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INTRODUÇÃO À TEORIA DOS SISTEMAS

Niklas Luhmann

Inicialmente é necessário registrar que o presente livro não é uma obra tradicional, já
que foi extraída de conferências feitas por Luhmann sistematizadas num único livro
elaborado por Javier Torres Nafarrate.

Uma das características do pensamento de Luhmann é que a disciplina social deve se


converter em uma reflexão sistemática. A sociologia deve ter seu próprio método e este,
por sua vez, tem como base a sociedade. O objetivo da sociologia, portanto, é a
autodescrição da sociedade.

I – FUNCIONALISMO ESTRUTURAL/PARSONS

A sociologia enfrenta uma crise teórica cujas respostas para as perguntas mais
complexas limitam-se nas obras clássicas (Marx, Weber, Durkheim) que, atualmente,
não conseguem descrever coerentemente a situação dos problemas da sociedade
contemporânea.

Nos EUA, entre os anos de 1940 e 1950, dois fenômenos importantes surgiram:

a) Funcionalismo estrutural (ou funcionalismo da manutenção das estruturas);

b) Sistema da ação realizado por Talcott Parsons.

O funcionalismo estrutural tem bases etnológicas e social-antropológicas. O objetivo


desse método é apreender, mediante observação metodizada, as estruturas da sociedade
tomando como ponto de partida tribos ou clãs que haviam ficado isolados do
desenvolvimento.

Para Parsons, a pesquisa sociológica deve contar com um marco de referência


determinado, não sendo possível uma teoria global da sociologia que considere todas as
variáveis com todas as suas interdependências, já que parte da perspectiva da existência
de um fato de determinadas estruturas nos sistemas sociais, sendo necessário indagar
quais seriam as funções necessárias para sua preservação e manutenção.

Crítica desse pensamento: o preceito axiomático de que toda orientação das análises
concretas deveria estar dirigida por estruturas supostamente invariáveis impõe
limitações teóricas; além de dificultar o estudo de fenômenos que se descrevem com o
conceito de desvio: disfunções, criminalidade, condutas desviantes, etc. Da mesma
forma, tal teoria não precisa um critério para identificar a mudança de estruturas na
sociedade, é dizer, a passagem de uma sociedade antiga para uma nova.
Os critérios da conservação da identidade de um sistema social não podem ser descritos
por um observador externo, mas através de uma operação que surge a partir do interior
do sistema. Um sistema social deve decidir por si próprio se no curso de sua história
suas estruturas mudaram tanto que ele já não é o mesmo. Assim, o funcionalismo
estrutural se aliou à planificação de cima, ao controle, e o conceito de sistema se
converteu em um instrumento de racionalização e reforço das estruturas de domínio.

Luhmann critica a rejeição ao funcionalismo estruturante, porque tal rechaço se deu


mais a impulsos ideológicos do que a verdadeiras abordagens teóricas, perdendo-se o
impulso para prosseguir a pesquisa sobre sistemas na sociologia.

Parsons I

O desenvolvimento teórico de Parsons revela uma história de pertencimento e


distanciamento do funcionalismo estrutural. Para ele: action is system.

Um segmento da sociologia buscou incompatibilizar a Teoria dos Sistemas à Teoria da


Ação. Esta estaria ligara ao indivíduo enquanto aquela designa realidades de grande
escala e de elevada abstração.

Em contrapartida, Parsons afirmou que ação e sistema não poderiam ser compreendidos
separadamente, i.e, ação só é possível sob a forma de sistema, pois a construção de
estruturas sociais se realiza sob a forma de sistema e a operação desse esquema se
realiza através da ação.

Parsons elabora um esquema fim/meios para distinguir uma ação: o que o ator pretende
ao agir? Que fim persegue? Coloca-se, porém, paralelamente a isso, um arcabouço de
valores que possibilite ao ator fazer a distinção entre fins e meios, ou que o leve a
escolher somente determinados meios para obter um fim. A eleição de fins e a
delimitação dos meios não estão à disposição do livre-arbítrio de cada um dos
indivíduos, mas devem existir determinações sociais que os antecedem. A sociedade,
antes que os indivíduos se disponham a agir, já está integrada pela moral, pelos valores
e pelos símbolos normativos. Portanto, a sociedade não é possível, sem estar
previamente integrada sob a forma de sistema.

Parsons II

Para a teoria da ação, o ponto de referência é o de que quem atua é o sujeito; se não
existe o ator, a ação não se realiza. Ação é, pois, a exteriorização do que o ator pretende
e está subordinada àquele que atua.

Em Parsons, isso ocorre ao contrário: uma ação se realiza quando já está estabelecida a
diferença entre fins e meios, ou seja, quando já existe uma concatenação de valores
coletivos que se fazem presentes no momento em que o ator está decidido a atuar.
Assim, o ator é somente um elemento dentro do conjunto da ação. Deve existir um
contexto de condições da ação que deve estar pressuposto na sociedade, para que se
possa efetuar uma ação. Nessa ótica, o sujeito é um acidente da ação: o ator fica
subordinado a ela.

Parsons crê que existam quatro componentes básicos para que a ação se realize:
a) instrumental;

b) consumatório;

c) exterior;

d) interior.

Por instrumental, entende-se tudo aquilo que tenha que ser concebido como meio que
conduza à ação; por consumatório, não se deve entender apenas o fim ao qual a ação se
propôs, mas a satisfação adquirida e o aperfeiçoamento do estado do sistema ao qual se
chega, quando se age.

Por exterior e interior entende-se a relação do sistema para fora e em referências às suas
próprias estruturas.

Parsons, então, trabalha esses quatro componentes em um diagrama com dois eixos: i) o
horizontal, que significa os termos instrumental/consumatório, representando o eixo da
ação; ii) e o vertical (exterior e interior) que representa os preceitos teóricos do
tratamento sistêmico (sistema/meio):

Instrumental Consumatório

Exterior Adaptação Obtenção de fins

Interior Manutenção de estruturas Integração


latentes

Adaptação: o sistema instrumentaliza a relação exterior para alcançar um estado no qual


satisfaz necessidades. Esta é a função da economia.

Obtenção de fins: é a relação externa e a consumação do marco de valores sociais que


devem chegar a se colocar em operação. Trata-se da consumação total de um objeto
perseguido e não apenas sua projeção. É a função política.

Integração: discute-se se Parsons mesclou um conceito próprio da integração social com


um relativo à integração do sistema. Todo sistema deve aceitar um estado que se realiza
como presente. Assim, o presente sempre está integrado.

Manutenção de estruturas latentes: as estruturas, mesmo quando estão disponíveis para


resolver necessidades, não obrigatoriamente estão sempre presentes. Ex: sacar dinheiro
do banco atualiza uma estrutura econômica; em contrapartida, pode-se deixar de ir à
igreja por anos, e a estrutura continuará disponível de forma latente. Esta função é a de
estabilizar as estruturas e, assim, garantir sua disponibilidade, ainda que não sejam
utilizadas.
Resultado desses preceitos teóricos é que surge o esquema de quatro funções, conhecido
como AGIL: adaptation, goal attainment, integration, latent pattern maintenance. Para
Parsons, somente no âmbito dessas quatro combinações era possível a ação (sistema da
ação), e que todas as possíveis combinações que poderiam derivar-se não eram mais do
que uma articulação desenvolvida no contexto dessas quatro funções.

Um sistema emerge na medida em que ele possa preencher todas as variáveis relativas à
ação, i.e., repetir dentro de si mesmo as possibilidades de combinação dos quatro
compartimentos gerais.

II – SISTEMAS ABERTOS

Nesta aula, Luhmann procura demonstrar que, embora não exista propriamente uma
teoria geral de sistemas, houve estudos que, com êxito, buscaram aglutinar e combinar
aspectos parciais de diversas teorias visando a produzir uma teoria geral dos sistemas.
Na realidade, apresenta-se modelos gerais da Teoria dos Sistemas que repercutiram no
campo da sociologia.

Neste aspecto, formula-se uma teoria geral dos sistemas de segunda geração: second
order cybernetics, ou a Teoria dos Sistemas que observam (observing systems).

a) Modelo do Equilíbrio

O conceito pressupõe uma distinção entre estabilidade e perturbação, de tal modo que
com o termo equilíbrio se enfatize o aspecto da estabilidade. Desenvolve, assim, uma
grande sensibilidade face às perturbações e leva a resultados que buscam privilegiar o
equilíbrio. O modelo não é propriamente uma teoria, mas a manifestação de um estado
específico, que permite perceber claramente a relação entre estabilidade e perturbação.

Na tradição do pensamento sociológico, conferiu-se ao equilíbrio uma alta valorização,


enquanto teorias baseadas na noção de perturbação foram evitadas. Hoje há dúvidas
sobre se os sistemas descritos mediante a noção de equilíbrio são reais, pois tem-se
chegado à convicção de que no desequilíbrio os sistemas adquirem sua estabilidade. Ex:
sistema econômico e capitalismo

b) Modelo do Desequilíbrio

A perturbação sugere, inclusive, uma perspectiva de potencialização do sistema, na


medida em que este pode ficar permanentemente exposto às alterações e continuar
sendo estável. Essa compreensão da estabilidade a partir do desequilíbrio se dissocia da
tradição conceitual que tratou o desequilíbrio na direção do binômio
estabilidade/perturbação.

O modelo do desequilíbrio possibilitou que se vislumbrasse uma teoria geral dos


sistemas, embora não se possa falar em um descobrimento específico no campo do
sistêmico, mas sim em uma variante daquele pensamento já antigo sobre a estabilidade.
Luhmann se vale da física, especificamente da termodinâmica, para indagar se é
possível que os sistemas regidos pela entropia possam conservar-se. Se isso é válido
para a física, não o é para a ordem biológica e social.

Esses sistemas distintos da física têm de ser abertos, o que significa a existência de um
comércio com o meio, tanto para a ordem biológica como para os sistemas voltados
para o sentido (sistemas psíquicos, sociais, etc.). Surge, assim, uma nova ênfase no
modelo: o intercâmbio.

Para os sistemas orgânicos se pensa em intercâmbio de energia; para os sistemas de


sentido se pensa em intercâmbio de informação.

Os preceitos conceituais do intercâmbio da teoria geral dos sistemas alia-se à Teoria da


Evolução. Desde Darwin a evolução tenta explicar a multiplicidade das espécies
biológicas: como é possível que de um acontecimento único fundador da vida (a célula)
se tenha chegado a tão distintas formas orgânicas? No âmbito social a situação é
equivalente: como é possível explicar que a linguagem, como fenômeno universal de
socialização, tenha se desenvolvido tamanha diversidade de culturas e de linguagens, e
desenvolvimentos tão díspares?

Os sistemas abertos respondem tal questão na medida em que os estímulos provenientes


do meio podem modificar a estrutura do sistema: uma mutação não prevista no âmbito
biológico; uma comunicação surpreendente no campo social.

As categorias de variação, seleção, estabilização, empregadas por Darwin, consolidaram


o modelo dos sistemas abertos na teoria geral dos sistemas, já que o caráter aberto
expressava de maneira patente a dimensão histórica e o desenvolvimento da
complexidade estrutural contrário à lei de entropia.

Dessa teoria geral dos sistemas abertos, surgem três teorias subsidiárias: i) input/output;
ii) feedback negativo; iii) feedback positivo.

Esquema input/output

A consideração teórica dos sistemas abertos é, até certo ponto, uma teoria de alta
generalidade, já que não precisa a relação de intercâmbio que deve ocorrer entre sistema
e meio. O desenho dos sistemas abertos trabalha com um conceito indeterminado de
meio e não distingue a relação geral entre sistema e meio, da relação mais específica
entre sistema e sistemas-no-meio.

O esquema input/output se dirige, em contrapartida, à relação mais específica entre


sistemas e sistemas-no-meio, pressupondo que o sistema desenvolva uma elevada
indiferença em relação ao meio, e que, nesse sentido, este último careça de significação
para o sistema; de tal modo que não é o meio que pode decidir quais fatores
determinantes propiciam o intercâmbio, mas somente o sistema. O sistema possui,
então, uma autonomia relativa, na medida em que a partir dele próprio pode-se decidir o
que deve ser considerado como output, como serviço, como prestação, e possa ser
transferido a outros sistemas no meio.
No esquema input/output existem duas variantes: a primeira extrai seus estímulos a
partir de um modelo matemático ideal, no qual o sistema transforma uma configuração
de inputs segundo as diretrizes de um modelo. O fundamental, aqui, é que essa
transformação é decidida estruturalmente. Fala-se, então, em máquinas no sentido real,
ou em máquinas, no sentido de funções matemáticas: transformação de inputs em
outputs. Como se pode observar trata-se de um modelo formal, no qual a inputs com
funções iguais correspondem outputs iguais. Este esquema foi caracterizado como
modelo de máquina ou de fábrica, e daí a crítica acirrada de que a Teoria dos Sistemas
seja um modelo tecnocrático que não é capaz de dar conta da complexidade
multifacetada das realidades sociais.

Esquema feedback (negativo) da cibernética

A expressão formal deste modelo consiste em como alcançar outputs relativamente


estáveis diante de um meio instável ou de situações variáveis. O ponto decisivo do
desenho se concentra em como poder medir a distância ou a mudança de estado no meio
para que o sistema tivesse tempo de dar uma resposta estável: deve existir um
mecanismo mediante o qual o sistema pode medir certas informações que expressam a
distância constituída entre o sistema e o meio. O princípio básico consiste em como
funciona um preceito do sistema ao se produzir uma distância considerável no meio,
obrigando o sistema a reagir para obter a estabilidade.

Trata-se unicamente da capacidade de reduzir as distâncias entre o sistema e o meio, as


quais possam colocar em perigo a existência do sistema. Não se deve perder de vista o
significado originário de cibernética, no sentido de ela estar voltada a diminuir
distâncias e, principalmente, minorar efeitos produzidos fora do sistema e que só podem
ser controlados dentro dele. Todos esse preceitos teóricos estão contemplados no
conceito de feedback negativo.

Esquema feedback positivo

Assim como o feedback negativo se propõe a minorar as distâncias, o positivo aponta


seu aumento; ou seja, atingir-se a compreensão de que nos sistemas existe também uma
tendência a mudar radicalmente seu estado inicial mediante o aumento da distância
provocada fundamentalmente no meio.

A pergunta imediata resultante da compreensão da tendência de um feedback positivo é


se o sistema possui os mecanismos suficientes para controlar a tendência ao aumento da
distância, ou se este direcionamento leva a um desenvolvimento catastrófico.

A teoria do feedback positivo não tem uma qualidade de explicação causal do tipo “por
que”, mas somente a de fazer ver como determinados mecanismos de fortalecimento do
desvio tendem a reproduzir estados no sistema que não levam em conta as
conseqüências, nem se ajustam aos fins programados.

Observação da observação

Tudo o que se pode dizer sobre uma teoria sistêmica constitui, em última instância, uma
tentativa de responder, de maneira precisa, ao que se designa sob o conceito de sistema;
e isso, sobretudo, em dois aspectos fundamentais: i) passar da consideração de que um
sistema é um objeto à pergunta de como se chega a obter a diferença representada sob o
binômio sistema/meio. Como é possível que tal distinção (sistema/meio) se reproduza,
mantenha-se e se desenvolva mediante evolução, acarretando que se coloque cada vez
mais à disposição do sistema uma maior complexidade? ii) Que tipo de operação torna
possível que o sistema, ao se reproduzir, mantenha sempre a referida diferença?

A tarefa consiste, portanto, em fundamentar com quais instrumentos e preceitos teóricos


as perguntas anteriores podem ser plausivelmente respondidas.

O primeiro passo é ver como nos anos 1950 e 1960 a Teoria dos Sistemas resolveu o
problema do observador.

Nessa época a ciência pensa em um observador externo, colocado de fora do sistema.


Nesse sentido, duas teorias foram criadas:

a) Teoria analítica: é a teoria que delega ao observador externo a decisão do que ele
denomina como sistema e como meio, e também a decisão em relação aos limites.

b) Teoria concreta: é aquela que parte do pressuposto de que os sistemas já estão


constituídos e que a tarefa do teórico de sistemas consistiria em tentar descobri-los tais
como eles são.

Tais posições partem do pressuposto de que o observador esteja de fora do sistema.


Reprova-se aos teóricos analistas que não exista uma total liberdade para delimitar o
objeto, levando-os à necessidade de estabelecer contatos com a realidade, de modo a
poder definir seu campo de observação; enquanto os teóricos concretos são inculpados
de nunca alcançarem uma delimitação satisfatória em relação ao que designam como
sistema.

Nesse contexto, Luhmann diz que ambas teorias poderiam obter uma correção ao
pressuposto errôneo que as guia: o observador externo.

Para Luhmann, o observador faz parte do mundo que observa, i.e., necessita operar
fisicamente, organicamente, dispor de preceitos de cognição, participar da ciência, da
sociedade, comunicar-se segundo as restrições impostas pelos meios de comunicação.
Não existe, pois, uma diferença constitutiva entre sujeito e objeto, já que os dois
participam de uma base comum operativa já determinada.

Para poder observar, a própria ciência necessita estar constituída como sistema: com um
conjunto específico de comunicação, precauções institucionais, e hierarquia de valores;
um sistema no qual se oferece a possibilidade de fazer carreira e que necessariamente
tem dependências sociais. Tudo aquilo que um observador descobre sobre o sistema,
deve aplicar a si mesmo. Ele não pode operar de forma permanentemente analítica,
quando já está previamente incrustado em um sistema para poder realizar a observação.

A diferença entre teorias analíticas e concretas se dissolve a partir do momento em que


se aceitam as implicações autológicas de toda observação. Autológicas no sentido de
que o que é válido para os objetos, também o é para o observador.
Graças aos estímulos dessas abordagens, a Teoria dos Sistemas foi se constituindo em
um sistema de auto-observação, recursivo, circular autopoiético, dotado de uma
dinâmica intelectual própria e fascinante, capaz de equiparar-se às abordagens
problemáticas que hoje se enunciam sob a noção de pós-modernismo.

