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ARTHUR JANOV

O GRITO PRIMAL
TERAPIA PRIMAL: A CURA DAS
NEUROSES

Tradução de LUIZ CORÇÃO

editora artenova s.a.


Do original norte-americano THE PRIMAL SCREAM
Copyright © 1970 by Arthur Janov

Copyright 1974 da edição em português Editora Artenova S.A.

Tradução Luiz Corção


Revisão
Salvador Pittaro
Capa
Studio Artenova
Reservados todos os direitos desta tradução. Proibida a reprodução, parcial, sem
expressa autorização da Editora Artenova S.A.

editora artenova SA
rua prefeito olímpio de melo, 1774
tels. pbx 228-7124 228-7125
end. telegráfico ARTNOVA
são cristovão rio gb
departamento jornalístico
departamento gráfico
departamento editorial

Composto e impresso no Brasil — Printed in Brazil


Este livro é dedicado aos meus pacientes, que foram suficientemente
íntegros para reconhecerem que estavam doentes e que queriam parar a luta, e
aos jovens do mundo que são a esperança da humanidade.
NOTA DO TRADUTOR

A palavra PRIMAL existe na língua inglesa, mas ainda não se encontra


dicionarizada em português, nem mesmo nos compêndios especializados de
psiquiatria ou psicanálise a que recorremos.
Achamos que não será descabido usá-la mesmo que isso signifique a
cunhagem de uma nova expressão que talvez venha acabar fazendo parte do
linguajar todo especial dessa especialidade da medicina.
Os dicionários Michaelis, Random House e Webster consignam PRIMAL
como: primitivo, primordial, primevo. Pelo auxílio que me prestaram na
preparação deste livro, quero agradecer a Karol Karkley, minha assistente de
pesquisas, e a Ann Farnell Blow que me auxiliou na revisão. Agradeço também
aos meus filhos, Ricky e Ellen, que me auxiliaram na tarefa de criá-los. Eles me
ensinaram o verdadeiro significado de "integridade". Sou também reconhecido a
Tony Velie por sua valiosa assistência na organização do livro.

Mas existe uma pessoa que tornou possível este livro: minha esposa Vivian que, trabalhando
como diretora de treinamento no Instituto Primal, auxiliou-me na elucidação e no
desenvolvimento de muitas teorias cruciais.
Sumário

NOTA DO TRADUTOR ............................................................................................... 5


INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9
A DESCOBERTA DA DOR PRIMAL ............................................................................. 9
1 - O PROBLEMA .................................................................................................... 12
2 - AS NEUROSES .................................................................................................... 15
A Cena Primal ......................................................................................................... 23
O Eu Verdadeiro e o Falso ..................................................................................... 30
DISCUSSÃO ............................................................................................................ 31
3 - A DOR ................................................................................................................ 35
4 - A DOR E AS LEMBRANÇAS ................................................................................ 42
5 - A NATUREZA DA TENSÃO ................................................................................. 48
6 - O SISTEMA DE DEFESA ...................................................................................... 59
Discussão .............................................................................................................. 66
7 - A NATUREZA DO SENTIMENTO ........................................................................ 70
8 - A CURA .............................................................................................................. 84
A Primeira Hora ...................................................................................................... 86
O Segundo Dia........................................................................................................ 91
O Terceiro Dia ........................................................................................................ 92
Depois do Terceiro Dia........................................................................................... 93
O Grito Primal ........................................................................................................ 97
A Resistência .......................................................................................................... 98
A Primal Simbólica ................................................................................................. 99
Variações em Estilos Primais ............................................................................... 103
A Experiência de Grupo ....................................................................................... 108
Ficando Bom ........................................................................................................ 109
Discussão ............................................................................................................ 111
Kathy .................................................................................................................... 114
9 - A RESPIRAÇÃO, A VOZ E O GRITO ................................................................... 127
10 - AS NEUROSES E A DOENÇA PSICOSSOMÁTICA ............................................ 135
O Desaparecimento dos Sintomas ...................................................................... 140
Discussão ............................................................................................................ 148
11 - O FATO DE SER NORMAL .............................................................................. 150
12 - O PACIENTE PÓS-PRIMAL ............................................................................. 167
Relação com os pais ............................................................................................. 177
Gary ..................................................................................................................... 180
13 - A RELAÇÃO DA TERAPIA PRIMAL COM OUTROS MÉTODOS TERAPÊUTICOS
.............................................................................................................................. 225
A Escola Freudiana ou Psicanalítica ..................................................................... 225
Wilhelm Reich ...................................................................................................... 229
A Escola Behaviorista ou de Condicionamento ................................................... 232
A Escola Racional ............................................................................................... 236
A Terapia da Realidade ........................................................................................ 238
Meditação Transcendental .................................................................................. 242
Existencialismo ..................................................................................................... 244
Psicodrama ........................................................................................................... 251
Laura .................................................................................................................... 254
14 - INSIGHT E TRANSFERÊNCIA EM PSICOTERAPIA ........................................... 261
A Natureza do Insight .......................................................................................... 261
Discussão .............................................................................................................. 268
A Transferência .................................................................................................... 269
Phillip ................................................................................................................... 271
15 - SONO, SONHOS E SÍMBOLOS ....................................................................... 285
Discussão ............................................................................................................ 295
16 - A NATUREZA DO AMOR ................................................................................ 298
17 - SEXUALISMO, HOMOSSEXUALISMO, BISSEXUALISMO ................................ 307
Amor e Sexo ......................................................................................................... 311
Frigidez e Impotência........................................................................................... 312
Perversões ............................................................................................................ 318
Lenny ................................................................................................................... 321
Jim ........................................................................................................................ 324
Homossexualismo ................................................................................................ 330
Identidade e Homossexualismo .......................................................................... 335
Bissexualismo e Homossexualismo Latentes ...................................................... 336
Discussão ............................................................................................................ 339
Elizabeth .............................................................................................................. 340
18 - OS FUNDAMENTOS DO MEDO E DA RAIVA ................................................. 353
A Raiva .................................................................................................................. 353
Ciúme e Inveja...................................................................................................... 360
Medo .................................................................................................................... 361
Contrafobia .......................................................................................................... 365
Medos Infantis ..................................................................................................... 367
Discussão ............................................................................................................ 368
Kim ....................................................................................................................... 369
Suicídio ................................................................................................................ 377
19 - DROGAS E VÍCIO ........................................................................................... 382
Dietilamida do Ácido Lisérgico (LSD-25) .............................................................. 382
Heroína ................................................................................................................. 390
Discussão ............................................................................................................ 394
Maconha .............................................................................................................. 396
Sally ...................................................................................................................... 399
Voracidade ........................................................................................................... 404
20 - PSICOSE: DROGA E ANTIDROGA ................................................................... 408
21 - CONCLUSÕES ................................................................................................ 416
APÊNDICE A .......................................................................................................... 429
TOM ..................................................................................................................... 429
Conclusões .......................................................................................................... 455
APÊNDICE B .......................................................................................................... 459
INSTRUÇÕES PARA OS NOVOS PACIENTES PRIMAIS ........................................... 459
INTRODUÇÃO

A DESCOBERTA DA DOR PRIMAL

Alguns anos atrás eu ouvi algo que iria mudar o curso de minha vida
profissional e as vidas de meus pacientes. O que ouvi, e que mudou a
natureza da psicoterapia atual, foi um grito fantástico que irrompeu de
dentro de um jovem, deitado no chão, durante uma sessão de terapia, e
que só podia ser comparado ao que escapa de uma pessoa prestes a ser
assassinada. Este livro é sobre aquele grito e o seu significado no
esclarecimento dos segredos das neuroses.
O jovem que emitiu o grito será aqui chamado de Danny Wilson, um
estudante de vinte e dois anos. Ele não era psicótico e nem tampouco
histérico. Era um estudante medíocre, ensimesmado, susceptível e calado.
Durante uma pausa em nossa sessão de terapia de grupo, ele nos contou a
história de um homem chamado Ortiz que representava nos palcos
londrinos uma peça na qual ele se apresentava de fraldas, bebendo leite na
mamadeira. Durante todo o espetáculo Ortiz gritava: "Mamãe! Papai!
Mamãe! Papai!" em altos brados. No final do ato ele vomitava. Oferecia -
se, então, aos espectadores sacos plásticos para que pudessem seguir o
exemplo do ator.
A fascinação de Danny pela peça levou-me a uma tentativa elementar, que
antes não me ocorrera. Pedi-lhe que gritasse "Mamãe! Papai!" Ele recusou,
alegando que não via sentido em tal criancice, coisa com a qual eu
concordava. Mesmo assim insisti e ele acabou cedendo. Quando começou
a chamar pelos pais, foi se transformando. Subitamente pôs-se a
espernear, contorcendo-se no chão, em agonia. Sua respiração era rápida
e espasmódica: "Mamãe! Papai!" gritava quase involuntariamente, em
altos brados. Parecia estar em estado de coma ou de hipnose. As
contorções foram substituídas por pequenas convulsões, até que
finalmente ele soltou o grito de agonia mortal, lancinante, que abalou as
paredes de meu consultório. Todo esse episódio durou apenas alguns
minutos, e nem Danny nem eu tivemos uma noção exata do que
acontecera. Tudo que ele depois conseguiu dizer foi o seguinte: "Consegui!
Não entendo muito bem, mas sinto-o!"
O que acontecera com Danny deixou-me perplexo durante meses. Eu já
fazia terapia de insight havia dezessete anos, como assistente social
psiquiátrico e como psicólogo. Trabalhei numa clínica psiquiátrica
freudiana e também num departamento da Administração dos Veteranos,
de tendência menos freudiana. Durante muitos anos fiz parte da equipe do
departamento de psiquiatria do Hospital Infantil de Los Angeles. Nunca,
durante todo esse tempo, havia presenciado coisa semelhante. Como eu
gravara a sessão de grupo naquela noite, tive oportunidade de ouvir várias
vezes o que se passara durante os meses seguintes, numa tentativa de
entender o que havia acontecido. Mas tudo foi inútil.
Algum tempo depois consegui afinal compreender um pouco mais.
Um homem de trinta e nove anos, a quem chamaremos de Gary Hillard,
contava com muito sentimento como seus pais o criticavam, não podendo
amá-lo e prejudicando-lhe a vida. Insisti com ele para que gritasse por eles.
Resistiu, dizendo que sabia que não o amavam, e portanto não fazia sentido
chamar por eles. Pedi-lhe que satisfizesse o meu capricho. Meio
contrariado ele começou a chamar "Papai! Mamãe!" Logo sua respiração
acelerou-se, ficando mais profunda. Seu apelo transformou-se em uma
representação involuntária, na qual ele se contorceu em convulsões, até
chegar a um grito.
Ambos ficamos chocados. O que eu pensara ser um acidente, uma
idiossincrasia de um paciente, acabava de se repetir de um modo idêntico.
Mais tarde, quando se acalmou, Gary sentiu-se inundado de insights. Disse-
me que toda sua vida parecia subitamente tomar um sentido. Esse homem,
geralmente sem sofisticação, começou a se transformar diante de meus
olhos numa outra pessoa. Tornou-se alerta. Seu aparelho sensorial
desabrochou. Parecia compreender o que se passava com ele.
Em virtude da semelhança das duas reações, comecei a ouvir cada vez mais
com maior atenção as gravações que fizera das duas sessões. Tentei
analisar quais os fatores comuns ou quais as técnicas que haviam produzido
tais reações. Vagarosamente comecei a perceber um certo significado.
Durante os meses seguintes tentei várias modificações e táticas para pedir
aos pacientes que chamassem por seus pais. Todas as vezes repetiu-se o
resultado dramático. Agora eu entendo que aquele grito é a consequência
da dor central e universal que habita todos os neuróticos. Chamo-a de Dor
Primal por ser a dor original, primeira, sobre a qual crescem as neur oses
posteriores. Em minha opinião essa dor persiste permanentemente em
todo o neurótico, seja qual for a forma de sua neurose. Ela geralmente não
é consciente sendo difundida através de todo o organismo e afetando os
órgãos, os músculos, o sistema venoso e linfático e, finalmente,
destorcendo nosso comportamento.
A Terapia Primal tem por objetivo erradicar tal dor. É uma terapia
revolucionária porque implica no desmoronamento do sistema neurótico
em virtude de um impacto brutal. Na minha opinião as neuroses só podem
ser eliminadas por um processo como esse.
A Terapia Primal é um desenvolvimento de minhas observações a respeito
dos motivos das transformações específicas. Devo acentuar que nenhuma
teoria precedeu à experiência clínica. Quando observei Danny e Gary
contorcendo-se no chão vitimados pela Dor Primal, eu não sabia como
encarar tal fenômeno. A teoria foi ampliada e aprofundada pelos
frequentes relatórios dos diversos pacientes que foram curados das
neuroses. Esse livro é um convite para a exploração da revolução que eles
começaram.
1 - O PROBLEMA

Uma teoria é o significado que damos à observação de uma determinada


sequência da realidade. Quanto mais próxima da realidade esteja a teoria,
mais válida ela é. Uma teoria é válida quando nos permite estabelecer
previsões por se enquadrar à natureza daquilo que está sendo observado.
Desde os tempos de Freud que somos obrigados a confiar nas teorias a
posteriori, isto é, usando nossos sistemas teóricos para explicar ou
racionalizar o que já aconteceu. À proporção que os dados observáveis
foram ganhando complexidade, nossas observações nos conduziram a um
emaranhado de diferentes sistemas ou escolas teóricas. Na psicoterapia
atual, a fragmentação e a especialização são abundantes. Parece que as
neuroses se desenvolvem de formas tão variadas, nesta última metade do
século, que a palavra "cura" já não é mais mencionada pelos psicólogos, e
a palavra "neurose" foi desmembrada num grande número de áreas de
problemas. Existem, portanto, livros sobre sensações, percepções,
aprendizagem, cognição etc. As neuroses são hoje rotuladas, por qualquer
um que tenha propensões teóricas, com nomes como fobia, depressão,
sintoma psicossomático, incapacidade de funcionar, indecisão. Desde
Freud que os psicólogos vêm se interessando pelos sintomas e não pelas
causas. O que nos falta é uma estrutura global que nos ofereça uma diretriz
concreta do procedimento a ser adotado com os pacientes durante cada
hora de terapia.
Antes de descobrir aquilo que iria se transformar em uma Teoria Primal, eu
sabia, de um modo geral, o que devia esperar de cada um de meus
pacientes. Preocupava-me, contudo, assim como outros colegas meus, com
a falta de continuidade de uma sessão para outra. Parecia-me estar apenas
fazendo remendos. Sempre que havia uma rotura no processo de defesa de
um de meus pacientes, eu estava ali, como o lendário menino holandês.
Um dia eu analisava um sonho, outro dia encorajava uma livre associação
de ideias. Na semana seguinte focalizávamos acontecimentos passados, e
outras vezes eu ajudava o paciente a se situar no momento atual.
Como muitos de meus colegas, eu me sentia perplexo ante a complexidade
dos problemas apresentados pelos pacientes atormentados. A previsão,
que é o fundamento de um método teórico válido, muitas vezes tinha que
ser substituída por uma espécie de confiança intuitiva. Eu acreditava, sem
verbalizar tal crença, que, se houvesse um insight profundo, o paciente
cedo ou tarde chegaria a conhecer-se tão bem que poderia controlar seu
comportamento neurótico. No entanto, agora eu acredito que as neuroses
têm muito pouco a ver com o entendimento do problema e da própria
neurose.
A neurose é uma enfermidade do sentimento. Seu cerne é a supressão do
sentimento e sua transmutação em uma ampla variedade de
comportamentos neuróticos.
A estonteante variedade dos sintomas neuróticos, que vão da insônia à
perversão sexual, fizeram-nos pensar na neurose como pertencendo a
categorias, porém os diferentes sintomas não implicam diferentes
enfermidades. Todas as neuroses provêm da mesma causa específica e
reagem ao mesmo tratamento específico.
Apesar de toda a sua genialidade, Freud nos legou dois infelizes conceitos,
que nós aceitamos como verdades evangélicas. Um deles é o que diz não
haver um começo para a neurose. Em outras palavras, todo ser humano
nasce neurótico. O outro é o que afirma que a pessoa que possui um forte
sistema de defesa é consequentemente mais capaz de funcionar
adequadamente na sociedade.
A Terapia Primal baseia-se na hipótese de que nascemos sendo nós
mesmos. Não nascemos neuróticos ou psicóticos. Apenas nascemos.
A Terapia Primal implica a desmontagem das causas de tensão, dos
sistemas de defesa e das neuroses. Portanto, a Terapia Primal indica que
as pessoas mais saudáveis são as que não possuem sistemas de defesa.
Tudo que contribui para a montagem de um forte sistema de defesa
aprofunda a neurose. Quando isto acontece, a tensão neurótica é
enquadrada em camadas de mecanismos de defesa que permitem à pessoa
ter um funcionamento exterior melhor, ao passo que são açoitadas por
uma maior tensão interna.
Eu não me consolo com a racionalização de que vivemos em uma época de
neuroses (ou ansiedade), sendo portanto de se esperar que as pessoas
sejam neuróticas. Gostaria de sugerir que existe alguma coisa além de uma
melhor atuação social, alguma coisa além do alívio dos sintomas e de uma
percepção mais profunda de nossas motivações.
Existe um estado de espírito bem diferente daquele que nos habituamos a
conhecer: uma vida descontraída, livre de defesas, em que cada um é o que
é, conhecendo sentimentos profundos e unidade interior. É esse o estado
de espírito que pode ser alcançado pela Terapia Primal. As pessoas se
tornam autênticas e continuam assim.
Isso não quer dizer que o paciente depois de passar pela Primal nunca mais
vai se sentir triste ou infeliz. O que quero dizer é que, a despeito do que
lhe possa acontecer, ele há de encarar seus problemas com uma atitude
realista e atual. Já não irá encobrir a realidade com falsidades. Não sofrerá
mais a inexplicável tensão do medo.
A Terapia Primal já foi usada com sucesso no tratamento de uma ampla
variedade de neuroses, inclusive no vício da heroína. As sessões da Terapia
Primal são inter-relacionadas e, geralmente, o Terapeuta Primal pode
predizer o desenvolvimento da terapia de seu paciente. As implicações
dessa afirmativa tornar-se-ão cada vez mais importantes, pois se podemos
curar as neuroses de um modo sistemático e ordenado, também
poderemos conseguir isolar os fatores que poderão ser úteis à sua
prevenção.
2 - AS NEUROSES

Nós somos criaturas com necessidades. Nascemos necessitando, e a


maioria morre depois de uma vida de lutas, sem termos realizado nossos
anseios. Essas necessidades não são excessivas: é preciso que sejamos
alimentados, acalentados e estimulados, e que nos mantenhamos
protegidos para que possamos nos desenvolver em compasso próprio.
Essas necessidades de caráter Primal são a realidade central do bebê. O
processo neurótico começa quando tais necessidades não são atendidas
durante certo tempo. Um recém-nascido não sabe que deve ser acalentado
quando chora, ou que não deve ser desmamado antes do tempo, mas
quando suas necessidades não são atendidas, ele sofre.
A princípio o bebê fará tudo que lhe for possível para ver suas necessidades
serem atendidas. Ele levantará os braços para ser acalentado, chorará
quando tiver fome, esperneará e se contorcerá a fim de chamar atenção
sobre si. Se suas necessidades não forem atendidas durante algum tempo,
se não for acalentado, se não lhe mudarem as fraldas e não o alimentarem,
ele sofrerá até que seus pais o atendam ou até que ele mesmo suprima sua
dor, suprimindo sua necessidade. Se sua dor for bastante forte, ele poderá
morrer, como mostram os estudos feitos em algumas instituições infantis.
Como o bebe não pode, sozinho, vencer sua sensação de fome (isto é, ele
não pode dispor da geladeira) ou encontrar uma afeição substituta, ele terá
que separar suas sensações (fome, desejo de acalento) da consciência
delas. Esta separação de si mesmo e de suas necessidades e sentimentos é
uma manobra instintiva a fim de isolar a dor excessiva. Nós chamamos esta
forma de procedimento de split ou cisão. O organismo faz o split a fim de
proteger sua continuidade. Mas isso não quer dizer que desaparecem as
necessidades que não forem atendidas. Ao contrário, elas continuam a se
fazer sentir através de toda a vida, exercendo uma força, canalizando
interesses, e produzindo motivações para satisfazê-las. Mas em virtude da
dor que ocasionam, as necessidades foram suprimidas no inconsciente, e o
indivíduo tem de procurar satisfações substitutas. Deve, então, procurar
satisfazer suas necessidades de um modo simbólico. Por não ter podido
exprimir-se, ele poderá ser compelido a procurar, mais tarde em sua vida,
outras pessoas que o compreendam e o ouçam.
Não são somente as necessidades não atendidas que persistem até
atingirem um grau de intolerabilidade dissociada da consciência, mas
também suas sensações são transportadas para áreas onde possam obter
maior alívio ou controle. Sendo assim, certas sensações podem ser
aliviadas pela urina (mais tarde pelo sexo) ou controladas pela supressão
da respiração profunda. A criança não atendida está aprendendo a
disfarçar e transformar suas necessidades em atos simbólicos. Ao chegar à
idade adulta poderá não sentir a necessidade de sugar o seio da mãe, por
ter sido desmamado prematuramente, mas poderá se tornar um fumante
inveterado. Sua necessidade de fumar é uma necessidade simbólica, e a
essência das neuroses é a busca de satisfações simbólicas.
A neurose é o comportamento simbólico defendendo o indivíduo da
excessiva dor psicobiológica. A neurose perpetua-se automaticamente pois
a satisfação simbólica não pode satisfazer às necessidades reais. Para que
as verdadeiras necessidades sejam satisfeitas, é preciso que sejam sentidas
e experimentadas. Infelizmente a dor fez com que essas necessidades
fossem sepultadas. Quando isso acontece, o organismo estabelece um
estado contínuo de alerta. Esse estado de alerta é a tensão. El a impele o
bebê e mais tarde o adulto, em direção à satisfação das necessidades da
maneira que for possível. Esse estado de alerta e emergência é necessário
para garantir a sobrevivência da criança. Ela pode até morrer se tiver que
abdicar à esperança de ver suas necessidades atendidas. O organismo
continua a viver custe o que custar, e esse preço é geralmente a neurose
que encobre os sentimentos e as necessidades físicas que não foram
atendidas, já que a dor é grande demais para ser suportada.
Tudo que é natural é realmente necessário. Por exemplo, crescer e se
desenvolver em um compasso próprio. Isso quer dizer que uma criança não
deve ser desmamada prematuramente; não deve ser obrigada a andar ou
a falar antes do tempo; não deve ser forçada a jogar bola antes que seu
aparelho neurológico possa realizar tal ato de modo natural. As
necessidades neuróticas não são necessidades naturais, pois se
desenvolvem devido ao não atendimento de necessidades reais. Nós não
nascemos necessitando ouvir elogios, porém se os esforços de uma criança
são sempre ridicularizados desde a mais tenra idade, quando ela começar
a entender que por mais que faça, nunca consegue obter a aprovação e o
amor de seus pais, isso pode então resultar num anseio de elogios.
Paralelamente, a necessidade da criança para se exprimir pode ser
suprimida até mesmo pela falta de alguém que a ouça. Tal rejeição pode
fazer com que a criança fale incessantemente.
Uma criança amada é aquela cujas necessidades naturais são sempre
atendidas. O amor elimina sua dor. Uma criança que não é amada sofre por
não ser atendida. Uma criança amada não necessita ser elogiada pois não
foi ridicularizada. Ela é apreciada pelo que é, não pelo que possa fazer para
satisfazer às necessidades de seus pais. Uma criança amada não se
transforma em um adulto com um desejo sexual insaciável. Ela já foi
acalentada e acariciada por seus pais e não necessita usar o sexo para
satisfazer essa necessidade primitiva. As necessidades verdadeiras surgem
de dentro para fora, e não ao contrário. A necessidade da criança em ser
acalentada e acariciada faz parte da necessidade de ser estimulada. A pele
é o nosso mais vasto órgão sensorial e requer tanto estímulo como
qualquer outro órgão sensorial. O estímulo insuficiente nos primeiros
tempos de vida pode produzir consequências desastrosas. Os sistemas
orgânicos podem se atrofiar se não são estimulados. Inversamente, como
o demonstrou Krech 1 , eles podem se desenvolver se são estimulados
corretamente. Deve sempre haver estímulo físico e mental.
As necessidades não satisfeitas anulam qualquer outra atividade do
homem, até serem atendidas. Quando as necessidades são satisfeitas, a
criança pode sentir. Ela percebe seu corpo e o ambiente em que vive.
Quando as necessidades não são atendidas, a criança sente apenas tensão,
que é o sentimento desligado da consciência. Sem essa ligação necessária
o neurótico não sente. A neurose é a patologia do sentimento.

1
D. Krech, C. Bennett, M. Diamonde M. Rosenzweig, "Chemical and Anatomical Plasticity of
Brain", Science, Vol 146 (outubro de 1964), pp. 610-1 9.
A neurose não começa no momento em que a criança suprime seu primeiro
sentimento, mas podemos dizer que o processo neurótico começa então.
A criança fecha-se por etapas. Cada repressão e negação de uma
necessidade faz com que a criança se feche um pouco mais. Acontece,
então, um momento em que ocorre uma mudança crítica na qual a criança
se desliga, na qual ela é mais falsa do que verdadeira, e ao atingir esse
ponto crítico nós podemos considerá-la neurótica. Daí em diante ela
operará em um sistema de personalidade dupla. O verdadeiro eu são as
necessidades e os sentimentos do organismo. O falso eu é o disfarce desses
sentimentos e vai se transformar na fachada que é necessária aos pacientes
neuróticos a fim de conseguirem satisfazer suas próprias necessidades. Pais
que se sintam inseguros por terem sido constantemente humilhados por
seus pais, podem exigir dos filhos um respeito e uma submissão total. Um
pai imaturo pode exigir que o filho cresça rapidamente, a fim de poder fazer
o seu trabalho, e a criança torna-se, então, adulta, muito antes de estar
pronta para tal, para que o pai continue a ser cuidado como criança.
As exigências que tornam a criança falsa nem sempre são muito explícitas.
No entanto, a necessidade de ter pais é uma exigência implícita da criança.
A criança nasce de uma necessidade dos pais e começa a lutar para atendê-
los desde o momento em que nasce. Ela pode ser obrigada a sorrir (para
parecer feliz), a balbuciar, a acenar com as mãos, a sentar e a andar, antes
do tempo, para que os pais possam dizer que têm um filho esperto. À
proporção que a criança se desenvolve, essas exigências vão se tornando
mais complexas. O menino terá que ser bom aluno, terá que ser prestativo
e ajudar nas tarefas domésticas, terá que ser calmo e sem exigências, não
deverá falar demais, deverá dizer coisas muito inteligentes e praticar
atletismo. O que não poderá fazer é ser ele mesmo. A grande quantidade
de transações que ocorrem entre as crianças e seus pais negarão a
necessidade Primal natural da criança e ela sofrerá com isso, não podendo
ser quem é e ser amada. A essas dores profundas eu chamo de Dor Primal
(ou Dores). A Dor Primal engloba as necessidades e sentimentos que são
reprimidos ou negados pela consciência, fazendo sofrer por não poderem
ser exprimidos ou satisfeitos. Todas essas Dores podem ser resumidas
nesta frase:
Eu não sou amada e nem posso ter esperança de receber amor enquanto
for eu mesma.
Cada vez que uma criança não é acalentada quando necessita sê -lo, cada
vez que se exige seu silêncio, cada vez que é ridicularizada, ignorada ou
obrigada a um comportamento além de sua capacidade, aumenta o volume
de seu poço de sofrimentos, que chamo de Poço Primal. Cada adição a este
poço torna a criança mais falsa e neurótica.
À proporção que aumentam os assaltos ao sistema, a verdadeira
personalidade começa a ser destruída. Um dia acontecerá alguma coisa
que, mesmo não tendo um conteúdo traumatizante, poderá perturbar o
equilíbrio entre o eu falso e o verdadeiro, tornando a criança neurótica. A
tal acontecimento eu dou o nome de Cena Primal principal. É nessa época
da vida da criança que todas as humilhações passadas, as negações, as
privações se somam numa compreensão incipiente: "Não há esperança de
ser amado pelo que sou." Então ela se defende contra essa catastrófica
descoberta, dissociando-se de seus sentimentos, e entregando-se à
neurose. Essa descoberta não é consciente, e a criança até começa a
comportar-se, tanto em casa como socialmente, do modo desejado pelos
pais, falando e fazendo como eles. Quando se comporta desse modo, está
agindo de forma falsa, isto é, não age de acordo consigo mesmo, com suas
próprias necessidades e desejos. Dentro de pouco tempo o comportamento
neurótico se torna automático.
A neurose implica no desligamento, no split, dos próprios sentimentos.
Quanto maior for a violência dos pais sobre a criança, mais profund o será
o abismo entre o eu verdadeiro e o falso. A criança começará a andar do
modo indicado, só tocará seu corpo nas áreas permitidas, não será
exuberante ou triste, conforme a exigência, e assim por diante. O split é,
contudo, necessário a uma criança fraca. É o modo reflexivo (isto é,
automático) do organismo manter sua sanidade. A neurose é pois a defesa
contra a catástrofe da realidade a fim de proteger o desenvolvimento e a
integridade psicofísica do organismo.
A neurose implica em ser o que não se é, a fim de se obter o que não existe.
Se existisse amor, a criança seria o que é, pois é isso o amor: deixar que a
pessoa seja aquilo que é. Portanto não é necessário acontecer nada
terrivelmente traumatizante para produzir uma neurose, já que ela pode
aparecer quando se força uma criança a dizer "por favor" e "obrigada"
sempre que pronunciar uma frase, a fim de provar que seus pais são
pessoas finas e educadas. Também pode aparecer como uma consequência
de não se permitir que a criança se queixe ou chore quando se sente infeliz.
Os pais podem se precipitar para a criança e consolá-la por ansiedade.
Podem não permitir que demonstre raiva, "meninas bem educadas não
fazem cenas", "meninos bem educados não respondem aos mais velhos".
Também pode ser uma fonte de futuras neuroses o hábito de se exigir da
criança que recite poesias nas reuniões em casa de amigos, ou de obrigá -la
a resolver problemas abstratos. Qualquer que seja a forma que tome a
exigência, a criança logo compreenderá o que se espera dela. Ou concorda,
ou então é castigada: não recebe amor, ou o que passa por ser amor,
aprovação, carinho, um sorriso. A criança acaba habituando-se a
representar e sua vida se transforma em um ritual a serviço das exigências
paternas.
O que causa o split é o amargo desespero de não ser nunca amada. A
criança tem, então, que negar essa compreensão de que suas necessidades
não serão nunca satisfeitas, por mais que se esforce. Ela não pode viver
sabendo que é desprezada ou que ninguém está realmente interessado
nela. Para ela é intolerável saber que não há um meio de fazer com que o
pai seja menos crítico e a mãe mais amorosa. A única maneira que encontra
para se defender disso tudo é desenvolvendo necessidades substitutas que
são neuróticas.
Tomemos como exemplo um menino que está sempre sendo censurado
pelos pais. No colégio ele poderá falar sem parar (e sofrer a repreensão do
professor); no recreio ele poderá se vangloriar ininterruptamente
(alienando as outras crianças). Mais tarde, poderá desenvolver um desejo
incontrolável e exigir em altos brados algo que seja tão patentemente
simbólico (para os que o observam) como "a melhor mesa do salão" em um
restaurante de luxo.
O lugar na mesa não poderá desfazer a "necessidade" que ele tem de se
sentir importante. Se assim for ele não precisará comportar-se de tal forma
toda vez que entrar num restaurante. Dissociado de sua verdadeira
necessidade inconsciente (a de ser reconhecido como um ser humano
digno de atenção), ele procura dar "sentido" à sua existência sendo
cumprimentado pelo nome nos vários restaurantes e hotéis de luxo que
frequenta.
As crianças nascem, pois, com necessidades biológicas reais 2 que, por um
ou outro motivo, seus pais deixam de satisfazer. Pode ser que alguns pais
e mães não reconheçam as necessidades de seus filhos ou que tais pais,
com o desejo de não cometerem qualquer erro, sigamos conselhos de
alguma célebre autoridade em educação e só segurem os filhos em horas
certas, alimentando-os pelo relógio, com uma pontualidade que faria
inveja a uma companhia de aviação, desmamando-o segundo uma tabela
prescrita, e educando suas necessidades fisiológicas o mais cedo possível.
No entanto eu não acredito que a ignorância ou a metodologia possam ser
responsáveis pela prodigiosa safra de neuroses que a humanidade vem
produzindo desde que a história começou. A principal razão das crianças
tornarem-se neuróticas, segundo pude descobrir, é que seus pais estão
empenhados em uma luta contínua contra suas próprias necessidades
infantis insatisfeitas.
Sendo assim uma mulher pode engravidar a fim de ser acalentada, que é
realmente o que ela sempre quis durante toda sua vida. Enquanto for o
centro de atenção, ela sentir-se-á feliz. Quando tiver a criança, poderá
sentir-se deprimida. A gravidez servirá à sua necessidade, não tendo
relação alguma com o parto de um novo ser humano sobre a terra. A
criança poderá até sofrer por ter nascido, privando sua mãe de gozar a
única época de sua vida em que conseguiu fazer com que outras pessoas se

2
Muitos pais cometem o erro de não tirar do berço a criança com medo de "estragá-la", e é
exatamente isso que acontece quando a ignoram. Mais tarde a criança irá exigir deles, de um
modo insaciável, substitutos simbólicos desses gestos, até o momento em que os pais se cansem
de atendê-la. E a consequência disso é tanto inevitável como terrível .
interessassem por ela. Como ela não está preparada para a maternidade,
seu leite poderá secar, deixando o recém-nascido com a mesma sensação
de privação que ela mesma sentiu.
Dessa maneira os pecados dos pais recairão sobre os filhos em um ciclo
aparentemente interminável.
Eu chamo de luta a tentativa da criança para agradar aos pais. Essa luta
começa com os pais e mais tarde se generaliza e abrange todo o mundo,
espalhando-se para além da família pois o indivíduo carrega consigo suas
necessidades insatisfeitas, que têm de ser equacionadas. Ele procurará pais
substitutos com os quais representará seu drama neurótico, ou fará com
que qualquer pessoa (até mesmo seus filhos) tome o lugar dos pais que
satisfarão suas necessidades. Se o pai foi um indivíduo reprimido, que
nunca pôde manifestar-se verbalmente, seus filhos saberão ouvi-lo. Eles, a
seu turno, sendo obrigados a ouvir, procurarão alguém que os ouça para
satisfazerem sua necessidade suprimida. Esse alguém poderá muito bem
ser o seu próprio filho.
O campo da luta pode se transferir da necessidade verdadeira para a
neurótica, do corpo para a mente, pois as necessidades mentais ocorrem
quando as necessidades básicas são negadas. Mas as necessidades mentais
não são necessidades reais. Em verdade, não existem necessidades
puramente psicológicas. As necessidades psicológicas são necessidades
neuróticas porque não atendem às verdadeiras exigências do organismo.
Por exemplo, o homem que tem que ter a melhor mesa do restaurante para
se sentir importante está agindo baseado em uma necessidade que se
desenvolveu devido à falta de amor em sua vida, porque seus esforços
verdadeiros foram ignorados ou suprimidos. Ele pode ter necessidade de
ser reconhecido pelo nome pelos maîtres porque anteriormente ele era
apenas mencionado numa categoria como "filho". Isso quer dizer que ele
foi desumanizado pelos pais e está tentando obter simbolicamente uma
reação humana através de outras relações. Se tivesse sido tratado por seus
pais como um ser humano único, seria menor sua necessidade de se sentir
importante. O que o neurótico faz é dar rótulo novo (a necessidade de se
sentir importante) às antigas necessidades inconscientes (ser prezado e
amado). Com o tempo eles acabarão acreditando que esses rótulos são
sentimentos verdadeiros e que sua busca é necessária.
A fascinação de vermos nossos nomes em letreiros luminosos ou nas
páginas de publicações é uma das indicações de uma profunda privação de
reconhecimento como indivíduo. Essas realizações, não importando seu
valor real, são uma busca simbólica do amor dos pais. A luta passa a ser a
tentativa de agradar a uma determinada plateia.
É essa luta que faz com que uma criança não se sinta impotente. Ela pode
ser representada pelo excesso de zelo nos estudos ou no atletismo. A luta
é a esperança do neurótico de receber amor. Em vez de ser ele mesmo, ele
luta para ser uma outra versão de si mesmo. Mais cedo ou mais tarde a
criança passa a acreditar que essa versão é o seu verdadeiro eu. O "ato" já
não é mais voluntário e consciente mas sim neurótico.
A Cena Primal

