólogos liberais com sua hermenêutica se mostraram
cada vez menos interessados em saber o que o texto diz, para se aventurar no
que possivelmente aconteceu e, portanto, estaria por trás da produção daquele
texto.
O resultado disto é que se tornou um desafio conviver com tantas
“críticas” propostas, pois cada acadêmico imaginava um contexto diferente
(Sitz im Leben) para a origem e desenvolvimento do texto. O autor continua
dizendo que até mesmo os acadêmicos mais conservadores caíram no mesmo
problema ao apresentarem suas propostas históricas sobre o que realmente
aconteceu no passado.
Frei não intencionava desmerecer as questões históricas, mas não as
considerou o mais importante. Para ele, o ideal hermenêutico deveria ser o
próprio texto em si. Afinal, argumentou ele, antes do surgimento do método
histórico-crítico os cristãos liam a Bíblia acreditando que Deus se encontraria
com eles através do texto e hoje não deveria ser diferente. A igreja deveria
buscar Deus no texto e não perder tempo com recriações imaginárias acerca
dele.59

ESTRUTURALISMO E DESCONSTRUCIONISMO

Esta abordagem centralizada no texto e popularizada por Frei foi uma das
primeiras, mas não a única proposta desta nova hermenêutica pós-moderna.
Duas outras propostas seguiram paralelas: o estruturalismo e o
desconstrucionismo.
O estruturalismo surgiu primeiramente na França, por volta dos anos
1960, como fruto da mesma virada linguística proposta por Beardsley,
Wimsatt Jr e que esteve nas bases da Nova crítica literária. Não se pode
esquecer, é claro, da linguística estrutural moderna fundada por Saussure ―
disciplina que gerou o estruturalismo propriamente dito ― e o formalismo
russo, que questionava de maneira contundente aquela abordagem literária de
formação positivista com excessivos pressupostos sociais e ideológicos,
reveladora de um artificial esforço teorizador imbuído de um impressionismo
fácil, privilégio de formadores ideológicos.60
Ambos, estruturalismo e formalismo russo, se uniram numa mesma
teoria que procurava definir as funções da linguagem, sendo mais relevante a
distinção entre a função referencial e a poética. A primeira faz uso da
linguagem denotativa, e a outra da conotativa. Qual é a diferença? A
linguagem denotativa está diretamente ligada à significação, ou seja, ao seu
sentido real, o sentido do verbete de dicionário. Já a linguagem conotativa
trabalha com figuras de linguagem, com uma extensão do sentido literal. Veja
os exemplos:
1. Colhi uma flor do jardim. (denotativo)
2. Sua filha é mesmo uma flor! (conotativo)

O reconhecimento e diferenciação entre ambas as linguagens contribuiu


para uma teoria literária cuja organização e estruturação se diferenciam da
linguagem cotidiana. Assim, textos devem ser lidos e estudados levando-se
em conta seus princípios específicos. O mais importante não é o significado,
mas o significante. A busca é pela gramaticalidade textual que revela a
estrutura humana de compreensão da realidade.61
O desconstrucionismo é um desdobramento do estruturalismo, mas
munido de um radical ceticismo em relação ao significado único de um
texto.62 Seus proponentes estão convencidos de que o texto é instável,
incoerente e sua interpretação é inevitavelmente plural e contraditória. Assim,
o leitor fica com duas opções: abandonar por completo qualquer tentativa de
interpretação ou encontrar um significado pessoal que flutue entre o texto, ele
(enquanto leitor) e as interpretações pluralísticas que o cercam. Como disse
Vanhoozer: “A Desconstrução não é um método de interpretação, mas antes,
um método de não interpretação, pois denuncia as leituras como as funções
de várias forças ideológicas.”63
O desconstrucionismo baseia-se especialmente em Foucault, um
intelectual brilhante, mas que não escondia sua vida dissoluta e
emocionalmente mal resolvida. Ele morreu em 1984, e seu principal legado
para a construção do pensamento pós-moderno foi a sistematização do
discurso (seja ele qual for) como sendo uma tentativa de alguns para exercer
sua influência sobre outros. Assim, se queremos entender algo sem nos deixar
levar pela influência do outro, devemos desconstruir os discursos que
escutamos.
A seguir veio Jacques Derrida, considerado por muitos o verdadeiro
fundador ou sistematizador da proposta desconstrutivista. Suas teses sobre a
indeterminação natural do sentido de um texto renderam-lhe um título
doutoral honorífico pela Universidade de Cambridge, em 1992. Para Derrida,
não existe em termos reais algo que possamos descobrir como “uma intenção
autoral” ou “um propósito pelo qual a obra tenha sido escrita”. As palavras
uma vez lidas por outra pessoa em outra geração, já não significam mais
aquilo que o autor um dia pretendeu que significassem. Cabe ao leitor dar um
significado pessoal para o texto independentemente da interpretação original
ou daquela sugerida pelos métodos hermenêuticos tradicionais.
O desconstrucionismo de Derrida coincide com a formulação do
conceito de “pós-estruturalismo”, de modo que hoje um está intimamente
associado ao outro. Contudo, o prefixo “pós” não deve ser interpretado como
uma contraposição ao estruturalismo. Pelo contrário, seus proponentes levam
às últimas consequências as propostas hermenêuticas surgidas no
estruturalismo. A diferença é que o anterior era centralizado no texto, e este,
no leitor do texto. O movimento pós-estruturalista e a proposta
desconstrucionista estão intimamente ligados ao pós-modernismo, mas isso
não significa que ambos sejam similares em tudo.64
As implicações destas propostas para a interpretação bíblica são sérias e
merecem reflexão. Nesta visão, a Palavra de Deus passa a ter múltiplos
significados, todos circunstancialmente válidos, não sendo possível
determinar qual é a verdadeira intenção do autor. Nas propostas pós-
modernas, o significado original do texto é indeterminável e, por isso mesmo,
relativo àqueles que o leem ou tomam conhecimento de seu conteúdo. Para
muitos, o estruturalismo e o desconstrutivismo pós-estruturalista representam
muito mais do que um método hermenêutico. Eles perfazem uma corrente
filosófica e, como tal, se aplicam a diversas disciplinas e propostas cognitivas
que usam a linguagem textual como principal ferramenta de comunicação. A
teologia é uma delas.65

OUTRAS ABORDAGENS E TENDÊNCIAS ATUAIS

▶ Criticismo retórico
Este é um movimento inspirado na expressão usada por James Muilenburg
num discurso pronunciado em 1968 quando era presidente da Society of
Biblical Literature.
Vários acadêmicos (tanto liberais quanto conservadores) têm se filiado
ao movimento. Nomes como Robert Alter, James Kugel, Meir Stenberg,
Adele Berlin, Richard Patterson e Tremper Longman são alguns dos que
engrossam a fileira do criticismo retórico. Mas em que consiste essa
abordagem? Trata-se de um estudo do texto bíblico que visa determinar os
padrões estruturais que o autor usou a fim de comunicar sua mensagem.66
Estes padrões incluem paralelismos, quiasmos, desenvolvimento temático,
palavras-gancho etc.
É um exercício com muitos elementos positivos, embora alguns o
objetem por usar ferramentas convencionais do criticismo literário. Uma de
suas vantagens é tentar descobrir os parâmetros de compreensão dos
remetentes originais a fim de entender por que o autor muitas vezes escreve
numa sequência ou concatenação de ideias estranha à nossa argumentação
ocidental. Mas existe o problema do artificialismo onde, por exemplo,
quiasmos forçados são encontrados no texto, demonstrando ser mais
estruturas imaginadas pelo exegeta moderno que intenção original do autor
inspirado.

▶ Análise do discurso

Esta abordagem pode ser considerada uma subdivisão da semiótica e um


desdobramento do criticismo retórico. Sua distinção está em enfatizar o
aspecto linguístico de uma construção literária como uma forma de
compreender a escolha que o autor fez dos modos de comunicar sua
mensagem à sua audiência em potencial.
No caso do Novo Testamento, a análise do discurso pode ser útil na
atenção que dá aos fatores textuais, como lugar, pessoas, tempos, diálogos
etc. que ajudam a elucidar o porquê daquela mensagem. Em outras palavras,
por que o apóstolo João escolheu abrir o evangelho com um testemunho de
João Batista acerca de Jesus Cristo? Por que ele apresentou os diálogos de
Jesus com a samaritana e com Nicodemos, mas não fez nenhuma menção a
qualquer conversa entre Jesus e José, o carpinteiro? Os detalhes de um
diálogo como o de Jesus e Pedro no final do mesmo evangelho elucidam
muita coisa acerca dos propósitos de produção dessa obra literária. Os
diálogos e discursos públicos são elementos especiais nesta abordagem que
busca, além dos elementos gramaticais e sintáticos, os resultados da
combinação desses elementos numa trama maior dentro do escopo literário
daquele autor.
Talvez o principal perigo desse método seja permitir à mente do leitor
moderno uma gama de imaginações que ultrapassem qualquer intenção ou
possibilidade de intenção ao autor inspirado. O uso desta técnica, portanto,
deve ser feito com muita cautela.67

▶ Criticismo narrativo

Este é um ramo ou uma forma especializada do criticismo retórico que lida


especificamente com as características de textos narrativos, a saber, sua
estrutura narrativa, sua composição, seus temas e motivos etc. A princípio, o
método pode ser confundido com o histórico-crítico, mas este se distingue
por tratar o texto como uma unidade literária única, e não como retalhos de
composição.
Sua inspiração é a narratologia, que pode ser entendida como a teoria e o
estudo da narrativa (incluindo sua estrutura) e os modos como ela afeta nossa
percepção da mensagem transmitida.68 É claro que a narrativa é apenas um
dos muitos gêneros literários da Bíblia, e, por isso mesmo, é importante
conceituá-la para não ser confundida. O risco, porém, é sobrevalorizá-la a
outros gêneros literários ou aplicar erroneamente suas ferramentas a gêneros
não narrativos.
Outro risco é o do anacronismo, aplicando ao estilo do autor elementos
próprios de narrativas modernas e que jamais seriam intentados pelo autor
sagrado. Como acentua Osborne, “a interpretação narrativa tem dois
aspectos: o poético, que estuda a dimensão artística ou o modo como o texto
foi construído pelo autor; e o significado que recria a mensagem que o autor
está comunicando. O ‘como’ (poético) conduz ao ‘que’ (significado).69

▶ Criticismo redacional

Uma vez que as origens desse método estão fortemente ligadas ao criticismo
liberal, muitos autores ainda nutrem sérias reservas ao seu uso e eficácia. Ao
ouvirem seu nome é quase inevitável a associação com as antigas fórmulas
alemãs do Redaktionsgeschichte, Kompositionsgeschichte ou
Redaktionstheologie. Afinal, esse método foi fortemente utilizado por
acadêmicos do Novo Testamento com o objetivo de negar a historicidade dos
evangelhos e dos principais elementos confessionais sobre a divindade de
Jesus de Nazaré.
Contudo, o termo “redacional” neste contexto refere-se apenas ao
processo de edição feito pelo próprio autor bíblico ou a certos acréscimos e
compilações maiores feitas, possivelmente, por algum editor. Exemplos de
edição aceitos nesta abordagem: atualizações simples como as de Gênesis
11:31;70 Êxodo 1:11; Deuteronômio 34; anotações titulares como Daniel
10:1; a reunião de duas ou três fases proféticas de Isaías num único livro etc.
O criticismo redacional, portanto, é o estudo das escolhas editoriais feita
pelos autores bíblicos a partir de todo o conjunto de informações que tinham
à sua disposição. Isso inclui detalhes como a ordem evangélica dos
acontecimentos, a ênfase num aspecto e não em outro etc. Estudos recentes
de comparação entre os sinóticos têm sido enriquecidos por esse tipo de
ferramenta exegética.71 Novamente, porém, é importante alertar contra o
perigo da especulação sobre reconstruções editoriais que estão além do nosso
alcance hermenêutico. O melhor, neste caso, é trabalhar com o texto como
produto final.72

▶ Criticismo cultural

Este movimento busca analisar a influência da Bíblia sobre a tradição


ocidental (antiga e moderna) e, ao mesmo tempo, como a cultura
sociopolítica de uma região e uma época específicas interfere na interpretação
bíblica por parte dos crentes. Alguns entendem que a prática atual do
criticismo cultural poderia ser chamada de criticismo ideológico.73
Leituras feministas, resquícios da teologia da libertação, leituras
afrocêntricas e outras pós-colonialistas são desdobramentos do criticismo
cultural.
O grande problema com este método é que ele submete o significado do
texto bíblico às realidades culturais, ou seja, a Bíblia é o produto de
ideologias sociais, e não de uma revelação direta de Deus. Ademais, sua
ênfase no diálogo inter-religioso como ponto de partida para a exegese torna
inútil a busca por qualquer interpretação definitiva das Escrituras. Afinal, o
texto nada mais é do que um conjunto de dimensões ideológicas se
reafirmando num contexto profético/escriturístico.74
▶ Intertextualidade

O estudo da intertextualidade é relativamente recente no campo da


hermenêutica bíblica. Por um tempo foi, como o criticismo redacional, uma
ferramenta de uso quase exclusivo da crítica literária, mas hoje tem sido
usada tanto por acadêmicos liberais como por conservadores. Como é uma
abordagem que brota entre os teóricos da crítica literária, com pressupostos
diferentes da abordagem bíblica, é preciso considerar sua origem e os
possíveis riscos, demonstrando claramente as diferenças da intertextualidade
bíblica com a intertextualidade do campo da teoria literária.
Em linhas gerais, a intertextualidade é uma abordagem que sugere ao
leitor a realidade de que todos os autores (modernos ou antigos) escreveram
seus textos desde a perspectiva de textos anteriores, orais ou escritos.75 Essa
relação intertextual, é importante dizer, não precisa ser uma citação ipsis
litteris nem mesmo uma relação ipso facto, ou seja, a correlação entre dois
textos anularia ipso facto a possibilidade de outras correlações. A
intertextualidade, portanto, se ocupa da verificação dos intertextos, que são os
textos que compõem esse diálogo, na busca de uma melhor compreensão do
sentido do texto final que estamos analisando.
Mas atenção: existem duas abordagens dentro da intertextualidade que
precisam ser diferenciadas — a sincrônica e a diacrônica. Ambas têm em
comum o reconhecimento da ampla interdependência entre os escritos
escriturísticos. Mas as semelhanças terminam nesse aspecto. De forma
diametralmente oposta ao método diacrônico, a abordagem sincrônica
considera o texto em sua forma canônica ou final. O objetivo não é verificar
como ou quando o escrito foi concluído, e sim seu papel dentro da unidade
escriturística. Como esse intertexto ajuda na compreensão da mensagem
intencionada pelo produtor? Por que o autor recorreu a esse intertexto? Qual é
o sentido desse intertexto no contexto original?
Já a forma diacrônica, herdeira não modificada do método histórico-
crítico, procura reconstruir a formação do texto ao longo do tempo, exercício
considerado desnecessário dentro da abordagem sincrônica.
O grande mérito da intertextualidade é o reconhecimento de que o autor
não escreveu num vácuo nem dependeu de qualquer inspiração verbal para
reproduzir o conteúdo que lhe foi especialmente revelado. Ele interagiu com
o universo em que vivia. Essa relação intertextual certamente ocorreu de um
modo “pluralístico”: na forma temática, estilística, contraditória, corretiva,
confirmativa, parafraseada, implícita, explícita ou até tipológica (no caso da
aplicação neotestamentária de textos do Antigo Testamento).76 Não se trata,
porém, de dependência literária ou de redução do fenômeno escriturístico a
fruto literário da cultura do profeta. É revelação de Deus, matizada num
tempo e cultura específicos sem a perda da originalidade de inspiração divina.
51 Veja John B. Gabel. “The New Biblical Criticism and ‘The Literary Guide to the Bible’”. Modern
Language Studies 20:1 (Winter, 1990): 24-37; E. Charpentier, Une initiation à l’analyse structurale.
Paris: Editions Du Cerf, 1976, p. 5-27; B. Van Iersel. “O exegeta e a linguística” in Concilium: teologia
fundamental. os deslocamentos atuais e o futuro da teologia. Petrópolis, v.135, n. 5, 1978.

52 Helen Gardner. The Business of Criticism. Oxford: Oxford University Press, 1959, p. 97.

53 Ferdinand de Saussure. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 96.

54 Terry Eagleton. Literary Theory: a An Introduction. Minneapolis: University of Minnesota Press,


1983, p. 54; e Jaques Derrida. Speech and Phenomena: and Other Essays on Husserl’s Theory of Signs
Evanston, Il: Northwestern University Press, 1979, p. 55-64.

55 Apud R. Selden e P. Widdowson, A. Eds. Reader’s Guide to Contemporary Literary Theory. 4. ed.
Londres: Harvester, 1997. p. 52.

56 Brice R. Wachterhauser. Hermeneutics and Modern Philosophy. Nova Iorque: Nova Iorque
University Press, 1991, p. 31.

57 Idem.

58 Wimsatt, William e Monroe C. Beardsley. “The Intentional Fallacy” in The Verbal Icon: Studies in
the Meaning of Poetry. Lexington: University of Kentucky, 1954, 3-18. Este artigo está reproduzido no
livro de Nigel Warburton, Ed., Philosophy Basic Readings. Nova Iorque: Routledge, 2004, p. 480-492.

59 Veja mais sobre esta abordagem no trabalho de Northrop Frye, The Great Code: the Bible and
Literature. Nova Iorque : Harcourt Brace, 1982.

60 C. Reis, Técnicas de análise textual. Lisboa: Almedina, 1992, p. 54.

61 Embora, a bem da verdade, um dos grandes impasses dos teóricos literários é a definição uniforme
de “estrutura”. V. M. Aguiar e Silva, Teoria da literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1973 8ª. Ed.,
23.
62 Fernando Canale, “Desconstrución y Teología: Una propuesta Metodológica” in DavarLogos 1.1
(2002): p. 3-26.

63 Kevin J. Vanhoozer. “The Reader in the New Testament Interpretation” in Hearing the New
Testament [Ed. Joel B. Green]. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995, p. 313-314.

64 M. Peters. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte, MG: Ed. Autêntica, 2000, p.
43.

65 Embora aplicados ao Antigo Testamento, veja exemplos desta abordagem em J. Cheryl Exum e
David J. A. Clines (eds.), The New Literary Criticism and the Hebrew Bible JSOTSup, 143. Sheffield:
JSOT Press, 1993.

66 Não confunda com o estruturalismo que abordamos acima.

67 E. Porter e J. T. Reed (eds), Discourse Analysis and the New Testament: Approaches and Result.
Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999; D. A. Carson [ed] Discourse Analysis and Other Topics in
Biblical Greek. Sheffield: JSOT Press, 1995.

68 Gerald Prince. “Narratology”, in Johns Hopkins Guide to Literary Theory and Criticism (ed.)
Michael Groden e Martin Kreiswirth. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1994, p. 524.

69 Grant R. Osborne. The Hermeneutical Spiral. Downers Grove: InterVarsity Press, 1991, p. 154

70 A cidade de Ur é conhecida e muito antiga, mas o termo “Caldeia” é problemático. Os caldeus só


surgem nos textos assírios no século 9 a.C. Além disso, referir-se a “Ur dos caldeus” pressupõe a
ascensão ao poder dos caldeus, ou seja babilônicos, que só ocorre no final do século 7 a.C. No início do
segundo milênio, talvez se dissesse “Ur dos sumérios”.

71 Johannes C. De Klerk. “Situating Biblical Narrative Studies in Literary Theory and Literary
Approaches” Religion & Theology 4/3 (1997) in http://www.unisa.ac.za/default.asp?
Cmd=ViewContent&ContentID=7379&P_ForPrint=1.

72 Sobre a cautela com que se deve empregar esta ferramenta crítico-narrativa veja D. A. Carson,
“Redaction Criticism: On the Legitimacy and Illegitimacy of a Literary Tool” in Scripture and Truth D.
A. Carson e John Woodbridge [Eds] Grand Rapids, MI: Zondervan, 1983, p. 119-142.

73 Richard N. Soulen e R. Kendall Soulen, Handbook of Biblical Criticism, 3th ed. revised and
expanded. Atlanta, Ga, John Knox, 1981, p. 23.

74 Para um posicionamento dos fatores positivos e negativos do criticismo cultural para uma
hermenêutica conservadora das Escrituras veja: Gerald A. Klingbeil. “Cultural Criticism and Biblical
Hermeneutics: Definition, Origins, Benefits, and Challenges”. Bulletin for Biblical Research 15 (2005):
261-77.

75 Como disse H. R. Elam: “Texts are fragments without closure or resolution. No text is self-
sufficient; each text is fraught with explicit or invisible quotation marks that dispel the illusion of its
autonomy and refer endlessly to other texts…”. “Intertextuality” in The New Princeton Handbook of
Poetic Terms Princeton, NJ: Princeton University Press, 1994, p. 141-143.

76 Maria Flávia de Figueiredo Pereira Bollela. “A intertextualidade no texto bíblico”. Coleção


Mestrado em Linguística. Vol. 2 (2007). Disponível em:
<http://publicacoes.unifran.br/index.php/colecaoMestradoEmLinguistica/search/titles>.
CAPÍTULO QUATORZE

CONHECIMENTO
QUE LIBERTA

LER PARA COMPREENDER


É muito comum vermos em automóveis, folhetos, ou até mesmo em igrejas,
uma frase motivacional que diz: “Leia a Bíblia!” As intenções de marketing
desejadas pelos criadores do slogan certamente devem ter sido as melhores.
Contudo, um uso inadvertido do conselho pode resultar em um sério estrago
espiritual. Nas linhas seguintes você entenderá o porquê.
Ler é um exercício muito importante, aliás, a leitura deveria ser um
hábito diário independentemente de idade ou profissão que cada um ocupa.
Poucas práticas possuem tantos benefícios para o corpo e para a mente
quanto pegar um bom livro, esquecer o mundo ao redor e devorá-lo numa
leitura meditativa. Dizem os especialistas em comportamento humano que o
hábito de ler provoca muitos resultados positivos, como melhoria da saúde,
potencialização da criatividade, exercício da reflexão e clareza na arte de
comunicar o que se pensa. Se é assim no campo secular, imagine no campo
espiritual!
Para aqueles que têm a Bíblia Sagrada como fonte de fé e ensino, o
dever da leitura deveria ser quase uma doutrina ao lado de outros
imperativos, como a oração, a caridade e a evangelização. É claro que muitos
que se convertem ao cristianismo não tiveram a oportunidade de aprender a
ler e escrever, o que, de modo algum lhes exclui do corpo de Cristo, tanto é
assim que existem muitos fiéis de poucas letras que arrancam lágrimas de um
acadêmico ao testemunharem de forma simples como foram transformados
pela palavra de Deus.
Essa realidade, no entanto, não ofusca uma trágica realidade dos dias
atuais: o analfabetismo funcional. O que é isso? É aquele fenômeno
largamente presente na sociedade atual na qual as pessoas, ainda que
tecnicamente alfabetizadas, não conseguem compreender corretamente aquilo
que leem, mesmo que seja um texto simples.
Essa situação chega a ser paradoxal se considerarmos que nunca na
História da humanidade as pessoas leram tanto e foram tão expostas à
informação cotidiana. Só para que você tenha uma ideia do que isso significa,
uma edição de um jornal como o New York Times contém atualmente mais
informação do que uma pessoa comum poderia receber durante toda a vida na
Inglaterra do século 17.
Os percentuais de alfabetização dos tempos antigos também eram muito
baixos. O número dos que sabiam ler no Egito, Mesopotâmia e corredor siro-
palestino variava de cidade para cidade. Os autores mais otimistas pensam
que, dependendo do lugar ― uma capital, por exemplo ―, poderia chegar a
7%, mas em média era menos de 1% da população geral.77
A partir do período helenístico e greco-romano, que abarca a época em
que foi produzido o Novo Testamento, as taxas de alfabetização aumentaram
consideravelmente. Acredita-se que a alfabetização nos tempos greco-
romanos na Grécia e na Itália girava em torno de 10% a 15% da população,
dependendo da região e da língua (grega ou latina). Entre certos grupos,
como as tropas de cavalaria no século 2 d.C., as taxas de alfabetização podem
ser calculadas em pelo menos 34%.78 A grande quantidade de documentos
encontrados em Oxirrinco, no Egito, ajuda-nos a apoiar a ideia de que a
alfabetização era alta no Oriente Médio naquele período, porque as
descobertas atestam vários gêneros textuais entre uma variedade de
classificações socioeconômicas. Mesmo assim, fora desse recorte geográfico,
o percentual de cidadãos que sabiam ler e escrever continuava baixíssimo.

ISRAEL, UMA EXCEÇÃO?

Um dos grandes debates da atualidade consiste em determinar que


percentagem de israelitas dos tempos bíblicos seria capaz de ler e escrever
com fluência. O primeiro desafio é trabalhar com fragmentos de evidência,
uma vez que muitos documentos se perderam ou foram deliberadamente
destruídos.
Outro problema é definir o que se quer dizer por “alfabetizado” e que
grau de capacitação literária seria necessário para considerar uma pessoa
“educada”. De qualquer modo, há quatro posicionamentos entre os
acadêmicos:

1. Os israelitas tinham ranking de alfabetização inferior a outros povos e só


começaram sua atividade de escrita tardiamente após os séculos 9 a.C.
ou 8 a.C.
2. Os israelitas tinham o mesmo ranking das nações vizinhas que seria
menos de 1% da população alfabetizada.
3. Os israelitas, por serem o “Povo do Livro” (título dado tardiamente pelo
Alcorão), teriam dado maior ênfase à alfabetização de crianças que as
nações vizinhas.
4. Os israelitas teriam uma ênfase literária diferente de outros povos, pois
eram treinados para memorizar as Escrituras através da audição, e não
da leitura direta de suas páginas.

Qualquer estimativa, acadêmica ou não, das antigas taxas de


alfabetização judaica é um tanto hipotética ou talvez especulativa. É dificil ter
uma posição para além de qualquer questionamento. Há autores, por
exemplo, que estimam a percentagem de judeus alfabetizados como sendo
menor que a do Império Romano, que flutuaria entre 10% a 15% da
população, incluindo mulheres.79 Meir Bar Ilan, por exemplo, estima em no
máximo 3%.80
A questão naturalmente depende do que se entende por “alfabetização”.
Se “a alfabetização é determinada como a capacidade de ler documentos,
cartas e textos literários ‘simples’ em pelo menos um idioma e escrever mais
de uma assinatura”, então esse percentual poderia ser maior. Uma certeza
absoluta, no entanto, é dificil de ser concebida.
O que se pode dizer com base no testemunho bíblico é que havia um
interesse na base da formação do povo de Israel, para que seus filhos
conhecessem o conteúdo da chamada Sagrada Escritura. E provavelmente
esse interesse pela Torá tornava a instrução bastante difundida, senão pela
leitura direta, pelo menos por exercícios de memorização que fariam o judeu,
desde a mais tenra idade, ter contato com o conteúdo da Palavra de Deus e
aprendê-la de cor, citanto trechos inteiros se preciso fosse.
Sendo assim, pelo menos os líderes das sinagogas deveriam saber ler e
apresentar os rudimentos da alfabetização para os mais novos. Afinal, a
instrução elementar na Lei era necessariamente combinada com instrução de
leitura. Um conhecimento da leitura deve, portanto, ser assumido em toda
parte, onde existisse um conhecimento um pouco mais completo da Lei. Por
isso, encontramos, mesmo nos tempos pré-cristãos, livros da Lei na posse de
judeus comuns que não pertenciam à elite do povo. É o caso da biblioteca
encontrada nas grutas do Mar Morto.
Os Manuscritos do Mar Morto compreendem uma das maiores coleções
de documentos encontrados no território de Israel. Vários documentos
escritos em hebraico, aramaico e grego sobrevieram de vários locais perto do
Mar Morto e datam do período greco-romano. Talvez o mais importante
desses documentos para uma discussão sobre alfabetização sejam aqueles que
foram encontrados em outros locais além de Qumran, o local próximo ao qual
a maioria dos pergaminhos foi encontrada. Eles demonstram uma variedade
de pessoas que se dedicaram à escrita em vários idiomas.
No Novo Testamento, Paulo, que era um homem instruído, mas não
necessariamente um “escriba”, enviava cartas aos membros das igrejas que
provavelmente também não eram “escribas”. Ele mesmo não redigiu todas as
cartas, mas usou secretários (Romanos 16:22), embora tomasse o cuidado de
assiná-las com sua própria caligrafia (Romanos 16:21). Isso não indica,
contudo, que não soubesse ler ou escrever. Além disso, Jesus é um exemplo a
ser tomado, pois mesmo sendo um carpinteiro, era capaz de ler e escrever
como vemos em passagens nos livros de Lucas 4:16 e João 8:6-8. Note que a
controvérsia com os judeus não surgiu em torno da capacidade que Jesus
tinha de ler, mas de suas credenciais para interpretar as Escrituras diante do
povo (João 7:15).

Uma antiga tradição

Hoje não é difícil ver um


judeu religioso usando tiras
de couro no braço e na testa
durante o momento de
oração. Essa tira é
conectada a uma caixinha
preta chamada Tefilin ou
filactério, que contém uma
porção das Escrituras a
qual devem memorizar e
obedecer. De igual modo,
famílias judaicas
tradicionais costumam
colocar um pequeno
amuleto no batente das
portas chamado Mezuzá,
cujo objetivo não é trazer
sorte nem espantar o azar,
mas manter viva a aliança
feita com Deus no passado.
Ambos os elementos
(Tefilin e Mezuzá)
encontram sua origem na
Escritura Sagrada, que diz:

Ponde, pois, estas


minhas palavras no
vosso coração e na
vossa alma, e atai-as
por sinal na vossa
mão, para que estejam
por frontais entre os
vossos olhos. E
ensinai-as a vossos
filhos, falando delas
assentado em tua casa,
e andando pelo
caminho, e deitando-
te, e levantando-te; E
escreve-as nos
umbrais de tua casa, e
nas tuas portas; Para
que se multipliquem
os vossos dias e os
dias de vossos filhos
na terra que o Senhor
jurou a vossos pais
dar-lhes, como os dias
dos céus sobre a terra.
Deuteronômio 11:18-
21

INFORMAÇÃO VERSUS CONHECIMENTO

Hoje, o índice de pessoas alfabetizadas é realmente bem maior, mesmo nas


cidades menos desenvolvidas. Não obstante, a sociedade moderna lida com
dois problemas que não faziam parte das antigas gerações: excesso de
informação e o que definimos como analfabetismo funcional.
Todos os anos são produzidos 1,5 bilhão de gigabytes em informação
impressa, filmes ou arquivos magnéticos, o que daria uma média de 250
megabytes de informação para cada habitante do planeta. Isso sem contar os
mais de 3 bilhões de páginas disponíveis na internet.
Chega a ser irônico que numa sociedade tão repleta de informações isso
se torne uma angústia mundial. As pessoas hoje parecem estar sofrendo
porque não conseguem assimilar tudo o que é produzido para aplacar
exatamente aquela sede humana por mais e mais conhecimento. Aliás, de
acordo com o capítulo 3 do Gênesis, foi justamente essa sede, em conjunto
com a vontade de ser “igual a Deus”, que levou Eva a comer da árvore do
conhecimento do bem e do mal.
Por outro lado, em conjunto com a exacerbação de dados que
recebemos, uma grande parte da população (50% só no Brasil) prefere não ler
livros porque, embora sejam capazes de reconhecer as letras, números e
palavras, não se sentem capazes de discernir apropriadamente o conteúdo do
que leram.81
Aplicando isso à realidade cristã que tem a Bíblia como livro por
excelência e norma de comportamento para o seguidor de Jesus Cristo,
compreende-se que uma grande parte dos cristãos está em risco de ler, mas
não compreender exatamente o que está escrito na Palavra de Deus. Por isso,
é imperativo dizer que, mais do que apenas ler a Bíblia, o cristão tem o dever
de estudá-la e, a partir do estudo, praticar seus ensinamentos.
A prova maior de que a quantidade enorme de bíblias disponíveis não é
compatível com o conhecimento daqueles que a possuem pode ser visto nos
desconcertantes números que as pesquisas apresentam. Falando da realidade
dos Estados Unidos, país que no passado mandou o maior número de
missionários para o mundo afora, o Instituto Barna de pesquisa e outras
fontes apresentaram os seguintes dados:82 a Bíblia traduzida em inglês
continua a ser o livro mais popular do mundo. Todos os anos, cerca de 25
milhões de Bíblias são vendidas nos Estados Unidos,83 faturando para as
editoras bíblicas mais de meio bilhão de dólares por ano.84 Nove em cada dez
lares americanos têm uma Bíblia, sem contar os aplicativos eletrônicos que
certamente demonstram haver mais versões da Bíblia que número de
habitantes nos Estados Unidos.85
Não obstante, embora a maioria das pessoas possuam uma ou mais
bíblias, pouco mais de 37% dos americanos leem o livro sagrado uma vez por
semana ou mais. Mais de um quarto, ou 26%, nunca leu a Bíblia mesmo
vivendo na América do Norte.
Embora 81% em média dissesse conhecer a Bíblia Sagrada, apenas 59%
desse montante afirmou lê-la ocasionalmente. Ainda no grupo que dizia
conhecer o Santo Livro, apenas 37% conseguiram dizer o nome dos quatro
evangelhos, somente 42% dos adultos conseguiram dizer o que eram os Dez
Mandamentos; apenas 43% foram capazes de nomear os cinco primeiros
livros da Bíblia. A metade desconhecia que João Batista não fazia parte dos
12 apóstolos; e 58% não souberam responder quem pregou o Sermão do
Monte.
Quatro em cada dez adultos (38%) acreditam que toda a Bíblia foi
escrita várias décadas após a morte e ressurreição de Jesus. Embora isso
pareça ser verdade para o Novo Testamento, todo o Antigo Testamento foi
escrito centenas de anos antes do nascimento de Jesus Cristo.
Quase dois em cada três adultos (62%) sabem que o livro de Isaías está
no Antigo Testamento, e uma em cada dez pessoas (11%) acredita estar no
Novo Testamento. Um em cada quatro (27%) não sabe.
Doze por cento dos adultos acreditam que o nome da esposa de Noé era
Joana d’Arc. A Bíblia não fornece o nome dela. O equívoco pode ter se dado
pela correção inglesa entre arca (arc) e o sobrenome de Joana “D’Arc”.
Uma em cada seis pessoas (16%) acredita que um dos livros do Novo
Testamento é o Livro de Tomé, escrito pelo apóstolo de Jesus. Outro terço da
população não tem certeza se existe ou não tal livro no Novo Testamento.
Metade dos adultos (49%) acredita que a Bíblia ensina que o dinheiro é
a raiz de todos os males quando na verdade o que se diz é que “o amor ao
dinheiro é a raiz de todo mal” (1Timóteo 6:10, grifo nosso). Um terço (37%)
discorda que essa afirmação estaria na Bíblia e 14% não soube opinar.
A maioria dos adultos (56%) está convencida de que a Bíblia proclama
que a tarefa mais importante da vida é cuidar da família, e três quartos dos
entrevistados (75%) acreditam que a Bíblia contém a expressão “Deus ajuda
a quem cedo madruga”.

Enquanto isso, no
Brasil…

No Brasil, dos que leem,


apenas 42% dizem ler
ocasionalmente a Bíblia, o
que significa que temos, na
melhor das hipóteses, 101
milhões de brasileiros que
simplesmente não leem ou
nunca leram a Bíblia
Sagrada. Esses dados são
da 4ª edição da pesquisa
“Retratos da Leitura no
Brasil”, desenvolvida pelo
Instituto Pró-Livro em
conjunto com o IBOPE e
publicada em 2016.

Vale notar que no Brasil a


Bíblia é lida por
praticamente todas as
categorias de adultos,
mesmo pelos que se
declaram agnósticos ou
ateus, mas são pelo menos
três vezes mais lidas entre
protestantes (9,8%) e
evangélicos em geral
(12,26%) do que entre
católicos (2,82%) e
kardecistas (2,54%).
Contudo, mesmo sendo o
campeão no ranking dos
clássicos, apenas 5% dos
entrevistados apontaram a
Bíblia como o livro mais
marcante de sua vida.

COMO JESUS LIA AS ESCRITURAS?