III – O SISTEMA COMO DIFERENÇA

Nesta aula Luhmann busca conceitos teóricos de diversas disciplinas, tais como a
matemática, semiótica, biologia, psicologia, para demonstrar que o ponto de partida da
Teoria dos Sistemas para a sociologia só pode ter como preceito teórico a diferença.

Demonstrou-se no capítulo anterior que a Teoria dos Sistemas movida por


representações do tipo input/output, ou pelo intercâmbio da matéria ocupavam-se por
esquemas que não estão sujeitos à lei da entropia e, que, precisamente pela abertura do
sistema e sua dependência do meio ambiente, estão aptos a reforçar sua diferença em
relação ao meio.

A Teoria dos Sistemas não começa sua fundamentação com uma unidade, mas com a
diferença.

Essa diferença não é o que a semiologia (ou semiótica, conforme o uso na França e
EUA) emprega como diferença entre as palavras e as coisas. A linguagem se realiza na
medida em que estabelece distinções: professor/aluno. Que a distinção expresse algo
que realmente ocorre na realidade é uma questão que, para a linguagem, não
desempenha um papel determinante: a questão pode permanecer aberta. Podem existir,
de fato, diferenças básicas na vestimenta, na idade, mas o que a linguagem na verdade
traz é a própria diferença: graças a isso, a linguagem se desenvolve, e é a diferença que
conduz toda a realidade do processo de comunicação.

Hoje, a abordagem das diferenças constitui uma extensa prática de conhecimento, e de


modo algum se pode pensar que ela pertença ao campo do saber esotérico.

A forma, é, portanto, uma linha fronteiriça que marca uma diferença, e leva a elucidar
qual parte está indicada quando se diz estar em uma parte, e por onde se deve começar
ao se buscar proceder a novas operações desenvolvidas; mas, mais precisamente,
autoreferência desenvolvida; mas, mais precisamente, autorreferência desenvolvida no
tempo. Assim, para atravessar o limite que constitui a forma, sempre se deve iniciar,
respectivamente, da parte que se indica, necessitando-se de tempo para efetuar uma
operação posterior.

As aplicações no campo sociológico são muito férteis. O binônimo sistema/meio é uma


operação baseada em uma diferença; e é assim que o teórico de sistemas reage diante da
consigna: draw a distinction. Não se trata de qualquer distinção, mas precisamente a de
sistema/meio; sendo que o indicador está posto do lado do sistema, e não do lado do
meio. O meio está colocado fora, enquanto o sistema fica indicado do outro lado.
A conseqüência para a Teoria dos Sistemas é a de que o sistema pode ser caracterizado
como uma forma, com a implicação de que a mesma está composta por dois lados:
sistema/meio. No contexto da teoria, isso não havia sido valorizado suficientemente,
devido, provavelmente, à falta de visibilidade sobre o significado desses preceitos e,
principalmente, do que se pode obter com isso. De imediato, para a Teoria dos Sistemas
abertos e também para preceitos teóricos que se baseiam em princípios de diferenciação,
vislumbra-se, na teoria da forma, uma espécie de síntese capaz de recrutar um bom
número de teorias de origem radicalmente distintas.

Aplicar tudo isso à Teoria dos Sistemas significa que um sistema é uma forma de dois
lados, e que um desses lados (o do sistema) pode ser definido mediante um único tipo
de operador.

Portanto, a diferença entre sistema e meio resulta do simples fato de que a operação se
conecta a operações de seu próprio tipo, e deixa de fora as demais.

Transportar esse corpo teórico para os sistemas sociais faz identificar a operação social
que cumpra com os requisitos mencionados: operação que deva ser única, a mesma, e
que tenha a capacidade de articular as operações anteriores com as subseqüentes. Ou
seja, a capacidade de prosseguir sua operação, e de descartar, excluindo-as, as operações
que não lhe pertencem.

No âmbito social, não existe uma multiplicidade de alternativas de modo a escolher,


entre elas, a operação que defina o social. A comunicação é o único fenômeno que
cumpre com os requisitos: um sistema social surge quando a comunicação desenvolve
mais comunicação, a partir da própria comunicação.

O importante a assinalar é que a comunicação se erige como a esperança de encontrar,


no social, um equivalente à operação bioquímica ocorrida com as proteínas. Ou seja, a
esperança de poder identificar o tipo de operador que torne possível todos os sistemas
de comunicação, por mais complexos que eles se tenham tornado no decorrer da
evolução: interações, organizações, sociedades. Tudo o que existe e pode ser designado
como social está constituído, do ponto de vista de uma construção teórica fundamentada
na operação, por um mesmo impulso e um mesmo tipo de acontecimento: a
comunicação.

Portanto, o social pode ser explicado sob a forma de uma rede de operações que gera
uma fenomenologia de autopoiesis. Nessa perspectiva, é muito difícil que o conceito de
ação seja adequado para definir o operador social, já que a ação pressupõe, ao menos no
entendimento comum, um processo de atribuição que nem sempre desemboca em um
acontecimento de socialização. A ação pode também ser descrita como um
acontecimento solitário, individual, sem nenhum tipo de repercussão social.

Em contrapartida, nunca ocorre algo semelhante na comunicação: ela se realiza somente


quando alguém, ainda que de maneira grosseira, entende (ou não) a comunicação, e
compreende que ela constitui um processo que pode ter continuidade. A comunicação se
situa mais além da mera utilização da linguagem, que ainda se poderia imaginar como
ato solitário, supondo-se que o outro (alguém) deva ser localizável e ter atributos muito
específicos para a comunicação: entender, saber ler.
A comunicação é uma operação genuinamente social, porque pressupõe o concurso de
um grande número de sistemas de consciência, mas que, exatamente por isso, como
unidade, não pde ser atribuída a nenhuma consciência isolada. E ela é social, porque de
modo algum pode ser produzida uma consciência comum coletiva, isto é, não se pode
chegar ao consenso, no sentido de um acordo total; e, no entanto, a comunicação
funciona.

Resumindo: pode-se dizer que, do ponto de vista da análise da forma, o sistema é uma
diferença que se produz constantemente, a partir de um único tipo de operação. A
operação realiza o fato de reproduzir a diferença sistema/meio, na medida em que
produz comunicação somente mediante comunicação.

O sistema (a comunicação) pode se distinguir em relação ao seu meio: a operação


realizada pelo sistema (operação de comunicação) efetua uma diferença, na medida em
que uma operação se articula e se prende à outra de seu mesmo tipo e vai excluindo
todo o resto. Fora do sistema, no meio, acontecem outras coisas, simultaneamente; e
elas sucedem em um mundo que só tem significado para o sistema no momento em que
ele possa conectar esses acontecimentos à comunicação. Por ter que decidir se articula
uma comunicação à outra, o sistema deve necessariamente dispor da capacidade de
observar e perceber aquilo que se ajusta, ou não, a ele. Portanto, um sistema que pode
controlar suas possibilidades de conexão deve dispor de auto-observação, ou, em outras
palavras, a comunicação tem a capacidade de se observar, principalmente quando já
existe uma linguagem para a comunicação e um repertório de signos padronizados.

Na comunicação deve-se falar sobre algo; um tema deve ser abordado. Porém, aquele
que fala pode se converter, ele mesmo, em tema: dizer que, na realidade, queria dizer
outra coisa, quando disse aquilo; ou exteriorizar um estado de ânimo. Como se vê a
comunicação tem a especificidade de poder articular-se, indistintamente, ao ato de
comunicar, ou à informação: o próximo passo da comunicação poderia continuar o
mesmo, em referência ao ato de comunicar ou à informação. Daí que na própria
operação da comunicação esteja incorporada a autorreferência (referência à
informação), bem como a heterorreferência (referência ao ato de comunicar).

Observando-se a comunicação permanece sempre como uma comunicação interior: ela


nunca abandona o sistema, já que as conexões só podem ser realizadas dentro do
sistema. Na distinção entre ato de participação da comunicação e informação diferencia-
se o que se passa fora do sistema daquilo que acontece dentro dele.

Evidentemente, somos observadores externos da sociedade: reconhecemo-nos fazendo


parte de uma vida social já constituída, que paga aos pensionistas, ou na qual temos lido
livros que nós mesmos teríamos querido e podido escrever. Contudo, não podemos nos
ocupar da sociedade, na qualidade de sociólogos, como se esta pudesse ser observada
externamente. Os sistemas de consciência podem, indubitavelmente, observar a
sociedade a partir de fora, mas, socialmente, isso fica sem efeito, quando não se
comunica, ou seja, se a observação não é realizada dentro do sistema da sociedade. Essa
idéia tem conseqüências de grande importância: não significa apenas que a identificação
do ato de comunicar, como ação, seja elaboração de um observador, isto é, a elaboração
do sistema da comunicação que se observa a si mesmo; mas ela significa,
prioritariamente, que os sistemas sociais (e isso inclui o caso da sociedade) podem ser
construídos somente como sistemas que se observam a si mesmos.
Nessa mesma perspectiva, pode-se ver como a sociedade se ocupa de sua própria
ideologia de autodescrição. Por que a sociedade, no século XIX e no XX, descreve a si
mesma como capitalista; e, na metade do século XVIII, como patriota? Por que surgem
diferentes esquemas de compreensão sobre si mesma, ao entender-se como
sociedade/comunidade, indivíduo/coletividade, para depois prescindir de tudo isso?
Como é possível refletir sobre a sociedade, orientando-se pelos esquemas moderna/pós-
moderna, tradicional/moderna? A tarefa da sociologia consiste precisamente em poder
responder como se chegou até aqui. Na realidade, nunca podemos ser observadores
externos da sociedade. As conseqüências disso não foram consideradas pela teoria
crítica, nem pela sociologia do conhecimento, e tampouco pelos esforços feitos para
interpretar a semântica social histórica, encabeçados por Reinhart Koselleck.

Ser observador da sociedade, a partir de dentro, oferece uma melhor posição teórica,
comparativamente à postulação de uma inteligência livre e flutuante, sugerida por
Mannheim; ou, por exemplo, ao ponto de observação indicados por Adam Smith ou
Ricardo: observar a sociedade do lado dos capitalistas, esquecendo-se de todo o resto;
ou comparando-a com o método de observação freudiano, orientado pelos complexos
psicológicos.

A sociologia deve partir da autocompreensão dos sistemas que acoplam, seletivamente,


a auto-observação e a hetero-observação, e se orientam conforme a referência a
estruturas previamente estabelecidas. A operação do sistema consiste, pois, em uma
espécie de máquina histórica, na qual todas as mudanças devem partir do estado atual
em que se encontram.

IV – ENCERRAMENTO OPERATIVO/AUTOPOIESIS

Na sociologia, a Teoria dos Sistemas toma como ponto de partida um princípio de


diferenciação: o sistema não é meramente uma unidade, mas uma diferença. A
dificuldade desse preceito teórico reside em poder imaginar a unidade da referida
diferença.

A diferença entre sistema e meio, que possibilita a emergência do sistema é, por sua
vez, a diferença mediante a qual o sistema já se encontra constituído.

Esse procedimento tão específico é indicado com o conceito de encerramento operativo,


segundo o qual o sistema produz um tipo de operação exclusiva: por exemplo, um ser
vivo que reproduz a vida que o mantém vivo, enquanto pode permanecer com vida; ou
um sistema social que produz a diferença entre comunicação e meio, no momento em
que realiza processos de comunicação – ou seja, em que a comunicação desenvolve uma
lógica própria de conexão da comunicação seguinte, e que inventa sua própria memória,
separando-se (diferenciando-se), assim, do especificamente vivo.

Menos trivial, e talvez até surpreendente, é o fato de que o sistema não pode empregar
suas próprias operações para entrar em contato com o meio. Pode-se dizer que este
último constituiria a especificidade do conceito de encerramento operativo. As
operações são acontecimentos que apenas surgem no sistema, e não podem ser
empregados para defender ou atacar o meio. No plano das operações específicas do
sistema, não há nenhum contato com o meio; sendo que isso também será válido,
quando – e sobre este difícil princípio, que contradiz toda a tradição da teoria do
conhecimento é preciso chamar expressamente a atenção – as referidas operações forem
observações, ou bem, operações. Além disso, tampouco para os sistemas que observam
existe, no plano de sua operação, algum contato com o meio. Cada observação sobre o
meio deve ser realizada no próprio sistema, como atividade interna, mediante distinções
próprias (para as quais não há nenhuma correspondência no meio). Do contrário, não
teria sentido falar em observação do meio. Toda observação do meio pressupõe a
diferenciação entre autorreferência e heterorreferência, que só pode ser desenvolvida no
sistema.

Quando esses axiomas teóricos se transferem para a teoria do conhecimento, produzem


impactos de efeitos incalculáveis, já que induzem a pensar que o conhecimento só é
possível na medida em que existam operações incapazes de estabelecer alguma relação
com o meio. O conhecimento só é possível porque (e não, apesar de que) existe
encerramento operativo. Com operações de conhecimento não se pode apreender o
meio; podendo-se assim observar que o conhecimento esteja incansavelmente
procurando tirar conclusões, conseqüências, antecipações, que levam à mobilização
permanente da memória. Os sistemas encerrados operacionalmente só se constituem
mediante operações internas.

Para a Teoria dos Sistemas, a causalidade é uma relação seletiva estabelecida por um
observador; um julgamento que resulta da observação realizada por um observador.

A causalidade é sempre uma seleção que se deve atribuir a um observador com


determinados interesses, com um tipo específico de estrutura de observação, e com uma
capacidade bastante determinada de processar informação.

Necessitamos observar o observador para saber qual causalidade ele atribuirá, e quais
causas e efeitos ele trará à baila. Há muita pesquisa psicológica a respeito, podendo-se,
assim, relativizar o esquema causal, definindo-o como um costume seletivo de uma
operação de atribuição. Na psicologia social se diz que a questão central no esquema
das causas não reside em determinar quais são as causas e os efeitos, mas sim em quem
os determina.

A distinção entre sistemas técnicos e de sentido consiste em que os primeiros são


praticamente fechados à causalidade, e somente em determinadas circunstâncias reagem
aos estímulos provenientes do meio.

O tema do encerramento operativo detém um lugar privilegiado na exposição didática,


uma vez que desse princípio teórico partem todos os novos preceitos sobre os sistemas,
que não podem estabelecer pontos de contato com o meio.

O encerramento operativo traz como conseqüência que o sistema dependa de sua


própria organização. As estruturas específicas podem ser construídas e transformadas,
unicamente mediante operações que surgem nele mesmo; por exemplo, a linguagem
pode ser transformada somente mediante comunicações, e não imediatamente, com fogo
ou fresas, ou com radiações espaciais, ou em virtude de desempenhos perceptivos da
consciência do indivíduo. O encerramento operativo faz com que o sistema se torne
altamente compatível com a desordem no meio, ou mais precisamente com meios
ordenados fragmentariamente, em pedaços pequenos, em sistemas variados, mas sem
formar uma unidade. Pode-se dizer que a evolução leva necessariamente ao
encerramento dos sistemas, o qual, por sua vez, contribui para que se instaure um tipo
de ordem geral em relação ao qual se confirma a eficácia do encerramento operativo.

O conceito de acoplamento estrutural define que no encerramento operativo a


causalidade é canalizada de maneira que exista uma relativa coordenação ou integração
entre sistema e meio, sem que seja preciso renunciar à radicalidade da tese do
encerramento operativo. Exatamente porque os sistemas estão encerrados em relação à
sua operação, eles podem ser influenciados mediante acoplamentos estruturais, ao
menos ao longo prazo.

O axioma do encerramento operativo leva aos dois pontos mais discutidos na atual
Teoria dos Sistemas: a)auto-organização; b) autopoiesis.

A experiência de um número elevado de discussões sobre a autopoiesis tem como


resultado a convicção de que a tese do encerramento de operação deve ser o eixo sobre
o qual gira a explicação de todos os preceitos teóricos necessários para a especificação
da constituição dos sistemas; mesmo a despeito de que a gênese da conceituação sobre o
encerramento das operações tenha surgido derivada do conceito de autopoiesis.

Auto-organização e autopoiesis são dois conceitos que devem manter-se claramente


separados. Cada um acentua aspectos específicos do encerramento de operação. Os dois
têm como base um princípio teórico sustentado na diferença e um mesmo princípio de
operação. Ou seja: o sistema só pode dispor de suas próprias operações; ou, em outras
palavras, dentro do sistema não existe outra coisa senão sua própria operação. Esta
operação única consegue configurar dois acontecimentos fundamentais, dentro do
sistema: a auto-organização e a autopoiesis.

Auto-organização significa construção de estruturas próprias dentro do sistema. Como


os sistemas estão enclausurados em sua operação, eles não podem conter estruturas.
Eles mesmos devem construí-las: por exemplo, numa conversa, o que se disse por
último é o ponto de apoio para dizer o que se deve continuar dizendo; assim como o que
se percebe no último momento constitui ponto de partida para o discernimento de outras
percepções.

Autopoiesis significa, ao contrário, determinação do estado posterior do sistema, a partir


da limitação anterior à qual a operação chegou.

Somente por meio de uma estruturação limitante, um sistema adquire a suficiente


direção interna que torna possível a autorreprodução. Assim, uma estrutura constitui a
limitação das relações possíveis no sistema, mas não é o fator produtor, a origem da
autopoiesis.

Conclui-se, portanto, que o conceito de estruturas deva ser definido (no âmbito dessa
teoria) mediante o conceito de expectativa. As estruturas são, pois, expectativas sobre a
capacidade de conexão das operações, tanto da vivência como da ação; ou expectativas
generalizadas do que deve ser comum, mas que não são subjetivas.
Os novos preceitos da Teoria dos Sistemas deixam de lado a distinção sujeito/objeto,
substituindo-a pela diferenciação entre operação e observação: operação que um sistema
de fato realiza, e observação que pode ser efetuada pelo próprio sistema, ou por outro.
Trata-se, portanto, de um conceito de expectativa que não se dirige, em primeira
instância, ao componente subjetivo, mas sim à pergunta de como a estrutura pode servir
para que se efetue uma redução de complexidade, sem que o sistema se restrinja
paulatinamente, mas, ao contrário, tenha capacidade de determinar a situação em que
poderá utilizar a estrutura.