Há duas espécies de Cena Primal: a principal e a secundária. A Cena Primal


principal é o acontecimento isolado e devastador na vida da criança. É
aquele momento de solidão cósmica e gélida, a mais amarga de todas as
epifanias. É o instante em que ela começa a compreender que não é amada
pelo que é e não o será.
Anteriormente à Cena Primal, a criança já passou por um sem-número de
experiências secundárias nas quais foi ridicularizada, rejeitada, esquecida,
humilhada, obrigada a representar. Chega finalmente o dia em que todos
esses acontecimentos deletérios começam a ter um sentido para a criança.
Um acontecimento crucial parece somar todas essas experiências
passadas: "Eles não gostam de mim como sou." Essa é uma explicação
catastrófica, que é negada e abafada, e em seu lugar começa a luta do falso
eu. Deste momento em diante a experiência será protegida por essa frente
de modo que a criança muitas vezes não saberá quando está sofrendo. Sua
luta encobrirá sua Dor.
Alguns pacientes conseguem lembrar uma cena crucial que foi a soma de
todas as outras cenas secundárias anteriores. Para outros, houve apenas
um lento e monótono acréscimo de pequenos traumas, cada um deles
insignificante em si, mas que um dia se transformam em uma brecha de
grandes proporções, brecha essa que pode acontecer de um modo
dramático na forma de uma cena principal ou simplesmente como o
resultado de um acúmulo de cenas secundárias, e faz com que um dia a
criança se torne mais falsa do que verdadeira.
O split ocasionado por essa cena principal significa o fim da criança como
um ser integrado e entrosado.
A Cena Primal principal geralmente ocorre entre os cinco e os sete anos de
idade. É nessa época que a criança aprende a generalizar partindo de
experiências concretas. É nessa época que a criança começa a entender o
significado de cada acontecimento isolado já sucedido.
A cena principal não é necessariamente traumática, de um ponto de vista
objetivo. Não é preciso que seja um acidente de automóvel ou de avião. É
mais que tudo uma compreensão, uma visão rápida e brutal da verdade
que aparece para a criança durante um acontecimento que pode ser até
vulgar. Um paciente, por exemplo, lembra-se de ter chamado a mãe,
quando era bem pequeno, e de ter sido atendido pelo pai a quem temia,
em lugar da mãe. A visão foi: "Minha mãe nunca vem quando eu preciso
dela". Esse raciocínio tinha por base as muitas vezes em que ele chamou
pela mãe para lhe pedir um copo de água. Ela nunca vinha. Era seu pai que
vinha. Um dia ele descobriu que sua mãe nunca viria quando ele precisasse
dela. Sentiu-se então partido ao meio, pois querer a mãe e pedir que ela o
atendesse era chamar o temido pai e receber seu castigo por estar dando
trabalho. Portanto querer era receber o que não queria. Ele nunca mais a
chamara pretendendo poder viver muito bem sem mãe, até o dia, em meu
consultório, em que no meio de grande sofrimento chamou "mamãe!"
As cenas secundárias são simplesmente pequenos acontecimentos que
atingem o eu verdadeiro como críticas ou humilhações até que um dia
acontece uma cena principal e o eu se rompe com a tensão.
É possível que uma Cena Primal principal possa ocorrer durante os
primeiros meses de vida. Isso acontece quando o evento é tão desastroso
que acriança pequena não podendo defender-se tem que sofrer um split a
fim de sobreviver à experiência. Esse evento produzirá uma rotura
irreparável que durará até ser revivida outra vez em toda a sua intensidade.
Um exemplo disso é a criança que é separada dos pais muito cedo e criada
num orfanato.
A Cena Primal pode ser um dado significativo pois representa centenas de
experiências semelhantes, cujo resultado é sempre um grande sofrimento.
Por isso, quando tais cenas são revividas durante a Terapia Primal, trazem
em consequência um dilúvio de lembranças associadas. O que liga todos
esses eventos é um sentimento (tal como "Não há ninguém que possa me
ajudar").
Vejamos alguns exemplos de Cena Primal. A seguinte narração é a principal
cena na vida de Nick. Quando tinha seis anos de idade, a Segunda Grande
Guerra tinha terminado e seu pai havia voltado para casa, tendo sido
desligado do Exército. Aquele seria o primeiro Natal que a família passaria
junta desde Pearl Harbour, sendo por isso uma ocasião muito festiva. Nick
esperava por aquele dia com a intensidade que só os muito pequenos
possuem. Ele comprou uma gravata para o pai, embrulhando-a da melhor
maneira possível, com um cartãozinho que ele mesmo desenhou. Às duas
horas da tarde todos os presentes tinham sido abertos, menos o que ele
dera ao pai. Às três todos estavam comendo o peru recheado exceto Nick.
Seu pai ignorara completamente seu presente.
Finalmente alguém o descobriu debaixo da árvore e o trouxe para a sala de
jantar. Como contou Nick: "Meu pai estava bêbado, e logo que viu o
embrulho começou a fazer pilhérias. — Será um automóvel? O que poderá
ser isso? Será uma lancha? Não. Isso só pode ser um aeroplano,
embrulhado de um jeito tão grosseiro! É claro que é um aeroplano! Todos
riram muito e eu tive vontade de sumir dentro do chão. Quando meu pai
bebia era implacável. Ele fingiu que não sabia de quem era o presente,
embora o cartão dissesse "Papai", e eu fosse o único filho. Finalmente ele
acabou abrindo o embrulho, e então veio até onde eu estava sentado,
balbuciando "Minha vida, meu amor, de todos os milhões de gravatas em
meu guarda-roupa, esta vai ser para todo o sempre a minha favorita..."
Coisa assim. Ele empilhou insulto sobre insulto. Finalmente quando ele
disse pela quinta vez, 'Você não deveria ter gasto o seu dinheiro com seu
velho pai', eu não aguentei mais, levantei-me e saí correndo da mesa,
pensando: Eu não devia mesmo! Você está danado de certo!
Objetivamente, num mundo cuja dieta diária consiste de bombas atômicas,
campos de concentração e genocídio, muito pouca coisa aconteceu
naquela tarde de Natal. No entanto foi o suficiente, como a última gota
d’água, para condenar um homem a quase um quarto de século de
distúrbios nervosos, aberrações sexuais e profundas crises de depressão.
Para Nick, aquela gravata simbolizou o sentimento de que "Nada que eu
faça será suficiente para fazer você gostar de mim, papai!"
A Cena Primal principal traz à tona centenas de incidentes que destroem
todas as esperanças da criança. Desde o dia em que ocorrem, os
sentimentos verdadeiros se galvanizam formando o falso eu, e assim a
criança sentirá dificuldade em reconhecer muitos de seus sentimentos.
(Assim, depois de chegar à puberdade, Nick disfarçou sua necessidade de
ter um pai amoroso dedicando-se a fantasias homossexuais.) O verdadeiro
eu, além de tudo, suprime esses mesmos desejos verdadeiros de modo que
não podem ser relacionados e equacionados. ("Objetivamente", Nick sentia
pelo pai alcoólatra apenas um grande desprezo.) A Cena Primal principal é
um salto qualitativo em direção à neurose.
Antes do Dia de Natal de 1946, já Nick havia estado tenso. Depois, a tensão
não se evaporou, do mesmo modo que suas necessidades e sentimentos
reprimidos não desapareceram, já que ficaram dentro dele, codificados no
seu cérebro na forma de lembranças reprimidas que permearam todo seu
sistema físico, mantendo-o tenso. Essa tensão impediu-o de entender o seu
comportamento, impelindo-o na luta para preencher simbolicamente
aquela necessidade com o homossexualismo. Pode-se ver claramente,
portanto, que o cerne da luta neurótica é a esperança, a esperança de que
suas ações vão trazer-lhe amor e carinho. Essa esperança deve, no entanto,
ser falsa, pois força-o a tentar buscar através da luta neurótica algo que
simplesmente não existe: pais amorosos. O neurótico tenta converter o
mundo em pais interessados, amigos e atuantes. Se eles em verdade
tivessem sido pessoas assim essa luta não teria sido necessária.
Depois da crise de uma Cena Primal principal podem ocorrer muitas
centenas de experiências danosas no decorrer da vida em família. Cada
uma delas aumenta o abismo e aprofunda a neurose. Cada uma delas torna
a criança menos verdadeira. Um outro paciente meu sofreu uma Cena
Primal mais dramática.
Peter, com seus quatro anos de idade, era frequentemente espancado por
seu pai pelos motivos mais variados. Ele sofria as surras sentindo que devia
ter feito coisas terríveis para merecê-las. Um dia, quando estava fazendo
compras com sua mãe, houve um acidente e o carro da família foi avariado.
Quando Peter chegou em casa com a mãe, seu pai estava esperando por
eles, furioso. "Como é que você pôde ser tão estúpida?" foi sua primeira
pergunta. Ainda assustada pelo acidente a mãe de Peter começou a chorar,
aumentando ainda mais a raiva do pai. Finalmente ele a esmurrou,
jogando-a ao chão. Gritando, o garotinho atirou-se sobre o pai, segurando-
lhe o braço que estava em posição para um novo murro. O pai de Peter
segurou-o e depois de sacudi-lo jogou-o de encontro à parede. Naquele
momento Peter compreendeu que seu pai poderia matá-lo se ele o
provocasse.
Desse dia em diante o menino teve que prestar atenção em cada palavra
que dizia na frente do pai, em cada movimento que fazia. Sua infância
tornou-se uma época de terror, em que procurava continuamente aplacar
a ira do pai. Mas ele ainda tinha a mãe para ampará-lo. Porém ela, depois
de um certo tempo, não suportando a vida com aquele homem brutal
começou a beber até ter de ser internada num hospício. Depois que foi
levada de casa, Peter compreendeu que aquilo era "o fim". E de fato foi o
fim de Peter como um ser normal, integrado. Durante os vinte anos que se
seguiram ele comportou-se de forma simbólica com todas as pessoas que
encontrava. Ele representava o sentimento "Por favor, não me bata,
papai!" e esse sentimento envenenou todos os aspectos de sua vida.
Um outro exemplo de neurose começando como um estado de espírito e
que parece inócuo é o de Anne e sua Cena Primal principal.
Um dia, quando tinha seis anos, Anne foi apanhada por uma chuvarada.
Uma mulher de sua vizinhança encontrou-a toda molhada e tremendo de
frio. Levou a menina para sua casa e aqueceu-a junto à lareira,
acalentando-a. Anne subitamente sentiu-se "esquisita", e, sem uma
palavra de agradecimento à boa senhora, fugiu da casa e saiu correndo na
chuva. Em seu quarto ela soluçou durante quase uma hora e não soube
explicar à sua mãe o motivo de seu choro. Ela apenas sentia-se angustiada.
Depois, enxugou as lágrimas e desceu, indo ajudar a mãe a fazer o jantar.
Foi apenas isso o que aconteceu. Essa foi sua Cena Primal principal. No
entanto foi mais traumática do que qualquer surra, já que não podia ser
integrada e compreendida.
Antes do dia da chuva, Anne já havia apanhado por dizer nomes feios, por
se sujar, porque rasgava as roupas e todas essas coisas que acontecem
normalmente a qualquer um de nós. Em todas essas ocasiões ela achara
que havia agido de maneira errada, pedira desculpas e continuara vivendo
sua vida. Mas sentira completamente todas essas experiências. No dia da
chuva, no entanto, ela não fizera coisa alguma errada. Não houve
necessidade de desculpas, nada que pudesse explicar o porquê daquilo que
então sentira.
O carinho da vizinha mostrou-lhe o vazio da vida. Ela teve uma visão do que
nunca tivera em casa, de um momento dedicado a ela, de carinho, conforto
e compreensão, e entendeu que nunca poderia ser o que era e alcançar o
amor de sua mãe. Saiu então correndo para ir chorar em casa antes de
compreender completamente o que lhe acontecia, antes do impacto
devastador daquele "nunca" ser sentido.
Depois de chorar, quando a menininha desceu para ajudar a mãe, sua vida
verdadeira cessou. Exteriormente ela se tornou delicada, meiga, atenta. As
tensões internas começaram a se avolumar.
Ela tentava libertar-se de seu desconforto ajudando a mãe que estava
sempre doente. Ofereceu-se para tomar conta do irmão menor. Lutou e a
tensão aumentou, assim como a sua neurose. Ela não queria tomar conta
do irmãozinho, ela queria ser cuidada e acalentada. Ela não queria lavar os
pratos, ela queria ir brincar. Mas cedia às exigências da mãe e se
acomodava. Levou toda uma vida tentando converter a mãe naquela boa
vizinha que lhe oferecera amor sem quid pro quo. A luta impediu -a de
sentir a verdade, isto é, que sua mãe não iria nunca ser a pessoa amorosa
que ela necessitava. A menininha fora aprisionada.
Se deixasse de agir com delicadeza e sujeição, desencadearia o
ressentimento de sua mãe por ter que ser mãe. A humildade de que a
"mamãe" fosse a menininha enquanto ela mesma adotava o papel de mãe.
Foi por essa esperança 3 falsa que Anne carregou a sua cruz. Ela esperava
que algum dia tivesse uma recompensa e portanto lutava pelo amor
imaginário de sua mãe, mas a única coisa que recebeu foram os pratos para
lavar.
Nesse caso, a Cena Primal foi um acontecimento que não foi
completamente vivido, permanecendo desligado e sem ser equacionado.
Isso não quer dizer que só durante uma época de nossas vidas é que se
produzem neuroses, mas sim que naquele momento, isto é, na Cena Primal
principal, é estabelecido um curso inalterável, e cada novo trauma aumenta
o abismo entre o eu verdadeiro e o falso.
A principal Cena Primal é a ocasião em que o acúmulo de pequenos
sofrimentos, rejeições e supressões se congelam para formar um novo
estado de espírito, a neurose. É a época em que a criança começa a
compreender que para poder viver tem que abdicar de parte de si mesma.
Essa compreensão, dolorosa demais para ser suportada, nunca é
completamente consciente, de modo que a criança começa a agir
neuroticamente sem uma centelha de entendimento do que está
acontecendo consigo.
Como acabamos de ver, algumas das cenas principais podem ser
dramáticas. Outras não o são necessariamente. Quando a mãe diz: "Se você
fizer isso outra vez eu vou mandá-la embora", não é propriamente a cena;
é o seu significado que é devastador para a criança. Uma ameaça

3
A esperança é amplamente inconsciente e geralmente nem é percebida. Ela é, em verdade,
exteriorizada na luta.
aparentemente sem gravidade ou uma pequena surra pode ser
subjetivamente tão traumatizante como ser mandada para o orfanato.
O Eu Verdadeiro e o Falso

Embora faça referência a um eu verdadeiro e a um eu falso devo lembrar


que ambos são aspectos de um mesmo eu. O eu verdadeiro é o eu natural,
o que éramos até descobrirmos que nossos pais não nos aceitavam assim.
Nós nascemos verdadeiros. E ser verdadeiro não é algo que necessite de
esforço.
A carapaça que usamos para envolver nosso eu verdadeiro é o que os
freudianos chamariam de Sistema de Defesa. Mas os freudianos acreditam
que um sistema de defesa é uma necessidade dos humanos e que "uma
pessoa saudável e integrada" é aquela que possui um sistema de defesa
bastante forte. Eu vejo o ser normal como uma pessoa totalmente sem
defesas, uma pessoa sem um eu falso. Quanto mais forte for o sistema de
defesa, mais doente é a pessoa, isto é, mais falsa ela é.
O faquir que anda sobre brasas ou dorme numa cama de pregos é um
exemplo típico do modo como o verdadeiro eu é suprimido. Todos os dias,
em minhas atividades de terapeuta, eu vejo pessoas que conseguiram fazer
um completo split de sua personalidade como uma proteção contra a Dor,
e que já não mais sentem seu sofrimento psicológico assim como o faquir
não sente a dor física.
De vez em quando o neurótico tem uma visão de si mesmo. Uma doença
ou umas férias impedem-no de lutar e ele é subitamente confrontado
consigo mesmo. Algumas vezes isso produz sintomas psiquiátricos, ele se
sente despersonalizado, esquisito, como se tivesse perdido o rumo de sua
vida. Essa despersonalização é muitas vezes o começo da realidade e ele
começa a perceber que seu eu verdadeiro é uma espécie de força que lhe
é estranha. Geralmente ele bate em retirada para sua habitual falsidade e
logo sente-se novamente como "era antes". Se pudesse dar um passo à
frente, se conseguisse sentir a realidade de sua falsidade, creio que poderia
tornar-se verdadeiro.
Então, no neurótico, o eu verdadeiro está trancado junto da Dor original.
Por isso é preciso que sinta a Dor a fim de libertar-se. A Dor faz com que o
eu falso se desmorone, do mesmo modo que a negação da Dor criou esse
eu falso.
O eu falso é um sistema de superposição, por isso o corpo parece reje itá-
lo como rejeitaria um corpo estranho. O esforço é sempre no sentido do eu
verdadeiro. Como os pais neuróticos não nos permitem sermos
verdadeiros, nós escolhemos um caminho complicado, isto é, neurótico,
para chegar à realidade. A neurose é justamente o modo falso com que
tentamos ser verdadeiros.
O sistema falso é que torce o corpo deformando-o, e tendo como resultado
o impedimento do desenvolvimento, do crescimento. Ele suprime o
verdadeiro sistema endócrino ou o superestimula desnecessariamente. Ele
causa uma tensão indevida a vários órgãos vulneráveis, causando explosões
periódicas. Para resumir, o sistema falso é total: não é apenas um
comportamento isolado. Ser neurótico significa não ser totalmente
verdadeiro. Portanto, parte alguma do organismo pode funcionar
suavemente, de um modo normal. A neurose é tão abrangedora como a
normalidade, pois se difunde em todas as ações, em todas as atitudes do
indivíduo.
Há um modo do neurótico atingir o âmago de sua luta simbólica a fim de
enfrentar a Dor que o impulsiona. É a esse processo que eu chamo de
Terapia Primal, e que é o ataque sistemático ao falso eu, ocasionando por
fim uma nova espécie de vida, a normalidade, do mesmo modo que os
ataques originais ao eu verdadeiro produziram um novo estado de espírito,
a neurose. A Dor é tanto a porta de entrada como a porta de saída.
DISCUSSÃO
A Teoria Primal encara a neurose como a síntese de duas personalidades
ou sistemas em conflito. A função do sistema falso é suprimir o verdadeiro,
mas como as necessidades verdadeiras não podem ser erradicadas, o
conflito é interminável. Na tentativa de serem apaziguadas, essas
necessidades se transformam em virtude do sistema falso, de modo que só
podem ser satisfeitas simbolicamente. Os sentimentos reais que se
tornaram dolorosos por não terem sido satisfeitos devem ser suprimidos
para que a criança não seja destruída pela Dor. No entanto,
paradoxalmente, essas necessidades não podem ser satisfeitas se não
forem percebidas.
Se encararmos essas necessidades e sentimentos reprimidos como sendo
uma forma de energia que impulsiona o organismo, poderemos
compreender que o neurótico é como um mecanismo que tem o motor
ligado permanentemente. Nada que ele faça desligará esse motor ligado
até que suas necessidades e sentimentos sejam percebidos em toda sua
agonia e exatamente pelo que são. Isso quer dizer que o sistema falso tem
que ser derrubado para que o verdadeiro encontre expressão.
Um exemplo bem simples como o impedimento de chorar nos primeiros
anos de vida pode elucidar essa discussão. Para onde irão essas lágrimas?
Para alguns elas se transformam em rinite crônica ou sinusite (que
desaparecem quando, durante a Terapia Primal, a pessoa chora com todas
as fibras de seu ser). Para outros, a tristeza suprimida encontra expres são
nos lábios caídos e no olhar melancólico. A necessidade verdadeira nunca
é sentida, pois é representada simbolicamente. É essa representação que
faz com que a pessoa não reconheça sua necessidade, não podendo por
conseguinte equacioná-la. Assim o neurótico continua a negar-se a
satisfação de suas necessidades reais.
O sistema falso transforma as necessidades verdadeiras em enfermidade.
O indivíduo pode se empanzinar de comida para não sentir seu vazio
interior. O alimento simboliza o amor.
A voracidade, então, é um exemplo de uma transferência simbólica.
Quando as necessidades verdadeiras se transformam em necessidades
doentias, elas já não mais podem ser satisfeitas. Isso quer dizer que do
momento que o principal desligamento se dá na Cena Primal principal,
então se criam as duas personalidades em constante contradição dialética.
O eu falso impede a necessidade verdadeira de emergir e de ser satisfeita.
É por isso que, por exemplo, o amor e o carinho de uma professora primária
podem ser apenas um paliativo, e a criança não sentirá a dor enquanto
estiver sendo acarinhada e protegida pela professora interessada nela. Mas
o comportamento da professora não poderá desfazer o split que foi
causado pela rejeição dos pais onipotentes, durante os primeiros e cru ciais
anos da vida da criança. Desde que o split tenha ocorrido, o carinho da
professora poderá apenas ocasionar Dor pelo que a criança nunca recebeu.
A Dor Primal é desligada da consciência porque a consciência disso significa
uma dor intolerável. A Dor Primal é o que a criança sente quando não pode
ser ela mesma. A tensão começa quando a Dor é desligada da consciência.
A Dor então se difunde. Torna-se a pressão dos sentimentos reprimidos e
desligados que lutam para ser libertados. A tensão produz o homem de
negócios, o viciado, o homossexual, cada um deles sofrendo a seu modo
mas tendo desenvolvido uma "personalidade" a fim de procurar diminuir,
e eventualmente amortecer o sofrimento. O viciado é algumas vezes mais
sincero do que os outros dois exemplos citados. Ele geralmente sabe que
sente Dor.
A Dor Primal é a necessidade Primal não satisfeita. A Tensão é o sentimento
dessas duas necessidades desligadas da consciência. A tensão opera na
mente como incoerência, confusão e falta de memória, e no corpo co mo
musculatura tensa e distorções dos processos viscerais. A tensão é a marca
exterior da neurose. Ela impele a pessoa em direção ao equacionamento.
No entanto, não poderá haver equacionamento até que a Dor Primal seja
sentida, isto é, até que seja experimentada conscientemente.
A luta do neurótico é interminável porque aquelas necessidades primitivas
permanecem insatisfeitas. A luta é a tentativa constante para impedir o
organismo de necessitar. No entanto, é essa luta que nos impede de sentir
a grande Dor da necessidade verdadeira e só assim pode equacioná-la. Uma
pessoa pode ser amada por uma dezena de apaixonados e nunca
equacionar a necessidade do amor dos pais. Uma pessoa pode fazer
conferências para milhares de estudantes e continuar sentindo uma
necessidade desesperada de se fazer ouvir e entender pelos pais, uma
necessidade não percebida que fará com que se sinta impelido a fazer
sempre mais e mais conferências. A luta é insatisfatória precisamente
porque é simbólica e não verdadeira.
Qualquer necessidade verdadeira ou qualquer sentimento reprimido que
tenha raízes nas relações primárias com os pais têm que ser equacionados
simbolicamente quando não são dirigidas para eles. A função da Terapia
Primal é auxiliar as pessoas a serem verdadeiras levando-as abaixo das
atividades simbólicas em direção aos seus sentimentos verdadeiros. Isso
quer dizer, auxiliar as pessoas a quererem o que necessitam. Uma criança
em desenvolvimento normal quer o que necessita porque sente tais
necessidades. Ao se tornar neurótico essas necessidades e desejos sofrem
um split (pois ele não pode ter o que necessita) e passa a querer o que não
necessita. Para o adulto isso pode tomar a forma de um desejo de bebidas
alcoólicas, de drogas, roupas, dinheiro, que são procurados como um alívio
para a tensão das verdadeiras necessidades não reconhecidas. Mas nunca
haverá bebida suficiente, ou roupas, ou dinheiro para preencher o vácuo.
3 - A DOR

Para chegarmos a entender a Teoria Primal e a Terapia Primal será


importante saber como reagiremos à dor. Tentarei mostrar em breves
palavras os resultados de pesquisas que muito contribuíram para a
formulação da teoria.
E. H. Hess, ao investigar a contração e dilatação das pupilas, quando
submetidas a certos estímulos, descobriu que a contração tem lugar
quando o estímulo é desagradável e a dilatação quando ele é agradável. 4
As pupilas das pessoas que se submetiam ao estudo contraíam-se quando
lhes eram apresentadas fotografias de cenas de torturas e havia uma
constrição automática e involuntária quando se lhes pedia que lembrassem
de tais cenas dolorosas. Acredito que isso mesmo acontece de forma
generalizada quando uma criança presencia cenas desagradáveis. Temos
então que a fuga da dor é uma reação total do organismo que envolve os
órgãos sensoriais, os processos cerebrais, o sistema muscular, etc., como
foi o caso com as experiências de Hess.
Eu afirmo que a fuga às grandes dores é uma atividade humana reflexiva
que vai desde retirar repentinamente a mão de um fogão quente até evitar
olhar para cenas especialmente horrorosas num filme tenebroso como se
quiséssemos esconder do ego os sentimentos e pensamentos dolorosos. Eu
acredito que este princípio é intrínseco ao desenvolvimento das neuroses.
Na Cena Primal, então, o organismo da criança fecha-se contra a plena
percepção e torna-se inconsciente dessa percepção da mesma forma que
uma dor suficientemente física pode tornar inconsciente até mesmo os
mais valentes. A Dor Primal, a mágoa não experimentada, e a neurose
podem ser vistas desse ângulo como um reflexo: a instantânea reação à
Dor de todo o organismo.
T. X. Barber já fez experiências fisiológicas com pacientes sob hipnose.
Eram pessoas aparentemente despertas que eram submetidas a um

4
E. H. Hess e J. M. Polt, "Pupil Size in Relation to Interest Value of Visual Stimuli", Science, Vol.
132 — 1960.
estímulo doloroso depois de hipnoticamente informadas que nada
sentiriam. Diziam então não sentir dor alguma, embora todas as medidas
físicas indicassem que estavam reagindo a ela. Em outras experiências
ocorriam mudanças eletroencefalográficas em pessoas hipnotizadas e
submetidas à dor embora informassem nada sentirem. 5
O que isso indica em termos de Teoria Primal é que o corpo e o cérebro
estão constantemente reagindo à dor, até mesmo quando a pessoa não se
dá conta que está sendo atacada por ela. As medições fisiológicas mostram
que os corpos das pessoas continuam a reagir aos estímulos dolorosos
mesmo depois de estarem sob a ação de analgésicos. A reação física à dor
e o fato de a percebermos são dois fenômenos distintos.
Quando o corpo reage fechando-se contra uma dor intolerável, ele precisa
de alguma coisa para conservar escondidas e suprimidas as Dores Primais.
A neurose desempenha essa função. Ela desvia o sofredor de sua Dor
incutindo-lhe esperança, isto é, sobre o que ele pode fazer para satisfazer
suas necessidades. Uma vez que o neurótico tem necessidades tão
urgentes, embora não realizadas, suas percepções e cognições devem ser
afastadas da realidade.
O conceito do bloqueio da dor é importante para a minha hipótese, porque
eu acredito que o sentimento, ou a sensação, é unitário, é um processo
total do organismo, e quando nós bloqueamos grandes sensações críticas
como as Dores Primais, nós estamos também criando dificuldades à nossa
possibilidade de sentir.
As sensações primais são como um depósito gigantesco de onde nos
servimos. As neuroses são o tampo desse depósito. Elas servem para
suprimir quase todas as sensações, todos os prazeres e todas as dores. É
por isso que todos os pacientes que já passaram pela Terapia Primal dizem
sempre que já estão novamente em condições de sentir. Dizem que
realmente sentem prazer novamente, pela primeira vez desde a infância.
Essa noção de um depósito de Dor dentro do neurótico é mais alguma coisa

5
T. X. Barber e J. Coules, "Electrical Skin Conductance and Galvanic Skin Response During
Hypnosis", International Journal of Clinical and Experimental Hypnosis, Vol. 7 (1959).
do que uma simples metáfora, pois é o que geralmente dizem os pacientes
Primais de uma forma ou outra, como se carregassem dentro deles um
depósito de dor devidamente esterilizado. Por exemplo, cada vez que o pai
espanca o filho, o que ele sente é: “Papai, por favor, seja bom para mim!
Por favor, não me faça ter medo de você!'' Acontece, porém, que a criança
não diz isso por diversas razões. Geralmente ela está tão preocupada com
a situação que não chega a se dar conta de seus sentimentos, e mesmo que
se desse, a sua sinceridade ao confessar ao pai que tem medo dele
redundaria talvez em um maior castigo. Sendo assim, ela esconde seus
sentimentos mostrando-se mais disposta a submeter-se, a agradar
comportando-se com mais delicadeza.
As Dores Primais vão-se armazenando uma a uma em lâminas empilhadas
de tensões que procuram libertar-se, mas isso só pode acontecer desde
que haja ligações com suas origens. Não será preciso reviver cada
incidente, mas é preciso que exista a sensação geral ligada aos
acontecimentos. No caso acima, quando a sensação está ligada ao pai, a
pessoa será bombardeada com uma lembrança depois da outra, de quando
teve medo de seu pai, já que todas elas estão armazenadas no “depósito."
Isto é uma prova da existência de Cenas Primais de importância capital que
representam muitos acontecimentos, cada um deles ligados à sensação
central.
O processo Primal é um esvaziamento metódico do depósito das Dores.
Quando o depósito se esvazia eu considero a pessoa curada.
Por baixo de todas as Dores Primais está a necessidade de sobreviver. A
criança faz o que os pais mandam tentando agradar-lhes. Um paciente
explicou: "Eu me eliminei de mim mesmo. Matei o pequenino Jimmy
porque ele era bruto, selvagem e barulhento e eles queriam uma coisa
mansa e delicada. Fui obrigado a livrar-me de Jimmy para poder sobreviver
com os pais loucos que tinha. Matei o meu melhor amigo. Fiz um mau
negócio, mas não podia fazer outra coisa."
Desde que nós somos seres humanos unificados, o verdadeiro eu sempre
virá à superfície para estabelecer essas ligações mentais. Se não houvesse
uma necessidade intrínseca de ser íntegro, então poderíamos nos descartar
em definitivo do verdadeiro eu que ficaria tranquilamente dentro de nós
sem jamais tentar intrometer-se no nosso comportamento. O que alimenta
a neurose é a necessidade de ser novamente íntegro, a necessidade de
sermos nós mesmos. O eu que não é real representa uma barreira,
representa o inimigo que deve ser finalmente destruído.
É preciso um grande esforço de parte do Terapeuta Primal para obrigar o
organismo a repetir as Dores primeiras. Por mais que o paciente deseje ver -
se curado, existe sempre uma forte resistência contra a possibilidade de
sentir novamente todas aquelas sensações dolorosas. Aliás, muitos
pacientes sentem medo pensando que vão ficar loucos quando estão à
beira de novamente sentir essas Dores.
Para os nossos propósitos, o aspecto mais significativo da Dor Primal é que
ela permanece encapsulada internamente tão pura e intensa como no dia
em que começou. Permanece a salvo das contingências da vida quaisquer
que tenham sido os acontecimentos. Pacientes com quarenta e cinco anos
de idade continuam a experimentar as mágoas primitivas com a mesma
intensidade devastadora, como se lhes estivesse acontecendo pela
primeira vez aquilo que já lhes acontecera quarenta anos antes. E eu
realmente acredito que assim seja. A Dor nunca foi sentida em toda a sua
extensão pois foi abortada e oculta antes que todo o seu impacto se fizesse
sentir. Mas essa Dor é terrivelmente paciente. Fica nos acicatando,
mostrando-nos que ainda existe, pelas formas mais sutis durante toda a
nossa existência. Raramente pedirá para ser libertada.
O que é mais comum é a Dor passar a fazer parte da tessitura do sistema
da personalidade, onde continua sem ser sentida e até mesmo
irreconhecível. É então que o sistema neurótico faz surgir a Dor.
Isso acontece automaticamente, já que a Dor precisa ser liberada de
alguma maneira, seja ela reconhecida ou não. Essa liberação pode vir
naquele sorriso perpétuo que diz "Seja bom para mim" ou na doença física
que importuna com um "cuide de mim." Pode também mostrar-se
ostensivamente numa reunião social para dizer “tome conta de mim,
papai!" Qualquer que seja a posição atingida por um homem, por mais que
estejam amadurecidas as suas defesas, sempre que arranho um pouco o
verniz da superfície, eu logo encontro por baixo uma criança magoada.
Faço questão de chamar a atenção para o fato da experiência com a Dor
Primal não ser apenas tomarmos conhecimento dela. É o fato de se tratar
da Dor. Uma vez que somos entidades psicofísicas, eu acredito que
qualquer método que separe essa unidade está destinado ao fracasso. As
clínicas dietéticas, as clínicas de locução e até mesmo as clínicas de
psicoterapia são exemplos de isolamento de sintomas para tratá -los como
se fossem isolados do sistema total. A neurose é tanto uma doença
emocional como mental. Para ficar novamente em forma é necessário
reconhecer e sentir o split e soltar o grito que signifique a ligação para
tornar a pessoa novamente unificada. Quanto mais intensamente for
sentido o split mais intensa e intrínseca será a experiência da unificação.
A hipótese Primal se relaciona com o Conglomerado da Dor Primal em tudo
aquilo que nos dói hoje e que não esteja conforme a realidade. A existência
desse conglomerado é o que faz com que as sensações desagradáveis
permaneçam por mais tempo do que seria de se esperar de alguma coisa
trivial embora desagradável.
Nós todos, certamente, conhecemos pessoas de mau gênio que já
amanhecem hostis sem qualquer razão aparente. De onde lhes vêm tais
sentimentos diários? Eu acredito que se abastecem no reservatório das
sensações Primais.
Tudo aquilo que rompe a frente irreal atinge esse conglomerado e produz
uma Dor sempre crescente. Temos um exemplo na paciente cuja mãe
sempre lhe fazia sentir que não era bonita, cujo namorado achava e dizia
com toda a naturalidade que seus bonitos olhos azuis não combinavam com
seus cabelos negros. Essas coisas todas insignificantes despertaram nela o
sentimento de estar sendo rejeitada e do qual não conseguia se livrar,
mesmo sabendo que ninguém lhe queria mal. Usei essa situação para poder
chegar até à sua Dor a que chamo de Primal.
Uma pessoa pode receber dezenas de cumprimentos e elogios numa noite,
mas uma pequena crítica praticamente liquidará todos eles porque terá
servido para despertar sentimentos desde muito guardados de ser ela
desprovida de valor, desprezada, mal querida, etc. Muitas vezes os
neuróticos são atraídos para as pessoas que gostam de criticar,
simplesmente porque podem lutar simbolicamente com representantes de
pais críticos para resolver então problemas anteriores. Esse é o mesmo
processo dinâmico pelo qual alguém pode se ligar a uma pessoa fria e
alheada para, por meio dela, tornar os pais simbolicamente mais calorosos.
Essa é a essência da luta neurótica, ou seja, arquitetar uma situaç ão que se
pareça com a de sua casa para tentar então resolvê-la; casar com um
homem fraco e provocá-lo para tornar-se forte; encontrar um homem forte
e castigá-lo impiedosamente até ele tornar-se fraco e impotente. Por que
será que as pessoas simbolicamente “casam-se" com suas “mamães" ou
“papais"? É para transformá-los em pessoas reais e amadas. Já que isso não
pode acontecer, o resultado é que a luta continua.
Podemos, no entanto, chegar a uma dúvida nesse ponto. “Como vamos
saber que o neurótico sofre realmente uma intensa dor?" Em todos os
casos que vi, independentemente do diagnóstico psiquiátrico, a Dor só
surge depois que a defesa tenha sido esmagada. A Dor está sempre
presente e encontra- se espalhada em todo o corpo num estado tenso
generalizado.
Mas poderá surgir ainda uma outra dúvida. “Como podemos saber que a
pessoa não está simplesmente reagindo ao mal que lhe causa o terapeuta?"
Em primeiro lugar, o terapeuta não causa nenhum mal. É o ataque à defesa
que permite ao paciente sentir a si mesmo, as suas necessidades, seus
desejos e suas mágoas. Segundo, logo que a maior parte da barreira
pensamento-sensação é destruída, a sensação desponta constantemente
de forma espontânea. Terceiro, a dor leva o paciente imediatamente de
volta à sua vida e quase nunca se centraliza no terapeuta.
Por uma curiosa deturpação da razão, nós chegamos ao ponto de acreditar
que aquele que mais tolera a dor é, sem dúvida, o mais forte e o mais
virtuoso. A pessoa que sofre em silêncio é um homem de verdade, é um
durão. No entanto, acontece justamente o contrário, pois o homem que
não é de verdade é quem melhor suporta porque está imune à dor. O que
parece estarmos dizendo é que aquele que mais se sacrifica, que melhor
sabe sofrer, é certamente o ganhador da Corrida Neurótica. Parece existir
uma relação direta entre o autossacrifício e a virtude no homem ocidental,
não somente na nossa vida religiosa onde se exalta a renúncia como
também no costume do homem comum que trabalha duro para sustentar
a família e que talvez morra moço ainda devido ao sacrifício. Essa pessoa
que não encontrou tempo para cuidar de si mesmo, que sempre se
sacrificou, termina a sua vida num autossacrifício. É somente nesse
sentido, creio eu, que se poderia dizer que a irrealidade mata.
4 - A DOR E AS LEMBRANÇAS

Quando o neurótico sofre seu primeiro split, parece que surge uma divisão
no seu sistema de lembranças. Existem lembranças reais que estão
armazenadas junto com a Dor e outras associadas ao sistema irreal. A
função do sistema irreal é separar, filtrar ou bloquear as lembranças que
possam causar a Dor. Cada nova Cena Primal força a criança muito nova a
apagar um pouco a sua experiência, de forma que cada Dor grande tem em
torno dela um aglomerado de associações que são bloqueadas excluindo -
se da plena consciência. Quanto maior for o trauma maiores serão as
probabilidades que ele venha afetar alguns aspectos das lembranças.
A hipótese Primal é que essas lembranças estão armazenadas junto com a
Dor e que reaparecem quando ela é sentida. Os pacientes Primais estão
sempre encontrando surpresas na forma como a terapia consegue reavivar
as lembranças. Houve um caso em que uma mulher começou a sua terapia
revivendo experiências de seus seis meses de idade e em todos os dias
subsequentes durante o tratamento, ela ia revivendo o ano seguinte até
chegar à sua idade na ocasião. Durante todas as sessões as suas lembranças
iam aumentando muito, sem contudo ultrapassar a idade que estava sendo
objeto de exame naquele dia. Assim, quando se lembrava de haver ficad o
no berço, ela também lembrava-se da casa em que morava naquela
ocasião, de seus avós virem brincar com ela e de seu irmão beliscando -a
quando ela não podia reagir.
A lembrança está intimamente associada à Dor. Existe a tendência para se
esquecer aquelas que são por demais dolorosas para serem integradas e
reconhecidas conscientemente. É por isso que o neurótico tem lembranças
incompletas em algumas áreas críticas.
Vou citar algumas sessões em que pacientes reviveram Cenas Primais. Cena
número um: Uma professora primária de trinta e cinco anos vai
desdobrando a cena num crescente frenesi. Está sendo levada num
carrinho pelo corredor. Está escuro. Está sendo carregada para a cama. Está
só. Solta um grito. (Nessa altura ela se curva como se tivesse sido ati ngida
na barriga.) Meu Deus! Vou ficar três anos na cama. Não aguento! Não
aguento!
Essa cena aconteceu na sua lembrança durante o quarto mês da terapia.
Chegara perturbada naquele dia sem saber a razão. À medida que falava e
sentia, sua perturbação aumentava e começou então a falar na terceira
pessoa. "Ela está sendo levada no carrinho pelo corredor." De repente
curvou- se ao mesmo tempo que passava da terceira para a primeira
pessoa. Ocorrera a mudança do eu dividido para o eu singular. E quando
gritou "Não aguento!" já estava se contorcendo de dores. O dia a que ela
se referia era quando havia constatado estar sofrendo de reumatismo
cardíaco e ficara na cama desde os cinco até os oito anos. Aquilo era uma
experiência tão tremenda que ela recorreu ao split para torná-la mais
tolerável, e desde então viu-se vivendo como se fosse duas pessoas
diferentes. Aquilo era como se dissesse: "Isto não está acontecendo
comigo. Está acontecendo com ela."
(Como mostrei acima, nem toda Cena Primal envolve diretamente os pais,
mas se eles forem bons e dedicados, então, qualquer que seja o trauma, eu
acredito que não haverá um split neurótico. Recordo-me da mulher que
lembrava-se das bombas caindo no seu orfanato na fronteira da Itália com
a Iugoslávia. O seu sentimento principal ainda era: "Estou com medo,
mamãe. Onde está você? Volte para me proteger, por favor!" Ela discutiu
esse ponto depois da Primal e disse que a guerra exercera sobre ela um
efeito terrível pois não tinha quem lhe explicasse o que estava
acontecendo, ninguém para agasalhá-la ou protegê-la. Não conseguia se
aguentar sozinha numa idade tão tenra.)
A cena descrita pela mulher com o reumatismo cardíaco era apenas uma
lembrança muito apagada. Lembrava-se de colorir livros, de tomar o leite
na cama, mas nada de substancial. A Dor havia carregado com ela os
aspectos mais profundos das lembranças levando-as para uma área
submersa. Depois de reviver essa cena, ela disse que sentia os músculos da
perna e os ossos dos pés. Reconheceu, de repente, por que sempre e vitara
tudo que era físico em sua vida. Ela havia realmente amortecido não
somente o desejo consciente como também as pernas que serviriam para
satisfazer os seus instintos de correr e brincar.
Foram necessários quatro meses de terapia para despertar essa s
lembranças, mas quando isso aconteceu, tudo foi quase automático, como
se o corpo já estivesse pronto para suportar uma Dor ainda maior e resistir
galhardamente ao impacto. As lembranças vieram no sentido contrário de
como haviam começado. Primeiro havia a lembrança de uma experiência
de split na qual ela conta o que era e o que estava lhe acontecendo. Depois
vieram partes fragmentadas e discretas. Andando no carrinho pelo
corredor, sendo levada para a cama, etc. Essas lembranças soltas eram
como uma espoleta que ia deflagrando uma outra até que vinha então o
momento decisivo e explosivo em que se manifestava o split (quando "ela"
passava a ser "eu") e ela tornava-se novamente íntegra.
Cena número dois. Uma mulher de vinte e três anos recordou-se do
seguinte na sua segunda semana de terapia. "Eu tinha sete anos quando
me levaram para visitar minha mãe num hospital ou coisa parecida. Ainda
vejo o seu roupão azul e os lençóis muito brancos. Vejo seus cabelos
desgrenhados como se não tivessem sido penteados. Sento-me na cama...
Não sei. É só o que consigo lembrar-me." Insisto com ela que, então,
prossegue. "Acho que me sentei ao lado de minha mãe. Olhei para ela...
Meu Deus! Os seus olhos! Os seus olhos! Não sabe quem eu sou. Minha
mãe está louca. Ela está louca!"
A memória ficou muito mais clara. Ela sempre pensara haver sonhado que
a mãe tentara matá-la, mas depois já se lembrava que ela realmente tivera
uma crise em que tentara matar os filhos. Suas lembranças dos
acontecimentos logo se expandiram. Ficou sabendo que sua mãe estava
num hospício. Sempre se lembrava de certos aspectos dos acontecimentos
quando ia ao hospício, quando subia no elevador, etc., mas não conseguia
realmente lembrar de ter visto a mãe e de saber a verdade sobre suas
condições.
Os splits que tiveram lugar nessas cenas podem ser equiparados com
estados de amnésia, não tão dramáticos e completos como os casos de
amnésia que chegam ao nosso conhecimento, mas, se a situação for
completamente inaceitável, como, por exemplo, ao ser violentada pelo pai
(como aconteceu em um de nossos casos Primais), pode haver grandes
áreas onde a Dor desapareceu durante um ou dois anos depois de um
acontecimento. Algumas vezes a hipnose consegue recuperar certas
lembranças antigas pela supressão do fator Dor, mas eu não creio que ela
possa atingir áreas e lembranças onde a Dor seja muito grande. A paciente,
que foi violentada pelo pai quando ainda muito moça, só conseguiu chegar
a tal lembrança depois de umas trinta sessões Primais, e assim mesmo por
estágios.
Um rapaz com vinte e sete anos estava rememorando sua infância durante
a terapia quando tropeçou numa lembrança de haver sido atingido por um
balanço, fato que ele esquecera completamente. A lembrança não era da
mesma intensidade da Dor que então sofrerá. Reviveu a cena na seguinte
ordem: "Não sei por que me sinto tão mal. Ninguém veio me acudir. Eu
fiquei sempre só e ninguém cuidou de saber onde eu estava. Oh, mamãe!
Mamãe! Quero que você goste de mim. Por favor!" Disse então que a razão
por que se esquecera de tal época no lugar em que moravam era porque
não queria se dar conta do quanto era rejeita. E por isso esquecera o
episódio do balanço. A lembrança do balanço atingindo-o não era muito
importante em si. O significado em torno do incidente era catastrófico, e
foi aquela sensação de não haver alguém que o amasse que fez com que
passasse toda a sua vida procurando ser amado. Quando ele, afinal, se deu
conta que sua mãe nunca lhe dera a menor atenção, a lembrança do
balanço voltou então com toda a força e realidade.
As lembranças neuróticas muitas vezes se parecem com sonhos, e a pessoa
pode ter tanto trabalho e dificuldade para lembrar-se de sua infância como
aquele que tem quando se lembra de alguns sonhos. Eu acredito que para
haver lembranças concretas será preciso que haja acontecimentos também
concretos, isto é, o indivíduo deve estar completamente envolvido na sua
experiência e não afastado dela pelo medo ou agitação. Muitos pacientes
passam pela vida sem se dar conta do que se passa em torno dele s. Muitas
vezes chegam a reclamar que a vida passou por eles sem tocá-los. Ela só
aconteceu para a parte irreal deles. Apenas atravessavam a vida sem
participar dela. Geralmente vivem dentro de alguma espécie de barreira
que amortece o impacto da experiência só deixando o que for confortável.
À medida que o paciente Primal começa a penetrar nessa barreira, ele pode
começar a vislumbrar o que realmente significam suas experiências e seu
comportamento que eram antes amortecidos pela Dor.
Eu acredito que as lembranças são suprimidas até o ponto em que elas são
a repetição de elementos parecidos com as Dores das Cenas Primais. Se um
insulto insólito deflagra uma mágoa antiga reprimida, como de sentir -se
estúpido, esse acontecimento pode ser esquecido ou então apenas
vagamente lembrado. A intensidade da lembrança dependerá da relação
que existir entre os sentimentos atuais e a mágoa antiga.
Há muita coisa insinuando que o sistema de lembranças irreais começa com
a inicial e mais importante Cena Primal. Por exemplo, um neurótico pode
ter uma memória fenomenal para datas, lugares e fatos históricos, e até
mesmo para sua própria vida, embora isso só sirva para esconder a frente
irreal que diz, "Vejam como sou um brilhante atuante". Os aspectos mais
profundos de sua memória podem estar totalmente bloqueados. As
lembranças do eu irreal são seletivas e aderem à mente para aliviar a
tensão, para exaltar o "ego". Isso significa que a suposta boa memória de
um neurótico e apenas uma defesa contra a verdadeira memória.
Um caso poderá servir para esclarecer a relação da Dor com a memória.
Uma certa jovem com vinte e poucos anos estava indo muito bem na
Terapia Primal e já tinha tido duas sessões em que se mostrara bem
compreensiva. Ao fim da segunda semana sofreu um sério desastre de
automóvel, fraturou alguns ossos e o diagnóstico era de uma concussão
traumática no cérebro. Depois de recuperar os sentidos nada mais
lembrava do acidente. Os seus médicos duvidavam que viesse a recuperar
a memória do trauma e disseram-lhe que se não se lembrasse do acidente
dentro de algumas semanas, o mais provável seria que nunca mais se
lembraria.
Depois de algumas semanas ela já estava boa o bastante para reiniciar a
terapia. Antes da visita ela começou a ter cólicas de estômago e os
intestinos ficaram paralisados durante três dias. Depois de uma Primal a
respeito de uma grande Dor na sua primeira infância, ela foi
automaticamente lavada à sua dor mais recente que fora o acidente do
automóvel, sem que houvesse qualquer interferência estranha. Passou por
todo o trauma, do princípio ao fim, com todos os detalhes, sem que fosse
preciso qualquer esforço consciente. Viu o carro aproximar-se, ouviu a
colisão, sentiu a pancada na cabeça e deu então aquele grito terrível que
não conseguira dar antes. Discutia sem hesitação todos os detalhes do
acidente.
O que isso indica é que o efeito físico da concussão sozinho não pode
chegar a obliterar a memória mas a Dor que o acompanha pode contribuir
para apagar as lembranças dos acontecimentos catastróficos. Se esta
premissa estiver certa, será possível fazer com que uma pessoa chegue a
recuperar a lembrança de traumas muito sérios, como o estupro, por meio
da Terapia Primal.
Eu não acredito que um neurótico consiga manter um completo sistema de
memória enquanto não se liberar da Dor Primal. Logo depois de passar pela
Terapia Primal parece haver uma nítida melhoria na memória e a maioria
desses pacientes encontram certa facilidade em voltarem para os primeiros
meses de vida para lembrarem-se sucessivamente de todos os incidentes.
É como se todo o sistema da memória fosse de repente escancarado com a
experiência da Dor.
5 - A NATUREZA DA TENSÃO