Como Jesus lia as Escrituras de seu tempo? Em primeiro lugar, ele
interpretou o Antigo Testamento como uma fonte histórica literal. Ele assim
entendia a criação de Adão e Eva (Mateus 13:35; 25:34; Marcos 10:6); Noé e
o dilúvio universal (Mateus 24:38-39; Lucas 17:26-27); Jonas e o Grande
Peixe (Mateus 12:39-41); Sodoma e Gomorra (Mateus 10:15); e, finalmente,
o relato de Ló e sua esposa se tornando uma estátua de sal (Lucas 17:28-29).
Ademais, Jesus enaltecia a divina inspiração das Escrituras (Mateus
22:43), sua permanência até o fim (Mateus 7:17-18), sua historicidade
(Mateus 12:40; 24:37), e ainda sua posição como autoridade final (Mateus
4:4,7,10).
Mas, e qual seria a relação entre Jesus, enquanto intérprete bíblico, e os
métodos e metodologias usados em seu tempo? Até que ponto Jesus
concordou ou distanciou-se das formas como seus contemporâneos judeus
interpretavam o Antigo Testamento? Bem, essas são perguntas profundas que
merecem ser discutidas. Resolver a questão como intentou Robert Lightner,
afirmando que Jesus usou o método histórico-gramatical e “ponto final”, seria
um anacronismo sem nenhum sentido.86
Infelizmente são poucas as informações contemporâneas. Contudo,
temos boas pistas para levantar um quadro da originalidade, continuidade e
influências da metodologia de Jesus em relação ao judaísmo de seu tempo.
Nossas principais fontes (além, é claro, do Novo Testamento) são: os
materiais da isolada seita de Qumran, os escritos de Filo, as fontes rabínicas
(que apesar de majoritariamente posteriores ao tempo de Jesus podem
espelhar tradições anteriores) e, finalmente, a pseudoepigrafia que, apesar do
caráter heterodoxo, sinaliza rumos tomados pelo judaísmo do 1º século.
Todas essas fontes, é claro, devem ser analisadas e comparadas com muita
cautela para se evitar anacronismos e paralelos artificiais. A única coisa mais
conclusiva que pode ser dita é que nos tempos de Jesus já existia uma
variedade de metodologias interpretativas dependendo do grupo a que se
pertencia.
De modo resumido podemos dizer que, em termos de exegese, Jesus
seguiu modelos já existentes em seu tempo. Como qualquer religioso judeu
de seus dias, ele dividia as Escrituras em três coleções: a Lei, os profetas e os
Salmos (Lucas 24:44). Em algumas vezes, a divisão aparece em duas
coleções: a lei e os profetas (Mateus 5:17; João 1:45), em outras, apenas uma
única coleção é mencionada para abarcar a todos. Ao citar o salmo 82:6, por
exemplo, Jesus se refere à passagem como “a lei” (João 10:34). Essa forma
plural e ao mesmo tempo única de se referir à coleção de livros do Antigo
Testamento era comum também na literatura judaica contemporânea, como
no caso de Qumran.
Jesus, como os judeus de seu tempo, também tinha uma visão
messiânica de Daniel 7:13,14 e Zacarias 9:9,10 — interpretação que
encontramos igualmente em Qumran. De igual modo, ele ainda apontava para
o elemento escatológico destas passagens.87 Certa feita, ele concordou
parcialmente com a interpretação farisaica ao responder um desafio lógico
dos saduceus que não acreditavam na ressurreição (Mateus 22:30). Em outra
assumiu uma postura ética sobre o casamento e divórcio também defendida
posteriormente pela escola rabínica de Shammai em contraste com a escola
de Hillel (Lucas 16:18).
Certa vez, um gentio chegou a Shammai com uma estranha requisição:
“Enquanto eu fico em pé numa só perna, resuma-me a lei e os profetas.”
Shammai o mandou embora dizendo ser aquilo algo impossível e que ele não
deveria perder tempo com isso. Então, esse gentio foi a Hillel com o mesmo
pedido. Em vez de ser mandado embora recebeu a seguinte resposta: “O que
você detesta que façam com você, não faça a seu semelhante — esta é a lei
inteira, o resto é comentário —, agora vá e estude.”88 Há um paralelo claro
entre Hillel e Jesus no episódio de Mateus 7:12, embora Jesus mude
radicalmente a ordem negativa e, portanto, passiva, por uma determinação
ativa.
Exemplos como estes mostram que Jesus às vezes concordava, às vezes
discordava, às vezes superava as interpretações de seu tempo. Nos pontos
básicos ele parecia concordar com os métodos exegéticos mais conservadores
de seu tempo, especialmente os de cunho histórico que rejeitavam o
alegorismo de Filo. Mas também criticava o preterismo hermenêutico que
não atualizada o sentido do texto. Jesus, portanto, tinha um método próprio e
original, mas não inteiramente “inovador”, pois ele concordava com uma
tradição que lhe antecedia, embora não ficasse sempre preso a ela. Veja, por
exemplo, sua apresentação de Isaías na sinagoga de Nazaré. O texto que
originalmente era nacionalista, torna-se nos lábios de Jesus em uma promessa
que abarca os gentios.89
Jesus também usou tipologias como em Mateus 12:38-40 (Lucas 11:29-
30) ao comparar o sinal pedido por sua geração ao “sinal de Jonas” e os três
dias no ventre do peixe com os três dias de permanência de seu corpo no
sepulcro. Mas note que a tipologia nunca negava o caráter literal e histórico
do evento invocado.
O uso da interpretação do tipo Pesher é igualmente encontradiça nos
ensinos de Jesus. Pesher, apenas para lembrar, seria aquele tipo interpretativo
que busca descobrir um significado escatológico ou messiânico no texto. O
intérprete parte do pressuposto de que as escrituras hebraicas continham
referências escatológicas que permaneceriam ocultas até o grande Eschaton e
que o primeiro século d.C. (época de Jesus e destes intérpretes) era o grande
tempo de se descortinarem essas profecias. Muitos pesharim definiam dois
níveis de interpretação do texto, um superficial e outro mais profundo. O
superficial, para os iniciantes, e o profundo, para os amadurecidos e mestres.
Por isso, não é anormal que se encontrem novas conexões entre o texto
antigo e este novo significado escatológico daqueles dias. Em Qumran há
vários exemplos que contribuem para entender por que certas “profecias
messiânicas” mencionadas por Jesus ou pelos evangelistas parecem tão
distantes de seu contexto original. O que parece ser uma descontextualização
artificial do texto veterotestamentário era uma hermenêutica judaica comum
no período do segundo templo. Para não cair numa pluralidade sem fim de
interpretações livres, a validade do Pesher dependia da autoridade do
intérprete.
Temos assim, por exemplo, a interpretação que Jesus faz de Salmos
118:22-23 (Marcos 12:10-11; Mateus 21:42-44; Lucas 20:17-18). Ele liga sua
rejeição como Messias à rejeição da pedra de esquina. Note que o salmo 118
é originalmente um salmo de entronização do rei davídico que mostra a
preferência de Deus em contraste com a preferência do povo (Salmos 118:22-
23). O mesmo salmo era interpretado de modo messiânico no Midrash do
salmo 118:22 (uma interpretação que Jesus e seus ouvintes possivelmente
conheciam).
E quanto ao texto utilizado por Jesus? Ele seguia a LXX ou o texto
hebraico? São perguntas difíceis de responder de modo rápido e que tem
suscitado certo debate entre os especialistas. Se nos basearmos no testemunho
dos evangelhos, é possível dizer que Jesus não se prendeu a um único texto
escrituristico.90 Algumas vezes, nós o vemos citando o texto de memória,
outras o adaptando ou até o parafraseando.
Em determinadas passagens ele tem como pano de fundo o texto
hebraico protomassorético, que certamente estaria por detrás da LXX. Na
maioria, porém, ele parece seguir a LXX e, em algumas citações, uma
paráfrase aramaica. Exemplos: em Jeremias 6:16 temos a expressão “achareis
descanso para as vossas almas”, que Jesus também menciona em Mateus
11:29. Ora, o termo “descanso” (em grego anapausin) reflete melhor o
hebraico nirgw’ (descanso), e não a versão da LXX que verte o texto como
“achareis purificação (hagnismon) para vossas almas”. Na parábola do
semeador (Marcos 4:26-29) Jesus estaria possivelmente aludindo ao texto de
Joel 3:13. Note que Marcos usa a expressão “therismos” para falar da
colheita, e não o termo “trygetos” (vindima) que aparece na LXX. Ora,
therismos está mais ligado ao hebraico gsyr que à tradução opcional da LXX.
Marcos 13:8 traz a advertência de Jesus de que no futuro se levantaria
“nação contra nação, reino contra reino”. Novamente uma alusão mais
correlata ao texto hebraico de Isaías 19:2 que traz em parte: “cidade contra
cidade, reino contra reino”. Já o texto da LXX traduz a passagem como
“cidade contra cidade, reino contra reino, província contra província”.
Na instituição da ceia pascal, Jesus fala de seu sangue “derramado
(ekchynnomenon) em benefício de muitos” (Marcos 14:24). Uma alusão clara
a Isaías 53:12 que diz em hebraico “[ele] derramou sua alma na morte”. A
LXX, em contraste, traz “sua alma foi dada sobre (paredothe) a morte”.
Mas há, como dissemos, muitos paralelos (a maioria deles) com a LXX.
Exemplos: a citação de Isaías 29:13 em Marcos 7:6,7, a citação do Salmo 8:2
em Mateus 21:16; a citação de Isaías 35:5,6; 26:19 e 61:1 em Mateus 11:5
(Lucas 7:22) etc.
Não se pode, contudo, afirmar taxativamente que Jesus lia a versão da
LXX e dependia primordialmente dela. Afinal, graças aos textos dos
Manuscritos do Mar Morto, sabe-se que havia outras alusões hebraicas por
trás das versões gregas. Aliás, Jesus citava às vezes uma porção da Bíblia em
concordância com uma versão grega e discordância de outra. Outras vezes,
ele se valia de uma paráfrase aramaica, como é o caso de Isaías 6:9-10 em
Marcos 4:12: o final “e haja perdão para eles” não está nem no texto hebraico
nem na LXX, mas no Targum de Isaías.
Mateus 26:52 parece refletir mais o Targum de Isaías 50:11 do que o
texto grego ou hebraico. O Targum acrescenta o elemento da espada não
encontradiço nos outros textos: “Eis todos vós que acendeis um fogo, que
forjais uma espada! Ide, perecerás no fogo que acendestes e sobre a espada
que forjastes.”
Vejamos mais um exemplo curioso de interpretação textual. Na parábola
dos lavradores maus que trabalhavam numa vinha (Marcos 12:1-12.) temos
como pano de fundo Isaías 5:1-7. Mas a parábola de Isaías é contra “a casa de
Israel” e os “homens de Judá”, isto é, a nação como um todo (Isaías 5:7). Já a
parábola de Jesus se refere especialmente aos “principais sacerdotes, escribas
e anciãos” (Marcos 11:27). Note que a parábola de Jesus não é contra o povo
(homens de Judá), mas contra os líderes (Marcos 12:12). Novamente temos
uma semelhança com a tradição aramaica.
No Targum de Isaías 5 os elementos “torre” e “lagar” (v. 2) são
substituídos por “santuário” e “altar” ― instituições que seriam em breve
destruídas. Jesus parece seguir nesta direção. Na sua parábola, o problema
não estaria com a vinha (Israel), mas com os trabalhadores (especialmente os
sacerdotes e os que lidavam com o templo). O documento 4Q500, que data
do primeiro século a.C., também alude à parábola de Isaías sobre a vinha e a
aplica ao templo.
Esses exemplos mostram o uso múltiplo de Jesus dos textos e versões
que tinha disponíveis em seu contexto e, ao mesmo tempo, seu
comprometimento com a sacralidade das escrituras hebraicas.
77 William V. Harris. Ancient Literacy. Cambridge: Harvard University Press, 1991. Greg Woolf,
“Ancient literacy?”. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/j.2041-
5370.2015.12010.x>. Acesso em: 19/04/2019; Ray, in Bowman, Alan K and Greg Woolf. Literacy and
Power in the Ancient World. Cambridge University Press, 1994, p. 64-65.

78 William V. Harris, Ancient Literacy, p. 254.

79 Catherine Hezser. Jewish Literacy in Roman Palestine. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p. 496.

80 Meir Bar-Ilan. “Literacy among the Jews in antiquity”, Hebrew Studies, 44, 1 (2003): 217-222.

81 PEREZ, Luana Castro Alves. “Analfabetismo funcional”. Brasil Escola. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/gramatica/analfabetismo-funcional.htm>. Acesso em: 19/04/2019.

82 117U.S. Religious Knowledge Survey. (2010). Disponível em: http://www.pewforum.org/ U-S-


Religious-Knowledge-Survey.aspx; <https://www.barna.com/research/state-of-the-bible-2019/;
http://www.bibleteachingnotes.com/templates/System/details.asp?fetch=7872>. Acessos em:
22/04/2019.

83 Guthrie, G. Read the Bible for Life: your Guide to Understanding and Living God’s Word.
Nashville, TN: B&H, 2011, p. 4.

84 Crosby, Cindy. “Not Your Mother’s Bible”. Publisher’s Weekly, 27 Oct. 2006.

85 CF <https://www.barna.com/research/state-of-the-bible-2018-seven-top-findings/>. Acesso em:


22/04/2019.

86 Robert P, Lightner. The Savior and the Scriptures. Grand Rapids: Baker Book House, 1966, p. 30..

87 R. T. France. Jesus and the Old Testament. Vancouver: Regent College Publishing, 1998, p. 83ss.

88 Babylonian Talmud, “Shabbat”, 31a.


89 Sobre este assunto e comparando a citação de Jesus com o texto veterotestamentário, veja M. Prior
“The Liberation Theology of the Lucan Jesus” in
<http://www.christusrex.org/www1/ofm/sbf/Books/LA49/49079MP.pdf>. As conclusões do articulista
são questionáveis, mas sua análise da citação de Jesus da profecia de Isaías é interessante como
ilustração.

90 Sobre esse assunto veja A. Evans. “The Scriptures of Jesus and His Earliest Followers” in L. M.
McDonald and J. A. Sanders (eds). The Canon Debate. Peabody MA: Hendrickson, 2002, p. 191-194.
CAPÍTULO QUINZE

COMO LER E ENTENDER


A BÍBLIA?

COMO ESTUDAR A BÍBLIA


É fato conhecido que através da leitura entramos em outro mundo. Pode ser
um livro, um artigo, uma revista, uma página da internet etc. O meio que
usamos para ler não importa, o conteúdo sempre nos levará a algum lugar
novo. As palavras de um texto, você sabe, nada mais são que um conjunto de
símbolos (no caso “letras”) que podemos chamar de signos e códigos, isto é,
elementos que devem ser interpretados por nós. Em outras palavras,
decifrados.
Aí nasce o problema: você sabe que nem toda leitura que fazemos é
apreendida em sua totalidade, ou seja, às vezes muita coisa de um texto fica
de fora sem que consigamos processar, interpretar ou decifrar. É muito
comum a experiência de estar lendo algo e se dar conta de que não entendeu
nada. O que aconteceu neste caso é que não houve uma leitura atenta, apenas
um “passar de olhos”.
É a mais pura verdade que devemos ler a Bíblia todos os dias. Um
religioso anônimo declarou: “Ler a Bíblia todos os dias é como tomar banho,
se você não fizer isso, a sujeira prevalece.”
Contudo, ler a Bíblia não é o mesmo que estudá-la. A diferença entre ler
e estudar está, basicamente, no que você aprende quando faz uma coisa ou
outra. Isso porque apenas ler a Bíblia ou um livro qualquer não é garantia de
que você realmente compreendeu o que está escrito ali.
Há muitos cristãos que desenvolvem o que poderia ser chamado de
aprendizado passivo, ou seja, o que sabem da Bíblia é apenas aquilo que faz
parte de sua cultura religiosa que ele trouxe dos sermões que ouviu na igreja
ou das histórias que ouviu em família. É um tipo de aprendizado que não
requer muito esforço, mas que se mostra ineficaz na hora de defender ou
justificar sua crença nos momentos em que é colocada à prova.
É claro que também aprendemos com uma leitura simples e relaxada,
mas o estudo quando bem feito permitirá que você aprenda de verdade o
conteúdo que estiver lendo. A leitura, neste caso, deve ser um processo de
interpretação que lhe permite entrar em outro mundo, o mundo do autor
bíblico, que será somado ao seu mundo depois de lido. Entendeu o processo?
É muito comum ouvir irmãos dizerem: “Eu entendi, mas não sei
explicar” ou “Eu sei, mas não sei repetir”. Quando se ouve isso, têm-se a
sensação de que tudo é apenas uma questão de linguística, ou seja, falta à
pessoa habilidade para expressar seu pensamento, mas que ele está claro em
sua mente arrumadinho ponto por ponto. Mas, na realidade, pode não ser bem
assim. Tal dificuldade de repetir o que supostamente aprendeu pode revelar
uma ilusão do conhecimento, a pessoa acha que sabe, mas no fundo não sabe.
A prova maior disso é que se pedirmos a essa mesma pessoa para
expressar uma opinião sobre conhecimento trivial ou para repetir o capítulo
da novela ou seriado que passou ontem, ele ou ela saberá reproduzir com
maestria o conteúdo adquirido e a inaptidão para falar miraculosamente
desaparece. A pessoa fala do futebol, da novela, do filme e da vida alheia
como se fosse um PhD em assuntos inúteis e pueris.
O problema, portanto, não é a incapacidade de aprender e reproduzir o
conteúdo, mas que tipo de conteúdo estamos aprendendo e de que forma
estamos estudando, ou melhor, “lendo” a palavra de Deus.

O MÉTODO

O desafio de estudar e compreender bem um livro escrito há milhares de anos


coloca o indivíduo diante de algo crucial que é a questão do método. Em
outras palavras, que instrumentos estamos usando para compreender a
palavra revelada de Deus? Este é um aspecto muito negligenciado no estudo
da Bíblia Sagrada mesmo no mundo acadêmico da teologia.
Há muitos acadêmicos que não parecem conscientes do método no qual
acreditam, muito menos do método por trás de alguns autores que consultam
quando estão empenhados em sua pesquisa bíblica. Outros, mesmo
supostamente cônscios de seus próprios métodos, expuseram aquilo que
criam, mas negligenciaram a descrição de como ou por que criam daquele
modo. Assim, não nos estranha o fato de que mesmo os tratados teológicos de
fôlego produzidos no passado quase omitiram a descrição do método
teológico usado por seu autor.
As razões para essa negligência do método talvez estejam no fato de que
não há regras estabelecidas sobre “como” e “por que” escrever uma
introdução sobre o método e a metodologia teológica.91 Segundo, porque o
problema do método parece mais ligado à ciência moderna na qual o
conhecimento da realidade se vê obrigado a passar por critérios experimentais
e observacionais para ser válido no meio acadêmico. Deus e sua Palavra, no
entanto, não são passivos de experimentação científica.
A essência destas ciências [modernas] é o método, ou seja, o caminho
planejado, refletido, contínuo e criticamente seguro que conduz a uma meta
do entendimento totalmente determinada. O método é a arte da seleção e da
abstração de acordo com certas condições que o próprio sujeito estabeleceu
de antemão para resolver uma problemática determinada.92
Note-se, porém, que essa consciência moderna não pode ser
automaticamente importada para a Teologia, pois não se trata de comprovar
laboratorialmente a existência de Deus ou de certas verdades reveladas na
Bíblia, mas de aceitar pela fé coisas que estão além da verificação. De igual
modo, é pertinente a crítica de Canale àquela conceituação reducionista de
método identificado apenas como uma expressão do experimentalismo. O
processo de observação, hipótese, experimento, anotações e avaliação da
hipótese é apenas uma (e não a única) aplicação concreta do método.93
Por outro lado, a teologia como apreensão mental das realidades
reveladas por Deus em sua Palavra tende a ser também um saber
experimental da pessoa de Deus. Recebemos em nosso intelecto a revelação,
e, como disse Paulo, a “iluminação do conhecimento da glória de Deus na
face de Cristo” (2Coríntios 4:6). Tal situação demanda a sistematização de
um método por parte daquele que pretende conhecer essa revelação. Não se
esquecendo, porém, que a teologia, enquanto ciência (ainda que alguns
evitem reconhecê-la assim), tem como base seus próprios princípios, pois
trata-se, como foi dito, de conhecer uma revelação pessoal de Deus na
História.94
Sendo assim, o conceito de método tem de ser mais amplo se queremos
abarcar o processo mental do conhecimento teológico. E lembrando que esse
conhecimento de Deus (prioritariamente revelacional) é, num segundo
momento, racional (pois com a mente conhecemos a revelação), nada mais
justo que seguir critérios que evitem a especulação, a heresia e o fanatismo na
interpretação daquilo que Deus revelou.
Mesmo porque, para fazer teologia e para fazer uma exegese bíblica,
deve-se levar a cabo um processo no qual o método forneça os parâmetros
que permitem que a mensagem chegue a todas as pessoas de um modo claro e
preciso, fiel ao conteúdo bíblico.
Como advertiu Pinnock, “o método, em certo sentido, deve vir antes,
senão em relação à doutrina, pelo menos em relação à teorização dela”.95 O
método é o elemento que dá um toque científico ao saber teológico. O risco, é
claro, se dá no exagero que pode fabricar uma teologia racionalista
(teodiceia) circunscrevendo o saber teológico a um clube de intelectuais
iluminados, especializados em Deus, que nada têm a aprender com as
experiências teológicas do chamado público leigo, a saber, aqueles que não
gozam de treinamento acadêmico neste ramo do conhecimento religioso.
No passado, a necessidade de explicitar o método também não era por
demais impositiva devido ao fato de haver quatro ou cinco principais
caminhos a seguir, facilmente identificáveis. A lectio divina dos pais
apostólicos, a preparatio evangelica dos pais gregos (que desembocou no
neoplatonismo de Agostinho e no neoaristotelismo de Aquino), a Sola
Scriptura de Lutero, e o método histórico-crítico dos exegetas alemães. Hoje,
porém, o pluralismo de métodos e abordagens é tão grande que necessita
explicar que caminho estamos percorrendo a fim de testar nossos conceitos.
Esse foi o principal motivo pelo qual, de acordo com a tese doutoral de
Brooks sobre o assunto do método teológico na pós-modernidade, o método
teológico cristão não tem definição única, e parece não se encaixar em
nenhuma categoria.96
Sem pretender simplificar demasiadamente a problemática, seria
interessante ter em mente pelo menos a definição de Erickson que, embora
desastrosamente qualifique a teologia como “ciência de Deus”, acerta na
identificação do método com o processo como se “faz teologia”97 —
lembrando, é claro, que teologia é tanto ciência como arte, logo, não se pode
pensar num sistema por demais rígido, muito menos solto ao bel-prazer de
cada pensamento. É importante que o exegeta esteja cônscio de que método
teológico está seguindo.
A METODOLOGIA

Em muitos círculos acadêmicos, incluindo a teologia, as palavras “método” e


“metodologia” tornaram-se sinônimas. Há autores, de fato, que as usam
indistintamente. Contudo, por questões de clareza, seria interessante seguir a
corrente que sugere uma distinção entre os dois termos.
Embora essa sugestão também não seja uniforme, poderíamos seguir a
seguinte definição apresentada por Sandra Harding: método é uma técnica
para reunir coerentemente as evidências. São ferramentas da heurística. Já a
metodologia seria a teoria e a análise de como essas ferramentas deverão ser
usadas.98
Em outras palavras, o método é um procedimento técnico, um modo de
se fazer algo envolvendo práticas concretas. Já a metodologia é o pressuposto
racional ou teórico por trás do método. Esses pressupostos é que conduzirão
os modos de se realizar a pesquisa.
É claro que, em virtude disso, haverá métodos e metodologias que são
incompatíveis por questões de pressuposto. A teologia revela valores
doutrinários a priori que acabam constituindo um saber irredutível, onde uma
nova luz nunca deve desmerecer ou negar a luz anterior. É um saber
progressivo, mas não necessariamente “evolutivo”. Verdades presentes neste
caso não são sinônimos perfeitos de “verdades provisórias” em termos de
ciência moderna. Exemplo: diz a Bíblia que todo aquele que se aproxima de
Deus deve fazê-lo crendo que ele existe. Qualquer método que negue esse
pressuposto é inadequado a um exegeta teísta que parta do princípio da
existência autorreveladora de Deus.
A metodologia é o avaliador da legitimidade ou não do caminho
(método) a ser escolhido para estudar a Bíblia e, uma vez escolhido, da
maneira como se conduzirá esse exercício. Enfim, a escolha do meio e do
modo de se conduzir a hermenêutica.
Aliás, a denúncia de metodologias erradas no estudo da Bíblia não é
nada nova. Desde os tempos apostólicos já havia, da parte de Pedro, o alerta
contra os que deturpavam as cartas de Paulo e as demais Escrituras (2Pedro
3:16). Preocupações com a crítica textual já são apresentadas em Apocalipse
22:18, onde João determina que ninguém acrescente nada à profecia, caso
contrário colheria as pragas descritas naquele livro. Timóteo é recomendado
por Paulo a continuar sendo alguém que “maneja bem a Palavra da verdade”.
E o próprio Paulo assegura seus leitores de sua própria metodologia ao dizer
que não estaria entre os que adulteram as Escrituras (2Coríntios 4:2).

HERMENÊUTICA, O QUE É ISSO?

A palavra hermenêutica vem diretamente do grego e significa tomar uma


coisa obscura e “torná-la compreensível”, ou levar o indivíduo à
compreensão da mensagem. Por isso, o termo deriva do nome de Hermes,
deus da mitologia grega, que era justamente o mensageiro dos deuses. Era a
quem os gregos atribuíam a origem da linguagem e da escrita, de modo que
ele ficou conhecido como o patrono da comunicação e do entendimento
humano. Na prática, porém, a hermenêutica nem sempre torna as coisas mais
claras.
Veja o caso do Direito. Os advogados amam a palavra hermenêutica.
Em termos jurídicos ela é entendida como a interpretação que o sujeito faz do
“espírito da lei”, isto é, de suas finalidades quando foi criada. Somente depois
desse exercício é que o princípio legal estabelecido na letra pode ser aplicado
a uma situação presente, buscando o máximo de equidade e justiça. Por isso,
a hermenêutica ficou entendida no âmbito do Direito como um conjunto de
métodos de interpretação consagrados.
Considerando, no entanto, que nem a mais precisa das ciências possui
opinião unânime de todos os especialistas, criou-se a partir do parecer de Ruy
Barbosa a ideia de que não existe crime de hermenêutica. Ou seja, um juiz
que erra em sua sentença por ter interpretado a letra da lei diferente de outro
não pode ser condenado ainda que tenha cometido um equívoco de
interpretação.
Em termos teológicos, a hermenêutica tem sido frequentemente definida
como “a ciência da interpretação textual da Bíblia”,99 ao que Bernard Ramm
acrescenta: “[também é] a ciência e a arte da interpretação bíblica.”100
Acontece que ultimamente tem havido uma sensível mudança de foco na
definição clássica de hermenêutica. Sua atenção anteriormente se concentrava
no texto original e na intenção do autor inspirado, para depois disso sugerir
uma aplicação para os nossos dias. Atualmente, como vimos, tem havido uma
redução de interesse pelo contexto original do texto para concentrar esforços
no contexto atual do leitor.101
No auge das discussões entre a crítica do Iluminismo alemão e a
ortodoxia protestante, Friedrich Schleiermacher (1768-1834) rejeitou a
clássica distinção entre hermenêutica secular e hermenêutica sagrada. Ele
defendia o exercício de uma hermenêutica geral aplicável para toda a
literatura, incluindo as Escrituras.
Inspirados nesta proposta hermenêutica de Schleiermacher, muitos
autores passaram a defender um estudo hermenêutico da Bíblia apenas a
partir de um ponto de vista histórico-crítico, sem nenhuma distinção de
outros livros produzidos na Antiguidade. Tal exercício, é claro, diluía o
conceito de inspiração e revelação assumidos pela doutrina cristã em relação
à Bíblia Sagrada.
Atualmente, é possível encontrar uma gama de significados para a
expressão “hermenêutica bíblica”. Não é por menos que Bernhard W.
Anderson preferiu dizer que hermenêutica hoje “são [no plural] os modos de
interpretação [da Bíblia]”, ao que James A. Sanders completa: “São as lentes
interpretativas” onde cada um lê de um modo diferente do outro.102
Em virtude disso, faz-se necessário um esclarecimento acerca de qual
conceito estamos empregando. Para uns, a hermenêutica bíblica (contrária à
exegese) seria o abandono completo ou parcial do sentido original do livro e
do autor (objetivo exclusivo da exegese) com vistas a descobrir qual é o seu
real significado para os dias de hoje. Para outros, porém, a hermenêutica seria
a teoria que normatiza a exegese.103
E não podemos nos esquecer das várias propostas da já mencionada
“nova hermenêutica”; especialmente aquelas que negam a autonomia do
texto, acreditando que qualquer interpretação se dá a partir do leitor (e cada
um tem uma interpretação diferente).
Para nós, a hermenêutica bíblica (diferentemente da hermenêutica
secular) será a ciência da interpretação que, a partir do conteúdo
escriturístico, busca: 1) entender qual é a intenção original do autor inspirado
(seu contexto, seus ouvintes, seus leitores); 2) descobrir pela iluminação o
que Deus intentava dizer (para eles e para nós) através daquelas palavras
humanas escritas há tanto tempo; e 3) comunicar de maneira clara e sensível
as verdades bíblicas para o contexto em que vivemos.104

A FUNÇÃO DA EXEGESE

O termo exegese é uma palavra-chave nesta discussão. Mas ela também pode
ter múltiplos significados, dependendo de quem a utiliza e de quando é
empregada. Tal situação demanda que o estudante tenha muito claro em sua
mente o que entende por exegese e se o seu pensamento coincide com o
pensamento do intérprete bíblico que está consultando.
Parte da ambiguidade do termo se deve à acirrada distinção que se faz
entre ele e os termos “interpretação” e “hermenêutica”.105 Pior ainda quando
a investigação se traduz numa “eisegese” que, como definem Patzia e
Petrotta,106 seria a tentativa errônea de “introduzir” em vez de “extrair” um
significado autêntico do texto. Por isso, autores como Ebeling e Evans
preferem assumir que hermenêutica, exegese e interpretação são sinônimos
que podem perfeitamente ser usados de modo intercambiável.107
De modo geral, tanto a exegese como a hermenêutica e a interpretação
bíblica fazem parte da heurística que é a tentativa intelectual de se encontrar
o significado de algo através da análise, reflexão, investigação. É claro que,
para os que se aproximam da Bíblia com o pressuposto de estarem
investigando a Palavra de Deus, a iluminação deve estar presente no topo da
lista, mesmo que para outros ela esteja fora dos mecanismos convencionais
da heurística, que é o nome que se dá ao método ou processo criado com o
objetivo de encontrar soluções para um problema.
Estudar a Bíblia, portanto, envolve um procedimento simplificador,
embora não simplista, que, em face de questões difíceis que o texto apresenta,
envolve a busca por uma solução que pode não ser a mais fácil, nem a ideal,
mas será a que mais se aproxima de encontrar respostas viáveis às perguntas
da fé, ainda que não sejam as mais satisfatórias.
Esse procedimento requer tempo, disposição para o aprendizado e
compromisso com as verdades de Deus. Ele pode ser tanto uma técnica
deliberada de solução de problemas, como uma operação automática fruto de
uma união espiritual entre o estudante da Bíblia e o Espírito Santo, ambiente
que só existe numa relação íntima com Deus e com outros irmãos de fé.
Afinal de contas, ao mesmo tempo em que a Bíblia apela para uma
decisão pessoal do indivíduo para com Deus, também demanda uma
interpretação em conjunto. Ou seja, Deus não incentiva ninguém a ser um
cristão avulso. A Igreja, corpo místico de Cristo, é o lugar onde a
interpretação conjunta da Palavra de Deus terá maior resultado efetivo.

PASSOS PARA A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA

Os passos a seguir têm um caráter sugestivo e não dogmático. Não se trata de


uma receita de bolo, mas sugerem uma leitura proveitosa da Palavra de Deus.

▶ Pressuposições
Conhecer os pressupostos teológicos de um biblista é essencial para avaliar e
compreender sua interpretação do texto. Uma listagem mais conservadora de
entendimento da Bíblia partiria dos seguintes pressupostos:

1. A Bíblia, com seus 66 livros, mais do que “conter”, identifica-se como a


legítima Palavra de Deus em linguagem humana.
2. O Novo Testamento é a sequência natural do Antigo e nenhum dos dois
pode ser corretamente compreendido a não ser que ambos lancem luz
um sobre o outro.
3. Deus é o verdadeiro autor do Novo Testamento. Ele se valeu de
instrumentos humanos sem, contudo, negar as características pessoais de
cada autor. Trata-se, portanto, de uma obra “inspirada”, e não ditada ou
copiada de um original divino.
4. Sendo indivíduos com características pessoais, os autores humanos do
Novo Testamento imprimiram em seu texto as peculiaridades de sua
personalidade, o que permite visões particulares de uma mesma verdade
que não implicam em contradição ou perda de unidade. É somente
dentro desse escopo que se aceita falar de teologia paulina, joanina etc.
5. Os Evangelhos não constituem uma biografia de Jesus (no sentido
moderno da expressão), mas são um kerygma, isto é, uma proclamação
que pressupõe uma história real contrária à criação de um mito ou de
uma lenda particular. São a proclamação de algo que realmente
aconteceu na história e que fora confirmado por muitas testemunhas.
6. Por mais importante que ela seja, a interpretação não constitui o totum
do trabalho exegético. Do contrário cairíamos no racionalismo
teológico. O estudioso das Escrituras precisa trabalhar sob a iluminação
do Espírito Santo, que traz vida ao texto impresso e o atualiza numa
correta aplicação para os dias de hoje. Em termos simples e objetivos,
podemos falar de três estágios nesse processo de interpretação:
observação (o que diz o texto), interpretação (o que o texto quer dizer) e
aplicação (o que o texto quer dizer para nós).108
7. O texto deve primeiramente ser analisado dentro do matiz histórico em
que surgiu. Quem foi seu autor, os propósitos com os quais foi
produzido, a quem se dirigia etc. Somente a partir dessa clarificação se
pode exercitar uma aplicação dos mesmos princípios ao nosso tempo
completamente distanciado do tempo bíblico. A aplicação moderna dos
princípios antigos demonstra a vida da Palavra desde que não se criem
rupturas artificiais que obriguem o texto a dizer algo que, originalmente,
estaria completamente fora de seus propósitos imediatos ou não.
8. Como princípio geral, a Bíblia interpreta a Bíblia. Contudo, ciências
auxiliares como a arqueologia, papirologia, filologia, entre outros,
podem lançar valiosa luz sobre o contexto em que determinado texto foi
produzido. Mas aqui é preciso atentar para a subjetividade interpretativa
que varia de pesquisador para pesquisador. Por exemplo, a arqueologia
mostra curiosas similaridades entre alguns episódios bíblicos e lendas
pagãs sumerianas. Contudo, não compete à arqueologia exercer juízo de
valores quanto ao porquê dessa similaridade, ela apenas evidencia sua
existência. Um pesquisador voltado aos pressupostos do criticismo
histórico entenderá que o autor bíblico plagiou estas lendas anteriores,
ao passo que outro pesquisador de orientação histórico-gramatical
poderá compreender que as semelhanças não significam necessária
interdependência, mas fontes históricas comuns. Em outras palavras,
tanto a Bíblia como o Gilgamesh podem estar se referindo à mesma
história do dilúvio, preservada de maneira diferente em cada um dos
compêndios e não que um tenha plagiado o outro. Isto, por outro lado,
não impede também que Moisés possa ter lançado mão de uma ou outra
informação contida em material prévio, evitando, porém, os conceitos
pagãos da fonte que consultara.

▶ Como interpretar o texto

Lembrando que estamos diante de um exercício acadêmico, mas, antes de


tudo, espiritual (1Coríntios 2:14), é natural que recorramos a Deus em oração
antes mesmo de abrir a Sagrada Escritura. Bíblia, lembremos, não é um livro
para ser meramente lido. Antes é um livro para ser estudado com diligente
oração e desejo de se conhecer os planos de Deus e se submeter a eles. Fora
desse padrão de pesquisa, por mais perfeitamente técnico que seja o trabalho
do exegeta, sua hermenêutica não produzirá os frutos desejáveis que deveria.
Por outro lado, a interação entre oração, sincera submissão e estudo exaustivo
do texto resultará em elementos de bênção tanto para o indivíduo (o exegeta)
como para a comunidade de fé (a Igreja).

▷ 1. Escolha do texto

A escolha de um texto pode surgir de vários ambientes ou situações:

De uma conhecida passagem de difícil interpretação ou que,


aparentemente, está em contradição com outro dado da fé. Por exemplo:
Lucas 16:16-18 diz que “a lei e os profetas duraram até João” ― uma
passagem que parece, a princípio, invalidar outras que demarcam a
validade da Lei nos dias do Novo Testamento.
De uma leitura casual (um ano bíblico ou estudo da lição) onde um texto
chama a atenção por sua peculiaridade ou dificuldade histórico-
conceitual. Por exemplo: o que quis Jesus dizer com a expressão “é mais
fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no
reino dos céus”? Seria esta uma expressão apenas espiritual ou social?
Da preparação de um sermão ou estudo bíblico. Qual é o significado real
da parábola do Rico e Lázaro? Qual é o sentido da parábola do bom
samaritano para os nossos dias?