A grande utilidade do conceito de estrutura é compreender como se pode conciliar uma


alta complexidade estrutural com a capacidade de operação de um sistema. Os sistemas
de alta complexidade estrutural combinam em seu interior seleções estruturais que só
podem obter por si mesmos, para que disponham de um repertório maior para a ação;
sendo exatamente aí que o conceito de estrutura adquire sua importância, e não tanto na
questão acerca da objetividade ou da subjetividade.

Por fim, no que se refere à auto-organização, deve-se considerar que o sistema só pode
operar com estruturas autoconstruídas: não pode haver importação de estruturas.

A especificidade das estruturas reside, antes, no fato de que elas constituem um


processo de repetição, no sentido de que uma estrutura simula situações que entende
como repetição. Do contrário, aquilo que é totalmente novo nunca poderia ser motivo de
aprendizagem.

Assim, trata-se, aparentemente, de duas inflexões que devem se realizar para que surja a
estrutura: a) identificar traços distintivos, pontos de fixação; e b) generalizar, a despeito
de mudanças de situação e desvios consideráveis: condensação como restrição, por um
lado, e, logo, generalização. Somente assim se torna compreensível como podemos
reconhecer alguém depois de vários anos, ou, então, que na linguagem possamos
empregar a mesma palavra, em frases e tempos diferentes, e em distintas situações
anímicas.

Na definição de Maturana, autopoiesis significa que um sistema só pode produzir


operações na rede de suas próprias operações, sendo que a rede na qual essas operações
se realizam é produzida por essas mesmas operações. A formulação é, evidentemente,
cheia de pressupostos.

Os sistemas são autônomos no nível das operações. A categorização da autopoiesis


assume como ponto de partida a questão radical da autonomia, já que define o sistema a
partir de seus próprios elementos. Autonomia significa que somente a partir da operação
do sistema é possível determinar o que lhe é relevante e, principalmente, o que lhe é
indiferente. Consequentemente, o sistema não está condicionado a responder a todo
dado ou estímulo proveniente do meio ambiente. Os sistemas não podem importar
nenhuma operação a partir do meio. No caso da consciência, não existe comunicação de
consciência para consciência. Somente uma consciência pode pensar (mas não pode
pensar com pensamentos próprios dentro de outra consciência). E a título de ilustração
do caso da comunicação, nenhum processo químico pode vir a fazer parto do sentido da
comunicação: nenhuma tinta derramada sobre uma folha pode produzir um texto.
Por que a denominação autopoiesis: Maturana relata que o conceito surgiu quando ele
estava trabalhando com o termo de estruturas circulares para explicar a reprodução
celular, embora não considerasse suficientemente apropriada a palavra circular. A partir
do encontro com um amigo filósofo, surgiu na prática o tema da diferença entre práxis e
poiesis, abordado em uma aula sobre Aristóteles ministrada pelo referido professor e
amigo. Praxis, entendida no contexto aristotélico como paixão da vida estética. A
virtude de todo trabalho que não adquire sentido no efeito ou no êxito obtido, mas tão
somente pelo fato de se realizar. No contexto de práxis já está contido o momento da
autorreferência.

Em contrapartida, a poiesis foi explicada como algo que se produz de fora de si mesmo:
faz-se isto ou aquilo, não para executar uma ação que tem sentido unicamente pelo fato
de ser feita, mas porque se quer produzir algo. Com esses elementos, Maturana
encontrou por si mesmo a ponte para sua expressão, com o acréscimo da palavra auto.
Com isso, ele queria indicar que o conceito de autopoiesis se tratava de uma produção,
de um efeito expressamente perseguido e, não de uma práxis. No conceito de
autopoiesis a produção consiste em produzir-se a si mesmo – operação que não tem
sentido quando se expressa como autopraxis, já que se trataria de uma reduplicação do
que a práxis já faz por si mesma.

Tanto o conceito de encerramento operativo como o de autopoiesis colocam-se numa


ordem de realidade distinta. A diferença entre sistema e meio, resultante do
encerramento operativo e da autopoiesis de um sistema, sobrepõe-se a um continuum de
realidade, ao mesmo tempo em que o pressupõe.

Portanto, o conceito de poiesis, tomado no sentido estrito, é a produção de uma obra; o


acréscimo da palavra auto define que a obra constitui o próprio sistema.

A autopoiesis constitui, portanto, um princípio teórico, que, muito particularmente,


responde à pergunta do que é a vida, o que é a consciência, o que é o social. Trata-se de
uma refundação da teoria, cujo desenvolvimento dos conceitos complementares requer
muita elaboração. O conceito de autopoiesis não oferece ganho de informação e se
mantém em um plano geral, abstrato. Necessita de apoios decisivos, como o do conceito
de acoplamento estrutural. Maturana busca explicar a variação da estrutura de um
sistema mediante os diferentes tipos de acoplamentos estruturais através dos quais os
sistemas se acoplam ao meio.

V – ACOPLAMENTO ESTRUTURAL

Ao transferir seu centro de gravidade para o conceito de autopoiesis, a Teoria


dos Sistemas defronta-se com o problema de como estão reguladas as relações entre
sistema e meio; uma vez que, principalmente na estratégia teórica, a distinção
sistema/meio faz referência ao fato de que o sistema já contém a forma meio. Em outras
palavras: nenhum sistema pode evoluir a partir de si mesmo. Em todo processo
evolutivo, a autopoiesis do sistema se reproduz e pode sobreviver à reprodução
divergente oferecida pelas estruturas. É fácil entender que o meio desempenha um papel
muito importante nisso; sem contar que carece de sentido perguntar o que é mais
importante, sistema ou meio, já que é precisamente esta diferença que torna possível o
sistema.

Portanto, a pergunta fundamental é: como o sistema entra em relação com o


meio, e quais instrumentos conceituais são necessários para apreender esta relação?

O conceito de acoplamento estrutural, proveniente de Maturana, poderia oferecer


uma explicação e, talvez, preencher o vazio que suprisse com maior plausibilidade os
preceitos teóricos que utilizam as relações causais entre sistema e meio. Contudo, será
preciso delimitar e definir esse conceito para que ele possa ser aplicado no campo da
sociologia.

O conceito de acoplamento estrutural especifica que não pode haver nenhuma


contribuição do meio capaz de manter o patrimônio de autopoiesis de um sistema. O
meio só pode influir causalmente em um sistema no plano da destruição, e não no
sentido da determinação de seus estados internos.

As causalidades que podem ser observadas na relação entre sistema e meio


situam-se exclusivamente no plano dos acoplamentos estruturais – o que significa dizer
que estes devem ser compatíveis com a autonomia do sistema. Tal tipo de conceituação
reafirmam o já especificado, em aulas anteriores, acerca do significado preciso do
conceito de autopoiesis: um sistema não pode ser mais ou menos autônomo, e mais ou
menos autopoiético. Os acoplamentos estruturais podem admitir uma diversidade muito
grande de formas, desde que sejam compatíveis com a autopoiesis. A ênfase reside,
portanto, nessa compatibilidade.

O conceito de acoplamento, assim como o de forma, mostra dois lados: a)


acoplamento não está ajustado à totalidade do meio, mas somente a uma parte escolhida
de maneira altamente seletiva; consequentemente, b) apenas um recorte efetuado no
meio está acoplado estruturalmente ao sistema, e muito fica de fora, influindo de forma
destrutiva no sistema.

Portanto, no acoplamento estrutural realizado pela linguagem, temos uma forma


altamente seletiva, que, empregando padrões muito simples e estandartizados,
possibilita uma combinação muito complexa, que produz efeitos de complexidade
correspondentes tanto na consciência, como na comunicação.

Mas o que significa mais exatamente dizer que o acoplamento estrutural deva ser
compatível com a autopoiesis? Primeiramente, não há determinação das estruturas de
fora do meio. Os acoplamentos estruturais não determinam os estados do sistema, mas
sua função consiste, isso sim, em abastecer de uma permanente irritação (perturbação,
para Maturana) o sistema; ou então, do ponto de vista do sistema, trata-se da constante
capacidade de ressonância: a ressonância do sistema se ativa incessantemente, mediante
os acoplamentos estruturais.

A ênfase atual da pesquisa sobre os sistemas não reside no equilíbrio, mas na


estabilidade: há sistemas que não estão em equilíbrio e são estáveis (ou podem sê-lo).
Na economia, diz-se que o sistema é estável: a) porque existe superoferta de mercadoria
e poucos compradores, ou b) porque há superoferta de compradores e escassez de
mercadoria. Atualmente, o ponto fundamental da reflexão acerca dessa problemática
consiste em ter compreendido que o estado de equilíbrio pressupõe uma situação de
demasiada fragilidade para que possa ser estável. O sistema socialista se baseou na
superoferta de compradores, e o capitalismo, na de mercadorias. Contudo, em qualquer
dos dois casos, não se trata propriamente de equilíbrio, mas sim, de estabilidade.

A informação é, portanto, sempre informação de um sistema. Cabe mencionar,


além disso, outra característica que serve indiretamente para a definição do conceito de
informação: deve tratar-se de sistemas autopoiéticos; consequentemente, de sistemas
que sempre atuam na transformação de seu próprio estado. Do contrário, tratar-se-ia de
uma simples mudança no sistema mediante uma influência exterior. É somente para os
sistemas autopoiéticos que a influência exterior se apresenta como uma determinação
para a autodeterminação e, portanto, como informação: esta modifica o contexto interno
da autodeterminação, sem ultrapassar a estrutura legal com o qual o sistema deve
contar. As informações são, por conseguinte, acontecimentos que delimitam a entropia,
sem determinar necessariamente o sistema.

Consequentemente, o conceito de informação deve ser concebido no marco de


referência da forma, como u conceito com dois lados: a) o caráter de surpresa que traz
implícita a informação; b) o fato de que a surpresa só existe se as expectativas já
estiverem pressupostas no sistema, e se já estiver delimitada a margem de possibilidades
dentro da qual a informação pode optar. Assim, informação é seleção que só acontece
uma vez, na escala das possibilidades, e que, quando é repetida, perde o caráter de
surpresa. Esta poderia ocorrer mesmo repetindo-se sempre uma coisa, pois as
expectativas estariam consequentemente voltadas para que algo diferente acontecesse.

Na Teoria dos Sistemas, o conceito de informação toma o lugar do conceito


encarregado da finalidade de equilíbrio. Com essa mudança que acaba por reforçar, ao
especificá-lo, o conceito de autopoiesis, não é possível predizer como o sistema se
comportará, uma vez que a informação é um estado que surge de dentro dele mesmo.

No contexto da socialização há um paralelismo muito semelhante, determinando


que a evolução não seja entendida como o caminho para uma maior conscientização.

O que deve ser visualizado, em primeiro lugar, é que a consciência é um sistema,


também autopoiético: a partir de seu modo de operação (a atenção), pode distinguir o
que é consciência e o que é objeto. Distingue, portanto, a autorreferência da
heterorreferência. Se realmente se chega à compreensão de que a consciência se
desenvolve em uma ordem de operação distinta da operação social, como é possível
explicar, então, a sintonização entre comunicação social e potencial de consciência?

Resumindo: socialização é sempre autossocialização; não acontece por


transferência de um modelo de sentido, de um sistema a outro. Seu procedimento
fundamental é a reprodução autopoiética do sistema, que efetua e experimenta a
socialização em si mesmo. Nesse sentido, a socialização se assemelha à evolução, que
pressupõe a autopoiesis e a reprodução divergente na ordem das estruturas.

O que pode avaliar com essa conceituação é que a autopoiesis, tanto da vida
como da comunicação, é um fenômeno tão forte, que o máximo que toda mudança
estrutural (structural drift) produz, de forma quase imperceptível, é mais diversidade.
Aparentemente, não é mais possível explicar esse fenômeno com instrumentos teóricos
tradicionais.

Não existe uma observação pura do mundo, mas somente a que é feita consoante
o sistema que a relata. Nesse contexto, a ontologia é ainda um esquema de observação:
uma teoria, uma maneira de pensar, uma hipótese, e não uma afirmação da realidade,
com a qual todos teriam de concordar, contanto que observassem razoavelmente. A
tradição ontológica repousa suas bases sobre a descoberta de um esquema de
observação guiado por uma diferença: ser/não ser. Mas essa descrição do mundo, assim
como a distinção entre meios e fins, constitui um esquema referido a um observador.

VI – O OBSERVADOR

O que se subentende com o conceito de observação é um contexto teórico mais


abstrato do que o da Teoria dos Sistemas, e que poderia ser a base de uma aplicação
interdisciplinar, na qual a diferença sistema/meio seria apenas um tipo de observação
entre muitos outros: signo/significado, forma/meio, acoplamento débil/acoplamento
forte...

O conceito de observação deve lançar mão de todos os preceitos de teoria


circular (constituição operativa dos sitemas, encerramento operativo, autopoiesis), para
poder entender como é possível que uma observação possa se produzir a si mesma, ao
produzir a observação. Nesse fundamento circular, centra-se a atual discussão sobre o
conceito de observação, que é praticamente impossível de solucionar, quando se recorre
aos conceitos clássicos da filosofia – o que já constitui um indicador da relevância do
tema e da independência das perspectivas com a qual ele deve ser abordado. Embora a
filosofia clássica já tenha se ocupado do tema, sua interpretação atual e também os
estímulos com os quais ele é hoje examinado surgiram de contextos teóricos muito
diversos de interpretação dos textos filosóficos.

Quando falamos em observar, defrontamo-nos com uma primeira diferenciação:


observar/observador. Observar é a operação, enquanto observador é um sistema que
utiliza as operações de observação de maneira recursiva, como seqüências para obter
uma diferença em relação ao meio.

Para descrever o observador é necessário considerar o leque de conceitos com os


quais se esteve trabalhando; ou seja, deve-se precisar com exatidão que observar é uma
operação que só se realiza como um acontecimento instantâneo, fugaz, e que carece de
tempo para poder conectar operações de observação, com o objetivo de obter a
diferença em relação ao meio.

Ao falar em observar e observador, referimo-nos a operações, em dois sentidos:


para que o observador possa observar as operações, ele próprio tem de ser uma
operação. O observador está, assim, dentro do mundo que ele busca observar ou
descrever. Então, temos: a) que o observador observa operações; b) que ele próprio é
uma operação, pois, do contrário, não poderia observar: ele mesmo se constrói no
momento em que constrói as conexões da operação.

O que é, então, específico na operação da observação? Na terminologia de


Spencer Brown, observar constitui a utilização da diferença para designar um lado, e
não o outro daquilo que se observa. O ponto de partida (para enfatizá-lo) reside em um
conceito extremamente formal do ato de observar, definido como operação que utiliza a
diferenciação e a indicação. Tal operação não é possível como resultado isolado, mas
demanda a repetição reiterada de operações que levam à obtenção de êxitos específicos,
já impossíveis de abandonar. Em outras palavras: a operação de observação só se torna
possível mediante a recursividade de um cálculo, que leva a valores próprios aos quais
já não é possível renunciar.

Todas as diferenciações que permitem a observação do mundo encontram um


último limite de abstração numa primeira diferença, que consiste na distinção entre
observação e operação. O que é inquestionável, portanto, é a operação da observação.
Este ponto de partida fundamental reside na realização do observar em geral, que já não
se pode colocar em julgamento, pois, ao fazê-lo por meio de uma observação,
estabelece-se novamente a possibilidade da operação do observar.

Portanto, a unidade do ato de observar só se realiza no sistema, por meio do


paradoxo de que para manifestar a unidade, o sistema deve estabelecer uma diferença.
Isso nos mostra que a diferença entre observar algo; e a observação propriamente dita
do observar está reunida na própria operação do sistema. Para a observação, contudo, tal
unidade sempre fica pressuposta como um ponto cego da realização, que nunca pode ser
alcançado em sua totalidade.

Primeiramente, a própria diferenciação é a demarcação de um limite, com a


conseqüência de que em uma forma surgem dois lados, sem contar que já não se pode
passar de um lado ao outro, sem cruzar o limite. A forma de diferenciação é, portanto, a
unidade de uma dualidade (condicionada em seu interior): enquanto uma observação
entra em operação, pode imediatamente surgir a pergunta de por que se escolheu
exatamente essa diferenciação, e não outra que pudesse estar condicionada de outra
maneira.

O conceito observar não implica, portanto, nenhum acesso a uma realidade


situada no exterior. Em seu lugar estão as próprias distinções. A realização concreta da
operação do distinguir produz uma forma; isto é, o que acontece, em comparação ao que
não acontece. A operação utiliza esta diferença consigo mesma para observar algo que
não é a própria operação. Ao prosseguir recursivamente a operação, desenvolve-se um
limite do sistema, que contém o que nele se observa. Surge, assim, o que podemos
denominar de observador. Este resultado autopoiético continua dependendo das
diferenciações que o observador utiliza, mas independe de qual lado da diferenciação
designe em cada operação se, por exemplo, a verdade ou a falsidade.

Na utilização das diferenças, o ponto cego, a invisibilidade, por assim dizer,


sempre fica à revelia. Ninguém pode se observar a si mesmo, como aquele que opera a
diferença, pois desse modo teria que tornar-se invisível para si mesmo, caso pretendesse
efetuar a observação. Ou, em outras palavras: pode-se estabelecer a diferença entre o
observador e o observado, mas não se pode considerar tal diferença.
O ponto, talvez, mais problemático da concepção do observador reside na
relação sujeito/objeto. A pergunta que surge imediatamente quanto à observação é quem
é o observador. Também na diferenciação sitema/meio, temos o mesmo problema, pois
podemos perguntar quem é o observador nessa diferença. O esquema sujeito/objeto
sempre surge enquanto forma última, que deve ser resolvida. Mas por que observador
tem de ser necessariamente um sujeito?

A Teoria dos Sistemas não é senão um correlato desse fato fundamental no


mundo: é uma forma de designar que há sistema e há meio. O mundo está cindido,
delimitado, dividido entre sistema e meio. O ponto de partida dessa teoria consiste em
que o mundo, como infinitude inobservável, é cortado por uma linha divisória: de um
lado, está o sistema, e de outro, o meio.