Em termos Primais, não existe neurose sem tensão. Com isso quero me
referir à tensão que não é natural, que não encontra lugar no ser humano
psicologicamente normal, e não à tensão que é natural e que todos nós
precisamos ter para as atividades de rotina. A tensão não natural é aquela
que é crônica, é a pressão de sentimentos ou necessidades que rejeitamos
ou que não resolvemos. Sempre que discutir a tensão eu estarei me
referindo à tensão neurótica. Eu chamo de graus de tensão àquilo que o
neurótico sente em lugar de suas sensações reais. Quando a tensão é
menor a sensação é boa, para tornar-se má logo que ela aumenta. O
comportamento do neurótico é sempre orientado para que ele se sinta
melhor.
De onde vem a tensão e qual é a sua função? Eu acredito que a tensão,
como parte da neurose, é um mecanismo que sobrevive e que mobiliza
todo o corpo para atingir a um fim ou uma necessidade ou então para
proteger o organismo para que ele não se dê conta de sensações
catastróficas. Em ambos os casos ela tenta sempre manter a continuidade
e a integridade do organismo. Quando não somos alimentados, por
exemplo, isso faz nascer a tensão que nos galvaniza no sentido de ir
procurar alimento para satisfazer nossa necessidade. Se não formos
contidos nem estimulados, a necessidade nos obriga à ação. Se a
necessidade continua nos nossos primeiros meses ou anos, a falta de
satisfação torna-se dolorosa e intolerável, e para suprimir a dor a
necessidade é suprimida, mas continua a existir sob a forma de tensão.
Continuará sendo isso até que seja ligada à consciência e resolvida. Um
movimento suprimido, como parar de correr ou ficar sentado, também
permanecerá sob a forma de tensão até que seja ligado ou resolvido.
Em resumo, qualquer supressão crítica de um movimento ou sensação no
princípio da vida transforma-se em necessidade até que seja sentida e
manifestada e, por aí, resolvida.
O desligamento é mantido pelo medo. O medo se mostra quando a Dor (a
necessidade ou sensação que possa resultar em Dor) está perto do
consciente. O medo provoca para a ação todo o sistema de defesa e produz
todas as maquinações variadas para conservar afastada a necessidade. O
medo é uma reação automática que faz parte do mecanismo de
sobrevivência. Ele prepara o organismo para se defender contra o golpe,
da mesma forma que ficamos tensos quando nos vão dar uma injeção.
Quando o sistema não pode afastar a Dor surge um medo consciente, isto
é, a ansiedade. O medo também não é geralmente sentido de forma
consciente.
Ele torna-se parte do complexo geral de tensões.
Nós sentimos a ansiedade, mas já não sentimos o medo se ele for
corretamente focalizado. Recorremos à ansiedade quando se enfraquece o
sistema de defesa permitindo que o temido sentimento se aproxime da
consciência. Desde que o sentimento não tenha ligação, a ansiedade fica
muitas vezes fora de foco. A base da ansiedade é o medo de não ser amado.
Muitos de nós mantemos afastada a ansiedade criando as espécies de
personalidades que não nos deixem sentir o quanto não somos amados.
A personalidade é o resultado da necessidade de proteção. A função da
personalidade é satisfazer as necessidades da criança. Isso significa que ela
vai tentar ser aquilo que "eles" desejam para que ela possa ser amada
finalmente. A tensão nasce quando ela procura ser "eles", e é eliminada
quando acontece o contrário, isto é, quando a criança tenta ser ela mesma,
e isso significa ser íntegra em corpo e espírito. Vamos supor que um menino
pequeno precise ser acariciado pelo pai, mas o seu pai acha que "homens"
não se abraçam nem beijam. O menino tenta então mostrar-se homem para
o pai, nega a sua necessidade e comporta-se com grosseria. Essa
personalidade grosseira produz e conserva a tensão. O menino cresce, tem
uma úlcera é tratado pela psicoterapia.
No começo de seu tratamento ele mostra-se enfadonho. Logo torna-se
ansioso. Eu descubro o que ele tem, isto é, localizo sua necessidade
reprimida que pode ter-se tornado um latente sentimento homossexual.
Pode tornar-se zangado quando eu der o nome aos bois, mas sua zanga é
apenas um disfarce para a verdadeira mágoa, é uma defesa contra a
sensação daquilo que ele quer. A sua zanga é uma forma de aliviar a tensão.
A razão para o menino haver-se tornado grosseiro, em primeiro lugar, era
porque queria ser amado pelo pai, mas essa motivação já foi, desde muito,
sepultada. Desde que não lhe permitam ser grosseiro isso representa, para
ele, a perda do amor e da aprovação. É o desespero Primal.
Deve ser considerado simbólico qualquer comportamento presente que
tenha por base sensações negadas no passado (inconscientes). Isso
significa que a pessoa está tentando satisfazer uma velha necessidad e por
meio de alguma confrontação atual. Eu chamo de representação simbólica
qualquer comportamento atual que tenha por base tais necessidades
inconscientes. Nesse sentido, a personalidade é no neurótico a
representação simbólica. Todo seu comportamento representa uma reação
a velhos sentimentos sepultados.
Só a ligação pode deter a tensão neurótica crônica. As outras atividades
aliviam momentaneamente a tensão mas não servem para resolvê-la. Na
minha opinião, não existe uma inata tensão básica nem tampouc o
ansiedade. Isso tudo são apenas consequências surgidas de anteriores
condições neuróticas. O neurótico é tenso consciente ou
inconscientemente.
A neurose não é sinônimo de defesa. É um termo muito mais amplo que
mostra como são ligadas as defesas. Os tipos neuróticos são simplesmente
uma determinada constelação das defesas de alguém. Desde que um
neurótico pode usar todas as espécies de defesas na sua vida cotidiana, não
existe um tipo puro. Geralmente, eles escolhem um estilo, como, por
exemplo, de ser superintelectual, que, por conveniência, poderemos
chamar de uma certa espécie de neurose. Toda neurose significa que existe
um sistema irreal que está convertendo os verdadeiros sentimentos em
tensões. A maior parte dos sentimentos e das necessidades humanas são
bastante parecidas. O que é complicado é a nossa forma de defesa. Não
temos, no entanto, necessidade de tratar dessas complicações desde que
consigamos chegar ao que está por baixo.
Enquanto existirem as Dores Primais o neurótico terá sempre que e star
tenso contra elas. A sua personalidade é a forma mais ou menos
estabilizada que ele encontrou para defender-se. Para eliminar essas Dores
teríamos que eliminar também a personalidade.
Vamos considerar isso em termos de energia. Sabemos pela lei da
conservação da energia que ela não pode ser destruída. Só pode ser
transformada. Eu considero as sensações Primais como energia
essencialmente neuroquímica que se transforma em energia cinética ou
mecânica que impele o movimento físico constante ou a pressão interna.
O objetivo da Terapia Primal é mudar essa energia transformada de volta
para o seu estado original de forma que deixe de existir uma força interior
impelindo a pessoa para uma ação compulsiva. É por causa dessa sensação
de pressão que tantos neuróticos sentem-se agitados, porque não
conseguem ficar sentados tranquilamente e porque sentem necessidade de
estar sempre fazendo alguma coisa. Não devemos esquecer que a tensão é
um fenômeno inteiramente corporal. Cada novo sentimento bloqueado ou
necessidade não realizada serve apenas para aumentar as pressões
internas que afetam todo o sistema.
É possível fazer desaparecer a tensão mecanicamente jogando tênis,
futebol ou correndo, e na verdade, a maior parte das pessoas que estão
gastando as energias nervosas estão também esgotando suas tensões. Mas
não há uma forma de fugir das sensações Primais, e sendo assim, a tensão
parece ser perpétua. Eu comparo as pessoas que estão sempre ocupadas
em gastar as tensões com a galinha decapitada que continua a se de bater.
Num certo sentido, o neurótico também é um decapitado até que possa
ligar seu corpo com as razões específicas para tais ações.
Em vista da variedade de reações do corpo às tensões, são inúmeras as
formas que existem para medi-las. O investigador E. Jacobson define a
tensão em termos de contração muscular. 6 Ele acredita que a tensão
prepara o corpo para uma certa espécie de locomoção (fuga) e isso resulta

6
E. Jacobson, "Electrophysiology of Mental Activities", American Journal of Psychology, Vol. 44
(1932); "Variation of Blood Pressure with Skeletal Muscle Tension and Relaxation," Annals of
International Medicine, Vol. 13 (1940); "The Affects and Their Pleasure-Unpleasure Qualities in
Relation to Psychic Discharge Processes," em R. M. Loewenstein, ed, Drives, Affects and Behavior
(New York, International Universities Press, 1953).
na contração das fibras dos músculos. A mudança que se opera nessas
fibras resulta, por sua vez, em um aumento de voltagem, ou pressão
elétrica, que pode ser medida por um instrumento eletrônico conhecido
como eletromiógrafo que, no entanto, ainda não é bastante preciso para
medir as minúsculas mudanças. Não obstante, o que Jacobson está
tentando mostrar é que toda a nossa musculatura torna-se envolvida nas
tensões e fadigas do indivíduo, esteja ele acordado ou dormindo. Isso ajuda
a explicar por que o neurótico muitas vezes acorda ainda mais exausto do
que quando adormeceu.
A tensão, além de ser um fenômeno total, também tenta concentrar-se em
áreas vulneráveis. Malmo, nas suas investigações, verificou que nós em
geral temos áreas vulneráveis específicas que mostram aumento no nível
de tensões quando debaixo de pressão 7.
Se uma pessoa sofre de dor crônica no lado esquerdo do pescoço, por
exemplo, uma situação de pressão viria criar uma tensão muito maior no
mesmo lado e não no oposto.
Embora a tensão seja a pressão interna que resulta da negação de
sensações, cada um de nós a experimenta de modo diferente. Pode ser um
tremor, um nó nos músculos do estômago, uma tensão nos músculos do
corpo, um aperto no peito, os dentes rilhando, uma intranquilidade, um
sentimento de acontecimento infausto, uma sensação de náusea, um nó na
garganta ou dores no estômago. A tensão mantém a boca em movimento,
aperta os músculos das mandíbulas, faz os olhos piscarem, dispara o
coração, os pés começam a bater e os olhos a faiscar. Não precisamos nos
alongar sobre esse ponto. A tensão é intolerável e se mostra das mais
diferentes maneiras.
São tantos os que sofrem de tensões que nós já chegamos ao ponto de
acreditar que elas são uma exigência do ser humano. Tenho a certeza que
isso não é assim. Infelizmente, no entanto, inúmeras teorias psicológicas
baseiam as suas suposições na inevitabilidade da tensão. O sistema

7
R. B. Malmo, Experimental Foundations of Clinical Psychology, ed. A Bachrach, New York, Basic
Books, 1962.
freudiano, por exemplo, afirma a existência de uma ansiedade básica em
torno da qual temos que situar defesas para nos conservarmos sãos. Eu
creio que essa ansiedade é exclusivamente uma função da não-realidade
da pessoa.
Foram feitas muitas experiências com animais e pessoas em que uma
cigarra tocava sempre que o sujeito era submetido a um ligeiro choque
elétrico. Depois, somente o ruído da cigarra era o suficiente para produzir
a mesma espécie de ameaça antecipada e um alto nível de ativação física.
Essa espécie de experiência é chamada de condicionamento do sujeito a
alguma coisa que geralmente não deveria conter ameaça alguma, isto é, a
cigarra. Da mesma forma, os sujeitos podem ser descondicionados
juntando ao estímulo inócuo (a cigarra) uma recompensa ou situação sem
choque.
A Teoria Primal também trata do choque. Muitas vezes esse choque é uma
primitiva realização que, se fosse sentida em toda sua extensão, teria
resultados catastróficos. O choque é reprimido e aproveitado, produzindo
anos de comportamento tenso depois de já não haver perigo. Uma criança
de seis anos desprezada pelos pais, uma coisa que ela sente pois tais
sentimentos raramente são ostensivos, pode estar em perigo sério tanto
física como psicologicamente, mas já um adulto de trinta anos, que
compreende agora ter sido desprezado pelos pais, realmente não está mais
em perigo, embora todo o seu comportamento de adulto tenha-se baseado
mais no medo do que no sentimento.
Para compreendermos por que trinta anos depois de se haver defrontado
com a triste realidade uma pessoa ainda reage a ela, devemos ter em mente
que a criança em tenra idade é completamente inerme, e isso significa que
ela pode perceber tudo de forma mais direta. Procura então cobrir-se.
Poderá desenvolver sintomas ou embotar seus sentimentos, mas, mesmo
assim, a dolorosa percepção continua a existir esperando a hora de vir a
ser sentida. Em um caso, uma criança com dois anos e meio viu no rosto
dos pais uma completa indiferença. Ela começou a perceber a completa
falta de significação da existência das pessoas que a cercavam e da sua
própria. Não sentia aquilo completamente. Ficou com asma. Aquela
indiferença em torno dela só podia ser sentida mais tarde quando já
estivesse fora de seu domínio. Aquela indiferença significava que ela teria
que "morrer" para poder sobreviver com os pais. Foram necessárias muitas
sessões Primais para sentir aquilo completamente. Uma vez sentido ela
voltou à vida.
O choque psicológico original trouxe consigo o medo, e isso converteu a
sensação numa tensão vaga e generalizada. A pessoa discutida acima não
era conscientemente ansiosa. Fingia de morta como um meio inconsciente
para evitar a ansiedade. Os seus movimentos e expressões sem vida eram
os meios que encontrava para despistar os pais. Enquanto estivesse
"morta" ela estaria tensa mas não ansiosa. Na maioria das vezes a neurose
(representação simbólica) amarra a tensão de tal maneira que o neurótico
nem mesmo percebe que está tenso. 8 A diferença entre medo e ansiedade
é uma questão de contexto e não de fisiologia. Os processos fisiológicos do
medo e da ansiedade podem ser idênticos, mas no medo a pessoa reage à
situação atual ao passo que na ansiedade reage ao passado como se ele
fosse o presente. É no ponto em que a tensão se torna perceptível como
ansiedade que as pessoas geralmente recorrem à psicoterapia.
O verdadeiro medo é quando a vida se sente ameaçada. Isso ocorre sem
tensão ou sem o embotamento dos sentidos ou da mente. Com o
verdadeiro medo o organismo sente-se completamente preparado para
enfrentar a ameaça. O medo Primal embota porque é de aspecto
catastrófico. O medo Primal existe quando também existe a Dor Primal
("eles não me amam"). Isso significa que o velho medo continua no
presente transformando o medo em ansiedade. A ansiedade é o velho
medo sem ligação porque essa ligação significa a Dor Catastrófica.

8
É muito provável que na mais tenra idade, a criança não possa diferençar entre um dano físico
ou emocional desde que seu nível conceituai não esteja suficientemente maduro para permitir
estabelecer uma distinção entre a dor psicológica e a física. Quando chegar a distingui-las, já terá
talvez coberto suas Dores Primais com a neurose. Uma criança pequena, por exemplo, pode não
saber que está sendo humilhada e sim apenas sente-se pouco à vontade quando seus pais lhe
falam de certa maneira. Essa experiência é a dor não diferenciada. Será talvez somente mais
tarde, em uma Terapia Primal, que ela perceberá primeiro aquelas dores vagas outra vez e poderá
compreender o seu significado.
(Discutiremos isso com maiores detalhes no capítulo sobre o medo.) A
reação a um caminhão que se precipita sobre nós é o medo. A ansied ade é
quando sentimos que o caminhão poderá nos atropelar.
Um bebê ou uma criancinha sente o medo diretamente e são governados
por seus sentimentos. Com o corre do tempo, contudo, até mesmo uma
demonstração de medo pode ser criticada por pais neuróticos quando
dizem, "Pare com este choro. Você sabe que não há nada para ter medo."
Dessa forma, o medo lhes é negado e passa a situar-se no Conglomerado
Primal como mais tensão. Esse medo proibido significa que a pessoa não
pode agir diretamente e de forma apropriada quanto aos seus sentimentos.
Deve então inventar objetos para seu medo como sejam os negros ou
outros problemas para poder centralizar seus sentimentos e aliviar a
tensão.
É quando forçamos o paciente neurótico a sentir, em lugar de demonstrar
seus medos Primais, que nós podemos auxiliá-los para compreenderem os
sentimentos que lhes causam pavor. É no ponto em que o levamos para
dentro e para além de seus temores que nós o encaminhamos também às
suas Dores Primais.
O estudo publicado em Psychology Today (junho 1969) de autoria de Martin
Seligman tem certa relação com esta noção de choque prematuro.
Seligman conta sobre uma experiência de R. L. Solomon em que arreios
foram amarrados em cachorros que depois receberam choques elétricos.
Mais tarde foram colocados numa caixa com dois compartimentos onde
deviam aprender a escapar do choque simplesmente pulando sobre uma
barreira baixa da seção em que tomavam o choque para a outra onde não
havia aquilo. Verificou-se depois que se um deles recebesse primeiro o
choque quando ainda amarrado para não poder escapar, acontecia uma
coisa estranha. Durante episódios posteriores com choques, mesmo
quando estavam livres para saltarem sobre a barreira, os cachorros ficavam
na seção do choque até que fossem arrastados para fora. Outros, que não
estavam amarrados logo que recebiam o primeiro choque, aprendiam a
saltar e fugir. Em muitos casos, a criancinha sente-se amarrada a uma
situação sem saída para o trauma, e sente-se então tão desamparada como
os cães amarrados. Também a criança nada pode fazer para escapar à dor
constante e muitas vezes não consegue aprender mais tarde como agir em
certas situações para evitar magoar-se. Quando uma criança nada encontra
que lhe possa valer para alterar a situação, ela muitas vezes nada mais pode
fazer senão desligar-se internamente continuando passiva e magoada
como os cães amarrados que não conseguiam escapar ao primeiro choque
recebido em suas vidas. Notamos também das experiências de Solomon
que se os cães eram submetidos ao choque numa situação sem saída, e
mais tarde amarrados outra vez para o choque, quando mais uma vez
recebiam o choque e podiam reagir livremente, logo aprendiam como
escapulir. Seligman mostra que se uma criança chora para ser alimentada
e não há ninguém por perto para atendê-la, então o choro torna-se uma
reação irrelevante e pode ser eliminada com o tempo apenas porque o
choro em nada alterou uma situação desagradável. A Teoria Primal indica
que a Dor continuada por não receber, ou nunca haver conseguido
satisfazer suas necessidades primitivas, tem a tendência a desligar a reação
até que o indivíduo volte ao passado e atreva-se a chorar outra vez como a
criança.
Os efeitos das Dores Primais são considerados permanentes até que sejam
sentidos, e uso esta expressão num sentido global. Isto significa que as
Dores Primais não podem ser condicionadas fora do organismo. Assim,
embora se possa punir ou recompensar as manifestações superficiais das
Dores (fumo, bebida, drogas) isso não significará qualquer mudança.
Continuarão a exigir saídas neuróticas de uma forma ou outra até que
sejam completamente sentidas.
O neurótico aplica-se a comportamentos singulares e simbólicos para
aliviar a tensão. Assim ele pode praticar o sexo compulsivo para sentir -se
amado sem jamais reconhecer as sensações primitivas de não ser amado.
Embora a tensão se faça sentir em toda a parte, parece haver um
determinado órgão em que ela se situa com mais força. É o estômago.
Parece que a melhor maneira do neurótico aliviar suas dores internas é com
a contração dos músculos do estômago e de toda a área abdominal.
Wilhelm Reich fez esta descoberta muitas décadas atrás e uma grande
parte de sua terapêutica girava em torno do alívio das tensões abdominais
de seus doentes. 9
É no estômago que a maioria dos pacientes neuróticos situam o foco de
suas tensões, e são inúmeros os provérbios que mostram isso como quando
dizem, "Tive que engolir minhas palavras", "Isto está difícil de engolir" e
outros.
As palavras parecem ter sido literalmente empurradas pela garganta
abaixo. Na grande parte dos casos, o paciente antes do Primal não se dá
conta do que existe de tensão em seu estômago até que começamos a
arrancar tudo aquilo. Durante a Terapia Primal é comum constatarmos a
tensão abandonando o estômago para vir subindo. A pessoa vai então
queixando-se de um aperto no peito ou na garganta, os dentes rilham e os
maxilares doem. Depois, quando as palavras importantes já foram todas
pronunciadas, tudo isso desaparece.
Eu tenho certa hesitação para expressar-me desse modo, mas temos
documentação em video-tapes que mostram o fenômeno da ascensão.
Durante a Terapia Primal as sensações que iniciam a ascensão fazem tremer
toda a região abdominal. É como se elas estivessem se libertando da
pressão abdominal. Movimentam-se pelo corpo acima e saem pela boca em
forma de Gritos Primais. Quando isso acontece, os pacientes dizem que,
pela primeira vez, estão sentindo o estômago livre quando antes estavam
bloqueados pelas tensões que nem mesmo permitiam a digestão dos
alimentos.
Nem sempre a tensão traz como consequência a incapacidade de comer.
Em alguns casos acontece até mesmo o contrário, quando as pessoas
tensas se entopem de comida. Aí acontece o fenômeno duplo de subir e
descer. A tensão em ascensão ocorre quando o sistema de defesa se
enfraquece e as sensações se aproximam do consciente. Ela muitas vezes
impede ou torna difícil a ingestão de comida. A tensão descendente, por
outro lado, permite que o neurótico controle seus sentimentos por meio
de alimentos, de forma que ela nunca se transforma em estado ansioso. De

9
Wilhelm Reich, The Discovery of the Orgone, New York, Noonday Press, 1948.
um modo geral, as pessoas muito gordas ou pesadas são portadoras de um
conjunto de Dores muito profundas e escondidas. Parece que as camadas
de gordura contribuem para formar uma parede protetora.
6 - O SISTEMA DE DEFESA

O conceito de um sistema de defesa encontra-se em muitas teorias


psicológicas a começar com a de Freud. A Teoria Primal mostra que toda
defesa é neurótica e que não existe qualquer uma que seja realmente sadia.
A razão para se acreditar em defesas sadias está baseada na suposição de
uma ansiedade básica que deve ser contida, uma coisa inerente em todo
ser humano. A Teoria Primal não reconhece a noção de uma ansiedade
básica nos indivíduos normais. Discutiremos isso detalhadamente mais
tarde. A última parte da diferença referente a defesas entre a Teoria Primal
e as outras é que ela considera as defesas como fenômenos psicológicos e
não apenas ações mentais. Assim, a constrição de um vaso sanguíneo pode
ser uma defesa da mesma forma que a fala compulsiva. 10
Em termos Primais, a defesa é um conjunto de comportamentos que
funcionam automaticamente para bloquear as sensações Primais. Quando
o abdome se aperta automaticamente, quando o indivíduo engole em seco,
quando surge um tique no rosto em momentos de pressão, tudo isso
significa que o corpo está reagindo contra o sentimento.
Existem defesas voluntárias e involuntárias. As involuntárias são as reações
automáticas da mente e do corpo à Dor Primal como fantasias, urinar na
cama, gaguejar, piscar, ficar com os músculos tensos. Essas são geralmente
as primeiras defesas empregadas, são as defesas que fazem parte
intrínseca da criança. A contração do aparelho respiratório, por exemplo,
afeta o tom e o timbre da voz. Esse processo e a voz esganiçada que daí
resulta passam então a fazer parte do sistema da personalidade. Dessa
forma, a personalidade passa a ser construída em torno das defesas e fica
constituindo uma parte integral das mesmas.
São de dois tipos as defesas involuntárias: a construção da tensão e a sua

10
Anna Freud, em seu Ego and the Mechanisms of Defense, diz: "Os esforços do ego infantil para
evitar a 'dor' por meio da resistência direta às impressões externas pertencem à esfera da
psicologia normal. Suas consequências podem ser importantes para a formação do ego e do
caráter, mas elas não são patogênicas." (Os grifos são meus.)
descarga. O aperto dos músculos do estômago contém as sensações e
resultam em tensão. Molhar a cama durante a noite, quando as defesas
conscientes são menores, é uma descarga involuntária da tensão. Outras
formas involuntárias são o rilhar os dentes, suspirar, atravessar pesadelos.
As defesas voluntárias entram em cena quando o mecanismo de descarga
involuntária deixa de funcionar. Alguns exemplos de defesas voluntárias
são fumar, beber, usar drogas e comer demais. Podem ser dominados p ela
força de vontade. As defesas voluntárias são necessárias para aliviar a
tensão em excesso. O propósito das duas formas de defesa é bloquear o
sentimento verdadeiro.
As defesas funcionam ininterruptamente dia e noite. O homem efeminado
não se torna de repente masculino durante o sono. Sua feminilidade é um
acontecimento psicofísico que existe tanto dormindo como acordado. Faz
parte do organismo. Isso significa que as ações não naturais tornam -se a
norma porque a pessoa não pode sentir suas inclinações naturais. Ele não
poderá andar, falar ou comportar-se de qualquer outra forma até que
recupere o seu eu natural.
As defesas são, de um modo geral, aquilo que os pais exigem da criança.
Uma delas pode falar o tempo todo e usar palavras complicadas, ao passo
que a outra se faz de boba. Ambas estão reagindo a uma exigência dos pais
e ambas estão fechando uma parte delas.
As defesas entram em cena como um mecanismo de adaptação para
manter o organismo em funcionamento. Dessa forma a neurose é
considerada como parte do equipamento de adaptação que nós todos
herdamos. Sendo a neurose adaptável, nós não podemos simplesmente
destruí-la com uma máquina de choque. É preciso desmantelar as defesas
numa sequência ordenada, pouco a pouco, até que a pessoa esteja em
condições de passar sem elas.
A criança fecha-se nos primeiros meses e anos porque não tem outra
escolha. Uma criança que goste de falar muito e alto pode logo ser
reprimida pelos pais que desejam vê-la bem educadinha e submissa.
Recorrerão até à pancada para conseguirem o que desejam. Assim, a
criança tem que condenar uma parte de si mesma durante toda a vida. Deve
fazer o que eles querem e não o que ela quer. Essa mesma espécie de
comportamento pode resultar de pais que fazem muito pelos filhos que,
então, quase não precisam fazer esforço algum em proveito próprio. Ficam
afogados pela bondade dos pais.
Se as aparências falsas não funcionarem, se não puderem despertar nos
pais uma reação humana, então a criança será forçada a recorrer a defesas
mais desesperadas. Ela poderá então desligar-se de tudo à sua volta para
não desagradar aos pais ou para torná-los carinhosos. Poderá começar a
falar como um autômato, seus pensamentos poderão se tornar reduzidos
e estreitos e seus olhos se apertarão. Em resumo, ela poderá se
desumanizar completamente numa tentativa para humanizar os pais.
Poderá, até mesmo, transformar-se completamente só para agradar-lhes,
e então um menino pode passar a ser uma "menina".
A reação completa é um conceito crucial. A necessidade de amor não é
apenas alguma coisa cerebral que pode se transformar com uma mudança
de ideias. Essa necessidade está em todo o sistema destorcendo o corpo e
a mente. Essa distorção específica é a defesa.
Se a personalidade não pode conter a tensão, os sintomas logo surgirão. A
criança poderá se masturbar, chupar o dedo, roer as unhas ou molhar a
cama. São os caminhos que escolhe para se aliviar ainda mais. Muitas
vezes, pensando erradamente que estão ajudando aos filhos, os pais
tentam corrigir essas válvulas de escape e assim complicam o problema
pois a criança recorre a meios ocultos. Um paciente contou-me que peidava
constantemente porque os pais pensavam que ele tinha alguma coisa de
estômago e aceitavam então aquilo pensando que era involuntário.
A criancinha não pode nunca compreender que os perturbados são os pais.
Não sabe que o problema deles existe independentemente de qualquer
coisa que ela possa fazer por eles. Ela não sabe que não pode interferir e
tudo faz para viver em paz. Já que é ridicularizada desde que se entende,
ela começa a acreditar que há qualquer coisa de errado e tudo tentará para
agradar, mas a tragédia é que não sabe o que fazer porque também os pais
estão na mesma condição. Já que os pais não o fazem feliz, ela só pode
contar com seus próprios recursos. Passa então a comer tudo que lhe fica
ao alcance da mão, chupa o dedo quando não estão olhando, masturba -se
e, mais tarde, enche-se de drogas para aliviar os sofrimentos já que
ninguém antes tentou fazer isso por ela. Já não se mostra mais neurótica
pois a neurose tomou conta dela.
O viciado em drogas é um exemplo de alguém que já não dispõe mais de
defesas internas. É geralmente alguém que já esgotou tanto suas sensações
que não dá mais importância à existência. Uma vez que não consegue
defender-se como fazem outros neuróticos, ele estabelece uma relação
definitiva com a agulha: Dor... agulha... alívio. Sem a agulha surge de novo
a Dor, O pênis serve ao mesmo fim para o homossexual. Ambos
representam um alívio da tensão. E uma ligação externa que surge para
tomar o lugar da interna que nunca foi feita.
Sem levar em conta a dor que existe com o uso da agulha ou nas relações
dos homossexuais, a sensação simbólica é o prazer ou, mais corretamente,
o alívio. A dor verdadeira e física, a dor experimentada pelo próprio, filtra-
se através do sistema de defesa onde passa a ser interpretada como prazer.
As variedades de formas que os neuróticos encontram para se defenderem
já foram classificadas por profissionais e catalogadas em diagnósticos. Eu
quero tornar claro, mais uma vez, que o sistema de defesa só é importante
porque serve para esconder a Dor. Dentro da hipótese Primal só a Dor é
importante.
Para o neurótico, toda a sua experiência deve passar através do labirinto
de suas defesas onde o que está acontecendo não é visto, não é
compreendido ou então é exagerado. O mesmo processo destorcido
influencia as atividades de seu corpo de forma que, finalmente, ele já não
consegue interpretar ou compreender as espécies de transformações que
estão se passando em seu corpo. Ele precisa então situar-se numa posição
enigmática de ir procurar um estranho profissional para ajudá-lo a
compreender tudo que sente dentro de si mesmo.
Os sistemas de defesa tornam-se mais complicados conforme for a situação
da família da criança. Quando os pais são brutais, a defesa é direta e está
na superfície. Quando as relações de família são mais sutis, o sistema de
defesa também torna-se mais sutil.
Os mais difíceis de curar são os indivíduos que conseguiram criar camadas
de defesas sutis e intelectuais. A terapia de insight tem sido o tratamento
central da classe intelectual. Qualquer método que complique mais a
cabeça desses neuróticos só pode servir para tornar o problema mais sério.
Reich mostrou-nos insights para as defesas do corpo algumas décadas
atrás: "Nós podemos dizer que toda rigidez muscular contém a história e a
significação de sua origem. Assim, não é necessário deduzir de sonhos ou
associações a forma como se desenvolveu a armadura muscular. Ao
contrário, essa própria armadura é a forma pela qual a experiência infantil
continua a existir como um agente perigoso." 11
Reich explicou que a rigidez muscular não é apenas o resultado de
repressão já que representa "a parte mais essencial do processo de
repressão." Ele mostrou ainda que a repressão era um processo dialético
no qual o corpo não apenas se torna tenso pela neurose como também
serve para perpetuar essa neurose por meio da musculatura tensa. Ele não
explicou bem o que mantinha o corpo tenso durante anos seguidos, mas
acreditava que a neurose poderia ser bastante afastada por certos
exercícios ou técnicas destinados a reduzir as tensões musculares e mais
especificamente a tensão abdominal.
De conformidade com a opinião Primal, as necessidades e as sensações
bloqueadas começam virtualmente com o nascimento e muitas vezes antes
mesmo que possam ser verbalizadas. A criança que não é levada ao colo
suficientemente nos seus primeiros meses, não sabe conscientemente o
que está lhe faltando, mas, mesmo assim, sente-se magoada. Sente isso em
todo o seu corpo que é exatamente onde reside a necessidade. Essa
necessidade não é então apenas alguma coisa mental armazenada no
cérebro. Está codificada nos tecidos do corpo exercendo uma força
constante em busca de satisfação. Essa força não é uma tensão. Podemos
dizer que o corpo "recorda-se" de suas privações e necessidades da mesma

11
Wilhelm Reich, The Discovery of the Orgone (New York: Noonday Press, 1942).
forma que o cérebro. Para livrar-se das tensões as pessoas terão que sentir
as necessidades no núcleo de tais tensões, em outras palavras,
organicamente, que é exatamente onde elas se encontram. As
necessidades são encontradas na musculatura, nos órgãos e no sangue.
Não é bastante conhecermos nossas sensações ou necessidades
inconscientes. Uma grande parte de psicoterapia moderna funciona dentro
do pressuposto que é bastante tornar conscientes as sensações
inconscientes para transformar uma pessoa. Eu encaro isso de modo
diferente. Acho que a consciência é o resultado de um processo de
sensação orgânica e que é o processo da sensação que muda uma p essoa,
e não apenas o simples fato de saber quais são as necessidades. Na minha
opinião, o conhecimento não se livra disso. Nós ainda não avaliamos
bastante o quanto há de privações nos primeiros meses de vida e como isso
afeta toda a nossa existência. Os adeptos da escola de Reich reconhecem
que uma grande parte das sensações nada tem a ver com a palavra e
tentam tratar das sensações reprimidas com manipulações físicas do corpo.
A Terapia Primal defende a ligação das necessidades do corpo com as
lembranças inconscientes armazenadas, o que representa a unidade da
pessoa. As terapias de danças, yoga, movimentos do corpo, ou os exercícios
destinados a libertar o corpo de tensões, de pouco servirão porque elas
estão irremediavelmente entrelaçadas com lembranças Primais em
acontecimentos orgânicos unitários. Os insights de encorajamento cindem
o indivíduo de uma forma e a terapia de movimento do corpo faz o mesmo
de outra forma. Aquilo que necessitamos é alguma coisa total, uma reunião
imediata do corpo com a mente. Não há maneira para curar de forma
permanente com massagens as lembranças que causaram uma torção do
ombro quando elas o atingiram abaixo do nível consciente.
Talvez se possa compreender isso melhor examinando como nos
desenvolvemos. A criança pequena tem pouca condição para abstrair ou
para raciocinar a respeito de seus problemas. Ela não pode transformar
suas necessidades em fantasias específicas nem pode se livrar delas
simbolicamente durante a infância. O seu corpo tem que organizar as
defesas. Assim, para ela não é uma questão da mente controlar o corpo já
que a criança aparentemente não desenvolveu ainda sua capacidade
mental nos primeiros meses. Em lugar disso, o que parece acontecer é que
algumas crianças precisam defender-se fisicamente logo depois de
nascidas.
Lembro-me de uma paciente que nasceu num orfanato onde não havia
ninguém para cuidar dela. Durante suas sessões de terapia, mais tarde, ela
tornou a viver seu tempo de berço no orfanato e lembrava-se que ficava
chorando muito tempo antes que viesse alguém para atendê-la. Tornou a
viver o que fez nessa ocasião. Lembrava-se que ficava sentada, com cerca
de oito meses, depois de chorar durante muitos minutos, e que olhava em
volta mas não via ninguém para cuidar dela, e então começava a sentir o
corpo mole e finalmente adormecia. Logo aquilo tornou-se um hábito.
Acordava sentindo falta de alguma coisa, começava a chorar, calava -se e
deitava-se de volta no berço. Esse embrutecimento tornou-se automático
nos primeiros dois anos de sua estadia no orfanato. Mais tarde, quando
saiu de lá, isso se transformou e ela procurava tornar- se insensível sempre
que se sentia inconfortável ou apavorada. Dizia que "era como se tivesse
sido absorvida de volta num estado de estupefação. Conseguia amortecer
todo o meu ser e ficava meio adormecida até mesmo quando andava." Essa
apatia e falta de vida, incidentalmente, é muito notada pelos que
investigam as crianças recolhidas a asilos. Acho que elas são obrigadas a se
amortecerem para assim criarem uma barreira que permita a sua
sobrevivência.
O que aconteceu com essa mulher lá no seu orfanato foi o resultado do
sistema de proteção do corpo. As defesas corporais que a acompanharam
durante sua vida tinham se desenvolvido porque o seu trauma e split
haviam começado antes do desenvolvimento do intelecto e a possibilidade
de defesas intelectuais. Eu não acredito que houvesse exercícios que mais
tarde pudessem reavivar o seu sistema muscular. Depois de sua terapia,
em que reviveu os traumas infantis que haviam enrijecido e tolhido a sua
musculatura, ela sentia-se liberada e "leve." Pela primeira vez podia dançar
com desembaraço sem sentir-se tolhida e morta como vinha acontecendo
desde que nascera. Tornara-se mais viva depois de verificar como estivera
morta.
Recentemente tivemos em nossa Terapia Primal um atleta levantador de
pesos. Tinha o vício de namorar seu corpo num espelho. Tudo que via era
uma tensão cuidadosamente construída. Contemplava o seu sistema de
defesa e tentava construí-lo fisicamente, tudo para fugir à impressão de ser
fraco e desamparado. Sua atitude inconsciente funcionava da seguinte
maneira: "Não tenho quem tome conta de mim. Tenho que ser forte para
proteger-me." O simbolismo é: "se eu agir e tiver a aparência de um
homem, eu então serei um homem." Na Terapia Primal ele começou a
sentir-se como o menino fraco e desprotegido que realmente era. Tivemos
que suspender todos os seus exercícios com pesos, ou seja, deixá -lo sem
proteção o bastante para que ele sentisse essa fraqueza.
A cura da neurose deve sempre atentar para todo o sistema. Nós,
terapeutas, passamos décadas falando para a fachada irreal de nossos
pacientes pensando ser possível convencê-los a abandonar as necessidades
e as Dores que a produziam. Não há força na terra que consiga fazer i sso.
Talvez possa haver quem diga que isso não faz diferença. Que o principal é
a pessoa sentir-se bem e que não há razão para achar que pode ficar melhor
do que está simplesmente porque alguém diz que isso é possível. É claro
que a coisa não é assim. Eu estou pensando em muita gente como os
homossexuais, por exemplo, que acabaram resignando-se com a sua
doença porque chegaram à conclusão sincera de não haver outra
alternativa. Embora a maioria dos neuróticos não esteja satisfeita, eles
sofrem apenas um ligeiro mal-estar enquanto suas defesas funcionarem.
Mas é preciso que eles saibam que há uma alternativa, que há uma
condição de bem-estar que eles nem podem imaginar. É possível que
tenham se valido do LSD em algum período de sua vida para atingir um
estado de incrível magnitude. Talvez tenham atribuído à droga essa
sensação. Eu não concordo. As drogas não trazem sensações. São as
pessoas que as sentem. Isto é, são as pessoas sem neuroses, e eu creio que
a maior contribuição da Terapia Primal é permitir que as pessoas
experimentem suas próprias sensações.
Discussão
Os comportamentos neuróticos são as formas de idiossincrasias que todos
nós encontramos para aliviar a tensão. Não há alteração na neurose pelo
simples fato de suprimirmos um comportamento superficial. O
desenvolvimento de "bons" hábitos, como, por exemplo, não comer
demais, deve sempre constituir um esforço desde que a neurose exista, e
isso porque a pessoa está tentando afogar a Dor Primal.
A neurose é a Dor congelada. No decorrer de nossas vidas nós encontramos
muitos obstáculos dolorosos que precisamos transpor, mas não existe um
fim para a Dor Primal porque ela não é sentida, mas, apesar disso, podemos
frequentemente ver essa Dor estampada no rosto dos neuróticos,
contorcendo-o e transformando-o de tal modo que quase ficam
irreconhecíveis.
Embora os neuróticos nem sempre se deem conta de tudo que lhe dói, eles
são sempre um feixe de nervos destroçados. Podem ser aquele médico que
anda às carreiras de um gabinete para outro ou a mulher que está sempre
se queixando de alguma doença. O neurótico está sempre tão ocupado
tentando se afirmar que não tem tempo para perceber quem é.
A neurose começa como uma forma para apaziguar pais neuróticos
procurando esconder deles certas coisas na esperança que "eles"
finalmente terminem por amá-lo. Não importa os anos que passem, a
esperança é sempre eterna. Tem que ser porque as necessidades também
são. Essas necessidades fazem com que o neurótico se comporte de forma
irracional porque a verdade racional é por demais dolorosa. Enquanto a
pessoa não tiver sofrido todas as suas Dores completamente ela não pode
perder a esperança. Na Terapia Primal a pessoa sente todo o desespero da
infância e com isso destrói todas as esperanças falsas que constituem o
fundamento da luta contra a neurose.
Quando começa a neurose? Em qualquer idade bem tenra. Com um, cinco
e dez anos. O importante é que ela tem um começo, a ocasião em que a
criança se divide de seu próprio eu e passa a levar uma existência dupla.
Será que isso significa que uma cena ou um acontecimento podem
transformar alguém em neurótico? É claro que não. A cena decisiva não é
senão a culminação de anos de relações muito ruins entre pais e filhos.
Muitos neuróticos se desligam por volta da idade de seis ou sete anos
porque é então que podem perceber bem o que se passa em suas vidas.
Tornaram-se dissociados ou split e não podem se integralizar novamente
mediante um esforço consciente, isto é, não podem desfazer a tensão
neurótica.
A neurose pode ter início com um ano de idade se o trauma for muito sério
e se a história pregressa o justificar. É claro que o split em muitos
indivíduos ocorre antes da idade de seis anos porque os gagos de quem
tratei sempre reclamavam que sua deficiência começara logo que haviam
pronunciado as primeiras palavras, entre os dois ou três anos. Outros
informam que o split se deu por volta dos doze. Um paciente contou -me
que conseguiu se manter bem até os treze anos quando seus pais se
divorciaram e o pai tornou a casar. Exigiram que o menino chamasse a
madrasta de "mamãe" e que a tratasse como tal. Em lugar de enfrentar a
perda de sua verdadeira mãe ele preferiu fechar-se.
Por que a neurose começa mais cedo e não até antes dos vinte, por
exemplo? É porque nesses primeiros meses a criança está completamente
desamparada e depende de seus pais. Representam o mundo para ela. O
que eles fizerem vai decidir o caminho da criança e isso logo se tornará
rígido e determinará sua maneira de enfrentar o mundo.
Geralmente, quando chega a hora de começar a escola ela já está desligada
e neurótica, e a sua neurose determina a sua forma de agir para com seus
mestres e colegas. Uma criança tornada rígida e que foi tornada tímida e
obsequiosa pelos pais muito autoritários, sentir-se-á inclinada a se
comportar do mesmo jeito com os outros. O split não é geralmente uma
explosão ou um acontecimento cataclísmico. Chega o dia em que a criança
simplesmente torna-se mais irreal do que real. A razão para isso acontecer
antes dos treze aos dezenove é que, geralmente, se a criança conseguisse
isso dentro desse período sem neurose, ela poderia também encontrar
algum outro apoio, como, por exemplo, o amor de alguém do sexo oposto
ou algum mestre compreensivo que a ajudasse a enfrentar a pressão e as
dificuldades no lar. Geralmente, quando chega nessa faixa de idade ele já
se transformou numa personalidade neurótica que não pode mais ser
anulada por tal ajuda mas sim apenas ser tratada por paliativos provisórios.
Por que a neurose não surge com a rejeição para entrar em algum clube
social, pela repetição de ano escolar ou por ser repudiado pelo namorado?
Por que os acontecimentos isolados, mesmo em casa, não produzem
reações tão fortes que cheguem a causar o split? Uma criança normal
rejeitada por um mestre poderia atribuir o fato à sua pouca aplicação ou
mau comportamento, e perceberia isso sem qualquer outra consequência.
O trauma, em termos Primais, não é um acontecimento penoso como o de
ser rejeitado por um clube ou uma escola. O trauma é aquilo que não é
experimentado. Isto é, significa uma reação tão forte e dominadora que
chega a fazer com que uma parte do acontecimento seja apagado do
consciente. Soluçar nos ombros da mamãe carinhosa por haver sido
rejeitado é muito diferente de perceber o quanto se é odiado pela pró pria
mãe e quando não se tem um outro ombro amigo para consolar. Nenhuma
conferência de família, mais tarde, desmanchará isso. A criança poderá
compreender por que sua mãe a rejeitou antes, mas isso não modificará os
seus problemas primitivos.
Será que a Cena Primal significa que uma pessoa é, sem dúvida, neurótica
e para todo o sempre? A Cena Primal representa o salto qualitativo, a
mudança para um novo estado, para a neurose. Nenhuma quantidade de
amor, de garantia ou de atenções daí em diante cancelará a neurose. Ela
irá se aprofundando em cada novo trauma ou supressão de parte dos pais.
Mesmo que, por exemplo, um pai amoroso surgisse de repente quando a
criança tivesse uns oito anos, o dano anterior ainda teria que ser resolvido.
Um tal pai amoroso, naturalmente, sempre adianta alguma coisa porque
ele não aprofunda a neurose, mas tampouco pode cancelá-la. Só a Dor pode
fazer isso. Só a Dor que exigiu uma parte do próprio ser para que fosse
abafada.
7 - A NATUREZA DO SENTIMENTO