▷ 2. Leia o texto nos originais ou no maior


número de versões que puder

Não se limite a ler apenas um ou dois versos, procure ler todo o capítulo no
qual a passagem está inserida, embora a atenção evidentemente deva estar
direcionada para aquela porção textual propriamente dita. Leituras, releituras,
memorização e meditação na passagem serão importantes tarefas nesta etapa
preliminar.
Os que trabalham com línguas bíblicas (hebraico, aramaico e grego),
deveriam ainda fazer uma tradução pessoal do texto que querem analisar.
Esse é um esforço muito importante e recompensador. A seguir, podemos
comparar nossa tradução com outras já existentes. Assim conheceremos as
várias compreensões possíveis do mesmo original e verificaremos a
existência ou não de possíveis impasses.
Caso não tenhamos domínio suficiente das línguas originais, podemos
recorrer a textos interlineares ou nos limitarmos à comparação entre
traduções disponíveis. De modo limitado, essa alternativa também ajudará a
perceber as dificuldades do texto original. Mas na escolha de traduções,
cuidado com os textos que são paráfrases (Bíblia Viva) ou textos que foram
traduzidos não a partir dos originais, mas de outras versões modernas,
especialmente em inglês (é o caso da Nova Versão Internacional).
Geralmente, há três tipos de tradução: a) formal ou literal; (b) funcional
ou dinâmica; e (c) a paráfrase. A primeira (formal) procura respeitar a forma
linguística do original. Ela renuncia à compreensão imediata para preservar o
pensamento original (incluindo as expressões idiomáticas). Esse tipo de
tradução aparece também nas versões interlineares. A segunda (dinâmica)
visa diminuir as dificuldades que o leitor moderno tem ao se deparar com um
texto tão antigo e geograficamente tão distante de nós. Já a paráfrase
reescreve o texto em linguagem moderna, aplicando muitos conceitos e ideias
do próprio tradutor. Veja alguns exemplos:

Gênesis 29:14
Hebraico: “Você é meu osso e minha carne.”
Nova Versão Internacional (NVI): “Você é sangue do meu sangue.”
Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH): “Sim, de fato você é da
minha própria carne e sangue.”
A mensagem: “Verdadeiramente és tu o meu osso e a minha carne.”

1Samuel 25:22
Hebraico: “[…] se eu deixar permanecer ao menos um que urine no
muro […].”
NVI: “[…] caso eu deixe vivo um só do sexo masculino […].”
NTLH: “[…] se eu não matar até o último daqueles homens […].”

João 9:24
Grego: “Dá glória a Deus.”
NVI: “Para a glória de Deus, diga a verdade.”
NTLH: “Jure por Deus que você vai dizer a verdade.”
A mensagem: “Dá glória a Deus.”

Este é um passo sério que não pode ser negligenciado, pois uma
diferença de tradução pode gerar grande diferença de interpretação.

▷ 3. Determine a delimitação da perícope


(contexto literário imediato)
“Texto fora de contexto gera pretexto”, portanto, uma das qualidades da boa
exegese é a correta delimitação do texto. Isto é, estabelecer os limites para
cima e para baixo, onde ele começa e onde termina. Pode ser uma tentativa de
encontrar os parágrafos ou subtítulos originais ou como estariam se o autor
escrevesse num estilo moderno.
O texto hebraico geralmente tem marcadores textuais diferentes do texto
grego. Estes marcadores podem ser vistos em manuais técnicos como O
manual da Bíblia hebraica, de Emanuel Tov, e Metodologia da Exegese
Bíblica, de Cassio Murilo Dias. De forma mais simplificada, os passos a
seguir ajudam a orientar o leitor.

▶ Critérios para a delimitação do texto:

1. Cuidado para não ser traído pela moderna divisão em capítulos e títulos,
pois ela é, em muitos momentos, defeituosa. Por exemplo: João 10:1-18
tem como título “Jesus, o bom pastor”, mas esse título ignora o verso 7,
no qual ele diz ser a porta das ovelhas. Igualmente os vv. 19-21 não
deveriam vir à parte, pois pertencem ao contexto do capítulo 9.
2. Tempo e local: estes são elementos muito importantes, principalmente
se estivermos trabalhando textos históricos, como é o caso dos
evangelhos. O tempo pode indicar o início, a continuação, a conclusão
ou a repetição de um episódio. O local é o espaço físico onde se
processa a situação (exemplos: Marcos 16:1; Lucas 1:5).
3. Argumento: há algumas partículas que podem indicar mudança de
assunto ou de argumentação. Por exemplo: “por esta razão”,
“finalmente”, “a propósito de” (1Coríntios 12:1; 2Timóteo 4:6). Note
que, às vezes, não haverá mudança de argumentação, mas de
perspectiva. Paulo, por exemplo, gosta de usar a chamada diatribe
(criação de uma discussão fictícia), veja R. 7:13; 11:1). Veja também
Lucas 1:26 e depois o verso 39.
4. Anúncio de tema: alguns textos trazem, às vezes, a antecipação de
assuntos que tratarão a seguir. Exemplo: Hebreus 2:17,18 anuncia o
próximo tema, Jesus Cristo como sumo sacerdote fiel e misericordioso,
que será tratado em 3:1―5:10.
5. Estrutura: perceba a organização física da unidade, se ela tem algum tipo
de estrutura definida (isso pode indicar inclusive subestruturas). É o caso
do Quiasmo109 (Mateus 7:6), o paralelismo (Mateus 7:7), a retórica que
usa recursos como metáfora (João 15:1; 10:9; Mateus 5:13), sinédoque
([toma a parte pelo todo ou vice-versa], 1Coríntios 11:26; Atos 24:5),
ironia (2Coríntios 11:5; 12:11, comp. com 11:13), tipologia (Mateus
12:40; João 3:14).
6. Composição: veja se há leitmotiv110 ou palavra-chave costurando o
texto. Aqui, a palavra-chave pode vir por repetição ou por sinônimos.
Ex: circuncisão, judeu, Lei em Romanos.
7. Fórmulas específicas: expressões que indicam o estilo da argumentação
ou do texto. Ex: execração (“ai”), humor/charada (“qual dentre vós”).

De uma forma mais simplificada, seriam estas as fórmulas literárias


encontradas no Novo Testamento:
Nos evangelhos e nos Atos: ditos proféticos — onde Jesus condensa a
doutrina da salvação ou história da redenção (Lucas 12:32; Mateus 8:11-12).
Ditos sapienciais — sentenças tipo provérbios (Marcos 6:4; Lucas 6:45;
11:28; Mateus 5). Ditos jurídicos (Mateus 7:5; 10:10-12). Parábolas. Eu
enfático, muitas vezes acompanhado do verbo vir/ir, que expressa a
consciência que Jesus tinha de sua missão e de sua divindade (Mateus 10:35;
Lucas 12:49); discursos retóricos; discursos de despedida.
Nas cartas: hinos de origem cristã (Filipenses 2:6-11; Colossenses
1:15-20; 1Pedro 2:22-24); confissões de fé (1Coríntios 15:35; 1Pedro 1:8-21).
Listas de vícios e virtudes, lista de deveres (1Timóteo 3:1-13; Romanos 1:29-
31; 1Coríntios 5:10-11).
Apocalipse: septenários, oráculos, midrash, cenas bélicas, elementos
históricos apresentados em linguagem surrealista para decodificar outros
elementos ao longo da história e da profecia.
Há estruturas maiores e menores e estruturas dentro de estruturas (i.e.,
subdivisões estruturais). Seria interessante descobrir um esboço maior, mas
devemos tomar o cuidado de não forçar o texto como muitos fazem (há
autores que propõem que a Bíblia inteira está em forma quiástica).
Exemplo de estrutura maior (mas que ainda não é o contexto amplo):
Lucas 15

1. Introdução: Jesus numa casa em festa com pecadores. 15:1


2. O murmúrio dos escribas e fariseus à porta. 15:2
3. Cena 1 — Parábola da ovelha perdida fora do aprisco. 15:3-7
4. Cena 2 — Parábola da moeda perdida dentro de casa. 15:8-10
5. Cena 3 — Parábola dos dois filhos perdidos (dentro e fora). 15:11-21
6. Conclusão reflexiva: O pai em festa com o pecador. 15:22-24
7. O murmúrio do filho mais velho à porta. 15:25-32

Uma vez feita a delimitação, procure ver o que aquela unidade está
dizendo. Qual é sua principal tese? Se for histórica, o que ela está contando
afinal? Assim, em relação ao contexto imediato, procure ver como essa
passagem participa das temáticas expressas nos capítulos que a antecedem e
nos que seguem seu fechamento. As passagens anteriores afetam a
compreensão do texto? Sem elas, que impressões errôneas poderíamos ter?

▷ 4. Determine o contexto literário amplo

Verifique qual é a contribuição, função ou papel daquela perícope dentro do


livro no qual está inserida. Para isso, abre-se um parêntese para um
importante estudo acerca do autor, data, intenção etc. Esses elementos serão
importantes. No caso dos sinóticos, verifique também se a passagem não tem
paralelo em outro evangelho. Verifique também as relações daquela porção
com a Bíblia como um todo. É uma situação isolada? Há eco no restante das
Escrituras que permitam reconstruir uma base bíblica para aquele assunto?
Por exemplo, o rebatismo em Atos 19:1-7. Mas atenção, veja se um autor
bíblico não está usando a mesma temática com um propósito diferente. É o
caso da Nova Jerusalém descrita em Isaías 65:17-25 e a de Apocalipse 21—
22.

▷ 5. Determine o contexto histórico

Parte desse procedimento já foi feito ao se buscar a autoria do livro, data,


propósito etc. Contudo, aqui se vai a um ponto mais específico para
esclarecimento de contextos e elucidação ou confirmação de expressões que
aparecem no texto bíblico. Veja o caso do “Deus desconhecido” de Atenas
anunciado por Paulo e a filosofia de Epimênides.
Esta parte, portanto, deveria incluir a contextualização histórica do texto.
Procure descobrir as características religiosas, culturais, políticas e sociais da
época. Mas atenção: cuidado com algumas reconstruções hipotéticas que
acabam sendo especulativas, e cuidado também com os exercícios
hermenêuticos que fazem da Bíblia um mero produto do meio.

▷ 6. Análise gramatical

Com o contexto histórico bem definido, podemos voltar ao texto e fazer uma
análise gramatical dele. Aqui daremos atenção às frases e à sintaxe, bem
como às palavras e à semântica. Alguns lembretes do gênio da língua grega
como aparece na Bíblia (koiné), serão úteis:

1. A sintaxe refere-se à relação entre as palavras dentro de uma sentença.


Mas atenção: não possuímos hoje uma completa gramática normativa do
grego antigo que aborde todos os casos e de fato normatize
universalmente a língua na Antiguidade. As que temos foram
sistematizadas pela observação do comportamento mais comum dos
vocábulos dentro dos textos antigos. Mesmo assim, devemos estar
prontos para exceções que podem ser mais comuns do que esperaríamos.
2. Perceba que há hebraísmos que influenciam a forma grega de escrever
dos autores do Novo Testamento. Veja, por exemplo, Paulo em
Colossenses 1:5-6. A expressão exageradamente genitiva, isto é
indicando com ênfase uma situação de posse, origem: “na palavra da
verdade do evangelho daquele vindo até vós”, este é um claro hebraísmo
que usa o genitivo como adjetivo. O mesmo se dá com o dito de Jesus
em João 2:21 “Jesus estava se referindo ao templo do seu corpo”, em
grego clássico seria “ao templo, isto é, ao seu corpo”.
3. Identifique o tipo de sentença e o lugar de cada palavra na oração.
Lembre-se de que é o verbo e/ou a partícula condicional que identificam
a sentença em grego. Pode ser uma sentença transitiva (o verbo é o
objeto), intransitiva (o verbo tem um objeto), passiva (o sujeito recebe a
ação do verbo), condicional, interrogativa etc.
4. Identifique claramente (1) sujeito, (2) verbo, (3) objeto direto ou
indireto, se houver. Separe todas as conjunções e particípios da frase,
isso ajuda a esclarecer seu sentido original.
5. Separe em duas linhas os elementos subordinativos e os elementos ao
qual eles se referem, por exemplo: Gálatas 2:2b.
6. “[eu] lhes expus o evangelho (sujeito e verbo).
7. que prego (objeto, qualidade do evangelho).
8. entre os gentios (objeto alcance da pregação).
9. Na análise das palavras, cuidado com o método estruturalista e com a
alegorização do texto. Nós falamos de tipologia bíblica, nunca alegoria
bíblica.
10. Atenção para alguns erros cometidos na análise de palavras:

Falácia etimológica ― muitos pensam que a raiz da palavra sempre


determinará seu significado. Mas não é bem assim, veja que a palavra
trabalho vem do latim tripaliu, que era, nada mais, nada menos que um
instrumento de tortura formado por três paus que serviam para estripar
os torturados. Embora para muitos o trabalho seja mesmo uma tortura,
esse é um bom exemplo, de não se firmar demasiadamente em raízes
etimológicas. Em 1Coríntios 4:1, Paulo descreve a si mesmo e outros
líderes de “servos” de Cristo (hyperêtas). Ora, alguns pensam que esta
palavra grega viria de “eressô”, que quer dizer “remar”, conforme
encontramos em Homero no oitavo século a.C. Mas aqui o sentido é
“servo” e não “remadores de Cristo”. Outra situação é com a palavra
“monogenês” vertida (por causas etimológicas) para “unigênito”,
quando deveria ser “único da espécie”, pois é assim que a palavra
aparece na LXX, Salmos 22:20 (yâhid), que a LXX traduz por “minha
única alma”.
Anacronismo semântico — esquecendo-se que as palavras podem
sofrer alterações de significado em cada contexto, alguns
arbitrariamente tomam um significado posterior para elucidar um
significado anterior ou vice-versa, o que causa má compreensão do
termo. Devemos nos lembrar que a Bíblia levou 1.600 anos para ser
escrita, e muita coisa acontece a um idioma durante esse tempo! O
mesmo se dá com palavras que hoje têm sentido diferente. Salvação hoje
é sinônimo quase exclusivo de justificação na mentalidade popular, mas
no Novo Testamento pode significar, em alguns momentos, justificação,
em outros, santificação, ainda outros, glorificação ou todos os elementos
conjugados.
Paralelomania verbal — é a crença de que a presença de um termo em
vários contextos automaticamente indica um paralelismo de ideias, um
empréstimo de ideias ou uma dependência literária. Por exemplo: Filo e
Heráclito falavam do logos, mas isso não significa que João tenha a
mesma ideia de logos ao empregar o termo no prólogo de seu evangelho.

▷ 7. Determine como o texto foi


interpretado ao longo dos anos
Este é um exercício negligenciado em muitos manuais, mas que tem
tremenda importância hermenêutica. Em alguns casos (como em teses), ele
vem na seção de revisão de literatura e pode ser dividido em período
patrístico, medieval, moderno e contemporâneo. Sua própria interpretação
deve ser comparada com aquela encontradiça ao longo dos anos.

▷ 8. Sistematize suas conclusões e


estabeleça a teologia do texto

Qual é o significado daquela passagem dentro do todo relevado na Palavra de


Deus? Por exemplo, qual é a contribuição do sermão da montanha para a
temática da justificação pela fé? Em que sentido o texto confirma, corrige ou
esclarece nossos pressupostos filosóficos acerca da salvação? Finalmente,
aplique o texto à realidade da Igreja. Procure ver o que a essência daquela
passagem teria a dizer para o nosso contexto. Quando Jesus disse: “Se teu
inimigo te obrigar a andar uma milha, ande duas”, usou recursos do
imaginário da época (as leis romanas sobre os judeus conquistados) para
apresentar uma verdade. Que verdade é esta? Como se aplica a nós? Se a
encarnação ocorresse em nossos dias, que imagem de nosso cotidiano
equivaleria a essa declaração feita pelo Mestre? O que devíamos pregar a
partir deste determinado texto? Que lições podemos tirar dele?

Termos técnicos usados


pelos teólogos em sua
tentativa de compreensão
do texto
Com exceção do segundo e
do último, todos os termos
são de domínio da teologia
liberal que não estuda a
Bíblia como a legítima
palavra de Deus, mas sim
como um livro da
Antiguidade de produção
inteiramente humana.

Alta crítica refere-se ao estudo do autor original, do tempo, das


circunstâncias em que o documento foi produzido, sua historicidade, sua
entrada para o cânon etc.
Baixa crítica ou crítica textual refere-se ao estudo dos manuscritos
bíblicos com o fim de determinar sua transmissão, a reconstrução de seu
original, sua linguagem (gramática, questões de vocabulário etc.). Aqui
temos ainda as críticas externa (analisa famílias de manuscritos) e
interna (as variantes de um manuscrito).
Crítica das fontes (Quellenkritik): procura encontrar supostas fontes que
estejam por trás de documentos mais extensos (Ex.: Walhausen e a
teoria JPDE, o problema sinótico do NT e o documento Q).
Crítica da forma (Formgeschichte ou Formkritik): busca a tradição oral
transmitida e que se encontra por trás do texto bíblico. Disseca a Bíblia
em porções menores de supostas diferentes tradições, procurando
encontrar qual seria sua forma original. Seu interesse é classificar
unidades textuais menores por tipos ou gêneros literários (Gattungen),
como hinos, lendas, provérbios, oráculos. Isso serve para associá-los e
interpretá-los mediante seu “contexto de vida” (Sitz im Leben).
Crítica da redação (Redaktionsgeschichte): estuda como provavelmente
teria sido o trabalho editorial dos livros que compõem a Bíblia. Olha
cada livro como uma unidade teológica procurando ver qual o objetivo
do(s) autor(es), sua tese principal, seus destinatários. Olha a Bíblia como
um todo, de modo oposto à crítica das formas que se preocupa com
partes menores.
Crítica da tradição (Traditionsgeschichte ou Traditionskritik): estuda a
história da tradição por trás do texto ou a história da transmissão de uma
tradição. Como ela se desenvolveu e a que ponto.
Crítica textual: é a tarefa de se recuperar o conteúdo de um antigo texto
literário (hoje inexistente) no modo mais próximo possível de sua forma
originária, a saber, aquela pretendida pelo autor.
91 Essa observação vem de Nils-Olov Nilsson. The Swedish Pentecostal movement 1913-2000: the
tension between radical congregationalism, restorationism, and denominationalism. Columbia
Evangelical Seminary, 2001, disponível em: <http://www.nilsandchris.com/method.htm>.

92 W. Kasper. Unidad y pluralidad en teología. Los métodos dogmáticos. Salamanca: Sigueme, 1969,
p. 15-16.

93 Fernando Canale. “Interdisciplinary Method in Christian Theology? In Search of a Working


Proposal” in Neue Zeitschrift Für Systematische Theologie Und Religionsphilosophie 43 (2001/3): 369.

94 Stanley Grenz. Revisioning Evangelical Theology. Downers Grove, IL.: InterVarsity Press, 1993, p.
31..

95 Clark Pinnock e Delwin Brown. Theological Crossfire, an Evangelical Liberal Dialogue. Grand
Rapids, MI.: Zondervan Publishing House, 1990, p. 37..

96 Page M. Brooks. A comparison of Reactions to Postmodernity and its Influence on Theological


Method in the Works of Alister McGrath and Seyyed Hossein Nasr (tese doutoral defendida no New
Orleans Baptist Theological Seminary 2008), p. 82.

97 Millard Erickson. Christian Theology. Grand Rapids, MI: Baker, 1998, p. 70.

98 Sandra Harding é uma filósofa feminista, mas sua definição pode ser aplicada indistintamente em
outras abordagens cognitivas. Sandra Harding. “Introduction” in Feminism and Methodology, [ed.
Sandra Harding] Bloomington: Indiana University Press, 1987, p. 2, 6-8..

99 Elliott E. Johnson. Expository Hermeneutics: an Introduction. Grand Rapids, Mi: Zondervan


Publishing House, 1990, p. 8.

100 Bernard Ramm. Protestant Biblical Interpretation. Grand Rapids, Mi: Baker Book House, 1970, p.
1.

101 Anthony C. Thiselton. The Two Horizons. New Testament Hermeneutics and Philosophical
Description with Special Reference to Heidegger, Bultmann, Gadamer, and Wittgenstein. Grand
Rapids, MI: Eerdmans/Exeter Paternoster, 1980, p. 11.

102 APUD. “A Bible Hermeneutics Definition how Bible Interpretations, or Hermeneutics of the Bible,
Affect the Way we Read the Scriptures”. Disponível em:
<http://www.biblicalarchaeology.org/daily/biblical-topics/bible-interpretation/a-bible-hermeneutics-
definition/>.

103 Walter C. Kaiser Jr. Toward an Exegetical Theology. Grand Rapids: Baker, 1981, p. 47; David
Stacey. Interpreting the Bible. Nova Iorque : Seabury, 1977.

104 Cf. Richard M. Davidson. “Biblical Interpretation” in Raoul Dederen (Ed.) Handbook of Seventh-
day Adventist Theology. Hargestown, MD: Review and Herald, 2000, p. 60.

105 Veja uma tentativa de distinção em: Stanley E. Porter. Handbook to Exegesis of the New
Testament. Leiden: Brill, 1997, p. 5-8.

106 Arthr G. Patzia e Anthony J. Petrott. Dictionary of Biblical Studies. Downers Grove, Il:
InterVarsity Press, 2002, p. 40.

107 G. Ebeling. Word and Faith. Londres: SCM Press, 1963, p. 321; C. F. Evans. Is “Holy Scripture”
Christian? Londres: SCM Press, 1971, p. 31.

108 Gordon D. Fee e Douglas Stuart. São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 281-282.

109 John W. Welch (ed.). Chiasmus in Antiquity: Structures, Analyses, Exegesis. Hildesheim:
Gerstenberg Verlag, 1981; idem, “Criteria for Identifying the Presence of Chiasmus.” Journal of Book
of Mormon Studies 4:2 (1995): 1-14.

110 Leitmotiv é uma palavra alemã para indicar uma imagem, qualidade, ação ou objeto que ocorre em
toda a narrativa, poema ou oráculo, é o que costura o tema. Também se refere a um tema que se repete
em diferentes textos de um mesmo autor. Esta palavra é muito usada num sentido mais filosófico que
técnico. Palavra-chave cabe melhor ao nosso intento.
CAPÍTULO DEZESSEIS

QUE TRADUÇÃO
DEVO USAR?

TRADUTORES OU TRAIDORES?
É interessante como as teorias da conspiração tomam conta de páginas e mais
páginas da Internet. A religião e a Bíblia não estão imunes a ataques de
pessoas, muitas vezes sem treinamento acadêmico ou frustradas por terem
perdido um emprego, que lançam toda dúvida possível para desacreditar o
trabalho dos tradutores bíblicos. É claro que imprecisões existem e correções
precisam ser feitas. Deus, no entanto, preservou aquilo que o seu Espírito
inspirou aos homens escreverem e as traduções são uma forma legítima de
divulgar a mensagem de Deus.
É uma pena que nem todos valorizam o árduo trabalho de um tradutor,
principalmente considerando as dificuldades que passaram para transmitir o
conteúdo bíblico a um povo de língua estrangeira. Existe um ditado vindo por
vias tortas desde o italiano até nossos dias que afirma: “Traduttore,
traditore”, isto é, o tradutor é um traidor.
Ainda que haja realmente tradutores desonestos (nenhuma profissão está
isenta de incompetentes), nada estaria mais longe da verdade do que dizer
que os tradutores são traidores da versão original. Tal acusação refere-se à
prática dos dragomanos, que eram os intérpretes do governo Otomano, desde
o século 17 até a revolução grega de 1821. Eles não eram necessariamente
enganadores na arte da tradução, mas reconheciam que havia termos
impossíveis de se traduzir para outro idioma.
A expressão que os italianos e europeus usavam não era tanto no aspecto
ético, mas na dificuldade do ofício, pois, por mais que o tradutor seja
competente e honesto, estará sujeito às limitações no processo de tradução.
Havia também o elemento da diplomacia que obrigava os tradutores, muitas
vezes, a usar eufemismos ou mudar ligeiramente o que os monarcas diziam,
principalmente quando a declaração poderia resultar num conflito militar.
Sabedores que os líderes otomanos, além de não falarem nenhuma
língua europeia, eram em grande parte cruéis, caprichosos e de linguajar
obsceno, os dragomanos desenvolveram a astúcia de amenizar as traduções
que levavam dos sultões para os monarcas, e vice-versa. Assim, foram
evitadas muitas guerras e execuções, porém, ao custo de não traduzirem a
mensagem exatamente como foi dita.
Um caso curioso foi aquele que evitou um incidente diplomático entre o
sultão e a rainha da Inglaterra:111
[…] quando o sultão Murad II
concedeu permissão para os
mercadores ingleses fazerem
comércio nas terras otomanas, a
carta original em turco dizia que a
rainha Elizabeth “demonstrou sua
subserviência e devoção e declarou
sua servidão e afeto” ao sultão.
Para a comunicação posterior com a
corte inglesa, a carta foi traduzida
pelo grande dragomano para o
italiano, que ainda era a língua
original do império otomano. Em
italiano, no entanto, a carta não diz
o mesmo: expressa a fórmula turca
elaborada de forma econômica
como sincera amicizia. […] Ele (o
dragomano) sabe que seu mestre
nunca considerará a rainha da
Inglaterra como uma monarca de
igual poder; e, como diplomata
experiente, ele também sabe que
Elizabeth I possivelmente não
aceitaria a expressão de “servidão”
ao sultão, mesmo em um floreio
convencional.

Devemos muito ao trabalho dos tradutores. A tarefa de reconstrução do


texto bíblico e de acompanhamento de sua transmissão ao longo dos séculos
é enriquecido pelas antigas versões que sobreviveram até nossos dias.

ANTIGO TESTAMENTO
Talvez a mais antiga tradução feita do Antigo Testamento foi, na verdade,
uma paráfrase explicativa que os judeus normalmente chamaram de Targum.
Suas origens remontam aos tempos em que Judá foi atacada pelos babilônios
e seu povo levado em cativeiro.
Nesta mesma época, em que Nabucodonosor levou os habitantes de
Jerusalém e Judá para morarem às margens do rio Tigre e Eufrates, a
linguagem da vida cotidiana na Assíria e na Babilónia havia deixado de ser
aquela que conhecemos pelas inscrições cuneiformes para tornar-se o
aramaico, adotado como língua diplomática e comercial em todo o território.
Era a língua franca da época.
Morando por décadas ali, os judeus também assimilaram esse idioma e
seus filhos nascidos na Babilônia passaram a ter o aramaico, e não mais o
hebraico, como língua materna. Eles até tentavam manter em casa
conversações em hebraico, mas a pressão externa era maior e em pouco
tempo os mais jovens já não falavam mais o idioma de seus pais. Perdeu-se
quase toda a fluência da língua falada pelos hebreus antes do cativeiro.
Uma prova disso é que após o cativeiro, quando Esdras e os levitas leem
em voz alta a lei de Moisés para o povo, foi necessário o trabalho de
interpretação para que pudessem entender o conteúdo. A maioria dos que
voltaram do exílio já não entendiam o hebraico, uma vez que o seu idioma
era agora o aramaico. Por isso, quando as Escrituras eram lidas em hebraico,
um grupo de homens dedicados fazia a interpretação para o aramaico, de tal
maneira que os fiéis pudessem compreendê-las e aplicá-las à sua vida. Desse
modo, as pessoas do povo se regozijaram “porque entenderam as palavras
que lhes fizeram saber” (Neemias 8:8,12)
O culto sabático parece ter sido o único momento para preservar o
idioma hebraico. No dia a dia, seja no comércio ou nas conversações comuns,
as pessoas se expressavam em aramaico. Nem o povo que permenceu em
Judá sem ir para o cativeiro ficou isento da influência aramaica em seu
idioma. Estrangeiros que já haviam adotado o aramaico pressionavam a
região para morar nela e ali estabelecer-se na lacuna deixada pelos que foram
levados ao exílio. Comerciantes, construtores e políticos viam ali a
oportunidade de fazer prosperar seus negócios.
Embora não seja registrado, não é inverossímil que Nabucodonosor,
seguindo o exemplo dos assírios, tenha enviado para a Judeia colonos vindos
de outras partes de seu império. A linguagem comum a todos esses, além de
seu dialeto nativo, era o aramaico, o que reforçava o uso da língua naquela
região. O hebraico ficou cada vez mais esquecido.
Paralelo a isso, há quem pense que foi nesse contexto que tiveram início
as primeiras sinagogas judaicas ou, pelo menos, a inauguração de casas de
ensino que pudessem fixar a lei na mente dos mais jovens. Longe do templo,
agora destruído, não tinham outro lugar apropriado para oferecer sacrifícios e
cultos ao seu Deus. Sua alternativa de adoração passou a se resumir ao estudo
da Lei, ao cântico dos salmos e às orações em comunidade. Esse estudo,
ponto áureo da adoração, precisava ser num idioma compreensível. Sendo
assim, criaram-se as paráfrases e explicações do Antigo Testamento a que
deram o nome de Targuns.
Em síntese, os targuns eram explicações das escrituras hebraicas em
aramaico para o benefício daqueles judeus que tinham parcial ou
completamente deixado de compreender a língua sagrada de seus pais.
Assim, os Targuns Aramaicos tornaram-se as primeiras traduções
“oficiais” do Antigo Testamento, ou da Bíblia hebraica, para o aramaico,
pelos judeus, e, por isso, foram aprovados para uso no judaísmo. Alguns
adquiriram status de autoridade. Os Targuns Aramaicos não são uma única
tradução da Bíblia hebraica. Antes, consistiram de várias traduções ou
paráfrases individuais de livros ou grupos de livros, que surgiram ao longo do
tempo, de acordo com a necessidade.

A SEPTUAGINTA

A Septuaginta (às vezes abreviada como LXX) é o nome comumente dado no


Ocidente a uma antiga tradução das Escrituras judaicas para o grego koiné.
Elas foram traduzidas em etapas desde o terceiro até o segundo século a.C.
em Alexandria, no Egito.
O que levou os judeus a traduzirem seu livro sagrado para outra língua
em vez de manter o original hebraico? Dois fatores podem ter concorrido
para isso. O primeiro seria o fato de que muitos judeus que moravam fora de
Israel começaram a perder a fluência da língua hebraica, adotando o grego
como idioma corrente. Estima-se, por exemplo, que perto de 1 milhão de
judeus viviam em Alexandria durante o terceiro século a.C. Esse elevado
número de judeus alexandrinos estava por gerações afastados da cultura
hebraica de seus pais. Logo, eles estariam mais familiarizados com o grego e
não podiam compreender o texto hebraico original.
Em segundo lugar, a helenização do Ocidente trouxe uma nova
oportunidade criada pela fundação da Biblioteca de Alexandria, que reunia
livros do mundo inteiro. Ter entre o acervo uma ou mais cópias em grego das
Escrituras hebraicas poderia facilitar que estrangeiros de mente helenizada
tivessem acesso às crenças do judaísmo.
Em relação a isso, uma antiga lenda apareceu na Carta de Aristeas,
escrita no segundo século a.C. Segundo ela, o nome Septuaginta se deveu ao
fato de que 70 ou 72 sábios judeus haviam sido comissionados por Ptolomeu
Filadelfo para traduzir de uma só vez todo o texto do
Antigo Testamento.
Embora muitos duvidem da historicidade deste fato, existe um consenso
de que a versão da LXX influenciou bastante o judaísmo intertestamentário.
Os antigos escritores judeus, Filo de Alexandria e Josefo (ambos associados
com o judaísmo helenístico do primeiro século), afirmavam que os tradutores
da LXX foram inspirados por Deus. Embora essa afirmação seja passiva de
questionamento, pode-se dizer que, assim como o judaísmo, as origens do
cristianismo foram bem influenciadas por essa versão grega das Escrituras.
Hoje é sabido que muitas citações do Novo Testamento vêm diretamente da
LXX. Muitos seguidores do cristianismo não falavam hebraico, e dependiam
dessa tradução para estudar os fundamentos bíblicos do movimento de Jesus.
Até hoje muitas traduções modernas da Bíblia se valem tanto do texto
hebraico como quanto dessa antiga e preciosa versão.
A LXX contém os 39 livros do Antigo Testamento, comumente aceitos
por protestantes e católicos, acrescidos de certos livros não reconhecidos
como inspirados na versão hebraica original. São eles: Judite, Tobias,
Baruque, Sirácida (ou Eclesiástico), Sabedoria de Salomão, 1 e 2Macabeus, 1
e 2Esdras, além de acréscimos aos livros de Ester, Daniel e a prece de
Manassés.
OUTRAS VERSÕES DO ANTIGO TESTAMENTO

Baseados nas paráfrases aramaicas do Antigo Testamento, mas


principalmente no texto hebraico, judeus, ou mais provavelmente cristãos da
Síria, fizeram em diferentes épocas uma versão chamada Siríaco Peshita. Foi
um trabalho feito no começo do cristianismo, e já em meados do segundo
século d.C. era o texto padrão dos cristãos sírios. Posteriormente, houve uma
revisão com base na LXX. A versão da Peshitta do Antigo Testamento era
uma tradução independente, baseada na maior parte em um texto similar ao
que seria preparado pelos judeus massoretas da Idade Média.
Traduzida pelo bispo de Tela, em 617 d.C., a Hexapla siríaca baseia-se
na LXX e na quinta coluna da Hexapla de Orígenes. Esse manuscrito foi
bastante estudado no exame da LXX, em virtude de ter preservado as notas
críticas do original grego de Orígenes.
Existem ainda cinco versões do Antigo Testamento traduzidas em língua
copta ou copto, que seria o idioma falado no Egito em continuação orgânica à
antiga língua dos faraós. A versão saídica ou tebaica foi preparada no século
2 d.C., no sul do Egito, com base na LXX. No século 4 d.C., no norte do
Egito, foi preparada a versão boárica ou menfítica. Com poucos fragmentos,
conhece-se também as versões fayúmica e akhmímica.
Finalmente, o Antigo Testamento foi ainda trazido em versões menores
para o gótico, o etíope e o armênio, a partir do século 4 d.C.

NOVO TESTAMENTO
Diatessaron — por volta de 160 d.C. foi traduzida do grego para o
siríaco. Trata-se de uma harmonia dos evangelhos de autoria de Taciano.
Gótica — esta versão já estava em uso por volta de 330-20 anos antes
de o Vaticanus e o Sinaítico serem copiados. A tradução foi feita por Ulfilas,
provavelmente no ano 250 d.C. É extremamente literal, a ponto de usar a
ordem das palavras em grego, mesmo contra a lógica do idioma gótico.
Siríaco antigo — traz esse nome para não ser confundida com a versão
Peshitta posterior, que era a versão popular em siríaco. Essa versão existe nos
manuscritos sinaítico e curetoniano.
Peshitta — é uma tradução para o siríaco, do fim do século 4 d.C. Seu
cânon é composto por apenas 22 livros, não trazendo 2Pedro, 3João, Judas e
Apocalipse.
Copta — são conhecidas cinco versões do Novo Testamento em copta
ou egípcio. A versão saídica é a mais antiga e apareceu no sul do Egito no
século 2 d.C. Do norte do Egito veio a versão boárica e tornou-se a versão
dominante, pois é representada por um número maior de manuscritos. As
outras versões são a fayúmica, a akhmímica e a do Egito Médio.
Armênia — é do fim do século 5 d.C. e tem sua base numa fonte cujo
texto tinha similaridade com os manuscritos gregos Theta, 565 e 700. Afasta-
se muito dos melhores manuscritos gregos, aproximando-se do Textus
Receptus. Há 1.244 cópias dessa versão.
Geórgia — seu manuscrito mais antigo é o Adysh, de 897 d.C. É
possível que essa tradução tenha sua origem do texto armênio. Era a Bíblia da
Geórgia.
Versões secundárias — destacamos a etíope, a eslavônica, a árabe e a
persa.

VERSÕES MODERNAS
Mesmo antes da Reforma Protestante houve muitas traduções da Bíblia para
as diversas línguas faladas. Em 1382, com John Wycliffe, teve início a Bíblia
inglesa, com base na Vulgata Latina, por isso ela inclui também os livros
apócrifos. Em 1280 e 1400, surgiram porções da Bíblia em português.
Para obter-se uma obra, para que não fosse volumosa, então mais cara,
os tradutores procuravam produzir o texto com economia de palavras,
perdendo em muito o significado das línguas originais. Isso foi corrigido em
tempo e começaram a surgir traduções mais fiéis ao texto original, sem
preocupação com economia de palavras. Dessas novas traduções, destacam-
se a Amplified New Testament; The New Testament, de Charles B. Williams,
e The New Testament, an Expanded Translation, de Kenneth S. Wuest.
Merece destaque neste contexto a Bíblia de Lutero que foi uma tradução
alemã das Escrituras feita por ele e impressa pela primeira vez em 1534. Essa
tradução é considerada como sendo em grande parte responsável pela
evolução moderna da língua alemã.
Outras traduções tornaram-se importantes: A Bíblia de Tyndale,
traduzida em 1525 diretamente do hebraico e do grego. A Versão do Rei
Tiago (King James Version), baseada na Bíblia de Tyndale sob a encomenda
do Rei Tiago, surgiu em 1611 e popularizou-se entre os países de língua
inglesa. The American Standard Revised Bible, lançada por ingleses e
americanos em 1901, sendo uma espécie de revisão da versão do Rei Tiago.
A partir de 1804, com a British and Foreign Bible Society, surgiram as
modernas Sociedades Bíblicas que muito vêm contribuindo para a divulgação
da Bíblia.

