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D’ACRI, Gladys; LIMA, Patrícia; ORGLER, Sheila. MECANISMOS NEURÓTICOS


(p.147 a 150) In: D’ACRI, Gladys; LIMA, Patrícia; ORGLER, Sheila – Dicionário de
Gestalt-terapia: “Gestaltês”. São Paulo: Summus, 2007.

*as p.s em vermelho correspondem à numeração original.

MECANISMOS NEURÓTICOS

Em EFA (1942), Perls ainda não utiliza o termo “mecanismos neuróticos”, e sim
“inibições essenciais” para referir-se à repressão, introjeção, projeção e retroflexão,
destacando-as também como as principais inibições. Suas idéias de funcionamento
do ego nessas inibições essenciais e a importância da relação organismo e meio já
prenunciam o que surgiria, posteriormente, na Gestalt-terapia.

O conflito entre as necessidades do homem e suas possibilidades de resolução, por


meio do contato com o meio, é inevitável. Entendemos ajustamento criativo como a
capacidade de executarmos ações na busca da satisfação das necessidades
emergentes. Para isso é necessário transpor os impedimentos ocorridos,
transformando-os da melhor forma possível, sem paralisar diante deles, pois a
“perda de contato com o meio quase sempre provoca resultados catastróficos”
(PERLS, 2002, p.309).

No livro de PHG (1951), os autores dizem que: “[...] os comportamentos neuróticos


são ajustamentos criativos de um campo onde há repressão” (1977, p.248).
Descrevem “[...] os diferentes ‘caracteres’ neuróticos como padrões estereotipados
que limitam o processo flexível de dirigir-se criativamente ao novo” (PHG, 1997,
p.45). Eles dedicam um capítulo para tratar dos “caracteres neuróticos”, que se
caracterizam pelo uso constante de mecanismos estereotipados de funcionamento
auto-regulativo, os mecanismos neuróticos. Defendem a idéia de que “[...] o paciente
não tem um ‘tipo’ de mecanismo, mas, na realidade, uma seqüência de tipos [...] e
todo mecanismo e característica constituem um meio de viver valioso, se puderem
ao menos continuar a fazer a sua tarefa” (PHG, 1997, p.250).

O ajustamento criativo é em si o mecanismo próprio de auto-regulação do organismo


humano. A exigência básica para sua ocorrência é a awareness. Estar aware se
refere a estabelecer um contato claro e pleno com qualquer evento que ocorra nesta
fronteira homem/meio, considerando a experiência sensorial, emocional, intelectual,
motora, etc. O bloqueio da awareness é explicado por Perls como resultante de
repetidos desacordos entre as necessidades do indivíduo e as (p.147) demandas do
meio. O homem passa a abrir mão de suas próprias necessidades, em nome das
exigências externas, muitas vezes pontuadas pelas regras sociais da cultura na qual
está inserto. A psicologia anormal é apontada como o estudo das interrupções ou
inibições que impedem o ajustamento criativo.

No livro A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia, Perls (1981, p.31)


afirma: “O tipo de relação homem/meio determina o comportamento do ser humano.
Se o relacionamento é mutuamente satisfatório, o comportamento do indivíduo é o
que chamamos de normal. Se é de conflito, trata-se do comportamento descrito
como anormal”. Esse padrão de funcionamento “anormal” tem como característica a
adoção recorrente de mecanismos neuróticos entendidos como respostas
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estereotipadas ao estímulo do meio. No entanto, Perls destaca: “As psicologias mais


antigas descreviam a vida humana como um conflito constante entre o homem e o
meio” (PERLS, 1981, p.39). Quanto à Gestalt-terapia, ele diz: “Por outro lado, nós o
vemos [o conflito] como uma interação entre os dois, dentro da estrutura de um
campo constantemente mutável” (PERLS, 1981, p.39). Ou seja, os mecanismos
neuróticos são construídos em um processo de interação e contato homem/meio.
Eles não podem ser compreendidos como “sintomas” psicopatologicamente
descritos e classificáveis.

Os mecanismos neuróticos não são, em si, nem bons nem maus. A repetição destes
como um padrão comportamental recorrente é que os torna nocivos, transformando-
se em repetições rígidas dos mesmos padrões de funcionamento diante das
circunstâncias do meio. É importante ter em mente que esses mecanismos surgem
como interrupções de um ciclo básico, o ciclo de contato. Este se inicia com base na
percepção de uma sensação, que deflagrará um processo de reconhecimento de
necessidade. Pelo funcionamento da awareness do indivíduo busca-se, por uma
ação no meio, satisfazer essa necessidade. Como nem sempre essa satisfação é
possível, a frustração é um dado inevitável.