O corpo tem necessidade de sentir. Começamos a sentir quando todas as


nossas primeiras necessidades são realizadas, quando somos
aconchegados e beijados, quando podemos nos exprimir e movimentar
com liberdade e quando nos desenvolvemos dentro de um ritmo natural.
Desde que sejam satisfeitas todas as suas necessidades básicas, a criança
está em condições de sentir tudo que deve a cada novo dia que começa.
Quando isso não acontece, as necessidades se sobrepõem a tudo o mais e
impedem a criança de sentir o que se passa. Para o neurótico, o presente é
apenas o gatilho que deflagra todas as antigas necessidades e mágoas
numa tentativa para resolvê-las.
Há duas razões para que as necessidades e os sentimentos do passado
sejam inconscientes. Muitas vezes a sensação se desenvolve antes do uso
dos conceitos e torna-se então irreconhecível. (O bebê, por exemplo, não
sabe que não deve ser desmamado muito cedo.) Em segundo lugar, mesmo
que os sentimentos fossem reconhecíveis antes da Cena Primal, eles
poderiam ter sido continuamente suprimidos por pais neuróticos de forma
que a criança chega a um ponto em que não sabe o que está sentindo. Se a
criança não tiver liberdade para chorar, tanto por um excesso de zelo dos
pais que não permitem um instante de tristeza para o filho como ainda por
tentarem ridicularizá-la chamando-a de "bebê", pouco tempo levará para
que ela já não saiba mais se quer chorar. E ela acaba também achando
ridículas as lágrimas como um sinal de fraqueza.
A supressão do sentimento não precisa ser necessariamente um ato direto
da parte de um dos pais. A negação do sentimento pode ocorrer na infância
antes que a criança tenha idade bastante para disfarçá-los fazendo cara
alegre. A simples ausência de um dos pais para contê-la pode criar tanta
Dor que depois de algum tempo a criança se desliga da Dor desligando-se
também de suas necessidades. Aí então deixa de sentir necessidades,
apesar dela continuar a existir em todos os minutos de sua vida e através
dos anos. A necessidade continua fixa e infantil porque é mesmo infantil.
Um neurótico não pode ter sentimentos adultos quando importunado pelas
necessidades. Mais tarde poderá recorrer ao sexo compulsivo, por
exemplo, não porque sinta necessidade dele e sim devido à sua
necessidade infantil de ser amado. Depois de haver sentido toda s as suas
antigas necessidades pelo que elas realmente são, ele pode então sentir -
se plenamente sexual, e isso é muito diferente daquilo que o neurótico
imagina ser a sexualidade.
O que o neurótico está representando no exemplo do sexo compulsivo é
uma antiga necessidade que possivelmente não foi conceituada. Ele pode
dar-lhe outro nome (sexo) mas a necessidade é de ser acariciado. Quando
um paciente se deu conta disso durante o ato sexual ele perdeu sua
potência e pediu à esposa que simplesmente o abraçasse. Quando se
deteve durante o ato sexual, esse homem estava sentindo
verdadeiramente, mas ela não se deu conta desse insight! Ele estava
conceituando a sua verdadeira necessidade e já não representava mais
simbolicamente. Por aí nós vemos que o sentimento é a sensação
conceituada de uma forma correta. Uma sensação de estrangulamento no
estômago pode muito bem ser o sentimento de alguém pelo vazio de sua
vida. O neurótico pode mudar esse sentimento por uma sensação de fome.
A neurose esconde as sensações dolorosas do corpo para que não possam
ser reconhecidas e deixa a pessoa em constante sofrimento. ("Eles não me
amam.") Ele pode tentar aliviá-las de uma forma ou outra, mas a sensação
não melhora até encontrar uma ligação certa, isto é, até que se torne um
sentimento. 12
As Dores Primais são as sensações de dor. Na Terapia Primal elas tornam -
se sentimentos através das ligações com as origens traumáticas específicas.

12
O sentimento não é sinônimo de emoção, embora essa possa ser a expressão daquele, das
coisas que uma pessoa faz quando sente. A maioria das emoções é atravessar todas as condições
de sentimento sem o mesmo. Infelizmente, muitos neuróticos consideram a emoção como um
sinal do sentimento, e a não ser que alguém seja efusivo e exagerado, eles inclinam-se a crer que
a pessoa não está realmente sentindo. Os pais neuróticos raramente contentam-se com um
simples "muito obrigado" pelos presentes que dão. Sentem necessidade de grandes
demonstrações de emoção para terem a certeza de que foram devidamente apreciados. Dentro
dessas sutilezas as crianças não se contêm e reagem com naturalidade. Precisam, aliás, exagerar
porque as reações muito sinceras podem ser consideradas pelos pais como um sinal de rejeição.
Somente a ligação transforma uma sensação de dor em um verdadeiro
sentimento. Reciprocamente, a desligação do pensamento do conteúdo de
seus sentimentos nos primórdios da vida produz sensações contínuas e
desconfortáveis como dores de cabeça, alergia, dores nas costas. Persistem
porque não são ligadas. É como se os sentimentos dolorosos fossem
desligados do conhecimento ("Eu estou inteiramente só. Não há ninguém
que me compreenda.") e passassem a ter vida própria dentro do corpo,
surgindo aqui e ali em forma de dores e incômodos.
Quando a dor se transforma numa Dor sentida, ela já não é mais dolor osa,
e o neurótico pode, então, senti-la. Tudo que desperte verdadeiros
sentimentos em um neurótico deve também despertar a Dor. Qualquer
suposta experiência de profundo sentimento que não traga Dor é apenas
um pseudo-sentimento, uma representação sem qualquer ligação.
Uma quantidade de pacientes, quando em fins de tratamento, informa que
o ato sexual muitas vezes leva involuntariamente a uma Primal. Um deles
explicou o seguinte:
"Antes de me submeter à terapia, eu tinha toda a sorte de sentimentos
reprimidos que extravasava por meio do sexo. Pensava que era muito
sexual. Estava sempre em condições de praticá-lo. Agora eu sei que aquela
minha exagerada necessidade de sexo era devida a todos os outros
sentimentos procurando uma saída qualquer. Eu servia-me do pênis para
isso. Costumava pensar que era natural o fato do orgasmo ser doloroso.
Chegava a ele muito depressa porque a pressão de todos os outros
sentimentos ocultos era muito grande já que todos eles queriam sair ao
mesmo tempo. Nos meus primeiros anos isso se manifestava levando-me a
molhar a cama, mas eu não precisava de controle tanto para não molhar a
cama como para a ejaculação prematura. Eu tinha necessidade de sofrer
todos aqueles sentimentos suprimidos para conseguir livrar-me das
horríveis e constantes pressões."
Quando já não podia mais transformar em sexo os seus antigos
sentimentos, ele modificou sua atitude a tal respeito diminuindo
radicalmente a sua mania de perseguição. Aquela mesma pressão poderia,
com igual facilidade, desde que houvesse as condições certas nos
primórdios, ter-se transformado numa constante necessidade de falar, de
usar a boca para dar saída à tensão. As pessoas geralmente não falam
porque sentem necessidade e sim para aliviar uma tensão. É fácil perceber
a diferença porque também é fácil perder o interesse por alguém que fala
sem parar e sem propósito, apenas para satisfazer uma necessidade íntima,
assim como é difícil perder o interesse por alguém que realmente sente o
que diz. O falastrão neurótico não fala para mais ninguém a não ser para a
sua necessidade, em realidade para os seus pais. Aqui outra vez nós nos
defrontamos com o cruel paradoxo. Uma pessoa é obrigada a falar porque
nunca foi ouvida, e a sua verbalização neurótica afasta todo mundo e só
serve para aumentar sua necessidade (e compulsão) para ainda falar mais.
Não pode sentir o que diz até acabar de falar tudo que estava acumulado,
e não pode fazer isso até que sinta a grande Dor dessa necessidade.
O neurótico caminha em busca de sensações até a hora de sentir. Ele pode
buscar sensações agradáveis para aliviar as desagradáveis do inconsciente,
ou poderá senti-las aqui ou ali em seu corpo pensando que sofre de alguma
doença física. Os que recorrem ao álcool para aliviar o nó no estômago
podem estar escondendo alguma coisa mais séria, como talvez uma úlcera.
Aqueles que não encontram bastantes saídas para as dores interiores são
obrigados a sofrê-las fisicamente. O neurótico pode não recorrer ao álcool
mas passa então a usar remédios para matar as dores. Tudo é a mesma
coisa, e isso porque todos os sentimentos reprimidos são dolorosos por
definição. Assim, quer o neurótico esteja se deliciando com as cores de um
quadro, com a euforia do álcool ou o alívio de uma pílula, ele está sempre
no processo constante de trocar uma sensação por outra. Até que encontre
uma ligação para o que sente ele terá que passar a vida a procurá -la.
E isso pode ser encontrado em tudo que for compulsivo. O orgasmo, para
o neurótico, logo se torna um narcótico, um sedativo. Se retirarmos a
representação simbólica (o sedativo) é o organismo que sofre.
Por que será que o neurótico anda sempre à procura de sensações? É
porque ninguém reconhece seus sentimentos. As crianças podem passar
por dores permissíveis, como as de estômago, por exemplo, mas não pelas
que tragam a tristeza. Assim, a mágoa da criança é dirigida. Ela deve
representar simbolicamente quando tudo que está tentando dizer aos pais
é que "está triste."
Como exemplo disso vou citar um incidente da vida de um de meus
pacientes. Estamos no casamento de um rapaz e ele é surpreendido por um
senhor de idade, um velho amigo que o abraça com ternura desejando -lhe
felicidades. O rapaz sente-se inexplicavelmente tomado de uma profunda
tristeza e desaba num pranto incontido abraçado ao seu amigo, mas não
faz a menor ideia do que se passa com ele.
A Teoria Primal diria que o abraço do mais velho tocou numa velha ferida
do rapaz. O paciente contou-me que seu pai nunca fora carinhoso com ele,
e nunca tivera quem sinceramente lhe desejasse a felicidade. Aquele vazio
profundo vinha sendo carregado por ele sem sentir até a hora que o carinho
do velho deflagrou a Dor.
O que ele sentia era o fragmento de um sentimento total que, se fosse
completamente percebido, iria inundá-lo de Dor além da profunda tristeza
que sentia no momento. Os carinhos que recebeu naquele dia não
alteraram a Dor que ele sentia até que pudesse descansar para sentir tudo
e poder então formar um conceito de sua mágoa. A sua luta começou
quando pela primeira vez percebeu que não tinha um pai carinhoso.
Começou a mostrar-se independente como se, realmente, não precisasse
dos carinhos do pai. Enquanto conseguisse evitar o carinho, do qual tanto
precisava, ele podia também evitar a dor. O repentino carinho do velho
amigo pegou-o desprevenido num momento vulnerável de emoção que era
o seu casamento.
Uma outra paciente contou-me o que lhe acontecera.
"Era como se eu tivesse riscado um círculo em torno daquela minha
imagem indesejada, que não devia mais ser vista nem ouvida e devia ser
relegada ao esquecimento. Mas eram só os meus sentimentos que
acompanhavam aquela dor de não ser querida. Junto com meu:
sentimentos iam o amor, a força e o desejo. Eu já não existia. Sempre que
me procuravam só via o vazio, o nada. Eu morri no ódio e na rejeição deles.
A realidade para mim era sentir a realidade de meu próprio desprezo."
Quando o neurótico se desliga de sua Dor, eu creio que ele deixa de sentir
completamente. O neurótico, até que venha a sentir outra vez, não sabe
que nada sente. Assim não se pode convencer a um neurótico que ele seja
insensível. O único fator convincente é quando ele começa novamente a
sentir. Até que tal aconteça ele pode responder que recentemente assistiu
a um filme trágico que o levou às lágrimas. Afirma então que aquilo é
sentimento, mas o caso era que ele não estava sentindo a sua própria
tristeza e portanto aquilo não poderia ser considerado como um pleno
sentimento. Se ele chegasse a relacionar o que viu no filme com as exatas
condições de sua vida, ele poderia ter uma Dor Primal ali em pleno cinema.
Na verdade, muitas delas acontecem quando o paciente discute algum
filme que o fez chorar. No entanto, aquilo que ele sente no cinema e depois
sente no consultório são dois fenômenos distintos.
As lágrimas num cinema são um fragmento do passado repudiado do
neurótico. São geralmente o resultado da liberação de sentimentos mais
do que sua expansão em sentimentos Primais completos. O processo de
liberação é que ajuda a tornar ausente o sentimento completo. Transforma
e aborta o sentimento e assim mitiga a dor.
A mesma explicação se aplica à pessoa que tem frequentes acessos de
cólera. É claro que ela está sentindo a raiva que está demonstrando, não é
mesmo? Mas, a não ser que aquela raiva, que está sendo expelida a os
poucos cada dia contra alvos aparentes, seja sentida e ligada ao seu
contexto inicial, ela não pode ser um sentimento no sentido Primal.
Tomemos o indivíduo que explode só porque teve que esperar um pouco.
Ele pode bem ser o adulto cujos pais o mantinham numa constante espera
quando era criança. Mais tarde na vida, qualquer coisa que se parecesse
com aquela espera a que os pais o obrigavam podia facilmente fazer
explodir uma raiva completamente fora de propósito quanto à situação.
Infelizmente, essa falta de atenção de parte de outros continuará sempre
a despertar a raiva até que ele consiga perceber o verdadeiro contexto de
seus sentimentos iniciais a tal respeito.
Até então, a raiva não pode ser considerada como um verdadeiro
sentimento desde que os alvos sejam apenas símbolos e não constituam a
realidade que a originou.
Na minha opinião, os sentimentos seguem o princípio de tudo-ou-nada.
Qualquer coisa que lembre um sentimento fará com que todo o corpo o
sinta. Para um neurótico, no entanto, o erotismo poderá muitas vezes
causar sensações localizadas nos órgãos genitais, e não no corpo inteiro,
como sensações sexuais sentidas dos pés à cabeça. A fragmentação do
neurótico explica suas risadas abafadas, os espirros suprimidos e as
palavras que parecem sair da boca sem qualquer relação com o resto do
rosto. Nem todos os neuróticos sofrem dessa mesma forma, mas o
processo de fragmentação sempre encontrará meios para se manifestar.
Existe uma série de expressões que são chamadas de sentimentos, mas que
não acredito que sejam. O "sentimento" de culpa é um desses. Um
neurótico poderá dizer: "Sinto-me horrorizado com essa mentira. Sou
muito culpado!" Eu consideraria a culpa como uma fuga ao sentimento
(Dor) porque ela deflagra comportamentos destinados a aliviar a tensão.
'Uma pessoa sadia ao fazer alguma coisa errada sentiria o pleno impacto
de seu erro e procuraria corrigir a situação.
Eu creio que, na sua base, a culpa nada mais é senão o medo de perder o
amor dos pais. Um paciente disse-me durante uma sessão Primal que
estava furioso com o pai por havê-lo abandonado tão cedo na vida. Sentia
por isso as coisas mais estranhas. Dizia que era a culpa que não lhe permitia
gritar bem alto toda a sua raiva. Quando viu o que era realmente, percebeu
que tinha medo de denunciar o pai completamente porque poderia perdê-
lo para sempre. A motivação da culpa, portanto, é vista como
comportamento em reação ao medo.
A depressão é frequentemente considerada como um sentimento. Os
pacientes que já passaram por Primais não registram depressões. Sentem
tristeza em certos acontecimentos, mas são sentimentos específicos para
determinada situação. Pelo que consegui observar, a depressão é a
máscara para os sentimentos muito profundos e dolorosos que não podem
ser ligados pela pessoa. A verdade é que há neuróticos que preferem
matar-se para não terem que passar por tais sentimentos. A depressão é
um estado de espírito muito parecido com os sentimentos Primais mas que
continuam sendo experimentados como sensações físicas desagradávei s
("Estou no fundo. Sinto-me na fossa. Tenho um peso no peito, alguma coisa
que me aperta. E outras expressões parecidas.") porque não há uma ligação
com as origens de tal sentimento. Quando as depressões são medidas com
um eletromiógrafo, elas mostram um nível muito alto de tensão que prova
ser a depressão um sentimento desligado. Recentemente, o Dr. Frederick
Snyder, do National Institute of Mental Health, registrou o padrão de sono
dos pacientes depressivos. Eles começam suas atividades de sonho logo
que adormecem, e o sono é truncado e fragmentado. Geralmente dormem
menos do que as outras pessoas, o que é mais uma prova da tensão
existente na depressão. 13
Qualquer incidente trivial pode deflagrar uma depressão. Uma paciente foi
a uma festa e saiu cedo e deprimida. Ninguém falara com ela nem havia
despertado qualquer interesse sentando-se ao seu lado. A depressão durou
dias e logo tornou-se claro que nada tinha a ver com a festa, que, afinal, só
tinha servido para despertar algum sentimento muito antigo, e até então
oculto, que seus pais nunca se interessavam por ela nem sentavam -se ao
seu lado para conversar. Quando se submeteu a uma Primal em que
implorou aos pais para que o fizessem, a depressão desapareceu. Muita
gente livra-se de suas depressões saindo para fazer compras, fazendo
planos para algum programa ou festa, mas elas continuam a existir num
estado latente esperando que as atividades terminem. Continuarão a
perseguir a pessoa até que sejam sentidas as razões.
Existem outros pseudo-sentimentos. Aqui temos um exemplo de rejeição:
Durante uma sessão com alunos, eu critiquei o relatório escrito por um
jovem psicólogo considerando-o impreciso. Ele começou então com uma
onda de defesas. "Eu não queria dizer aquilo que o Sr. entendeu. Além
disso, o relatório não está terminado," e por aí além. Quando lhe perguntei
como sentia-se ele respondeu, "Rejeitado," mas o que realmente sentia
eram velhos sentimentos de rejeição da parte de seu pai pensando que

13
G. B. Whatmore, "Tension Factors in Schizophrenia and Depression," Tension in Medicine, ed.
E. Jacobson (Springfield, III., Charles Thomas, 1967).
nada podia fazer que lhe agradasse, que conquistasse o seu amor. Para não
sentir toda a dor, no entanto, ele lançou uma nuvem de fumaça de
explicações, projeções e desculpas para ver se afastava a Dor Primal. Não
discutiu as falhas de seu trabalho. Aqueles erros significavam para ele que
não era bom e nunca seria amado. Não sentiu contudo o incipiente
sentimento de rejeição. Ao contrário, tentou esconder os sentimentos com
o seu comportamento.
O que o jovem psicólogo estava fazendo era cobrir os antigos sentimentos
despertados pela crítica presente. Não havia nada inerentemente doloroso
no simples fato de redigir um relatório falho que justificasse todas aquelas
explicações. Suas desculpas tinham por fim manter afastada a Dor Primal.
Ele realmente começou a sentir alguma coisa rejeitada, a antiga e
verdadeira rejeição, mas escondeu esse sentimento e é por isso que eu digo
que os neuróticos não sentem completamente. Eles ficam divididos entre
sua infância e os sentimentos dessa época de modo que não podem
experimentar um sentimento completo. Cada novo insulto ou crítica que
recebem como adulto deflagra pedaços da antiga Dor. Mas sentir -se
realmente rejeitado significa estorcer-se de Dores durante uma sessão
Primal, sentir-se completamente só e indesejado como quando criança.
Depois de sentir isso, já não há mais sensações de rejeição e sim apenas do
que está acontecendo no presente. Assim, quando uma mulher ignorá -lo
em alguma festa social, a pessoa pensará: "Ela não gostou de mim" ou
então uma outra reflexão parecida, mas não se sentirá rejeitado no sentido
neurótico da palavra. Isso significa que não houve uma rejeição para
estragar seu dia.
A vergonha é um outro pseudo-sentimento. Vamos supor que um homem
chore e depois mostre-se envergonhado do que fez. Ele sente que não
receberá aprovação por haver-se mostrado fraco. Tenta então esconder o
que fez por trás de uma desculpa de mau comportamento de forma que
não possa sentir-se repudiado. Nesse sentido, o eu irreal, tendo absorvido
os valores dos pais, e mais tarde os da sociedade, está pressionando o
verdadeiro eu.
O orgulho é quando vence o eu irreal. O orgulho é um sentimento negativo.
Mostra alguma coisa, alguma ação que muitas vezes, inconscientemente,
torna as pessoas orgulhosas. É o que eles fazem. As pessoas de sentimentos
não precisam fazer coisas para chegarem a sentir. Aquilo que o neurótico
faz para sentir-se orgulhoso vai se modificando com a idade. Com dois
significa manter enxutas as fraldas e aos trinta é matar um elefante. A
mesma necessidade pode impelir os dois comportamentos. Ela permanece
constante. O que fazemos ao envelhecer é tecer em torno dela círculos de
defesa cada vez maiores até nos perdermos num emaranhado de atividades
simbólicas.
Quando o neurótico pensa que está tendo tremendas sensações acerca de
alguma situação corrente em sua vida, a intensidade desse sentimento é
um peso que se acrescenta ao Conglomerado Primal. Quando isso se
esvazia metodicamente por meio da Terapia Primal, a pessoa descobre
como são pouco intensos os seus sentimentos. Quando houver alguma
coisa com suas roupas e a lavanderia ele talvez se aborreça mas nunca
ficará furioso. O neurótico esvaziado também ficará sabendo como são
poucos os sentimentos dos homens. Despido da vergonha, da culpa, da
rejeição e de todos os outros pseudo-sentimentos, ele compreenderá que
esses pseudo-sentimentos são apenas sinônimos para o grande oculto
sentimento Primal de não ser amado.
Mesmo quando um neurótico pensa que está passando por uma
experiência sensacional, numa terapia de grupo comum, por exemplo, ele
não faz ideia da tremenda força e alcance dos sentimentos neuróticos
reprimidos. As lágrimas e soluços nas terapias convencionais de grupo
representam muito pouco em comparação com o gigantesco e ainda
adormecido vulcão interne composto de milhares de experiências que
anseiam pela liberação. A Terapia Primal vai fazendo isso por etapas. Tão
cedo sejam sentidas as negações, não mais existirão as grandes
profundidades de emoção que esperamos encontrar nos homens. A
perspectiva Primal de um sentimento pode representar o polo oposto do
ponto de vista leigo. As pessoas muito emotivas estão sempre agindo pelos
sentimentos reprimidos do passado e não chegam a sentir o presente. As
pessoas normais, privadas das supressões do passado, sentem apenas o
presente que não é tão volátil como a emotividade neurótica porque não
há por trás dele forças reprimidas. Assim, o neurótico pode rir
explosivamente porque há realmente uma explosão dentro dele. Também
pode não conseguir rir espontaneamente porque existe ainda lá atrás
alguma espécie de tristeza. No primeiro caso o neurótico escondeu o
sentimento e converteu-o em riso, mas no segundo exemplo, o riso ou a
tristeza podem haver sido reprimidos por uma pessoa que tenha nivelado
todas as suas emoções. Aquilo que o leigo muitas vezes vê como um
sentimento verdadeiro não passa de fortes reações para ferir como a raiva,
o medo, o ciúme e inveja, o orgulho e muito mais.
Na terapia comum, até mesmo a posição de sentar-se ereto numa cadeira,
de frente para o terapeuta, serve para evitar essas experiências de
sentimentos convulsivos. Tampouco são esses sentimentos o resultado de
alguma espécie de terapia de confrontação entre o paciente e o terapeuta.
A única confrontação na Terapia Primal é entre o eu real e o irreal.
O fato é que o neurótico é uma pessoa dotada de sentimentos, mas eles
encontram-se isolados pela tensão. Ele está constantemente cheio desses
sentimentos antigos sem solução e que anseiam por uma ligação final que
emerge como tensão. Para que o neurótico possa sentir novamente será
preciso que ele volte para sentir o que nunca foi. Assim ele pode tentar o
contato físico num grupo de encontro terapêutico especial e acreditar que
está derrubando as barreiras entre ele e os outros ou então passando por
uma calorosa experiência, onde aprende a sentir os outros. Não existe
porém qualquer meio para uma pessoa sem sentimentos perceber a mesma
coisa nos outros por maiores que sejam os contatos físicos. Primeiro temos
que aprender a sentir a nós mesmos para depois então sentir os outros.
Uma pessoa bloqueada poderia concebivelmente tocar alguma outra
durante um dia inteiro sem conseguir sentir coisa alguma. Aliás não será
coisa alguma, pois ele chegará a sentir a antiga dor, talvez por não haver
contado com carinho na sua tenra infância, só que não se dará conta do
que se passa. No meu ponto de vista, ser sensual é termos todos os nossos
órgãos sensoriais prontos para o estímulo. Quando isso não acontece
vamos então encontrar mulheres frígidas que vão para a cama com
qualquer homem e ainda assim continuam sem sentir nada.
A questão é que as barreiras de sentimentos não são geralmente entre
pessoas exceto de forma indireta, já que são todas internas. A barreira,
escudo ou membrana por trás da qual vivem tantos neuróticos é o
resultado de milhares de experiências em que foram suprimidos os
sentimentos e as reações. Essa barreira tornou-se mais espessa à medida
que iam sendo isolados os novos sentimentos. Não existe uma forma
qualquer para se romper essa barreira. A única coisa a fazer é ir voltando
para o passado e tentando atingir cada uma das maiores razões destruindo-
a aos poucos até chegar o dia em que ela deixe de existir e já não haja mais
obstáculo algum. Assim, quanto mais perto conseguirmos chegar de nós
mesmos, mais perto estaremos também dos outros.
Os sentimentos reais não podem ser resolvidos com o rompimento
simbólico de barreiras. Uma técnica muito comum, por exemplo, é reunir
as pessoas num círculo com uma no centro. Ela aprende então a romper o
cordão das pessoas que estão todas de mãos dadas. Eu acredito que
teoricamente a pessoa esteja aprendendo a libertar-se dessa forma. Parece
uma mágica. "Se eu passar por este ritual, então vou resolver todos os
meus problemas." Acredito que o ritual tenha por fim permitir que as
pessoas se sintam livres, mas acho que também serve para alimentar a
neurose incentivando uma saída simbólica. Há outras maneiras pelas quais
o neurótico pode sentir-se livre e estou certo que deve haver um alívio
momentâneo de tensão por meio do ritual simbólico, embora ele mal possa
arranhar o rígido sistema de defesa.
O que isto tudo significa, em resumo, é que quaisquer que sejam as ações
do neurótico, elas não podem acabar com a neurose. O neurótico pode
tocar sem sentir, pode escutar sem ouvir, pode ver sem perceber. Po de
praticar exercícios de acariciar os outros, mas tudo isso só fará sentido
quando ele sentir o que está fazendo, mas já então não terá mais
necessidade dos exercícios.
O ponto de vista Primal a respeito de sentimento é consideravelmente
diferente dos outros. Se, durante uma sessão de treino de sensibilidade,
alguém segurar a mão de outra pessoa, isso normalmente seria
considerado como uma experiência interpessoal, mas o que acontece com
o neurótico nesse caso é que o contato desperta centelhas de poderos as
necessidades Primais, sem contudo deflagrá-las, sendo que tais
necessidades não têm nome mas frequentemente tornam as pessoas
excitadas. Por quê? Apenas porque aquilo que é simplesmente um gesto de
afeto humano, uma sensação agradável, mergulha no profundo conjunto
emotivo de uma infância negligenciada e estéril, que acrescenta à
experiência uma grande ressonância e força. Como a força não é conceituai
isso naturalmente torna-se uma experiência isolada na qual a pessoa pode
ser tomada pela emoção ou então pode sentir algumas inefáveis sensações
místicas a que podemos chamar de experiência máxima. A Terapia Primal
deflagra esse reservatório de sentimentos e liga-o à conceituação. Depois
disso o fato pode ser o que realmente é, isto é, um simples contato, e não
aquilo que fez dele uma história de abandono. Por aí vemos como é
exagerada a reação neurótica surgida de uma necessidade insatisfeita.
Eu creio que haja níveis, ou antes, camadas de defesa que permitem
algumas pessoas se aproximarem mais de seus sentimentos do que outras.
Tudo depende do modo como se alinhou a constelação da família, do meio
cultural e ainda da formação constitucional da pessoa. Há famílias onde
não se permite demonstração de sentimentos e outras em que o sexo é
permitido e os sentimentos de raiva proibidos. Geralmente, no entanto, os
pais neuróticos são contrários ao sentimento, e um bom índice do quanto
eles tentarão cancelar nos seus filhos é o quanto eles foram obrigados a
cancelar em suas vidas para poderem sobreviver. Muitas vezes isso não é
um processo deliberado. Pode ser a constante repressão quando as
crianças são por demais exuberantes, o olhar dos pais quando as crianças
resmungam ou reclamam, o embaraço quando elas falam de sexo ou
quando a filha mostra seu corpo no banho. Pode estar na atitude adotada
pelo pai para não dar importância aos medos do filho ou às tristezas da
filha. Pode ser a mãe tão castigada pela vida que não pode tolerar que sua
filha mostre seu desespero ou necessidade de proteção. Pode estar em
todas as frases estereotipadas que os pais reservam para os filhos como,
por exemplo, "Não torne a me falar assim"; "não pense em fracassos, meu
filho, pense só no sucesso"; "o que há com você, seu maricas? Será que não
pode aguentar?" Pode estar nos milhares de acontecimentos triviais em
que tudo se nega às crianças. Ou então, ainda mais tragicamente, pode
estar no simples fato de a mãe ou o pai nunca terem tido quem os
orientasse ou incentivasse na vida. O resultado é sempre o mesmo: o ego
magoado fechado pela Dor.
Eu creio que no campo da psicologia tem havido muita confusão sobre o
que aconteceu com os sentimentos do neurótico. Há quem diga que ele
nunca, realmente, desenvolveu toda a sua capacidade para sentir. Outros
acreditam que os sentimentos primevos foram sepultados e não podem ser
recuperados. Eu afirmo que a capacidade de sentir não pode ser
irremediavelmente danificada. Na verdade, o neurótico parece ser a
imagem viva de um Primal no sentido que seus sentimentos não o
abandonam um só minuto do dia. Eles transparecem na sua pressão alta,
suas alergias, suas dores de cabeça, na tensão dos músculos, na firmeza de
seu queixo, na contração dos olhos, no rosto fechado, no som de sua voz e
na maneira do andar. O que nunca conseguimos fazer antes foi catar todos
os sentimentos espalhados para reconstituir a peça inteira e formar um
sentimento completo e claro.
Acredito que a forma para conseguir isso está no Método Primal que
discutiremos a seguir.
8 - A CURA

Nenhum paciente que se submete à Terapia Primal está de antemão


preparado para o fato de não se tratar de um processo comum de cura.
Numa conversa telefônica eles descrevem a natureza de seu problema e
fornecem uma rápida história de problemas físicos anteriores. O paciente
deverá então submeter-se a um rigoroso exame físico para eliminar
qualquer contraindicação para a Terapia Primal como, por exemplo,
patologia orgânica do cérebro. Se houver suspeita de qualquer psicose
haverá uma entrevista pessoal. Pede-se ao paciente que escreva uma carta
sobre si mesmo, na qual ele deve contar a história de sua vida e de sua
família, seus problemas, terapia anterior e porque deseja submeter -se à
Terapia Primal. Na maioria dos casos não há entrevista pessoal antes de
começar o tratamento. Isso, geralmente, não é necessário porque o
paciente foi orientado por algum amigo que já passou por essa terapia ou
então pelo seu médico que lhe explicará como ela é. Quando dá início ao
tratamento já ele sabe bastante o que deve esperar.
Depois de nosso contato por telefone e do recebimento da carta, envia-se
ao paciente uma lista de instruções como se vê no Apêndice B. Essas
instruções especificam que ele deverá abrir mão do álcool, dos cigarros e
drogas durante a duração do tratamento Primal, ou seja, um período de
alguns meses. Será informado que terá três semanas de tratamento
individual e diário, seguido de diversos meses de sessões de grupo. Não
deve trabalhar ou frequentar a escola durante as primeiras três semanas.
Necessitará de todas as suas energias para a terapia e, aliás, ficará
frequentemente tão perturbado que não poderia trabalhar mesmo que
quisesse.
O novo paciente será a única pessoa recebida para a terapia individual
durante as três semanas. Ele terá todo o tempo que necessitar todos os
dias e será o único a decidir quando deverão ser suspensas as sessões que,
geralmente, duram entre duas e três horas. É muito raro que alguém seja
tratado durante menos de duas horas ou mais do que três e meia. A Terapia
Primal é muito mais econômica do que a outra convencional de insight, não
somente em termos financeiros como também no tempo que leva. O custo
total em dinheiro é cerca da quinta parte do custo de uma psicanálise.
Vinte e quatro horas antes de começarmos, o paciente é isolado num
quarto de hotel e não deve sair dali até a hora de sua consulta no dia
seguinte. Durante esse período de vinte e quatro horas ele não pode ler,
não pode ver televisão nem falar ao telefone. Tem permissão para escrever.
Quando temos razões para acreditar que seja um paciente muito bem
defendido, nós podemos pedir-lhe que fique de vigília a noite inteira. Essa
técnica poderá ser usada de quando em quando durante as primeiras duas
semanas da terapia individual.
O isolamento e a vigília são técnicas importantes que muitas vezes trazem
o paciente para mais perto da Primal. O objetivo do isolamento é privar o
paciente de todas as suas usuais válvulas de escape de tensão ao passo que
a vigília provavelmente ajudará a enfraquecer o que lhe restar de defesas.
Fica com menos recursos para combater seus sentimentos. O objetivo não
é permitir que o paciente se alheie. Um paciente contou-me que quando ia
na metade da noite ele procurava animar-se, e sempre que parava para
olhar lá fora pela janela do hotel, começava a chorar convulsivamente sem
saber por que. Uma outra entrou em pânico e teve que me telefonar à
meia-noite para que eu lhe garantisse que não ia ficar louca. A solidão
muitas vezes torna o neurótico desesperado. Para muitos pacientes, aquela
primeira noite no hotel é a primeira vez em anos que ficam sós e que
pensam neles mesmos. Não têm onde ir nem o que fazer. Não encontram
como representar a irrealidade. Uma das importantes funções da vigília
durante a noite inteira é não permitir que os pacientes representem suas
irrealidades em sonhos. A falta de sono ajuda a derrubar as defesas, em
parte porque a simples fadiga torna a pessoa incapaz de representar seu
ato mas principalmente porque não pode fazê-lo por intermédio dos
sonhos e não pode, portanto, aliviar a tensão. Detendo esse ato simbólico,
com a vigília, nós trazemos a pessoa para mais perto de suas sensações ou
sentimentos. Além de tudo isso, um bom número de estudos e pesquisas já
mostrou que o isolamento em si já prepara a pessoa para a dor.
A Primeira Hora