PRIMEIRAS VERSÕES EM PORTUGUÊS

▶ Traduções parciais
D. Diniz (1279-1325), rei de Portugal, traduziu da Vulgata os primeiros vinte
capítulos do livro de Gênesis. O rei D. João I (1385-1433) ordenou que
houvesse uma tradução para o português. Alguns padres católicos, a partir da
Vulgata, traduziram os evangelhos, Atos e as epístolas de Paulo. O próprio
rei traduziu o livro de Salmos.
Com esses livros prontos, publicaram a obra. Mais tarde foram
preparadas mais traduções de outras porções bíblicas: os evangelhos, que a
infanta Dona Filipa, neta do rei D. João I, traduziu do francês; o evangelho de
Mateus e porções dos outros evangelhos, da Vulgata, pelo frei Bernardo de
Alcobaça; os evangelhos e as epístolas, pelo jurista Gonçalo Garcia de Santa
Maria; uma harmonia dos evangelhos, por Valentim Fernandes, em 1495; em
1505, por ordem da rainha Leonora, foram publicados o livro de Atos e as
epístolas gerais.
Outras traduções realizadas em Portugal foram: os quatro evangelhos,
traduzidos pelo padre jesuíta Luiz Brandão; e, no início do século 19, os
evangelhos de Mateus e Marcos, pelo padre Antônio Ribeiro dos Santos.
Salienta-se que a dificuldade em se traduzir para os diversos idiomas era a
oposição da Igreja Católica Romana que, ao longo dos séculos, fez
implacável perseguição a estas obras, amaldiçoando quem conservasse
traduções da Bíblia em “idioma vulgar”, como diziam. Por isso, também de
muitas traduções escaparam somente uns dois exemplares.

▶ Traduções completas

▷ Tradução por João Ferreira de Almeida

Por conhecer o hebraico e o grego, usou os manuscritos dessas línguas para


sua tradução. Quanto iniciou o empreendimento, ele era pastor protestante.
Almeida utilizou-se do Textus Receptus, que representa os manuscritos do
grupo bizantino, possivelmente o mais fraco entre os manuscritos gregos.
Primeiramente, traduziu e editou o Novo Testamento publicado em 1681 em
Amsterdã, Holanda.
Essa tradução apresentava muitos erros. Almeida mesmo fez uma lista
de dois mil erros. Muitos desses erros foram feitos pela comissão holandesa,
que procurou harmonizar a tradução de Almeida com a versão holandesa de
1637. A dificuldade de Almeida é que não havia papiro algum e os unciais
(manuscritos em letras maiúsculas) eram poucos. Esta é a razão por que teve
que lançar mão de fontes inferiores.
Ele utilizou-se da edição de Elzevir do Textus Receptus, de 1633. As
edições mais modernas muito progrediram na tradução. Com base nesta
tradução, foram lançadas a Revista e Atualizada, a edição Revista e
Atualizada e a Versão Revisada de acordo com os melhores textos em
hebraico e grego, a versão que apresentamos neste livro, como a mais
indicada para estudos.

▷ Tradução de Antônio Pereira de


Figueiredo

Teve como base a Vulgata Latina. Em 1896, ele fez sua primeira tradução em
colunas paralelas da Vulgata e de sua tradução para o português. Essa
tradução foi usada pela igreja de Roma. Por ter sido utilizada a Vulgata como
base, tem a desvantagem de não representar o melhor texto do Novo
Testamento que conhecemos pelos manuscritos unciais mais antigos e pelos
papiros.

▷ A Bíblia de Rahmeyer
Manuscrito do comerciante hamburguês Pedro Rahmeyer, que residiu em
Lisboa, e traduziu em meados do século 18. Esse manuscrito está na
Biblioteca do Senado de Hamburgo, Alemanha.

▷ Comparando versões

Muitos estudantes da Bíblia ficam perplexos com o desafio de selecionar a


melhor versão, especialmente quando se deparam com a variedade de versões
a sua disposição. Em qualquer livraria cristã é possível encontrar muitas
traduções diferentes da Bíblia à disposição para venda.112
Como a maioria não possui a habilidade de ler em hebraico, aramaico ou
grego, a solução, no caso, é depender da linguagem de acadêmicos que
traduziram a Palavra de Deus nos idiomas modernos. Isso, porém, é um
privilégio se considerarmos que temos à nossa disposição maior acesso à
Palavra de Deus do que os cristãos nos séculos passados.
Contudo, se a tradução da Bíblia é somente uma questão de conversão
de línguas antigas para o português, por que há tantas versões diferentes? A
resposta para isso é que, diferentemente das línguas modernas, o antigo
hebraico, o aramaico e o grego são fundamentalmente diferentes do modo de
se expressar em nossos dias. Como resultado, a tradução da Bíblia é muito
mais do que simplesmente converter palavras de sua língua original para a
nosso idioma.
Por exemplo, a tradução literal de palavra por palavra do grego para o
português de João 3:16 fica da seguinte forma: “Assim pois amou Deus o
mundo, que o Filho único deu, para que todo o que crê em ele não pereça,
mas tenha vida eterna.”
Como pode-se notar, uma simples tradução de “palavra por palavra” não
faz sentido para a maioria dos leitores. A fim de alcançar uma tradução
funcional, a estrutura gramatical precisa de mudanças significativas.
▶ Tipos de traduções

Existem, grosso modo, três categorias principais de traduções da Bíblia:

1. Traduções literais: essas traduções retêm muito da forma e estrutura da


língua original e oferecem uma tradução de palavra por palavra ao maior
grau possível. Algumas traduções desta categoria incluem João Ferreira
de Almeida, João Ferreira de Almeida Revista e Corrigida (RC), João
Ferreira de Almeida Revista e Atualizada (RA), Almeida Corrigida e
Revisada Fiel, Almeida Revista Imprensa Bíblica.
2. Equivalência dinâmica: essas traduções possuem uma abordagem de
“pensamento por pensamento” que transmitem o significado essencial
do original escrito pelo autor. Conceitos e metáforas menos conhecidos
para leitores da era moderna são frequentemente reescritos. Algumas
traduções nessa categoria incluem a Nova Versão Internacional (NVI) e
a Bíblia de Jerusalém.
3. Paráfrase livre: paráfrases possuem grande liberdade com o texto bíblico
e procuram transmitir o significado expresso usando frases
contemporâneas e metáforas. As paráfrases bíblicas mais conhecidas são
Tradução na Linguagem de Hoje, Nova Tradução na Linguagem de
Hoje, Bíblia Viva e A Mensagem.

Dentro de cada uma dessas categorias, há variações importantes. Por


exemplo, a NVI é geralmente mais literal do que outras traduções dinâmicas
equivalentes, ao passo que a Bíblia A Mensagem desvia-se mais do texto
original do que a Bíblia Viva ou a Tradução na Linguagem de Hoje. No
entanto, essas categorias são uma maneira útil de fazer com que o leitor leigo
diferencie a infinidade de traduções disponíveis da Palavra de Deus.
Para ilustrar as abordagens de diferentes traduções, quando traduzido
estritamente palavra por palavra, temos um exemplo de como o texto surge
em traduções representativas de cada uma das três categorias:
1. Essencialmente literal:

“Atire o seu pão sobre as águas, e


depois de muitos dias você tornará a
encontrá-lo.”
(Nova Versão Internacional)

“Lança o teu pão sobre as águas,


porque depois de muitos dias o
acharás.”
(João Ferreira de Almeida Corrigida
Fiel)

1. Equivalência dinâmica:

“Empregue o seu dinheiro em bons


negócios e com o tempo você terá o
seu lucro.”
(Nova Tradução na Linguagem de
Hoje)

“A generosidade tem recompensa.


Jogue seu pão sobre a água, porque
dias depois você o encontrará.”
(Versão Católica com Cabeçalhos)

“Distribua com generosidade o teu


pão como se o atirasse sobre águas e
depois de algum tempo o receberás
de volta.”
(King James atualizada, 1999)

1. Paráfrase livre:

“Seja generoso, porque o que você


der a outros acabará voltando para
você.”
(Bíblia Viva)

“Dá generosamente, porque os teus


dons reverterão, mais tarde, a teu
favor.”
(Bíblia Gateway)

As traduções essencialmente literais são as mais próximas ao texto


original; o texto em grego é analisado e basicamente reescrito em uma
gramática aceitável na língua para a qual está sendo traduzido. Note, porém,
que o significado básico é sempre preservado apesar de algumas palavras-
chave serem adicionadas ou apagadas. O importante é olhar com calma o
texto e comparar versão com versão, o que, aliás, é hoje relativamente
simples, pois esse trabalho pode ser feito a partir de um aplicativo de celular
dos muitos que existem por aí. Há versões e tipos de aplicativos bíblicos para
todos os gostos, alguns até gratuitos. É baixar e começar a usar.
Uma advertência, no entanto, deve ser feita, como você viu, há muitas
diferenças entre as várias traduções. Dizer simplesmente que tanto faz usar
uma Bíblia como outra não condiz com a realidade de quem quer estudar a
fundo a Palavra de Deus. Para um estudo exegético, talvez deveria ser
priorizada aquela tradução mais literal. Para uma leitura pública talvez uma
versão dinâmica suavize a passagem por evitar termos antigos e não muito
usuais.
Considerando que toda a Escritura é inspirada por Deus (2Timóteo
3:16), devemos procurar ler traduções que reflitam as palavras escritas
originalmente em hebraico, aramaico ou grego o máximo possível e bons
comentários bíblicos serão de grande ajuda neste momento. Como obtê-los?
Uma dica seria pedir sugestões para algum teólogo de sua confiança, existem,
inclusive, sites na internet com bons comentários que estão em domínio
público. Para os que leem em inglês, o leque de opções será ainda maior.
A atenção para o estudo da Palavra de Deus não deve ser algo
negligenciado. O próprio Jesus disse: “[…] de modo nenhum passará da lei
um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido” (Mateus 5:18). Devemos
ser cuidadosos ao examinar a Palavra de Deus.
Outra razão que merece nossa atenção é que frequentemente, em casos
onde há mais de um significado para um texto bíblico, o leitor que escolheu
uma tradução de equivalência dinâmica ou de paráfrase livre recebe apenas a
interpretação do tradutor, e isso pode ser doutrinariamente e espiritualmente
perigoso. Veja um exemplo de Marcos 9:24:

“E logo o pai do menino, clamando, com lágrimas, disse: ‘Eu creio,


Senhor! Ajuda a minha incredulidade’.” (Almeida Corrigida e Revisada
Fiel)
“Imediatamente o pai do menino, clamando, [com lágrimas] disse:
‘Creio! Ajuda a minha incredulidade’.” (Almeida Revista Imprensa
Bíblica)

Ambas as traduções são essencialmente literais e preservam a fala


confusa do pai. Quando diz: “Creio! Ajuda a minha incredulidade”, será que
ele quis dizer que precisava da ajuda de Jesus para vencer sua incredulidade
ou estava afirmando que acreditava nele e gostaria de ter mais fé? Não
sabemos ao certo, mas é algo que deve ser considerado ao lermos o texto.
Contudo, note como as traduções de equivalência dinâmica e de paráfrase
livre apresentam esse verso:

“Imediatamente o pai do menino exclamou: ‘Creio, ajuda-me a vencer a


minha incredulidade’!” (Nova Versão Internacional)
“Então o pai gritou: — Eu tenho fé! Ajude-me a ter mais fé ainda!”
(Nova Tradução na Linguagem de Hoje)
“O pai imediatamente respondeu: ‘Eu tenho fé; oh, ajude-me a ter
mais’!” (A Bíblia Viva).

A linguagem que cada uma das traduções oferece é tão diferente porque
elas apresentam uma variação de interpretações do que o pai disse. Quando o
tradutor realiza o árduo trabalho de interpretar passagens desafiadoras,
leitores cristãos acabam sendo privados da oportunidade de pensar por si
mesmos. A realidade é que os cristãos deveriam estar preparados para lidar
com passagens bíblicas difíceis, uma vez que este é um importante passo para
o crescimento espiritual. A ajuda de bons comentários bíblicos e o estudo em
conjunto com outros irmãos de fé é essencial no momento de decidir por uma
ou outra leitura, considerando que não existe tradução perfeita nem trabalho
que esteja isento de melhorias.
As paráfrases são mais adequadas para os momentos de meditação
pessoal, sem muito rigor doutrinário. Todas, porém, em conjunto devem ser
lidas e comparadas num estudo mais profundo, especialmente se este visar
uma fundamentação doutrinária com base na Bíblia Sagrada.
111 David Bellos, Is That a Fish in Your Ear?: Translation and the Meaning of Everything. London,
Penguin Books, 2011, capítulo 11, versão kindle.

112 Adaptado com autorização da Adventist Review, 2010.


CAPÍTULO DEZESETE

UMA COLETÂNEA
DE HISTÓRIAS

É muito interessante observar que a Bíblia é, antes de tudo, um livro de


histórias e também um livro histórico. Ou seja, não se trata de uma coleção
de lendas como as mitologias gregas ou as fábulas de Esopo e La Fontaine.
Os episódios descritos são reais e tiveram seu lugar na História.
Em vez de inspirar os profetas a escreverem um tratado filosófico sobre
a divindade, a Providência preferiu dar aos homens um livro que narra a
história de Deus em meio à História da humanidade. Por isso, não seria
errado chamar a Bíblia de “uma história de Deus”, embora, é claro, sendo um
ser eterno, o Altíssimo não possa ser confinado aos limites de uma biografia.
Existem cinco vantagens básicas em descrever Deus através de uma
história de suas ações:

Todos geralmente gostam de histórias. Adultos, crianças, iletrados ou


eruditos, todos têm facilidade para reproduzir pelo menos a essência de
seu conteúdo. Assim fica mais fácil, às gerações que se seguem,
transmitir o conteúdo da revelação divina.
Histórias dão um fundamento racional e evidenciável para a mensagem
que se pretende transmitir. Ou seja, se a história que a Bíblia apresenta
for verdadeira, ela será verificável e a Teologia que se assenta nessa
história também o será. Logo, é possível verificar sua legitimidade.
Mesmo, é claro, que jamais possamos provar ou explicar com critérios
humanos eventos como a ressurreição de Cristo dentre os mortos.
Histórias reais costumam deixar traços em todas as culturas que
testemunharam seu acontecimento. Logo, pressupondo que as bases
históricas da Bíblia (a criação, a queda humana, o dilúvio etc.) sejam
eventos de repercussão universal, é de se esperar que outras culturas fora
da Bíblia também façam menção deles e isso permite que mesmo povos
que não tiveram contato direto com a revelação escriturística possam ter
algum acesso, por mínimo que seja, às verdades ali apresentadas.
Quando uma história é boa, as pessoas tendem naturalmente a transmiti-
la para outros. É como uma boa piada que mesmo quem não é muito
engraçado arrisca-se a repeti-la na esperança de que outros riam
também.
Finalmente, recontar uma história passada traz consigo a vantagem de
repetir emocionalmente o evento como se ele estivesse mais uma vez
acontecendo diante dos nossos olhos. Isso ajuda na preservação do fato e
da mensagem que ele contém.
GEOGRAFIA DOS EVENTOS BÍBLICOS

No mapa abaixo temos a abrangência geográfica dos eventos mencionados na


Bíblia, indicando a localidade onde eles tiveram lugar. Como você pode ver,
embora Deus tenha escolhido os judeus para revelar sua Palavra profética, a
revelação não ficou restrita aos limites de Israel.

▶ Livros da Bíblia e a localizade dos eventos


1 Israel (Gênesis 12—38; Josué; Juízes; Rute; 1 e 2Samuel; 1 e 2Reis; 1 e 2Crônicas; Salmos;
Provérbios; Eclesiastes; Cantares; Mateus; Marcos; Lucas; João; Atos)

2 Judá (Esdras; Neemias 3—13; Isaías, Jeremias; Lamentações; Joel; Miqueias; Habacuque; Sofonias;
Ageu; Zacarias; Malaquias)

3 Egito (Gênesis 39—50; Êxodo 1—13)

4 Edom (Obadias)

5 Moabe (Deuteronômio e Jó [?])

6 Síria (Atos 11—13)

7 Mesopotâmia (Gênesis 12)

8 Caldeia (Gênesis 1—11)

9 Assíria (Jonas; Naum)

10 Pérsia (Neemias 1—3; Ester)

11 Monte Sinai (Êxodo 14—40; Números)

12 Capadócia (1 e 2Pedro)

13 Galácia (Atos 13—15; Gálatas; 1 e 2Pedro)

14 Ásia Menor (Atos 18—21; Efésios; Colossenses; 1 e 2Timóteo; Filemon; 1, 2 e 3João [?])
15 Bitínia e Ponto (1 e 2Pedro; Tiago [?])

16 Macedônia (Filipenses; 1 e 2Tessalonicenses)

17 Grécia (1 e 2Coríntios; Judas [?])

18 Acaia (Atos 15—18)

19 Creta (Tito)

20 Patmos (Apocalipse)

21 Itália (Atos; Romanos 21—28; Hebreus [?])

22 Babilônia (Daniel; Ezequiel)

LIVRO POR LIVRO

A Bíblia demorou muitos anos para atingir a forma e o conteúdo que hoje
conhecemos. Ela começou a ser escrita no século 15 a.C. e terminou no final
do primeiro século d.C. Logo, foram mais de 1.400 anos de produção
efetuada por cerca de quarenta diferentes autores.
O Antigo Testamento foi escrito na região de Israel, na Babilônia (onde
o povo judeu ficou exilado), no Egito e na Pérsia. Já o Novo Testamento foi
escrito em Israel, Síria, Ásia Menor, Roma (Itália) e partes da moderna
Grécia e Turquia (que faziam parte do antigo Império Romano).
A maior parte dos livros do Antigo Testamento foi escrita em hebraico,
com algumas poucas seções em aramaico e o Novo Testamento foi todo
escrito em grego koiné — uma versão popular do grego clássico falado na
antiga Grécia.
O Novo Testamento foi organizado mais tarde e dividido geralmente em
quatro partes: Evangelhos, Atos, Epístolas (paulinas e gerais) e Apocalipse.
Listas como a do Cânon Muratoriano dão evidência de que esta ordem já
existia, embora de maneira ainda embrionária, bem antes dos dias de
Constantino.
Uma vez apresentada a organização da Bíblia em livros e a lógica por
trás desta listagem, seria interessante conhecer um pouco de cada livro, sua
origem, seus propósitos, possível data e autoria e o significado de seus títulos.
Algumas autorias e datas serão hipotéticas, pois se baseiam na tradição
judaica. Outras já são mais seguras de serem classificadas. Igualmente, as
datas são aproximadas e remontam a quando o livro começou a ser redigido.
Alguns, no entanto, demoraram décadas para assumir a forma que estão hoje.
É o caso de Isaías e Daniel, que começaram a ser escritos quando os
respectivos profetas ainda eram jovens e terminaram quando já eram
avançados em idade.

ANTIGO TESTAMENTO

▶ Pentateuco ou Torá

Torá, como já foi dito, significa Lei, e refere-se, normalmente, aos cinco
primeiros livros escritos por Moisés. Pentateuco é o nome grego da mesma
coleção e quer dizer “cinco rolos” ou “cinco livros”.

▶ Livros históricos

Contam a história da formação do povo de Israel não mais como nômades,


mas como um povo assentado em seu próprio território. Descrevem as fases
de conquista da Terra Prometida, a fase dos juízes, a monarquia unida e
dividida, a derrota do reino do Norte (Israel) para a Assíria e o reino do Sul
(Judá) para a Babilônia. Finalmente, o retorno após o cativeiro para a
reconstrução do templo e da cidade de Jerusalém.

▶ Livros poéticos

Uma coleção de ditos, conselhos, poemas e admoestações que expressam o


suprassumo da sabedoria de Israel dos tempos antigos, bem como sua coleção
de hinos religiosos utilizados tanto na liturgia como no resgate de sua história
nacional.

▶ Livros proféticos
Uma coleção de oráculos proféticos emitidos por diferentes homens que
viveram entre o oitavo e o quarto séculos a.C.

▶ Profetas maiores

Os profetas maiores são a coletânea de profecias mais extensas. Assim, o


termo “maior” refere-se ao tamanho ou ao tempo em que tais profetas
permaneceram profetizando.

▶ Profetas menores

São os doze últimos livros do Antigo Testamento, assim conhecidos por seu
pequeno volume literário.

▶ Livros apócrifos ou deuterocanônicos


Tobias

Judite

1Macabeus

2Macabeus

Eclesiástico

Sabedoria

Baruque
NOVO TESTAMENTO

▶ Evangelhos

Os Evangelhos são ainda divididos em duas partes: primeiro vêm os


chamados “Evangelhos sinóticos”, isto é, evangelhos oriundos de uma só
ótica. Depois, em separado, vem o Evangelho de João que segue um estilo e
fontes próprios.

▶ Atos

Este é o único livro do gênero no Novo Testamento. Ele conta a história


original do início da Igreja Cristã com ênfase no trabalho de Paulo.

▶ Cartas de Paulo
A coleção de cartas ou epístolas chamadas paulinas compreende um total de
treze correspondências que Paulo teria enviado às igrejas por ele fundadas na
Ásia Menor. A ordem que se encontram no Novo Testamento não
correspondem à data em que foram escritas. Elas foram organizadas não
cronologicamente, mas de acordo com sua extensão.
Teólogos liberais têm colocado em dúvida a autoria paulina de várias
cartas atribuídas ao apóstolo. Com base nesta compreensão, eles dividem
assim essa parte do Novo Testamento:

Cartas protopaulinas: são as cartas que seguramente teriam sido escritas


por Paulo. São elas: Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Filipenses,
1Tessalonicenses e Filemon.
Cartas deutero-paulinas: são aquelas cuja autoria não é segura ou é
negada por certo número de teólogos. A saber: Efésios, Colossenses e
2Tessalonicenses.
Cartas trito-paulinas: epístolas que, segundo alguns comentaristas,
dificilmente seriam do apóstolo Paulo, pois usam uma linguagem
diversa e tratam de problemas que existiam nas comunidades no final do
primeiro século.
Hebreus ainda é um caso à parte. Alguns exegetas chegam a dizer de
maneira bem-humorada que a epístola de Paulo aos hebreus não é
epístola, não é de Paulo e não é aos hebreus. Contudo, ainda que assim
seja, seu conteúdo e sua teologia são profundamente paulinos pelo que
podemos, sem cometer um grande equívoco, situá-la entre o chamado
corpus paulinum.

Outro aspecto interessante é o de que as cartas não foram escritas do


próprio punho do apóstolo. Ele as ditava (cf. Romanos 16:22) e, às vezes, as
assinava (cf. Gálatas 6:11). Talvez a carta a Filemon tenha sido a única
escrita com sua própria mão.
Adotamos a apresentação mais conservadora que aceita como autênticas
as cartas tradicionalmente atribuídas a Paulo ― acrescida da carta aos
hebreus. As datas são igualmente hipotéticas. Sendo assim, esta é a divisão
que propomos:
Cartas maiores: Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas e 1 e
2Tessalonicenses.
Cartas da prisão (escritas quando Paulo estava preso em Roma): Efésios,
Filipenses, Colossenses e Filemon.
Cartas pastorais: 1 e 2Timóteo e Tito.
Epístolas universais — Trata-se de cartas inspiradas, mas que não foram
escritas por Paulo. Elas são chamadas de universais, gerais ou
católicas113 porque são dirigidas às comunidades cristãs como um todo.
Cada uma foi nomeada de acordo com o seu autor.
Apocalipse — Este é outro escrito de característica única na coleção de
textos do Novo Testamento. Ele segue as características de um tipo de
literatura chamada apocalíptica, relativamente comum entre os judeus,
sobretudo para a comunidade dos essênios. É uma forma distinta de
fazer profecias.

RESUMO LIVRO POR LIVRO

▶ Gênesis

▷ Título e conteúdo

Em grego significa “origem”, pois ali está narrada a origem da Terra, da


humanidade e do povo hebreu. Os judeus o chamavam de “Bereshith”, que
quer dizer “no princípio”.
O livro também destaca, em meio às narrativas, a queda do gênero
humano, o primeiro homicídio, as principais genealogias (ou gerações) que
convergem para a formação do povo hebreu, o dilúvio, a confusão de línguas
na construção da torre de Babel e, finalmente, as histórias patriarcais,
finalizando com a migração de Jacó e seus filhos para o Egito.

▷ Autor

As tradições judaica e cristã apontam Moisés como autor de toda a série


dos cinco primeiros livros até Deuteronômio. Sendo assim, ele teria se valido,
além da revelação divina, de tradições orais e/ou escritas de fatos que
ocorreram séculos antes de seu nascimento. Há autores, no entanto, que
supõem que o Gênesis seja um catálogo de narrativas passadas oralmente de
pai para filho e catalogadas durante a monarquia de Israel.

▷ Data

O Gênesis cobre desde as origens do mundo até os dias de José que,


dependendo da cronologia adotada, vivera por volta de 1800 ou 1600 a.C.

▷ Localização

As histórias cobrem uma boa parte do Oriente Médio, incluindo o que


hoje seria o Iraque, a Síria, a Turquia, Israel e o Egito.
▷ Características literárias

Reconhecido como o primeiro livro da lei de Moisés, o Gênesis, na


verdade, traz poucos mandamentos divinos (2:16-27; 9:6-7). Com exceção de
poucas passagens escritas em estilo poético (3:14-19) e extensas genealogias
(cap. 5), a prosa é o estilo dominante em todos os capítulos. Os capítulos 1—
11 contêm a história das origens da humanidade, e os capítulos 12—50, as
origens do povo hebreu desde Abraão até Jacó e seus filhos.

▷ Esboço114

Criação (1:1—2:3).
História de Adão e Eva (2:4—5:32).
História de Noé (6:1—11:32).
História de Abraão (12:1—25:18).
História de Isaque (25:19—28:9).
História de Jacó (28:10—36:43).
História de José (37:1—50:26).

▶ Êxodo

▷ Título e conteúdo
O título do livro vem da junção de duas palavras gregas. A preposição
ek quer dizer “movimento de saída”, e hodós, que quer dizer “caminho”.
Êxodo, portanto, significa caminho de saída e se refere à saída do povo
hebreu do Egito. Na Bíblia hebraica recebe o título de Shemôt, isto é,
“nomes”, de acordo com o hábito judaico de intitular os livros a partir das
suas palavras iniciais que em hebraico seriam “We’elleh shemôt” (“E estes
são os nomes”, 1:1). Numa série de fortes intervenções miraculosas, Deus
julga o opressor e liberta o povo de Israel da escravidão, concedendo-lhes leis
e mandamentos que deveriam regê-los como indivíduos e como nação.

▷ Autor

As tradições judaica e cristã apontam Moisés como autor. O próprio


livro indica que Deus ordenou que Moisés escrevesse aquelas instruções que
seriam os termos de um acordo entre Deus e o seu povo (Êxodo 34:27). Jesus
também se referiu ao Êxodo como “os escritos de Moisés” (Marcos 12:26).

▷ Data

O Êxodo tem duas datas propostas pelos especialistas. Há os que o


estabelecem em torno de 1450 a.C., nos tempos de Tutmoses III e
Amenhotep II, e os que o estabelecem 200 anos mais tarde, nos tempos de
Ramsés II. A datação mais antiga é baseada em cálculos bíblicos, como 1Reis
6:1, que cita a construção do templo (edificado por volta de 960 a.C.)
ocorrida 480 anos depois do Êxodo. Já a datação mais recente (ca. 1200 a.C.)
baseia-se em Êxodo 1:11 que, para muitos, seria uma referência a Ramsés II,
que governou o Egito de 1279 a.C. a 1212 a.C.
▷ Localização

Egito.

▷ Características literárias

Apesar de ser o segundo livro da lei de Moisés, ele tem mais partes
históricas que legislativas. Também escrito majoritariamente em prosa, o
texto possui um longo trecho poético que seria a canção de Moisés no
capítulo 15. Provavelmente, um dos mais antigos hinos litúrgicos do povo de
Israel.

▷ Esboço

Israel escravizado no Egito (1:1-22).


Deus escolhe Moisés (2:1—4:31).
Deus manda Moisés para o faraó (5:1—7:13).
As Dez Pragas (7:14—11:10).
A Páscoa (12:1-30).
O Êxodo do Egito (12:31—13:16).
Cruzando o Mar Vermelho (13:17—15:21).
Queixa no deserto (15: 22—18:27).
Os Dez Mandamentos e a Divulgação da Lei (19:1—24:18).
As instruções do Tabernáculo (25:1—31:18).
Quebrando a Lei (32:1—34:35).
Construção do Tabernáculo (35:1—40:38).
▶ Levítico

▷ Título e conteúdo

O livro leva esse nome por ter sido primariamente escrito para a tribo de
Levi. Só para lembrar, os sacerdotes que trabalhavam no santuário eram
todos membros dessa tribo e, por isso, reconhecidos como levitas. Aqui,
portanto, estão as leis cerimoniais que deveriam reger as ações litúrgicas do
santuário e, posteriormente, do Templo judeu. Na Bíblia hebraica esse livro é
chamado de Vaiicrá = “e ele chamou”.

▷ Autor

As tradições judaica e cristã apontam Moisés como o autor. Mas isso


não invalida a possibilidade de que parte do conteúdo seja anterior a Moisés e
tenha sido transmitida oralmente. A prova disso é que sacrifícios já existiam
nos dias de Abel, Noé, Abraão, Isaque e Jacó, de modo que eles deveriam ter
prescrições dadas por Deus sobre como realizá-los.

▷ Data

Alguns acadêmicos o colocam por volta de 1400 a.C. Outros, 200 anos
mais tarde. Veja o comentário sobre a data do Êxodo.
▷ Localização

Em algum lugar aos pés do Monte Sinai, tradicionalmente localizado na


península egípcia que leva o mesmo nome.

▷ Características literárias

Trata-se de uma espécie de manual com regras sacerdotais. As leis


levíticas geralmente são iniciadas de dois modos: (1) imperativos legais
positivos e negativos — “Vocês deverão fazer isso […]” ou “Vocês não
poderão fazer isso […]”; e (2) leis casuísticas: “Se um homem […]”. Trata-
se, portanto, de um código de leis muito bem sistematizado à altura de
grandes tratados antigos, como o código de Hamurabi ou as Leis de
Eshunma.

▷ Esboço

Instruções para ofertas (1—7).


Instruções para os sacerdotes de Deus (8—10).
Instruções para o povo de Deus (11—15).
Instruções para o altar e o Dia da Expiação (16).
Santidade prática (17—22).
Sábados, Estações, Festivais e Festas (23—25).
Condições para receber a bênção de Deus (26—27).
▶ Números

▷ Título e conteúdo

O nome curioso desse livro foi dado por causa dos dois recenseamentos
do povo de Israel mencionados nos capítulos 1—4 e 26. Os judeus o
chamavam de Bemidbar, “no deserto...” Midbar pode ser deserto, pastagem,
como também discurso, fala = “e falou”. A história deveria ser do retorno do
povo hebreu para a Terra Prometida, mas, em vez disso, mostra sua marca até
à fronteira e a espera. Por causa das transgressões, era necessário que toda
aquela geração morresse sem alcançar Canaã, apenas seus descendentes
entrariam ali.

▷ Autor

O livro não identifica diretamente o autor, contudo a tradição judaica e


cristã, de longa data, o aponta como sendo Moisés. Alguns teólogos
modernos, no entanto, têm negado a autoria mosaica, preferindo dizer que os
livros de Gênesis a Deuteronômio viriam de uma compilação de várias fontes
reunidas especialmente nos tempos da monarquia e do exílio babilônico.
Embora seja possível que haja algum trabalho editorial posterior, isso não
elimina a probabilidade maior de que Moisés seja o responsável pela maior
parte do material que formou os livros do Pentateuco.
▷ Data

Em ca. de 1450 a.C., ou 200 anos depois. Veja mais detalhes na


introdução de Êxodo.

▷ Localização

A história começa no entorno do Sinai, atual Egito, e termina no


território de Moabe, atual Jordânia.

▷ Características literárias

Parte da narrativa segue cronologicamente o enredo de Êxodo e


Levítico. Possui leis e registros históricos da peregrinação do povo pelo
deserto. Uma peculiaridade, porém, é o episódio envolvendo um profeta não
hebreu e seu oráculo acerca do povo de Israel (capítulos 23—24). O oráculo
está escrito em paralelismo poético como outras profecias posteriores
encontradas nos livros de Isaías e Jeremias. O estilo de escrita hebraica é o
mesmo encontrado nos demais livros do Pentateuco.

▷ Esboço
Israel se prepara para a viagem à Terra Prometida (1:1—10:10).
O povo se queixa, Miriã e Aarão se opõem a Moisés, e o povo se recusa
a entrar em Canaã por causa dos relatos dos espiões infiéis (10:11—
14:45).
Durante 40 anos, as pessoas vagam pelo deserto até que a geração sem
fé seja consumida (15:1—21:35).
À medida que as pessoas se aproximam novamente da Terra Prometida,
um rei tenta contratar Balaão, feiticeiro e profeta local, para colocar uma
maldição sobre Israel (22:1—26:1).
Moisés levanta outro recenseamento do povo, para organizar um
exército, e ordena Josué para sucedê-lo (26:1—30:16).
Os israelitas se vingam dos midianitas e acampam nas planícies de
Moabe (31:1―36:13).

▶ Deuteronômio

▷ Título e conteúdo

O título vem de duas palavras gregas, deuterós, que quer dizer


“segundo”, + nomós, que quer dizer “lei”. Literalmente, “segunda lei” ou
“repetição da lei”, porque várias leis que aparecem no livro de Êxodo são
repetidas.

▷ Autor
O próprio livro refere-se a Moisés como seu autor (1:5; 31:9,22,24).
Além disso, outras partes da Bíblia se referem a ele como obra de Moisés
(1Reis 2:3; 8:53; 2Reis 14:6; 18:12). Tanto Jesus como Paulo igualmente
reconheceram Moisés como autor dessa parte das Escrituras (Marcos 10:3-5;
João 5:46,47; Romanos 10:19). Alguns especialistas, contudo, acreditam que
se trate de uma obra tardia compilada nos tempos de Josias por volta de 600
a.C. e fraudulentamente atribuída aos tempos de Moisés.
Embora seja verdade que Moisés não poderia ter escrito a última parte
do livro que trata de sua própria morte, não há razões plausíveis para se crer
que o documento não seja autêntico e, em sua maior parte, de autoria
mosaica.

▷ Data

Em cerca de 1450 a.C., ou 200 anos mais tarde. Veja comentário sobre o
Êxodo.

▷ Localização

A leste do Rio Jordão, no que hoje seria a Jordânia, e Canaã, que hoje
seria o Estado de Israel.

▷ Características literárias
Diferentemente dos demais livros do Pentateuco, o Deuteronômio
mistura um estilo de sermão com narrativas, apelos de arrependimento e
repetição das leis de Deus. Juntos, eles formam uma renovação da aliança
feita entre Deus e seu povo, para que os descendentes mais jovens possam
entrar na terra que os adultos não alcançarão. Finalmente, a chamada Canção
de Moisés (cap. 32) e sua bênção final sobre Israel (cap. 33) fecham com
chave de ouro a narrativa antes do capítulo de apêndice que descreve a morte
de Moisés.

▷ Esboço

Moisés faz seu primeiro discurso sobre a história de Israel (1:6—4:43).


Moisés faz seu segundo discurso sobre os requisitos básicos da Lei (4:44
—11:32).
Moisés continua seu segundo discurso sobre requisitos detalhados da Lei
(12:1—26:19).
Moisés faz seu terceiro discurso relativo às bênçãos e maldições (27:1—
28:68).
Moisés continua seu terceiro discurso com advertências e incentivo
(29:1—30:20).
A missão de Josué e as palavras finais de Moisés (31:1—34:12).

▶ Josué
▷ Título e conteúdo

O livro leva o nome de seu protagonista, o comandante Josué, que


substituíra Moisés na liderança do povo. A despeito de seu desempenho
militar, não é a Josué que o livro atribui as conquistas do povo hebreu, mas à
intervenção divina. Canaã era uma Terra Prometida por Deus, logo, não
poderia ser mero fruto da conquista humana.

▷ Autor

Desconhecido. Contudo, por causa de seu papel de destaque nos relatos


da conquista, a tradição tem apontado Josué como sendo o autor do livro.

▷ Data

A conquista de Canaã pode ter se dado por volta de 1400 a.C. ou 1200
a.C. Para mais detalhes, veja a introdução do livro de Êxodo.