O observador é um sistema, e um sistema pode ter uma capacidade de


localização flexível: o sistema pode observar a si mesmo (auto-observação), e também
outros sistemas (hetero-observação). Para a teoria do sujeito, em contrapartida, é muito
difícil argumentar sob o emprego teórico da diferença. O sujeito sempre deve estar
colocado em um lugar (transcendental) acima dos objetos do mundo. Seria muito difícil
encontrar no conjunto da tradição de pensamento a resposta para a pergunta sobre onde
está colocado o sujeito, se no sistema, ou no meio.

O modo mais simples de abordar o conteúdo programático do conceito de


observação de segunda ordem é pensar que se trata de uma observação que se realiza
sobre um observador. A exigência do conceito consiste em delimitar que não se observa
a pessoa enquanto tal, mas somente a forma pela qual ela observa. Observação de
segunda ordem significa focalizar, para observá-las, as distinções empregadas por um
observador.

Essa duplicação busca enfatizar que na observação de segunda ordem é


necessário seriamente efetuar processos concretos de distinção, com o objetivo de não
perder o posicionamento. A observação de segunda ordem não constitui o emprego de
uma lógica formal abstrata, mas tentativa de observar aquilo que o observador não pode
ver, devido à localização. A observação de segunda ordem deve fixar exatamente o
ponto a partir do qual se observa como o outro observa o mundo. Ou, dito mais
precisamente: qual esquema de diferença é utilizado por aquele a quem se observa.
Imediatamente, surgem, então, diferentes planos de observação: o observador de
segunda ordem distingue a observação (observada) de outras observações. E isto de
maneira muito distinta da do observador de primeira ordem, que tenha aplicado um
esquema de observação, por exemplo, moral/amoral, próximo/distante,
pessoal/impessoal.

O mundo é, então, o meio que permite a aplicação de esquemas de distinção. O


ponto fundamental da observação de segunda ordem consiste, portanto, em ela ser uma
observação de primeira ordem especializada no ganho de complexidade. Este aumento
de complexidade se efetua na medida em que se renuncia à confirmação final de validez
e das garantias ontológicas, e na medida em que já não se pode apelar para as formas
essenciais dos conteúdos do mundo.

A segunda dimensão que surge da observação de segunda ordem consiste em ser


inerente ao ganho de poder observar o que o observador não pode observar (o ponto
cego do observador). Não seria nada descabido afirmar que uma das características
específicas da modernidade (ainda que isto derive da Idade Média) é o interesse em ver
o que os outros não podem ver. Isto se evidencia no desenvolvimento e estabelecimento
de formas da observação que se empenham em observar o que os outros não podem
observar, e que, na arte, teve uma função de vanguarda.

VII – COMPLEXIDADE

Com o tema da complexidade, fecha-se propriamente o círculo de assuntos que


corresponderiam a uma introdução geral à Teoria dos Sistemas.

Inicialmente, o ponto central das deliberações sobre o tema da complexidade


residia na diferença (gradiente) de complexidade que se estabelecia entre sistema e
meio. Como ponto de partida, o meio foi entendido como sendo dotado de
complexidade bem maior do que o sistema, devendo ser assim estabelecida uma
diferença de complexidade entre eles.

O sistema não tem capacidade de apresentar uma variedade suficiente (requisite


variety: Ashby) para responder, ponto por ponto, a imensa possibilidade de estímulos
provenientes do meio. Assim, o sistema requer o desenvolvimento de uma disposição
especial para a complexidade, no que se refere à relação do sistema com o meio, mas
também consigo mesmo, principalmente quando se tratava de compreender as instâncias
de racionalidade, as agências de planejamento localizadas dentro do próprio sistema.

A idéia da teoria da gradação por níveis significou, portanto, o rompimento com


a hipótese da simultaneidade das interdependências – idéia essa que, atualmente, foi
reforçada com o contexto da Teoria dos Sistemas acoplados de modo amplo (loose
coupling), mas que não traz algo novo para a teoria da complexidade: os sistemas
acoplados com certa amplitude são mais estáveis do que aqueles que apresentam um
acoplamento estrito (tight coupling). O acoplamento estrito é um estado do sistema
demasiado improvável; não é encontrado na natureza, nem nos organismos, e tampouco
nas organizações formais. Uma organização não precisa mudar seus programas e nem a
regulação dos salários, somente porque alguns de seus membros a abandonaram. Um
sistema está mais exposto ao risco e é mais propenso à ameaça, quanto mais está
integrado mediante o acoplamento estrito.

A teoria da complexidade da primeira etapa da Teoria dos Sistemas se


concentrou, assim, na questão de como um sistema pode reagir à elevada complexidade
do meio, mas nunca definiu precisamente o que entendia por complexidade. Na história
dessa literatura especializada, a atenção está focada nos efeitos produzidos na relação do
sistema com o meio; o desenvolvimento do conceito de complexidade, em
contrapartida, encontra-se unicamente na literatura formal, sem nenhum tipo de relação
com os esforços conceituais anteriormente expostos.

A afirmação mais abstrata que se pode fazer sobre um sistema, e que é válida
para qualquer tipo de sistema, é a de que entre sistema e meio há uma diferença, que
pode ser descrita como diferença de complexidade: o meio de um sistema é sempre mais
complexo do que o próprio sistema.

Partindo-se dessa representação elementar de um gradiente de complexidade


entre sistema e meio, tem-se que o sistema opera de maneira seletiva, tanto no plano das
estruturas, como no dos processos: sempre há outras possibilidades que podem ser
selecionadas, quando se tenta atingir uma ordem. Precisamente porque o sistema
seleciona uma ordem, ele se torna complexo, já que se obriga a fazer uma seleção da
relação entre seus elementos.

Do ponto de vista formal, o conceito de complexidade se define, então, mediante


os termos elemento e relação. A questão da complexidade fica, assim, caracterizada
como aumento quantitativo dos elementos: com o aumento do número de elementos que
devem permanecer unidos no sistema, cresce em proporção geométrica o número das
possíveis relações, determinando, assim, que o sistema se veja obrigado a selecionar a
forma como deve relacionar tais elementos. Por complexo se designa, então, aquela
soma de elementos, que em razão de uma limitação imanente de capacidade de conexão
do sistema, já não possibilita que cada elemento permaneça sempre vinculado. Como as
relações possíveis entre os elementos aumentam quando o sistema cresce, apresentam-
se limites drásticos na capacidade de relação dos elementos, principalmente quando se
consideram os diversos tipos de sistema: células, cérebros, comunicação, ou quando se
parte, por exemplo, dos possíveis contatos que os indivíduos possam estabelecer, em
uma época determinada.

A discussão sobre a complexidade leva diretamente à questão da representação


de como é possível a ordem, o cálculo, a racionalidade, sob condições extremas de
contingência (que são reais) introduzidas precisamente pela complexidade.

Mais uma vez, esses traços gerais voltam a confirmar que o conceito de
racionalidade ficou reduzido a um campo específico e que, na situação da sociedade
moderna, a racionalidade deve ser desenvolvida pelos sistemas de funções. Como
conseqüência, o racional se cinde em muitos tipos de racionalidades, dependendo da
referência ao sistema: para a economia, racional é a otimização do cálculo das relações
de utilidade sobre a base de bens escassos. Porém, outra racionalidade consiste na
aplicação de leis científicas, já que, pelo menos até o início deste século (XX), a ciência
era considerada o racional por excelência – embora, atualmente, ninguém assegure que
a ciência é racional.

A atual teoria da ação entende que cada ator se desenvolve simultaneamente, em


um campo de valor calculável e outro incalculável, e que, consequentemente, cada qual
possa reagir à surpresa. Na terminologia de Spencer Brown, tratar-se-ia de um espaço
marcado por uma racionalidade capaz de calcular o provável e uma racionalidade que
não pode calculá-lo.

Como a racionalidade não pode considerar a totalidade dos fatores que não
conhece, consequentemente, o risco nunca pode ser expresso sob a forma de custos. Não
é possível sequer imaginar uma tecnologia sem riscos ecológicos, pois uma parte da
zona de racionalidade fica de fora da forma da distinção com a qual se trabalha: aqui se
manifesta expressa e claramente a ruptura do contínuo de racionalidade.
Diante dessas reflexões, a pergunta que aflora é se há possibilidade de seguir
adiante. Com o instrumental da teoria dos sistemas se poderia buscar uma racionalidade
sob o mote de racionalidade sistêmica, com o objetivo de voltar a conectar com a
questão da complexidade.

A sugestão parte do pressuposto de que já tenha sido efetuada uma cisão do


contínuo da racionalidade. No contexto da Teoria dos Sistemas, racionalidade não
significa racionalidade ontológica do mundo, mas, exclusivamente, racionalidade do
sistema.

VIII – TEMPO

A hipótese do observador, mais do que qualquer outro aspecto da Teoria dos


Sistemas, é aquela que vem transformar radicalmente o entendimento sobre a noção de
temporalidade.

Três eixos de discussão podem servir de marco de referência para orientar a


compreensão da noção de tempo: 1) a tradição ontológica do Ocidente; 2) a discussão
semântica sobre a formação social do tempo; 3) as teorias que estabelecem a
dependência entre consciência do tempo e estruturas da linguagem.

Na dimensão do mundo, percebe-se que algo flui, mas não o todo. Às categorias
do fluir, do movimento, do processo, é necessário contrapor uma capacidade ontológica
de um tempo na qualidade de ponto fixo imutável, que dá fundamento ao que se move.
O movimento é considerado, portanto, como parte de um esquema de diferenciação, que
logo pode ser formulado como móvel/imóvel, variável/invariável, tempus/aeternitas.
Quando se fala sobre o tempo, pensa-se sempre em algo estável (duradouro,
perdurável), embora seja somente mediante a representação da margem de um rio, já
que sem essa parte fixa não se poderia observar o movimento. O fundamento é aquilo
em relação ao qual o tempo corre, desliza.

O que sucederia à concepção ontológica ou semântica do tempo se ela fosse


substituída por um nível imutável de abstração, situando-se exatamente aí o observador?
A tese então fundamental da Teoria dos Sistemas sobre o tempo diz: o tempo é um mero
constructo do observador.

O tempo, situado na perspectiva do observador, é uma operação que se realiza de


modo concreto. Não é uma dimensão preexistente, colocada ali de modo substancial –
como o pensa a ontologia -, mas emerge somente no momento em que se efetua uma
observação. Portanto, o tempo: a) é uma operação que se realiza de maneira concreta; e
b) por ser uma observação, consiste na utilização de uma distinção.

Assim, o ponto de partida da reflexão é o de que o tempo pode se situar em


qualquer operação que se realize em algum instante. O problema surge no momento em
que o observador se empenha em descrever esse instante preciso, já que para isto é
preciso estabelecer uma primeira indicação por parte do observador. Assim, temos que
em qualquer descrição o tempo já está pressuposto, embora seja somente sob a forma
paradoxal da simultaneidade/não simultaneidade: como operações, todas as observações
de um observador são sempre (sempre!) simultâneas; em contrapartida, como
distinções, elas podem criar a ilusão da não simultaneidade.

Dessa diferença entre operação e observação depende que se entenda a


necessidade de que todos os conceitos que se referem ao tempo já estejam penetrados
por diferenciações, ainda que seja apenas pela distinção elementar entre um antes e um
depois. Portanto, todas as semânticas temporais derivam de um paradoxo temporal, e só
se distinguem pela maneira como se desparadoxizam.

E isso não é senão o corolário de se ter compreendido a observação mediante a


teoria da forma. Toda observação – que, como já sabemos, é alcançada por meio das
formas – é obtida traçando-se uma marca que separa duas partes, que ficam separadas
simultaneamente por um limite. E, com efeito, para transpor o limite que constitui a
forma, deve-se sempre partir, respectivamente, da parte que se indica, necessitando-se
de tempo para efetuar uma operação ulterior. As duas partes estão colocadas,
simultaneamente, numa relação de um antes e um depois. Como distinção, as partes são
simultaneamente atuais; já como referência da descrição apenas, elas estão postas em
uma sucessão. Mas, distinguir e indicar são uma só operação. Cada marcação que
estabelece a diferença de u limite resulta em uma forma que contém dois lados, fixando-
os de maneira simultânea. Assim, abre-se a possibilidade de cruzar o limite, e também
de retardar o tempo do ponto de partida para futuras operações que cruzem de um lado
ao outro da forma.

Ao se afirmar que toda operação se realiza sobre a base da simultaneidade, não


se falou grande coisa sobre o tempo, mas apenas se estabeleceu um princípio: a
simultaneidade, e que sobre ele não seja possível aplicar nenhum tipo de distinção.

O tempo emerge somente no momento em que se coloca em jogo uma distinção.


Portanto, as distinções (o tempo) só podem ser efetuadas por alguém, por um
observador.

Considerando-se atentamente a simultaneidade operativa dos sistemas que


observam, já se pode imaginar o êxito evolutivo tão radical do significado de ser
possível experimentar o mundo de forma “dessimultaneizada”. Quando se empregam os
esquemas temporais, por exemplo, de passado e futuro, renuncia-se ao pressuposto de
que tudo o que é, é simultâneo, e abre-se a possibilidade de imaginar outras
possibilidades, em vista do temporalmente inatual; consequentemente, que o mundo se
perceba sob a dupla forma do simultâneo (o atual, o presente) e o inatual, isto é, passado
e futuro. E é exatamente esse paradoxo do atual/inatual que se desenvolve mediante a
diferença entre passado e futuro, mas no qual o atual permanece como ponto cego da
observação.

Assim, tanto passado como futuro surgem simultaneamente. Não haveria como
falar em um passado, se não houvesse futuro. A teoria da distinção da forma exige que
se designe qual lado da distinção deve ser empregado: se o passado, ou o futuro. Na
medida em que já não se pode fazer esta distinção, o tempo desaparece.
A diferença antes/depois é uma distinção elementar, que pode ser abstraída mesmo no
caso de que prevaleça um modelo de tempo visualizado pelo movimento. Nesse sentido,
a distinção elementar antes/depois permite ordenar as situações sob esquemas causais e
de processos; consequentemente, que o tempo, no sentido mais elementar, seja uma
conquista evolutiva, que possibilita que os acontecimentos do mundo não permaneçam
localizados na pura simultaneidade, mas fiquem “assimetrizados” (dessimultaneizados).
A diferenciação atual/não atual, ou presente/não presente, é indispensável para o
surgimento de uma observação esquematizada como tempo. Todos os conceitos
temporais necessitam de diferenciações, ainda que seja a diferenciação primária entre
antes e depois. Unicamente por este fato, o tempo já está pressuposto, embora seja
somente sob a forma paradoxal da simultaneidade/não simultaneidade. Daí que todas as
semânticas temporais partam do paradoxo do tempo e só se distingam pela forma como
resolvem esse paradoxo elementar, seja mediante a assimetria irreversível antes/depois,
seja por meio de uma metáfora espacial como a de linha/circulo, ou movimento; ou
através das diferenciações temporais do tipo duração/efemeridade,
resultado/virtualidade, ou, finalmente, como passado/futuro.

A sociedade moderna expressa o tempo sob a forma de passado/futuro, porque


as estabilidades diminuíram a tal ponto, que só permanece um futuro concebido Omo
instável. O invariável ficou tão reduzido, que já nem sequer se considera o ser humano
como fator de estabilidade para o futuro: ele se suicida, ou nós o julgamos capaz de
exterminar o gênero humano, ou, talvez, ele mesmo seja superado pela tecnologia
genética que formulou. Surge, então, a pergunta: de que quantidade de tempo
genuinamente humano podemos ainda dispor? Na sociedade moderna, tudo é possível: o
cenário mais dramático, ou também aquele em que simplesmente nada aconteça. O fato,
no entanto, é que se reduziu o espectro para se guiar por possibilidades que não variam.

Graças a essa representação do tempo, passa a vigorar uma idéia do temporal


marcada pela função de tomar decisões. O tempo obriga a saltar de um evento
fundamental a outro, dentro de um espectro de possibilidades: agora se pode fazer isto;
e, depois, aquilo outro.

As decisões invertem o processo do modelo do tempo. Como resultado de uma


cadeia de eventos passados, o presente é o que é. Tem de ser aceito, já que não podemos
retroceder o passado. O futuro, por outro lado, é aberto, incerto e imprevisível, já que
não é simplesmente um prolongamento do passado. As decisões, no entanto, revertem
esse modelo: buscam encontrar alternativas no presente – como se o passado não tivesse
produzido apenas estados, mas também contingências e, portanto, possibilidades de
escolha. Além disso, as decisões buscam dar estrutura ao futuro. Elas não podem
determinar o estado do futuro do sistema do mundo, mas podem projetar uma diferença
dentro de horizontes abertos. A terminologia usual para designar esse fato é a de fim,
meta, objetivo; mas poderia ser mais revelador enfocar a diferença entre estados pelos
quais mostramos preferências, e aquele que não é objeto de nenhuma intervenção. As
metas precisam de motivos, avaliações, justificativas, que busquem o consenso. As
diferenças, em contrapartida, provocam a observação de segunda ordem e a curiosidade
pelos marcos de referência e distinções.

Assim, as decisões determinam sua própria identidade como acontecimentos de


um tipo especial, enquanto relações recursivas a um passado e a um futuro que elas
mesmas designam. O passado é reconstruído por sua própria memória de função, que
discrimina entre esquecer e recordar. A função mais importante da memória é reprimir
os eventos passados, isto é, esquecer o que não é relevante e, desse modo, liberar a
capacidade do sistema para realizar novas operações; no entanto, essa repressão traz em
si mesma a finalidade de condensar e generalizar a identidade que pode ser útil para
conectar o passado com o futuro.

Sabe-se, assim, como as decisões operam. Elas combinam memória funcional


com um oscilador funcional, de maneira altamente seletiva. Integram o passado e o
futuro, sem pressupor que tal integração esteja dada na natureza, ou na criação. Não
realizam um mundo perfeitamente ordenado, mas sim uma seleção contingente, sendo
que, apenas de maneira secundária, elas podem ser descritas em termos de bem ou mal,
de bem feitas ou mal feitas, ou de segurança e risco.