O paciente chega sofrendo. Não está fumando ou tomando tranquilizantes,


e sente-se cansado e apreensivo. Não tem certeza sobre o que deve
esperar. Pode ser que fique esperando cinco ou dez minutos além de sua
hora marcada para fazer a tensão aumentar. O gabinete a prova de som
está numa semiescuridão e o telefone está desligado. O paciente deita-se
no sofá. Digo-lhe que fique de braços abertos porque quero o seu corpo
numa posição que não lhe permita defesa. Descobri a importância dessa
posição e postura quando observei, presos recém-chegados às suas celas
onde passavam os primeiros dias com as pernas cruzadas, os braços
descansando na barriga e o corpo curvado sobre os joelhos como se aquilo
os protegesse contra a solidão, o desespero e a dor. O que acontece a partir
desse ponto, naturalmente, depende muito do paciente. A seguir dou um
exemplo típico.
O paciente passa a discutir sua tensão e seus problemas, sua impotência,
dores de cabeça, depressão e mal-estar geral. E possível que exclame: "De
que adianta tudo isto?"; "Todo mundo está bem doente e já não sobra mais
ninguém"; "Já estou cansado de estar só! Não consigo fazer amigos e
quando isso acontece eu logo me encho deles!" A verdade é que o paciente
sente-se infeliz e sofre. Se ele estiver muito tenso ou medroso, eu lhe peço
que se entregue a tais sentimentos. Se entrar em pânico aconselho que
chame um dos pais em seu auxílio. Em certas ocasiões isso produzirá uma
sensação dolorosa dentro dos primeiros quinze minutos de sua primeira
sessão. Peço-lhe que conte os primórdios de sua vida. Ele dirá que não se
lembra muito bem. Eu insisto para que conte só o que lembra. E o paciente
começa então a contar sobre a sua primeira infância.
À medida que ele fala eu vou coligindo as informações. O paciente revela
de duas maneiras o seu sistema de defesa.
Primeiro, na maneira como fala. Pode estar intelectualizando, mostrando
muito pouco sentimento, usando abstrações e, em geral, agindo como se
fosse um observador de sua vida e não o próprio ator. Uma vez que está
usando a sua "personalidade" (ou o eu irreal) para contar a sua vida, nós
damos toda a atenção ao que ele está dizendo. A pessoa cautelosa que
procura fugir pretendendo dizer, "Não me cause mais mágoa. Não sentirei
senão quando parar de magoar-me."
À medida que vai falando, o paciente vai também contando como eram as
coisas em casa: "Eu me calava quando ele me dizia aquilo"; "Eu não lhe
dava o gostinho de saber que estava me magoando"; "Mamãe era tão
criança que eu tinha que assumir o comando e ficar sendo a mãe"; "Papai
estava sempre me acusando e então eu tinha sempre respostas prontas
para tudo"; "Eu nunca estava certo"; "Não havia afeição".
Fazemos com que o paciente se aprofunde mais em alguma situação
primitiva que parece lhe trazer muitas sensações. "Eu estava lá deixando
ele bater em meu irmão e ... meu Deus, sinto-me tenso ... não sei o que é
..." Faço com que volte àquilo. Pode ser que ele não descubra o que é ou
então que diga, "eu acho que comecei a sentir que aquilo podia me
acontecer se eu respondesse como fazia meu irmão ... Ui! Sinto um nó no
estômago. Seria medo?" O paciente começa a se mexer. Move as pernas e
as mãos. Pisca os olhos e fecha o cenho. Suspira ou rilha os dentes. Eu então
insisto com ele para que continue e que não deixe fugir. Algumas vezes ele
responde que tudo já passou. Esse processo de fintas pode durar horas ou
dias, mas aqui eu posso engavetar a situação presumindo que a sensação
permaneça ali, e passo então para o estágio seguinte.
A próxima afirmativa do paciente poderá ser: "Estou todo tenso. É i sso
mesmo, acho que tinha medo do velho." Nesse ponto, quando vejo que
ainda se apega à mesma sensação, peço-lhe que respire profundamente
com a barriga. Digo-lhe então que abra a boca ao máximo e conserve-a
aberta. — Agora puxe essa sensação para fora de sua barriga! — O paciente
começa a respirar profundamente contorcendo-se e sacudindo-se. Quando
percebo que a respiração é automática eu ordeno-lhe: "Diga ao papai que
você está com medo!" e a resposta talvez seja: "Não vou dizer nada a esse
filho da puta!" Eu insisto. "Diga! Vamos lá, diga!" Geralmente, durante a
primeira hora, por mais simples que isso pareça, o paciente não conseguirá
dizer. Se conseguir dizer gritando, isso geralmente traz uma corrente de
lágrimas e contrações do estômago. É possível que logo depois comece a
contar a espécie de homem que era o pai. Haverá então boas
probabilidades dele vir revelar diversos insights à medida que vai falando.
A reação inicial é chamada pré-Primal e pode durar alguns dias ou mesmo
uma semana, mais ou menos. Trata-se, essencialmente, de um processo de
limpeza cujo objetivo é fazer o paciente abrir-se e prepará-lo para entregar
o seu sistema de defesa. Não há esse que simplesmente chegue e se
entregue. O corpo desfaz-se de suas neuroses aos poucos e bem a
contragosto.
Depois de uns quinze minutos o paciente já se acalmou outra vez e pode
começar a falar coisas inócuas no seu estilo usual de não comunicação. O
que fala é desprovido de sentimento. Mais uma vez é levado para uma certa
situação penosa em seu passado. O terapeuta, por sua vez, está também
atacando todas as manifestações de defesa do paciente. Por exemplo, se o
paciente fala baixinho ele diz-lhe para falar bem alto. Para o paciente muito
distante de seus sentimentos, e que vive "dentro de sua cabeça " é
geralmente impossível chegar a uma pré-Primal durante alguns dias, mas
ainda assim, continuamos sempre atacando durante todas as sessões.
A primeira hora de um intelectual, por exemplo, pode ser muito parecida
como uma sessão comum constando da história, perguntas e
esclarecimentos. Nunca se discutem ideias. Não discutimos a teoria Primal
ou a sua validez como muitos pacientes gostariam de fazer. Cada dia faz -se
uma nova tentativa para abrir mais a brecha do sistema de defesa até que
o paciente não possa mais defender-se. Os seus primeiros dias de terapia
são muito parecidos com seus primeiros anos devida, antes que ocorresse
a Cena Primal que o enclausurou. Ele sente acontecimentos isolados e
discretos, mas fragmentados. Quando todos os fragmentos se combinam
para formar um todo o paciente está em seu Primal.
Se o paciente se mostra inteligente, humilde, delicado, obsequioso, hostil
ou dramático, em suma, seja lá qual for a frente que apresente, proibimos -
lhe isso num esforço para fazê-lo passar além das defesas e entrar na
sensação. Se ele levantar a perna ou voltar a cabeça, ordenamos que
permaneça completamente estirado. Pode acontecer que de risadinhas ou
boceje à medida que surgem as sensações mas também isso lhe proibimos
mostrando impaciência. Se ele tentar mudar de assunto deve ser logo
detido. Ou então ele pode, literalmente, tentar engolir a sensação, como
acontece com muitos pacientes que estão sempre engolindo em seco logo
que alguma sensação começa a se manifestar. É por esta razão que os
obrigamos a manter a boca aberta.
Enquanto o paciente discute uma nova situação do princípio de sua vida,
nós continuamos atentos para os sinais da sensação. A voz poderá tremer
ligeiramente como se fosse dominada pela tensão. Repetimos o processo
de insistir para que o paciente respire e sinta. Nesse instante, que pode ser
uma ou duas horas depois, o paciente está abalado. Já não sabe qual é a
sensação e sim apenas que se sente tenso e em expectativa, isto é, tenso
contra a sensação. Eu começo com o processo de respirar e forçar. O
paciente jura que hão sabe o que sente. Sente um aperto na garganta e no
peito. Sente ânsias de vômito. Eu digo-lhe que é apenas uma sensação mas
que não vai vomitar. (Aliás ainda não tive um paciente que realmente
vomitasse apesar das ânsias.) Insisto para que diga o que sente embora ele
mesmo não saiba. Ele tenta então formar uma palavra mas logo começa a
torcer- se de Dor. Insisto com ele para que descarregue e ele continua
fazendo força para dizer alguma coisa. Finalmente consegue. É um grito
"Papai seja bonzinho", "Mamãe ajude-me!", ou então simplesmente a
palavra "ódio". "Eu te odeio! Eu te odeio!" E é este o Grito Primal. Ele cai
em convulsões espasmódicas, empurrado pela força dos anos de
repressões e negações do sentimento. Algumas vezes o grito é apenas
"Mamãe!" ou "Papai!" O simples enunciado dessa palavra traz uma
torrente de Dor já que muitas "mamães" nunca permitiam que os filhos as
chamassem senão de "Mãe" apenas. O fato da rendição e de voltar a ser a
criancinha que precisa de sua "mamãe" muito contribui para dar vazão às
sensações e sentimentos acumulados.
O grito é ao mesmo tempo um grito de Dor e um acontecimento liberador
em que o sistema de defesa da pessoa abre-se de forma espetacular. É o
resultado da pressão para conservar reprimido o verdadeiro eu,
possivelmente durante décadas. É em grande parte um ato involuntário.
Todo o corpo sente aquele grito. Muitos dizem que ele é como um
relâmpago e uma faísca que parecem despedaçar todo o controle
inconsciente do corpo. Em um outro capítulo eu trato do grito e de seu
significado com maiores detalhes. É bastante dizer aqui que o Grito Primal
é a causa e o resultado de um sistema de defesa que se desmorona.
Durante a primeira hora eu muitas vezes faço o paciente falar somente dos
pais. Quando ele me fala a esse respeito isso automaticamente o separa de
suas sensações, como se fossem duas pessoas adultas discutindo. Então, é
possível que ele conte alguma coisa como, por exemplo, "Papai, eu me
lembro quando você estava me ensinando a nadar e gritou comigo porque
eu estava com medo de mergulhar a cabeça. Finalmente você me deu um
'caldo'." Nesse ponto pode acontecer que o paciente volte-se para mim e
diga com raiva, "O senhor pode imaginar aquele estúpido filho da puta
dando um 'caldo' num menino de seis anos"? Eu então lhe digo. — Pois fale
para ele tudo o que sente! — E ele então desanda numa descompostura
gritando como aquele menino de seis anos. Isso leva a outras associações
e ele já está começando a sentir. Nós então começamos a falar como seu
pai lhe ensinava outras coisas e o medo que ele tinha daquilo. "Houve uma
vez que ele me obrigou a montar num cavalo enorme embora eu não
soubesse cavalgar. O cavalo empinou e saiu na disparada. O guia conseguiu
segurar-nos. Meu pai não disse uma palavra." Mais uma vez digo-lhe para
falar com o pai como se sentei. Suas associações tentam conservá-lo nas
lições ou nas situações em que seu pai não queria que ele mostrasse ter
medo. Ou então pode, de repente, virar-se para sua mãe. "E porque ela não
o detinha?" Simplesmente porque era muito fraca. Nunca me protegia
contra ele." O paciente já agora está às voltas com a mãe. "Mamãe, ajude -
me! Eu preciso quem me ajude! Tenho medo!" Isso pode acarretar
sentimentos mais profundos. Pode trazer soluços, lágrimas e dores na
barriga. Mais associação daquele tempo em que ela não o protegia contra
o "monstro". Mais insights mostrando como sua mãe era infantil e
medrosa. Como era por demais fraca para poder ajudá-lo. Depois de duas
ou três horas assim já o paciente está exausto e nós damos o dia como
terminado.
Ele volta então para o seu quarto no hotel. Sabe que poderá falar comigo a
qualquer hora, e na primeira semana poderá desejar voltar para uma outra
sessão mais tarde em vista do seu alto nível de ansiedade. Depois da
primeira semana já isso não acontece tanto. Ainda não pode assistir à
televisão nem ir ao cinema. Ele, aliás, não quer isso já que está pensando
em si mesmo.
O Segundo Dia

O paciente está exuberante de insights. "É como se toda a minha mente


estivesse explodindo, pensei em tanta coisa na noite passada. Quase não
dormi e não tenho fome. Quando afinal consegui dormir sonhei todo o
tempo." Ele começa com tudo porque as lembranças chegam todas. Conta -
me sobre coisas que já tinha esquecido, outras situações penosas que
deixou de mencionar na primeira hora. Pode começar chorando dentro dos
primeiros dez minutos e torna a falar sobre lembranças e insights
indistintamente. Parece sofrer muito, mas ainda assim, como aliás muitos
outros, "mal podia esperar pela hora da sessão." Mais uma vez estamos
bombardeando o seu sistema de defesa. Não deixamos que fuja do assunto
se desconfiarmos que está querendo esconder alguma coisa. Também não
permitimos que fique falando à toa. Acertamos numa lembrança dolorosa:
"Certa vez minha mãe levou-me para fazer compras com ela e mais duas
amigas. Colocou-me um pegador de cabelos na cabeça e perguntou às
amigas se eu não daria uma bela menina." E aí então ele grita, "eu sou
menino sua boba!" Depois discute tudo que sua mãe fazia para torná-lo
feminino. Mais lembrança, insights e sentimentos dirigidos contra ela.
Depois passa a falar de seus antecedentes e daquilo que a tornou como é.
Por que casou-se com um afeminado. Depois outra lembrança. "Eu ia servir
ao exército e beijou-me na despedida. Enfiou-me sua língua na minha boca.
Imagine o Sr. E era minha mãe! Virgem Maria! Ela sempre me preferiu a
meu pai. Mamãe! Deixe-me! Deixe-me! Eu sou seu filho!" "Agora já posso
compreender por que era sempre contra minhas namoradas. Queria-me só
para ela. Meu Deus, que vergonha! Agora lembro-me quando fomos a um
piquenique e fugimos para esconder de meu pai e ela descansou a cabeça
no meu colo. Senti uma coisa estranha. Meio nauseado. Minha mãe estava
tentando seduzir-me. Fiquei enjoado e vomitei sem saber por que. Agora
já sei. Lançou-me contra meu pai. A única coisa decente em minha vida.
Sua cadela! Cadela!" A essa altura já o paciente está rolando no chão
contorcendo-se ofegante. "Ódio! ódio, ódio, ódio!" Grita que quer matá-la.
Eu ordeno. — Diga então a ela! — Ele começa a martelar o chão
descontrolado e raivoso e isso pode durar uns quinze ou vinte minutos.
Finalmente sossega. Está exausto e não pode mais falar. Suspendemos
então a segunda sessão.
O Terceiro Dia

O paciente está ficando sem defesa. Algumas vezes chega chorando para a
consulta. Outras vezes encontro-o deitado no chão da sala de espera
soluçando. Reclama que não suporta a dor. Que ela é demais, que não pode
ler porque está sobrecarregado de lembranças e insights. Quer saber
quanto tempo vai durar isso. Voltámos no entanto ao processo de reviver
lembranças. "Lembro-me uma vez quando meu pai ficou zangado comigo
porque eu não queria fazer o que mamãe mandava. Eu tinha só oito anos.
Disse a ele para se calar. Ele me disse que nunca mais repetisse aquilo. Eu
repeti. Ele apanhou a vassoura e levantou-a para mim. Eu corri. Ele
perseguiu-me, alcançou-me e começou a me espancar. Meu Deus! Ele vai
me matar. Papai me odeia. Ele quer me ver fora de seu caminho. Pare,
papai! Pare!" O paciente está agora totalmente assoberbado pela
sensação. Rolou do sofá para o chão e está gritando, entre violentas
convulsões abdominais, que seu pai vai matá-lo. Pode estar suando,
tentando gritar mas sem conseguir. Continua a gritar tentando vomitar
gritando que vai morrer. Finalmente diz "eu vou ser bonzinho, papai. Não
vou mais responder." E não torna a responder mesmo. Fica sendo um
menino bonzinho. Passou por um Primal. Uma experiência total de
pensamentos e sentimentos do passado. Tudo está acabado em questão de
minutos e parece ser extraordinariamente doloroso. O paciente não
conversa sobre seus sentimentos. Ele apenas está sentindo.
A Primal é uma experiência completamente absorvente. O paciente quase
não se dá conta onde se encontra no momento. O que ele experimentou
durante os dois primeiros dias de sua terapia é aquilo a que chamamos de
pré-Primal. São sensações importantes do passado que não são muito
absorventes. Isso não significa que uma Primal total não aconteça na
primeira hora. Embora seja possível, não é uma regra geral. Algumas vezes
demora semanas. Quando acontece, parece que rompeu uma barreira de
pensamentos e sensações e a pessoa torna-se susceptível para toda sorte
de sensações e começa a ter Primais espontâneas fora da terapia. Desse
ponto em diante ela está a caminho da cura.
Com o decorrer dos dias ele provavelmente passará por experiências mais
profundas até atingir o ponto em que o equilíbrio crítico entre o real e o
irreal se altera em favor do verdadeiro eu permitindo uma completa
experiência de sensações. Daí em diante ele será absorvido por penosas
situações do passado e terá muitas Primais que se estenderão por períodos
de meses. Isso não significa, no entanto, que a pessoa seja completamente
real. Cada Primal diminui o eu irreal e aumenta o real. Quando as Dores
mais importantes forem sentidas já não haverá mais o eu irreal e podemos
dizer que o paciente está normal. A nossa obrigação é provocar a Dor para
apresentar uma pessoa com sensações reais.
Depois do Terceiro Dia

O processo do tratamento durante as três semanas seguintes continua, em


linhas gerais, como já se disse aqui. Há situações em que o paciente parece
que já não tem mais sensações. Já secou. Algumas vezes está apenas num
período refratário em que o corpo está descansando dos dias de dores. O
organismo é um excelente regulador da Dor e nós sempre temos cuidado
para não levar o paciente a mais dores quando ele se encontra nesse
período refratário.
Algumas vezes ele simplesmente está resistindo para não se defrontar com
suas sensações e o seu sistema de defesa ainda está resistindo. Embora o
paciente já tenha deixado o quarto de hotel depois da primeira semana,
em regra geral, nós podemos pedir-lhe para voltar para uma vigília noturna.
A ideia é de enfraquecer suas defesas outra vez.
Os pacientes dizem que cada dia de terapia vai eliminando mais camadas
de defesas. Esse processo ganha impulso porque desde que sente um
pouco de Dor, já o paciente está preparado para tolerar mais. Cada Primal
parece revelar novas lembranças escondidas que levam a outras Primais.
As que se sucederem poderão, cada vez mais, ir abrangendo todo o
organismo à medida que as defesas vão cedendo. O corpo só permite que
o paciente sinta uma certa quantidade de Dor de cada vez, e assim, se ele
não for apertado, as Primais irão se sucedendo numa sequência ordenada
e segura. Se forçarmos o paciente a procurar sentir mais do que ele pode
suportar o resultado só poderá ser que ele se desligará outra vez.
O que acontece geralmente na sequência Primal é que com o passar dos
dias o paciente vai voltando cada vez mais para a sua infância. É comum
falarem com a voz correspondente à idade que estão vivendo, podendo até
chegar ao choro de um bebê.
A observação de tudo isso levou-me a compreender a afinidade entre a Dor
e a lembrança, porque desde que a Dor desapareça, as lembranças dos
pacientes pós-Primais começam dentro de poucos meses de idade. Não se
trata de uma nova descoberta pois Freud já tornou isso conhecido no
princípio deste século. A natureza do trauma, porém, é por demais sutil:
ser deixado no berço todo molhado; ser retirado abruptamente para
qualquer coisa; ser esquecido e deixado chorando durante horas; ficar no
berço, desamparado, ouvindo as vozes estridentes dos pais interrompendo
seu sossego; não ser alimentado quando está com fome; não permitir que
mame ou então desmamado de acordo com uma tabela e não
naturalmente.
O trauma resulta também de partos difíceis e isso torna necessário
consultarmos novamente Otto Rank que escreveu sobre trauma dos partos
no princípio deste século. Ele acreditava que o parto em si já era
traumático, pois a criança abandonava o calor e a segurança do útero, ao
passo que eu sou de opinião que só o parto com trauma é traumático. O
parto é um processo natural e não acredito que qualquer coisa natural
possa ser traumática.
Assisti a uma Primal em que uma mulher estava encolhida como um feto e
de repente esticou-se toda e começou a chorar como um bebê. Quando
saiu do transe ela sentiu que tinha revivido seu parto muito difícil em que
realmente quase sufocara, num parto que durara vinte e quatro horas. Uma
outra pessoa reviveu também um parto muito difícil e depois de sentir a
luta para sobreviver sabia que ela tinha começado com seu nascimento e
que nunca mais acabaria. "Aquilo era como se minha mãe quisesse fazer as
coisas difíceis para mim desde o princípio.”
Presenciei uma outra Primal bastante elucidativa a tal respeito. Uma
mulher insistia em sentir que era infeliz sem saber por que. Estava sempre
queixando que não conseguia chorar. De repente, reviveu uma experiência
e seus olhos ficaram cheios de lágrimas. A experiência fora uma operação
que sofrerá quando tinha um ano para desobstruir os canais lacrimais. Ela
estava então com trinta anos e chorava normalmente, mas revivia os
acontecimentos de antes da operação e não conseguia então verter uma
só lágrima.
Isso mostra que o trauma existe mesmo antes que a criança possa falar. O
que produz a neurose não são apenas os gritos do pai ou da mãe. O trauma
parece fazer parte do sistema nervoso e é lembrado organismicamente. O
sistema físico sabe que está sendo traumatizado mesmo quando não seja
acompanhado pela consciência. E mais ainda, não é bastante conhecer tais
ocorrências. Se foram traumáticas, elas devem ser revividas e
experimentadas plenamente para poderem ser resolvidas com referência
ao seu continuado efeito sobre o organismo.
A partir do segundo período de três semanas, as Primais geralmente
ocorrerão quase diariamente. Existe um estilo Primal que é exclusivo para
cada pessoa. Alguns pacientes são levados às sensações através da
conversa, ao passo que outros começam com alguma sensação física, sem
explicação no momento, mas que depois se liga a alguma lembrança. Logo
antes da primeira ligação que é tão dolorosa, alguns pacientes agarram-se
ao sofá, outros apertam a barriga e ainda outros começam a balançar a
cabeça batendo os dentes e suando muito. Alguns curvam-se com a Dor,
outros encolhem-se num canto do sofá ou então rolam para o chão em
convulsões.
Não existem duas primais iguais nem mesmo com a mesma pessoa. Existem
as que são violentas, as apavoradas, as tranquilas e as tristes. Qualquer que
seja a sua forma a terapia se dirige às antigas sensações ainda não
resolvidas.
É difícil explicar em palavras como podem ser diferentes as sensações. Uma
paciente que antes se tratara com a terapia convencional afirmou que
embora tivesse chorado muito, a experiência era inteiramente diferente de
quando chorara na Primal. Ela antes chorava para aliviar as mágoas e
sentir-se melhor, para proteger o eu magoado. Agora chora por causa de
suas mágoas e esses sentimentos são muito mais intensos e absorventes.
Durante uma sessão ela disse que sentia chorar até as pontas dos pés.
Durante a terapia os pacientes logo aprendem como chegar às sensações.
Um paciente pode contar um sonho que teve na noite anterior como se ele
estivesse acontecendo ali naquele momento, pode sentir o terror ou
desamparo e logo sentir-se descontrolado ligando a sensação à sua origem.
O fato de estar descontrolado ajuda muito a estabelecer a ligação porque
o autocontrole geralmente significa a supressão do ego. O paciente deseja
aquela Dor porque sabe que ela é a única saída para a sua neurose.
Depois de algum tempo o terapeuta pouco mais tem a fazer além de
permanecer em silêncio. Quando o paciente penetra numa sensação, ele
está "lá no passado" revivendo tudo, sentindo os cheiros, ouvindo os sons
e fazendo fisicamente o que estava fazendo quando aqueles processos
foram bloqueados. Um paciente que era muito querido por ser bem
controlado e nunca molhar as fraldas com ano e meio, sofria a mesma
terrível necessidade de urinar durante a Primal como quando era
criancinha. É preciso ser lembrado que o paciente está completamente
dentro da cena do passado, e qualquer palavra do terapeuta no presente
poderá fazê-lo sair de lá. Se não houver interferência, a sensação
transportará o paciente de volta às suas origens, uma coisa que não pode
acontecer quando a sensação está sendo discutida entre o terapeuta e o
paciente.
A Primal tem uma quantidade de sinais característicos. Um deles é o
vocabulário. Se a pessoa usar uma linguagem de criança, como acontece
muitas vezes, isso significa que ela está às voltas com uma Primal. Um
homem que tinha um PhD, por exemplo, disse durante uma sessão, "Papai,
eu tou com medo". Com aquilo eu fiquei convencido que ele não estava
fingindo. Se, no entanto, o paciente grita qualquer palavrão durante uma
Primal, há uma boa probabilidade que ele esteja numa pré-Primal.
Uma outra qualidade das Primais é que quanto mais o paciente regride para
a infância mais maduro se tornará. Isso acontece porque o fato de livrar -se
do passado permite que a pessoa se torne verdadeiramente adulta e não
apenas que se comporte como tal. Em resumo, ele fica sendo o que
realmente é. Muitas vezes um paciente na Primal regride à sua infância,
chorando e gemendo como um bebê de um ano, e depois sai dela com uma
nova qualidade de voz, mais profunda e forte, quando antes da terapia ele
tinha uma voz fina e infantil.
Quando um paciente começa a reviver o seu passado durante uma Primal,
é comum ele perder a noção do tempo. Dizem às vezes "Parece que já
fazem anos que entrei aqui no consultório". Já me aconteceu perguntar a
pacientes quanto tempo eles acham que estiveram ali no consultório e
receber como resposta "Acho que já estou aqui vão fazer uns trinta anos".
Os pacientes acham que as Primais são um estado de coma consciente.
Embora possam sair dele logo que quiserem preferem não fazê-lo. Sabem
onde estão e o que está acontecendo, mas, mesmo assim, quando dentro
da Primal, eles estão revivendo a história do passado e estão absorvidos
por ela. Sempre, aliás, estiveram absorvidos pelo passado, mas
conseguiram se iludir em lugar de senti-lo. Até mesmo em seus sonhos eles
viam o passado. A Primal coloca o passado no seu lugar verdadeiro e
permite que o paciente finalmente viva o seu presente.
O Grito Primal

O Grito Primal não é simplesmente um grito. Tampouco é usado como alívio


para tensões. Quando resulta de sentimentos profundos eu acredito que
seja um processo curativo e não simplesmente um alívio de tensão. De
qualquer forma, não é o grito que cura e sim a Dor. O grito é apenas uma
expressão da Dor. A Dor é o agente curativo porque significa que o paciente
está finalmente sentindo. No momento que ele se sente magoado a Dor
desaparece. O neurótico sente-se magoado porque seu corpo está sempre
preparado para a Dor. A mágoa vem da apreensão tensa.
Não há engano possível quanto ao Grito Primal, pois ele possui alguma
coisa profunda, rascante e involuntária. Quando o terapeuta retira, de
repente, alguma porção da defesa e o paciente fica como se estivesse nu
com sua Dor, ele grita porque não tem defesa contra a verdade. Embora o
grito seja a reação mais comum, ele não é a única nem a perene reação à
repentina vulnerabilidade à Dor. Há pessoas que gemem, rosnam,
estorcem-se ou debatem-se. Os resultados são os mesmos. O que se
manifesta quando a pessoa grita é um sentimento único que pode estar por
baixo de milhares de experiências anteriores. Muitas vezes o paciente
simplesmente sente necessidade de gritar. Grita por causa de todas as
humilhações, surras e vexames por que passou. Grita agora porque muitas
vezes foi ferido e nunca pôde se dar ao luxo de sangrar. É como se alguém
o espetasse constantemente com um alfinete sem que ele pudesse gritar
"Ui" pelo menos uma vez.
A Resistência

A Terapia Primal não funciona assim com tanta facilidade como eu talvez
possa ter dado a impressão. As próprias defesas são resistências contra os
sentimentos. Sendo assim, existe sempre alguma espécie de resistência
enquanto existir algum resto do sistema de defesa. Muitos pacientes
recusam pedir a ajuda dos pais. Podem ter gasto anos com análises e
podem mesmo dizer, "Olhe aqui, já tratei disso muitos anos atrás. Já sei o
que são. Não vejo razão para o que está me pedindo". A minha opinião é
que eles não sabem realmente até o dia em que pedirem. Os pacientes
ficam embaraçados com esses "exercícios pueris". Um jovem psicólogo
chegou a comentar que era tudo muito simples. Ainda assim, saber com
certeza que não se é amado é certamente uma experiência pela metade e
o corpo não toma parte nela. Exigir amor já é uma outra coisa. A luta
neurótica teve início porque a criança não podia mais exigir amor já que
isso trazia a rejeição e a Dor. Uma vez que a luta é o desejo contínuo e
simbólico de amor, trazer a pessoa de volta para o pedido direto de amor
à mãe é o mesmo que afastar a luta e descobrir a Dor.
Algumas vezes a resistência é física. A pessoa pede para respirar e faz isso
ao contrário. Parece estar empurrando o ar para baixo em lugar de para
cima e para fora. Essa impossibilidade de expirar é frequentemente
encontrada em neuróticos, especialmente nos reprimidos que sã o
obrigados a isso. A resistência física parece ser automática. A garganta
aperta-se, o corpo dobra-se, o paciente enrola-se como se fosse uma bola,
tudo para deixar de fora o sentimento. O ponto é que, por mais estranho
que isso pareça, ninguém simplesmente deita-se e livra-se de sua neurose.
Se o paciente insiste em não respirar fundo eu aperto-lhe a barriga de
quando em quando, embora isso seja raro. Em caso algum, porém, isso
seria feito até que o paciente esteja seguramente preso a alguma sensação,
porque aquilo que estamos querendo não é a respiração e sim a sensação.
A Primal Simbólica

Uma vez que a dor excessiva parece desligar-se automaticamente de


nossos sistemas, o que parece acontecer nos primeiros dias da terapia é
aquilo a que chamarei de Dor Simbólica. Isso acontece especialmente com
gente velha cujas defesas são mais fortes. A parte física da Dor pode ser
galvanizada primeiro, mas o paciente consegue estabelecer uma ligação
mental. Em lugar disso ele poderá sentir uma terrível dor nas costa s (o
simbolismo de alguém grudado às suas costas) ou pode tornar-se
parcialmente paralisado (o simbolismo de seu desamparo) ou então sentir
um peso nos ombros (talvez o ônus que vinha carregando). O simbolismo
varia muito. Um paciente ficou sem poder mover seu lado esquerdo
durante meia hora, e logo depois declarou que aquilo "era aquele peso
morto que vinha carregando toda a sua vida".
Quando o paciente tem as suas manifestações neuróticas impedidas pelo
terapeuta, a neurose parece recuar para sua próxima linha de defesa, para
o simbolismo físico, ou seja para as queixas psicossomáticas. Nesse caso
ainda, nós vamos descobrir que as dores físicas são o resultado de suas
dores mentais primitivas e logo que isso se manifesta as aflições físicas
desaparecem.
As aflições psicossomáticas perturbam quase todos os pacientes Primais
logo no começo da terapia, e até mesmo aqueles que eram relativamente
saudáveis antes. Um paciente teve diarreia logo depois de sua primeira
Primal. Disse-me que as coisas estavam saindo dele antes que soubesse o
que eram, e quando ficou sabendo e sentindo o que eram, a diarreia logo
cessou. Quando as sensações capitais estão bloqueadas, a Dor parece atuar
primeiro contra certas áreas ou partes do corpo. É por aí que vemos que a
Dor está vindo. Na medida que as ligações se fazem, as mágoas
psicossomáticas logo desaparecem.
Um paciente sentiu-se dividido ao meio durante a sua segunda pré-Primal.
Tinha os punhos fechados e os braços, rígidos e estirados, estavam
tremendo. Só de olhá-lo a gente via que estava sendo puxado dos dois
lados. Contudo era apenas um comportamento simbólico, simbólico por
estar sentindo-se dividido sem conseguir descobrir as causas para aquilo.
Mais tarde descobriu o que estava acontecendo. Estava revivendo a cena
havida por ocasião do divórcio dos pais. Sentia como queria acompanhar o
pai, mas não tinha coragem para manifestar-se com medo de desagradar à
mãe... Sentia o quanto a odiava, mas tinha que abafar aquele sentimento
porque teria que viver junto com ela em completa dependência... Sentia
raiva do pai por deixá-lo, mas tinha que abafar aquilo para fazer com que
ele o visitasse... Todas essas contradições tinham como resultado o esforço
exercido contra o seu corpo. Tornavam-se físicos porque ele não tinha
coragem de senti-los diretamente. As sensações então eram codificadas no
sistema muscular em termos de seus valores simbólicos; ele estava
realmente sendo dividido ao meio por estas sensações conflitantes porque
todas as sensações são coisas reais, físicas. Para resolver aquilo de teria
que voltar para sentir todos os elementos separados da contradição. Não
era bastante "saber" que ele estava em conflito acerca do divórcio.
A explicação Primal para a situação acima é que as lembranças repudiadas,
ou seja, os acontecimentos por demais dolorosos para serem encarados,
são depositados no cérebro e armazenados abaixo do nível de percepção
de onde enviam mensagens para o corpo. Assim, um impulso de revide que
nunca foi demonstrado contra um pai tirânico pode tomar a forma de
músculos de braços retesados. Durante uma sessão Primal, quando um
paciente lembra-se de haver sido espancado por um pai, ele pode sentir
uma certa rigidez nos braços sem saber por que. Mais tarde descobrirá a
razão certa e os músculos se relaxarão.
Um paciente rilhava sempre os dentes. Fazia aquilo inconscientemente
dormindo. Começou a pensar na ocasião em que seu pai não cumprira a
promessa de levá-lo ao jogo de futebol e inconscientemente começou a
rilhar furiosamente os dentes. Na sua casa era proibido demonstrações de
raiva. No meu consultório ele finalmente extravasou sua raiva em gritos e
nunca mais rilhou os dentes. Aquele determinado incidente não era a causa
do rilhar de dentes. Era, isso sim, uma lembrança bem viva, simplesmente
representada que deflagrou todas as promessas não cumpridas pois o
paciente não tinha licença para protestar em casa.
Todo mundo vê em torno de si comportamentos simbólicos mas
provavelmente não lhe dão esse nome. Quando uma criança sai da escola
sem permissão, ela está agindo impulsivamente. O que talvez está fazendo
é representar simbolicamente uma liberdade que não sente. Talvez não
seja a escola que o esteja prendendo e sim antigas sensações. Se conseguir
sentir isso já não precisará representar a liberdade fugindo da escola.
O estágio simbólico é uma necessidade na Terapia Primal. O paciente sente
parcialmente porque está sendo magoado por muitas coisas. O seu corpo
fecha-se então por algum tempo e o paciente extravasa ou intravasa o resto
do sentimento. O extravasamento não precisa ser específico. Pode
simplesmente ser em forma de uma vaga tensão que conserva intactas
algumas partes da velha personalidade.
Não se deve precipitar o estágio simbólico. O sistema está se defrontando
com a Dor em doses pequenas e continuará fazendo isso num processo
ordenado com a ocorrência de menores graus de simbolismo à medida que
aumentarem as sensações. Isso também se nota na diminuição de
simbolismo nos seus sonhos.
À medida que o paciente vai saindo do estágio simbólico para as sensações
numa forma mais direta, ele vai perdendo o interesse pelas coisas
simbólicas. O simbolismo parece ser um fenômeno total, e infelizmente, o
neurótico muitas vezes passa toda a sua vida nessa terra de simbolismos
impossíveis. Suas terríveis dores de cabeça podem estar lhe demonstrando
toda a sua indignação, mas a despeito de anos com tais dores, ele
raramente descobre o que elas são. Um paciente, depois de uma sessão
muito veemente, disse o seguinte: "Eu acho que toda essa pressão na
minha cabeça eram sentimentos de indignação que não podiam se espalhar
para se agarrar às sensações do corpo. Era como se eu tivesse que empilhar
até mesmo as minhas ideias em algum compartimento já sobrecarregado."
Parece que a primeira semana é o pior período para a Terapia Primal. O
paciente sente-se ansioso e infeliz e só quer saber quando tudo aquilo vai
acabar. Tem a impressão que já durou uma eternidade. Houve um que
disse: "Tenho a impressão que quando entrei aqui o senhor me agarrou
pelos pés e me segurou de cabeça para baixo para me esvaziar
completamente."
Ele se sente mais tenso do que nunca porque tem menos defesas neuróticas
contra as sensações que estão vindo para a superfície. Logo que ele se
tenha aberto completamente, há uma grande premência nas suas
necessidades e isso obriga o terapeuta a estar sempre presente.
Ao fim da terceira semana já deverá estar terminada a parte mais
importante do desmantelamento de suas defesas, mas o paciente ainda
não está bom. Tem ainda uma grande quantidade de tensão residual de
velhos sentimentos que, por alguma razão, ainda não foram deflagrados.
Já que não é necessário nem econômico conservá-lo na terapia individual,
ele deve passar para o grupo pós-Primal. Talvez precise ainda de uma hora
só para ele de quando em quando, mas o principal trabalho pertence a
terapia de grupo.
Quando digo que o mais importante já foi feito depois das primeiras
semanas, isso significa que já se podem notar as modificações em
personalidade e sintomatologia. Quando eu praticava a terapia
convencional, geralmente precisava de três semanas só para conseguir a
história do paciente e fazer alguns testes psicológicos. Agora, dentro desse
período nós podemos ver coisas voltando espetacularmente ao normal de
forma definitiva, como por exemplo a pressão arterial em pessoas que toda
a vida foram hipertensas. Nota-se a mudança na maneira de falar, na voz e
na aparência. Rostos antes inexpressivos tornam-se móveis e vivos. As
ideias também mudam radicalmente nesse curto período embora não haja
discussões entre terapeuta e paciente. Isso é porque as ideias irreais
sempre acompanham os sistemas irreais.
O objetivo principal, no entanto, é o desmoronamento das defesas nas três semanas, e
isso geralmente acontece. A pessoa empresta sempre muita emoção a tudo o que diz.
Até mesmo a maneira de andar se modifica.

Variações em Estilos Primais

As sessões primais podem variar muito. Uma paciente, por exemplo,


começou as suas com uma coisa que parecia a hora do parto. Durante o
primeiro dia ela assumia a posição fetal, contraindo e distendendo o corpo,
dizendo que estava sentindo correntes de ar e depois chorando
exatamente como uma recém-nascida. Não fazia a menor ideia do que
estava acontecendo e dizia que era um processo inteiramente involuntário.
Muitos não chegam até aí. Uma paciente que não tinha lembranças de
antes dos dez anos, começou a reviver o que lhe tinha acontecido com
quatorze anos e foi caminhando para trás até reviver um acontecimento
terrível que lhe causara o split final aos dez anos. Depois disso, no entanto,
ela continuou regredindo até chegar à idade de três anos quando começou
a sentir a "pura necessidade" do amor dos pais Mais tarde disse que aquela
tinha sido a sua mais dolorosa Primal. Não houve palavras durante essa
sessão e sim apenas uma experiência completamente interna com o corpo
enrolado, estorcendo-se e gemendo, apertando os punhos e rilhando os
dentes.
A Primal varia dependendo da idade do split e da profundidade da dor.
Alguns pacientes conseguem ir diretamente à cena principal em que
sentiram o split ao passo que outros levam meses para chegar lá. Alguns
dizem que nunca conseguiram chegar a uma cena específica e muitas delas
parecem ter a mesma importância na produção das neuroses. Se o split for
cedo e se a Dor for grande, o paciente pode reviver a mesma cena muitas
vezes. Um paciente, por exemplo, recentemente reviveu quando foi
deixado num berço do hospital várias semanas apenas com nove meses de
idade. Seus pais não podiam visitá-lo porque ele estava com uma doença
contagiosa. No dia seguinte ele voltou àquela cena e percebeu que era um
hospital. Depois viu o rosto da mãe, e por último viu seus pais saírem e
sentiu-se abandonado. A neurose de toda a sua vida era para achar alguém
para se agarrar. Conseguiu uma namorada e fez tudo que podia para que
ela não o abandonasse. Não fazia a menor ideia que aquele seu
comportamento era devido a alguma coisa que lhe tinha acontecido
quando era tão pequeno ainda, pois não se lembrava daquilo. Chegou na
primeira vez muito tenso porque a sua namorada abandonara-o. Quando
mergulhou nas suas sensações voltou logo ao berço. Enquanto revivia a
cena do berço só chorava como bebê. Teve diversas sessões sem palavras
e na última dessa sequência deu um grito alto pedindo aos pais para
voltarem, uma coisa que ele não tivera coragem de fazer, por alguma razão,
quando ainda estava no período do berço.
Nós geralmente sabemos quando uma pessoa sai da Primal. Ela abre os
olhos e pisca como se estivesse saindo de alguma espécie de coma.
Algumas vezes isso acontece mais normalmente e nós só notamos quando
a voz volta a ser adulta. Uma surpresa constante é a maneira como a tensão
muitas vezes desaparece quando a pessoa já sentiu muita Dor naquele dia.
Depois de sentir uma grande Dor a pessoa inexplicavelmente sente a
tensão e diz que não consegue mais lembrar. Quando percebe que a
experiência foi completa ela se sente relaxada. Nós sabemos que ainda
existem mais sensações para serem resolvidas se a pessoa ainda está tensa
no fim de uma Primal. A tensão residual depois de uma Primal é a prova
mais concreta que a neurose existia antes como amiga e benfeitora. Ela
assumiu o comando e manteve-nos a salvo quando a vida começava a ser
por demais penosa e depois reassume e torna o paciente tenso quando ele
já sentiu Dor bastante para um dia.
Há ocasiões em que as sessões são predominantemente físicas. Um
paciente, quase no fim de sua terapia, iniciou uma Primal em que seu corpo
começou a torcer-se da direita para a esquerda em posturas bizarras, e isso
durou uma hora involuntária. Levantou-se muito tenso, disse que já não
era mais corcunda e descreveu tudo da seguinte maneira:
"Eu acho que não era só a minha mente que estava torta. Era também o
meu corpo. Antes de entrar nisto eu dizia a mim mesmo que estava ficando
louco. Alguma coisa estalou- me na cabeça e aí esta sequência física
começou. Acho que foi porque minha mente finalmente desistiu da luta e
de toda a irrealidade e o corpo pôde então voltar à realidade perfeitamente
ereto. Eu agora ando desembaraçado como um diferente ser humano.
Nunca antes em minha vida consegui cruzar as pernas como agora faço nem
tampouco virar completamente o pescoço, por mais estranho que isso
pareça. Agora já faço tudo isso. Só posso chegar à conclusão que estava
numa espécie de camisa-de-força mental com os pensamentos bitola- dos,
numa espécie de molde material que me mantinha espremido numa forma
estranha."
Nós já ficamos tão acostumados a ver as emoções normais que é difícil
mostrar a tremenda força da Primal. A profundidade e amplidão de suas
sensações são quase inacreditáveis. Também é difícil explicar a sua grande
variedade e estranhas qualidades. Será bastante dizer que quando uma
sensação pode convulsionar um ser humano, quando pode causar gritos
dilacerantes, isso é uma prova da enorme pressão contínua existente sobre
os neuróticos. O que é espantoso é que tantos neuróticos não consigam
senti-la diretamente. Sentem por meio de aperto no peito, nó no estômago
ou quando a cabeça parece que vai explodir.
O processo Primal leva os pacientes a uma região raramente vista, até
mesmo nos consultórios de psicoterapeutas. É ainda mais raramente
compreendida. É uma viagem sistemática, perfeitamente planejada, do
homem dentro de si mesmo. Quando os pacientes finalmente atingem as
primeiras sensações catastróficas de saber que eram desprezados, odiados
ou incompreendidos, o sentimento epifânico da completa solidão, eles
percebiam completamente por que se haviam desligado e como se fossem
crianças conseguiam passar por aquilo e continuar vivendo. Quando
observamos esses pacientes em paroxismos de dor ao chegarem a tais
sensações, é o mesmo que contemplar toda a profundeza do sentimento
humano. Em todos os meus anos de terapia convencional eu nunca
observei ou mesmo compreendi o que era realmente o sentimento. Claro
que vi muito choro e agonia, mas há uma enorme distância entre o chorar
e entre experiência Primal.
Aqui está como um paciente contou as suas experiências na Terapia Primal:
"O sentimento numa Primal que tenha qualquer associação com
acontecimentos na infância, em qualquer ocasião depois do split, é um
pedaço do verdadeiro eu, de um eu real que não pode ser experimentado
sem voltar para antes do split. Daí a importância para a Terapia Primal das
experiências ou cenas da primeira infância. Elas ajudam a sentir os pedaços
do eu verdadeiro associando a dor aos incidentes específicos até a hora em
que possa ser a essência do seu verdadeiro eu. Por exemplo, se eu estiver
numa sessão em que minha mãe esteja me repudiando, é provável que
diga, "não me mande embora, mamãe." Não há palavras para o puro
sentimento dessa Primal. O sentimento é o meu próprio eu e as palavras
querem significar "mamãe, não estou bem, por favor, tire-me esta dor", e
isso é uma defesa contra ser tal sentimento. Nesse ponto não há mais nada
a dizer nem cenas que possam ter qualquer relação. Estamos sendo nós.
No meu caso foi o que a privação total me fez. Não posso esperar
comunicar com palavras o que sinto verdadeiramente com essa experiência
e só isso serve para provar que não há palavras..."
Parece quase indescritível reviver as Dores Primais em intensidade.
Quando contemplamos os pacientes durante as sessões, quase ficamos
convencidos que estão agonizantes. Eu estava tão certo disso que nunca
me abalei a perguntar a um paciente se aquilo doía mesmo senão meses
depois de haver começado com a Terapia Primal. Para grande surpresa
minha os pacientes diziam que a despeito de todas as manifestações físicas
a Dor não chegava a doer! Houve um paciente que assim a descreve u:
"Não é a mesma coisa como quando a gente corta a mão e diz que está
doendo. Durante a sessão a gente nem mesmo pensa se dói ou não. Apenas
nos sentimos infelizes em toda a parte. Mas não dói. Talvez até mesmo se
possa dizer que é uma dor agradável devido ao alívio que finalmente
sentimos."
O que eu acho que ele quis dizer foi que durante a sessão ninguém reflete
sobre o que está fazendo. Não se raciocina quanto à sua necessidade. Ali
só está o eu totalmente ocupado com alguma coisa, pela primeira vez desde
que nasceu. Uma das razões por que não pode se entregar completamente
é que ele não está apenas sentado numa cadeira lembrando de alguma
coisa. Todo seu corpo está envolvido no processo da mesma forma que
estava a criança antes de ser desligada. Há pacientes que lembram como
demonstravam sua raiva nos primeiros anos deitando-se no chão,
esperneando, batendo com os braços e chorando. Estavam totalmente
envolvidas e nem mesmo poderiam informar se aquilo doía ou não.
Aqui vai uma outra descrição de uma sessão, ocorrida já no fim da terapia.
Cito isto porque ajuda a explicar o fenômeno de uma Dor não dolorosa.
"Creio que a melhor maneira para eu descrever como foi a experiência seria
dizer que eu não tinha consciência de coisa alguma. Eu era a minha dor e
não precisava de qualquer ligação. A única coisa necessária era que eu
aceitasse a experiência e não fugisse dela como fizera antes quando afinal
fiquei neurótico. Aquilo era eu ser o meu verdadeiro eu."
O que é interessante a respeito da experiência da Dor Primal é que a sua
sensação não é dolorosa. O que mais dói talvez é a tensão contra a
sensação. Isso não significa a ausência de sensações desagradáveis, mas
quando é sentido pelo que representa, o resultado não se transforma em
Dor. A tristeza não dói. Mas se a pessoa não consegue ficar a sós com sua
tristeza, se não lhe permitem a sua infelicidade, isso então dói. A sensação
ou o sentimento, então, são antíteses da dor.
A dialética do método Primal é que quanto mais dores se sente, menos
dores se sofre. Não se pode ferir realmente os sentimentos de uma pessoa
normal, mas podemos ferir um neurótico deflagrando as sensações
reprimidas.
A Experiência de Grupo