▷ Localização

A história começa a leste do rio Jordão, onde hoje é a Jordânia. Então,


os hebreus atravessam o rio para o lado oeste, chegando a Canaã e
dominando o território.
▷ Características literárias

O estilo literário do livro é a narrativa histórica. Seu autor se prende


bastante a uma espécie de relatório das conquistas militares e conseguinte
assentamento do povo na terra de Canaã. Os diálogos e discursos de Josué
são vivos. Talvez por isso, na Bíblia hebraica, o livro é considerado o
primeiro dos quatro antigos profetas ou profetas narrativos (os demais são
Juízes, Samuel e Reis).

▷ Esboço

Atribuição de Josué (1:1—5:5).


Raabe ajuda os espias (2:1-24).
O povo atravessa o rio Jordão (3:1—4:24).
Circuncisão e visita de um anjo (5:1-15).
Batalha de Jericó (6:1-27).
O pecado de Acã traz a morte (7:1-26).
A batalha contra a cidade de Ai (8:1-35).
A estratégia de Gibeão (9:1-27).
Derrotando os reis do Sul (10:1-43).
Capturando o Norte, uma Lista de Reis (11:1—12:24).
Divisão da Terra (13:1-33).
A terra ocidental do Jordão (14:1—19:51).
Mais distribuição de terras (20:1—21:45).
Louvor a Deus (22:1-34).
Josué admoesta o povo a permanecer fiel (23:1-16).
Aliança em Siquém, a morte de Josué (24:1-33).
▶ Juízes

▷ Título e conteúdo

O título traduz o hebraico Shoftim, que também pode ser traduzido por
“líderes” ou “libertadores”. Liderar e libertar foram as principais tarefas
desses heróis, enviados por Deus, cujos atos são contados na narrativa. No
período de sua atuação, os hebreus ainda eram uma nação em
desenvolvimento, semiautônomos, num intervalo entre as batalhas de Josué e
a unificação monárquica das tribos promovida por Davi. Não havia governo
central, mas apenas uma confederação de doze tribos unidas pela aliança com
Javé e constantemente ameaçadas por ataques inimigos, especialmente dos
filisteus. Os ataques eram consequência da quebra da aliança com Deus.

▷ Autor

Desconhecido. A tradição judaica diz que Samuel escreveu ou compilou


os relatos que deram origem ao livro. De fato, a repetida expressão “naqueles
dias, não havia rei em Israel” (17:6; 18:1; 19:1; 21:25) faz supor uma redação
ocorrida no tempo da monarquia. Não obstante, há quem entenda que o livro
reflete uma perspectiva posterior à conquista das tribos do norte pela Assíria
em 722 a.C. (18:30), o que levaria a composição do livro para depois dos dias
de Samuel. Seja como for, a história começa com a morte de Josué, após a
divisão da terra, e o início do reinado de Saul em 1050 a.C.
▷ Data

O livro traz a ação de 15 líderes que reinaram consecutivamente (mas


com alguma sobreposição) entre, aproximadamente, 1400 e 1000 a.C. (a data
das conquistas de Josué ainda são ponto de debate entre os acadêmicos).

▷ Localização

A maior parte do livro ocorreu nos territórios hoje formados por Israel e
Jordânia.

▷ Características literárias

Trata-se de uma narrativa histórica, composta em hebraico, com um


longo prólogo e um longo epílogo. A maior parte é em prosa, mas também
existe espaço para a poesia. A canção de Débora (cap. 5), por exemplo, é da
mais antiga forma de poesia hebraica.

▷ Esboço

Falha na conquista de Canaã (1:1—3:6).


Otniel (3:7-11).
Eúde e Sangar (3:12-31).
Débora e Baraque (4:1—5:31).
Gideão, Abimeleque, Tola e Jair (6:1—10:5).
Jefté, Ibsã, Elom, Abdom (10:6—12:15).
Sansão (13:1—16:31).
A idolatria de Mica e a tribo de Dã (17:1—18:31).
Iniquidade moral, guerra civil e suas consequências (19:1—21:25).

▶ Rute

▷ Título e conteúdo

O título vem da protagonista da história, que é Rute. Trata-se da história


de uma jovem moabita que ficara viúva de um hebreu. Fiel à sua idosa sogra,
Rute parte de sua terra e encontra amor e proteção junto a um rico israelita
chamado Boaz, que não tinha esposa e faz todos os arranjos legais para se
casar com ela.

▷ Autor

Desconhecido. A tradição judaica diz que Samuel escreveu ou compilou


os relatos que deram origem ao livro. De fato, a repetida expressão “naqueles
dias, não havia rei em Israel” (17:6; 18:1; 19:1; 21:25) faz supor uma redação
ocorrida no tempo da monarquia. Não obstante, há quem entenda que o livro
reflete uma perspectiva posterior à conquista das tribos do norte pela Assíria
em 722 a.C. (18:30), o que levaria a composição do livro para depois dos dias
de Samuel. Seja como for, a história começa com a morte de Josué, após a
divisão da terra, e o início do reinado de Saul em 1050 a.C.

▷ Data

Rute viveu provavelmente por volta de 1100 a.C. A dedução desta data
se dá pelo fato de ela ter sido a bisavó de Davi e de este ter se tornado rei por
volta do ano 1000 a.C.

▷ Localização

A história se passa entre Moabe, que hoje fica na Jordânia, e Belém, que
atualmente é parte do território palestino.

▷ Características literárias

Rute é colocada na Bíblia hebraica entre os livros chamados “escritos”


(Ketuvim), que seriam a outra seção ao lado da lei e dos profetas. Embora seja
uma narrativa contando uma história de fidelidade e amor, o livro também
tem um papel litúrgico para os judeus. Nos Manuscritos do Mar Morto, o
livro de Rute foi identificado como shavuoth ou “semanas”. Ele pertencia,
portanto, aos ritos de comemoração do Pentecostes que ocorria do fim da
colheita de cevada e o início da colheita de trigo.

▷ Esboço

Rute retorna de Moabe a Judá com a sogra, Noemi (1:1-22).


Rute colhe grão no campo de Boaz. A lei exigiu que os proprietários
deixassem alguns grãos para os pobres e as viúvas (2:1-23).
Seguindo os costumes judaicos, Boaz se elege para se casar com Rute
(3:1-18).
Boaz se casa com Rute. Juntos, eles cuidam de Noemi e têm filhos (4:1-
28).

▶ 1 e 2Samuel

▷ Título e conteúdo

O título é dado em referência ao profeta cuja história inicia o livro. São


dois livros, conhecidos como 1 e 2Samuel, e estão na seção histórica da
tradução grega do Antigo Testamento chamada Septuaginta, e assim continua
nas primeiras bíblias cristãs traduzidas para o latim.
Ambos os livros gravitam em torno da história de três personagens:
Samuel, Saul e Davi. Cada um tem em sua biografia desdobramentos que
afetam toda a história do povo de Israel.
O primeiro livro começa com a história de Ana e sua bela oração de
súplica a Deus para que pudesse ter o privilégio de ser mãe. Em seguida, vem
o nascimento de Samuel, seu filho, o mesmo que dá nome aos livros. Então, a
história prossegue relatando como algumas tribos hebreias eram oprimidas
pelos filisteus, os milagres envolvendo a arca da aliança, o começo da
monarquia entre os hebreus até chegar, no final do segundo livro, ao episódio
em que Davi compra um terreno para a futura construção do templo e a
promessa de Deus de que a descendência do rei durará para sempre.

▷ Autor

A tradição judaica, desde longa data, aponta Samuel como o principal


redator da obra, que teve textos adicionados posteriormente pelos profetas
Gade e Natã. Mas teólogos que seguem na linha da alta crítica afirmam que
este livro pertence à tradição deuteronomista composta entre 630 a.C. e 540
a.C., a partir da compilação de textos independentes escritos em diferentes
períodos da história de Israel.

▷ Data

A narrativa de ambos os livros cobre, aproximadamente, de 1050 até


960 a.C., isto é, do nascimento de Samuel à morte de Davi.

▷ Localização
A narrativa começa em Siló, território israelita que na época servia de
“capital” ou “ponto de encontro” das tribos de Israel durante as festas
religiosas antes que houvesse monarquia, e se estende para o chamado reino
unificado de Davi, que compreendia grande parte do atual Estado de Israel,
Líbano, Síria e Jordânia.

▷ Características literárias

O gênero é claramente histórico, o que demonstra um grande avanço


cultural por parte dos antigos israelitas, pois todos os mais desenvolvidos
povos da Antiguidade (como os egípcios, sumérios, hititas e babilônios)
cultivavam acentuadamente o hábito de escrever registros reais de sua
monarquia. Esse fato, por si só, já demonstra o quanto o relato histórico era
cultivado e estimado pelo antigo povo de Israel.
Em termos de estilo, a diferença entre a historiografia bíblica e a
literatura do Antigo Oriente Médio é que a maior parte dela é compilada a
partir de documentos triunfalistas, estelas comemorativas de soberanos
relatando em destaque suas vitórias e extraordinárias façanhas. Já o texto
bíblico é conciso em narrar as vitórias dos reis, sempre atribuídas a Deus e
nunca à genialidade do monarca. Além disso, apresenta, sem restrições, os
fracassos trazidos por líderes de caráter duvidoso. E nem os sinceros homens
de Deus, como Davi, têm suas faltas ocultadas pelo redator. Pelo contrário,
ele as apresenta, bem como o genuíno arrependimento do rei para que todos
saibam que até os escolhidos de Deus falham e têm a chance de pedir perdão.
Esse mesmo gênero e estilo valem para os livros de Reis e Crônicas.
Rigorosamente falando, os primeiros livros de Moisés, incluindo o
Gênesis, deveriam também ser considerados como históricos. Contudo, para
facilitar o entendimento, são classificados como Lei por causa de sua estreita
relação com a leis mosaicas.
▷ Esboço

1Samuel
I. Renovação sob Samuel (1:1—7:17)
Nascimento e infância de Samuel (1:1—2:36)

Nascimento e dedicação de Samuel (1:1—2:11).


Crescimento de Samuel e a corrupção dos filhos de Eli (2:12-36).

Começo do ministério profético de Samuel 3:1—4:1

Seu chamado por Deus (3:1-9).


Sua palavra para Eli (3:10-18).
Seu ministério a todo Israel (3:19—4:1).

O ministério de Samuel como juiz (4:2—7:17)

A captura da arca pelos filisteus (4:2-11).


A morte de Eli (4:12-22).
Recuperação da arca por Israel (5:1—7:1).
Samuel exorta ao arrependimento (7:2-6).
Derrota dos filisteus (8:1—15:35).

II. O reinado de Saul (8:1—15:35)

Estabelecimento de Israel por um rei (8:1—12:25).


A exigência de Israel por um rei (8:1-22).
Saul é escolhido e ungido rei (9:1—12:25).
As guerras de Saul (13:1—14:52).
Saul é rejeitado por Deus (15:1-35).

III. Declínio de Saul e ascensão de Davi (16:1—31:13)


A crescente proeminência de Davi (16:1—17:58).
Sua unção por Samuel (16:1-13).
Sua música diante de Saul (16:14-23).
O conflito de Davi com os filisteus e os amelequitas (29:1—30:31).
A morte de Saul (31:1-13).

2Samuel
I. Os triunfos de Davi (1:1—10:19)

Os triunfos políticos de Davi (1:1—5:25).


O reino de Davi em Hebrom (1:1—4:12).
O reino de Davi em Jerusalém (5:1-25).

Os triunfos espirituais de Davi (6:1—7:29)

Mudando a arca (6:1-23).


Aliança de Deus com Davi (7:1-29).

Os triunfos militares de Davi (8:1—10:19)

Triunfos sobre os seus inimigos (8:1-12).


O governo justo de Davi (8:13—9:13).
Triunfos sobre Ámom e Síria (10:1-19).

II. As transgressões de Davi (11:1-27)

O pecado do adultério (11:1-5).


O pecado do assassinato (11:6-27).
Lealdade de Urias a Davi (11:6-13).
Ordem de Davi para assassinar Urias (11:14-25).
Casamento de Davi com Bate-Seba (11:26-27).

III. Os problemas de Davi (12:1—13:36)


Problemas na casa de Davi (12:1—13:36).
Profecia de Natã (12:1-14).
Morte do filho de Davi (12:15-25).
Lealdade de Joabe a Davi (12:26-31).
Incesto na casa de Davi (13:1-20).
Absalão mata Amom (13:21-36).

IV. Problemas no reino de Davi (13:37—24:25)

Rebelião de Absalão (13:37—17:29).


Joabe mata Absalão (18:1-33).
Restauração de Davi como rei (19:1—20:26).
Comentários sobre o reino de Davi (21:1—24:25).

▶ 1 e 2Reis

▷ Título e conteúdo

Como o próprio nome diz, refere-se à história dos reis de Israel, tanto na
época do reino unificado, após a morte de Davi e início do reinado de
Salomão, como após a divisão entre reino do Norte, com a capital em
Samaria, e reino do Sul, com a capital em Jerusalém.
Em algumas versões da Bíblia, os livros de 1 e 2Samuel são
denominados 1 e 2Reis, seguidos por estes dois livros, que são, por esta
forma, denominados 3 e 4Reis. Ou também, em poucos casos, 1 e 2Reis (para
aqueles que chamamos de 1 e 2Samuel), e Reis Hebreus para os que
chamamos de 1 e 2Reis.
▷ Autor

Desconhecido.

▷ Data

O relato cobre do início do reinado de Salomão (ca. 970 a.C.), seguido


pelos reinados de reis de Judá e Israel desde o começo da monarquia dividida
(ca. 930 a.C.) até a queda do reino de Israel nas mãos dos assírios, em 722
a.C. 2Reis relata a história dos reinos dos reis sobreviventes do sul de Judá
até o seu colapso nas mãos dos babilônios, ocorrido em 587 a.C.

▷ Localização

A história compreende grande parte do território atual do Estado de


Israel, Líbano, Síria, Jordânia e Iraque.

▷ Características literárias

O gênero permanece histórico, como os livros de Samuel. Não obstante,


os feitos de cada monarca hebreu não são apresentados sob a ótica de
realizações políticas, mas sob critérios teológicos, ou seja, sua fidelidade ou
não à aliança do povo com Deus. A maioria dos reis do reino do Norte são
consequentemente vistos sob um prisma negativo, uma vez que não
reconhecem a legitimidade exclusiva do culto divino no templo em
Jerusalém.
Entre uma e outra ação governamental, Deus sempre envia profetas, ora
para confortar ora para advertir e revelar os Seus desígnios tanto para a vida
do monarca como para o destino do povo de Judá e Israel. Por isso, os três
maiores temas que costuram toda a trama são as promessas de Deus, a
apostasia do povo e as consequências advindas do arrependimento ou da
impenitência.

▷ Esboço

1Reis

A sucessão davídica (1:1—2:46).


Salomão em toda a sua glória (3:1—11:43).
O cisma político e a divisão do reino (12:1—13:34).
Os dois reinos até Elias (14:1—16:34).
O ciclo de Elias (17:1).

2 Reis

O ciclo de Elias (1:1-18).


O ciclo de Eliseu (2:1—13:25).
Os dois reinos para a queda de Samaria (14:1—17:41).
Os últimos anos do reino de Judá (18:1—25:30).
▶ 1 e 2Crônicas

▷ Título e conteúdo

Os livros de Crônicas eram conhecidos como “livro dos acontecimentos


cotidianos”. Tratava-se de um único livro. O nome refere-se à forma como os
fatos históricos são apresentados nestes dois livros, a saber em uma ordem
sucessiva, mas não globalizante. Nas bíblias hebraicas eles são chamados de
Dibrê Hayyāmîm, que quer dizer “em relação aos dias”, e concluem a terceira
parte da Tanak, que são os Escritos ou Ketubim. O primeiro livro começa
com as genealogias desde Adão até os descendentes de Isaque, Israel (Jacó) e
Edom (Esaú) e, em seguida, narra os principais eventos do reinado de Davi.
Já o segundo livro cobre o mesmo período de 2Reis, mas com ênfase em
Judá, o reino do Sul, e seus governantes.

▷ Autor

Considerando que o livro termina com a conquista dos persas sobre a


Babilônia, em 538 a.C., muitos pensam que sua composição teria sido após
essa data, mas não se descarta o uso de material prévio na compilação final
do livro. A tradição judaica aponta Esdras como o responsável não apenas
pela compilação dos livros de Crônicas, mas também pelo livro de Esdras,
que leva o seu nome, e Neemias.
▷ Data

Embora a genealogia inicial parta de Adão e cubra os nove primeiros


capítulos de 1Crônicas, ambos os livros se concentram mais no período da
monarquia dividida de Israel, que vai desde 930 a.C. à chegada dos persas em
538 a.C. para derrotar a Babilônia e permitir aos judeus cativos o retorno para
sua terra. É, em síntese, o mesmo espaço de tempo de Samuel e Reis.
Distingue-se deles, porém, pela extensão da matéria, pois, de um lado,
restringe-se ao reino de Judá e, de outro, acrescenta muitas informações
acerca da verdadeira adoração a Deus no Templo em Jerusalém.

▷ Localização

A história compreende grande parte do território atual do Estado de


Israel, Líbano, Síria e Jordânia, Irã e Iraque.

▷ Características literárias

O estilo de redação focado no templo em Jerusalém e suas relações com


o restante da história, fez alguns pensarem que o gênero era cronista (daí o
título usado até hoje), pois cobriria detalhes não apresentados em Samuel e
Reis. Outros autores, no entanto, julgaram que os livros de Crônicas seriam
um comentário teológico das narrativas históricas escritas anteriormente.
Talvez a sugestão mais simples seja a mais viável, ou seja, que se trata de
uma fonte alternativa da história dos reis hebreus.
▷ Esboço

Registro das genealogias dos patriarcas e dos filhos de Jacó e Esaú até
ao rei Saul (1—9).
Um resumo do reinado de Davi (10—22).
A ascensão de Salomão ao trono substituindo Davi (23—29).
Um resumo do reinado de Salomão (1—9).
O reinado de Roboão e a divisão do reino do Norte e reino do Sul (10—
35).
O cativeiro babilônico e a chegada dos persas que permitem aos judeus
retornar para casa e reconstruir o templo destruído pelos babilônios (36).

▶ Esdras e Neemias

▷ Título e conteúdo

No texto hebraico e na versão dos LXX, Esdras e Neemias constituem


um só livro, com o título comum de Esdras. Mas já no tempo de Orígenes
(início do século 3) eram divididos em dois. Na Vulgata Latina são
intitulados 1 e 2Esdras. Desde épocas longínquas, porém, chamam-se
habitualmente Esdras e Neemias, nomes tomados dos principais personagens
de cada um deles.
Sua principal temática é o retorno dos judeus do cativeiro babilônico e a
reconstrução do templo e dos muros da cidade de Jerusalém.
Existem em algumas bíblias gregas e latinas um livro adicional ora
chamado 1Esdras ora 3Esdras. Trata-se de um livro curto, composto de nove
capítulos, e que apresenta versão diferente daquela dos dois últimos capítulos
das Crônicas, de todo o Esdras (com a transposição da ordem de alguns
capítulos) e de Neemias 8:1-12. Também apresenta uma disputa literária
entre três sátrapas da corte de Dario, o terceiro dos quais, Zorobabel, tendo
saído vencedor, obteve do rei a autorização para voltar à terra de Judá com
seus compatriotas judeus. Por ser um relato não canônico, isto é, não
inspirado, todo o livro foi colocado entre os apócrifos pela tradição judaico-
cristã.

▷ Autor

Tradicionalmente, Esdras é apontado como o autor desses dois livros.


Contudo, considerando que Neemias tem vários trechos escritos em primeira
pessoa, alguns acreditam que Esdras tenha compilado parte do material que
teria sido redigido pelo próprio Neemias e preservado nesta forma final que
conhecemos.

▷ Data

Os eventos giram em torno do quinto século a.C., quando os persas, sob


o comando de Artaxerxes, autorizam os judeus a voltarem para sua pátria e
reconstruírem o templo e a capital Jerusalém, que haviam sido destruídos
pelos babilônios em 587 a.C.

▷ Localização
A história se situa entre o Irã, partes da atual Jordânia e Jerusalém.

▷ Características literárias

Ambos os livros têm uma mescla de relatório cronista (a reconstrução de


Jerusalém passo a passo) com o acréscimo de cartas e decretos oficiais,
muitos escritos em aramaico, que era a língua diplomática ainda em uso no
período persa.
A importância da menção destes documentos oficiais está no fato de que
eles são o instrumento humano ― guiado por Deus ― que permitiu as ações
de Esdras e Neemias. Outros documentos secundários também representam
um elemento importante que faz parar e recomeçar o trabalho de reconstrução
dos muros e do templo de Jerusalém.

▷ Esboço

Esdras

Narrativa do regresso dos judeus de Babilônia e Zorobabel sob a


restauração da adoração no Templo reconstruído (1—6).
Segundo grupo de exilados que retornam com Esdras e as reformas
religiosas (7—10).

Neemias

Neemias retorna a Jerusalém (1—2).


Construção em meio à oposição de povos vizinhos (3:1—7:4).
Genealogia dos primeiros exilados que retornaram (7:5-73).
Aliança e reavivamento (8:1—10:39).
Os judeus em Jerusalém e a genealogia do povo (11:1—12:26).
Dedicação dos muros (12:27-47).
Reformas finais (13:1-31).

▶ Ester

▷ Título e conteúdo

O livro leva o nome de sua protagonista, Ester. É a história de uma


jovem judia chamada Hadassa bat Avihail, que se tornou esposa de Assuero,
rei da Pérsia, e por isso ficou conhecida pelo nome de Ester. Sua coragem e
fidelidade salvaram o povo judeu da destruição e deram origem à Festa do
Purim, celebrada anualmente por judeus do mundo inteiro para relembrar
outro momento de libertação divina do povo no passado. Curiosamente, é o
único livro da Bíblia que cita nominalmente a Índia ao descrever os limites
do governo da Pérsia (1:1 e 8:9).

▷ Autor

Duas redações nos chegaram deste livro: a hebraica e a grega da LXX.


A diferença entre ambas está essencialmente na quantidade de textos, pois a
versão grega contém seis seções adicionais que, tomadas em conjunto,
igualam a dois terços do livro hebraico.
A autoria dessas redações é desconhecida, contudo, levando-se em conta
a precisão com a qual o autor descreve os costumes persas, o palácio do rei
em Susa confirmado por escavações arqueológicas, e a ausência de
anacronismos nos fazem supor que se trate de algum judeu morador da Pérsia
no mesmo tempo em que o episódio ocorreu. Talvez o próprio Mardoqueu ou
Mordecai, parente de Ester, mencionado nominalmente na trama.

▷ Data

Pela própria indicação interna do livro, associada à Antiguidade da


celebração do Purim, acredita-se que a história de Ester se passou em algum
momento do quinto século a.C.

▷ Localização

Pérsia, atual Irã.

▷ Características literárias

No que tange ao gênero literário, existe uma grande diferença entre as


duas redações, hebraica e grega, que tem suas raízes profundas nos costumes
estilísticos das respectivas literaturas. Jerônimo já havia observado essa
diferença ao preparar sua tradução latina.
O texto hebraico, que tem maior aceitação entre judeus e protestantes, é
uma narrativa, em forma de novela, porém com matizes de historicidade
muito fortes que abordam a vida judaica num período de dominação
estrangeira sobre aqueles que viviam fora de seu domicílio de origem.
O texto grego, mais longo, é aceito por católicos e ortodoxos. Ele busca
dar maior religiosidade ao escrito, talvez por causa das resistências que sofria
para entrar no cânon. Nele estão as orações de Mardoqueu e Ester, além de
um sonho de Mardoqueu, no qual previa tudo o que iria acontecer, e mais os
decretos promulgados pelo rei Assuero (tanto o da morte dos judeus como o
da morte dos que intentavam contra eles). Contém também os detalhes do
encontro de Ester com o rei e um último sonho profético de Mardoqueu.
Um dos aspectos estilísticos empregado frequentemente pelo autor de
Ester é o uso abundante de símbolos ― um indivíduo ou objeto que aparece
em lugar de outro que não ele próprio. No livro de Ester, as personalidades
são ― elas próprias ― os mais fortes símbolos, com a rainha representando o
perturbado povo de Deus ― naquela época e da atualidade, que, ao mesmo
tempo em que toma decisões momentosas, aguarda o providencial plano
divino de libertá-lo.

▷ Esboço

Uma nova rainha é escolhida (1:1—2:18).


A vida do rei é salva (2:19-23).
Complô contra os judeus (3:1—4:17).
Mardoqueu é exaltado (5:1—6:14).
Hamã é enforcado (7:1-10).
Os judeus são salvos (8:1—9:17).
A Festa de Purim é estabelecida (9:18—10:3).
▶ Jó

▷ Título e conteúdo

A história de Jó é uma das mais conhecidas da Bíblia, e está registrada


no livro do Antigo Testamento que traz seu nome. Trata da saga de um
homem fiel a Deus que teve de descobrir em meio aos mais terríveis
sofrimentos como confiar em Deus e manter sua integridade. Por trás dessa
história está a grande pergunta da teodiceia: se Deus é bom, por que sofrem
aqueles que lhes são fiéis?

▷ Autor

A mais antiga tradição judaico-cristã aponta Moisés como o autor desse


livro que haveria de ser o primeiro texto escrito da Bíblia Sagrada. Há
acadêmicos, no entanto, que atribuem a autoria de Jó a um dos antigos sábios,
cujos escritos podem ser vistos em Provérbios ou Eclesiastes. Talvez o
próprio Salomão seria um deles.

▷ Data

Se considerarmos Moisés o autor do livro, este teria sido composto em


algum lugar em Midiã por volta do século 15 a.C. A história, porém, deve ter
acontecido bem antes disso. Elementos internos do texto dão a entender que
Jó teria existido no período patriarcal ou até mesmo antes dele.

▷ Localização

Não se tem uma certeza de onde ficava a terra de Uz, cidade de Jó.
Contudo, alguns autores entendem que seria aproximadamente na área da
moderna Jordânia a sudoeste e sul de Israel. A dedução disso se dá por causa
de um texto de Lamentações 4:21, que diz: “Regozija-te e alegra-te, ó filha de
Edom, que habitas na terra de Uz” (grifos nossos). Ora, Edom é a atual
Jordânia.
Contudo, um texto encontrado entre os Manuscritos do Mar Morto, o
chamado Manuscrito da Guerra, fala de Uz como estando além do rio
Eufrates, talvez em algum lugar da Síria. Há também comentaristas que
sugerem sua localização na Arábia ou no Uzbequistão. Deve-se levar em
conta que a Bíblia também traz o nome Uz como nome próprio de pessoas e
que no livro de Jó limita-se a dizer que a Terra de Uz ficava no Oriente, sem
mais detalhes a esse respeito.

▷ Características literárias

O livro de Jó possui duas seções, uma em prosa (cf. Jó 1—2; 42:7-17) e


outra em poesia (cf. Jó 3:2—42:6). A seção em prosa emoldura a poesia
dividindo-a em duas subseções: um prólogo (Jó 1—2) e um epílogo (Jó 42:7-
17). É um livro cheio de trocadilhos, expressões idiomáticas acentuadas e
descrito como um drama épico. Apesar de a porção principal da composição
ser de natureza poética e ter a forma de um debate, o arcabouço em forma de
prosa revela a natureza histórica do drama. Neste sentido, a narrativa provê a
base para a discussão inteira acerca da providência divina versus o sofrimento
humano.

▷ Esboço

I. Introdução (1:1—2:13)

Jó é consagrado e rico (1:1-5).


Satanás desafia o caráter de Jó (1:6-12).
Satanás destrói as propriedades e os filhos de Jó (1:13-22).
Satanás ataca a saúde de Jó (2:1-8).
Reação da esposa de Jó (2:9,10).
A visita dos amigos de Jó (2:11-13).

II. Diálogo entre Jó e os seus três amigos (3:1—26:1)

Clamor de desespero de Jó (3:1-26).


Primeiro diálogo (4:1—14:22).
Segundo diálogo (15:1—21:34).
Terceiro diálogo (22:1—26:14).

III. Discurso final de Jó aos seus amigos (27:1—31:40)

IV. Eliú desafia Jó (32:1—37:24).


V. Deus responde de um remoinho (38:1—41:34).
VI. A resposta de Jó (42:1-6).
VII. Parte histórica final (42:7-17).
▶ Salmos

▷ Título e conteúdo

O livro de Salmos era o livro de cânticos do povo de Israel no passado.


Composto por diversos autores, ao longo de vários séculos, serviam tanto à
liturgia quanto às festas e demais atividades religiosas e civis da comunidade.
Muitos salmos não têm seu autor identificado, mas provavelmente eram
cânticos conhecidos por muitas pessoas e transmitidos de geração em
geração.

▷ Autor

Muitos associam o livro de salmos a Davi, o salmista. De fato, menos da


metade (73) dos 150 salmos é atribuída a ele; doze deles são atribuídos a
Asafe. Os filhos de Coré são associados a onze salmos, dois são atribuídos a
Salomão, um a Moisés, um a Etã (Salmos 89)115 e um a Hermã, o resto é
anônimo.
Asafe foi o chefe do coral que tocava címbalos diante da arca do Senhor
(1Crônicas 16:4-7; Salmos 50; 73; 83). Os filhos de Coré são descendentes
do levita que se rebelou no deserto e foi tragado pela terra (Números 16:1-34;
26:10,11). De acordo com 2Crônicas 20:19, alguns dos filhos de Coré
permaneceram fiéis a Deus.
▷ Data

Sobre a datação dos salmos, a maioria deles é do período monárquico,


exílico e pós-exílico. Contudo, alguns podem ser datados da época do
assentamento dos hebreus em Canaã. É o caso do salmo 90 (tradicionalmente
atribuído a Moisés) e dos salmos 29 e 68, por imitarem o estilo poético
cananita encontrado em Ugarite. Alguns autores creem que, no início, os
membros do coral do templo eram recrutados de famílias cananitas que se
ajuntaram à comunidade israelita nos dias de Davi, conforme vemos no
primeiro livro dos Reis (veja 1Reis 4:31), afinal Hermã, Etã e Coré não são
típicos nomes israelitas. Contudo, o salmo 150 fala de instrumentos usados
pelos levitas no Templo, provavelmente estes não poderiam cantar no templo
em companhia ou acompanhados por uma orquestra com músicos não judeus.

▷ Localização

É difícil precisar uma localidade para o livro dos Salmos. Alguns


parecem ter sido compostos na Babilônia, mas a maioria parece pertencer ao
território de Israel, especialmente Jerusalém. O salmo atribuído a Moisés teria
sido escrito durante a peregrinação de Israel pelo deserto.

▷ Características literárias

Embora os salmos sejam, a rigor, poesias hebraicas, eles podem ser


subdivididos em categorias. A maior divisão de categorias dos salmos seria:
1. LOUVOR
2. Ascensão ou PEREGRINAÇÃO
3. LAMENTO

▷ Louvor

Tĕhillāh (plural Tehillim — canções de louvor; não confunda com


Tevila — a porção da lei na testa): louvor descritivo; adoração a Deus
por sua majestade (salmos de entronização a Deus como rei do
Universo: 47; 93; 96), grandiosidade etc. Louvor a Deus por sua
divindade.
Tôdāh: agradecimento narrativo adoração a Deus por uma experiência
de salvação pessoal ou coletiva ligada a um evento específico. Louvor a
Deus por sua salvação.

▷ Peregrinação ou ascensão

Quem os caracterizou foi Klaus Seybold. São os salmos 120 a 134, os


quais o povo cantava quando estava voltando para Jerusalém após o exílio da
Babilônia e, posteriormente, nas festas anuais quando iam para elas. Pierre
Auffret acrescenta a esse grupo os salmos 135-138, o que, para mim, faz
sentido. Ele vê outro grupo (15—24) como um grupo adicional em forma
quiástica com o salmo 19 no centro, porém sua visão não é consensual entre
os estudiosos. Westermann vê o saltério original como composto do salmo 1
ao 119, e os demais acrescentados após o cativeiro, porém não dá para ser
dogmático quanto a isso. O problema para os especialistas são as cópias de
salmos encontradas na caverna 11 de Qumran, que apresentam, como vimos,
uma ordem diferente.

▷ Lamento

Busca por justiça.


Busca por refúgio.
Busca por livramento (da miséria, da doença, dos pecados — conceito
de perdão).

Observação: Existem várias questões quanto aos salmos de lamento


emitidos por indivíduos. Quem é o indivíduo (o “eu”) que escreveu o salmo?
Quem é o inimigo?, Qual é a sua necessidade?.

▷ Esboço

O livro parece arranjado em cinco distintivas divisões:

1. 1—41, salmos de Davi a YHWH: há uma predominância do nome de


Sagrado como designação significativa de Deus (o nome YHWH é
usado 279 vezes, e Elohim, 45 vezes). Doxologia, 41:13: “Bendito seja o
Senhor Deus de Israel, de eternidade a eternidade. Amém e Amém.”
2. 42—72, salmos eloísticos: Elohim aparece 262 vezes aqui. Doxologia,
72:18-20: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel […] amém e amém.”
3. 73—89, enfatizam tanto Javé como Elohim. Alguns os entendem como
salmos dos filhos de Davi. Doxologia, 89:52: “Bendito seja o Senhor
para sempre, amém e amém.”
4. 90—106, escritos possivelmente compilados após o cativeiro, onde os
judeus tinham outra visão de mundo. Um salmo é atribuído a Moisés,
um a Davi e o restante é anônimo. Doxologia, 106:48: “Bendito seja o
Senhor Deus de Israel, de eternidade a eternidade, e todo o povo diga
Amém e Aleluia.”
5. 107—150, salmos cantados logo após o cativeiro na subida de volta para
Jerusalém, e também nas festas religiosas pelos judeus da Diáspora
subindo para Jerusalém. Doxologia, 150:1-6: “Aleluia […] Aleluia […]”

▶ Provérbios

▷ Título e conteúdo

Trata-se de uma coletânea de aforismos e citações breves, porém cheias


de sabedoria, que guiavam moralmente o antigo povo de Israel. Seu título em
hebraico procede da palavra mashal, que tem um sentido mais amplo que o
termo “provérbio” em português. Provérbio geralmente se limita a um dito
curto, inteligente e atrativo. Mashal, por sua vez, pode ser um pouco mais
estendido e vir na forma de um conto, uma parábola, uma comparação ou um
conselho.

▷ Autor

O rei Salomão é o principal autor ou compilador de Provérbios. Seu


nome aparece em Provérbios 1:1, 10:1 e 25:1. Se entendermos Eclesiastes
como sendo outro livro de Salomão, é possível que sejam a esses provérbios
que Eclesiastes 12:9 faz referência : “O Pregador, além de sábio, ainda
ensinou ao povo o conhecimento; e, atentando e esquadrinhando, compôs
muitos provérbios.” Na verdade, o título hebraico Mishle Shelomoh é
traduzido como “Provérbios de Salomão”.

▷ Data

Sendo Salomão o principal editor desse conjunto de sabedoria, o livro


deve ter sido criado por volta do século 10 a.C., quando viveu o referido rei
de Israel.

▷ Localização

Jerusalém.

▷ Características literárias

Apesar de quase metade do livro ser composta por “aforismos” e ditos


curtos, a outra parte é redigida em forma de longas seções poéticas de tipos
variados. Entre elas temos “instruções”, advertências formuladas como
conselhos de um professor a um aluno ou de um pai a seu filho. Tem-se
também conselhos que um rei dá ao príncipe que lhe substituirá no trono. Há
curiosas personificações dramatizadas como sendo a sabedoria e a tolice
munidas de sentimento próprio. Por fim, há os “ditos dos sábios”, mais
longos que os ditos “salomônicos”, e mais curtos (e mais variados) que as
“instruções”.

▷ Esboço

Provérbios de Salomão, Filho de David, rei de Israel (1—9).


Provérbios de Salomão (10—22:16).
Os ditos dos sábios (22:17—24:22).
Estes também são ditos dos sábios (24:23-34).
Estes são outros provérbios de Salomão que os oficiais do rei Ezequias
de Judá copiaram (25:1—29:27).
As Palavras de Agur (30:1-33).
As Palavras do rei Lemuel de Massa, que sua mãe lhe ensinou” (31:1-9).
A mulher sábia ideal (também chamado de “mulher de substância”)
(31:10-3).

▶ Eclesiastes

▷ Título e conteúdo

O nome Eclesiastes vem do grego, através do latim, e significa,


literalmente, aquele que chama, convoca uma assembleia para ouvir um
importante pronunciamento. É uma tentativa muito próxima de traduzir o
original hebraico que o chama de Qohelet. Embora o significado preciso do
termo seja um tanto incerto, sabe-se que ele vem da palavra Qahal, que quer
dizer assembleia, reunião, de modo que o que convoca seria realmente um
pregador ou preletor (aquele que explica).
O convite, neste caso, é para ouvir a sabedoria de um velho homem que
viveu o bastante para refletir sobre a vaidade da vida e das conquistas,
levando os ouvintes/leitores a consideraram o que realmente vale a pena: o
temor e a glória de Deus. Um apelo especial é dirigido aos mais jovens, que
seriam os mais atingidos pelas vaidades da vida.