Em uma teoria do tempo na qual o observador intervém, deve-se distinguir com


precisão se a observação do tempo é efetuada por uma pessoa, uma organização, ou a
sociedade. É preciso manter separadas cada uma destas perspectivas e, ao mesmo
tempo, entender como existe uma determinação mútua nesses diferentes níveis. A noção
temporal das organizações está baseada em uma rigidez muito estrita do temo, dando a
impressão de que isto tem um impacto muito decisivo no desenvolvimento da semântica
com a qual a sociedade reflete sobre o tempo.

O presente da sociedade está abertamente colocado, portanto, em uma dupla


pressão: de um lado, deve tentar garantir uma “telessincronização”, no sentido de
possibilitar conexões que se estendam no tempo, como buscam garanti-lo as
organizações; e, de outro lado, está exposto, inerentemente, ao aparecimento de
surpresas, oportunidades, perturbações, por estar baseado na simultaneidade do tempo
da sociedade. Talvez valesse apena manter como válida a diferença entre
“telessincronização” e surpresa, para tentar desenvolver o paradoxo do tempo. Esta
diferença não é nenhum conceito adequado sobre a temporalidade, mas, talvez, um
conceito que evidencia sua problemática. Nessa distinção, apresenta-se uma diferença
que não pode ser suprimida: a da organização e da sociedade.

O tempo é uma dimensão do sentido: a dimensão temporal do sentido. O fato de


a temporalidade ser uma diferenciação tão avançada, capaz de permear muitos dos
preceitos da vida social, indica que o tempo pertence à realidade do sentido da
sociedade contemporânea, como uma espécie de consciência de base. Além disso, o fato
de o tempo exigir, por princípio, uma capacidade de mudança levou à dissolução de
muitos ideais de perfeição da ordem social, e ao surgimento, em seu lugar, de uma
consciência da contingência.

IX – SENTIDO

A ponte que pode servir de conexão entre a noção de tempo e a de sentido é a


categoria de observador. As reflexões sobre o conceito de sentido devem situar-se no
marco de referência de um observador, pois não é possível imaginar uma observação
que já não traga implícito o sentido. No caso do fenômeno temporal – cabe recordar – o
tempo já está implícito em toda distinção utilizada para articular um estado de
temporalidade.

No uso cotidiano, o sentido acompanha tudo o que fazemos. É provável que se


faça referência ao sentido precisamente por sua carência: a civilização atual, em
especial, padece da perda do sentido. Pode-se, então recorrer à religião, para trazer esse
sentido que falta; embora, do ponto de vista da história das crenças, seja algo estranho
considerar a religião como dotadora de sentido: a religião interpreta o mundo criado de
fato por Deus, assim como o fazem todas as semânticas da salvação, mas nunca a
pergunta consistiu em como se obter a dotação de sentido. O peculiar é que agora se
entende a religião sob a consideração funcional de doadora de sentido.

Na proposta de Hursserl, o que não tem solução concerne a uma esfera de


intersubjetividade que, por sua vez, deve ter sentido, sem estar referida a nenhum
sujeito. E é esta dificuldade que determina uma mudança de rumo nas reflexões: a
categoria de sentido deve ser aplicada a dois tipos de sistema: a) sistemas de consciência
que experimentam sentido; e b) sistemas de comunicação que reproduzem sentido.

A vantagem de tratar radicalmente e separadamente os sistemas de consciência e


os de comunicação traz como conseqüência que o conceito de sentido não fique
vinculado a nenhum tipo de sujeito; o sentido não tem de estar dirigido a um domicílio
expresso, nem estar referido a um sujeito, ou a um portador especial, e tampouco a uma
agência de constituição de sentido. Em outras palavras, deve-se buscar ter acesso ao
mundo do sentido, através de um conceito altamente formal.

Essas reflexões também mostram que a distinção meio/forma pode ser


empregada hierarquicamente, no sentido de que aquilo que num momento atua como
forma em uma distinção, pode atuar como meio em outra, podendo-se, assim, obter
construções de formas superiores. Nesse sentido, as palavras da linguagem (embora
sejam formas cristalizadas no meio da percepção oral ou acústica) podem ser
empregadas como meio, já que permitem essa integração sob formas mais estritamente
acopladas no uso das proposições. No exemplo da linguagem, pode-se ver que ela pode
atuar como forma e como meio: no meio acústico, as palavras são formas; no meio das
palavras, as proposições são formas, e no meio da linguagem, oral e escrita, formas.

A consideração daí resultante é a de que o meio é mais estável do que a


construção da forma: o som articulado de uma palavra pode desaparecer, um objeto
pode mudar de lugar, mas, graças ao meio, nós podemos ver e ouvir outras coisas.

É preciso considerar que no sistema não existe um substrato de sentido que


possa ser acoplado operativamente, mas somente formas. O sistema nada pode fazer
com os elementos que não têm forma, acoplados de modo amplo – e isto é válido, como
já se disse, para os meios da percepção. Não se vê a luz, mas as coisas; e quando se a vê,
é a partir da forma das coisas. Não se ouve o ar, mas os ruídos, e o próprio ar deve
produzir ruídos, para ser ouvido. Focando a atenção na linguagem, não são as palavras,
mas somente as proposições, que formam um sentido que pode ser processado na
comunicação.

Outra maneira de abordar o sentido, dando lugar a uma apresentação mais


acessível, é recorrer ao aspecto fenomenológico. Foi Husserl quem trabalhou
especialmente esse aspecto, sobretudo nos textos que aparecem em 1913, e depois se
repetem na obra Experiência e juízo. Aqui, a idéia é a de que o sujeito, a consciência,
opera sempre de maneira intencional, dirigida a algo determinado. Identificam-se
objetos, seres humanos, símbolos, mas sempre em um horizonte que remete a outras
possibilidades. Dito de maneira mais formal: o fenômeno do sentido aparece sob a
forma de um excedente de referências a outras possibilidades de vivência e de ação.
Algo está no foco, no centro da intenção, enquanto o outro está indicado marginalmente,
como horizonte da atual e consecutiva vivência. Tudo o que se busca dessa maneira,
mantém-se aberto ao mundo em seu conjunto, e garante, consequentemente, a
atualidade do mundo sob a forma de que o mundo é acessível. A própria remissão se
atualiza como ponto de vista da realidade, mas não só inclui o real (o presumivelmente
real), como também o possível (o condicionalmente real) e o negativo (o irreal, o
impossível). A totalidade das remissões que surgem do objeto provedor de sentido
disponibiliza mais possibilidades de fato do que as que podem se realizar no próximo
passo da seleção, devido à sua estrutura de remissão. Esse curso inevitável da seleção
faz parte da consciência do sentido (sistemas psíquicos) e da reprodução da
comunicação (sistemas sociais): a facticidade pura da realização atual da vida não
confere a garantia definitiva de conexão, nem com a consciência, nem com a
comunicação. Sempre há uma remissão para possibilidades de sentido; contudo, o
sentido não é remissão, mas a localização dessa remissão em tudo o que se possa
imaginar concretamente na experiência atual.

Nesse contexto, o elemento teórico baseado na distinção meio/forma oferece a


possibilidade de que se observe nitidamente que o sentido é já uma forma de copresença
que torna possível o ato concreto; e que, portanto, o real e o possível não são esferas
separadas (isso daria margem a voltar à ontologia). O sentido é, antes, o espaço das
potencialidades, a totalidade das remissões, o horizonte da totalidade do sentido que se
faz presente em cada dotação de sentido relacionada à comunicação ou à consciência.

O próximo ponto é a tese de que o meio do sentido tem validade universal e é


inexorável. Isto significa que é preciso empregar o sentido, inclusive quando se realiza a
negação. O sentido remete ao sentido, e nunca a algo mais além ou diferente dele. A
possibilidade da negação, por sua vez, só pode ser utilizada com sentido: também as
negações têm sentido. De uma maneira geral, qualquer tentativa de negação de sentido
pressuporia sentido e teria lugar no mundo.

A negação é, portanto, uma forma de presença do mundo, que tem, por sua vez,
a forma de uma relação com o sentido. Assim, no contexto de uma situação de
argumentação que pretende negar o sentido, as expressões precisam se realizar
inevitavelmente no meio do sentido.

X – SISTEMAS PSÍQUICOS E SOCIAIS

A distinção sistemas psíquicos/sistemas sociais sugere lançar um olhar sobre a


temática de fundo que a explica: a relação entre indivíduo e sociedade. Ainda que
quando enunciada nesses termos não se perceba trata-se de uma referência aos sistemas
de consciência e aos de comunicação.

A teoria oscila entre o conceito de alienação e o de emancipação, procurando


integrá-los mediante a idéia de que a sociedade deveria garantir a realização do
indivíduo. Constata-se, por assim dizer, a grande e, ao mesmo tempo, pequena
vinculação do indivíduo à sociedade: grande, pelo que a sociedade deveria garantir; e
pequena, pelo que, de fato, ela garante.

As soluções encontradas pela sociologia para responder ao problema da relação


entre indivíduo e sociedade situam-se em um campo neutro; por isso, a conceituação
correspondente é incolor, e é, talvez, possível explicar por que os sociólogos estão
atrelados ao conceito da ação, como categoria fundante da sociologia. Está claro: não se
pode falar sobre ação, quando não se leva em conta o ser humano. Com a teoria da ação,
não é possível conceber um campo de reflexão no qual se possa excluir o homem.

No conceito de ação comum, nunca fica claramente especificado quais


conseqüências é preciso atribuir à ação; ou onde se rompe a cadeia de efeitos, de tal
modo que seja possível distinguir entre os efeitos que pertencem, ou não, à ação. Nesta
aula, por exemplo, é ação aquilo que diz o conferencista, ou a ação está também contida
na recepção corporal dos ouvintes? É igualmente ação a acústica que intervém? E o
movimento da boca? Onde deve ter início a cadeia de contabilização da ação, e isto,
principalmente, no sentido da imputação de responsabilidade? O fato é que, por um
lado, há a tendência em incluir muitos efeitos na ação; embora, por outro lado, quando
se trata de respeitar a liberdade de ação dos demais ou do meio, a atribuição à ação deve
ficar circunscrita à intenção imediata do outro. No conceito de ação comumente
utilizado, surge, portanto, essas modalidades de dificuldades que se dão por resolvidas:
até onde se estende, então, a ação no meio?

Nas teorias sobre a ação há a tendência em formular a conceituação em termos


de atribuição: existe ação, quando se pode efetuar um processo de imputação, sobretudo
no caso em que se queira adjudicar responsabilidade, ou se tenha a impressão de que as
intenções sob as quais um ator agiu possam ser conhecidas. Trata-se, portanto, de um
esquema de elucidação, com o qual se supõe a possibilidade de detectar a mudança
efetuada no ator, na medida em que se recorre à interpretação dos motivos ou intenções.

A pergunta sobre a base intencional do agir torna-se relevante, quando se


entende que o desenvolvimento que levou ao surgimento da ação individual é produto
de um desenvolvimento evolutivo e cultural.

A ação, quando vista sob a perspectiva do sentido, é uma síntese de uma escolha.
Só se pode verificar o que é uma ação, com base em uma descrição social. Por isso, o
que ocorre na relação entre os seres humanos parece ação. As ações se constituem
mediante processos de adjudicação realizados por meio de escolhas baseadas na
semântica do interesse, do motivo e da intenção.

É óbvio que esse conceito de ação não contém uma explicação causal suficiente,
pois simplesmente não considera o psíquico. Constatar o que é uma ação demanda, de
fato, uma simplificação, uma redução de complexidade. Isto é ainda mais claro quando
se considera um prejulgamento usual, compartilhado frequentemente pelos sociólogos,
que consiste na destinação da ação a seres humanos individuais concretos. De fato, uma
ação nunca está plenamente determinada pelo passado de um indivíduo. Inúmeras
pesquisas descobriram os limites da possibilidade de uma explicação psicológica da
ação. Na maioria dos casos, a situação domina a escolha realizada pela ação.
Frequentemente, as observações podem prever melhor a ação, quando se baseiam no
conhecimento da situação, mais do que no da pessoa. Por conseqüência, a observação
das ações se destina, na maioria dos casos, não ao estado mental daquele que age, mas à
realização paralela da autopoiesis do sistema social. No entanto, no mundo cotidiano, a
ação é adjudicada ao indivíduo, sem contar o pressuposto bastante arraigado de que a
ação constitui algo concreto.

A perspectiva de desenvolvimento da Teoria dos Sistemas, aqui exposta, permite


vislumbrar uma teoria que torna possível a delimitação clara entre sistemas de
consciência e sistemas de comunicação. Para alcançar esse entendimento é necessário
considerar que:

1) Os conceitos de autorreferência, recursividade, circularidade, etc., que


originalmente foram pensados exclusivamente para o sujeito, podem ser
características específicas dos sistemas sociais. O que existe, portanto, são
diferentes versões da autorreferência, de modo a poder estabelecer similitudes
entre diferentes sistemas;
2) Tanto os sistemas psíquicos, como os sociais, operam dentro do sentido, o que
permite efetuar suas operações respectivas em um meio análogo, embora isso
não signifique que consciência e comunicação reproduzem um mesmo tipo de
operação. A afirmação de que tanto a consciência como a comunicação operam
dentro do sentido não tem senão a intenção de apontar que esses sistemas
operam em um meio de excedentes de possibilidades, pelo qual se obrigam a
realizar processos de escolha, na medida em que focalizam o atual e deixam de
lado outras possibilidades;
3) Finalmente, a tese de que um sistema não é um objeto especial, mas uma
diferença. Desse modo, assinalar que o psicológico e o biológico do indivíduo se
situam no meio do social não exterioriza nenhum tipo de juízo ontológico sobre
a importância dessas dimensões. Trata-se, exclusivamente, de uma posição de
método, para situar precisamente como se coordena aquilo que é designado
como sistema, e aquilo que pertence ao seu meio.

Não existe, portanto, na teoria, um juízo de valor concernente à posição do ser


humano. Inclusive, exigindo-se mais, seria possível chegar á conclusão de que a
localização do ser humano no social propicia um campo de maior liberdade de reflexão
em relação ao homem: a Teoria dos Sistemas, por exemplo, oferece mais possibilidades
de pensar muito mais radicalmente a tendência ao individualismo, do que a teoria crítica
da sociedade.

A Teoria dos Sistemas, com base na operação, deve definir exatamente a


operação e o conceito de tempo que fazem emergir o sistema, de tal modo que um
sistema só possa se reproduzir mediante um tipo de operação, e não por uma mistura de
todos os elementos possíveis: físicos, biológicos, psicológicos.

A Teoria dos Sistemas considera a questão da autoimplicação do conhecimento e


se preocupa em estabelecer uma congruência entre a conceituação analítica e a
formação real dos sistemas. A própria teoria, contemplada sob a perspectiva de um
observador, pode ser descrita como a obsessão em manter separados o âmbito social e o
psíquico; embora também caiba lembrar que há outras teorias que não empregam essa
posição tão insólita.

Assim, impõe-se a pergunta sobre se é possível afirmar isso mediante um juízo


de caráter científico; ou então, ainda constatar que o processo da ciência também está
determinado por preconceitos e visões já cristalizadas do mundo, que, embora úteis para
fins da vida cotidiana, bloqueiam, no plano científico, compreensões importantes, bem
como o acesso a teorias mais ricas em estrutura.

A separação entre sistemas psíquicos e sistemas sociais também pode ser


abordada sob o ângulo da noção de emergência.

Emergência é um termo utilizado em diversas disciplinas científicas e tem um


caráter eminentemente metodológico, no sentido de indicar ordens que devem estar
precisamente delimitadas. Na sociologia, por exemplo, seguindo a tradição de
Durkheim, pensa-se que uma situação social só pode ser explicada por componentes
sociais. A metodologia sociológica delimita o contexto social de tal forma que nele não
deve ser incluído nenhum elemento de tipo psicológico ou físico. Trata-se, portanto, de
compreender a emergência como um processo de delimitação frente à psicologia ou à
biologia.

A reflexão sobre o fenômeno da emergência, no reducionismo, busca encontrar o


elemento definitivo sobre o qual o sistema se baseia: no caso do social, como se diz,
seriam os estados psicológicos dos indivíduos participantes; contudo, se isto fosse
possível, seria preciso também admitir, então, a influência dos estados
neurofisiológicos, celulares e atômicos...

Entretanto, as qualidades emergentes dos sistemas só são encontradas no âmbito


da relacionalidade seletiva. Trata-se aí de qualidades que não podem ser deduzidas do
próprio elemento, e tampouco descritas mediante uma generalização acerca da essência
das qualidades. A qualidade desses elementos só se estabelece em referência ao sistema,
e somente nos sistemas ocorre seu entrelaçamento seletivo.

Sempre que se fala em uma ordem emergente, fica pressuposto (mas não
incluído) o contínuo de energia ou de materialidade sobre o qual uma unidade se baseia.
A emergência da ordem modifica a composição interna da matéria: por exemplo, a
eletrônica interna do átomo se transforma assim que surge a ordem emergente das
macromoléculas; consequentemente, a energia atômica não faz parte do processo
químico que constitui a célula (felizmente). Caso se empregasse um desenho teórico
insólito, como esse da Teoria dos Sistemas, que se orienta pela distinção sistema/meio,
seria, então, preciso considerar os átomos como meio do sistema de organização
autopoiética da célula.

Graças a essa emergência, é possível uma ordem do mundo baseada na


composição química, e a partir da qual surjam, simultaneamente, a vida, a consciência e
a sociedade, como ordens emergentes.
Quando se toma como ponto de partida uma teoria baseada no conceito de
operação, isto leva necessariamente a considerar a separação dos diversos sistemas. Não
se pode falar, então, em acoplamentos de vários sistemas, no sentido de que sistemas de
consciência estejam acoplados aos sistemas de comunicação. E também não é possível
sequer imaginar um modelo de círculos que se entrecruzem parcialmente. Todas as
metáforas especiais são, nesse ponto, particularmente desorientadoras.

