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A Água o Sol o Mar o Ar a Terra o Macaco o Homem a Água...

O ciclo hidrológico, qual roda gigante, costuma ser invocado para explicar a movimentação da água à escala planetária. É um
modelo simples e poderoso, que permite imaginarmo-nos a bordo de uma molécula de água apanhando a boleia num ponto
qualquer: da evaporação da superfície do mar, transportados nas nuvens para uma zona mais fria, precipitando-nos no solo na
forma de neve, chuva, granizo, orvalho, sofrendo ou não evaporação, finalmente penetrando no solo ou escorrendo
superficialmente para um rio, de onde novamente caminhando para o mar, num ciclo sem fim à vista, alimentado pela radiosa
energia solar. Outros percursos são possíveis, mas a ideia base é sempre a mesma: a água é uma viajante planetária incansável,
que por nós passa, sendo a que bebemos e que somos, cerca de 80%, no nosso corpo, uma colecção de átomos que já andou por
todo o lado: nos confins do cosmos, nos vulcões, nos picos dos Himalaias, pelos antípodas, deu vida aos nossos antepassados,
macacos e homens e há-de ser parte do corpo dos nossos vindouros. Até há bem pouco tempo esta realidade podia ser
constatada de uma forma contemplativa mas, recentemente, a humanidade adquiriu uma capacidade de interferência com o
meio ambiente que toca e suja a água em diversos pontos da sua viagem. Na atmosfera, pelos gases poluentes de diversas
fontes de emissão - escapes de automóveis, chaminés de fábricas, etc.., que carregam as gotículas aéreas de água que andam
nas nuvens e precipitam em seguida na forma de chuvas poluídas, que queimam a vegetação e agridem o eco-sistema. No solo,
contaminado por grande diversidade de resíduos, através dos quais a água passa, englobando parte desses contaminantes e
arrastando-os para os aquíferos profundos. No mar, em particular nas zonas costeiras, onde derrames de petroleiros, rios
contaminados e dejectos da actividade humana da mais diversa natureza, vão acabando por entrar na cadeia alimentar, através
de peixes e moluscos, que acabam por provocar graves distúrbios de saúde nos mamíferos, incluindo a espécie humana.
Assim, nas últimas décadas têm sido criados e aperfeiçoados modelos de análise e de previsão da evolução de contaminantes
subterrâneos aéreos e aquáticos, modelos cada vez mais aperfeiçoados e certeiros nas suas previsões, ao mesmo tempo que a
actividade humana vai induzindo situações ambientais cada vez mais graves. Paradoxalmente, ou talvez não, nunca se soube
tanto sobre os processos de contaminação e nunca se contaminou tanto à escala planetária. Neste quadro, os países mais
desenvolvidos vão exportando certas actividades mais poluentes para países menos desenvolvidos, assistindo-se, à escala
planetária, a um agravamento das condições ambientais dos países mais pobres, que até aqui seriam pobres mas limpos,
passando, nas últimas décadas, a pobres e sujos. Parece que o desenvolvimento do conhecimento não consegue travar a
progressão da contaminação, à escala planetária, das águas, dos solos e da atmosfera. O diagnóstico é cada vez melhor, o
prognóstico cada vez mais certeiro a prever o pior.
Para terminar, quantifique-se um pouco o nosso problema. Estima-se que a água se distribui no planeta, mais coisa menos
coisa, do seguinte modo (1)

Oceanos 1320 milhões de Km3 97,2%


Neve e gelo 30 milhões de Km3 2,15 %
Água subterrânea até 800 m de profundidade 4 milhões de Km3 0,31 %
Água subterrânea a mais de 800m de profundidade 4 milhões de Km3 0,31 %
Zona não saturada do solo 0,07 milhões de Km3 0,005 %
Lagos de água doce 0,12 milhões de Km3 0,009 %
Lagos de água salgada 0,10 milhões de Km3 0,008%
Rios 0,001 milhões de Km3 0,0001%
Atmosfera 0,013 milhões de Km3 0,001%
A precipitação e evaporação anuais podem ser resumidas pelos valores do quadro seguinte

Precipitação em terra 720 mm


Evapo-transpiração 410 mm (57%)
Rios e escoamento subterrâneo para o mar 310 mm (43%)
Evaporação directa a partir do mar 1250 mm
Precipitação nos mares 1120 mm

Aceitando uma repartição de 30% de superfície de terra e 70% de mares, pode, com aritmética elementar e hipóteses
simplificativas, estimar-se, a partir destes dados e das dimensões do globo, que uma molécula de água que tenha sido
evaporada, permanece na atmosfera, em média, 9 a 10 dias, mas se for ter ao mar nele permanecerá, em média, quase três mil
anos e, precipitada na terra, nela permanecerá poucos dias a muitas centenas de anos, dependendo se escorre para os rios, para
o subsolo ou se fica cativa nos gelos, alguns ditos “eternos”.
Bem, então as moléculas viajantes, “purificadas” pela evaporação no mar, precipitadas em terra, podem manter-se “limpas ou
sujas” durante séculos consoante, ao atravessar o solo, tenham ou não ficado contaminadas. Esta situação, se não for
enfrentada e minimizada, deixará as futuras gerações a braços com grandes dificuldades, numa secular herança de sujeira
subterrânea, que só o muito tempo limpará. A Natureza tem todo o tempo do mundo para lidar com estes problemas. Até é
capaz de se adaptar, com elegância, a essas novas formas de sujeira planetária. E a humanidade? Viverá bem nessa nova
Natureza ou estará condenada a ser o seu futuro dejecto pós-moderno?
O aforismo velhinho “a água tudo lava” deve, neste século XXI, passar a ser complementado: “ água que tudo lavou, mais suja
ficou...”
(1) Quantitative Hydrogeology - Groundwater Hydrology for Engineers, de Ghislain de Marsily, Academic Press.

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