▷ Autor

Pouco se sabe a respeito do autor de Eclesiastes, além da descrição que


ele dá de si mesmo como “o pregador, filho de Davi, rei em Jerusalém”
(Eclesiastes 1:1). Tal declaração tem feito com que o texto seja, desde longa
data, atribuído a Salomão, e não existem razões claras para negar sua autoria.

▷ Data

Se aceitarmos a autoria salomônica, o livro deve ter sido elaborado por


volta do século 10 a.C., quando viveu o referido rei de Israel. Contudo, sua
forma final pode ter sido criada mais tarde, pois em Eclesiastes 1:1—11 e
12:8—14 o texto refere-se ao pregador na terceira pessoa. Isso sugere que
outra pessoa, e não o próprio pregador, compilou seus escritos e
ensinamentos algum tempo depois que foram feitos. Quanto tempo depois,
não sabemos.
▷ Localização

Jerusalém.

▷ Características literárias

O gênero sapiencial do livro tem um estilo provocador. É que, embora o


autor diga ser uma pessoa que crê em Deus, ousa fazer perguntas como se
não acreditasse. Isso obriga o leitor a ler tudo até o fim, pois tudo o que é dito
insere-se obrigatoriamente em sua conclusão, isto é, que todas as ações serão
julgadas por Deus (Eclesiastes 12:13-14).
Por um lado, o texto parece dirigido a pessoas descrentes, pois
sistematiza perguntas feitas por quem não tem esperança. Por outro lado,
provoca aos que estão acomodados em sua crença, para que reflitam sobre
perguntas que o comodismo muitas vezes evita tratar.
O pregador apresenta perguntas e afirmações com as quais muitas dessas
pessoas tendem a concordar, mas depois as ajuda a ver quanto propósito e
sentido é possível encontrar na vida se formos fiéis aos mandamentos de
Deus.

▷ Esboço

Prólogo (1:1-2).
O problema da vaidade (1:3-11).
Tentativas de solução para o problema (1:12—2:26).
Nulidade dos esforços humanos (3:1—6:12).
A sabedoria do dia a dia (7:1—8:9).
Novamente a nulidade da vida (8:10—9:18).
A sabedoria na prática (10:1—11:6).
O temor e a Glória de Deus (11:7—12:7).
A conclusão de todas as coisas (12:8-14).

▶ Cantares

▷ Título e conteúdo

Alguns preferem chamá-lo de “Cântico dos Cânticos”, um superlativo


que serve para indicar que embora existam outros do mesmo autor este é o
melhor dentre eles. Trata-se de um poema lírico escrito para exaltar as
virtudes do amor entre um homem e uma mulher. O poema claramente
apresenta o plano matrimonial como ideal divino. Um homem e uma mulher
devem viver juntos, amando um ao outro plenamente com todas as
faculdades físicas, mentais e espirituais. Por essa mesma razão, o livro de
Cantares, em que pese o tom sexual de algumas passagens, é usado para
representar o amor de Deus por seu povo ou de Cristo por sua Igreja.

▷ Autor

De acordo com o próprio livro, seu autor seria o rei Salomão. Este
cântico seria uma das 1005 canções que ele escreveu (1Reis 4:32).
▷ Data

Salomão provavelmente escreveu esse cântico durante a primeira parte


de seu reinado. Isso colocaria a data de composição por volta de 965 a.C.

▷ Localização

Jerusalém.

▷ Características literárias

Trata-se de um longo poema que não nega ao objeto de afeição qualquer


demonstração de carinho. O sentimento pelo outro explode em palavras na
boca daquele que o expressa e sintetiza de modo exponencial o ideal de Deus
para o ser humano, que é o complemento trazido pela união com o sexo
oposto.
Mas o texto adverte contra o extremo do ascetismo (a negação de todo o
prazer) e do hedonismo (busca desenfreada pelo prazer). O ideal do
casamento, proposto por Deus, é aqui exemplificado numa mistura de
atenção, afeto, empenho e prazer.

▷ Esboço
A afeição mútua entre o esposo e a esposa (1:1—2:7).
A esposa fala de seu esposo. Seu primeiro sonho sobre ele (2:8—3:5).
O cortejo nupcial. O segundo sonho da esposa. Sua conversa com as
filhas de Jerusalém (3:6—6:3).
O esposo continua louvando a beleza da esposa. O desejo dela é para ele
(6:4—8:4).
Expressões finais de amor mútuo (8:5-14).

▶ Isaías

▷ Título e conteúdo

O título segue o nome do autor. Trata-se de uma coletânea de oráculos


proféticos dados num longo espaço de tempo em que Judá e Jerusalém
convivem com uma série de problemas internos e externos. Parte dos
problemas estava na situação geográfica de Judá, que ficava no caminho entre
o Egito e a Assíria, duas superpotências disputando o poder.
Pelo menos três grandes ataques e devastações são aludidos no livro: a
guerra sírio-efraimita (duas vezes) e a invasão da Assíria (uma vez). Judá era
constantemente ameaçado por estes povos, fora a exploração dos ricos sobre
os pobres num contexto em que os próprios governantes de Jerusalém eram,
em sua maioria, corruptos e apartados da lei de Deus.
Quatro grandes temáticas perpassam todo o livro: a grandeza de Deus,
seu julgamento sobre as nações, sua relação com seu povo e a vinda do
Messias.
▷ Autor

A tradição judaico-cristã sempre apontou Isaías, denominado no texto


como o autor do livro que leva o seu nome. Contudo, a partir do século 18, os
promotores da alta crítica apresentaram teses que negavam a unidade do livro
de Isaías. A ideia ainda defendida por muitos é de que se tratam de dois ou
três autores, e não apenas um. Assim, o livro seria composto de três partes
distintas: a primeira (1—39) seria do século 8 a.C., a segunda (40—55) seria
do período do exílio babilônico (587-538 a.C.), e a terceira (56—66) depois
do exílio babilônico, em que os judeus voltaram para restaurar Jerusalém. A
essas partes dá-se o nome de proto, deutero e trito-Isaías.
Contudo, há também autores de linha mais conservadora que ainda
defendem, com base no texto original, que se trata de um único autor
escrevendo o livro em três diferentes períodos de sua vida, cuja compilação
final se deu apenas após a sua morte.

▷ Data

Isaías viveu entre 765 e 681 a.C. Seu chamado se deu no ano da morte
do rei Uzias, em 740 a.C., e seu ministério profético foi exercido no reino
Judá durante os reinados de Uzias (c. 2Crônicas 26; 22), Jotão, Acaz,
Ezequias e Manassés.

▷ Localização

Jerusalém.
▷ Características literárias

O livro é repleto de oráculos, paralelismos e estruturas concêntricas. O


oráculo é o anúncio da mensagem de Deus que o profeta precisava entregar.
O paralelismo é um estilo menor que aparece dentro dos oráculos. Ele ocorre
quando o escritor expressa uma ideia e, em seguida, repete ou contrasta a
ideia usando uma estrutura textual semelhante com palavras diferentes. Isaías
1:2 é um exemplo: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, tu, ó terra.” Esse tipo de
introdução não apenas chama todos a ouvirem seu discurso, como facilita a
memorização daquilo que será dito.
O mesmo se dá com a estrutura concêntrica, que repete os paralelos de
forma cônica, direcionando a mensagem para um ponto central. É o caso de
Isaías 55:8-9:
A Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos,
B Nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor.
C Porque assim como os céus são mais altos que a terra
B’ Assim são os meus caminhos mais altos que os vossos caminhos
A’ E os meus pensamentos mais altos que os vossos pensamentos.

▷ Esboço

Oráculos sobre Judá e Jerusalém (1:1—6:13).


Livro da Consolação (7:1—12:6), que corresponde ao tempo da guerra
siro-efraimita. Também é chamado “Livro do Emanuel”.
Oráculos contra as nações estrangeiras (13:1—23:18).
Apocalipses (24:1—27:13 e 34:1—35:10), que anunciam a renovação
futura (escatologia) e são de um autor pós-exílico.
Oráculos de salvação de Israel e Judá (28:1—33:24).
Apêndice histórico, relacionado ao reinado de Ezequias (36:1—39:8).
Deus Libertador (40:1—48:22).
Restauração de Sião (49:1—55:13).
Promessas e orientações aos que vierem da Babilônia (56:1—66:24).

▶ Jeremias

▷ Título e conteúdo

Este é outro livro profético denominado a partir do nome de seu autor.


Trata-se de uma coletânea de profecias que registram o destino final de Judá,
advertindo-lhes sobre a destruição que se aproxima. O juízo de Deus viria
pelas mãos dos babilônios que destruiriam a cidade de Jerusalém por causa
de sua impenitência, imoralidade e idolatria. Jeremias, que era sacerdote e
profeta, conclama ao povo que se arrependa, mesmo sabendo que já era tarde
demais.
Contudo, ainda existe uma esperança. O mesmo profeta que anuncia a
vinda do cativeiro também prediz o tempo de sua duração. O povo haveria de
voltar, Deus não os rejeitaria para sempre. Uma nova aliança seria feita e
Deus restauraria a alegria de seu povo (Jeremias 31:31-33).

▷ Autor

Jeremias.
▷ Data

O livro de Jeremias foi escrito entre 630 e 580 a.C.

▷ Localização

Jerusalém.

▷ Características literárias

Seguindo a linha dos livros proféticos, Jeremias também possui vários


oráculos revelados por Deus que deveriam ser transmitidos ao povo.
Contudo, ele tem uma peculiaridade: a narrativa profética geralmente foca
sua atenção na mensagem, e não na vida do profeta. Jeremias, no entanto,
contém informações biográficas extensivas acerca do seu autor. O texto
mostra, além de suas mensagens, o lado humano do profeta, sua angústia
emocional e seu conflito interno diante da oposição que sofrera por pregar a
palavra de Deus (cf. Jeremias 8:18—9:2; 15:15-18; 20:7-9; 26; 32; 37; 38).

▷ Esboço

Pregação durante o reinado de Josias. Jerusalém seria destruída (1—6).


Pregação em vários lugares de Jerusalém, inclusive no portão do templo,
usando várias metáforas para suplicar ao povo que melhore os seus
caminhos (7—20).
Pregação durante o reinado do rei Zedequias. Babilônia conquistaria
Jerusalém (21—38).
Jerusalém é conquistada e muitos judeus são levados cativos para a
Babilônia. Os que permanecem em Judá rejeitam a mensagem do profeta
(39—44).
Jeremias promete a Baruque, seu escriba, que o Senhor vai preservar sua
vida (45).
Jeremias profetiza sobre a destruição dos filisteus, moabitas, babilônicos
e povos de outras nações (46-52).

▶ Lamentações

▷ Título e conteúdo

Textos de lamentação são comuns na literatura do Antigo Oriente


Médio. Eles geralmente evocam a dor individual ou coletiva causada pela
destruição de uma cidade, pela morte de um ente querido ou pelo castigo
infligido por uma divindade. No contexto bíblico não é diferente. Há salmos
de lamentação e seções em diversos profetas. Neste caso, o livro inteiro é um
grande lamento profético pela destruição do templo e da cidade de Jerusalém
pelos babilônios em 587 a.C. Seu próprio título em hebraico é uma
exclamação de luto.
▷ Autor

Embora o próprio livro não pareça denominar seu autor, uma antiga
tradição que remonta ao período da LXX o identifica com Jeremias. Nesta
versão grega os judeus acrescentaram a seguinte anotação antes do capítulo
1:1: “Aconteceu que, depois da redução de Israel ao cativeiro e de Jerusalém
ao deserto, o profeta jeremias sentou-se chorando; ele proferiu esta
lamentação sobre Jerusalém e disse.”

▷ Data

Ca. de 587 a.C.

▷ Localização

Não sabemos onde Jeremias estava quando escreveu o livro, mas pode
ter sido em Jerusalém ou no Egito (ver Jeremias 43:6-7).

▷ Características literárias

O livro inteiro de Lamentações foi escrito em poesias muito bem


construídas. Os quatro primeiros capítulos formam acrósticos. Um acróstico é
uma forma poética na qual as primeiras letras de cada linha formam uma
sequência significativa. Esse recurso aparece também nos assim chamados
“Salmos alfabéticos”, como é o caso do salmo 119. O livro de Lamentações
contém composições de acrósticos com base nas 22 letras do alfabeto
hebraico.
Os capítulos 1, 2 e 4 contêm 22 versículos cada, e cada um começa com
uma letra diferente do alfabeto hebraico, em ordem alfabética. O capítulo 3
contém 66 versos. Os três primeiros começam com álef, a primeira letra do
alfabeto hebraico, os próximos três versículos começam com a segunda letra,
beth, e assim por diante. O último capítulo contém 22 versículos, mas não é
um acróstico.

▷ Esboço

O primeiro poema: a miséria, o pecado e a oração de Jerusalém (1:1-22).


O segundo poema: a destruição mandada por Deus e a reação do profeta
(2:1-22).
O terceiro poema: a severidade e misericórdia de Deus; a submissão e a
oração do povo (3:1-66).
O quarto poema: devastação, o resultado da desobediência (4:1-22).
O quinto poema: uma oração registrando o sofrimento e apelos finais de
Jerusalém (5:1-22).

▶ Ezequiel
▷ Título e conteúdo

Livro profético que leva o nome de seu autor. O profeta era


contemporâneo de Jeremias e Daniel. Aos 30 anos de idade, Ezequiel teve
uma visão da glória de Deus e foi chamado para ser profeta (Ezequiel 1:1-3).
A partir daí, ele iria profetizar para o povo de Israel espalhado pelo império
babilônico.

▷ Autor

Ezequiel.

▷ Data

O livro de Ezequiel foi provavelmente escrito entre 593 a.C. e 565 a.C.,
durante o cativeiro babilônico dos judeus.

▷ Localização

Jerusalém e Babilônia (atual Iraque).


▷ Características literárias

No livro existem relatos de visões, mescladas de atos simbólicos,


parábolas e alegorias. É certo que os outros profetas também empregam os
mesmos elementos literários em sua mensagem, mas em Ezequiel esses
elementos se ampliam. As visões são mais extensas e escritas com mais
pormenores do que em outros profetas. Há quem diga que ele seria o primeiro
autor do Antigo Testamento a utilizar o estilo apocalíptico de revelação
profética.

▷ Esboço

O chamado de Ezequiel (1:1—3:21).


Oráculos sobre a destruição de Jerusalém (3:22—24:27).
Oráculos sobre a destruição das nações estrangeiras (25:1—32:32).
Profecias de restauração (33:1—48:35).

▶ Daniel

▷ Título e conteúdo

Título dado após seu autor tradicional. Conta a história de Daniel, que
viveu a maior parte de sua vida como exilado na Babilônia e na Medo-Pérsia
Contém uma parte histórica, narrando a própria vida do profeta, e outra
profética, apresentando sonhos e visões relacionadas ao juízo de Deus e o fim
dos tempos. É o livro do Antigo Testamento que tem mais relações literárias
com o Apocalipse de João.

▷ Autor

Tradicionalmente, acredita-se que foi o próprio Daniel quem escreveu


este livro, embora sua edição final possa ter sido obra de outra pessoa. Os
proponentes da alta crítica, no entanto, atribuem o livro a um ou mais judeus
anônimos que viveram durante o período dos Macabeus.

▷ Data

A abordagem mais conservadora atribui a composição do livro


aproximadamente entre 605 e 520 a.C. Os partidários da alta crítica colocam
o livro durante o período das guerras entre os Ptolomeus e Selêucidas e o
reinado de Antíoco Epífanes IV (175-164 a.C.).

▷ Localização

Jerusalém, Babilônia (atual Iraque) e Pérsia (atual Irã).


▷ Características literárias

O livro começa como narrativa, destacando a biografia de Daniel e seus


companheiros levados como cativos pelo rei da Babilônia. Então, a partir do
capítulo 7, inicia-se uma cadeia de simbolismos proféticos, envolvendo
bestas, feras, luta do bem contra o mal e bastante teor apocalíptico. Ao falar
de coisas terrenas, o autor tem uma preferência pelo uso da prosa, ao passo
que, ao falar de coisas celestiais, opta pela poesia.

▷ Esboço

O cativeiro (1:1-21).
O sonho, a imagem de ouro e a humilhação do rei da Babilônia (2:1—
4:37).
Juízo sobre o rei da Babilônia (5:1-31).
Daniel na cova dos leões (6:1-28).
Visão dos quatro animais (7:1-28).
Visão do Carneiro e do Bode (8:27).
Oração de Daniel e a profecia das setenta semanas (9:1-27).
Visões na Pérsia (10:1—12:13).

▶ Oseias
▷ Título e conteúdo

Traz a mensagem e a vida de um dos profetas de Israel que teve sua


situação matrimonial usada por Deus para exemplificar o perdão dado ao
povo que se desviara da aliança. A condição adúltera de Israel, o chamado ao
arrependimento e as alusões ao Juízo de Deus são o elemento-chave de todo o
livro.

▷ Autor

Não se sabe exatamente quem escreveu o livro, porém, a considerar


pelas informações autobiográficas que aparecem no texto, pode-se dizer que
o próprio Oseias seria o autor do livro que leva o seu nome.

▷ Data

Provavelmente no oitavo século a.C., durante o reinado de Jeroboão II,


rei de Israel (782-753 a.C.). Há quem diga, no entanto, que devido às suas
constantes referências ao reino de Judá, a composição do livro só se deu após
a queda de Samaria, em 722 a.C.

▷ Localização
Samaria, capital do reino de Israel.

▷ Características literárias

O livro possui um estilo narrativo e biográfico. Contudo, a condição


infeliz de um homem que é traído por sua esposa em uma sociedade
altamente patriarcal e a perdoa posteriormente é tido por muitos como sinal
de que não se trata de uma história verdadeira, mas apenas uma metáfora para
reforçar o simbolismo da mensagem do profeta. Contudo, não existem
elementos factíveis para se negar a historicidade da trama.
O único ponto de dubiedade no texto é quanto à condição civil de
Gomer, esposa do profeta, antes de seu casamento. Afinal, Deus lhe mandara
tomar por esposa uma mulher que lhe trairia ou uma prostituta que não teria
direito ao matrimônio comum? O fato é que eles se casaram, Gomer gerou
três filhos e depois foi, ou voltou, para a vida de desonra. O texto não
esclarece qual seria a “prostituição” da mulher, mas no capítulo 3 Deus
ordena a Oseias que retome a esposa que o havia traído. A dura experiência
do profeta é usada no livro para ilustrar a situação divina em retomar para si
um povo que também lhe traíra indo após outros deuses.

▷ Esboço

A família de Oseias (1:1—3:5).


A infidelidade de Israel (4:1-19).
O julgamento divino (5:1-15).
Pecado e arrependimento não genuíno (6:1—7:16).
O juízo de Deus (8:1—9:17).
Ilustrações do campo (10:1-15).
O convite de Deus (11:1—12:14).
Ingratidão do povo (13:1-16).
Promessas de Deus (14:1-9).

▶ Joel

▷ Título e conteúdo

Trata-se de um livro pequeno (apenas três capítulos) que leva o nome de


seu mensageiro, o profeta Joel. O texto pode ser dividido em duas grandes
temáticas. A primeira seria um convite ao povo para que aceite o luto e
supliquem a misericórdia de Deus após enfrentarem uma invasão de
gafanhotos na Judeia. A segunda seria o julgamento das nações e conseguinte
vitória de Javé, bem como de Israel sobre seus inimigos.
O tema principal do livro de Joel é o Dia do Senhor, um dia da ira e do
juízo divino. Contudo, há uma mensagem especial sobre a misericórdia de
Deus, que tem a capacidade de perdoar e aplacar sua própria ira se o povo se
dispuser a mudar de atitude. Outro ponto fundamental é o tema do
derramamento do Espírito Santo (3:1-2). O Novo Testamento retomará estes
versos para interpretar o fenômeno de Pentecostes, ocorrido após a ascensão
de Cristo (Atos 2:16-21).

▷ Autor
De acordo com o livro, o autor seria o próprio Joel que dá nome à obra.

▷ Data

O livro de Joel foi provavelmente escrito entre 835 e 800 a.C. Há


autores, no entanto, que o datam em algum tempo após o cativeiro da
Babilônia, no século 5 a.C.

▷ Localização

Judeia.

▷ Características literárias

Conforme dito acima, são duas partes que compõem a obra. Uma fala da
praga de gafanhotos e a outra do juízo de Deus sobre as nações. A prosa e a
poesia profética predominam em toda a narrativa. Contudo, a diferença entre
as duas partes seria apenas em termos sequenciais, pois se a primeira for
entendida como símbolo do juízo de Deus (os gafanhotos seriam exércitos do
juízo divino), pode-se dizer que temos no começo a proclamação dos juízos
históricos de Deus, permitindo a aflição de seu povo e no final a proclamação
do juízo escatológico de Deus, que seria o acerto de contas final com a
humanidade.
Muitos autores percebem no livro os traços iniciais da literatura
apocalíptica. Joel, neste sentido, seria uma ponte entre a profecia clássica e a
literatura apocalíptica que estava nascendo. Daí a linguagem metafórica
baseada na praga de gafanhotos.

▷ Esboço

I. A mão do Senhor no presente (1:1—2:27).

A destruição pelas locustas (1:2—2:11).


O arrependimento de Judá (2:12-17).
A restauração do Senhor (2:18-27).

II. O dia do Senhor no futuro (2:28—3:21).

A graça do Senhor (2:28-32).


O julgamento do Senhor (3:1-17).
A bênção do Senhor (3:18-21).

▶ Amós

▷ Título e conteúdo

Como nos demais livros proféticos, este também leva o nome de seu
principal contribuidor, o profeta Amós. Pouco se sabe sobre sua vida, exceto
alguns excertos presentes no livro. Em 1:1 diz-se que era pastor, e em 7:14
sua profissão (que para alguns seria melhor traduzida por boiadeiro) é
reafirmada, acrescentando que também cultivava sicômoros. Aparentemente,
seu ofício faz dele uma pessoa, a princípio, pobre e sem cultura. Amós,
contudo, se revela um grande escritor. O profeta, ou escriba, que teria escrito
suas sentenças produziu uma exímia peça literária de denúncia à idolatria e
injustiça do povo de Israel, profetizando a destruição do reino do Norte por
causa do pecado.

▷ Autor

Ao que tudo indica, o próprio Amós seria o autor do livro que leva seu
nome, ainda que tenha usado um secretário letrado para escrever suas visões.

▷ Data

Considerando as informações internas do livro acerca do terremoto


ocorrido nos dias do rei Uzias, acredita-se que o seu ministério profético foi
em algum período dentro do oitavo século a.C.

▷ Local

A cidade de Tecoa, de onde procedera o profeta, seria uma vila situada


a, aproximadamente, 16 km ao sul de Jerusalém, 9 km de Belém, e 20 km a
oeste do Mar Morto. Contudo, considerando que ele profetizou contra o reino
do Norte, seu ministério pode ter se estendido para outras localidades de
Israel.

▷ Características literárias

O livro possui uma linguagem e vocabulário que demonstram a


familiaridade do autor com a vida no campo e as atividades agropastoris.
Apesar de se declarar homem simples, o autor demonstra grande
conhecimento da geografia e política do povo de Israel de seu tempo, bem
como domínio teológico de temas importantes, como a aliança entre Yahweh
e seu povo.
Demonstra conhecimento legal das regras mosaicas e faz referência a
vários episódios históricos narrados no Pentateuco, como a destruição de
Sodoma e Gomorra, o Êxodo, a conquista de Canaã, além da menção dos
patriarcas Isaque, Jacó e José. Por isso, há quem diga que haveria algum
escriba letrado auxiliando o profeta na redação de sua mensagem.

▷ Esboço

Título e prólogo (1:1-2).


Oráculos contra sete nações vizinhas de Israel e contra Judá e Israel (1:3
—2:16).
Oráculos contra Israel (3:1—6:14). Nesta parte encontram-se as
principais críticas de Amós contra a corrupção social e religiosa e o
anúncio do castigo (3:13-15; 5:1-3,16-20; 6:8-14).
Castigos divinos (7:1—9:10). São cinco visões, das quais as primeiras
quatro começam com a mesma fórmula e a quinta é diferente. No meio
das visões encontra-se a narração da expulsão de Amós do santuário de
Betel (7:10-17) e outros oráculos (8:1-14; 9:7-10).
Esperança messiânica como oráculo de salvação (9:11-15).

▶ Obadias

▷ Título e conteúdo

O livro que leva o nome de Obadias traz uma mensagem profética dura
acerca da animosidade histórica entre Jacó e Esaú, bem como entre seus
descendentes, e a terrível vinda de Nabucodonosor, rei da Babilônia, para
destruir Jerusalém e o templo de Deus.
Por causa da forte mensagem de dor, devido à opressão trazida pelos
babilônios, o livro de Obadias costuma ser chamado de “A oração indignada
de Obadias” e “Hino da ira”. O tom nacionalista de seu lamento justifica os
codinomes alternativos da obra.
Embora existam outros Obadias mencionados em 1Reis, 1 e 2Crônicas,
Esdras e Neemias, não devemos confundir nenhum desses com o profeta que
produzira este livro. Com exceção do fato de que Obadias era um profeta no
reino do sul (Judá), não sabemos nada sobre seu passado ou ministério

▷ Autor
Há quem afirme que Obadias, que quer dizer “servo do Senhor”, seria
um pseudônimo e não o verdadeiro nome do profeta que escreveu esta obra.
Contudo, esse nome era comum naquele momento e não há razões plausíveis
para se duvidar de sua originalidade. Segundo a tradição judaica, Obadias era
mordomo do rei Acabe. Porém esta afirmação tem incoerência cronológica
com as informações contidas no livro.

▷ Data

A profecia de Obadias foi feita pouco depois de uma das capturas de


Jerusalém, provavelmente a conquista pelos babilônios cerca de 587 a.C.

▷ Localização

Jerusalém (Judá) e Jordânia (Edom).

▷ Características literárias

Obadias escreve sob a perspectiva da animosidade dos descendentes de


Esaú, que se tornaram Edom, contra os descendentes de Jacó, que se
tornaram Judá e Israel. Outros profetas também já haviam proclamado
mensagens de reprovação aos edomitas, contudo, a novidade deste profeta
está em que ele agrava o sentimento de alegria dos moradores de Edom, pela
derrota de Judá, pelo fato de que estes eram parentes que deviam ser
solidários a seus irmãos e não celebrantes de sua destruição.
Com linguagem altamente nacionalista, ele fala da crueldade de Edom
em ficar de lado enquanto seus irmãos eram destruídos, em Jerusalém. Pior
ainda foi o fato deles se alegrarem com o infortúnio dos primeiros. Edom
entrou em alianças com outras nações, para tão somente destruir, aniquilar
Judá. Eles chegaram até vender judeus como escravos para seus inimigos.
Deus se lembraria disso no dia da restauração de Jerusalém. Esta era a
assertiva do profeta.

▷ Esboço

Profecia contra Edom (1:1-4).


Alegria em Edom e dor em Jerusalém (1:5-10).
Consequências (1:11-16).
O Reino será do Senhor (1:17-21).

▶ Jonas

▷ Título e conteúdo

O livro leva o nome de um profeta israelita da tribo de Zebulom, filho de


Amitai, natural de Gete-Héfer. Seu ministério ocorreu durante o reinado de
Jeroboão II, rei de Israel. Sua mensagem é incomum porque conclama ao
povo de Nínive, e não a seus compatriotas, que se arrependam. Além de sua
resistência em pregar para seus inimigos, o livro traz a surpreendente decisão
do rei de Nínive e seus súditos que aceitam a mensagem do profeta, mudam
de vida e, com isso, evitam a destruição anunciada pelo profeta, situação que
lhe traz grande perplexidade diante de Deus.

▷ Autor

Provavelmente Jonas, embora alguns autores pensem que seria obra de


um escriba posterior.

▷ Data

Se Jonas escreveu o livro, este seria, obviamente, datado durante o


reinado de Jeroboão II, no início do século 8, de 793 a.C. a 753 a.C. Se foi
obra de um escriba posterior, ele poderia ter sido produzido em algum tempo
depois dos acontecimentos descritos no livro, após a destruição de Nínive,
que se deu em 612 a.C.

▷ Localização

Israel, porto de Haifa (ou Jope), Nínive, capital da Assíria, atual Iraque.
▷ Características literárias

O uso de certos aramaísmos (1:5-7; 3:7; 4:11) leva alguns a deduzirem


que houve algum elemento redacional após o regresso do cativeiro da
Babilônia. Contudo, o que mais chama a atenção é a peculiaridade do autor
em não usar o substantivo profeta (nabi, em hebraico), nem a fórmula típica
das narrativas proféticas. Sua mensagem se resume a uma frase: “Dentro de
quarenta dias, Nínive será destruída” (Jonas 3:4).
Uma mensagem é extraída de um evento real, que seria uma decisão
coletiva de arrependimento liderada pelo governador de Nínive, a partir da
mensagem dada pelo profeta. O contexto histórico, no entanto, é
extremamente reduzido e pobre de detalhes.

▷ Esboço

Jonas opõe-se à vontade de Deus e foge para Társis. Ele é engolido pelo
peixe e vomitado na praia (1:1—2:11).
Jonas prega em Nínive, que se converte, e o profeta se ressente (3:1—
4:11).

▶ Miqueias

▷ Título e conteúdo
O título refere-se à mensagem de um profeta que dirigiu sua mensagem
tanto ao reino do Sul como ao reino do Norte. Por isso, sua profecia
contempla as cidades de Jerusalém, capital do reino de Judá, e Samaria,
capital do reino de Israel. Sua profecia contempla a destruição de Samaria
pelo exército da Assíria, o futuro cativeiro da Babilônia, a revelação do juízo
de Deus sobre os pecados do povo e a restauração que seria iniciada após o
cativeiro, garantindo que a casa de Davi seria erguida mais uma vez e reinaria
sobre o mundo inteiro, trazendo paz para o povo de Deus.

▷ Autor

O autor do livro teria sido o próprio profeta Miqueias.

▷ Data

Miqueias foi provavelmente escrito entre 735 a.C. e 700 a.C.

▷ Local

Judá, Israel.
▷ Características literárias

A linguagem e o estilo se assemelham ao do profeta Isaías. Aliás, existe


uma clara semelhança em uma pequena parte dos textos (cf. Isaías 2:2-4 e
Miqueias 4:1-3). Talvez a contemporaneidade de ambos estaria por trás dessa
coincidência literária. Em seu livro, Miqueias mostra ser um habilidoso
escritor que organiza e alterna os temas em sua mensagem com muita
elegância e simetria. Parte do livro é escrita na forma de um discurso público
feito por alguém com grande habilidade de oratória.
Contudo, em que pese a elegância de seu texto, o teor da mensagem faz
supor que ele exercera seu ministério entre os mais simples do povo, ao passo
que Isaías se dirigia aos membros da corte judaica.

▷ Esboço

Tema: Quem é como o Senhor?


O julgamento precedido por Deus. (1:1-2:13)
A condenação dos líderes corruptos (3:1-12).
A realidade do reino de Deus (4:1—5:15).
As queixas de Deus contra seu povo (6:1—7:6).
Perdão e restauração de Deus sobre seu povo (7:7-20).

▶ Naum
▷ Título e conteúdo

Naum, cujo nome significa “consolo”, é um profeta que delineia com


sua mensagem o significado bíblico da História. Vivendo ainda sob os ares da
destruição de Samaria, ele dirige parte de seu discurso aos assírios,
responsáveis pela destruição e que sentiriam em breve a pesada mão do Deus
de Israel. Ele também faz acenos à ocupação de Judá pelos inimigos e
garante-lhes o pagamento por sua maldade.

▷ Autor

Tudo leva a crer que o próprio Naum estaria por trás do texto do livro
que leva seu nome.

▷ Data

Por informações internas do próprio livro, Naum pode ter sido escrito
em qualquer período após o cerco assírio de Jerusalém, em 701 a.C., e antes
da queda de Nínive, que ocorreu por volta de 612 a.C.

▷ Localização

Jerusalém, Judá (Israel), Nínive, Assíria (atual Iraque).


▷ Características literárias

Naum escreveu na forma poética, utilizando imagens e simbolismo que


o fazem próximo da literatura apocalíptica. Seu tom é marcantemente hostil
contra Nínive, da qual ele descreve com maestria a futura destruição. O tema
da ira divina choca-se com aquelas visões mais românticas da divindade que
negam descrevê-lo como juiz e vingador. Porém, é importante reconhecer
que, por trás da ira do Senhor em relação a Nínive, há uma profunda
preocupação pelo sofrimento de vários povos que tinham sido conquistados,
mortos, escravizados e aterrorizados por esse poder estrangeiro. Ou seja, o
caráter irado de Deus justifica-se no sofrimento dos justos e opressão dos
mais necessitados.

▷ Esboço

I. O Decreto de Deus contra Nínive (1:1-15).


II. A vingança de Deus contra Nínive (2:1-13).
III. O triunfo de Deus sobre Nínive (3:1-19).

▶ Habacuque

▷ Título e conteúdo
Habacuque é o relato profético de um mensageiro de Deus que viveu
pouco antes da destruição de Jerusalém causada pelos babilônios. Ele não
esconde sua indignação face às atrocidades e injustiça social cometidas
dentro do território de Judá. A vinda destruidora dos babilônios seria uma
clara consequência dessa apostasia que os afastava da proteção de Deus. Um
destaque literário na obra é a oração de Habacuque.

▷ Autor

Ao que tudo indica seria o próprio Habacuque o autor do livro que leva
o seu nome.

▷ Data

O livro teria sido composto entre o final do reinado de Josias (609 a.C.)
e a queda do Império Assírio (612 a.C.).

▷ Localização

Jerusalém.
▷ Características literárias

Enquanto os demais profetas anunciam juízo sobre esta ou aquela nação,


Habacuque desenvolve um diálogo franco e honesto entre um único homem
(ele mesmo) e seu Deus. Ele questiona ao Senhor o motivo do sofrimento e
demanda respostas do Altíssimo. Mais do que isso, ele pede socorro a Deus.
Primeiramente, Deus lhe responde na forma de um diálogo que antecipa
a chegada de um exército invasor (os assírios) para efetivar o decreto judicial
de Deus. Isso, porém, não consola o profeta, pois o invasor não vem para
libertar, mas para punir. Seria trocar uma opressão pela outra.
No arremate final do diálogo, Deus estabelece que o justo viverá por sua
fidelidade. Com isso, os que sofrem as consequências da violência são
chamados a ser agentes na história, opondo-se aos ímpios e realizando a
justiça.

▷ Esboço

A perplexidade do profeta (1).


A resposta de Deus (2).
A oração do profeta (3).

▶ Sofonias
▷ Título e conteúdo

Trata-se de outro profeta do 7º século a.C. que discursa com veemência


acerca do juízo final, ao destrinchar o termo técnico “Dia do Senhor”, como
referente ao último acerto de contas de Deus com as nações, inclusive Judá e
sua capital, Jerusalém.

▷ Autor

Segundo a tradição, seria o próprio Sofonias o autor do livro.

▷ Data

Considerando que Sofonias foi contemporâneo de Jeremias e


Habacuque, seu livro é datado em torno de 625 a.C.

▷ Localização

Judá.
▷ Características literárias

Neste livro, predomina a forma poética, o que dá destaque à sua


mensagem, que deveria ser memorizada pelos ouvintes. Traz uma linguagem
pesada de advertência e ameaça ― o juízo do Dia do Senhor está chegando.
Contudo, também fala do tempo oportuno oferecido pela promessa de
salvação trazida por Deus.

▷ Esboço

Introdução (1:1).
Uma advertência do juízo iminente (1:2-18.)
Uma exortação ao arrependimento imediato (2:1—3:8).
A promessa da salvação futura (3:9-20).

▶ Ageu

▷ Título e conteúdo

Este livro traz a mensagem de Ageu, o primeiro profeta a oferecer uma


mensagem de conforto aos judeus que voltaram do cativeiro babilônico. Há
quem pense que seu nome seria um pseudônimo hebraico que significa
“comemoração, festa ou festival de ação de graças”.
▷ Autor

Provavelmente o próprio Ageu.

▷ Data

Considerando que o profeta seria contemporâneo de Zacarias, e que


escrevera logo após o fim do cativeiro, a composição do livro é datada por
volta de 520 a.C.

▷ Localização

Judá.

▷ Características literárias

Trata-se de um sermão profético escrito em prosa. Ele usa os eventos


passados para conclamar o povo ao arrependimento ― para que não precisem
passar novamente pelo sofrimento recém experimentado. Também adiciona
promessas e revela acontecimentos futuros referentes ao templo e à chegada
do Messias.
▷ Esboço

A reconstrução do Templo (1:1-15).