É fundamental para o pleno funcionamento desse ciclo do contato a possibilidade de


a pessoa lidar com a frustração, de modo a buscar outros caminhos para a
satisfação da necessidade que surgiu como figura pregnante. O excesso de
processos frustrantes no ciclo do contato do indivíduo com o meio é que leva ao
aparecimento de uma forma de sofrimento físico e/ou mental. A frustração em si é
inevitável, sendo saudável para o indivíduo ter flexibilidade o suficiente a fim de
transcender essa situação frustrante. O excesso de frustrações ou a rigidez do
indivíduo na busca de novas possibilidades de ação no meio é que levam ao mau
funcionamento desse ciclo e, portanto, ao surgimento de processos de adoecimento.
Na obra de PHG (1997) enumeram-se, inicialmente, cinco mecanismos neuróticos
(Esses cinco mecanismos estão explanados separadamente ao longo desta obra)
básicos: 1) confluência; 2) introjeção; 3) projeção; 4) retroflexão; 5) egotismo.
Descrito por Goodman, este último, mais tarde, não será desenvolvido por Perls. No
livro A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia (1981), considera
apenas os quatro primeiros. (p.148)

Posteriormente, Miriam e Erving Polster, representantes da segunda geração de


Gestal-terapeutas, descrevem mais um mecanismo, a deflexão, que é entendida
como um dos cinco canais principais de interação resistente. É uma forma de evitar
o calor do contato, ou o contato direto com o outro. No livro Gestalt-terapia
integrada, os Polster (1979, p.102) afirmam que a “ação fica sem alvo; ela é mais
fraca e menos efetiva”. Acrescentam que:

Quem usa a deflexão se envolve com seu ambiente mediante


acertos e erros, entretanto, para ele isso geralmente se
transforma em muitos erros com apenas alguns acertos – na
maioria acidentais. Assim, ou ele não investe energia suficiente
para obter um retorno razoável, ou a investe sem foco e a
energia se dissipa e evapora. Ele termina esgotado e com
pouco retorno – arruinado. (Polster; Polster, 2002, p.86)
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Assim como acontece nos demais canais de resistência, a deflexão só se torna um


problema quando a pessoa a utiliza indiscriminadamente.
Serge e Anne Singer (1995, p.256), no livro Gestalt: uma terapia do contato,
consideram a deflexão “uma das ‘resistências’ ou ‘perdas da função do eu’. [...] Pode
ser, assim, uma fuga do aqui e agora nas lembranças, projetos, considerações
abstratas, no que Perls denomina ‘masturbação mental’ (mind fucking)”.

Na prática clínica, ela pode ser percebida por verborragia ou silêncio excessivo, pela
evitação do olhar, pela generalização em vez da especificidade do assunto, pelo uso
da linguagem na terceira pessoa, entre outras. Cabe ao terapeuta facilitar o contato
do cliente consigo mesmo, transformando, assim, a deflexão em expressão.

Sylvia Crocker desenvolve a noção de proflexão, compreendendo-a como uma


combinação de retroflexão e projeção, isto é, fazer ao outro o que gostaria que o
outro fizesse a si. No livro O ciclo do contato, Ribeiro (1995, p.18) define proflexão
como “processo através do qual desejo que os outros sejam como eu desejo que
eles sejam ou desejo que eles sejam como eu mesmo sou, manipulando-os a fim de
receber deles aquilo de que preciso, seja fazendo o que eles gostam, seja
submetendo-me passivamente a eles, sempre na esperança de ter algo em troca”.

Esse autor ainda descreve mais dois processos de “bloqueio de contato”, conforme
opta por chamar: fixação e dessensibilização. Define o primeiro como “o processo
através do qual me apego excessivamente às pessoas, idéias ou coisas e, temendo
surpresas diante do novo e da realidade, sinto-me incapaz de explorar situações que
flutuam rapidamente, ficando fixado em coisas e emoções, sem verificar as
vantagens de tal situação” (RIBEIRO, 1995, p.17). Já a dessensibilização é o
“processo pelo qual me sinto entorpecido, frio diante de um contato, com dificuldade
para me estimular. Sinto uma diminuição sensorial no corpo, não diferenciando
estímulos externos e perdendo o interesse por sensações novas e mais intensas”
(RIBEIRO, 1995, p.19).
Gladys D’Acri, Patrícia Lima (Ticha) e Sheila Orgler.
(p.149)

Referências Bibliográficas

GINGER, S.; GINGER. A. Gestalt: uma terapia de contato. São Paulo: Summus,
1995.

PERLS, F.S. A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. Rio de


Janeiro: Zahar, 1981.

________. (1942). Ego, fome e agressão. São Paulo: Summus, 2002.

PERLS, F.S.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P.Gestalt-terapia. São Paulo:


Summus, 1977.

POLSTER, E.; POLSTER, M. Gestalt-terapia integrada. São Paulo: Summus, 2002.

RIBEIRO, J.P.O ciclo do contato. Brasília: Ser, 1995.


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VERBETES RELACIONADOS
Ajustamento criativo, Aqui e agora, Auto-regulação organísmica, Awareness,
Campo, Ciclo Contato, Conflito, Confluência, Contato, Deflexão, Dessensibilização,
Ego, Egotismo, Fixação, Fronteira de contato, Frustração, Gestalt-terapia, Introjeção,
Necessidades, Organismo, Proflexão, Projeção, Resistência, Retroflexão

(p.150)

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