A palavra interpenetração, introduzida por Parsons, deu margem a que diversas


partes de alguns sistemas pudessem ser explicadas como intersecções recíprocas: por
exemplo, como a cultura penetra o sistema social; como os sistemas sociais penetram os
indivíduos, mediante a socialização; como os indivíduos, valendo-se de dispositivos de
linguagem, domesticam seus organismos. Parsons utilizou explicitamente o conceito de
interpenetração para marcar o efeito de entrelaçamento desses diferentes sistemas. Algo
da cultura deve ocultar-se no sistema social. Porém, como o centro da reflexão da teoria
de Parsons não reside na operação, mas na ação que só se define a partir de um sistema
já constituído, ele não pode usar o conceito de interpenetração com níveis de
emergência em separado.

Parsons nunca pôde responder altivamente o que realmente produz efeitos no


sistema: de que modo a cultura é realmente parte do sistema social: - perguntas que
nunca puderam ser inseridas nos compartimentos dos diagramas cruzados. O caminho
buscado por Parsons é o de que cada subsistema internaliza as relações e, desta forma, o
sistema total se redefine valendo-se de relações de tipo interpenetrativo.

Não penso que minha proposta do conceito de interpenetração, contida no livro


Sistemas sociales, tenha sido inteiramente compreendida. A formulação se dava no
seguinte contexto: o conceito de interpenetração não trata de uma relação geral entre
sistema e meio, mas sim de uma relação entre sistemas que pertencem reciprocamente
um ao meio do outro. No campo das relações inter-sistêmicas, o conceito de
interpenetração aponta um nível mais estreito, que deve deslindar-se, principalmente,
dos rendimentos de input/output.

Fala-se em penetração, quando um sistema disponibiliza a sua própria


complexidade, para que outro se construa. Nesse sentido, precisamente, os sistemas
sociais pressupõem vida. Assim, existe interpenetração, quando essa situação é
recíproca, ou seja, quando ambos os sistemas mutuamente permitem-se proporcionar
sua própria complexidade pré-constituída. Em caso de penetração, o comportamento do
sistema penetrador está codeterminado pelo sistema receptor. No caso de
interpenetração, o sistema receptor exerce também uma influência retroativa sobre a
formação de estruturas do sistema penetrador, intervindo nele, portanto, de duas formas:
a partir do interior e do exterior.

Mediante a interpenetração, um sistema pode acoplar-se a sistemas altamente


complexos de meio, sem que este deva atingir ou reconstruir a complexidade daquele. A
complexidade desses sistemas do meio permanece opaca para o sistema, Enem sequer é
continuada pelo sistema no próprio modo de operar, pois falta, para tanto, a requisite
variety. Só se reconhece que ele mesmo opere enquanto pressuposto ou estorvo, ou
como normalidade ou irritação. Nos sistemas de comunicação, mesmo as indicações
sumárias – tais como os nomes ou conceitos como homem, pessoa, consciência –
servem para processar a referência à complexidade do meio. Trata-se de utilizar a
complexidade ordenada (estruturada, mas não calculável) às medidas das próprias
possibilidades de operação – ou seja, linguisticamente, nas sociedades. Pode-se falar em
interpenetração, no caso de que tais relações se desenvolvam conforme uma recíproca
coevolução, através da qual nenhum dos sistemas estruturalmente acoplado dessa forma
poderia existir sem elas. A relação entre células nervosas e cérebro constitui um bom
exemplo; e a relação entre sistemas de consciência e comunicação constitui outro caso
que pode ser comparado ao primeiro, mesmo no plano meramente quantitativo.

Independente do acerto ou desacerto dessas propostas terminológicas, o


importante é enfrentar a questão: como explicar que os sistemas operam movidos por
ganhos de complexidade realizados no meio? Por que é necessário, para a comunicação,
que os seres humanos preencham certos requisitos de3 estabilidade, para que a
comunicação possa ser efetuada? Em uma conferência, por exemplo, o expositor deve
pressupor que os ouvintes tenham um fornecimento suficiente de irrigação de sangue no
cérebro, para manter a consciência em estado de atenção. Ou seja, para que a
autopoiesis de uma operação possa ser efetuada, o meio deve garantir condições
extremamente complexas. Aquilo que não for usado operativamente deverá ficar
pressuposto como presente: pressupõem-se os limites do sistema frente ao biológico e
ao psicológico, para que a operação possa se realizar.

Observando-se o conceito de interpenetração sob essa luz, um tanto extremada,


pode-se afirmar que aquelas condições que são necessárias, exatamente por serem
presentes, foram deixadas de fora, como se fossem ausentes.

O mundo (definido seja como for) está sempre pressuposto como condição da
possibilidade de que possamos falar, escrever e nos comunicar eletronicamente. Sem tal
pressuposto, ninguém poderia utilizar sua própria capacidade de seleção, para optar
entre isto ou aquilo. O preposto básico da necessidade do mundo nunca se faz presente,
embora seja a condição de possibilidade da própria operação.

Antes, portanto, de tomar uma decisão pela continuidade ou descontinuidade em


relação ao termo interpenetração, o importante é enfrentar o problema ao qual ela se
refere, sendo, talvez, necessário lançar mão de outro conceito.

XI – Acoplamento estrutural/linguagem

As decisões de caráter teórico resultantes da Teoria dos sistemas levam a uma


separação radical entre sistemas de consciência e sistemas de comunicação. Esse
desmembramento faz com que a teoria efetue uma manobra de compensação: ter de
explicar as causalidades que ocorrem, de um lado ao outro, entre os sistemas psíquicos e
sociais.

Com esse objetivo em mente, não se deve perder de vista a distinção entre
encerramento operativo e abertura causal: o primeiro constitui uma realidade que pode
ser extremamente sensível à causalidade; e, sem isto, não poderia existir o encerramento
enquanto autorreferência do sistema. Por isso, do ponto de vista teórico, é necessário
evitar que se dê lugar a essa espécie de força de atração em conceber a relação
sistema/meio, ou a entre sistemas psíquicos/sistemas/sociais, como amálgama de
elementos.

Da decisão de estabelecer como eixo central da teoria sociológica o conceito de


autopoiesis, resulta o fato de que todo instrumental teórico deva ficar ajustado a esse
preceito. É nisso que consiste exatamente a provocação do conceito de autopoiesis:
obrigar a repensar e a redefinir as noções centrais da sociologia.

Para situar com precisão a relação reciprocamente estabelecida entre os sistemas


psíquicos e os sociais, dispõe-se, ao menos, de dois conceitos: a) interpenetração; e b)
acoplamento estrutural. Ambos têm uma história teórica radicalmente distinta e, no
entanto, de alguma forma, eles se correspondem. Até agora, não se sabe se, com o
tempo, será possível prescindir de algum deles para integrar um corpo de reflexão
unificado sobre o tema; sendo, então, aconselhável que eles sejam abordados
separadamente.

O conceito de interpenetração tem a desvantagem de levar a entender as relações


entre sistemas como um a espécie de intersecção, amálgama, fusão causal. Reconstruir o
conceito de interpenetração significa apenas o fato de que a operação de um sistema
deve pressupor que o meio garanta condições de possibilidade muito complexas, que
não podem fazer parte, de maneira operativa, da reprodução do encerramento de
operação do sistema. Ou, dito mais resumidamente: as condições de possibilidade
situadas no meio não podem ser incluídas na própria operação do sistema.

Consciência e comunicação se pressupõem e se tornam possíveis, com suas


respectivas complexidades, sem que possam transformar os detalhes específicos da
operação. O conceito de interpenetração se refere precisamente à complexidade dessa
manifestação.

Em contrapartida, a noção de acoplamento estrutural, embora situada na


proximidade do conceito de interpenetração, formula-se sob a perspectiva de um
observador externo, que se pergunta como sistemas autopoiéticos entram em relação:
como é possível que um sistema que se reproduz com suas próprias operações se
coloque em contato com o meio?

A noção de acoplamento estrutural tem o sentido de explicar que o


desenvolvimento de um sistema está adequado aos acoplamentos estruturais; isto é, os
sistemas só podem construir estruturas que são compatíveis ao meio, sem que este possa
determinar a operação sob a qual elas são construídas. Para Maturana, o acoplamento
estrutural se coloca de maneira ortogonal à autopoiesis do sistema.

O conceito pressupõe que todo sistema autopoiético opera como sistema


determinado pela estrutura; ou seja, como um sistema que só pode determinar as
próprias operações mediante as estruturas específicas. O acoplamento estrutural exclui,
portanto, a possibilidade de que dados existentes no meio especifiquem, conforme as
próprias estruturas, o que ocorre no sistema. São inúmeros os exemplos biológicos: na
evolução, os pássaros não poderiam ter se desenvolvido sem a existência do ar. Sem o
ar, teria sido extremamente extravagante desenvolver asas, sem contar que a evolução
não teria permitido desenvolver dispositivos tão complexos e sem nenhuma função,
ainda mais considerando que a autopoiesis química da própria vida não voa. Portanto,
autopoiesis e acoplamento estrutural constituem duas ordens distintas de realidade.

Uma vez aplicado o conceito de acoplamento estrutural aos sistemas que


processam sentido (consciência, comunicação), torna-se necessário enfatizar a
seletividade efetuada como resultado do acoplamento. Ou, dito de maneira formal, com
o auxílio dos conceitos introduzidos por Spencer-Brown: o acoplamento estrutural é
uma forma que inclui, e, ao mesmo tempo, elimina. No caso do acoplamento estrutural
entre sistemas psíquicos e sociais, a tese fundamental é a de que os sistemas de
comunicação (sociais) estão acoplados à consciência, e a nada mais. A comunicação é
totalmente independente em relação ao que acontece no mundo: como os átomos
evoluem até converterem-se em moléculas; ou como o vento e as tormentas açoitam o
mar; ou como é a forma visual ou ótica das palavras – tudo isso não desempenha
nenhum papel relevante para a comunicação, mas somente aquilo que a consciência for
capaz de intermediar.

Para compreender a conexão que, no entanto, subsiste entre consciência e


comunicação, emprega-se especificamente o conceito de acoplamento estrutural. Este
funciona sempre e está imperceptivelmente presente, mesmo quando não se pensa nele,
ou não se fala dele, do mesmo modo como em uma caminhada pressupõe-se
necessariamente a força de atração da terra, sem que em cada passo se tenha de incluir a
força da gravidade, de maneira causal.

Ao se comunicar, o acoplamento estrutural estabelece imediatamente contato


com a consciência, sem que os acontecimentos internos da mesma (pensamentos) atuem
como participantes da cadeia de comunicação – o que, por sua vez, traz como
conseqüência o fato de que muitos outros acontecimentos ou mudanças no mundo, de
tipo psíquico, químico, biológico, não possam produzir efeitos na comunicação.

Como já se disse, o acoplamento estrutural se situa de maneira ortogonal à


operação do sistema: ele seleciona o que pode acarretar efeitos no sistema e filtra aquilo
que não convém que nele produza efeitos.

Tais decisões teóricas levam à afirmação de que o ganho fundamental da


consciência reside em sua capacidade de percepção, e não na de pensamento. O pensar é
uma operação que pode facilmente ser desviada, e que só é possível fundamentar
quando, mediante processos teóricos muito complexos, pode-se afirmar a existência da
consciência e de sua autopoiesis; no entanto, o fenômeno da percepção constitui um
enorme dispositivo de capacidade de processamento simultâneo, que, por sua vez,
depende do cérebro, do organismo, etc. Uma vez introduzida a distinção radical entre
sistemas psíquicos e sistemas sociais, cabe então transformar o conceito clássico de
consciência. Nessa mudança, não se trata de discutir o fato de que a consciência possa
pensar, ou tenha capacidade de fantasias e imaginação, podendo simular de alguma
forma a percepção. O que é necessário entender é que tudo isso se reduz a efeitos
colaterais que, aqui sim, não podem ser entendidos sem o acoplamento estrutural com a
comunicação.

A Teoria dos Sistemas fundamentada nesses conceitos oferece uma estrutura de


pensamento baseada em uma seqüência de acoplamentos estruturais, cuja característica
excepcional é o fato de estarem colocados em seqüência, de modo ortogonal; não sendo
isso senão a expressão de um paradoxo: total dependência dos acoplamentos estruturais
em completa autonomia de operação.

As referidas formulações não são senão derivações do paradoxo inicial do qual a


Teoria dos Sistemas parte: a diferença entre sistema e meio. Deve-se conceder uma
atenção especial à arquitetura conceitual dessa teoria, já que é unicamente através desse
rigor peculiar da construção metódica que se realiza uma disciplina mental. É certo que
com ela se perde desembaraço, embora se ganhe acuidade e precisão na diferenciação.

A consciência provê irritação à comunicação. Os acoplamentos estruturais não


produzem operações, mas somente irritações (surpresas, decepções, perturbações) no
sistema. Devido ao contexto de operação do sistema, tais irritações podem servir para
que o próprio sistema reproduza as operações seguintes. Um sistema registra e apreende
o meio sob a forma de irritação. Assim, em outras palavras, a irritação é uma forma que
só se produz no interior do sistema, mas não se realiza no meio. Somente quando o
sistema processa as suas próprias irritações é que ele pode procurar, dentro do meio,
razões sob a forma de causas.

Cabe enfatizar que o meio só pode produzir efeitos destrutivos no sistema se


conseguir irromper na operação da autopoiesis. Assim, a autopoiesis da operação está
construída de maneira altamente seletiva e, por isso, resguarda-se precisamente de que o
meio a destrua, chegando a interromper o processo da evolução.

O ponto fundamental consiste em captar que mediante essa operação de seleção,


a autopoiesis realiza uma forma de dois lados – incluir e eliminar -, introduzindo, assim,
uma dicotomia no sistema: por um lado, o sistema se desobriga ao desenvolver uma
indiferença muito alta; e, por outro lado, a concentração da operação faz com que o
sistema aumente sua sensibilidade.

A comunicação só está acoplada estruturalmente à consciência. Da sensibilidade


da percepção da consciência depende muito a possibilidade de irritação da
comunicação. A natureza não pode influenciar diretamente a comunicação. E some3nte
quando os sistemas psíquicos percebem que os bosques estão se extinguindo é que se
pode exercer pressão sobre a comunicação: pressão para que se tomem decisões no
sistema político ou social.

Com essas deliberações formais sobre o acoplamento entre sistemas psíquicos e


sistemas sociais, ainda não se definiu como se realiza o acoplamento estrutural. O
conceito tem sido empregado de maneira suficientemente formal, também para explicar
como estão acoplados estruturalmente consciência e cérebro, sistema neurofisiológico e
organismo.

A linguagem tem a virtude de poder ser empregada como consciência e como


comunicação e de manter separadas as operações respectivas. Do ponto de vista da
evolução, a linguagem é um tipo de ruído extremamente improvável, que, precisamente
por isso, é muito considerado que se lhe dê atenção.

Existe comunicação sem linguagem: aquela que se realiza mediante gestos, ou a


que se pode deduzir da simples disposição do movimento do corpo, ainda que não se a
chame de comunicação. Mais além dos gestos padronizados, como o assentir ou o negar
com a cabeça, existe um espectro muito amplo de sinais de percepção: franzir o cenho,
esfregar os olhos, encolher os ombros, o emprego de gestos muito sutis em sinal de que
alguém deve abandonar o lugar ou mudar de assunto.

Esses gestos, que são comunicação, não permitem, contudo, que se fixe o
sentido, assim como a linguagem o conseguiria. A comunicação obtida mediante sinais
ou gestos é, enquanto tal, indistinta e equívoca, e quem efetua o ato de assim comunicar
pode negar ter querido realizar um ato que comunicasse algo. Enquanto os gestos e
sinais não estiverem fixados na linguagem, não se disporá de nenhum veículo para
transmitir univocamente o sentido. A linguagem possibilita, assim, a sujeição do sentido
e a redundância da repetição na comunicação. Cabe, portanto, perguntar, caso
absolutamente não existisse a linguagem, se seria possível a comunicação, isto é,
observar sistematicamente uma diferença entre o ato de partilhar a comunicação e a
informação. De qualquer modo, é difícil imaginar que a autopoiesis da comunicação
pudesse ser efetuada apenas mediante comportamento de tipo corporal, e não pela
linguagem. Para a estabilidade da recursividade do sentido na comunicação, a
linguagem parece ser condição indispensável.

A comunicação é ganho evolutivo muito resistente. Enquanto forma


autopoiética, é uma forma com um elevado valor de elasticidade. O fato de que
consciência e comunicação estejam permeadas pelo sentido deve sua estabilidade de
reprodução a que elas estejam acopladas estruturalmente, mediante a linguagem, sem
que por isto se tenha de concluir que ambas devam ficar reduzidas à linguagem.

Há uma discussão muito ampla acerca da total dependência da consciência em


relação às palavras. Argumenta-se, inclusive, que a comunicação indireta só é possível
em um contexto de preexistência da linguagem e, em última instância, a ela referida; ou
que as palavras são necessárias para poder garantir a gama de percepção das cores.

Essa discussão certamente acerta em muitos dos casos, mas não se poderia partir
do princípio de que só se pode ver o que se pode formular. De modo geral, seria
possível afirmar que há rendimentos de consciência e de percepção que são capazes de
implicar algum sentido, sem que se necessite das palavras para entendê-las e utiliza-las.

Com tais deliberações, conseguiu-se determinar a função da linguagem: servir de


acoplamento estrutural entre consciência e comunicação. Uma vez determinada a
função, é possível estabelecer as relações e as divergências com as teorias mais usuais
da linguagem.

A compreensão resultante da Teoria dos Sistemas sobre a linguagem se opõe aos


pressupostos fundamentais da lingüística sausureana: a linguagem não dispõe de
nenhuma forma específica para operar, e não deve ser utilizada como o ato mesmo de
pensar ou de partilhar a comunicação. Consequentemente, a linguagem não constitui um
sistema próprio. Ela é e continuará sendo dependente do fato de que os sistemas de
consciência, de um lado, e o sistema de comunicação, de outro, prossigam a sua própria
autopoiesis, mediante operações específicas completamente fechadas. Se isso não
acontecesse, toda linguagem cessaria imediatamente e, portanto, toda possibilidade de
pensar linguisticamente.
Saussure distingue entre langue et parole (fala e palavra falada); isto é, as
palavras faladas se diferenciam da própria fala. Mas, nesta distinção, não se especifica,
do ponto de vista empírico, qual é a operação elementar que fundamenta a fala. Só
haveria sentido em localizar essa operação basal no contexto da comunicação, e então,
tal decisão teórica determinaria distinguir muito enfaticamente entre sistemas psíquicos
e sistemas sociais – distinção esta que não é própria da lingüística. Portanto, temos um
primeiro ponto de deslindamento: a linguagem não é nenhum sistema.