Os grupos pós-Primais reúnem-se duas vezes por semana durante três ou


mais horas. Compõem-se de pacientes que já passaram pela Terapia Primal
individual. Sua principal função, é estimular os participantes do grupo a
novas sessões Primais. A atmosfera que prevalece entre o grupo
geralmente leva a isso. A sessão de um pode deflagrar outras duas ou tr ês
de outras pessoas. Chega a ser comum duas sessões ao mesmo tempo
porque um paciente, já agora sem defesas, não consegue esperar a meia
hora enquanto um outro está sendo examinado.
Quando acontece duas sessões Primais ao mesmo tempo isso pode resultar
numa grande confusão. Os únicos que não são afetados pelo tumulto são
aqueles que estão sendo examinados. Parecem não saber o que os outros
estão fazendo. Pode acontecer haver seis ou sete sessões ao mesmo tempo
durante uma única sessão de três horas para grupos.
Em vista do processo Primal ser perturbador, ou talvez mesmo mais do que
isso, o grupo tem uma outra função. Ele conforta os pacientes que podem
então travar relações com outras pessoas que estão passando pela terapia.
O processo de grupo pode durar meses, dependendo do paciente.
Como eu tenha feito a terapia convencional de grupo durante muitos anos,
antes de dedicar-me à Primal, quero desde logo dizer que esta última é
muito diferente da primeira, e isso é confirmado por muitos pacientes que
se submeteram às outras em suas diversas modalidades. Tudo é muito
diferente na Primal, e não há um intercâmbio de insights. São muito raras
as demonstrações de raiva ou medo. Quando algum passa o tempo olhando
para os outros, isso é um bom sinal, pois mostra que naquele momento ele
nada sente. Há muitas razões para isso, creio eu, mas a principal é que na
Terapia Primal não se encontra o processo de interação. É um processo de
sensações pessoais em que os insights estão sempre no ar quando a Dor foi
profundamente sentida. (Ver seção de insights.)
A segunda diferença é que os pacientes compreendem que as relações
estão ligadas com antigas experiências, por mais desordenadas que
pareçam.
Terceiro, o período da terapia de grupo é aquele em que há menos defesas.
Os pacientes comparecem e mostram-se aflitos para entrar em cena pois
não conseguem conter seus sentimentos. São, de uma certa maneira, uma
verdadeira massa de sentimentos. Os pacientes de grupos respeitam muito
o que está acontecendo em torno deles. Frequentemente, como já disse, o
que está acontecendo na sessão evoca lembranças parecidas nos
assistentes e apesar de todo o controle é possível que alguém caia numa
Primal sem sair de seu lugar ou em algum outro canto da sala.
Três horas é um período muito curto para grupos Primais. Depois de uma
sessão de grupo, cuja média é em geral de meia hora, o paciente pode ficar
por ali mais uma hora fazendo silenciosamente as suas ligações ao mesmo
tempo que se realizam outras sessões. Pode acontecer haver seis ou oi to
pacientes ativos ao mesmo tempo, mas uns não se preocupam com os
problemas dos outros. Sempre que terminam as sessões de grupo há um
período de discussões em que conversam entre eles contando o que houve
com cada um.
Ficando Bom

Depois de sete ou oito meses de terapia de grupo, o paciente talvez ainda


precise de Primal. Isso não é comum, pois a regra geral é que no fim de oito
meses ele geralmente está bom. O que significa isso, então? A resposta é
que quaisquer que sejam as suas sensações dolorosas, ele pode sempre
senti-las sem precisar de auxílio. Já não existem mais defesas importantes
para esconder os sentimentos. Significa o fim do comportamento
simbólico. Significa definitivamente o fim de sintomas psicossomáticos que
são Dores simbólicas. Significa também o fim de comportamentos
evidentemente neuróticos como fumar ou beber. Mesmo que quisessem,
os pacientes não poderiam fazer senão o real. Não podem mais voltar às
antigas dores de cabeça porque elas eram apenas parte da defesa que
mantinha os sentimentos bloqueados. Não existem mais defesas. Sentem
repulsa pelo fumo. Não podem exagerar as necessidades sexuais porque
não há antigos impulsos para serem canalizados pelo sexo. Já não sentem
mais a necessidade de comer demais porque não precisam empurrar os
sentimentos com a comida.
E será que isso resiste ao tempo? Sim. Até aqui, os comportamentos irreais
nunca voltaram para pacientes que tiraram todo o curso. Como é possível
isso? A pessoa já é ela própria agora, e para voltar ao seu antigo
comportamento ela teria que se tornar uma outra novamente. Os
acontecimentos correntes de um adulto não podem produzir um split que
divida a pessoa em duas. Isso acontece com crianças porque elas são frágeis
e dependem dos pais para sobreviverem. Devem ser o que os pais querem.
Isso raramente acontece a um adulto. Ninguém pode transformar um
adulto real em alguém irreal.
Quero tornar bem claro que o paciente curado não fica em êxtase nem
tampouco feliz. A felicidade não é o objetivo da Terapia Primal. Os
pacientes que acabam o tratamento podem sofrer ainda muitas mágoas
porque deixaram para trás todas as outras, mas, como disse um paciente,
"elas são pelo menos, coisas verdadeiras que sempre têm algum fim."
O fato de estar curado não significa necessariamente interesses diferentes
pois muitos pacientes chegam à conclusão que podem fazer as mesmas
coisas antigas mas com um sentimento inteiramente diferente. Ficar bom
significa sentir o que está acontecendo agora. Os pacientes sentem quando
estão se sentindo bem porque não têm tensões residuais e sentem- se
completamente relaxados. Nada pode torná-los tensos. Os acontecimentos
podem transformá-los mas não haverá tensão.
Muitos terminam no fim de oito meses mas alguns ainda ficam durante dez
ou onze meses. Tudo depende de quanto estavam doentes e das repressões
do inconsciente antes do tratamento. Qualquer que seja o número de
sessões a que tenham se submetido, se houver ainda sentimentos
reprimidos ou bloqueados, eles continuarão a ser representados
simbolicamente por toda a vida até que sejam resolvidos. Isso significa que
a pessoa pode ainda ser neurótica depois de haver passado por uma série
de sessões Primais.
Um paciente que voltou à universidade no terceiro mês de sua Terapia
Primal verificou que não conseguia entender as aulas. Começou a fingir e
até mesmo se fingir de estúpido sem nada compreender do que o professor
dizia. Veio para uma sessão de grupo e queixou-se como fora ridicularizado
pelo assistente do professor por não compreender uma lição. Mergulhou
naquele sentimento e disse: "Explique-me isso papai. Perca algum tempo
comigo." Seu pai ridicularizara-o certa vez por não haver entendido uma
lição. Ele fez tudo que pôde para compreender logo e agradar ao pai para
fugir à mágoa.
Aquilo era um sentimento simples embora carregado de intenso efeito. A
mágoa era por sentir-se estúpido e procurar esconder a deficiência.
Quando a sua terapia entrou no terceiro mês, a sua defesa começou a se
desintegrar e ele fingia de estúpido, como se quisesse dizer "ensine -me." E
continuaria a bancar o estúpido até encontrar a sua origem.
Discussão
Eu acredito que a única forma para eliminar a neurose é derrubá -la pela
força e violência. A força de anos de sentimentos reprimidos e
necessidades negadas, e a violência de arrancar tudo isso de um sistema
irreal.
Da mesma forma que a neurose resulta de um processo gradativo de
desligamento, o restabelecimento requer um novo religamento gradativo.
Como a Dor não permite um acesso muito rápido a essas sensações Primais,
elas precisam ser atacadas por estágios. Até que isso aconteça, certamente
haverá representações simbólicas.
A Terapia Primal é a neurose ao contrário. Cada dia que passa na vida de
uma criancinha as mágoas vão-se amontoando e abafando seu sentimento
até ela tornar-se neurótica. Na Terapia Primal o paciente revive todas essas
mágoas e vai abrindo-se até que fique bom. Uma só mágoa não faz um
neurótico e uma só sessão Primal não torna ninguém normal. É o acúmulo
das mágoas e as sensações daí decorrentes que finalmente transformam
quantidades em novas qualidades de doença ou de saúde. Eu acredito que
o processo para ficar bom encontra-se na Terapia Primal desde que a
pessoa se submeta ao tratamento. Logo que o sistema de defesa é rompido
o paciente não tem escolha. Tem que ficar bom. Essa inevitabilidade é
análoga à da criancinha que permanece num ambiente traumático onde há
uma constante supressão. A conclusão lógica então é a sua neurose com o
abafamento do seu eu real e a construção de uma defesa duradoura. Se
tirarmos a criança para fora do ambiente traumático antes do grande split
poderemos evitar uma séria neurose. Se tirarmos o paciente das
circunstâncias terapêuticas antes que ele tenha corrigido o split
dificilmente haverá recuperação da saúde.
Por que será que a neurose não pode ser destruída por pais carinhosos ou
pelos professores? Muitos foram os pacientes que tiveram madrastas e
padrastos antes dos vinte anos com os quais se davam muito bem por
serem eles bons e carinhosos, mas, ainda assim, eles vieram a precisar de
terapia mais tarde. E isso porque esses padrastos e madrastas nunca
conseguiram corrigir defeitos antigos como gagueira, tiques, alergias, etc.
A saída do lar pouco antes dos vinte anos e o encontro de boas amizades
do sexo oposto não consegue desfazer a tensão e sintomas antigos, como
a psoríase, por exemplo, que, aliás, reage bem à Terapia Primal. Se a
bondade, o carinho, o amor e o interesse conseguissem destruir as
neuroses, a psicoterapia certamente deveria conseguir isso, mas eu não
acho que tal coisa esteja acontecendo.
A neurose não pode ser eliminada pelo aplacamento, raciocínio, ameaças
ou amor. O seu processo patológico parece engolir tudo que encontra no
caminho. Ela se alimenta dos insights que lhes são oferecidos. Não é
possível eliminar uma válvula neurótica sem que logo surjam outras até
então escondidas. Elas podem ser aliviadas por uma droga atrás da outra
mas estarão cada vez mais fortes logo que cesse o uso da droga.
Possuindo, como possuo, uma sólida base científica que recomen da
cuidado, eu bem sei o quanto parece impossível e estranho o que estou
escrevendo. É possível que alguns leitores queiram considerar a Terapia
Primal como um tratamento apenas aplicável a certas espécies de
neuróticos, mas o caso é que ela se aplica a todas as neuroses, como
mostrarei mais tarde, e também, possivelmente, às psicoses. Os pacientes
que tratei antes com a terapia comum nunca passaram por coisa parecida
com uma Primal. Depois que descobri o método Primal, no entanto, pedi a
alguns de meus antigos pacientes que voltassem para o novo tratamento e
sempre conseguimos encontrar a Dor deles.
A neurose torna-se compreensível, no entanto, quando consideramos as
milhares de experiências em que a criança era impedida de agir
normalmente. Aliás, chega a ser um milagre do sistema humano que o
verdadeiro caminho ainda espere para ser trilhado. Parece que o sistema
exige realidade.
Na Terapia Primal o paciente é um aliado. Sua Dor já esperou tanto tempo
que, geralmente, deseja vir para a superfície. O seu comportamento
compulsivo parece ter sido uma busca inconsciente da ligação certa para
que ele pudesse sair. Quando se apresenta a oportunidade ninguém pode
detê-la e eu acho que isso explica o nosso sucesso com uma quantidade de
neuróticos dos mais variados tipos.
A Terapia Primal provoca uma reação ambivalente em alguns neuróticos
dependendo da distância de sua Dor. Quando estão perto eles parecem ser
atraídos para ela imediatamente porque sentem ser o certo. Quando não
estão perto eles talvez não lhe deem importância considerando-a primitiva
ou simples demais.
A Terapia Primal pode parecer tão simples, no entanto, que me sinto no
dever de alertar: NINGUÉM DEVE TENTAR PRATICAR A TERAPIA PRIMAL A
NÃO SER QUE SEJA PERFEITAMENTE QUALIFICADO. Os resultados podem
oferecer perigo. Já temos um grupo sendo treinado durante alguns meses.
Os psicólogos que estão sendo treinados, e também eu, ainda temos muito
que aprender para dominar os fundamentos da teoria e da técnica. Faço
esse aviso para mostrar o possível perigo que pode haver com a Terapia
Primal praticada por quem não esteja devidamente habilitado.
Embora este livro não contenha detalhes de técnicas, quero fazer bem claro
que a Terapia Primal não é uma metodologia sem base. É um programa
planejado. Existem objetivos específicos que devem ser atingidos durante
as primeiras três semanas e deve-se esperar certos resultados em cada mês
que passa. Nós sabemos bem como o paciente come e dorme durante a
terapia e o que isso significa. Dentro de certas condições ter apêuticas,
qualquer terapeuta seguirá sempre um caminho parecido.
Essa terapia exige uma grande confiança no terapeuta. Se ele não for
verdadeiro nada conseguirá, pois os pacientes sentem quando ele é ou não.
O fim da neurose é muito parecido com o seu princípio. Não se trata de
nada espetacular ou de alguma tremenda experiência. Acontece num dia
como os outros quando o paciente sente alguma coisa que antes amarrava-
o ao passado. Aqui está um fim de neurose nas palavras de um paciente:
"Eu não sei bem o que esperava de tudo isso. Acho que desejava alguma
coisa dramática para compensar todos os anos de infelicidade. Talvez
esperasse tornar-me aquela minha fantasia neurótica, aquela pessoa
especial que afinal conseguia ser amada e apreciada. E afinal só enco ntro
eu mesmo..." E aí temos o seu eu livre da neurose.
Kathy
O que se segue é uma parte do diário de várias semanas de Terapia Primal
de uma mulher de vinte e cinco anos. O fim do diário é mostrar ao leitor o
que se passa com os pacientes no tratamento do dia-a-dia. Essa mulher
procurou a terapia porque estava tendo alucinações resultantes de uma
"triste viagem" no LSD. As alucinações persistiram durante meses depois
dela haver tomado a droga. Atualmente sua terapia já terminou assim
como todos os sintomas. Ela se considera uma outra pessoa.
O que se segue é um relato de minhas primeiras cinco semanas em Terapia
Primal. Estas notas, sem contar pequenas mudanças feitas somente com o
intuito de torná-las mais claras, são o que escrevi depois de cada sessão.
Passei os meus primeiros dez anos morando com minha mãe, meu pai, uma
irmã mais velha e um tio. Nessa altura meus pais divorciaram-se e até aos
dezesseis anos eu morei com minha mãe, minha irmã e outra mulher. Casei-
me, mas ao fim de dois anos divorciei-me quando tinha vinte e três anos.
Cursei quatro anos de universidade mas não me formei em coisa alguma.
Tenho vinte e cinco anos.
Pouco antes de iniciar a terapia eu comecei a ter fantasias visuais de facas
e navalhas que vinham contra minha cabeça. Comecei a entrar em pânico
quando dirigia o carro imaginando que outros carros iriam colidir com o
meu. Nunca deixei que as facas me atingissem naquelas fantasias mas
fiquei com medo que alguma coisa me acontecesse e resolvi procurar
ajuda.
Quarta-feira
No começo é penoso lembrar minha infância. Fico chocada ao verificar que
quase não tenho lembranças. Lembro-me sentindo-me abandonada e
rejeitada na escola de meninas para onde fui enviada com minha irmã
quando mamãe ficou doente. Tinha uns quatro anos e lembro-me que
sentei no chão e chorei sem parar. Lembro-me que a casa em W... era
escura e morei ali até os cinco anos. Vim para a cada de D... pensando se
mamãe estaria lá. Ela me contou que quando chegou encontrou-me
sentada acendendo fósforos. Eu mentia muito, roubava coisas nas festas,
cortava as roupas de minha irmã e hoje, pela primeira vez, vi a relação de
tudo isso. Eu enganava minha mãe e meu pai porque não me davam o que
eu queria, porque estavam me enganando. Eles não estavam lá para cuidar
de mim, não eram reais. Fingiam que tudo estava bem quando não estava.
Que nós éramos uma família, e não éramos. E eu fingia também. É por isso
que sempre me lembrei de uma infância feliz. Eu fingia que era uma menina
feliz porque não podia enfrentar a realidade.
Lembro de haver visto papai chorando em D. Então, e depois da separação,
ele andava sempre triste, parecia estar sofrendo. Na noite em que voltei
de um acampamento de verão, tinha então dez anos, antes de saber da
separação, ele disse-me o quanto me amava e parecia sofrer muito, mas
queria firmar o laço entre nós antes de nos separarmos. Mas mamãe não
se abriu. Fingia que eu precisava dela. Eu sentia-me perdida. Alguma coisa
não era real... talvez tudo. Eu não contava a ninguém como me sentia. Ia
enterrando tudo lá dentro e queimava fósforos.
Quando chegou o fim da sessão eu estava tonta e fraca. Voltei para lá, para
a minha infância, um pouco... mas tudo está tão desligado e estranho.
Como pode ser que me lembre tão pouco? É como se não tivesse estado lá.
Quinta-feira
O princípio foi duro hoje. Uma luta para encontrar lembranças que não
estavam lá. Começo a entrar em pânico... por que não consigo lembrar-me?
Estou perdida. Primeiro senti-me como sou agora, depois perdida como
uma criança. Tentei chamar mamãe. Sentia-me irreal. Chamei e senti que
ela me segurava. Mas não sentia conforto com aquilo, apenas a sensação
de estar só antes dela chegar. Comecei a perceber que estava empurrando
com as mãos. Sentia-me um bebê no berço batendo as mãos. Senti-me só.
Estava realmente lá na escuridão da casa em W. onde estava o berço. Era
um bebê solitário. Queria mamãe mas não conseguia chamá-la. Então
percebi que nunca a chamara mesmo quando era um bebê. Fiquei quietinha
sentindo aquela tristeza e chorei. Então senti um frio horrível e fiquei na
posição fetal para aquecer-me. De repente senti como se estivesse caindo
no espaço. Estava flutuando, aterrorizada. Tinha medo de cair e bater
contra alguma coisa ferindo-me. O meu corpo ainda todo enroscado
começou a contrair-se para fora e para dentro. Deixei de perceber o que
estava acontecendo mas sentia medo, lutei e chorei alto. Finalmente senti -
me espremida passando por uma área apertada. Sentia esfregar-me nos
lados. Tinha medo que quando saísse poderia me ferir, mas quand o saí
percebi então que estava nascendo e que tudo correra bem. Saí para fora
e senti um ar fresco em torno de mim. Meu corpo desdobrou-se um pouco.
Senti-me feliz e exausta. Tinha nascido! Quando estava ainda no útero eu
sentia que percebia tudo embora ainda não fosse a hora para perceber. Era
como se eu estivesse passando por alguma coisa que só devia ter
acontecido comigo dormindo. Art 14 disse que eu fiquei contraindo-me
durante quinze minutos, mas para mim parecia apenas uns instantes. É
fantástico.
Vi todos os meus temores das alturas, de quedas, do oceano. Olhei lá fora
pela janela e em volta de todo o consultório. Tudo parece diferente... como
se alguma coberta houvesse sido retirada. Saio do consultório sentindo-me

14
Nota do autor: Art é o apelido que meus pacientes usam para me chamar e por isso tornará a
aparecer em outras histórias de casos.
ótima.
Esta noite, ao ouvir música, comecei a chorar. Sinto como meu pai estava
triste, como ambos estavam tristes e como eu era uma menininha triste.
Tentei lembrar-me de mamãe.
Vejo-a no piano, mas o seu rosto está sempre dissolvendo-se em alguma
coisa de histórias de quadrinhos com horrores. Tento vê-la agora, mas
continuo vendo o seu rosto triste e doente de vinte anos atrás. Sinto -me
desolada quando percebo, pela primeira vez, o quanto ela estava doente e
digna de pena.
Sexta-feira
Começo vendo mamãe no piano, como vi na noite passada, e, mais uma
vez, o seu rosto se dissolve num horror. Não consigo fixar a imagem. Depois
vejo-a com uns trinta anos. Ela olha de soslaio, paranoica, apavorada. Grito
"ela está louca". Choro sem parar. Ela está louca e irreal. Uma máscara. Ela
não estava lá comigo quando eu era criança porque estava louca. Ela tem
que ficar sempre andando para não ficar louca. Eu devo tê-la levado à
loucura obrigando-a a ficar em casa com minha irmã e comigo. Pobre
mamãe. De repente fiquei pequenina olhando para minha família. Papai
triste, mamãe louca e apavorada, minha irmã zangada... todas nós
sozinhas. Tentei melhorar a situação dançando loucamente e fazendo
graças. Estava atônita. Era muito pequena para compreender ou aceitar.
Ninguém ajudava uma menininha. Sentia a loucura de mamãe.
Compreendia quando fingia. Ela acha que estará bem desde que mostre -se
"sadia" e que faça coisas "saudáveis". Foi só o que a sua terapia fez por ela.
Chorei por minha irmã que também tentava mostrar tudo certo com seus
fingimentos.
Sábado
Ainda não tenho recordações da infância e então passei a falar de minha
aventura com a droga. As primeiras duas viagens foram alegres, cheias de
êxtases, místicas, completamente irreais e muito visuais. Durante os três
meses entre a segunda e a terceira, eu comecei a usar muitas anfetaminas
e codeína. Na terceira vez senti-me infeliz e tomei-a para sentir-me melhor.
Tinha medo de tomar sozinha, mas afinal tomei. As primeiras duas horas
foram como as outras. Chegaram alguns amigos que ficaram pouco tempo.
Quando saíram fiquei ansiosa. Tentei lembrar-me por que tinha medo de
tomar sozinha mas só consegui ficar confusa. Não podia lembrar o que
tomara. Não conseguia lembrar nada que fosse real. As alucinações
começaram a ficar apavorantes e me dominaram. Os minutos não tinham
fim. O relógio dissolvia-se. Minha cabeça não funcionava. Não conseguia
lembrar quem eu era. Não me restavam referências. Fiquei louca pensando
que nunca mais voltaria ao mundo real. Apavorada como estava, ainda
assim vi que conseguia usar o telefone, e chamei minha irmã para vir
socorrer-me. Fiquei tão aliviada só de ouvir a sua voz verdadeira que já me
recuperara um pouco quando ela chegou. O resto da viagem foi alegre e
triste alternadamente, mas eu sabia que nunca mais seria a mesma dep ois
de haver passado por aquela sensação de loucura. Três semanas depois,
com muitos remédios no meio, despertei sentindo-me muito deprimida.
Fiquei estirada na praia o dia inteiro, queimei-me muito e senti-me
terrivelmente deprimida. Fui para a casa de minha mãe e comecei a chorar
histericamente sentindo falta de ar. Ela deu-me um tranquilizante que me
fez dormir. Despertei ainda chorando. No dia seguinte ela levou -me ao
Instituto Neuropsiquiátrico da Universidade. Depois de falar com o
especialista lá ele garantiu-me que eu não estava realmente doente e sim
apenas reagindo às drogas que tomara. Se não tomasse mais voltaria à
minha vida normal, ficaria boa. Ele deu-me uma dose cavalar de algum
remédio e depois aconselhou-me a voltar ao trabalho o mais cedo possível
evitando sempre ficar só. Tudo que ele me aconselhou me afastou ainda
mais de minhas verdadeiras sensações e procurei esconder tudo outra vez
justamente quando estava pronta para me abrir e sentir. Continuei
altamente deprimida, chorando e dormindo durante cerca de um mês com
a respiração muito acelerada. Depois comecei a me recompor outra vez
comprimindo meus sentimentos para poder funcionar.
Durante a sessão de hoje eu verifiquei que ficara transtornada porque não
podia enfrentar a sensação de solidão que a droga deixara a descoberto.
As minhas antigas fantasias de facas e navalhas tinham razão de ser. Se
chegassem a me alcançar poderiam abrir-me as entranhas deixando
escapulir as sensações. O medo de ferir-me é o mesmo que aquele de
expor-me e sentir a dor que sepultei. Estou começando a sentir tudo que
há em mim de dor e tristeza. Vinte e cinco anos sepultando a dor, o medo
e a solidão. Percebo que quando sinto falta de ar é porque estou lutando
para manter os sentimentos sepultados quando eles começam a subir,
como aconteceu depois da viagem com a droga. Choro, choro, choro.
Parece-me que não vou mais parar. Sinto a dor na minha cabeça cheia.
Quero vomitar tudo. Estou apavorada e solitária.
Percebo agora que nas duas primeiras viagens da droga e nas outras
ocasiões em minha vida, quando sentia-me bem apesar de estar só, era
somente porque conseguira ocultar bem meus sentimentos. Fingia que
tudo estava bem, da mesma forma que fazia quando era criança, porque
não podia encarar o desamparo e a solidão. Mesmo agora, depois da
sessão, estou fingindo que não estou sentindo nada porque não consigo
me resignar a ficar só o dia inteiro. Continuo a sepultar meus sentimentos
exceto durante as sessões.
Terça-feira
Hoje cheguei aqui com fortes sensações no estômago. Soltei gritos
terríveis, mas não falei. Finalmente percebi que estava aterrorizada por
estar só. Mamãe e papai não estavam ali. Não conseguia vencer sozinha.
Era muito pequena. Vi mamãe como ela era depois de sair do sanatório
quando eu tinha quatro anos. Ela era como agora, falando com as pessoas,
mostrando-se alegre, falsa, uma máscara. Depois percebi por que tanto me
repugna quando ela mostra seu corpo e sua fealdade, porque eu sou igual
à ela, toda escondida com uma máscara cobrindo meus sentimentos e
pavores. E esta a razão por que eu via a sua dor quando criança embora
não pudesse enfrentá-la naquela ocasião. Minhas pernas são gordas
porque eu fui empurrando meus sentimentos para baixo até chegar lá,
como também ela fazia. Meus seios são grandes porque eu fingia de
crescida. Sinto tensão agora em todo o corpo e quero livrar-me dela.
Mergulho na tensão e sinto que é dor. Toda a minha tensão é a dor que não
estou sentindo. Sinto-a agora e choro.
Também descobri hoje que toda minha preocupação com minha irmã é uma
preocupação por mim mesma, embora deslocada, porque ela deixou
transparecer a sua mágoa e dor ao passo que eu as escondi dentro de mim.
Quarta-feira
Hoje de manhã cheguei com o estômago embrulhado, nervosa e
perturbada. Tudo que falava parecia errado e então mergulhei em minhas
sensações. Era pequenina e estava no berço. Olhei e vi mamãe ali sozinha
comigo. Ela tinha o ar de sofrimento, de terror e de loucura. Eu fiquei
horrorizada e senti-me igual a ela. Eu era um bebê mas estava vendo ela ali
como era. Era triste demais. Eu era muito pequena para poder
compreender. Aquilo não era justo. Não conseguia aguentar. Era aquela a
razão para eu empurrar para baixo todos os meus sentimentos logo de
saída. Um bebezinho sendo obrigada a ver a mãe louca e desamparada.
Depois tentei lembrar-me de papai. Pouco consegui mas senti-me maior.
Eu era um bebezinho no berço que se parecia primeiro com uma
incubadora porque tinha uma coberta de plástico. Só via escuridão e sentia
necessidade de papai para me segurar. Então dei com ele ali de pé muito
mais alto do que eu. Era uma estátua olhando para mim. Não conseguia
comunicar-me com ele. Chamei baixinho mas ele não me ouviu. Ele não me
ouvia mesmo. Gritei perguntando-lhe por que não me respondia. Não podia
mover-me. Não podia gritar. E aí vi mamãe perto dele. Eram como duas
estátuas de cera, cascas vazias olhando para mim sem me verem nem
sentirem. Então vi minha irmã ao meu lado com um sorriso estranho no
rosto esticando o braço para cutucar-me. Queria que todos fossem embora.
Eram horríveis e irreais. Era apavorante. Fechei os olhos e virei -me de lado
para eles pensarem que eu estava dormindo e irem embora.
Minha infância era horrível e apavorante desde o início, mas eu escondia -
me dela. Endureci o queixo contra aquela sensação, e ainda estou assim.
Quinta-feira
Comecei outra vez com uma tensão no estômago. Comecei como um bebê
sentindo grande necessidade mas sem palavras. Tentei chamar mamãe mas
não adiantou. Depois vi-a mas não quis que ela me segurasse porque
parecia louca. Eu queria que ela e papai não fossem loucos ou de cera.
Sentia-me triste porque não podia sentir apenas a necessidade sem
também querer que eles mudassem primeiro. Pedi-lhes para não serem
loucos e pareci muito real. Depois senti a raiva que estava por baixo
daquela realidade. Gritei-lhes, então, "precisei de vocês e não recebi
nenhuma ajuda ... vocês estavam muito loucos." Quem vai querer chamar
seus pais para ver chegar duas pessoas malucas? Pensei que a raiva iria
durar sempre, mas só com um grito ela desapareceu.
Senti-me triste todo o dia e noite depois da sessão. Senti-me ludibriada e
encerrada na minha tenra infância infeliz.
Sexta-feira
Outra vez eu era pequenina e sentia necessidade de mamãe e papai. Tinha
medo e sentia frio. Estava ali paralisada, com medo que eles não cuidassem
de mim, não me aconchegassem. Não podia chamar porque ainda não
conseguia encará-los. Quando gritei por eles e finalmente gritei mesmo
como um bebê senti doer meu ouvido esquerdo. Ele talvez abriu-se porque
senti o grito atravessar-me o ouvido. Era um vagido de bebezinho que mais
soava o de um cabritinho quando saiu. Quando estava ali deitada, gelada,
senti como estava apertado meu estômago fazendo força contra a
sensação. Até hoje os músculos de meu estômago estão tensos.
Segunda-feira
Sinto dores no estômago, cãibras, dores de cabeça todo o fim de semana e
hoje de manhã. Senti um peso no estômago como sempre tive e que
sempre me faz lembrar do passado. Tentei penetrar naquela sensação e
senti-me tonta como quando fico alta ou com febre. Uma sensação de
vertigem. Meu braço esquerdo começou a ficar dormente como se alguém
o segurasse com muita força apertando os músculos. Gritei "deixe -me ir,
deixe-me ir!" mas não adiantou. De repente a tonteira pareceu como se
alguém estivesse balançando muito meu carrinho de bebê, procurando
amedrontar-me. Meu cérebro dizia-me que poderia ser minha irmã, mas aí
eu vi mamãe com seu rosto alterado. Aquilo não parecia estar certo.
Apalpei novamente meu braço. Sentia-me enjoada. Meus pais estavam me
segurando, me torcendo, metendo-me medo. Dei um grito e soltei o braço.
Senti o sangue afluir. Estava aterrorizada e confusa. Não compreendia o
que tinha acontecido. Finalmente gritei "não compreendo" ... e pronto.
Tinha perto de cinco anos e sentia-me confusa a respeito de meus pais. Não
estavam cuidando de mim. Tudo que faziam confundia-me e magoava-me.
Estavam loucos e me tornavam louca. Odiava-os por isso, mas precisava
deles. Não me amavam. Fingi que estava louca dançando e fazendo caretas
para ocultar o sentimento. Era pequena demais para poder compreender,
mas compreendia melhor do que o bebê que estava dentro de mim. Era
terrivelmente doloroso. Minha cabeça estava sempre cheia, meus ouvidos,
nariz e garganta, toda aquela porcaria e confusão entulhada lá dentro.
Gritei como bebê e senti-me um pouco melhor. Quanto sentei-me lembrei-
me de uma velha melodia e cantei-a baixinho quase sem sentir. Talvez eu
quisesse que fosse assim mesmo tão simples.
Terça-feira
Comecei a sentir um pouco imediatamente. Estava paralisada de pé na
porta entre a cozinha e a sala de jantar olhando para a sala de estar onde
estavam papai e mamãe, mas logo depois não estavam mais. Eram
transparentes. Preciso deles mas não posso chamar. Estou paralisada entre
querê-los e ter medo de sua irrealidade. Estava só, muito só. Fingia que não
precisava deles. Nunca lhes pedia coisa alguma. Nunca pedia a papai para
me cortar o bife como fazia minha irmã. Hoje eu chamei. "Papai, onde está
você? Eu não vejo você aqui em casa." Senti então que queria falar com
mamãe, queria dizer a ela que minha cabeça está doendo. Disse afinal, e
foi muito real. Também disse "eu precisava de você" que se transformou
em "eu preciso de você." Senti que por mais luzes que se acendessem na
casa ela ainda estava escura e vazia. Eu era só e pequenina e fingia que era
grande e independente. Eles realmente não estavam lá, para mim, mesmo
quando estavam. Sentia-me enganada. Por que você não cuidou de mim?
Mesmo que eu gritasse e batesse com os pés eles não me ouviriam nem
tampouco me veriam.
Quarta-feira
Senti-me ansiosa hoje de manhã. Comecei a lembrar-me mais claramente
da casa em D. Depois senti-me pequenina. Fiquei de pé atrás da porta com
medo da casa vazia. Não conseguia respirar e senti que não poderia andar
pela casa mas fiquei imaginando todas as dependências lá embaixo.
Finalmente comecei a andar pela casa e até mesmo lembrei-me do que
havia nos armários. Estava realmente com medo de ir lá em cima, com
medo de descobrir algum segredo horrível que me causava tanta
ansiedade. Fiz força para subir, degrau por degrau. Olhei no quarto de meu
tio... nada ali. Atravessei o hall para o quarto de meus pais com o coração
aos saltos. Na porta, levei um susto quando vi o quarto vazio e perc ebi que
era assim mesmo. Estava com medo porque a casa estava vazia. Não havia
lá ninguém para mim. Eu estava só. Nunca me sentira tão triste. Percebi
que nunca antes correra toda a casa. Não podia enfrentar o medo e a dor
então, só ... fui sentar-me em frente da TV olhando-a com raiva. Queimava
os fósforos para aliviar a raiva, e quando mamãe chegou em casa eu fingi
que nada havia de errado. Por dentro reagi como um bebê mas não quis
fazer o mesmo por fora.
Quinta-feira
Durante toda a noite passada estive alarmada sem poder respirar, com o
estômago apertado como cólicas. Não podia ter a sessão hoje de manhã e
decidi fazer sozinha. Continuei vendo a casa em que tínhamos morado
quando eu tinha dez anos. Olhei no quarto de mamãe e de papai e senti
vontade de fazer uma violência, raiva ... imaginei uma briga mas não era
real. Finalmente fui ao escritório. Lembrei-me da noite que voltara do
acampamento quando percebi que havia alguma coisa errada. No dia
seguinte perguntei a mamãe se eles iam se divorciar. Naquela noite pensei
ouvir eles brigando lá em cima enquanto eu estava cá embaixo. Lembrando-
me de papai comigo quando eu estava tomando banho dizendo que gostava
de mim, muito triste deixando eu perceber pela sua expressão que havia
alguma coisa errada. Chorei. Hoje eu creio que chorei de dor durante duas
horas. Sabia naquela noite que ia acabar o fingimento. Que logo seria
inevitável. Não havia família. Tinha que ver que não estava certo, nunca
estivera ... depois de dez anos de fingimentos de todos nós eu en trei em
pânico. Não podia aguentar. Queria pedir a eles ... gritei não, não, não.
Toda a dor que escondera em criança tinha que esconder outra vez naquela
noite. Mamãe poderia ter feito sim ... se ela tivesse continuado a fingir
todos nós teríamos fingido também. Era horrível. Era o fim do mundo ... de
nosso mundo de fingimentos.
Sexta-feira
Ainda sinto dor de cabeça e de estômago. Não consegui expelir tudo ontem.
Repito tudo na sessão de hoje. Só o que faltava era o grito porque não tive
coragem de gritar em casa. Gritei "não" uma porção de vezes e senti-me
aliviada.
Segunda-feira
Ainda me sinto mal na maior parte do dia. Na sessão eu mergulhei bem no
fundo de minhas sensações de solidão procurando encontrar o terror, mas
ele está todo na antecipação. Desde que sentisse a solidão em lugar de
repeli-la, era o mesmo que sentir-se só e triste. Não é agradável mas pode-
se suportar. Fui até a minha dor de estômago trazendo-a para a cabeça,
mas não sabia o que sentia. Comecei a chorar muito para ver se consegu ia
livrar-me da sensação. Gritei por mamãe: "Eu preciso de você. Tenho medo.
Cuide de mim." Não adiantou. Entrei em pânico. Não ia conseguir livrar -
me. Senti o nariz obstruído e fiquei sufocada. Não sabia bem o que sentia.
Comecei a ver a cabeça rodando, fui ficando confusa e louca. Sentia-me
como na viagem da droga. Tentei dizer alguma coisa simples, mas alguma
coisa que não podia tolerar. Continuei a procurar as respostas e fui ficando
zangada. Finalmente desisti e voltei para casa com medo e confusa.
Terça-feira
Resolvi voltar à Primal para ver o que não podia enfrentar. Todos os gritos
que dera e as necessidades que sentira não tinham ligação. Voltei para o
dia seguinte à noite que viera do acampamento. Mamãe e eu íamos para
Glendale de automóvel. Perguntei se tinham pretendido divorciar-se.
Senti-me gelada antes dela responder, comecei a flutuar para fora do carro,
sentindo-me tonta, caindo. Percebi que estava procurando fugir à
reconstituição daquela situação. Fiz força para voltar a ela. Já estava de
volta no automóvel olhando-a de frente. Tornei a perguntar e senti um
aperto no estômago. Ela disse sim. Eu afundei como se recebesse um soco
no estômago. Impossível. Ela disse sim. Senti-me empurrada contra a porta,
eles estavam me empurrando, ela estava. Finalmente percebi como
percebera então. "Ela não me ama." Se ela me amasse, então não diria sim.
Mentiria para mim. Me protegeria, seria irreal para mim. Precisava que ela
dissesse não. Aquele era o sentimento que eu não podia enfrentar. Com
vinte e cinco anos eu ficaria louca antes de reconhecer que desde os meus
dez anos de idade, e provavelmente durante toda a minha vida, eu sentira
que minha mãe não me amava.
Sábado
Comecei chorando. Vi a casa na rua O depois do divórcio. Meu quarto de
dormir ... eu deitada na cama sentindo-me muito só. Gritei e chorei
chamando mamãe. Não podia suportar sentir-me tão só. Continuava a
sentir que ela não me amava, pois senão não teria havido o divórcio.
Esfacelou-se a fantasia.
Quarta-feira
Comecei com o estômago embrulhado e a garganta apertada. Via a casa na
rua B. Corri a casa procurando alguma coisa. Vi mamãe e minha irmã em
lugares diferentes mas elas estavam imóveis como estátuas. Queria alguma
coisa delas mas não conseguia. Estava isolada e só. Precisava realmente ter
alguém comigo. Mamãe. Precisava de seu amor. Sentia dores nos braços e
na cabeça. Depois senti-me paralisada como um bebê. Eram as únicas duas
maneiras que eu sabia para ter o amor. Vi os três na sala. Pareciam doentes,
os olhos mostravam medo. Queria fechar a porta como sempre fazia. Fui
para o meu quarto. Escondi-me lendo. Percebi a ligação eterna que fiz entre
o amor e a dor sendo um bebê desamparado. Nunca apaixonar-se por
alguém a não ser que inclua a dor nessa luta. E a necessidade, devendo
dinheiro a mamãe e a papai... tinha que tirar alguma coisa deles. Quando
tentei pedir amor vi que minha boca estava paralisada. Finalmente
consegui pedir uma porção de vezes.
Quinta-feira
Minha garganta está tão apertada esta manhã que não conseguia falar
quando cheguei. Sentia que toda a dor de minha infância era como se fosse
um soco no estômago. Gritei. "Mamãe por que você não me ama? Ame-me
por favor!" Senti que queria vê-la cuidando de mim, protegendo-me.
Depois, "mamãe, por favor, não me faça sentir dor," e isso foi repetido
muitas vezes. Nada adiantava. Aí então veio, "você está me magoando,
estou enjoada, você está fazendo eu ficar enjoada." Rolei sentindo -me
nauseada. "Então você não pode me ajudar?" Mergulhei naquela sensação
... aterrorizada por estar só e sentindo a dor. Consegui expelir um pouco
para fora do estômago. Só me sentia muito triste, muito mais dor e terror
do que jamais sentira.
Chorei ainda mais. Depois senti meu corpo formigar, o estômago ainda não
muito bom mas bem mais calmo por dentro de meu corpo. Sentei-me e
passei a mão no rosto e vi que estava diferente como nunca realmente o
sentira antes. A minha máscara aterrorizada já cedera.
Sexta-feira
Ainda sinto a mesma coisa no estômago e na garganta. Finalmente hoje
senti realmente a dor e a solidão. Mas não consegui estabelecer uma
ligação. De onde vem essa imensa dor? Não consigo expulsá-la. Sinto-a
finalmente sempre e não apenas durante as sessões. Mas sinto que preciso
livrar-me dela.
Sábado
Aquela sensação continua lá no grupo. Finalmente solto um grito que não
consegui controlar. Choro sem parar. "Eu sabia que mamãe não estava lá
para mim durante todo o tempo. Eu sabia que ela não podia remediar a
minha solidão." Um alívio momentâneo por aquilo haver saído na hora
certa. Mas não era tudo. Apenas mais um outro pedaço da Dor.
9 - A RESPIRAÇÃO, A VOZ E O GRITO

Freud acreditava que os sonhos eram "a estrada real para o inconsciente."
Se é que há essa "estrada real", ela talvez se encontre na respiração
profunda. Para alguns pacientes, o uso da técnica de respirar fundo, junto
com outros métodos, realmente ajuda a liberar a tremenda força da Dor
dentro do corpo.
Um estudo feito cerca de uns vinte e cinco anos atrás também mostra a
possibilidade de alguma ligação entre a respiração e o aborrecimento. 15 Um
grupo de pessoas às quais se havia pedido que pensassem em coisas
agradáveis foi subitamente convidado a pensar em coisas desagradáveis. A
sua respiração tornou-se mais acelerada. Mais recentemente, uma
investigação sobre o problema da hiperventilação chegou à conclusão que
as deficiências da respiração estavam muito ligadas à ansiedade. Além
disso, durante os testes feitos a esse respeito o pesquisador fez pressão
sobre a parte mais baixa do peito com a palma da mão para provocar uma
inspiração mais profunda. Em quase todos os casos isso teve como
resultado logo a seguir uma demonstração de emoção junto com choro e a
revelação de importante material histórico. 16
Wilhelm Reich fez a observação que a inibição da respiração estava
associada à inibição de sentimentos: "Pois tornou-se claro que a inibição
da respiração era o mecanismo psicológico da supressão e repressão da
emoção, e consequentemente o mecanismo básico da neurose. 17
Reich acreditava que os distúrbios respiratórios nos neuróticos eram o
resultado de tensão abdominal e prosseguia descrevendo como isso produz
a respiração insuficiente e como, quando apavorada, uma pessoa pode
suster a respiração por meio de constrição do abdômen.