A glória maior do novo Templo (2:1-9).
A promessa messiânica de Deus (2:10-19).
A promessa de vitória para o povo de Deus (2:20-23).

▶ Zacarias

▷ Título e conteúdo

O livro tem o nome do profeta Zacarias e traz outro conjunto de visões e


profecias ao povo que voltara do cativeiro da Babilônia.

▷ Autor

O próprio Zacarias.

▷ Data
Em torno de 530 a.C.

▷ Localização

Judá.

▷ Características literárias

Elementos simbólicos presentes no texto conferem um estilo


apocalíptico a algumas visões do profeta. Ele não difere muito dos elementos
comuns da preleção profética anterior e posterior ao cativeiro: o apelo ao
arrependimento, a previsão do juízo ― neste caso, a lembrança do juízo que
viera, a promessa messiânica relacionada ao templo e a cidade de Jerusalém.

▷ Esboço

I. O chamado ao arrependimento (1:1-6)


II. As oito visões (1:7—6:15)

O homem e os cavalos (1:7-17).


Os quatro chifres e o ferreiro (1:18-21).
O homem com um cordel de medir (2:1-13).
O sumo sacerdote (3:1-10).
O castiçal e o vaso de azeite (4:1-14).
O rolo voador (5:1-4).
A mulher no meio do efa (5:5-11).
Os quatro carros (6:1-8).

III. A coroação do sumo sacerdote (6:9-15)


IV. Ritual religioso ou arrependimento verdadeiro (7:1-14)
V. A restauração de Sião (8:1-23)
VI. O triunfo de Sião (8:1-23)
VII. A primeira profecia: O Messias rejeitado (9:1—11:17)
VIII. A Segunda profecia: O Messias reina (12:1—14:21)

▶ Malaquias

▷ Título e conteúdo

O livro que fecha a lista do Antigo Testamento refere-se a um profeta


que viveu por volta do quinto século a.C., e que repreendeu o povo de Judá
porque ainda insistia nos mesmos erros de seus ancestrais que viveram antes
do cativeiro babilônico. Os desvios estavam especialmente vinculados ao
templo de Jerusalém, aos sacrifícios e à negligência do dízimo. Malaquias
também anuncia a chegada do Messias, o grande mensageiro que viria no
mesmo espírito de Elias para restaurar todas as coisas como eram em sua
origem.
▷ Autor

Malaquias.

▷ Data

Em torno de 450 ou 420 a.C.

▷ Localização

Judá.

▷ Características literárias

Escrito em forma de prosa, o autor mistura elementos proféticos de


exortação com predições ainda distantes em relação à vinda do Messias. Ao
levantar a sua voz severa contra a degradação moral e religiosa do seu tempo,
Malaquias prepara a comunidade dos crentes para o reencontro com Deus,
através da chegada de seu Messias.
▷ Esboço

O amor de Deus pelo seu povo (1:1-5).


Processamento contra os sacerdotes e levitas (1:6—2:9).
Reprovação da infidelidade do povo (2:10-16).
Anúncio do “Dia do Senhor” e da visita do seu mensageiro (2:17—3:5).
Ordens para o restabelecimento dos dízimos e das ofertas (3:6-12).
Promessas de restauração para os fiéis (3:13-18).
Novo anúncio da vinda do “Dia do Senhor” (3:19-21).
Promessas de envio de um novo Elias (3:22-23).

NOVO TESTAMENTO

▶ Mateus

▷ Título e conteúdo

O título desse livro refere-se ao seu autor tradicional, que foi um dos
discípulos de Jesus e escreveu sua vida em forma de anúncio ou kerygma.
▷ Autor

Apesar da negação feita pela alta crítica, a tradição mais longínqua


aponta Mateus como o autor desse evangelho que leva o seu nome.

▷ Data

Os críticos assumem que Mateus teria sido composto por volta do ano
90 d.C., contudo, há indicativos fortes o suficiente para estabelecer uma data
mais antiga por volta do ano 60 d.C.

▷ Localização

A história se passa nas regiões da Judeia, Galileia, Pereia, Egito e outras


localidades por onde Jesus passou, mas o local de composição do texto
parece ter sido Antioquia da Síria ou em alguma localidade entre Judá e a
Galileia.

▷ Características literárias

Os evangelhos não são meras biografias de Jesus Cristo, e isso é


importante para entender o estilo de Mateus. Trata-se, antes, de um anúncio,
de um kerygma. Mateus escreve num grego popular (koiné), mas de forma
concisa e polida, embora esteja repleto de aramaísmos e hebraísmos, isto é,
formas de se expressar semitas que nem sempre são adaptadas ao grego. A
tradição cristã diz que Mateus colecionou ditos originais de Cristo em
aramaico e pode tê-las usado na composição de seu evangelho, embora o
consenso entre os especialistas seja de que a presente forma não contém
indícios de ser uma tradução do aramaico, mas a redação de um texto
originalmente escrito em grego.

▷ Esboço

Prólogo: Genealogia e narrativa da infância de Jesus (1:1—2:23).


Proclamação do Reino dos Céus (3:1—7:29).
Discurso: O Sermão da Montanha (5:1—7:29).
O ministério de Jesus na Galileia (8:1—11:1).
Discurso: Missão e martírio (9:35—11:1).
Histórias e parábolas em meio a controvérsias (11:2—13:52).
Discurso: Parábolas do Reino (13:1-52).
Narrativa, controvérsia e discurso (13:53—17:27).
Discurso: Ensino sobre a Igreja (18:1-35).
Jesus na Judeia e em Jerusalém (19:1—25:46).
Discurso: Os ensinos escatológicos de Jesus (24:1—25:46).
A narrativa da morte e ressurreição (26:1—28:1-20).

▶ Marcos
▷ Título e conteúdo

O evangelho que recebe o nome de Marcos tem por trás de seu texto a
figura do apóstolo Pedro. Marcos seria um redator que escreveu o texto com
base naquilo que Pedro dizia, pois ele mesmo não havia sido apóstolo nem
testemunha ocular da maioria das coisas que escreveu. Por isso, alguns
sugerem Pedro como coautor de Marcos. Esse evangelho traz o anúncio da
vida e obras de Jesus.

▷ Autores

Marcos e Pedro (?).

▷ Data

Os críticos o colocam em torno do ano 70 d.C., mas há evidências de


que ele teria sido composto por volta da década de 50 d.C.

▷ Localização

A vida de Jesus é passada na região da Judeia, Galileia e arredores.


Quanto ao local de produção do evangelho, presume-se que tenha sido em
Roma. Apenas uns pouquíssimos autores supõem que Marcos escreveu o
evangelho em Alexandria.

▷ Características literárias

Marcos é chamado de o evangelho do anonimato ou evangelho do


segredo messiânico, pois é o autor que mais enfatiza o pedido de Jesus para
que os que se aproximavam dele não revelasse sua identidade, a fim de que
os eventos finais que estavam preditos por Deus não acontecessem antes do
esperado. Ele usa de descrições simples e claras, como se estivesse
escrevendo para crianças. O caráter sintético de sua mensagem pode ter
influência de Pedro, que também era um homem simples e de poucas letras.

▷ Esboço

Introdução (1:1-13).
Declaração sumária (1:1).
Cumprimento da profecia do Antigo Testamento (1:2-3).
O ministério de João Batista (1:4-8).
O batismo de Jesus (1:9-11).
A tentação de Jesus (1:12-13).

I. O Ministério de Jesus na Galileia (1:14―9:50)

Princípio: Sucesso e conflitos iniciais (1:14―3:6).


Etapas posteriores: Aumento de popularidade e oposição (3:7―6:13).
Ministério fora da Galileia (6:14―8:26).
Ministério no caminho para a Judeia (8:26―9:50).

II. O Ministério de Jesus na Judeia (10:1―16:20)

Ministério na Transjordânia (10:1-52).


Ministério em Jerusalém (11:1―13:37).
A Paixão (14:1―15:47).
A ressurreição (16:1-20).

▶ Lucas

▷ Título e conteúdo

O texto em si não contém o nome do seu autor, contudo, a mais antiga


tradição cristã aponta para Lucas, o amado médico, discípulo e companheiro
de Paulo. Seu texto, referente à vida e obras de Jesus de Nazaré, vincula-o ao
livro de Atos dos Apóstolos e, juntos, podem ter sido preparados para compor
o dossiê de defesa de Paulo perante o tribunal de Roma.

▷ Autor

Lucas.
▷ Data

Em torno de 60 d.C.

▷ Localização

Roma.

▷ Características literárias

Lucas escreve do modo mais erudito de todos os evangelistas, embora


use largamente o grego comum, e não esconde os fortes traços de aramaísmos
que podem significar alguma ascendência judaica por parte de sua família ou
o uso de fontes mais antigas que não estariam escritas em grego. O prefácio
segue um claro estilo grego clássico e a continuidade judaica. O que em
Mateus pode ser entendido de modo circunscrito ao judaísmo, em Lucas é
uma tarefa universal de Cristo, vindo para salvar toda a humanidade.
Lucas é o que mais enfatiza o papel das mulheres no ministério de Jesus,
a fé genuína de crianças e a salvação estendida a todos os não judeus que
aceitassem o Messias.

▷ Esboço
Prólogo (1:1-4).
A narrativa da infância (1:5—2:52).
Preparação para o ministério público (3:1—4:13).
O ministério galileu (4:14—9:50).
A narrativa de viagem (no caminho para Jerusalém) (9:51—19:28).
O ministério de Jerusalém (19:29—21:38).
A paixão e glorificação de Jesus (22:1—24:53).

▶ João

▷ Título e conteúdo

O evangelho que leva o nome do discípulo amado é um dos mais


profundos acerca do ministério de Jesus. De todos, é o que mais acentua sua
divindade, pré-existência e corporeidade após a ressurreição. Possui uma
forma de narrar os fatos da vida de Cristo que combate grupos dissidentes da
Igreja Primitiva, especialmente os gnósticos, que negavam a doutrina da
encarnação.
É um evangelho ricamente doutrinário, principalmente no tocante à sua
apresentação da morte de Cristo como sacrifício expiatório pela humanidade
e o uso extensivo do título de “Filho de Deus” aplicado à pessoa de Jesus
Cristo.

▷ Autor
A tradição da Igreja, de longa data, aponta João, o discípulo amado,
como sendo o autor do evangelho que leva o seu nome. Alguns, no entanto,
tendem a negar essa autoria, falando antes de uma comunidade joanina que
produziu o texto em nome do apóstolo João. Tal hipótese, contudo, carece de
mais evidências que a corroborem.

▷ Data

Fim do século 1 d.C.

▷ Localização

A vida de Jesus se passa no eixo entre a Judeia e a Galileia, mas o


evangelho foi quase seguramente redigido na cidade de Éfeso, atual Turquia.

▷ Características literárias

O fato de acentuar a natureza divina de Jesus muito mais que os outros


evangelhos, faz com que João utilize de algumas fórmulas específicas não
encontradas assim em outras partes da Bíblia. Uma delas é o extensivo uso de
“eu sou” referindo-se a Cristo como eco da apresentação divina a Moisés
onde o Altíssimo se revela como “Eu sou aquele que é”. Em João, Jesus se
apropria dessa expressão para autodefinir-se.
Além disso, o autor desenvolve algumas ideias-chave de forma
crescente e concêntrica. É o caso de sua dissertação sobre a luz, a hora, a
vida, o mundo. Do mesmo modo, o evangelho evita a palavra “milagres”,
preferindo o uso de “sinais”, porque estes revelam a verdadeira identidade de
Jesus.

▷ Esboço

O PRÓLOGO (1:1-18)

O Logos em sua existência eterna absoluta (1:1).


O Logos em relação à criação (1:2-18).
Os fatos essenciais (1:2-5).
A manifestação histórica de maneira geral (1:6-13).
A encarnação conforme apreendida pela experiência pessoal (1:14-18).
A substância do testemunho apostólico pessoal (1:14).
A testemunha da profecia —João (1:15).
A natureza da revelação (1:16-18).
Na experiência dos crentes (1:16).
Em relação à Lei (1:17).
Em sua fonte final (1:18).

O LIVRO DOS SINAIS (1:19—20:31)


O primeiro sinal: transformação da água em vinho em Caná.

O ensino: Jesus é o cumpridor do velho e o doador do novo (1:19—


3:21).
O testemunho de João (1:19-34).
O testemunho dos discípulos (1:35-51).
O testemunho do sinal (2:1—3:36).

O segundo sinal: a cura do filho do régulo.


O ensino: Jesus não é limitado por tempo ou espaço (4:1-54).

O terceiro sinal: cura do homem paralítico.

O ensino: unidade do ser e atividade do Pai e do Filho (5:1-47).

O quarto sinal: alimentação das multidões e caminhada sobre as águas.

O ensino: Jesus é Salvador, sustentador e protetor da vida (6:1-71).

O quinto sinal: a cura do cego.

O ensino: Jesus é a Luz do Mundo (7:1—10:42).

O sexto sinal: a ressurreição de Lázaro.

O ensino: Jesus é a Ressurreição e a Vida (11:1—12:50).

O sétimo sinal: morte, sepultamento e ressurreição de Jesus.

O ensino: Jesus é Emanuel — Deus Conosco (13:1—20:31).

O EPÍLOGO (21:1-25)

O Senhor e o corpo de discípulos (21:1-14).


O Senhor e os discípulos como indivíduos (21:15-23).
Observações conclusivas (21:24-25).
▶ Atos

▷ Título e conteúdo

Este livro traz a continuação da narrativa evangélica a partir do texto de


Lucas, que novamente se dirige a Teófilo e lhe confia o manuscrito que
estava preparando. Em que pese a tradição do nome “Atos dos Apóstolos”, é
notório que não se trata de uma narrativa sobre a obra de todos os doze
apóstolos de Jesus. Da maioria deles não se têm nenhum relato. O que se
acentua na narrativa são atos de Paulo (o apóstolo dos gentios), com alguma
atuação de Pedro e Tiago. Conta-se, enfim, a história dos primeiros anos da
Igreja após a ascensão de Cristo. Seus dramas, sua perseguição, seu fervor
missionário e desafios teológicos. Alguns propõem que, devido à ação divina
destacada na história, o mesmo deveria se chamar Atos do Espírito Santo, em
vez de Atos dos Apóstolos.

▷ Autor

Lucas.

▷ Data

Em torno do ano 60 d.C.


▷ Localização

Israel, Síria, Grécia (Ásia Menor), Roma.

▷ Caraterísticas literárias

O texto é narrativo e com características de alto valor cultural. Seu autor


não fazia parte do ciclo original de discípulos, mas recebeu instruções
detalhadas daqueles que foram testemunhas do evento e, com base nisso, o
escreveu. Ele emprega com rigor os detalhes históricos, políticos, o nome de
cada personagem envolvido e os títulos que possuía.
Ao descrever, porém, as obras de Paulo, o autor muda de estilo e passa a
redigir sob a ótica de quem estava lá, que testemunhou aquilo que escrevera,
pois estivera todo o tempo ao lado de Paulo. Há quem acredite que o livro de
Atos, em conjunto com o livro de Lucas, seriam partes de uma mesma peça
jurídica usada em defesa de Paulo por ocasião de seu julgamento em Roma.

▷ Esboço

ATOS 1—5: A Igreja Primitiva em Jerusalém

O prefácio literário (1:1-5).


Narrativas preparatórias para o Pentecostes (1:6-26).
Pentecostes (2).
Pregando o evangelho em Jerusalém (3—5).
ATOS 6:1—13:3: Os helenistas e o início da missão aos gentios

A escolha dos sete (6:1-7).


A história de Estêvão (6:8—8:3).
A missão em Samaria (8:4-40).
O interlúdio paulino (9:1-31).
Pedro trabalha nas cidades costeiras (9:32—11:18).
Os helenistas chegam a Antioquia (11:19-30).
Término das narrativas em Jerusalém (12).
A igreja de Antioquia envia os primeiros missionários à diáspora (13:1-
3).

ATOS 13:4—15:30: A primeira missão paulina e suas consequências

A primeira jornada missionária (13:4—14:28).


A conferência de Jerusalém (15:1-35).

ATOS 15:36—21:16: A missão grega de Paulo

A primeira missão paulina em território grego (15:36—18:22.).


A segunda missão paulina em território grego (18:23—21:16).

ATOS 21:17—28:31: A estrada para Roma

Em Jerusalém (21:17—23:25).
Em Cesareia (24:1—26:32).
A viagem para Roma (27:1—28:16).
Paulo em Roma (28:17-31).

▶ Romanos
▷ Título e conteúdo

O livro refere-se a uma carta escrita por Paulo aos cristãos de Roma.
Nela, ele trata de alguns assuntos referentes ao andamento da igreja de Roma,
como sua futura visita àquela congregação, a ajuda aos necessitados de
Jerusalém e seu próprio itinerário para Espanha, através da Itália. Mas o
apóstolo também aproveita o ensejo da missiva para esclarecer alguns pontos
doutrinários e defender sua teologia, especialmente no que diz respeito à
relação entre a lei e a justificação pela fé, bem como o bom convívio entre
cristãos gentios e judeus.

▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data

Provavelmente na primavera de 57 d.C.

▷ Localização

Acredita-se que esta carta fora enviada para os cristãos de Roma a partir
da cidade de Corinto.
▷ Características literárias

É a carta mais longa e mais teológica do Novo Testamento. Nela, Paulo


usa muito o recurso da diatribe, que consiste na exposição de uma ideia,
doutrina ou argumento em forma de diálogos imaginários, possuindo gênero
coloquial e dotado de sentenças curtas ou condicionais, com o interesse de
despertar a atenção do leitor, como se ele estivesse assistindo a um debate.
Por isso, encontramos em Romanos muitas perguntas retóricas, mas
também muitas declarações incisivas, imperativos e paralelos contrastantes.
A força de sua linguagem se assemelha àquela encontrada em grandes
escritores da época, como Epíteto e Sêneca.

▷ Esboço

Introdução e tema (1:1-17).


A humanidade precisa da salvação (1:18—3:20).
A via da salvação que Deus propõe (3:21—4:25).
A nova vida em Cristo (5:1—8:39).
Israel no plano de Deus (9:1—11:36).
Conduta cristã (2:1—15:13).
Conclusão e saudações (15:14—16:27).

▶ 1 e 2Coríntios
▷ Título e conteúdo

Trata-se de duas cartas inspiradas de um total de quatro (duas outras


estão perdidas) que foram escritas pelo apóstolo Paulo em resposta às notícias
que recebia da igreja de Corinto. Esta era uma comunidade muito
problemática desde a sua fundação. Nela, havia problemas morais,
doutrinários, litúrgicos e litigiosos que são devidamente tratados pelo
apóstolo em ambas as missivas. A segunda parece mais ampla que a primeira,
pois é endereçada não apenas aos coríntios, mas a todos os irmãos que
estavam espalhados pela Acaia.

▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data

Cerca de 56 d.C.

▷ Localização

A primeira provavelmente foi escrita em Éfeso e a segunda, na


Macedônia.
▷ Características literárias

Ambas as cartas não têm um caráter sistemático como acontece na


Epístola aos Romanos. Elas têm uma função mais pragmática que é
responder aos problemas que estavam ocorrendo na comunidade de crentes,
bem como animar-lhes a fé para que não se esmoreçam seguindo guias
heréticos ou ensinamentos espúrios. Há também um grande tom de exortação
diante dos graves problemas morais que eram trazidos perante o apóstolo.

▷ Esboço

1Coríntios

Prólogo (1:1-9).
Divisões na igreja de Corinto (1:10—4:21).
Escândalos na igreja (5:1—6:20).
Resposta a questões concretas (7:1—11:1).
A Assembleia Litúrgica (11:2-34).
Os carismas (12:1—14:40).
A ressurreição dos mortos (15:1-58).
Epílogo (16:1-24).

2Coríntios

Prólogo (1:1-11).
Paulo justifica sua postura diante da igreja (1:12—7:16).
Paulo dá instruções (8:1—9:15).
Paulo justifica novamente sua postura diante da igreja (10:1—13:13).
▶ Gálatas

▷ Título e conteúdo

Esta carta foi endereçada a um certo grupo de igrejas que ficaria ao norte
da Galácia ou em suas fronteiras com a Frígia. O fato é que, em se tratando
de comunidades cristãs desta região, o nome Gálatas parece muito
apropriado.
Nela, Paulo apresenta mais uma vez sua preocupação com aqueles que
estavam se afastando da mensagem de Cristo para seguir ensinos dissidentes,
como aqueles que exigiam dos não judeus que se convertiam a necessidade
de circuncidar-se antes de se unir à igreja. Ao mesmo tempo em que corrige
as distorções, Paulo levanta uma apaixonante defesa de seu ministério
apostólico que parecia negado até mesmo por líderes influentes do
cristianismo. Alguns certamente estavam usando essa oposição interna para
minar a credibilidade autoritativa do ensino de Paulo.

▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data

Cerca de 57 d.C.
▷ Localização

Paulo provavelmente escreveu esta carta por ocasião de sua viagem pela
Macedônia.

▷ Características literárias

É uma carta de estilo fortemente apologético e exortativo. Nela, Paulo


dirige uma severa repreensão tanto aos membros da igreja que estavam se
afastando quanto aos falsos mestres que os estavam desencaminhando. Em
sua defesa, o autor ainda imprime um caráter autobiográfico em certa parte
do texto que oferece importantes informações sobre sua própria
personalidade e desafios pessoais.

▷ Esboço

Introdução (1:1-10).
Origem divina do Evangelho (1:11—2:21).
O Evangelho faz-nos filhos de Deus (3:1—4:7).
O Evangelho faz-nos livres (4:8—5:12).
Vida cristã, caminho de liberdade (5:13—6:10).
Conclusão (6:11-18).
▶ Efésios

▷ Título e conteúdo

O título desta epístola vem da ideia de que ela fora escrita para a
comunidade de crentes que residia em Éfeso, conforme as palavras
introdutórias do autor, aos “santos que estão em Éfeso”. Contudo, as cópias
mais antigas dessa carta não possuem tal expressão, o que leva muitos a
julgarem que se trata de uma mensagem direcionada não especificamente a
uma igreja apenas, mas a diversas comunidades cristãs, incluindo a de Éfeso.
Esta carta tem como tema central o propósito eterno de Deus: Jesus
Cristo é o cabeça da Igreja, que é formada a partir de muitas nações e raças.

▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data

Cerca de 62 d.C.
▷ Localização

Provavelmente escrita da prisão domiciliar de Paulo em Roma.

▷ Característica literária

A carta é escrita em forma de homilia, mas usando o modelo de epístola.


Traz um tom pastoral e mais paterno que as cartas de caráter apologético.

▷ Esboço

Apresentação (1:1-2).

I. A Igreja e o Evangelho (1:3—3:21)

A graça de Deus (1:3-14).


Cristo, Senhor do mundo e da Igreja (1:15-23).
A obra de Cristo (2:1-22).
Lugar de Paulo no plano de Deus (3:1-21).

II. Exortação aos batizados (4:1—6:20)

Viver na unidade (4:1-16).


Instruções várias (4:17—5:20).
Cristo e a Igreja. Consequências (5:21—6:9).
Combater inimigos espirituais (6:10-20).
Saudação final (6:21-24).

▶ Filipenses

▷ Título e conteúdo

Dirigida à comunidade de Filipos, esta carta não tem uma estrutura


teológica bem organizada como Romanos, mas trata de alguns ensinos
especiais colocados numa temática de relação fraterna entre o apóstolo e a
comunidade. A ênfase desta carta está no gozo que o crente em Cristo
encontra em todas as circunstâncias da vida. Os acontecimentos dramáticos
aos quais a epístola faz referência são vistos por Paulo como uma fonte de
esperança para o anúncio de sua mensagem.

▷ Autor

Paulo.

▷ Data
A data de produção desta carta é disputada entre os especialistas, alguns
a colocam em torno de 55 d.C., enquanto outros a situam num período mais
tardio, entre 60 e 62 d.C.

▷ Localização

Imprecisa.

▷ Características literárias

A escrita é claramente epistolar, mas o que chama a atenção é que na


primeira parte Paulo escreve num estilo menos combativo. Ele parece
contente com aquilo que anuncia. Chama-nos também a atenção os
frequentes usos do caso genitivo, que indica posse ou origem, e as frases são
mais extensas que o normal.

▷ Esboço

Introdução (1:1-11).
Prisão de Paulo (1:12-26).
Deveres da comunidade (1:27—2:18).
Solicitude pela comunidade (2:19—3:1).
O apóstolo, modelo da comunidade (3:2—4:1).
Conclusão (4:2-23).

▶ Colossenses

▷ Título e conteúdo

Trata-se de uma carta preocupante que Paulo, já prisioneiro em Roma,


envia para os cristãos da cidade de Colossos devido às notícias que recebera
de que falsas doutrinas estavam sendo ensinadas aos membros da
comunidade fundada por Epafras, provável discípulo de Paulo e que viajara
até Roma para dar-lhe um relatório do que estaria acontecendo à comunidade.
A carta tem como objetivo esclarecer pontos doutrinários divergentes e
combater os ensinos que estavam minando a fé original do cristianismo.

▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data
Cerca de 62 d.C.

▷ Localização

Roma.

▷ Características literárias

O tom da carta parece indicar que Paulo não os conhecera pessoalmente,


mas apenas ouvira falar a seu respeito. O estilo é exortativo e catequético, ou
seja, Paulo escreve da perspectiva de um apóstolo investido de autoridade,
que os conclama a permanecerem firmes contra os ensinamentos que diferem
daqueles recebidos anteriormente por Epafras. A divindade de Cristo é
fortemente anunciada através de sua identificação como Senhor, Cabeça,
Salvador e Criador de todas as coisas. Qualquer doutrina que se afaste disso é
denominada como “filosofia e vãs sutilezas” dos homens (2:8).

▷ Esboço

Introdução (1:1-23).
O Evangelho de Paulo (1:24—2:5).
Fidelidade ao Evangelho (2:6-23).
Viver segundo o Evangelho (3:1—4:6).
Conclusão (4:7-18).

▶ 1 e 2Tessalonicenses

▷ Título e conteúdo

As duas cartas que levam esse nome foram endereçadas aos cristãos da
cidade de Tessalônica. São provavelmente os mais antigos escritos do Novo
Testamento, redigidas até mesmo antes dos quatro evangelhos. Elas
abrangem, de modo geral, instruções doutrinárias às comunidades cristãs
recém-formadas pelo trabalho evangelístico de Paulo.

▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data

A primeira carta foi escrita provavelmente em torno de 49 d.C. e a


segunda, cerca de um ano depois. Os que não reconhecem a autenticidade da
segunda epístola atribuem-na a uma produção anônima posterior ao ano 70
d.C.

▷ Localização

Paulo as escreveu em Corinto.

▷ Características literárias

Na primeira epístola o tom é mais pastoral. Paulo escreve como um pai


preocupado com a sedução que o paganismo poderia ter sobre seus filhos
recém-nascidos na fé cristã. Em suas sentenças, sobressaem a gratidão, o
entusiasmo e a confiança que desejava transmitir aos crentes.
A segunda tem um tom menos apaixonado. A iminência da volta de
Jesus que Paulo pregara anteriormente, e que aparece destacada na primeira
epístola, foi interpretada por muitos como significando que o Senhor já havia
voltado ou que, devido à sua brevidade, era importante para aquela geração
alcançar a volta de Cristo em vida. Em outras palavras, os que morreram sem
ver a volta do Senhor estariam perdidos. Então, Paulo esclarece tais pontos de
desentendimento afirmando que a ressurreição faz parte dos planos de Deus e
que o Dia do Senhor, embora iminente, ainda estaria no futuro.

▷ Esboço
1Tessalonicenses

Motivos de agradecimento (1:2—3:13).


O dia a dia da vida cristã (4:1—5:24).
Saudação final (5:25-28).

2Tessalonicentes

Saudação (1:1-2).
Conforto na tribulação (1:3-12).
A volta de Cristo (2:1—3:5).
O perigo da ociosidade cristã (3:6-15).
Despedida (3:16-18).

▶ 1 e 2Timóteo

▷ Título e conteúdo

As duas cartas enviadas a Timóteo abrem uma seção chamada “epístolas


pastorais” de Paulo, mediante as quais se dirige a seus auxiliares,
nominalmente Timóteo e Tito, instruindo-os a como dirigirem as igrejas.
Paulo sentia que estava para morrer na mão dos romanos e fazia planos para
deixar substitutos cheios do Espírito Santo, que pudessem dar continuidade a
sua obra.
▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data

Cerca de 62 d.C.

▷ Localização

Paulo escreve de sua prisão em Roma para Timóteo, que estaria


pastoreando as igrejas a partir da cidade de Éfeso.

▷ Características literárias

São duas cartas de cunho bastante fraternal e paterno. Paulo insta


Timóteo que não tenha medo, que não se acanhe por causa de sua pouca
idade e nem permita que alguém o rebaixe devido à sua juventude. Também
o orienta a ser fiel e a não dar margens para que seu comportamento ou de
qualquer outro líder macule a missão da igreja. Ele também se despede e
prepara o jovem pastor para a sua (a de Paulo) breve morte, mas revisa a
trajetória de sua vida, puxando do arquivo de sua memória as dificuldades e
os livramentos proporcionados por Deus. Finalmente, lembra que todo
esforço feito nesta vida redunda no recebimento da coroa da vida eterna.

▷ Esboço

1Timóteo

Saudação inicial e ação de graças (1:1-20).


A organização eclesial (2:1—4:16).
Conselhos às várias classes de pessoas (5:1—6:19).
Saudação final (6:20-21).

2Timóteo

Saudação e agradecimento (1:1-5)


Exortações a Timóteo (1:6-18).
A missão de Timóteo (2:1-13).
Os falsos mestres (2:14-26).
Dificuldades da missão (3:1-17).
O testemunho de Paulo (4:1-18).
Despedida (4:19-22).

▶ Tito

▷ Título e conteúdo
Como as epístolas endereçadas a Timóteo, esta breve carta instrui a Tito,
outro discípulo de Paulo e líder no ministério da Igreja Cristã. Tito é
mencionado na Carta aos Gálatas (2:3), na qual se lê que ele não foi obrigado
a ser circuncidado quando se converteu ao cristianismo. Ele também é
mencionado em algumas sentenças de 2Coríntios como um comprometido
colaborador do apóstolo Paulo.

▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data

Cerca do ano 62 d.C.

▷ Localização

Paulo escreve de Roma para Tito, que estava na ilha de Creta.

▷ Características literárias
É muito parecida com 1Timóteo, talvez porque, à semelhança daquela,
Paulo também vê a necessidade de instruir Tito a como liderar as igrejas
cristãs da Ásia Menor, especialmente a comunidade que ele presidia. A igreja
estava se organizando e logo surgiam os primeiros problemas de doutrina e
unidade dos crentes.

▷ Esboço

Saudação (1:1-4).
Orientações a Tito (1:5-9).
Os falsos mestres (1:10-16).
A moral cristã (2:1-15).
Deveres sociais (3:1-11).
Recomendações finais (3:12-14).
Despedida (3:15).

▶ Filemon

▷ Título e conteúdo

A carta endereçada a um certo Filemon é de cunho único em todo o


conjunto de epístolas Paulinas. Não se trata de orientação doutrinária ou
pastoral, mas de um pedido de perdão que Paulo faz em benefício de
Onésimo, escravo fugitivo de Filemon e que agora voltava para casa.

▷ Autor

Apóstolo Paulo.

▷ Data

Cerca de 60 ou 61 d.C.

▷ Localização

A carta foi escrita de um dos últimos cativeiros de Paulo, que pode ter
sido em Éfeso, Cesareia ou Roma. É destinada a Filemon, que residia na
cidade de Colosso.

▷ Características literárias

A carta não apresenta um escopo teológico, mas ético e pragmático. É


uma das mais breves epístolas de Paulo, escrita num tom pessoal, a fim de
resolver um caso bastante específico, a volta de Onésimo a seu senhor.

▷ Esboço

Saudação (1-3).
Ação de graças com base na qualidade cristã de Filemon (4-7).
Pedido em favor de Onésimo (8-11).
Saudações da parte de amigos de Paulo (23-24).
Bênção (25).

▶ Hebreus

▷ Título e conteúdo

Embora seja comumente denominada de Epístola de Paulo aos Hebreus,


há sérias dúvidas de que se trata realmente de uma epístola direcionada aos
hebreus ― termo este que seria uma referência étnica aos antigos israelitas ou
judeus, como são comumente chamados no Novo Testamento. O conteúdo
parece mais com o de um sermão ou discurso pregado, se não por Paulo, por
alguém muito próximo dele, pois a essência teológica do texto é claramente
paulina.
Embora seja difícil definir seus destinatários, o texto remete a algum
grupo judaico-cristão muito bem afinado com a linguagem e liturgia do
judaísmo, o que justifica o título “aos hebreus”, ainda que este tenha um
cunho meramente metafórico.

▷ Autor

Os especialistas se dividem, havendo quem diga que o texto é de Paulo


ou de algum discípulo ligado a ele. De fato, há muito de Paulo neste
conteúdo. A estrutura mecânica da carta se assemelha a das cartas de Paulo
― primeiro a discussão doutrinária, a seguir a exortação;
Uma famosa coleção dos primeiros manuscritos de papiro do Egito
(início do terceiro século), conhecida como Papiro Chester Beatty II, traz
Hebreus entre as cartas paulinas.
Os mais importantes manuscritos unciais do quarto século, Álef,
Alexandrino, Vaticano e Efraimita, confirmam a autoria paulina. A maioria
dos pais da Igreja se posicionaram a favor de Paulo como o autor de Hebreus,
dentre eles temos Cirilo, João Crisóstomo, Agostinho e Jerônimo.

▷ Data

A data exata é desconhecida, mas considerando a expressão “os da Itália


vos saúdam” (13:24), deve-se entender que ela foi produzida em algum
período em que a mensagem cristã já havia alcançado a Europa e antes da
destruição do Templo de Jerusalém, pois esta parece referir-se ao santuário
judeu como em pleno funcionamento. Por isso, qualquer data entre os anos
60 d.C. é relativamente plausível.
▷ Localização

Talvez em alguma região da Itália.

▷ Características literárias

O texto traz uma característica de discurso ou pregação transcrita. O


autor nunca escreve, mas sempre “fala”. Somente no final do texto é que
temos uma despedida típica de epístolas. Por isso, considera-se que estamos
diante de um sermão anotado por um escriba e direcionado a diferentes
comunidades cristãs.

▷ Esboço

Prólogo (1:1-4).
A supremacia do Filho de Deus (1:5—2:18).
O sacerdócio do Filho de Deus (3:1—5:10).
O sacerdócio de Cristo (5:11—10:18).
A fé que opera e persevera (10:19—12:29).
Recomendações (13:1-25).
Bênção e saudação final (13:20-25).

▶ Tiago
▷ Título e conteúdo

Com Tiago, inicia-se o ciclo das chamadas “epístolas universais” ou


“epístolas gerais”. Eusébio foi o primeiro a cunhá-las com o título grego de
katholie (católicas), cujo sentido seria exatamente o de algo universal e,
portanto, direcionado não a uma comunidade específica, mas para todas as
igrejas cristãs.
O título vem de seu autor e seu conteúdo versa sobre diferentes temas
que vão surgindo ao longo do texto. Fala-se de questões básicas da vida cristã
em comunidade, que seriam atitudes frente às provações da vida, a verdadeira
religião baseada na caridade, a sabedoria que vem do alto, a ameaça aos
avarentos, a paciência e a constância cristã, o cuidado dos doentes e a
complexa relação entre fé e obras.

▷ Autor

O autor, ao que tudo indica, era um Tiago conhecido da igreja. Ele se


identifica apenas como “servo de Deus e de Jesus Cristo”. Vários Tiagos são
mencionados no Novo Testamento, e todos, em princípio, parecem ter
chances iguais de ser o autor da epístola. Contudo, a maioria dos
comentaristas o identifica como sendo Tiago “irmão de Jesus” e presidente da
igreja em Jerusalém. Esta parece ser a melhor hipótese.

▷ Data

A data de produção desta epístola é tema de grande controvérsia. Muitos


autores a colocam por volta do ano 45 d.C., ou da perseguição de Cláudio,
entre 50 d.C. e 52 d.C. E há também os que a colocam como posterior ao ano
70 d.C., sendo a diáspora referida àquela que se seguiu à destruição de
Jerusalém pelos romanos.

▷ Localização

Alguns autores pensam que seria Jerusalém o lugar de produção da


epístola. Outros a colocam como oriunda de Roma, Antioquia, Cesareia ou
Alexandria.