A segunda consideração leva a afirmar que a linguagem não tem um modo


específico de operação, já que tudo que ela efetua é comunicação, ou é um pensamento
falado. O fato de não ser possível considerar a linguagem como operação tem a ver com
a posição privilegiada mantida por este conceito nas solicitações da teoria e na
especificação das referências empíricas às quais faz alusão.

Em terceiro lugar, a linguagem não é em si mesma comunicação, já que o fato de


comunicar requer sempre mais de um falante que possa retomar e entender o que foi
dito.

A reprodução dos sistemas comunicacionais só é possível mediante a


comunicação, e esta – para assegurar a capacidade de conexão da próxima comunicação
– exige processos de atribuição que ficam contabilizados como ações. É preciso
lembrar, porém, que só se pode verificar o que é uma ação com base numa descrição
que possibilita a comunicação. Daí que a comunicação não possa ser compreendida
simplesmente como ação, e nem o processo de comunicação, como cadeia de ações. A
comunicação inclui mais acontecimentos seletivos em sua unidade do que o simples ato
de partilhar uma comunicação.

Enquanto o conceito de comunicação, considerado sob a perspectiva da ação,


foca no ato de partilhar a comunicação, o ato de entender fica necessariamente fora
dessa unidade de ação. As teorias comunicacionais baseadas na ação precisam recorrer a
medidas de emergência, pois pressupõem a racionalidade, para que uma comunicação
seja compreendida. Ou seja, a idealidade normativa contida na própria linguagem deve
levar necessariamente à possibilidade de comunicação.

Quando se observa com acuidade a manobra realizada pelas referidas teorias,


verifica-se que, na realidade, o receptor fica fora da noção de comunicação e também do
próprio ato de fala, e só é introduzido na teoria como um elemento de disciplina: o
sujeito da comunicação deve antecipadamente controlar a si mesmo para que possa ser
compreendido.

Habermas criticou Luhmann por este não considerar os avanços na lingüística,


incorporando-os à Teoria dos Sistemas. E isto, até certo ponto, é verdade, já que a opção
teórica da Teoria dos Sistemas obriga a retraduzir todas as noções relevantes situadas
em outro contexto disciplinar. Não é apenas um capricho, mas algo que necessariamente
resulta da opção teórica tomada. Consequentemente, as vinculações normativas entre os
que atuam devem ser explicadas de alguma forma pela teoria, mas não mediante um
conceito normativo de comunicação.

Em resumo, a teoria deve esclarecer que a linguagem não é nenhum sistema,


pois não possui uma forma específica de operação. A operação da linguagem advém da
comunicação, ou de uma realização de consciência que introduz as formas de sentido na
linguagem. É evidente que, na linguagem, podem-se efetuar processos de atribuição à
ação, no sentido de se saber a quem se deve perguntar quando algo não foi
compreendido, ou quando é necessário adjudicar responsabilidade a alguém, ou ainda
contradizer alguém.

A semiótica, em continuidade à tradição imposta por Saussure, viu-se obrigada a


renunciar à antiga distinção entre verba/res e, em seu lugar, colocou a distinção
significante/significado, que se reproduz no momento mesmo em que se emprega
qualquer signo. Para a semiótica, todas as diferenças são diferenças entre signos; e essas
diferenças produzidas pela linguagem podem ser usadas operativamente.

Observando-se a distinção significante/significado, sob a figura do re-entry de


Spencer-Brown teríamos que a linguagem pode operar desprendida do mundo exterior.
Assim, a semiótica poderia consistir em entender o sistema da linguagem a partir da
indiferença em relação às mudanças efetuadas no meio, e unicamente como uma
produção e reprodução de diferenças. A linguagem, entendida como a produção de
diferenças, é compatível com qualquer tipo de mundo externo, e só reage às mudanças
extrínsecas em termos de seus próprios signos armazenados. A linguagem se controla a
si mesma, no sentido de disponibilizar as palavras que são operantes para o passo
seguinte, bem como as referências que podem ser estabelecidas, e os signos e os
significados que desempenham um papel fundamental para a reprodução da linguagem.

Para a sociologia, ainda não está claro onde esses desenvolvimentos da teoria da
linguagem podem levar. Mas, aconteça o que for, a lingüística não deveria prescindir do
conceito de acoplamento estrutural, nem dos efeitos de inclusão/eliminação e,
principalmente, do fenômeno de aumento do potencial de complexidade que se realiza
mediante a linguagem.

XII – Comunicação

A teoria geral dos sistemas autopoiéticos exige que se indique exatamente a


operação realizada pala autopoiesis do sistema, delimitando, assim, o sistema em
relação ao restante. No caso dos sistemas sociais, isso acontece mediante a
comunicação. Exclui-se, com isso, toda determinação psicológica da unidade dos
elementos dos sistemas sociais. Tais sistemas não constam de sistemas psíquicos e,
muito menos, de seres humanos de carne e osso.

No caso dos sistemas sociais, a Teoria dos Sistemas e a teoria da comunicação


configuram um contexto muito compacto: a primeira traz a especificação de que um
sistema deve ser reproduzido por meio de um tipo de operação (e somente um!); e a
segunda trata precisamente das características desse tipo de operação. A comunicação
tem todas as propriedades necessárias para se constituir no princípio de autopoiesis dos
sistemas sociais: ela é uma operação genuinamente social (e a única, enquanto tal),
porque pressupõe o concurso de um grande número de sistemas de consciência, embora,
precisamente por isso, enquanto unidade, ela não possa ser imputada a nenhuma
consciência isolada.

Quanto se parte da metáfora da transmissão, pensa-se que mediante um processo


comunicacional se transfere informação. O receptor aceita comunicação, informação,
notícias, e se envolve ativa ou passivamente nisso. Este ponto de vista, aceito sem
questionamentos, foi compartilhado pela pesquisa cibernética nos anos 1950, desde que
desenvolveu uma expressiva quantidade de pesquisas empíricas referentes à capacidade
de impacto, e ao volume que se pode transportar mediante tais acontecimentos
comunicacionais.

Geralmente, as objeções feitas a esse conceito usual de comunicação


concentram-se em dois aspectos: a) o primeiro é relativamente superficial e sempre foi
conhecido: dar-se conta de que na comunicação não se trata de desfazer-se de algo –por
exemplo, que, ao se comunicar, o transmissor deixa de possuir algo; assim como em
uma transação econômica, na qual um pagamento pressupõe desfazer-se de uma
quantidade de dinheiro, ou em uma venda, por meio da qual um proprietário se desfaz
de um imóvel.

Contrariamente, a comunicação é uma sucessão de efeitos multiplicadores:


primeiramente, um a tem, e depois, dois, e logo ela pode ser estendida a milhões,
dependendo da rede comunicacional na qual se pense, como por exemplo, a televisão.
Exatamente em resposta a essa objeção de origem, aqueles que ainda empregam a
metáfora da transmissão acentuam o caráter de multiplicação, e não de perda, que se
efetua com ela.

A metáfora da transmissão não é útil, pois implica demasiada ontologia. Ela


sugere que o emissor transmite algo que é recebido pelo receptor; mas este não é o caso,
simplesmente porque o emissor não dá nada, no sentido de perder algo. A metáfora do
possuir, ter, dar e receber, não serve para compreender a comunicação.

A metáfora da transmissão coloca a essência da comunicação no ato da


transmissão, no ato de partilhar a comunicação. Ela dirige a atenção e os requisitos de
habilidade para o emissor. Entretanto, o ato de partilhar a comunicação não é mais do
que uma proposta de seleção, uma sugestão. Somente quando se retoma essa sugestão e
se processa o estímulo é que se gera a comunicação.

A crítica à teoria da transmissão comunicacional não seria completa, sem propor


algo que a substitua. A comunicação é uma realidade emergente, um estado de coisas
sui generis. Obtém-se a comunicação mediante uma síntese de três diferentes seleções:
a) a seleção da informação; b) a seleção do ato de comunicar; e c) a seleção realizada no
ato de entender (ou não entender) a informação e o ato de comunicar.

Nenhum desses componentes, isoladamente, pode constituir a comunicação. Esta


só se realiza quando essas três sínteses se efetuam. Portanto, a comunicação acontece
exclusivamente no momento em que se compreende a diferença entre informação e ato
de comunicar. Isso distingue a comunicação da percepção em si que temos do outro, ou
dos outros.
O ato de entender a comunicação atesta uma distinção entre o valor da
informação e seu conteúdo, separando-o das razões que foram selecionadas para
partilhar a referida informação.

A continuidade do processo de comunicação pode enfatizar qualquer dessas duas


distinções: pode-se falar sobre o conteúdo informativo, ou então indagar as razões que o
outro teve para comunicar exatamente isso, e não outra coisa. Assim, o ato de entender
pode ocupar-se da informação, ou do comportamento expressivo do outro. Mas isso
depende do fato de que se capte que tanto a informação como o ato de comunicar, são
seleções que devem manter-se distinguidas. Enquanto essas distinções não se realizam,
não houve comunicação, mas uma simples percepção.

Manter a distinção entre comunicação e percepção é consideravelmente


importante, embora a comunicação ofereça à percepção muitas possibilidades de
acompanhamento. No entanto, a percepção é o fenômeno físico cuja existência não
necessita de comunicação. O processo comunicacional não pode estabelecer conexão
imediata com a percepção; o que o outro percebeu não pode ser negado, nem
confirmado, tampouco questionado ou rechaçado. A percepção permanece subjugada no
fechamento da consciência, e é totalmente invisível tanto para o sistema de
comunicação como para a consciência dos outros.

Assim como a informação e o ato de comunicar são seleções, também o é o ato


de entender. Entender não é nunca somente a duplicação na consciência daquilo que
alguém comunicou, mas também a ocasião para que a autopoiesis do sistema se realize.
Sem que importe o que cada um entende em sua consciência (que é autopoieticamente
fechada), o sistema de comunicação elabora seu próprio entendimento e sua própria
incompreensão; e, para tanto, o sistema cria seu próprio processo de observação e
autocontrole.

Pode-se comunicar sobre o entendido, o mal-entendido, o não compreendido,


mas tudo isso, certamente, sob a especificação da autopoiesis do sistema de
comunicação, e não conforme o que cada um dos participantes pensa, ou deseja.
Quando se toma como referência, por exemplo, o ato de comunicar, dizendo você não
me entende, tal expressão evidencia uma ambivalência, que é comunicada:
primeiramente, ela deixa entrever que “não se tem a capacidade de entender o que o
outro disse”, e que esse ato expressivo pretende que se reconheça que isso é assim; em
segundo lugar, esse ato de participação aponta que se a comunicação tem de continuar,
ela deve tomar como ponto de partida a informação da incompreensão; e, em terceiro
lugar, é somente devido a essa incompreensão que a comunicação pode prosseguir.
Assim, a comunicação está baseada em um paradoxo, cuja técnica normal de resolução
consiste em inquirir e elucidar o processo de comunicação, servindo-se dela mesma.

Na Teoria dos Sistemas, o que se enfatiza é a verdadeira emergência da


comunicação. Não há propriamente transmissão de alguma coisa; mas sim uma
redundância criada no sentido de que a comunicação inventa sua própria memória, que
pode ser evocada por diferentes pessoas, e de diferentes maneiras.

Portanto, os três componentes sintéticos que produzem a comunicação –


informação, ato de comunicar e ato de entender – não devem ser interpretados enquanto
atos, ou funções, ou horizontes de aspirações de validade. Não existem elementos
concretos de comunicação que tenham uma existência independente, e só demandem
que alguém os reúna. Em vez disso, a comunicação deverá ser entendida como uma
questão de distintas seleções, cuja seletividade se constitui pela própria comunicação.
Fora do marco de referência da comunicação não existe informação, nem ato de
comunicar, e tampouco ato de entender.

A informação não é a exteriorização de uma unidade, mas a seleção de uma


diferença que faz com que o sistema mude de estado e, conseqüentemente, nele se opere
outra diferença. Cada sistema produz a informação, em dois sentidos já expostos nas
aulas anteriores: a) o caráter de surpresa da informação; e b) a seleção das
possibilidades que a informação efetua: o fato de alguém expressar uma proposição já
constitui uma seleção, num horizonte imenso de possibilidades de expressão. A
informação precisa ser efetuada em um contexto de expectativas, para depois obter uma
seleção sobre essa margem de possibilidades. Dizer que a informação é seleção em uma
escala de possibilidades constitui um argumento muito forte para garantir a tese de que a
informação só pode acontecer no sistema de comunicação. Somente aí se cria o contexto
das expectativas, e é onde a informação constitui uma surpresa. A informação como tal
é o que exatamente antecede e sucede a irritação, e ela só é obtida no contexto de um
sistema.

O sistema de comunicação é um sistema absolutamente encerrado em sua


operação, já que cria os elementos mediante os quais ele mesmo se reproduz. Nesse
sentido, a comunicação é um sistema autopoiético, que, ao reproduzir tudo o que serve
de unidade de operação ao sistema, reproduz-se a si mesmo. Evidentemente, isso só
pode ocorrer em relação a um meio e com as restrições por ele impostas. Ou, em outras
palavras, isso significa que o sistema de comunicação determina não só seus elementos
– que são, em última instância, comunicação -, como também suas próprias estruturas.
O que não pode ser comunicado não pode influir no sistema. Somente a comunicação
pode influenciar a comunicação; apenas ela pode controlar e tornar a reforçar a
comunicação.

A tese do encerramento operativo e da autopoiesis leva necessariamente a incluir


esses três aspectos da comunicação – informação, ato de comunicar e ato de entender –
dentro dos preceitos internos de um sistema. Fora da comunicação não há nem
informação nem partilha da comunicação, e tampouco ato de entender a comunicação.
Como já se pôde observar, a informação é um acontecimento que só pode surgir no
sistema, e os mesmos argumentos são válidos para o ato de comunicar: o ato de partilhar
a comunicação já traz uma intenção (a de comunicar); sentindo-se, igualmente, que há
atos de comunicação que não têm nenhum tipo de intenção, e que há ainda outros que se
propõem especificamente uma intencionalidade muito peculiar e voltada a obter
benefícios de racionalidade.

Da mesma forma, o ato de entender não é compreensível fora da comunicação:


só se entende o que se diz. Se a noção do entender comunicacional fosse compreendida
sob a perspectiva da hermenêutica, chegar-se-ia a um contexto de compreensão
radicalmente distinto do da Teoria dos Sistemas. A hermenêutica empreende o ato de
entender, sob o ponto de vista da compreensão de um texto; assim como se pode
entender um texto, também se pode compreender o mundo, e, inclusive segundo a
tradição imposta por Schleiermacher, só é possível atestar o horizonte interno de alguém
que comunicou, quando se medeia não tanto um processo de comunicação, mas um de
entendimento.

O ato de entender não deve ser compreendido como um estado substancialmente


psíquico, mas somente como condição para que uma comunicação possa seguir adiante.
Portanto, entender pressupõe e traz implícita a possibilidade do entender e do não
entender. Se alguém não entende, por qualquer razão, a comunicação não pode
prosseguir, sendo então preciso recorrer a bases muito elementares de troca de gestos,
ou introduzir palavras em outro idioma, para sair da inércia.

A comunicação bifurca a realidade: cria duas versões do mundo, a do sim e a do


não, obrigando, assim, à tomada de uma decisão. Graças a essa bifurcação, a autopoiesis
da comunicação pode garantir sua continuidade; e focalizar a alternativa da aceitação ou
da recusa é precisamente no que consiste essa autopoiesis. A alternativa identifica a
posição da conexão para a comunicação posterior, que pode ser construída pela busca
do dissenso ou do consenso. Nada do que se pode comunicar pode evitar essa
bifurcação inexorável, à exceção do mundo, entendido no sentido fenomenológico como
o último horizonte no qual tudo pode acontecer, embora ele mesmo não possa ser
qualificado de maneira positiva ou negativa, aceito ou recusado, já que ele está sempre
composto, em toda comunicação de sentido, como a condição de possibilidade do
acesso a uma comunicação posterior.

A Teoria dos Sistemas afirma que a síntese pela qual se torna possível a
comunicação é obtida no ato de entender.

Em uma teoria sistêmica da comunicação, a tese capital é a de que a diferença


entre informação e ato de comunicar é fundamental. Do contrário, o que nós
perceberíamos seriam comportamentos de conduta, que poderiam provocar fontes de
contato com outros seres humanos, mas não constituiriam comunicação. No ato de
entender a comunicação, ocorre a conexão entre informação e ato de comunicar,
sobretudo quando se utiliza a linguagem. Quem emprega a linguagem, manifesta
implicitamente a intenção de partilhar uma comunicação. O falar não acontece em todos
os estados normais, mas somente quando se pretende participar algo explicitamente,
mesmo que seja uma mentira; e isso só é possível na unidade do ato de entender. Esta é
a razão que faz com que a comunicação se diferencie dos processos biológicos de
qualquer tipo: a comunicação é uma operação provida da capacidade de auto-
observação. Cada comunicação deve comunicar, simultaneamente a também ser uma
participação comunicacional, e deve ainda enfatizar quem comunicou e o que
comunicou, para que a comunicação conectada possa ser determinada e dar
prosseguimento à autopoiesis. Consequentemente, como operação, a comunicação não
produz somente uma diferença – o que, certamente, faz; mas, para observar que isso
acontece, ela também emprega uma distinção específica: a que existe entre o ato de
comunicar e a informação.

XIII – Dupla contingência/estrutura/conflito


Nos anos 1960, as controvérsias ideológicas ou de matiz estritamente político,
quanto à Teoria dos sistemas, podem ser situadas em um nível mais fértil de debate,
contanto que se considere a ausência de uma precisão conceitual na época. Nessa
discussão, devem-se observar três conceitos fundamentais, a partir de uma perspectiva
diversificada: dupla contingência, estrutura, conflito.