15
J. E. Finesinger, "The Effect of Pleasant and Unpleasant Ideas on the Respiratory Pattern in
Psychoneurotic Patients," American Journal of Psychiatry, Vol. 100 (1944)
16
B. I. Lewis, "Hyperventilation Syndromes; Clinicai and Physiological Evaluation," Califórnia
Medicine, Vol. 91 (1959).
17
Reich, op. cit.
Assim, a técnica de respiração profunda é usada durante a Terapia Primal
para trazer o paciente para mais próximo de seus sentimentos. Muitos
pacientes meus referiram-se a diferenças na respiração depois da terapia,
e somente depois de haverem começado a respirar fundo é que
perceberam como era insuficiente a sua respiração anterior. Dizem que
agora já sentem como "o ar vai até o fundo" quando respiram. Dentro do
contexto Primal isso significa que não mergulham em suas Dores no
decorrer dos acontecimentos comuns, e mostra que uma das funções da
respiração curta é evitar a saída da Dor profunda.
A respiração adequada das pessoas deveria ser instintiva, a coisa mais
natural do mundo, mas mesmo assim, os neuróticos que tenho visto
raramente respiram direito. Isso é porque recorreram à respiração para
empurrar para baixo as sensações. Em resumo, a respiração torna -se parte
do sistema anormal. A respiração neurótica é um bom exemplo de como o
sistema irreal suprime o real, porque depois de sessões Primais os
pacientes automaticamente passam a respirar profundamente, isto é,
corretamente.
Uma vez que a respiração neurótica é destinada a resistir à Dor, quando se
força o paciente a respirar profundamente isso muitas vezes ajuda a
remover a tampa da repressão. O resultado é a emissão de força explosiva,
alguma coisa que antes estava espalhada por todo o corpo na forma de
pressão alta, temperatura elevada, mãos trêmulas e outras coisas mais. As
técnicas da respiração Primal tornam-se a via regia para a Dor pois vai
contribuindo para levantar o bloqueio das lembranças. Nesse sentido
muito importante elas representam o caminho para o inconsciente.
É tentador diminuir a experiência Primal considerando-a como um simples
resultado do síndrome da hiperventilação, ou seja, respirando mais do que
o sistema exige tendo como resultado um aumento na oxigenação e uma
diminuição de bióxido de carbono na corrente sanguínea, mas se fizermos
isso estaremos desprezando dois fatores importantes. O primeiro é que as
pesquisas mostraram que a sensação de dor, ou aborrecimento por si,
aprofunda o processo de respirar, um fenômeno notado pelos
investigadores científicos que não encontram explicação para ele. Eu
acredito que a Terapia Primal explica a ligação da Dor com a profundidade
da respiração. Segundo, em quase todos os casos de hiperventilação existe
o acompanhamento de tonteiras. Isso não acontece durante uma Primal.
Aliás, se o paciente se sentir tonto nós sabemos que não está tendo uma
Primal.
Eu não acredito que as técnicas respiratórias em si tenham qualquer poder
intrínseco para transformar uma neurose. Elas podem aliviar a tensão por
algum tempo como acontece com um suspiro, mas então elas seriam
consideradas uma defesa como qualquer outro aliviador de tensão.
Na maioria dos casos, as técnicas respiratórias não são necessárias ou
então são raramente usadas depois dos primeiros dias da terapia. É preciso
lembrar que estamos em busca da Dor e que a respiração é apenas um dos
muitos artifícios que usamos para chegar a ela.
A respiração e a voz que a domina parecem ser um bom indicador da
neurose. Muita gente nervosa quando entrevistada na televisão
geralmente sente falta de ar e não consegue respirar direito. Isso pode ser
devido a alguém que tenta uma imagem que não está de acordo com a
realidade.
O paciente tenso que vai começar a sua terapia pode bem encontrar-se nas
mesmas condições. Mostra-se frequentemente apavorado e chega
lambendo os beiços, engolindo em seco e sentindo falta de ar.
Depois que o terapeuta Primal começa a atacar o seu sistema de defesa a
falta de ar aumenta. A Dor que parece subir do estômago embrulhado não
consegue passar além da barreira do peito que parece estar sendo
apertado. A respiração profunda está começando a derrubar a barreira.
Pede-se ao paciente que aspire fundo e que diga "AAAH", e logo que isso
se liga à sensação que vem subindo o paciente fica entregue a si mesmo. A
força embaixo, encontrando uma abertura, parece empurrar para cima
automaticamente e o paciente entra num estado a que chamo de conflito
respiratório.
É nesse ponto que está para acontecer o rompimento mais importante. O
paciente está então em vias de se transformar de predominantemente
irreal para predominantemente real. O conflito respiratório geralmente
tem lugar depois de algumas sessões Primais, logo antes da principa l
ligação que unificará a pessoa mantendo-a daí em diante inundada de
sensações e insights.
O conflito respiratório é um estágio involuntário na Primal em que o
paciente começa a arquejar tanto que chega a parecer um animal. A
respiração começa a se tornar cada vez mais rápida e pesada até que em
alguns casos fica muito parecida com o arquejar de uma locomotiva, mas o
paciente está tão preocupado com as sensações que muitas vezes não se
dá conta da natureza de sua respiração. O conflito respiratório parece ser
o resultado do impulso vindo de baixo de todas as sensações reprimidas
contra as forças neuróticas que ás comprimem. O processo respiratório
pode durar quinze ou vinte minutos e a pessoa parece estar numa corrida
da qual depende sua vida e para a qual precisa de todo o ar que consome.
Dentro de circunstâncias comuns o paciente pode desmaiar.
Logo que a respiração assume vida própria o terapeuta nada mais tem a
fazer senão observar. O conflito respiratório é um sinal patagnomônico que
a Primal já começou. Os pacientes dizem que se sentem impotentes diante
da invasão da Dor. Eles sabem que poderiam detê-la se quisessem, mas
nem uma só vez ainda na Terapia Primal houve qualquer paciente que
fizesse isso abortando sua Primal.
Quando a respiração fica mais forte e profunda nós sentimos que o clímax
está distante apenas alguns segundos ou minutos. O estômago treme e o
peito arfa; as pernas dobram-se e desdobram-se e a cabeça vira de um lado
para outro. Ele mostra-se, em geral, como se estivesse fugindo à sua Dor.
De repente, numa imensa convulsão, a ligação parece haver se
estabelecido e isso explode pela boca na forma do Grito Primal. Ele então
já respira profunda e tranquilamente. Houve um paciente que disse estar
voltando à vida com aquela respiração. Outros sentem-se "refrescados",
"limpos" ou "puros".
Depois da ligação principal nós vemos uma respiração fácil, muito diferente
da que o paciente tinha quando começou a sessão. Um paciente que era
atleta de corrida rasa disse que nunca antes respirara tão bem em sua vida.
O Grito apresenta uma série de efeitos marginais. Pacientes que antes não
tinham coragem para tomar uma decisão em casa experimentam uma
sensação de poder e autoridade. O Grito em si já parece ser uma
manifestação de liberdade.
Quando ouvimos as gravações de sessões Primais logo percebemos a
mudança na respiração que acompanha os vários estágios da sessão.
Em raras ocasiões, há pacientes que fingem o Grito que então parece vir
dos pulmões e sempre se parece com um guincho. O Grito falso parece ser
a continuação de uma falsa esperança. Uma vez que o Grito Primal significa
o fim de uma luta, é bem pouco provável que seja emitido por alguém que
ainda esteja lutando.
Embora se fale frequentemente em sensações profundas, nós raramente
dizemos o que esse "profundo" pode significar. Pela minha experiência, eu
acho que os "sentimentos profundos" envolvem todo o organismo,
particularmente a área do estômago e do diafragma. Muita gente percebe
logo no princípio da vida que seus pais não gostam de ver os filhos
exuberantes e cheios de vida, e então Togo aprendem a viver quase com a
respiração suspensa com medo de dizer ou de fazer alguma coisa errada,
de ser barulhento ou rir alto demais. Cedo ou tarde esse medo estrangula
o sentimento numa garganta apertada, num peito comprimido ou num
estômago embrulhado. Em vista de todo esse processo, a voz torna-se mais
aguda porque é uma voz que não está ligada a todo o corpo.
Em muitos casos, a fala do neurótico pode ser comparada com a do boneco
do ventríloquo, com a boca movendo-se mecanicamente, sem parecer
humana e como se estivesse desligada de todo o resto do sistema. Essa voz
é muitas vezes trêmula pois repousa numa camada de tensão e não num
sólido alicerce de sensação.
A boca também parece participar muito da neurose. Os pacientes que
passam pela Terapia Primal dizem perceber uma sensação diferente nos
lábios. O que quero dizer é que todo o nosso sistema parece refletir a Dor.
Há muita gente que quando fica zangada aperta muito os lábios e assim fica
até que volta ao normal.
Não é somente no rosto que se nota diferença depois das sessões Primais.
Também a voz se modifica. Esse é talvez um dos sinais mais óbvios e
notáveis de alguém que já passou pela terapia. As mulheres que antes
falavam fino como se fossem criancinhas, passam ater uma voz mais cheia
e profunda.
A fala dos neuróticos muitas vezes não mostra uma nuance porque ela
reflete um constante estado de tensão. Um paciente disse que costumava
falar aos arrancos, sem pensar e sem sentir o que falava. Depois da Primal
ele percebia o que falava.
Um paciente que tinha uma voz fina e apagada disse depois da Primal que
"eu pensava que tudo em torno de mim era fino e apagado. Sentia que
dentro de mim devia haver uma voz forte mas nunca tinha a coragem pa ra
usá-la." Um outro que falava pelo nariz disse: "Toda a minha vida pensei
que havia algo de errado em meu nariz. Agora estou vendo que não havia
nada. O caso era que eu estava filtrando meus sentimentos pelo nariz em
lugar de falar abertamente."
Uma indicação que a maneira de falar pode ser um bom espelho da pessoa
é que ficamos ansiosos quando imaginamos estar falando com uma voz que
não é a nossa. Por esta razão eu muitas vezes faço com que os pacientes
de grupos troquem de voz para com isso enfraquecer suas defesas.
É claro que eu considero a fala do neurótico como sendo um mecanismo de
defesa. A pessoa que fala baixo pode estar fazendo assim com medo de
chamar a atenção, e portanto, pode estar controlando um grito.
Quando o Terapeuta Primal manda um paciente falar mais lentamente e
com mais cuidado, ele está penetrando num mecanismo de defesa.
Enquanto houver um bom estoque de sentimentos reprimidos, são eles que
moldam e dão cor a todas as palavras que saem da boca de um neurótico,
assim como também controlam a estrutura de sua boca. Quando o paciente
fala durante suas primeiras horas, o que ouvimos é o funcionamento de seu
sistema de defesa.
Eu acho que a fala é apenas uma faceta de todas as operações de defesa
da pessoa. Quando encontramos gente falando como criancinhas a minha
experiência indica que devemos também encontrar imaturidade nas
relações sexuais e, muitas vezes, no próprio corpo, em ambos os sexos. E
assim sendo sempre que encontramos algum problema numa área,
certamente iremos encontrar o mesmo em outras. A mesma coisa que inibe
a voz pode também inibir a capacidade do paciente para um orgasmo
completo. Vamos citar um exemplo. Um menino é criticado por tudo que
diz ou faz e ao mesmo tempo, não tem permissão para retrucar ou mostrar
raiva. Essa raiva suprimida permanece e vai colorir seu rosto na medida em
que ele cresce. Mais tarde ele tem filhos. Todas as palavras que saem de
sua boca são zangadas e são uma ameaça implícita e perpétua ao seu filho.
A criança esconde então todas as facetas de seu comportamento com medo
de provocar a velha raiva do pai. Sua voz torna-se medrosa e seus
movimentos se restringem e isso pode afetar todos os processos do corpo,
talvez até mesmo o processo do crescimento. O medo de dizer a coisa e
provocar uma explosão no pai pode trazer problemas de fala na criança.
Ela terá que examinar todas as palavras para fugir ao perigo e poderá ser
vítima da gagueira.
Uma pessoa que antes gaguejava explicou o seu problema da seguinte
maneira: "A minha gagueira era realmente a minha luta. Era como se fosse
o "não eu" falando para evitar que o verdadeiro eu se manifestasse.
Sempre tive que escolher cuidadosamente as minhas palavras desde que
comecei a falar. No fim eu só falava o que os meus pais queriam que eu
falasse. Era como se eu estivesse amarrado a eles pela boca. Eu me dava
bem com eles desde que o meu verdadeiro eu não dissesse o que sentia."
Esse paciente nunca gaguejou durante uma Primal já que era sempre o seu
verdadeiro eu. A gagueira parece ser a prova gráfica do conflito entre os
dois eus e os sintomas criados por ele. O fato dos pacientes não gaguejarem
nas Primais também indica como a maneira de sentir liquida os sintomas
neuróticos.
Durante uma sessão de grupo, enquanto esse homem discutia seus
sintomas, uma outra paciente contou-lhe que enquanto ele se agarrava aos
pais com a boca ela fazia o mesmo conservando sua vagina frígida. Em
outras palavras, ela estava querendo dizer que o local da luta é aquele em
que a criança em crescimento focaliza a sua. Se a mulher espera ser boa e
pura para os pais, a luta, ou seja a negação do sentimento, pode se
canalizar para os órgãos genitais. Em outras ocasiões, como já vimos, pode
ser pela boca. De qualquer forma, quando uma criança adota as mesmas
atitudes de seus pais e funciona com elas em lugar de seus próprios
sentimentos, nós podemos esperar que o corpo não funcione mais de uma
forma real e fluida. A palavra é um processo criativo durante o qual, a cada
momento, nós produzimos alguma coisa que não existia antes. O neurótico
torna a criar todo o seu passado em todas as suas palavras. A pessoa normal
está sempre criando um presente novo.
10 - AS NEUROSES E A DOENÇA PSICOSSOMÁTICA

A tensão é o centro das motivações do neurótico que o mantém


constantemente ativo. Uma vez que a ativação é uma falsa reação, não há
nenhum sinal que volte ao sistema para lhe dizer quando deve parar. Os
músculos se retesam, surge a secreção dos hormônios, o cérebro torna -se
alerta, tudo isso para um perigo que já não existe mais.
Há uma experiência de John Lacey e seus associados que nos fornece mais
informação acerca dos mecanismos que funcionam na reação do corpo ao
stress. 18 O estudo tratava da aceleração e desaceleração do coração
quando submetido ao stress. Verificou-se que o ritmo do coração diminui
quando a pessoa está atenta e aberta a tudo que a cerca, isto é, quando
ela quer aceitar tudo que se passa à sua volta, e acelera- se quando quer
rejeitar. O ritmo cardíaco também torna-se acelerado durante a dor. Os
pesquisadores acreditam que torna-se mais rápido para mobilizar o corpo
contra o antecipado impacto da dor, e há também aumento na pressão
arterial. 19 O significado do estudo é que talvez não seja a dor só que cause
o aumento do ritmo cardíaco, mas sim a necessidade de rejeitá-la. Se a
hipótese da Dor Primal estiver certa, daí segue-se que o corpo,
especialmente o coração, sofreria com tentativas para se rejeitar tais
Dores. Isso também ajudaria a explicar a existência em alta escala das
síndromes de pressão arterial e cardíaca tão cedo na vida de um grande
número de pessoas. Nosso corpo então está apenas trabalhando demais
para combater inimigos que não são vistos nem sentidos. O coração, como
músculo que é, deve estar reagindo da mesma maneira que o resto dos
músculos do sistema.

18
John I. Lacey, "Psychophysiological Approaches to the Evaluation of Psychotherapeutic Process
and Outcome" em Research and Psychotherapy, eds. E. A. Rubenstein e N. B. Parloff (Washington,
D.C. American Psychological Association National Publishing Co. 1959).
19
Ernest R. Hilgard publicou no American Psychologist de fevereiro de 1969 um estudo sobre dor
e pressão arterial intitulado "Pain as Puzzle". "As condições de stress normalmente levam à
sensação de dor e aumento de pressão. Desde que não se constate o aumento de pressão é quase
certo que também não deve haver dor."
A tensão que é uma coisa completamente corporal deve prejudicar todo o
organismo, especialmente os órgãos constitucionalmente enfraquecidos.
Os anos seguidos desse stress deve combalir os indivíduos, e é por isso que
aqueles que estão livres de tensões geralmente vivem mais do que os
neuróticos.
O sintoma que daí surge depende de muitos fatores. Um, por exemplo, é
que aquilo que se torna aceitável conforme for a cultura da pessoa. Assim,
nos Estados Unidos, as dores de cabeça e úlceras são muitas vezes sintomas
que se explicam. Porém, mais crítico ainda é o significado simbólico do
órgão ou área afetados. A maior parte dos neuróticos não pode, ou não
tem coragem para enfrentar os seus problemas e assim a mensagem do
sentimento é simbolizada como, por exemplo, na miopia ou na asma que
aparecem quando a criança não tem nem mesmo licença para respirar
sozinha. Um paciente que tinha sofrido de asma em criança verificou que
ela reaparecia na medida em que ele se aproximava de seus mais
importantes sentimentos Primais durante a terapia.
Literalmente simbólica do split neurótico é a dor de cabeça de rachar. (N.
do T. Em inglês split também significa rachar.) Essa aflição é principalmente
devida ao conflito entre o sentimento de um lado e a ação, em sentido
contrário, do outro. Um paciente disse que "há vergonha na minha cabeça
por aquilo que meu corpo sente."
O neurótico então enche-se de remédios para passar a dor, sem
compreender que o que ele está sentindo é a Dor Primal. As dores de
cabeça se repetem porque a Dor Primal está sempre presente. Um paciente
explicou o caso. "Eu costumava dizer para mamãe que minha cabeça estava
matando-me, sem saber bem o que dizia. Minha cabeça estava matando-
me. Eu tinha que fingir que meus sentimentos não existiam e então
empilhava-os em algum lugar na minha cabeça até que sentia como se ela
fosse explodir."
Muitos de nós gastamos um tempo enorme matando as dores erradas,
tomando remédios de toda espécie, e procurando em vão fazer
desaparecer os sintomas das verdadeiras dores internas. Essas dores
sintomáticas conseguiram atravessar nosso sistema de defesa para vir nos
alertar, mas devido a esse mesmo sistema, o que geralmente surge é a pura
dor localizada aqui ou ali, de forma que a pessoa não consegue descobrir o
que lhe causa o sofrimento.
Numa recente reunião da New York Academy of Science, diversos cientistas
talaram sobre a possibilidade de alguma ligação entre as emoções e o
câncer. Claus Bahnson, psiquiatra do Jefferson Medical College, disse: "As
mais prováveis vítimas do câncer... são aqueles que não confessam suas
emoções." As suas conclusões indicavam que quando os indivíduos eram
vítimas de tragédias pessoais, aqueles com maiores tendências para o
câncer inclinavam-se a canalizar suas reações emocionais internamente por
meio do sistema nervoso. Isso, por sua vez, afetava o equilíbrio hormonal
e influía no controle do desenvolvimento do câncer. Bahnson também
mostrou que as vítimas de câncer, em regra geral, "não mantinham boas
relações com seus pais." 20 Prosseguia dizendo que desde que tais pais não
podiam ou não queriam reagir emocionalmente, seus filhos desenvolviam
a tendência que preferia reprimir seus sentimentos em lugar de extravasá -
los.
Nessa mesma reunião houve outras conclusões corroborando essas
possibilidades. W. A. Greene, da University of Rochester, encontrou em
doentes de câncer um alto grau de desespero e desamparo. 21
Uma particularidade interessante é que os índios Sioux que são conhecidos
por darem livre vazão a todos os seus sentimentos, raramente são vítimas
de câncer.
A literatura psicológica está cheia de volumes sobre medicina
psicossomática. Muito devemos ao pioneiro Franz Alexander pela sua obra
sobre os significados simbólicos das doenças somáticas. 22 Não tenho a
intenção de explorar todas as várias espécies de doenças psicossomáticas.
Será bastante dizer que muitas doenças atuais que são consideradas como
puramente físicas podem ser compreendidas em termos de corpos doentes

20
Claus Bahnson, Proceedings. New York Academy of Science (Primavera de 1968).
21
W. A. Greene, idem, idem.
22
Franz Alexander, Psychosomatic Medicine (New York, Norton, 1950).
ligados a um sistema totalmente doente que, dentro de circunstâncias de
outra forma normais, funciona notavelmente bem e de forma saudável.
A criança que tem o seu sistema físico ainda forte pode, aparentemente,
suportar muita tensão. Depois de anos de uma tensão crônica os sistemas
orgânicos tendem a ceder. É somente quando os indivíduos já estão
chegando à maturidade, quando já se libertaram da infância, que podem
ser os adultos que são física e mentalmente. Assim, a maturidade é não só
dos órgãos físicos como também dos mentais. Uma mulher muito baixinha
começou a crescer depois de uma Primal em que sentiu a significação de
ser pequena. "Eu fiquei pequenina para que meu pai visse que eu ainda era
a sua menininha para ele ter cuidados comigo. Se eu ficasse muito alta ele
nunca chegaria a perceber que eu ainda era o seu bebê." Durante toda a
minha carreira de terapia convencional jamais tive resultados como esse.
Robert Blizzard, um pediatra de John Hopkins, chegou à conclusão da
corroboração da relação que existe entre o crescimento e a estatura
mental. Numa conferência em Los Angeles no dia 22 de setembro de 1969
perante a Divisão de Crianças do Centro Médico da University of South
California, ele disse: "Muitos pediatras achavam que era tolice a noção que
a psique poderia controlar o crescimento. Isso nada tem de tolice." Ele
notou que quando uma criança de seis anos tem apenas a altura de uma de
três, o nível do crescimento hormonal está muito abaixo do que deveria
ser. Mostrou que muitas crianças pequenas crescem rapidamente quando
são retiradas de um lar pouco satisfatório, mesmo se forem para um
orfanato. Dentro de quatro a cinco dias já começarão a produzir o normal
dos hormônios do crescimento, e algumas chegam até mesmo a crescer
quase um palmo em um ano. Quando essas mesmas crianças foram levadas
de volta ao lar anterior, logo deixaram de crescer outra vez! Os estudos
feitos sobre tais lares revelaram uma grande privação em termos de amor
e em alguns casos as mães chegaram a confessar que odiavam as crianças.
O Dr. Blizzard diz que o único remédio para crianças com pouco
crescimento é um novo ambiente. Para os adultos eu recomendaria a
Terapia Primal.
A medida psicossomática é geralmente um problema cheio de
perplexidades para o médico porque o paciente muitas vezes nem sabe que
está tenso e também porque não existe nada em sua vida atual que possa
indicar a causa de sua moléstia. Muitas vezes não se encontra uma causa
psicológica aparente para uma moléstia repentina. Um exemplo disso é o
homem próspero que, finalmente, sofre o seu primeiro ataque cardíaco. O
seu médico pode atribuir aquilo ao excesso de trabalho e pode-lhe
recomendar um ritmo menos intenso de vida, mas isso, justamente, poderá
apressar o seu segundo ataque já que a inatividade quase que corresponde
à retirada de todas as defesas, ao aumento de tensão e maior pressão
interna. Assim, o segundo ataque seria o resultado de pouco ou nenhum
trabalho em lugar de trabalho demais. Mais precisamente seria o resultado
da pessoa não ter em que se concentrar para aliviar a tensão. Isso talvez
seja a razão de mortes prematuras em indivíduos aposentados.
Os médicos podem achar que a razão para os vários problemas que os
pacientes trazem ao seu consultório não são psicossomáticos porque não
há nenhum trauma visível. É bem possível, no entanto, que os sintomas
percebidos pelo médico sejam o resultado de tensões acumuladas. A
necessidade de uma medição periódica das tensões de todos nós deve
ajudar bastante para a compreensão e a prevenção de muitas espécies de
moléstias. Uma alta tensão continuada poderá significar a possibilidade de
um desequilíbrio hormonal que seria o causador das doenças. Alguns
pacientes que sofriam de hipotireoidismo antes da terapia tiveram a sua
condição alterada depois dela. Já não precisavam mais tomar os remédios
a que eram obrigados antes.
Eu acredito que a neurose pode ser considerada um fator em quase todas
as moléstias. O bloqueio de um sentimento equivale a suprimir alguns
aspectos de nossa fisiologia. Raramente encontrei ainda um neurótico que
seja fisicamente sadio. Os estudos recentes mostram que os indivíduos
mais ansiosos são também os mais susceptíveis aos vírus. Já antevejo o dia
em que a medicina não estará mais dividida entre o corpo (medicina
interna) e a mente (psiquiatria). Essa divisão fez com que a medicina
cuidasse dos sintomas físicos e a psiquiatria dos sintomas mentais, sem um
pleno conhecimento que os sintomas são uma excrescência de um sistema
psicobiológico em conflito. Em termos Primais, há muito pouca diferença
entre um sintoma mental, como a fobia, e um físico, como a dor de cabeça.
O sintoma é apenas uma forma idiossincrática para a pessoa resolver o seu
conflito. A especialização no tratamento de sintomas representa o mesmo
que tratar os seres humanos pelos seus fragmentos. Não devemos esquecer
que os sintomas estão ligados aos sistemas. Se tratarmos uma úlcera ou
uma depressão sem levar em conta o sistema, nós estaremos ignorando as
causas. Isso não significa que devemos desprezar os sintomas, mas o alívio
dos sintomas é apenas um expediente provisório.
O Desaparecimento dos Sintomas

Ao passo que os sintomas como tiques, úlceras, frigidez, dores de cabeça,


perversões sexuais, etc., desaparecem na Terapia Primal, devemos
reconhecer que o mesmo acontece com as outras terapias. A diferença
importante, porém, é que na Terapia Primal os sintomas são, geralmente,
os últimos que desaparecem. Isso contrasta com a minha experiência na
terapia comum onde eu algumas vezes conseguia aliviar os sintomas muito
rapidamente. Isso pode ser porque a terapia comum permite que o
paciente continue a funcionar normalmente e assim proporciona-lhe
muitas válvulas de escape para a tensão, o que faz diminuir os sintomas.
Na Terapia Primal, com as válvulas eliminadas, os sintomas podem
inicialmente agravar-se porque no decorrer do tratamento ele pode ter
perdido muitas de suas defesas menores. Enquanto ainda houver alguma
parte do eu irreal e enquanto existir um split, os sintomas continuarão.
Desaparecerão quando a pessoa estiver em condições de abandonar a
terapia.
Existem boas razões para a perda gradativa dos sintomas. Em primeiro
lugar, vamos dizer que o sintoma de comer demais, por exemplo, é
geralmente o ponto focal na vida do paciente e a saída central para a
tensão neurótica. O sintoma é geralmente a última coisa que desaparece
porque ele foi o primeiro que surgiu na vida do paciente. Os tiques e
alergias geralmente começam antes dos cinco anos, mas a gagueira pode
começar aos dois ou três junto com a palavra. O sintoma foi a forma que a
criança teve para resolver o seu split.
Os sintomas corporais como a prisão de ventre, a gagueira ou os tiques não
devem ser considerados como simples hábitos que podem ser expulsos do
organismo. Eles são as reações físicas involuntárias ao split (a sensação
desligada do pensamento) que produzem pressões corporais que situam-
se fora do controle e da vontade consciente. Essas pressões produzem os
sintomas. A supressão de um pensamento verdadeiro, a contrapartida
mental de uma sensação física, pode produzir um sintoma mental como
uma ideia irreal ou uma fobia que é uma espécie mais séria de uma ideia
irreal. A supressão do equivalente físico do verdadeiro pensamento (o
doloroso pensamento Primal) pode produzir sintomas físicos como gases
no estômago, que acabarão se transformando em úlcera ou colite.
É importante compreender que a severidade dos sintomas aumenta com a
quantidade e a longevidade da pressão. A pressão mental inicial pode
produzir algumas ideias ou fobias irreais. Pode chegar até mesmo a
produzir alucinações e ilusões. As alucinações seriam apenas as
extremidades de um processo de desenvolvimento de ideias irreais que
começou na mais tenra infância. À medida que os sentimentos reprimidos
crescem, isso faz com que a mente se enrede em mais complexas
circunvoluções. Ao mesmo tempo isso força ainda mais os órgãos
vulneráveis que ajudam a esgotar um pouco das tensões. No caso de um
sistema orgânico ceder finalmente, a tensão se encaminhará para lá. Se não
puder reduzir bastante a pressão, isso poderá afetar outros sistemas
orgânicos. Assim, como aliás aconteceu com um paciente, poderemos
constatar primeiro corrimento do nariz, sérias alergias, asma, úlcera e por
aí além.
Desejo ressaltar a unidade de todos os sintomas neuróticos, psicológicos e
físicos. Uma sensação bloqueada pode resultar numa tensão acumulada
que acabará afetando a parte interna do estômago, ou então essa mesma
sensação poderá ser expelida masoquistamente resultando na
exteriorização da mesma Dor. Em ambos os casos estará tornando a Dor
real, e logo que isso aconteça já será possível alguma providência. Para as
doenças existem os remédios. Para o ritual masoquista existe um princípio
e um fim. Em ambos os casos é a transformação da Dor em alguma coisa
concreta e que pode ser controlada. As doenças são os sintomas
involuntários da Dor ao passo que o masoquismo é voluntário. Embora
possam parecer fenômenos diferentes, elas são apenas canais diferentes
para as sensações bloqueadas.
O sadismo é uma outra variação em que a Dor, para não ser sentida, é
infligida em outra pessoa. Alguém pode castigar sua mulher quando
realmente pretende castigar sua mãe e num nível ainda mais profundo,
pode talvez querer castigar sua mãe porque se sente magoado com a falta
de amor.
Pode ser muito complexa a dinâmica na escolha da representação
sintomática. (Os sintomas psicossomáticos são um comportamento irreal.)
São o resultado de circunstâncias da vida ou de nossa estrutura
constitucional. Mas para entender qualquer sintoma (neste caso, o
masoquismo ou doenças psicossomáticas) nós devemos ver que seja um
comportamento novamente localizado. É o foco e a forma como fixamos as
aparentes origens do sofrimento: "Meu marido é cruel. A vida seria
diferente se ele não me batesse quando fica bêbado." "Eu ficaria muito
bem se conseguisse livrar-me das dores de cabeça." Nenhuma das duas
afirmativas é geralmente verdadeira. A vida continuaria a não ser boa. Os
dois comportamentos se enquadram no estilo de vida do indivíduo. Servem
para conservar distante a verdadeira Dor.
Os sintomas são defesas porque conservam a distância a verdadeira Dor. A
razão por que os sintomas significativos são os últimos que desaparecem
na Terapia Primal é que o sistema de defesa, que se concretizou como
entidade estável depois da principal Cena Primal, funciona numa base de
tudo ou nada. Quando ainda há coisas sérias para sentir até mesmo durante
os últimos estágios da Terapia Primal, o paciente frequentemente volta aos
seus primeiros sintomas. Quando finalmente sente o que ocasionou o seu
pleno split, é muito pouco provável que jamais tenha outra vez os sintomas.
Quando uma criança muito nova se divide em sua cena principal, o excesso,
a tensão sem solução, encontra uma saída no sintoma. Esse sintoma
"cuida" da sensação e resolve o conflito de uma forma irreal. Tratar apenas
dos sintomas, então, significa tratar o que não é real. É um trabalho sem
fim quer os sintomas sejam mentais ou físicos. É por isso que a psicanálise
de sintomas demora tanto tempo.
Uma visão íntima da formação do sintoma encontra-se em um estudo feito
por Barker e seus associados. 23 Eles tinham descoberto antes que os
sintomas como a asma, úlceras, e hipertensão tornavam-se piores quando
tratados em entrevistas sob a influência de um barbitúrico usado como
sedativo ou hipnótico. Os pacientes falam mais livremente com isso já que
a droga parece relaxar algumas das inibições contraídas, ou seja a frente
irreal. A pergunta implícita no estudo de Barker era: Por que deve alguém
ficar pior (demonstrar sintomas) quando está menos inibido? Durante o
decorrer de seus estudos de ataques de epilepsia com pacientes sob a ação
do barbitúrico, eles descreveram a situação da seguinte maneira: 24
O paciente, que antes tivera ataques epiléticos, estava sentado numa
cadeira meio reclinada com os elétrodos fixados no couro cabeludo para
registrar as ondas cerebrais. Ele disse que tinha sido uma "semana dura"
caracterizada por brigas com sua mulher e sua mãe. Foi-lhe dado um
barbitúrico na dose de três e meio grãos por minuto durante três minutos.
O relaxamento induzido no começo da injeção foi, nesse caso, transitório.
Ele começou a mostrar-se cada vez mais tenso. Perguntamos o que havia
com ele e a resposta foi "minha mamãe". Fez caretas, resmungou e falou
coisas sem sentido de sua mãe. Parecia estar zangado e sentindo dor. Os
comentários a respeito de sua mãe eram intercalados com exclamações.
Perguntamos o que havia com sua mãe e a resposta foi: "Bem que desejava
pegá-la a jeito. Para matá-la. Ela não presta... Está sempre me
perseguindo... todo o tempo... todo o tempo..."
Mal conseguia conter toda sua raiva. E continuou: "Minha mãe matou meu
pai. Eu vou matá-la. Ela me põe louco." Cerrou os punhos, levantou-os e
parecia não poder conter a raiva, nem tampouco exprimi-la. De repente

23
W. Barker e S. Wolf, "Experimental Production of Grand Mal Seizure During the Hypnoidal State
Induced by Sodium Amytal," American Journal of Medical Science, Vol. 214 (1947)
24
Wayne Barker, Brain Storms (New York: Grove Press 1968)
seu rosto perdeu toda a expressão e ele soltou um grito curto e
estrangulado. Depois foi tomado de um violento espasmo muscular. Ficou
rígido. O rosto contraiu-se numa careta enorme, arqueou as costas com os
braços cruzados no peito e as pernas esticadas e rígidas. Esse rígido
espasmo muscular relaxou-se e ele começou uma série de contrações
típicas de uma grande convulsão. As ondas do cérebro durante o ataque de
dois minutos tinham todas as características de uma convulsão. Debaixo da
hipnose, o renascimento das reações à sua mãe havia sido abortado pelo
ataque epilético. (O grifo é meu)
Os pesquisadores ficaram francamente admirados por tudo isso porque o
barbitúrico usado tinha propriedades positivas contra convulsões.
Chegaram à conclusão que o ataque fora causado por um conflito entre a
raiva incontrolável e as restrições da consciência.
Vou citar ainda algumas coisas mais do que Barker disse porque estão
relacionadas com o conceito Primal. "Isso era consistente com a
formulação de Freud... um ataque convulsivo, nessa opinião, reduz o nível
de descarga de uma manifestação significativa para uma outra atividade
neuromuscular pessoal sem significação."
O que ele está realmente dizendo é que os sentimentos bloqueados
resultaram num maciço acúmulo de tensão com a manifestação convulsiva
final, um ataque epilético. Se ele não estivesse falando de um ataque, eu
teria pensado que estava se referindo ao que acontece na Terapia Primal.
É claro que um sentimento bloqueado na vida de alguém não produz a
síndrome epilética da mesma forma que não pode também produzir
úlceras, gagueira ou asma. Quando porém estão em causa anos de
sentimentos e sensações reprimidas, devemos concluir que há um acúmulo
de tensão que excede a capacidade de resistência do organismo, e isso
afeta a área ou o órgão da vulnerabilidade. Para uma pessoa nascida com
tendência para alergia, um acúmulo de tensão pode se transformar em
asma ao passo que para uma outra cuja tendência seja para distúrbios do
cérebro, isso pode se transformar em epilepsia. O que aconteceria se
alguém exigisse do paciente que ele desse vazão aos seus sentimentos por
meio de um grito? Acredito que com essa demonstração seria evitado o
desenvolvimento de um sintoma (a solução do conflito). O bloqueamento
do sentimento produziu uma atividade neuromuscular difusa, ou seja a
tensão.
É preciso ficar claro que uma única expressão de sentimento só impediria
aquele ataque especial. Ele continuaria a ser epilético e mostraria outra vez
os sintomas desde que fosse submetido ao stress. Quando todas as suas
repressões antigas não mais existissem, nós poderíamos então dizer que
ele tinha predisposição para a epilepsia sem ser epilético. É a mesma coisa
que ser basicamente sensível ou alérgico, mas sem ter alergias.
E Barker prossegue:
O Dr. Herbert S. Ripley e eu tivemos uma outra entrevista com um outro
paciente. Quando induzido à hipnose o paciente começou
espontaneamente a reviver uma série de experiências traumáticas cheias
de agressividade, de sentimentos de culpa e de desamparo, regredindo no
tempo à medida que ia passando de um episódio a outro. Aquilo era como
se ele estivesse espalhando no tempo, para nossa inspeção, um denso
complexo de experiências correlatas altamente carregado. A revivência das
séries parecia mostrar aquilo que ele só conseguia exprimir em convulsões.
Aqui, Barker expõe, quase palavra por palavra, a hipótese Primal. Na
verdade, aquele homem passou por uma experiência Primal induzida por
um processo hipnótico em que os controles conscientes haviam sido
afastados. Nesse caso, Barker mostra que a revivência de fortes situ ações
emocionais do passado levaram a um ataque epilético. Ou inversamente,
isso infere que fortes sentimentos não resolvidos nem exprimidos no
passado levaram a um ataque epilético. Muita gente acumula tensões e
alguns criam úlceras enquanto outros caem em convulsões. O problema é
a tensão e não a forma para aliviá-la. Pelas descrições de Barker eu chegaria
a conclusão que a hipnose e o barbitúrico enfraquecem o eu irreal que se
defende. O que vem à tona então são as sensações Primais que antes eram
mantidas sob controle. Um hipnotizador de palco pode em certo ponto
estabelecer uma nova frente para fazer com que as pessoas façam coisas
estranhas ou se mostrem diferentes, mas nas experiências de Barker nada
mais foi feito senão aliviar a frente. Isso é mais uma prova de como um
relaxamento (férias, aposentadoria ou doença de pouca duração) pode ser
uma ameaça para alguns neuróticos, uma ameaça para todo o seu sistema
físico. Ajuda a explicar por que são poucos os neuróticos que se submetem
a um relax pois isso para eles significa ser dominado ou até mesmo a morte.
O trabalho de Barker ainda diz mais. Os sintomas são necessários para a
economia psicofísica do indivíduo. Eles resolvem os conflitos. Remover os
sintomas sem remover as causas significa deixar as pessoas susceptíveis a
ocorrências ainda piores provenientes de tensões acumuladas.
Barker entrevistou depois um menino de dez anos que havia sido
convencido por sua mãe para evitar brigas a qualquer preço. Depois de
ligado à máquina de ondas cerebrais foi-lhe feita a seguinte pergunta:
"Como foi que você sentiu-se quando teve que oferecer a outra face, o que
significa apanhar mais ou fugir?". "Eu não queria que eles me julgassem
covarde, mas mamãe acharia ruim e ficaria zangada comigo se eu me
metesse em brigas..." Barker diz que ele ficou muito tenso e respondeu:
“Eu não podia ficar zangado com minha mãe. Ela é minha mãe. Foi ela quem
me pariu."
O padrão das ondas cerebrais era de tensão bastante parecida com leves
demonstrações epiléticas. Barker conclui então: “Sem a máquina, nós
jamais suspeitaríamos a presença de um componente epilético naquele
bloqueio de palavra mais ou menos comum. Isso estabelece uma ligação
entre todos os ataques, epiléticos ou não." Os sentimentos bloqueados, em
resumo, possuem a capacidade para produzir convulsões, pelo menos ao
nível de atividades cerebrais. Isto significa que, sendo perturbado, o
cérebro pode ter convulsões mesmo quando a pessoa não tem. Essas
convulsões do cérebro podem resultar em comportamentos e sintomas
neuróticos que em nada se diferenciam dos ataques epiléticos. Barker acha
que até mesmo a flatulência pode ser um ataque. Uma vez que existem
convulsões cerebrais em muitas qualidades de perturbações, ficamos
imaginando se um sintoma como a gagueira pode ser considerado um
equivalente à epilepsia. Será que a gagueira, então, é uma epilepsia da
boca?
Barker quer mostrar que a palavra bloqueada e os sentimentos que a isso
acompanham acumulam uma tensão que acaba chegando ao cérebro. E
ficamos então pensando quais poderão ser os efeitos de anos de acúmulos
de repressões da palavra e dos sentimentos. O que tem importância no
estudo de Barker é que se nós formos estudar somente o gráfico do
cérebro, logo concluiremos que os sintomas de epilepsia ou de gagueira,
por exemplo, seriam causados por irregularidades nas ondas do cérebro.
Se nos aprofundarmos, logo verificaremos que elas são o resultado do
acúmulo de sentimentos bloqueados. Precisamos ter sempre cuidado em
não equacionar a causa de uma doença com aquilo que estamos medindo.
Assim, se encontrarmos algumas transformações nos componentes
químicos do sangue ou da urina de esquizofrênicos, isso não significa
necessariamente que essas transformações causam esquizofrenia.
O que Barker mostra em seu excelente livro é que muitos comportamentos
diferentes parecem ter uma correlação quando não houver um suave
funcionamento do cérebro e que isso pode ser o resultado de sentimentos
bloqueados e o subsequente acúmulo de tensão. Essa carga embaraça o
cérebro obrigando-o a trabalhar muito. Em termos Primais, isso significa
que as funções do cérebro cedem quando nos acontece alguma coisa que
seja mais do que podemos integrar de uma só vez, ou sejam as Cenas
Primais.
O que tudo isso significa é que quando não podemos ser nós mesmos numa
situação isso não significa simplesmente o seu fim. Torna-se internalizada
em forma de tensão que acaba chegando ao cérebro onde se interrompe o
funcionamento. O resultado disso poderá ser pensamentos confusos,
gagueira ou epilepsia, ou então simplesmente um comportamento de
seguir em frente.
O sintoma neurótico é a solução idiossincrática das lutas internas do
indivíduo. Nesse sentido, o estilo é o homem. O sintoma, portanto, não
pode ter um significado generalizado pois só pode servir para a quela
pessoa. Assim, o rilhar de dentes pode ter milhares de significações. Para
um paciente era agarrar-se à vida com os dentes ao passo que para outro
significava uma raiva inexplicável, mas para todos os pacientes, cada
sintoma tem um significado que serve para ele e só para ele. Sendo assim
não podemos generalizar sobre as pessoas que rilham os dentes. Tampouco
podemos ter definições que sirvam para tudo. Somente o paciente pode
dizer-nos o que significa seu sintoma.
Há sintomas neuróticos que geralmente não são julgados como tais, como,
por exemplo, a baixa estatura. Ninguém vai a um psicólogo porque é baixo,
mas depois da terapia, nós vamos descobrir que o desenvolvimento da
pessoa foi retardado mental e fisicamente. Vemos que o paciente cresceu
e inferimos assim que o fato de ser baixo era realmente um sintoma, era a
sua solução idiossincrática das contradições íntimas que o afligiam.
Durante os últimos dois anos não conheci caso algum de reincidência de
sintomas em alguém que tivesse completado a sua Terapia Primal, e já não
posso afirmar a mesma coisa sobre o meu trabalho como terapeuta
convencional. Por quê? Na minha opinião, é porque os sintomas dependem
da tensão. Os sintomas não voltam porque não há Dor Primal para a
reincidência da tensão. Não há split que esteja dividindo o corpo e a mente.
Nada mais há, em suma, que esteja submerso criando pressão no
organismo.
Eu poderia continuar citando uma lista sem fim de todos os sintomas
erradicados pela Terapia Primal desde as cólicas menstruais até a asma,
mas isso faria da Terapia Primal uma espécie de panaceia que prejudicaria
a sua reputação. Um colega meu chegou a dizer-me: "Se, pelo menos, você
me contasse alguns de seus fracassos, alguns sintomas que nunca
desapareceram, eu estaria, talvez, mais disposto, a acreditar nas coisas
incríveis que me conta." O fato é que a Terapia Primal deveria poder
resolver todos os sintomas, ou então não seria válida a premissa que os
sintomas são o resultado das Dores Primais.
Talvez o paciente que já passou pela Primal, isento de sintomas e de
tensões, possa parecer um super-homem, mas é o neurótico que está
tentando mostrar-se como tal quando come o dobro do que precisa,
trabalha o dobro de todo mundo, usa o dobro da energia para só conseguir
infelicidade em dobro.
Discussão
Todo homem representa a sua verdade. Para o neurótico elas são as Dores
Primais. Uma mentira da mente significa um ferimento no corpo. Embora a
mente do neurótico diga que não há nada errado, o seu corpo conta a
verdade. As doenças psicossomáticas são a verdade do corpo.
Com o correr do tempo nós talvez sejamos obrigados a mudar de ideia a
respeito do que significa um funcionamento normal. Uma paciente, que era
enfermeira, mediu a pressão arterial e tomou o pulso de outros pacientes
do grupo, e verificou que os índices eram sempre abaixo dos normais.
Muitos pacientes já notaram uma constante queda na sua temperatura
quando em repouso. Alguns dizem que suas temperaturas estão sempre em
volta de mais ou menos 35,5° C. De um modo geral os pacientes que
passaram pela Primal gozam de excelente saúde e só posso atribuir isso à
ausência de tensão crônica.
Quando o neurótico não sucumbe à doença resultante de tensão crônica,
ele poderá sucumbir ao seu hábito de procurar ver-se livre da tensão. O
fumo, a comida em demasia, os remédios e as bebidas, tudo isso cobra a
sua taxa. Mesmo com a ajuda desses hábitos para esgotar a tensão, muitos
neuróticos continuam a sofrer de moléstias psicossomáticas. O sistema
neurótico é como um vaso gigantesco extravasando os sintomas pelas
bordas. Temos feito tudo para derrotar os sintomas do melhor modo
possível, mas devemos fazer claro que precisamos esvaziar o vaso das altas
tensões se quisermos eliminar os sintomas. Só podemos fazer isso se
compreendermos que a tensão neurótica não é normal e não cabe num
sistema saudável. Os sintomas são o resultado do corpo trabalhando contra
ele mesmo, da pressão entre o eu real e o irreal. Para uma saúde física e
mental duradoura será preciso eliminar essa força.
11 - O FATO DE SER NORMAL