▷ Características literárias

A carta possui um grego muito bem redigido em pé de igualdade com o


livro de Hebreus. Nele, há elementos de retórica grega e citações de
prováveis ditos de Cristo não encontrados em outras partes do Novo
Testamento. O autor também lança mão da diatribe cínico-estoica, pequenos
diálogos com um interlocutor imaginário (2:18-19), perguntas retóricas (2:4,
5b, 14,16; 3:11-12; 4:4-5) e interpelações incisivas (1:16,19; 4:13; 5:1).
Contudo, se o argumento final não é grego, mas semítico, o ensinamento é
claramente cristão.
Os temas, no entanto, não aparecem na ordem de um tratado teológico,
como no caso de Hebreus. Sua organização é delineada a partir de um
diálogo ou argumentação imaginária que faz com que os assuntos tratados
surjam espontaneamente, mas não de modo improvisado. O autor sabe muito
bem a que temas sapienciais pretende conduzir o leitor e os esmiúça com o
rigor de um escriba judeu que transita com facilidade entre os modos gregos e
rabínicos de argumentação.
▷ Esboço

A atitude cristã perante as provações (1:1—2:25).


A verdadeira religião (1: 26—3:12).
A verdadeira sabedoria (3:13—4:12).
Ameaças dos ricos opressores (4:13—5:6).
Advertências finais (5:7-20).

▶ 1 e 2Pedro

▷ Título e conteúdo

As duas cartas são atribuídas tradicionalmente a Pedro, mas muitos


atualmente lançam dúvida sobre a autoria petrina de ambos os textos. O
primeiro é autodenominado como sendo uma carta de Pedro (1:1), por meio
de seu secretário Silvano (5:12). Seu conteúdo gira em torno de uma severa
perseguição à Igreja e é escrita para cristãos perseguidos que são instados a
não perderem a fé. A segunda carta, bem diferente do estilo da primeira,
evoca a iminente morte do autor (1:14), suas memórias e uma visão que teve
da glória de Cristo no dia de seu batismo (1:17). Também traz uma
admoestação contra os falsos ensinos e menciona heresias destruidoras que
ameaçavam a unidade da igreja.
▷ Autor

A tradição longamente aponta Pedro como o autor de ambas as cartas


que levam o seu nome.

▷ Data

Em algum período em torno do ano 60 d.C.

▷ Localização

De Roma para os cristãos espalhados por todo o território daquele


império.

▷ Características literárias

O estilo de ambas é claramente epistolar. A primeira carta é mais


pastoral e animadora, a segunda tem um tom mais apologético. A primeira
tem uma elegância e estilo comparável ao de Tiago, mas a segunda é redigida
de modo mais simplório. As duas juntas têm muitos pontos de contato com
outras partes do Novo Testamento, especialmente as epístolas de Paulo e
Tiago. Contudo, a relação não constitui dependência literária de em relação à
outra, mas apelo à fonte comum que era a do ensino apostólico cristão.
▷ Esboço

1Pedro

Saudação (1:1-12).
Exortação à santidade (1:13—2:10).
Os cristãos perante o mundo (2:11—3:12).
Os cristãos perante o sofrimento (3:13—4:11).
Últimas exortações (4:12—5:14).

2Pedro

Saudação (1:1-2).
Exortação à perseverança na fé (1:3-21).
Denúncia dos falsos mestres (2:1-22).
A segunda vinda do Senhor (3:1-16).
Despedida (3:17-18).

▶ 1, 2 e 3João

▷ Título e conteúdo

Aqui temos o conjunto de três cartas tradicionalmente atribuídas ao


apóstolo João. A primeira destina-se a uma comunidade cristã minada por
algum tipo de heresia gnóstica, que parecia ter surgido dentro de algum grupo
de ex-membros e que agora ameaçavam a unidade da Igreja. Talvez por isso
o termo grego koinonia (comunidade) seja uma palavra essencial na
argumentação do autor.
Na segunda carta, o autor, que se autodenomina “o ancião”, previne a
“senhora eleita” (uma líder local ou uma metáfora para designar a
comunidade como um todo) contra a infiltração dos dissidentes. Para tanto,
ele insta no mandamento do amor e na unidade doutrinária como forma de
combater os hereges. Finalmente, fala da cristologia e os pontos que estavam
sendo distorcidos.
Finalmente, a terceira carta é direcionada a Gaio, recomendando-lhe a
hospitalidade a um grupo de missionários liderados por Demétrio e que
chegariam até sua cidade. Ela também o encoraja a advertir contra um certo
Diótrefes que se opusera à liderança do ancião que escreve aquela epístola.

▷ Autor

João, muito provavelmente o discípulo amado e apóstolo de Cristo,


embora alguns autores pensem que seria outro ancião de mesmo nome do
apóstolo.

▷ Data

Em torno do ano 90 d.C.

▷ Localização
Provavelmente, as epístolas foram escritas da cidade de Éfeso.

▷ Características literárias

As cartas têm um caráter fortemente doutrinário e apologético.


Preocupa-se também com o lado prático das admoestações ao direcionar
como as coisas deveriam ser geridas nas comunidades cristãs, bem como
quem estava ou não autorizado a ensinar em nome dos apóstolos.

▷ Esboço

1João

A encarnação (1:1-10).
A vida de justiça (2:1-29).
A vida dos filhos de Deus (3:1—4:6).
A fonte do amor (4:7-21).
O triunfo da justiça (5:1-5).
A garantia da vida eterna (5:6-12).
Certezas cristãs (5:13-21).

2João

Introdução (1-3).
Elogio pela lealdade passada (4).
Exortações (5-11).
Conclusão (12-13).

3João

Saudação (1).
Mensagem a Gaio (2-8).
Condenação à arrogância de Diótrefes (9-11).
Elogio a Demétrio (12).
Conclusão (13-14).

▶ Judas

▷ Título e conteúdo

A epístola que leva o nome de Judas é tão pequena e destituída de


elementos formais de uma epístola comum que muitos a reputam por folha
anti-herética ou bilhete de urgência enviado às igrejas com o fim de preveni-
las dos mesmos perigos apontados nas cartas de Tiago e João, a saber, forças
dissidentes que haviam adentrado na Igreja Cristã primitiva.

▷ Autor

O Novo Testamento fala efetivamente de “Tiago e Judas” entre os


irmãos do Senhor (Marcos 6:3), assim, alguns pensam que este deveria ser
um ponto de referência para a identificação desse Judas. Embora esta pareça
uma identificação razoável, devemos lembrar que a identificação do Tiago da
epístola com o irmão de Cristo é hipotética. Seja como for, esse Judas se
identifica como “servo de Jesus Cristo” (como na epístola de Tiago) e “irmão
de Tiago”. O que corrobora não com a certeza, mas com a possibilidade de
que seria o mesmo Judas mencionado em Marcos 6:3.

▷ Data

Este é um dos textos do Novo Testamento mais difícil de datar. Os


comentaristas o colocam em qualquer período entre os anos 50 d.C. e 90 d.C.

▷ Localização

Indefinida.

▷ Características literárias

Um dos problemas em aberto com relação a Judas é que, por um lado,


ela não é uma verdadeira carta, como Romanos ou Gálatas — faltam
elementos pessoais entre o remetente e os destinatários. Por outro lado,
porém, não é um tratado como Hebreus. Alguns biblistas a classificam como
uma “folha volante anti-herética”, o que combina com seu conteúdo. Quanto
à classificação epistolar, devemos levar em conta que nem todas as cartas
precisavam ter todo o conteúdo formal das principais epístolas de Paulo.
Algumas missivas de guerra (como as óstracas ou as cartas de Amarna) têm
características de bilhetes que denotam sua urgência ou o aproveitamento de
um viajante que se dispõe a levar a mensagem.
Note que a epístola assume bem esse caráter de urgência em meio a uma
guerra espiritual. O autor apresenta uma situação difícil, criada pela
intromissão de pessoas subversivas na comunidade e centraliza suas linhas na
denúncia dos erros que motivaram o escândalo. A comparação com erros do
passado nos dá a entender que se tratavam de pessoas (talvez cristãos
gnósticos) que pretendiam ter uma vida licenciosa baseados na crença de que
eram especiais por causa do conhecimento que possuíam (isso nos lembra
bastante o fim da epístola de 2Pedro).

▷ Esboço

Saudação (1-2)
I. Advertência contra os falsos mestres dentro da comunidade (3-19)

Motivo para a advertência (3-4).


Lembrete do antigo povo ímpio (5-7).
Caráter do julgamento dos falsos mestres (8-19).

II. Exortações por perseverança (20-23)

Manter a fé (20-21).
Resgatar os enganados (22-23).
Doxologia (24-25).
▶ Apocalipse

▷ Título e conteúdo

O Apocalipse, ou ainda, Apocalipse de João, é o título de um tipo


específico de literatura profética vista no Antigo Testamento e aqui no último
livro do Novo Testamento. Conforme a tradução do grego, Apocalipse
significa “revelação”, e é este o conteúdo da profecia uma revelação dada por
Jesus Cristo acerca de si mesmo, dos acontecimentos futuros e do destino
final deste mundo.
O conteúdo é bastante simbólico e um dos mais difíceis de se decifrar
em toda a Escritura. Fala da luta entre o bem e o mal, dramatizada em forma
de animais monstruosos que saem do mar e da terra, de anjos que voam pelo
meio do céu e eventos cataclísmicos que atingem a natureza. Em meio a tudo
isso estão acontecimentos reais no céu e na terra simbolizados pelos
elementos literários que o livro utiliza para transmitir sua mensagem de
conforto e advertência.

▷ Autor

Há muita polêmica entre os comentaristas sobre quem seria esse João


que assina o livro. A tradição mais antiga do cristianismo o tem identificado
com o apóstolo João, também chamado “o discípulo amado”, que seria o
último dos apóstolos a estar com vida no final do primeiro século da nossa
era.
▷ Data

Acredita-se que o Apocalipse tenha sido composto entre os anos 90 e 96


d.C.

▷ Localização

Ilha de Patmos.

▷ Características literárias

Trata-se de um texto repleto de símbolos e imagens surreais que


apontam para realidades históricas e supraterrenas. Ele toma por paradigma
literário quatro elementos típicos desse tipo de literatura: uma revelação que é
dada por Deus; a transmissão que é dada por um mediador, o vidente que
recebe a mensagem, e os temas que dizem respeito ao passado, presente e
futuro do povo de Deus.

▷ Esboço

Introdução (1:1-20).
As sete Igrejas (2:1—3:22).
O Trono de Deus-Pai e do Cordeiro (4:1—5:14).
Os seis primeiros selos (6:1-17).
Os 144 mil selados/multidão (7:1-17).
O sétimo selo: sete trombetas/interlúdio — o anjo com o livrinho e as
duas testemunhas (8:1—11:19).
O dragão e a mulher (12:1-12).
O dragão, a mulher e as bestas (12:13—13:18).
Os 144 mil selados/os seis anjos/multidão (14:1-20).
Um outro sinal: sete pragas/julgamento de Babilônia (15:1—18:24).
As Bodas do Cordeiro/a volta de Cristo/Milênio (19:1—20:15).
A Nova Jerusalém (21:1—22:5).
Conclusão (22:6-21).
113 A palavra “católica”, embora hoje designe o nome do maior ramo eclesiástico do cristianismo,
tinha outro sentido no passado. Ela vem do grego katholikós. É esse o sentido usado em relação às
epístolas não paulinas do Novo Testamento.

114 Os esboços aqui apresentados são adaptados de múltiplas fontes e representam apenas uma
tentativa de delineamento do livro. Não se trata, portanto, de uma sistematização exata ou uniforme em
todas as Bíblias. Variações de esboço são muito comuns neste sentido.

115 Etã, o ezraíta (Salmos 89) — este Etã é associado a um certo Hermã, entre os cantores de Davi
(1Cr 15:17-19), mas também há referências a um Etã entre os sábios de Israel (1Reis 4:31).
CAPÍTULO DEZOITO

FATOS E CURIOSIDADES
BÍBLICAS

VOCABULÁRIO ORIGINAL
No texto hebraico do Antigo Testamento é possível detectar 8.674 diferentes
palavras. Já o texto grego do Novo Testamento conta com 5.624. O menor
verso da Bíblia varia de acordo com a tradução que se adota. Por exemplo, Jó
3:2 traz “Jó disse” (sete letras), mas algumas versões trazem “E Jó, falando,
disse” — o que o excluiria do ranking de menor versículo. O próximo (e que
se mantém assim em quase todas as traduções) seria Êxodo 20:13: “Não
matarás.” Já no Novo Testamento, o menor verso seria João 11:35: “Jesus
chorou.”
Quanto ao maior versículo da Bíblia, a indicação mais comum vai para
Ester 8:9, que tem 414 letras, conforme a tradução de Almeida, e 368 na
edição pastoral. No original hebraico, ele teria 371 letras. O menor livro da
Bíblia é 2João, com um capítulo e treze versículos. Já o maior é o livro dos
Salmos com 150 diferentes canções — isso se considerarmos cada salmo
equivalente a um capítulo.
O maior capítulo da Bíblia é o Salmo 119, com 176 versículos, e o
menor, o Salmo 117, com apenas dois versículos.

O TEMPO NAS ESCRITURAS

Na Bíblia, a ideia primária da palavra dia é em referência à parte clara


que vai do nascer ao pôr do sol. No início dos tempos, o período de 24 horas
era dividido em duas partes: êrev (tarde) e bôker (manhã). Êrev começava ao
pôr do sol ou, conforme Gênesis 3:8, “viração do dia”, e terminava ao nascer
do sol, onde começava o bôker. Até hoje os judeus usam a palavra êrev como
referência à primeira parte da noite, que vai do pôr do sol até por volta das
22h, período em que usam a expressão “êrev tôv” (“boa noite”, ao chegar) e
“laila tôv” (“boa noite”, ao sair).
Assim, os dias na Bíblia seriam de pôr do sol ao pôr do sol. A ideia
comum hoje em dia de medir o tempo de meia-noite à meia-noite é de origem
romana, conforme o testemunho de Plutarco, Plínio, Aulus Gêlio e
Macrobius.
Depois, a parte clara do dia (bôker) começou a ser dividida, e o meio-dia
era chamado “maior calor do dia”, quando todos procuravam abrigo e faziam
sua refeição (almoço), e depois a sesta (Gênesis 18:1-4; 2Samuel 4:5).
Diferentemente do formato de hora que usamos hoje, o tempo na época
bíblica era marcado numa contagem de 12 horas para o dia.
As horas do dia eram contadas desde a alvorada (por volta das seis da
manhã) até o pôr do sol (por volta das seis da tarde), e eram divididas em 12
partes, sendo três as principais entre o nascer do sol (primeira hora) e o
poente (duodécima hora): hora terceira (por volta das nove horas — Mateus
20:3; Marcos 15:25; Atos 2:15); hora sexta (por volta do meio-dia — Mateus
20:5; 27:45; João 4:6; 19:14; Atos 10:9); e hora nona (por volta das três da
tarde — Mateus 27:45,46; Atos 3:1; 10:3,30).
Mas não eram horas exatas de 60 minutos cada. Afinal, elas estavam
atreladas ao pôr do sol e à parte clara do dia, que variava de acordo com a
estação do ano. Uma hora equivalia a 1/12, aproximadamente, do período em
que o sol brilha no céu, desde a alvorada até ao ocaso. Ou seja, desde
aproximadamente 6 horas da manhã às 18 horas. É por isso que, em uma de
suas ilustrações, Jesus perguntou retoricamente: “Não há doze horas de luz
no dia?” (João 11:9).
Esse tempo de 12 horas era dividido em cinco horas principais. Sua
duração às vezes suplantava o tempo das horas seguintes. Por exemplo, a
primeira hora iniciava-se às seis da manhã e poderia durar até as 9h —
abarcando o tempo da segunda hora e durando, aproximadamente, 180
minutos. Assim, um navio que estivesse para partir à primeira hora, poderia
sair às 6h, 7h, 8h ou pouco antes das 9h — naquele tempo não havia a pressa
que temos hoje em dia!
Contudo, quando a situação necessitava de maior precisão, o autor
poderia falar, por exemplo, da sétima hora (por volta das 13h), mencionada
num milagre de Jesus relatado em João 4:49-54. Cita-se também a undécima
hora, na narração da parábola dos trabalhadores da vinha (Mateus 20:6,9).
Nesta parábola, o Senhor faz referência às várias horas do dia claro:
indiretamente, à primeira hora (vv. 1-2), terceira hora (vv. 3,4), hora sexta
(v. 5), hora undécima (vv. 6,9), e o cair da tarde (hora duodécima — v. 8). A
seguir, veja as horas mencionadas na Bíblia, cuja equivalência com o nosso
relógio seria, aproximadamente, a seguinte:

Terça hora (a partir das 9h da manhã).


Sexta hora (a partir do meio-dia).
Nona hora (a partir das 15h).

Outras expressões de tempo podem ser vistas em Gênesis 3:8, que relata
que, “por volta da viração do dia” (i.e., à tardinha), o Senhor Deus falou com
Adão e Eva logo após ambos terem pecado. Esse era o momento, na cultura
Oriental, em que o trabalho braçal havia terminado e as famílias se reuniam
para um merecido descanso e descontração. No entanto, o Senhor não deixou
para depois um assunto judicial tão sério.
Por outro lado, o texto de Gênesis 18:1-2 mostra que os anjos foram à
tenda de Abraão em Manre “por volta do calor do dia; depois, o Senhor
apareceu a Abraão junto aos carvalhos “no maior calor do dia”.
Esse era exatamente o meio-dia, período em que o Sol estava a pino,
ardendo sobre as colinas da Judeia. O calor podia ser sufocante, então esse
seria o melhor momento para os trabalhadores comerem alguma coisa e
descansar um pouco de suas atividades debaixo de uma sombra (cf. Gênesis
43:16,25; 2Samuel 4:5).
No tempo do Antigo Testamento, os judeus dividiam a noite em três
vigílias, a saber:

1. Vigília da noite (Salmos 63:6) ou princípio das vigílias (Lamentações


2:19), que ia do Sol posto até às 22h.
2. Vigília média ou da meia-noite (Juízes 7:19), que principiava às 22h e
prolongava-se às 2h da madrugada.
3. Vigília da manhã (1Samuel 11:11), que ia desde às 2h da madrugada até
o nascer do sol.

Em tempos posteriores, a noite começou a ser dividida, segundo o


costume dos romanos, em quatro vigílias (das 6 da tarde às 6 da manhã), de
três horas cada uma (Mateus 14:25; Lucas 12:38). Em Marcos 13:35, as
quatro vigílias são designadas pelo nome especial de cada uma.
Foi na quarta vigília da noite que o Senhor Jesus andou sobre as águas
ao encontro dos seus discípulos que estavam no barco (Marcos 14:25). Foi no
término desse horário que o Senhor, depois de ter pernoitado na cidade de
Betânia, ao dirigir-se de volta a Jerusalém, no caminho, teve fome e
encontrou uma figueira sem frutos e a amaldiçoou a fim de dar uma lição de
fé aos seus discípulos (Mateus 21:17-22). Foi também nesta vigília que o
Senhor ressuscitou dentre os mortos no primeiro dia da semana (Marcos
16:2). Veja também João 18:28.
A semana judaica, conforme o testemunho bíblico, foi inaugurada
juntamente com a criação do mundo, conforme o relato de Gênesis 1, que diz
que o mundo foi criado por Deus em seis dias, e no sétimo descansou. Desses
sete dias do ciclo semanal, apenas o sábado tem um nome próprio (Shabat em
hebraico, que significa “descanso”, “cessação de atividade”). Os demais dias
são designados apenas por seu elemento numeral:

Yom ehad (ou rishon) dia 1

Yom sheni dia 2

Yom shelishi dia 3

Yom rebishi (ou revi’i) dia 4

Yom hamishi dia 5

Yom shishi dia 6

O calendário hebraico, que o povo da Bíblia usava, era solar e lunar ao


mesmo tempo, conforme o salmo 104:19 e Gênesis 1. Assim, o calendário era
dividido em doze meses de 29 ou 30 dias, e estava baseado nas fases da lua.
Tanto que a palavra hebraica usada na Biblia para mês é chodesh, que quer
dizer “lua nova”. Isso vai ocasionar uma diferença de dias entre o ciclo lunar
e o solar. Assim, para resolver essa situação, cada período de tempo do ano
judaico recebia um mês suplementar — conhecido como “segundo Adar”
(Adar sheni), antes do mês de Nisã.
O início do ano religioso era celebrado na primavera (o 1º de Nisã); no
entanto, o ano novo civil era celebrado no outono, no mês de Tisri. A
numeração dos meses começa na primavera, com o mês de Nisã ou Aviv, da
mesma forma que na Babilônia.

N ÚMERO DO N OME R EFERÊNCIA BÍBLICA M ESES SOLARES


MÊS (NOMENCLATURA
ATUAL)

1 Nisã (ou Aviv) Êxodo 12:2; 23:15; Neemias 2:1; março-abril


Ester 3:7

2 Lyar (ou Zive) 1Reis 6: abril-maio

3 Sivã Ester 8:9 maio-junho

4 Tamuz Ezequiel 8:14 junho-julho

5 Abe (ou Av) 2Reis 25:8; Números 33:38 julho-agosto

6 Elul Neemias 6:15 agosto-setembro

7 Tisri (ou Etanim) 1Reis 8:2; Levítico 23:24; Neemias setembro-outubro


8:13, 14:16

8 Heshvan (ou Bul) 1Reis 6:38 outubro-novembro


9 Quisleu (ou Neemias 1:1 novembro-dezembro
Kislev)

10 Tevete Ester 2:16 dezembro-janeiro

11 Shevat Zacarias 1:7 janeiro-fevereiro

12 Adar Ester 3:7 e 13; Ester 8:12; Esdras fevereiro-março


6:15

(13) Adar-Sheni (ou mês suplementar


Veadar)

▶ Pesos, moedas e medidas116

▷ Medidas

I. Medidas de comprimento

A unidade principal era o cúbito ou côvado, o equivalente a 18


polegadas ou mais (45,7 centímetros).
4 dedos = a largura da mão (o dedo era o polegar, daí a polegada, 2,54
cm, e a mão, 1/6 de côvado ou 7,6 cm).
3 larguras da mão = 1 palmo (1/2 côvado ou 22,8 cm).
2 palmos = 1 cúbito; ou côvado (a distância do cotovelo à ponta do dedo
médio, 45,7 cm).
No período greco-romano as distâncias eram medidas por milhas (1.478
m) e estádios (185 m).
Pés romanos = a milha romana = 1.478,7 metros = a 4.851,43 pés (29,5
cm) ingleses.
8 estádios (Lucas 24:13) eram livremente calculados como uma milha,
embora teoricamente o estádio fosse igual a 600 pés gregos, ou 625
romanos (onze polegadas e meia ou 29,5 cm), que vinha a ser o
comprimento da pista de corridas em Olímpia.

II. Medidas de área ou superfície


O acre (jeira) é a tradução da palavra hebraica semed, jugo, e de
maanah, sulco, 1Samuel 14:14; Isaías 5:10 (a jeira, ou jugo, é a área que uma
junta de bois consegue lavrar num dia). O actus romano tinha 120 pés
romanos de comprimento, e o jugerum, jugo, era um trato de terra de dois
actus de comprimento por um de largura, menos de 2/3 de um acre.
Provavelmente, o acre hebreu não era muito diferente.
III. Medidas de capacidade
A unidade padrão era o efa (efi) para as substâncias secas, e o bato, para
os líquidos. O efa e o bato são de igual capacidade (Ezequiel 45:11),
contendo mais ou menos 8,1/4 galões e 1,2/3 pontos ou aproximadamente 32
litros (galão americano = 3,785 litros, e o pinto = 0,568 litros).
IV. Medidas para líquidos

12 logues (sextários) = 1 him (o logue é = a 1/72 do efa ou 0.445 mL; o


him é = a 1/6 do efa ou 5,34 litros).
6 hins = 1 bato (32 litros).
10 batos = 1 ômer, ou coro (Ezequiel 45:14) (320 litros).

V. Medidas para sólidos

6 cabos = 1 módio (o cabo é 1/18 do efa ou 1 litro e 777 mL, e o módio


10 litros e 666 mL).
3 módios, ou medidas, ou 10 ômeres, ou 1 efa (= 32 litros) (Êxodo
16:36; Números 15:4, Septuaginta)

Alqueire
Do árabe alkail, medida equivalente ao módio dos romanos. As citações
dos Evangelhos de Mateus 5:15, Marcos 4:21 e Lucas 11:33 referem-se
especialmente à vasilha com tal capacidade, que servia para medir os cereais.
Bato
Uma medida hebreia de capacidade usada para medir líquidos (2Reis
7:26,38; 2Crônicas 2:10; 4:5; Esdras 7:22). A décima parte de um ômer,
correspondendo em volume ao efa, uma medida de capacidade para secos
(Ezequiel 45:10,11,14). Medida padrão equivalente em volume ao efa, ao
almude e à metreta, 32 litros.
Cabo
Uma medida hebreia para sólidos, contendo, de acordo com a tradição
rabínica, um sexto de um módio ou uma centésima octogésima parte de um
ômer (1 litro e 778 mL).
Coro ou ômer
[Um montão]. Uma medida para substâncias líquidas e sólidas. Equivale
a dez batos ou efas (Ezequiel 45:11,14) ou 100 ômeres (320 litros) (Êxodo
16:36).
Efa ou efi
[Derivado talvez de uma antiga medida egípcia denominada oiphi]. Uma
medida de capacidade contendo 10 ômeres (Êxodo 16:36), e usada para
artigos como farinha (Juízes 6:19) ou cevada (Rute 2:17). Era equivalente a
um bato ou uma décima parte de um coro (Ezequiel 45:11,14), e continha
uma metreta ática ou setenta e dois sextários (logues). (Antig. 8. 2, 9; 9.4,5; e
15.9,2, onde leia-se metretas para medimnoi)
Comerciantes desonestos às vezes possuíam um efa de capacidade
insuficiente e usavam-no para fraudar (Amós 8:5). (As medidas efa, bato,
alamude e metreta são da mesma capacidade, 32 litros)
Him ou Hin
Uma medida líquida hebraica, contendo mais ou menos um galão e três
quartos (6 litros e 623 mL, quase 1/5 do efa) (Êxodo 29:40).
Ômer ou Gômer ou Gomor
Uma medida para substâncias secas. Contendo a décima parte do bato
ou efa (3,2 litros) (Êxodo 16:36).
▷ VI. Pesos e moedas

Os hebreus usavam balanças e pesos (Levítico 19:36); eles pesavam o


dinheiro como também outros produtos (Jeremias 32:10). As denominações
eram: talento (círculo), mane (parte), shekel (ou siclo) (peso), gera (grão), e
beca (meio [shekel]).

20 geras = 1 Shekel (ou siclo).


60 shekeis = 1 mane.
60 manes = 1 talento.

É importante observar que a tabela para o ouro e a prata é diferente da


tabela de outros artigos, e é:

20 geras = 1 shekel.
50 shekeis = 1 mane.
60 manes = 1 talento.

Mane vem do hebreu Maneh (1Reis 10:17) ou do grego Mna


(1Macabeus 14:24; 15:18 ― livro apócrifo), que geralmente acredita-se ser
calculado com a base no talento ático, e, consequentemente, um pouco mais
que meio mane hebreu.
A libra (João12:3; 19:39) equivale à libra romana, da qual duas metades
equivaliam a um mane hebreu de ouro. A libra como uma soma de dinheiro
era equivalente a 100 dracmas, valendo mais ou menos dólares em 2020
(Lucas 19:13).
Em peso, um shekel equipara-se a 20 geras, e um mane era 20 + 25 + 15
= 60 shekeis (Ezequiel 45:12). Essa interpretação é confirmada pela divisão
assíria e babilônica de seu mane em 60 partes. Pesos com a denominação de
mane foram descobertos em Nínive e Babilônia, e mostram que foram usados
talentos leves e pesados; o primeiro era igual a 60,6 quilogramas, e o último
exatamente uma metade, ou seja, 30,3 quilogramas. Os manes pesados e
leves pesavam 1.010 e 505 gramas, respectivamente, e os shekeis 16,83 e
8,41 gramas.
De acordo com Josefo, o mane de ouro hebreu era igual a duas e meia
libras romanas (Antig. 14:7,1), ou 818,57 gramas e, segundo Madden,
819,538 gramas. Parece, assim, que o mane de ouro judeu foi calculado em
50 shekeis, que o shekel de ouro era pouco mais leve que o shekel assírio,
pesando 16,37 gramas e, de acordo com Madden, 16,39 gramas, e que o
shekel de ouro e o shekel de peso foram planejados para serem idênticos. A
diferença entre este shekel hebreu e o shekel assírio era de aproximadamente
sete gramas (troy).
Uma comparação de 1Reis 10:17 com 2Crônicas 9:16, se o texto for
puro, indica provavelmente que um mane de ouro era calculado às vezes por
100 shekeis leves, em vez de 50 shekeis normais.
Três mil shekeis de prata igualavam-se a um talento. Isso transparece do
fato de que metade de 603.550 shekeis, ou 301.775 shekeis do santuário
equivaliam a 100 talentos e 1.775 shekeis (Êxodo 38:25,26). Pode-se
justamente concluir que o talento de prata era contado em 60 manes de 50
shekeis cada. O shekel era igual a 20 geras (Êxodo 30:13). O shekel de prata,
contudo, era mais leve que o shekel de ouro. O peso médio das moedas
existentes de shekel de prata são somente de 14,5565 gramas, de acordo com
Madden, 14,5668, gramas.
Ceitil ou centavo ou quadrante; asse e sestércio
Nome de certa moeda romana chamada quadrante feita de bronze, igual
à quarta parte de um asse ou ás. (O asse ou ás [as, em latim, plural asses] era
uma moeda romana de bronze e, posteriormente, de cobre, em circulação
durante a República e o Império. Recebeu o nome da unidade de peso
também chamada asse, que era equivalente a 12 onças (unciae), isto é, uma
libra romana.)
Os gregos empregavam o mesmo nome, igual à metade de um farthing,
ou à quarta parte de um cent americano (Mateus 5:26; Marcos 12:42). O
sestércio (sestertius, em latim) era uma antiga moeda romana. O nome
provém das palavras latinas semis (“meio”) e tres (“três”), isto é, “meio
terceiro”, porque valia dois asses e meio.
Denário ou dinheiro
A tradução do grego denarion. O denário era uma moeda de prata
romana (Mateus 22:19-21), no valor de mais ou menos 17 centavos no tempo
de Cristo. Era o pagamento ordinário de um operário agrícola por um dia
(Mateus 20:2,9,13). O hospedeiro do bom samaritano recebeu dois denários
para cuidar do judeu ferido, entretanto, ele prometeu suplementar esta soma
se as despesas excedessem a isso (Lucas 10:35). Os apóstolos calcularam que
seriam precisos 200 denários para comprar pão suficiente para alimentar 5
mil pessoas (Marcos 6:37). Isso seria um denário para cada 25 pessoas, ou
dois terços de um centavo para cada pessoa. Em Apocalipse 6:6, os preços
eram daqueles de muita carência que estavam à morte.
Dracma
A dracma (em grego, δραχμή) é o nome de uma antiga unidade
monetária encontrada em muitas cidades-estados gregas e estados sucessores,
e em muitos reinos do Médio Oriente do período helenístico. O dracma era a
mais antiga moeda ainda em circulação no mundo, até ser substituído pelo
euro.
Shekel ou siclo
Um peso (unidade básica = 12 gramas) usado para os metais (Gênesis
24:22; I Samuel 17:5,7). Em um período remoto, esta quantidade de prata
fundida era um padrão reconhecido nas transações financeiras (Gênesis
23:15-16). A metade de um shekel devia ser dado por cada homem como
resgate por sua vida, quando foi feito o censo (Êxodo 30:14-15).
O valor do shekel era de aproximadamente 65 centavos. Em 141-140
a.C., no quarto ano do sacerdócio de Simão Macabeu, Antíoco VII, que não
era ainda o rei da Síria, mas já detinha autoridade, permitiu-lhe cunhar o
dinheiro em seu próprio nome, e os siclos de prata e os meios-siclos
começam desde esse período a existir. Nas traduções portuguesas da Bíblia, o
vocábulo “siclo” corresponde a Shekel (Êxodo 30:13; Deuteronômio 22:19
etc.).
Talento
Um peso (3 mil siclos) usado tanto para produtos ordinários como para
os metais preciosos, mas de padrão diferente nos respectivos casos. Aparece
na parábola dos talentos, em que um senhor distribui talentos entre seus
empregados, de acordo com suas diversas habilidades, para serem postos em
uso rentável (Mateus 25:14-30). O uso figurativo da palavra talento é
provavelmente derivado de expressões como a de usar seus talentos para o
bem.
PRINCIPAIS GÊNEROS LITERÁRIOS
DA BÍBLIA

Dividem-se assim os diversos gêneros literários encontrados na Bíblia:

Narrativo/histórico.
Legislativo.
Sapiencial.
Profético.
Cânticos.
Evangelho.
Epistolar.
Apocalíptico.

Sub-áreas dentro dos gêneros literários

Prosa.
Poesia.
Parábola.
Hipérbole.
Midrash.
Diatribe.
Alegoria.

▶ Diferenças entre profecia e apocalipse


P ROFECIA A POCALÍPTICA

É, num primeiro momento, uma É escrita e deve ser lida.


pregação oral, face a face.

Às vezes recebida em visão estática. Sempre recebida em visão estática.

É primariamente uma mensagem de É primariamente uma mensagem de conforto, paciência e


arrependimento e justiça (se o povo confiança de que Deus intervirá para livrar seu povo eleito e
eleito e seu rei não fizerem a vontade recompensá-lo no fim dos tempos.
de Deus, haverá um juízo sobre ela).

É, antes de tudo, presente, e alude a É presente, em parte, mas sua maior concentração está em usar
circunstâncias históricas do momento o hoje para apontar o mundo do amanhã, principalmente o seu
em que o profeta está falando. A trajeto linear rumo ao escaton. É uma mensagem que interessa
iminência de um ataque, por às gerações que nem existem durante os dias do vidente.
exemplo.

Não precisa de intérprete. Tem de ser interpretada por alguém (anjo, Deus, Jesus Cristo).

Trata de fatos reais, sendo que, às É toda enigmática e codificada. A realidade é escondida em
vezes, usa parábolas e gestos figuras e códigos.
simbólicos.

Expressa mais a Palavra de Deus Expressa mais visões dos atos que as Palavras de Deus (Ex. “vi
que uma visão (Ex. “Assim diz o e ouvi”).
Senhor”).

Tem uma visão otimista do mundo. Tem uma visão catastrófica do mundo. É dualista e só acredita
Diz que se o povo for fiel, as bênçãos numa restauração escatológica.
existentes neste planeta serão
derramadas sobre eles sem medida.
116 Baseado no Novo Dicionário da Bíblia de John Davis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se você chegou até aqui e está lendo essas palavras conclusivas, certamente o
fez por um dentre dois motivos: porque leu todo o conteúdo ou porque saltou
direto para esta parte final. Se a última opção for a verdadeira, convido
gentilmente que você volte os olhos ao miolo do livro, pois tem muita
informação interessante lá dentro. E, se chegou até aqui porque leu tudo,
certamente entenderá minha vontade contida de querer dizer mais coisas.
Quando João terminou de escrever o seu evangelho, anotou que ainda
havia muita coisa sobre Jesus que ele queria contar e não pôde. Também
falou de forma poeticamente hiperbólica que se tudo o que pudesse ser dito
de Jesus fosse, de fato, escrito, nem mesmo o mundo inteiro seria capaz de
conter os livros que se escreveriam (João 21:25).
Não sou nem de perto comparável a João. Ele andou literalmente com
Jesus e era inspirado, eu não. Contudo, tenho minha relação espiritual com
Deus e, como João, sinto-me um discípulo apaixonado por Cristo. Por isso,
ouso concluir com o mesmo sentimento de “frustração editorial” dele. Não
sei se escrevi tudo que poderia ser dito sobre a Bíblia Sagrada. Mas de uma
coisa tenho certeza: se o que as Escrituras dizem for verdade — e estou certo
de que são ―, minha humilde contribuição poderá ser uma luz para despertar
pessoas para a Bíblia Sagrada. Seja para conhecê-la, seja para se aprofundar
nela.
Compare tudo que escrevi até aqui como um menino apontando para o
pôr do sol no horizonte. Sua atitude singela não tem outro objetivo senão que
os demais olhem para o espetáculo do sol. Enquanto todos comentam
maravilhados sobre a beleza daquele momento vespertino, ele pega sua
bicicleta e volta para casa na certeza do dever cumprido. Certeza, aliás, que
dura até o dia seguinte, quando ele volta para o mesmo lugar, encontra outras
pessoas e, de novo, aponta para o sol no horizonte. Ele não quer ser visto, não
é para o seu dedo que deseja que todos olhem, é para o astro-rei com seus
raios de beleza descendo atrás dos montes.
É assim que me sinto, como esse menino. Não foi meu objetivo iluminar
a Bíblia com meu livro. Isso seria tão estúpido quanto clarear o sol à luz de
uma vela. O que fiz foi apenas apontar para ela, e se você olhou para o
horizonte bíblico com sentimentos de êxtase e emoção, então posso dormir
em paz. Cumpri meu objetivo, pelo menos por hoje, até que amanhã eu
encontre novas pessoas que também precisam ver a luz.
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