Dupla contingência. Do ponto de vista histórico, esta expressão peculiar


constitui uma reformulação da antiga pergunta de como a ordem social é possível? O
modo de propor a questão faz alusão à técnica kantiana do modo de indagar, no sentido
de não se perguntar o que é, mas sim como é possível. Em Kant são conhecidas as
formulações acerca das condições de possibilidade de conhecimento, juízo estético, e
racionalidade da ordem social. Esta organização tripartite entre conhecimento, estética e
razão prática está contida na pergunta: como a ordem social é possível?

Para responder a esta questão, a tradição lançou mão do conceito de natureza


humana: o homem foi criado para viver em coletividade. Então, derivam daí
conseqüências de regulação ética ou política: aquelas desejadas por Deus, para tornar
possível a vida em comum.

Com o conceito de dupla contingência, Parsons pretende retomar a pergunta


sobre as condições de possibilidade da ordem social, mas a partir de uma perspectiva de
conceituação distinta da hobbesiana, principalmente depois que se discutiu
profusamente que a existência de um contrato social requeria a explicação de uma
ordem prévia, na qual os contratos tivessem validade. Assim, existe uma tradição na
sociologia, que vai de Durckheim a Parsons, de conceber a ordem social como uma
realidade precedente a qualquer tentativa contratual: o não contratual do contrato. A
discussão pressupõe um tipo de argumento semelhante ao de que a família existe antes
do direito familiar; e a religião, anteriormente à regulação dogmática e eclesiástica. Da
mesma forma, pode-se dizer que existe um determinado tipo de ordem social, anterior à
sua regulação. A pergunta muda, portanto, de perspectiva, no sentido de que ao indagar
pelas condições de possibilidade da ordem social, o que se busca, mais do que uma
demonstração de caráter histórico, é encontrar uma resposta suficientemente plausível
ao fato de que a sociedade suporta regulações de maior complexidade.

Nessa fase do desenvolvimento da teoria, por contingência entende-se


dependência de, conforme a expressão em inglês contingent on. Tal entendimento tem
uma tradição teológica, que já não é visível nos resíduos semânticos da palavra: trata-se
do significado da teoria modal para designar aquilo que não é necessário, nem
impossível. Na teologia escolástica, pensava-se que os entes, não tendo razão de ser em
si mesmos, eram dependentes de Deus, que poderia ter criado o mundo de maneira
diversa.

A contingência, entendida dessa forma (dependência), serve de modelo para


explicar a relação entre um ego e um alter, contrapostos com suas respectivas
necessidades e possibilidades: alter depende que se ative ego, e vice-versa. Alter e ego
podem ser aqui pessoas ou grupos: como é possível obter a complementaridade das
expectativas e de auxílio de ego e alter, e não simplesmente o fato de que não
coincidindo ponto por ponto em suas expectativas, eles não possam coordenar nenhum
tipo de relação social?
Esse modelo da dupla contingência se tornou extensivo, inclusive, para explicar
o problema do conflito. Recorria-se à exposição de uma imagem na qual um barco de
guerra persegue um mercante, e uma ilha se coloca entre os dois. Se o barco de guerra
quer apanhar o mercante, tem de esperar que este se dirija para o norte – digamos- e,
então, tomar esta mesma direção. Portanto, depende da decisão tomada pela embarcação
comercial o fato de o barco de guerra poder consumar com êxito a ação. Ainda quanto
ao conflito, Parsons entende que o fundamental na questão da dupla contingência é uma
disponibilidade voltada para valores comuns, que devem ser previamente afirmados.

Entretanto, é exatamente a aplicação da teoria da dupla contingência ao


problema do conflito que evidencia a necessidade de utilizar um contexto de reflexão de
uma qualidade muito mais abstrata do que a proposta por Parsosns, ao seguir um estilo
de teoria de viés durkheimiano: encontrar resposta para o problema do conflito,
mediante uma orientação para valores comuns.

Em Parsons, isso se explica com relativa nitidez, já que ele estabelece uma
diferença entre cultura e sistemas sociais. A cultura está situada acima do social, em
uma hierarquia mais elevada; conseqüentemente, os sistemas sociais não são viáveis, se
não orientam para os valores e as normas. A linguagem é entendida, nesse contexto,
como uma codificação normativa, mediante a qual o entendimento é possível. Portanto,
linguagem, cultura, valores e normas colocam-se em uma posição privilegiada muito
estreita, servindo, conseqüentemente, de reguladores da dupla contingência, no sistema
social.

A proposta que se enquadra a uma Teoria dos Sistemas tende a resolver o


problema do círculo da dupla contingência, não mediante a suposição de uma dimensão
social de valores, mas simplesmente pelo fato de que se desenvolva o fator tempo. A
comunicação desencadeia uma seqüência que coloca o outro em situação de aceitação,
ou rejeição. Assim, alter determina seu comportamento numa situação ainda pouco
clara, e sob a forma de demonstração: começa, por exemplo, com um olhar amável, um
gesto, um obséquio, e espera ver como ego aceita a definição proposta pela situação.
Com base nesse início, qualquer passo seguinte constitui uma ação que reduz a
circularidade da dupla contingência, e é determinante para verificar se cabe aceitar, ou
rejeitar, a proposta.

A assimetria existente na base desse modelo é, portanto, temporal, e não de


caráter hierárquico. O modelo de explicação não reside em uma estrutura objetiva de
valores, que só servem para motivar, permanecendo intatos em si mesmos, ao invés
disso, o que aparece é um fator temporal. Desse modo, é pertinente explicar que as
ofertas temporais de comunicação levam o sistema quer ao conflito ou a uma história
comum de solidariedade e de cooperação.

A teoria da dupla contingência deve ser pensada em uma ordem que serve para
outro tipo de explicação; ou seja, para dar conta de como a ordem social é possível:
como se pode romper com a circularidade inerente à dupla contingência? Este tipo de
pergunta, que segue o estilo instaurado por Kant sobre as condições de possibilidade,
não pode ser respondido com comprovações empíricas de tipo histórico; mas surge – e
isto pode ser verificado em uma sociologia do conhecimento – para que em períodos de
transição possa servir de estímulo heurístico, com a finalidade de buscar uma resposta
plausível para a complexidade da ordem social.
Com a noção de dupla contingência, também se rechaçam todas as metáforas
que aludem a um princípio, a um início, no qual nitidamente apareceria o mecanismo
pelo qual se rompe a circularidade pura da dupla contingência. Portanto, essa teoria é
afim à Teoria da Evolução, já que esta também não se encontra em situação de informar
sobre a questão da origem. Embora não seja possível esmiuçar a Teoria da Evolução,
pode-se adiantar que a própria evolução cria suas estruturas, ao consistir em um
mecanismo autobifurcado de variação e seleção. A evolução incentiva a si mesma a
construir uma ordem, e isso não pode ser explicado pelo recurso a uma origem fundante
em relação ao início da vida, e nem ao momento em que surge a linguagem, ou a ordem
social.

A teoria da dupla contingência se distingue, assim, de todas as teorias que


buscam encontrar o ponto culminante do começo. Por mais que se formulassem essas
perguntas acerca do momento de início da ordem social, nunca se encontraria um
princípio que pudesse dirimir qualquer tipo de dúvida. Por que a China não deu, assim
como a Europa, um salto decisivo para a modernidade, no final da era medieval, se
exatamente lá a técnica estava mais avançada e disseminada entre o povo? Assim
formulada, tal questão sempre é respondida aludindo-se a fatores geográficos de
diversificação, ou do âmbito da psicologia social, sem nunca poder se estabelecer um
critério unânime do ponto fundamental inicial. Essas breves indicações sobre a noção de
dupla contingência buscam evidenciar a necessidade de elaborar o conceito em um
maior grau de abstração do que fora abordado por Parsons, de modo a que ele se ajuste e
se torne compatível à Teoria da Evolução e à técnica de perguntas kantianas sobre
condições de possibilidades.

Só o fato de se mencionar a palavra estrutura já evoca imediatamente a


conotação do duradouro, do permanente. Isso diz respeito, sobretudo, a uma tradição
que define os sistemas em termos de elementos e relações. Estas últimas permanecem
no tempo, ao contrário dos elementos. É claro que, dentro dessa tradição, as estruturas
podem mudar; contudo, fala-se preferencialmente em relação, para designar uma
conexão mais ou menos duradoura entre o elemento A e o B. Assim, a relação não alude
a um acontecimento único, fugaz, que ocorre somente uma vez.

Desde que as estruturas correspondam a determinadas expectativas, elas servem


como condição de conhecimento. Nisso consiste, em termos gerais, o paradigma do
estruturalismo: relacionalidade, manutenção, relativa preservação da relação; sendo tudo
isso condição de possibilidade de conhecimento do sistema.

Em uma Teoria dos Sistemas de uma segunda geração, o que é de fato relevante
é a mudança que pode ser operada nessas antigas distinções, quando se lhes aplica uma
teoria estritamente baseada em um conceito operativo. Recordemos: os sistemas se
constituem somente na medida em que podem conectar operações; sobrevivem apenas
sob a condição de que possam atualizar novas operações. Para o sistema, só existe o
presente, no momento da operação real. Exclusivamente mediante a conexão de
operações, torna-se possível que os sistemas sociais reproduzam a comunicação
(sistemas sociais), e os sistemas psíquicos confiram atenção.

Isso significa que as estruturas só são reais na medida em que são utilizadas.
Enquanto realidade, a única coisa que existe é a própria operação; sendo que acima
dessa ordem operacional não existe nenhum mundo das idéias, ou da imutabilidade do
ser. A pergunta crucial, portanto, é como uma operação se conecta com a seguinte. A
resposta reside precisamente em que nisso consiste a função da estrutura: conseguir que
uma operação encontre uma próxima operação que lhe seja compatível; ou, então, que
uma operação produza a si mesma, partir de uma determinada situação na qual a
operação real, por estar no presente, tenta fazer conexões com uma que ainda não existe,
por estar no futuro. A durabilidade não é o modo de existência das estruturas, mas sim a
disponibilidade para quando elas são utilizadas.

A primeira conseqüência desse modo de colocação é que a Teoria dos Sistemas


se situa em um nível diferente ao da distinção entre estrutura e processo. Não há
propriamente estruturas e processos, mas sim sistemas que se constroem conforme um
tipo de operação que eles mesmos produzem. Seja o que for que se requeira no sistema,
como estrutura e como processo, isso depende exclusivamente dos mecanismos
específicos e do tipo de operação dos sistemas correspondentes. Para o caso dos
sistemas sociais, tem-se, então, uma clara representação da operação da comunicação
que constrói somente estruturas que são expectativas. Com isso, descarta-se a
dificuldade de ter, sob uma mesma composição teórica, sistemas constituídos, por um
lado, de acontecimentos e processos; e, por outro lado, de estruturas.

A realidade da estrutura pode ser então definida como a representação do


contexto recursivo da operação. Esta apreende o passado e o projeta para o futuro,
servindo-se de uma memória que é seletiva. Assim, a recursividade é um momento
constitutivo da identidade da própria operação; e isso pode ser facilmente comprovado
quando se pensa que somente mediante uma pré-orientação sobre o que já aconteceu e o
que pode acontecer é possível chegar à construção, por exemplo, de uma lei, do
mandato de uma ordem, do pedido de um favor, ou da expressão de uma opinião.

As estruturas são, portanto, a representação global da permanente ativação da


recursividade das orientações no sistema. A realidade das estruturas é algo totalmente
fluido, que só momentaneamente serve para unir e conectar a operação posterior, na
medida em que provê de orientações de direcionalidade.

A afirmação básica da Teoria dos Sistemas é a de que os conflitos são sistemas,


pois eles permitem que o outro seja tratado como inimigo, como oposto, contra quem se
pode agir de forma agressiva, violenta. Surge, assim, uma situação na qual o outro é
tratado sob a delimitação de um espectro determinado de valoração. Em situações nas
quais não se pode evadir a presença, gera-se, conseqüentemente, o conflito,
encontrando-se a maneira de uma rejeição sistemática às ofertas de sentido do outro,
mediante a utilização recursiva do não. O próprio sistema produz os motivos que
organizam a possibilidade de conexão subseqüente: ele leva a buscar recursos que
impulsionem o conflito, sob a dinâmica de que tudo o que prejudica o outro produz um
benefício para mim.

O problema de uma sociedade complexa consiste, portanto, em chegar a prover


uma suficiente desintegração. Assim, a tese da estabilidade de uma sociedade
fundamenta-se mais no fato de que seus elementos estejam acoplados em modo amplo
(loose coupling), de tal maneira que isto seja compatível com o fato de que na sociedade
existam, por um lado, os conflitos, e, por outro lado, busquem-se mecanismos para
controlá-los.
XIV – “Do que se trata o caso” e “o que se esconde por detrás”:

as duas sociologias e a teoria da sociedade

Desde seus primórdios, a sociologia tem buscado responder a duas perguntas


radicalmente distintas. A primeira propõe saber: do que se trata o caso? A segunda: o
que se esconde por detrás? Diante de duas questões de natureza tão diversa, sempre foi
difícil afirmar a unidade da disciplina sociológica. Contudo, foi principalmente nos anos
1960 que, com base nessa diferença, surgiu um debate que ameaçou fazer explodir a
disciplina.

Na diferença entre as duas perguntas reside a razão de a sociologia ter estancado


seu desenvolvimento, e não ter podido refletir sobre sua própria unidade. Mas, cabe
indagar com que êxitos e com que custos essas duas perguntas foram, até o momento,
trabalhadas, sem que se tenha podido reduzi-las a uma única (nisto consistindo,
precisamente, o paradoxo). O fato de que, trabalhando-se com a referida diferença,
tenham sido encontradas múltiplas soluções, indica a fertilidade da forma do
desenvolvimento do paradoxo, embora isso não garanta que, algum dia, ou,
provavelmente agora, as possibilidades possam esgotar-se.

Atualmente, o fato de que se proclame uma ciência ética é algo que não é óbvio
à primeira vista e, provavelmente, isso se deve ao desenvolvimento de teorias éticas
muito diversas, que não podem ser igualadas quanto a seus critérios, sobretudo devido à
alta complexidade, à invisibilidade dos aspectos causais, às decisões carregadas de
riscos inevitáveis, e ao trato com seres humanos que não podem contar consigo mesmos
e que se opõem a qualquer abordagem científica e regulação ética. Para obter um dever
ético do cientista seria necessário o elo que possibilitasse conectar à intenções que se
escondem por detrás, convertendo-as em propostas práticas ou próximas a isso.

Essa análise nos permite formular um problema: como e para que se retorna ao
conhecimento daquilo que está oculto, no mundo social dos fatos? Para o ethos
científico moderno torna-se remoto ver nisso um conhecimento secreto (empregando-se
a figura semântica do secreto), de modo a poder estabelecer a indagação sobre o sentido
do duplo mundo que está por detrás, bem como para reconhecê-lo e mostrá-lo. A
diferença entre as duas perguntas – do que se trata o caso, e o que se esconde por detrás
– demanda uma unidade; e nisso consiste precisamente a construção de um problema
dialético – conforme diria uma importante tradição da teoria filosófica.
Independentemente disso, não se pode ignorar que a sociologia tenha se esforçado em
não permanecer na mera diferença, mas tenha buscado resolver de uma forma ou de
outra, num dos lados, ao nível dos fatos.

Perante esse problema a sociologia já não está sozinha no mundo. O fato de que
neste caso se trate do sistema da sociedade só incrementa as indagações; sem contar que
as matemáticas, a física, a biologia, a lingüística, e ainda a filosofia exaltam a pergunta
do que acontece com o mundo, quando ele contém um observador.
Quando a disciplina, no discurso sobre o conhecimento, já não chega
propriamente a fazer parte da verdade ou falsidade do conhecimento, interessando-se
somente em saber quais grupos defendem que esse conhecimento seja verdade e por
que, qual status teria, então esse conhecimento teórico relacionante? Será que os
representantes desses grupos aparecem como parte de seu discurso e, provavelmente,
não sabem que se trata apenas de um discurso? A pergunta sobre o status e a
relacionalidade do conhecimento da sociologia do conhecimento, ou ainda mais em
geral, da capacidade de auto-observação do observador, não pode ser respondida com os
meios da teoria clássica do conhecimento, nem com uma lógica baseada unicamente em
dois valores.

O que se esconde por detrás? O que é esta meta ta fisika? Evidentemente, já não
se trata de partes verdadeiras do ser, nem de categorias, mas sim, de diferenciações: as
de um observador. Voltamos, assim, à pergunta que a sociologia sempre interpôs e
respondeu para si mesma: quem é o observador?

A metafísica: este é o observador. O verdadeiro observador operativo. Portanto,


o observador que deve ser observado. Portanto, o contexto recursivo do observar do
observar. Portanto, comunicação e, principalmente, comunicação que se realiza,
verdadeira comunicação.

Não são necessários muitos argumentos para conferir plausibilidade a que a


sociologia só possa descrever a sociedade a partir dela mesma. A sociologia precisa de
comunicação, como uma forma necessária de operação – e, portanto, de postos de
trabalho, dinheiro para a pesquisa, acesso a objetos de investigação e, para isso,
conforme seus êxitos, autoridade social.

Quando se pretende saber realmente como a sociologia se apresenta na


sociedade, tem-se, então, a resposta de que é como ciência: a sociologia não tem outro
fundamento de trabalho. E isso explica exatamente a dupla perspectiva das perguntas:
na medida em que a sociologia se considera ciência, ela se interessa pela questão “do
que se trata o caso?”; e, ao se interessar em saber “o que se esconde por detrás?”, o
sistema de referência ao qual ela alude é o da sociedade. A diferença de posição das
perguntas é uma diferença de referência do sistema, e ambas dizem respeito à
sociologia. Ela não pode evitar sua cientificidade, nem sua sociabilidade. Nos dois casos
ela é simultaneamente um observador interno do sistema que ela realiza; e isso faz com
que seu modo de observar seja complexo, tanto do ponto de vista lógico como teórico.

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