O único objetivo da Terapia Primal é fazer com que os indivíduos se tornem


reais. As pessoas normais são reais por definição. Os pacientes que
passaram pela Terapia Primal são reais por causa disso, mas ainda trazem
consigo as cicatrizes. Foram bastante feridas durante suas vidas e não é
fácil apagar as lembranças. Só o que podemos fazer é torná-las inofensivas
para que não tenham mais a força que obriga os neuróticos a atos
simbólicos. Depois de tantas privações por que passam os neuróticos, é
óbvio que depois da Primal eles não podem ser mais uns indivíduos
plenamente realizados. Como neuróticos eles viviam lutando para se
realizarem e a terapia agora liberta-os para satisfazerem suas necessidades
no presente.
Quando me refiro a um ser humano normal, eu quero significar uma pessoa
livre de defesas, sem tensões ou lutas. A minha opinião a respeito de
normalidade nada tem a ver com normas estatísticas, médias, tabelas de
ajustamentos sociais, conformismo ou não conformismo. Quando a pessoa
é ela mesma a maneira como se comporta pode ser tão variada e infinita
como o número de pessoas neste mundo. O normal é sempre ele mesmo.
A Terapia Primal faz com que alguns considerem o seu íntimo em lugar do
que existe em torno deles.
Passarei a discutir o normal em contraste com o neurótico. Mais adiante
farei um retrato de um paciente pós-Primal mostrando como ele se sente,
o que faz e as espécies de relações que mantém.
Já que se sente satisfeito, o ser normal relaxa-se. O neurótico insatisfeito
por não haver conseguido o que queria sente-se obrigado a procurar a
origem verdadeira de sua insatisfação. Com isso ele deixa de saber quais
são as verdadeiras origens de sua infelicidade. Então começa a sonhar para
conseguir um novo emprego, para tentar um novo grau universitário, para
morar noutro lugar ou para arranjar outra namorada. Ele acredita que o
seu descontentamento básico seja solucionado desde que faça qualquer
daquelas coisa.
Lembro-me de um paciente que começou com a terapia reclamando contra
os acontecimentos políticos do país. Era um obcecado e queria se mudar
para outro país. Tudo que dizia sobre a política estava certo. Não obstante,
quando checou ao seu verdadeiro descontentamento, isso não fez com que
ele modificasse suas ideias sobre a situação política mas conseguiu resolver
a questão de mudar-se para o estrangeiro. Sentia que "não havia um bom
lar para ele." Nunca tivera um bom lar. Um lar ruim é igual a uma pátria
ruim. O seu sonho era encontrar aquele bom lar em algum lugar.
O neurótico nunca se satisfaz por muito tempo porque não está nunca onde
está. Ele usa o presente para fazer funcionar o passado. Assim, comprará
uma casa que arrumará direitinho, e quando tiver feito isso já estará
querendo uma outra casa. Ou então encontrará uma namorada que logo
abandonará depois de conquistá-la.
Para o neurótico, o importante é a luta e não os resultados. Por isso é
comum não conseguir terminar o que começa. Justifica os trabalhos
insatisfatórios na base de exigirem muito dele. Mas isso é porque ele nunca
termina. Terminar sem sentir-se realizado é o mesmo que ferir-se. É por
isso que tanta gente encontra tantas dificuldades nos últimos meses de
estudo para conseguir um grau superior. É também a razão por que muita
gente não se dá por satisfeita só com dinheiro no banco. Logo depois que
pagou todos os seus compromissos, ele terá que assumir outros para poder
continuar a luta. É intolerável sentir-se realizado, ter dinheiro no banco e
ainda assim sentir-se infeliz. A luta é o paliativo para isso. Algumas
mulheres neuróticas raramente levantam-se cedo para logo terminar o
serviço da casa. Se isso acontecer logo se verão diante do vazio de suas
vidas. Em lugar disso preferem manter um ou dois quartos constantemente
desarrumados para que possam manter a luta. Podem antegozar, para
quando a casa já estiver arrumada ou limpa, sem aquele sentimento de não
ter mais nada a fazer desde que liquide suas obrigações caseiras.
A pessoa normal, que não precisa lutar, que não precisa de obstáculos em
seu caminho para justificar a luta, sempre pode atender às coisas. O
neurótico, retardando o sentimento de sua Dor, retarda também muito
todo o resto de sua vida. Aliás, o sentir aquela Dor representa, para o
neurótico, o princípio da vida. Até que a sinta ele deve mostrar -se arredio,
não somente em termos de fugir apenas ao que fere como também a tudo
que é desagradável. Desde que está sempre tentando fugir de si mesmo,
ele tem a tendência para a fuga, se não a física, pelo menos mentalmente.
Tem o espírito sempre cheio das coisas que vai fazer. Nunca pode parar.
Movimenta-se até mesmo em sonhos, virando-se na cama ou suando
muito. Pode ser tão ativado que nem mesmo consiga dormir sempre
obcecado por pensamentos desagradáveis ou por negócios sem solução
ainda.
O ser normal pode estar conosco completamente. Nunca precisa manter
uma parte sua separada, "de reserva", e portanto, pode mostrar um
interesse completo. O neurótico é geralmente um remoinho de distrações.
Seus olhos, da mesma forma que a mente, estão sempre girando de uma
coisa para outra sem nunca se deter por algum tempo.
É claro que a pessoa normal não é dividida. Isso significa que quando lhe
aperta a mão nunca seus olhos estão olhando para o além. Sabe ouvir com
atenção, e isso é raro numa sociedade neurótica. O neurótico, na realidade,
só consegue ouvir o que quer. A maior parte do tempo está pensando no
que vai dizer a seguir. Tudo o que ouve, em geral, só tem valor quando se
refere a alguma coisa que lhe diga respeito de alguma forma. Não pode ser
objetivo nem aprecia devidamente o que não lhe diz respeito, e isso aplica-
se também aos seus filhos. As conversas neuróticas raramente
transcendem assuntos pessoais e o "eu" está sempre presente, porque o
interesse do neurótico encontra-se no "eu" não realizado. A pessoa normal
interessa-se por si mesma de forma diferente. Não é preciso que tudo no
mundo se relacione com ela, mas, ainda assim, está sempre pronta a
relacionar-se com o mundo. Nunca usa o seu mundo externo para cobrir o
interno.
O indivíduo normal nunca se sente solitário. Ele pode sentir-se só, mas é
de forma muito diferente daquela que sentia antes. É uma sensação
diferente em que não entra o pânico nem o medo. A solidão do neurótico
não permite ficar só pois tem necessidade de companhia para fugir ao
catastrófico sentimento Primal de ser rejeitado e solitário durante toda a
sua vida. Os inventores do rádio no automóvel compreendiam a solidão
neurótica. Isso é quase como um remédio para a Dor. É uma defesa
fornecida de graça para que o neurótico não sinta a sua solidão. Para o
normal esse rádio pode ser considerado como uma invasão de sua
intimidade.
O normal é direto e podemos sentir isso pela forma como reage. A vida do
neurótico é sempre exagerada para mais ou para menos. Desde que
percebe o repúdio por suas reações verdadeiras ele é obrigado a agir de
forma falsa ou então de não reagir de forma alguma. Por exemplo, uma
paciente convidou uma amiga neurótica para vir ver seu novo apartamento.
Perguntou-lhe o que achava da decoração e a outra disse que bem desejaria
que o seu tapete fosse tão bonito quando o dela. Ela só via o aposento em
termos de suas próprias necessidades e a sua reação foi tipicamente
neurótica. Sempre que ouvem alguma anedota, os neuróticos procuram
sempre abafá-la com uma outra melhor.
Sempre que alguém sente necessidade de "identificar-se" em lugar de
sentir, nós presenciamos essa reação imprópria. Assim, o normal reage de
forma apropriada, não porque esteja procurando produzir efeito ou porque
tenha lido em algum livro de etiqueta, mas sim porque ele sente o que é
apropriado. Isso significa que para ser um bom pai ele não precisa andar às
voltas com o Manual dos Bons Pais. Ele será sempre uma pessoa natural e
permitirá que seus filhos sejam também naturais.
Uma vez que já não precisa esconder o sentimento da falta de importância,
ele não precisa também lutar para ser tratado como alguém muito especial
em toda a parte onde vai. Para o neurótico isso é geralmente uma ocupação
de tempo integral. Parte da necessidade do neurótico é verse sempre
rodeado de gente, para não sentir-se solitário, ou então entrar para clubes
para esconder o sentimento de nunca haver pertencido a uma verdadeira
família. Para o normal toda essa luta incessante já acabou.
As lutas dos neuróticos são todas elas fabricadas. Assim uma mulher pode
passar anos fazendo compras sem jamais sentir-se satisfeita com o que
comprou. E é bem provável que seja assim mesmo. Se ela tivesse
conseguido o amor dos pais sem lutas, então talvez aquelas compras não
fossem assim tão importantes. As compras de ocasião são a neurose de
todos os norte-americanos. É muito parecida com a pílula mágica para não
engordar, e conseguir alguma coisa boa com pouco esforço. O que torna as
compras de ocasião especialmente deliciosas é a luta. Quanto maior for ela
mais valor terá o prêmio, só que esse não é o verdadeiro prêmio para a
grande luta da vida. É apenas um insignificante substituto porque os anos
de luta pelo amor dos pais simplesmente resultaram em nada. As compras
de ocasião são bem parecidas com a vida dos neuróticos com apenas a
pequena diferença que eles finalmente conseguem o que, na maioria das
vezes, não desejam.
O neurótico não gosta de entrar numa loja para pagar o preço marcado
porque, com isso, ele já não está recebendo um tratamento "especial".
Qualquer um pode pagar o preço fixado, e quem fizer isso está passando a
ser como qualquer outro. Já o normal é diferente, pois ele sempre tenta
tornar a vida o mais fácil possível.
Muito parecido com as compras de ocasião é a forma como o neurótico
trata o dinheiro. Um paciente disse-me que nunca conseguia ter dinheiro
no banco antes da terapia, porque se tivesse já não precisaria mais lutar.
Ele estava lutando constantemente para tentar fugir a um sentimento
primitivo em que ele nada valia. Esperara, inconscientemente, que o
dinheiro ia lhe dar importância, mas claro que nunca havia dinheiro
bastante para isso. Desde que tinha algum dinheiro sentia que ainda não
chegava para lhe dar importância e assim estava sempre lutando para ter
mais. A pessoa normal não usa o dinheiro simbolicamente para satisfazer
antigos desejos. Sente-se importante porque seus pais normais sempre lhe
deram o valor que merecia. O dinheiro é a preocupação natural de muitos
neuróticos porque eles, por definição, devem sentir-se desprovidos de
valor pois nunca lhe reconheceram mérito algum. Já que não consegue
satisfazer suas verdadeiras necessidades, ele estará sempre desejando ter
mais do que tem.
Há outros neuróticos que não conseguem gastar dinheiro. Talvez a sua luta
tenha sido para se sentirem sempre seguros. Mas, ainda assim, o dinheiro
sozinho não consegue a segurança para alguém que não a tem. Essa espécie
de neurótico está sempre adiando a vida esperando que algum dia as coisas
estarão melhores e ele poderá então tirar umas férias. Nunca vive, e em
lugar disso, está sempre se agarrando a alguma fantasia do que será a sua
vida algum dia. Essa fantasia tem uma íntima ligação com a Dor e ajuda a
explicar por que tanta gente está sempre adiando tanta coisa em suas
vidas. A pessoa normal, por outro lado, faz as coisas agora. Não tem velhas
dores que estão sempre arrastando-a para trás obrigando-a a constantes
adiamentos. Os seus verdadeiros sentimentos eliminam a necessidade de
fantasias fora da realidade.
O homem normal é estável. Está sempre satisfeito por estar onde está e
não precisa imaginar coisas. Houve uma mulher que me contou o seguinte:
"Eu costumava olhar no espelho e ficava horrorizada com minhas rugas.
Corria por todos os salões de beleza e quando nada disso funcionou recorri
à plástica. Sentia-me desesperada procurando fugir da sensação que estava
desperdiçando minha mocidade sem jamais ter a oportunidade de possuir
aquilo que aquela menininha dentro de mim tanto desejava. Quando via
aquelas rugas e alguns cabelos brancos ficava desesperada por não poder
ser pequenina outra vez, e então corria para todos os lados. Ia a todas as
festas, tentava mostrar-me atraente, mas estava sempre correndo. Não
podia parar."
Já a pessoa normal sabe aceitar a sua idade porque está vivendo no
presente e já teve a sua mocidade. Não passa todos os dias de sua vida
tentando recapturar o que perdeu já fazem décadas. Não se preocupa
demais com o futuro nem está sempre pensando no passado porque não
está vivendo num tempo que simplesmente não existe.
Com o neurótico, "a personalidade é a mensagem", pedindo eu aqui
permissão para usar as palavras de McLuhan. A personalidade curva -se
para a mensagem que tem de transmitir. Assim, a pessoa lacônica pode
simplesmente dizer "papai fale comigo. Tire-me daqui." A outra mais
desorganizada dirá, "mamãe, eu estou ferido. Oriente-me." O do olhar
lamuriento, "mamãe, pergunte-me onde está doendo." O depressivo dirá,
"não me chute quando estou por baixo."
Uma vez que o normal não está mais tentando dizer alguma coisa
indiretamente, a sua personalidade não está retorcida. Desde que não
tenha velhas necessidades, as pessoas são apenas o que são. Não sei bem
como explicar isso de outra forma senão dizendo que sem um frontispício
psicológico a pessoa normal apenas vive e deixa os outros viverem.
Como já disse aqui, o corpo faz parte da personalidade geral de modo que
os neuróticos geralmente mostram o que são. É fácil notar neles todas as
características que já apontei aqui. Todo o organismo do neurótico exprime
a mensagem inconsciente. Já que não têm mensagem alguma para
transmitir, nós podemos esperar um corpo bem proporcionado nos
normais desde que tudo mais seja igual. As transformações físicas que notei
em pacientes, depois de passarem pela Primal, levam-me a concluir que
alguma coisa daquilo que acreditamos ser herdado pode realmente ser o
resultado de neuroses.
O indivíduo normal sabe gozar a vida. É surpreendente o pequeno número
de neuróticos que consegue fazer isso sem uma ajuda artificial como a
bebida, por exemplo. Um paciente explicou: "Os divertimentos prejudicam
as esperanças. Eu sempre conseguia transformar tudo em coisas
desagradáveis. Se tudo corria bem durante o dia, eu ficava irritado, de
repente, e ia procurar uma briga. Não conseguia aguentar quando tudo
corria bem. Sentia-me inconfortável como se esperasse que alguma coisa
ia desabar em cima de mim. Quando olho em retrospecto penso que a
aceitação de tudo aquilo que era bom significava desistir da luta para que
meus pais fossem gente boa. Se aceitasse tudo aquilo abertamente e
realmente gozasse a vida, eu teria que desistir de ver a minha infelicidade
reconhecida. O neurótico não procura o prazer agora. Só deseja que ele
venha quando ... O mesmo pode ser dito a respeito de afeição. O normal
aprecia a afeição sem reservas, mas o neurótico para fazer isso poderá
estar dizendo que não precisa mais dos pais, pois já encontrou alguém para
amá-lo. É terrivelmente difícil fazer o neurótico sentir que ele nunca vai ser
o pequerrucho que consegue tudo que quer de seus pais.
Estamos sempre ouvindo que as crianças precisam ter obrigações ou
empregos para aprenderem o que é responsabilidade. As crianças são
levadas a serviços para ganhar dinheiro mesmo quando não há necessidade
para isso. Assim, quando a criança pede licença para ir brincar com o
vizinho, a primeira coisa que os pais perguntam é se ela já fez as suas
obrigações ou deveres. Os pais sempre têm medo que se deixarem as
crianças fazerem tudo o que querem elas nunca farão o que devem. Assim
colocam obstáculos diante de cada coisa desejada até que a criança sinta -
se apreensiva a respeito de qualquer coisa que queira e procure então
evitá-las. Mais tarde, na vida, essa pessoa nunca conseguirá fazer ou agir
espontânea mente sem surgir logo a pergunta desagradável, "o que será
que devo fazer primeiro?" Um paciente disse-me que quando ele brincava
muito num dia e pediam que ele voltasse no dia seguinte, minha mãe
sempre reclamava achando que era "muita excitação". Certamente ficava
preocupada por eu estar gastando a minha quota de prazeres sem pagar o
que era devido.
A vida do indivíduo normal é muito diferente nesse caso. Ele não foge a
viver o presente nem obriga os filhos a participarem da luta.
Nada está certo para o neurótico porque ele nunca andou certo com os
pais. Inúmeros pacientes sempre me contavam que não se lembravam de
terem ouvido uma única palavra de elogio ou encorajamento de parte de
seus pais. Em lugar disso, o pai neurótico sente a necessidade de deixar
transparecer a sua Dor em tudo que diz ou faz porque ela está sempre com
ele.
O resultado de ser criticado a vida inteira assume muitas formas. Uma delas
é que se dermos um presente a um neurótico ele nunca o achará a seu
gosto, como também está sempre reclamando de tudo que encontra na
vida. Quando lê os jornais somente as más notícias lhe interessam já que
quer saber quem mais é infeliz ou está sofrendo. Numa sociedade neurótica
onde as pessoas sentem necessidade de projetar para fora todas as suas
misérias para que a vida lhes seja tolerável, a notícia é sempre sinônimo de
tudo que é mau. O homem normal nunca se regozija com a desgraça alheia.
Partilha do sofrimento alheio e procura sempre ajudar.
Sempre que tentarmos encher algum vazio do neurótico devemos nos
lembrar que ele é um poço sem fundo.
Nem mesmo a conquista de alguma coisa desde muito desejada satisfaz o
neurótico. Um paciente meu conseguiu finalmente o seu Ph. D. e entrou
numa séria crise de depressão. Pensava que depois de oito anos de uma
luta terrível ele ia afinal conseguir alguma coisa com o seu diploma, mas
mesmo com ele na mão ainda não se sentia amado ou importante. Disse -
me que aquele diploma era para ele um milagre, mas ainda assim não
conseguia senti-lo. O mesmo não acontece com o normal que nunca espera
alguma coisa externa em seu favor e portanto deixa as coisas correrem
naturalmente.
Para o neurótico, o desapontamento anda sempre de mãos dadas com a
esperança. O neurótico, por exemplo, sente-se desapontado com as festas
de Natal quando, de certa forma, elas têm por fim fazer-lhe sentir o quanto
é desejado e querido.
O normal é uma pessoa saudável que não precisa estar sempre correndo
atrás de médicos, porque também nunca correu atrás dos pais. Ele é mais
saudável e tem mais energias e usa-as para realizar coisas verdadeiras e
nunca para tentar conseguir o impossível. E sabe também quando está
passando bem. Um paciente disse-me que nunca sabia se estava bom
porque estava sempre muito longe dele mesmo. Quando alguém lhe
perguntava como se sentia e ele não estava se sentindo mal, deduzia então
que só poderia estar se sentindo bem.
O normal nunca obriga os outros a participarem de seus problemas.
Compreende que deve amar os filhos sem que eles tenham que pagar por
isso. E portanto ele não obriga os filhos a lutarem por coisa alguma.
Paradoxalmente, essas crianças são bem sucedidas na vida o que contraria
a opinião que a luta no começo da vida prepara as pessoas para as outras
que virão depois. Muitos neuróticos nem chegam a perceber que nunca
foram obrigados a fazerem alguma coisa para serem amados pelos pais.
Lutaram tantos anos para serem amados que não podem nem imaginar que
isso aconteça naturalmente. O processo de condicionamento para obrigar
a fazer coisas que agradem começa desde que a criança nasce quando
todos tentam as artimanhas mais ridículas para fazerem uma, criança rir.
Mais tarde querem que ela acene um adeus ou então dance, que faça uma
gracinha para agradar aos avós sem levar em conta a sua disposição de
momento. Quase todos os contatos durante a infância são para ela fazer
alguma coisa que os outros querem. Essa constante necessidade dos pais
ou dos avós para conseguirem sempre serem atendidos é uma sutil
consequência da pouca atenção que mereceram de seus próprios pais.
Quando estabelecemos uma comparação entre normais e neuróticos é de
admirar que os neuróticos resistam tanto. Se houvesse algum princípio
básico acerca do verdadeiro comportamento ele deveria ser alguma coisa
mais ou menos assim: A realidade sempre se cerca de outras realidades da
mesma forma que as irrealidades também procuram as irrealidades. As
pessoas reais e normais não mantêm uma constante relação com as irreais
e vice-versa. O normal não tolera fingimentos. Ele jamais procurará agradar
ou submeter-se a um neurótico para continuar como seu amigo e vice-
versa. Assim, se algum dos dois não andar muito certo a relação será bem
difícil. O normal não compra as brigas dos outros. Um paciente contou -me
que antes ele sempre era obrigado a completar as frases de sua mulher. Ela
começava a dizer alguma coisa e depois olhava-o como se implorasse e ele
então logo se precipitava para ajudá-la. A reação era automática e
inconsciente.
O neurótico dificilmente continuará a manter alguma relação em que as
suas necessidades neuróticas não estejam sendo atendidas. Ele sempre
quer coisas especiais e, naturalmente, procura aproximar-se dos indivíduos
que partilhem com ele aquela espécie de ideias e atitudes fora da
realidade. Devemos sempre esperar, portanto, uma certa homogeneidade
de pensamentos dentro de seu grupo de amigos quando se trata de
assuntos econômicos, políticos ou fenômenos sociais em geral. O neurótico
é obrigado a fugir da realidade até que esteja em condições de enfrentar a
sua. Até que chegue essa ocasião, ele se fechará num casulo irreal mas
confortável no emprego que tem, nos jornais que lê ou nos amigos que
escolhe.
A força da irrealidade social do neurótico depende até um certo ponto do
quanto ele é obrigado a privar-se. Se um homem nunca foi amado por seu
pai, ele pode ter fantasias homossexuais. Alguns podem aceitar tais
fantasias ao passo que outros podem repudiá-las e até mesmo não
reconhecer sua existência nem mesmo em sonhos, dormindo ou acordados.
Eles podem chegar a detestar os homossexuais e até mesmo tentar
conseguir leis contra eles. Dentro de seu comportamento social, então, eles
exigirão providências drásticas, tudo porque estão querendo seus papais e
não podem confessar. Eles podem sentir tanto medo de sua "fraqueza" até
chegar a detestá-la. Podem chegar a todos os extremos. Em resumo, a
repressão das próprias necessidades pode muitas vezes significar a recusa
a reconhecer as necessidades alheias.
Tentar mudar as filosofias sociais de alguns neuróticos seria o mesmo que
querer mudar todo o seu sistema psicofísico. Os neuróticos acreditam
naquilo que são obrigados a acreditar para que sua vida seja tolerável. Se
tentarmos convencê-los para repudiarem seus princípios básicos será o
mesmo que tentarmos fazer com que abandonem tudo que existe para
eles.
O indivíduo normal não se interessa pela exploração dos outros. Não deseja
de ninguém coisas que não sejam reais.
O neurótico que se sente indefeso diante de sua Dor, muitas vezes precisa
explorar alguém para sentir uma importância que ele mesmo não sente .
Precisa fazer isso para garantir-se. Está sempre precisando que outros lhe
digam coisas boas sobre ele mesmo, sobre seu filho, sua casa ou suas
roupas.
A pessoa que não é normal nada pode dar de si, pois tudo está fechado
dentro dele. O neurótico pode fingir preocupação com outras pessoas e
pode até mesmo convencer-se disso, embora tudo seja falso já que só
pensa em si mesmo. Nada pode dar de si enquanto todo o seu ego estiver
abafado pelo medo e pela tensão e sentir necessidades desesperadas,
O normal dificilmente procura conquistar amigos para se valer deles como
escora e não se sentir só no mundo. Seus amigos, geralmente, não são
troféus ou propriedades. Os pacientes que terminam suas Primais dizem
que se dão bem com gente verdadeira sem levar em conta suas
personalidades. Eles acreditam que as pessoas de verdade são abertas e
sinceras e não existe a ameaça das idiossincrasias.
Um médico normal não precisa ter a sua sala de espera cheia de gente para
se sentir necessário, mas esse ponto pode funcionar em dois sentidos, pois
o paciente neurótico talvez se sinta apreensivo quando verificar que é o
único na sala de espera e é logo atendido. Como não houve luta com a
espera, ele pode chegar à conclusão que o seu médico não é tão bom como
o outro que faz as pessoas esperarem uma hora.
O normal que age dentro da realidade geralmente está sempre atendendo
seus compromissos na hora certa porque ele vive na hora presente sem
pensar no passado. O que isto significa é que ele não usará o tempo
simbolicamente para sentir alguma coisa que, de outra forma, lhe
escaparia. Ele nunca chega atrasado, por exemplo, para mostrar -se
importante nem tampouco para não se sentir rejeitado, como acontece
com o neurótico.
Andar atrasado pode significar uma forma de manter viva uma falsa
esperança. Essa é uma outra forma que mostra como o neurótico encara
erradamente a vida. Ele pode também inventar uma atividade febril que
não lhe deixe tempo para sentir. Está sempre correndo e sentindo uma
pressão externa que, na realidade, é interna. Muitos neuróticos articulam
sua vida de forma a nunca haver tempo para descanso ou divertimento.
Planejam inúmeros projetos com o único intuito de nunca terem tempo
para sentir ou refletir. As horas do dia não chegam para ele, e o resultado,
então, é que estão sempre atrasados.
Como já dissemos antes, existem pseudo-sentimentos que já não residem
mais no normal, e isso significa que eles nunca são ciumentos, invejosos ou
cheios de culpas. Creio que isso é uma outra forma de dizer que ele permite
a existência alheia, a existência de sua mulher, seus filhos e seus amigos.
Ele não depende deles para o seu sucesso. O normal nunca sente -se
alienado porque é a dor que causa a alienação entre um lado e outro do
eu. Talvez seja a alienação de si mesmo que torna fácil para os líderes
discutirem e organizarem as matanças com tanta facilidade. Como estão
divorciados de sua própria humanidade, eles não conseguem sentir a
humanidade alheia. A morte, evidentemente, não é uma tragédia real para
aqueles que não sentem a vida. É nesse sentido que o fato de alguém estar
"morto" internamente faz com que a verdadeira morte dos outros seja
menos real e, portanto, menos horrorosa.
O normal parece sentir o ritmo da vida nos outros. Sabe ser delicado
porque sente a Dor alheia. Sente toda a realidade que os outros podem ser
capazes de sentir.
O normal é sensível no verdadeiro sentido da palavra. A sensibilidade
mental do neurótico é diferente da sensibilidade do normal. Quero
esclarecer este ponto porque existem muitos neuróticos bastante
perceptíveis e que compreendem perfeitamente as personalidades dos que
os cercam. O que não conseguem, penso eu, é sentir as situações em que
se encontram porque estão representando sentimentos reprimidos. Assim,
por exemplo, um homem brilhante pode estar expondo algum ponto
filosófico num jantar, percebendo completamente a espécie de pessoas
que o ouvem ao mesmo tempo que se mostra positivamente insensível para
o fato de estar ele dominando a conversa. Está ocupado demais fazendo
sobressair a sua importância e necessidade de atenção. É por isso que é da
máxima importância que o terapeuta não só tenha capacidade para
perceber as personalidades alheias, como também que seja normal. Se não
for assim ele poderá estar, representando sua necessidade de tornar-se
necessário, com seus pacientes, por exemplo, e com isso prejudicando a
parte boa da terapia. O normal já não sente a urgência de pensar no futuro
para escapar ao vazio do presente. Um paciente contou-me que costumava
dizer que não queria ser rico porque os ricos devem ser infelizes, já que
podem ter tudo que desejam e portanto não precisam pensar no futuro.
"Eu vejo agora que, se não pudermos aproveitar tudo a todos os momentos,
então nada temos para desejar no futuro."
O normal não confunde esperança com planejamento. Ele pode planejar
uma situação futura, mas não se deixa empolgar pelos planos até não ter
mais o presente. Parece que os neuróticos conservam as coisas no futuro
para não terem que gozá-las no presente. Eu acredito que isso venha de
experiências primitivas da criança, quando fazer o que bem entendiam
significaria a rejeição e possivelmente o abandono pelos pais que
esperavam ver as coisas feitas como eles queriam. A criança tinha que adiar
o que desejava esperando para alguma ocasião no futuro. Isso talvez
consiga explicar a ideia que quase todos nós alimentamos em criança:
"Quando eu crescer vou ser muito feliz." Parece que muitos neuróticos
continuam a pensar assim já adultos. O normal, que já desistiu das
esperanças irreais e da luta para agradar, pode levar sua vida como bem
entender.
O neurótico "exige." O normal "necessita". Quando o neurótico exige o que
realmente necessita significa sentir a Dor, e portanto, ele recorre a
substitutos mais fáceis. O normal necessita de coisas simples porque deseja
o que necessita e não algum substituto simbólico. O neurótico pode desejar
uma bebida ou um cigarro, o prestígio ou o poder, altos cargos ou um carro
veloz, tudo para cobrir as dores dos vazios, da falta de valor ou de poder.
Já o normal não precisa de nada disso.
A vida parece conspirar contra o neurótico. Ele deseja muito porque
recebeu pouco. Contudo, como teve que falsificar a sua personalidade nas
formas mais estranhas que lhe proporcionassem um mínimo de satisfação,
ele torna-se então a espécie de pessoa que afugenta as outras. As suas
exigências descabidas, sua dependência e o seu narcisismo tornam -se
intoleráveis para os outros. O normal, ao contrário, é sempre procurado e
imitado.
O neurótico é egoísta. Por mais que se faça por ele está sempre achando
pouco sem perceber que seus problemas só encontrarão solução na Terapia
Primal.
O comportamento neurótico, no contexto Primal, significa a abdicação das
necessidades pessoais em benefício daquilo que lhe é exigido pelos pais.
Os desejos dos pais tornam-se a obrigação dos filhos, e os que não fazem
isso são considerados maus. A criança que procura ser boa para poder ser
amada, tenta ser o que seus pais querem. Faz isso com a esperança
implícita que eles finalmente atenderão às necessidades dela, levando-a ao
colo, por exemplo. As necessidades dos pais, no entanto, jamais poderão
ser realizadas pelos filhos por mais que eles tentem. Surge assim a situação
em que o filho está sempre procurando satisfazer aos pais para agradá -los
e fazê-los felizes. Nunca será o bastante, já que nenhum filho pode
remediar a infelicidade dos pais.
As obrigações dos filhos são as necessidades dos pais. Deixar de cumpri -las
significa desistir do amor dos pais. As crianças neuróticas ficam tão
atrapalhadas com tantas obrigações que chegam a deixar de pensar nas
suas próprias necessidades, e tendo-as perdido passam a desejar aquilo
que não precisam.
O assalto às necessidades dos filhos é muitas vezes bem sutil. Os pais
neuróticos estão sempre lembrando aos filhos que eles devem ser felizes,
que não devem reclamar, que devem ver bem como estão fazendo tanto
por eles, como lhes dão tudo. Isso muitas vezes chega a convencer aos
filhos. Olham em torno e veem coisas materiais, e então acreditam que têm
tudo o que precisam ou desejam e chegam a esquecer que precisam
desesperadamente de amor.
A tragédia das obrigações é que, ao cumpri-las, a criança imagina que
algum dia, quando ela fizer tudo o que eles desejam, seus pais vão lhe
despejar em cima uma avalanche de amor. Como, porém, seus pais também
precisam de alguma coisa que o filho nunca poderá lhes dar, esse dia nunca
chega.
O cumprimento das obrigações não significa fazer o que sentimos
necessário. Assim, essas obrigações estão cheias de esperanças e de ód ios,
o ódio de ser obrigado a fazer alguma coisa que vai de encontro aos nossos
sentimentos. Tendo passado toda a vida fazendo aquilo que não queria, o
neurótico muitas vezes tem dificuldade para fazer o que deve. Já isso não
acontece com o normal porque ele age em termos de realidades.
O neurótico mostra-se, muitas vezes, indeciso porque está dividido entre
necessidades reprimidas e o cumprimento das obrigações. Já o normal
pode decidir por si mesmo porque sente e sabe o que está certo para ele.
O neurótico conta com os outros para lhe mostrar as obrigações. Nem
mesmo gosta de escolher no cardápio. Dessa forma ele vai manobrando a
vida de modo que os outros lhe forneçam ou apontem as obrigações e
nunca se deixa levar pelos seus sentimentos. O simples fato de não saber
escolher o que comer num restaurante é, muitas vezes, um sinal da falta
de vida num neurótico. Seria como se ele estivesse dizendo que não tinha
desejos, sentimentos, nem vida. Como se estivesse pedindo a alguém que
vivesse em seu lugar.
O normal nunca está tentando descobrir o significado da vida já que isso
vem do sentimento. Quanto mais profundo for o sentimento maior será o
seu significado. O neurótico que foi obrigado a fechar-se contra o
significado real catastrófico, logo no princípio de sua infância, é obrigado a
uma busca constante, consciente ou não. Ele talvez tente encontrar o
significado num emprego ou em viagens e, se suas defesas estiveram
funcionando, poderá até mesmo imaginar a sua vida como cheia de sentido.
Outros neuróticos acham que está faltando alguma coisa e saem em sua
procura. Talvez estudem filosofia, mergulhem em religiões ou cultos, tudo
para encontrar uma razão de ser que, afinal, pode ser encontrada com uma
inspiração profunda seguida da expiração.
O neurótico está sempre procurando alguma coisa porque o significado real
é a Dor que deve ser evitada. Assim, a busca torna-se o significado, e como
ele não pode sentir plenamente sua vida, fica então forçado a ir buscá -lo
por intermédio de outras pessoas ou coisas fora dele. Pode encontrar tudo
em seus filhos ou netos, nos seus feitos e sucessos. Ou também pode estar
em algum cargo importante ou um negócio de vulto. O neurótico sofre
quando se remove as coisas externas. É nessa hora que ele pode começar
a sentir a futilidade de tudo em todos os sentidos.
O normal vive dentro de si mesmo e nunca sente falta de alguma coisa. O
neurótico deve sentir-se assim se conseguir parar em sua luta porque uma
parte dele está faltando. Um paciente disse-me isso ao contar-me que tinha
um emprego magnífico, mas que era uma pena o fato de não interessar -se
por ele. Era porque não tinha sentido para ele.
O neurótico que não consegue sentir todo o significado da vida, precisa
muitas vezes inventar uma super-vida ou uma vida no além, lugares onde
a verdadeira vida continue. Ele é obrigado a imaginar que em algum lugar
existe o significado e propósito de tudo. Pode imaginar que os sábios vão
descobrir para ele quando somente ele pode fazer isso. O normal descobre
o seu próprio corpo e não tem, então, necessidade para imaginar algum
lugar especial onde a vida realmente continue. O implícito no neurótico
que procura a psicoterapia é que possivelmente isso irá ajudá-lo a
encontrar uma vida mais cheia de sentido. Isso torna-se também uma longa
procura. O normal já fez uma descoberta bem simples quando chegou à
conclusão que o significado da vida não é algo que se percebe e sim algo
que se sente. E, sendo assim, ele não perde seu tempo em uma corrida
acadêmica.
A busca do neurótico pode ser exemplificada por um paciente graduado em
filosofia por uma universidade. ''Eu gostava da filosofia porque nunca
precisava saber das coisas com muita certeza. Nunca cheguei a
compreender o quanto eu apreciava aquele estado de limbo. Eu não
conseguia sentir o que estava certo na vida, e portanto o limbo era
plenamente satisfatório para mim. Procurei nos céus e nas nuvens
intelectuais para ver se achava algum significado extraordinário, tudo isso
com o único intuito de não chegar à conclusão que todos aqueles anos
passados em casa não tinham qualquer significado. Era uma coisa sem
sentido. O encontro de um significado em Descartes e Spinoza foi uma
agradável cobertura para tudo."
O normal nunca tenta imaginar algum significado de ocasiões especiais
como o Natal ou a Páscoa, e aliás, houve um paciente que lhes deu o nome
de estação Primal. O neurótico pode sentir-se deprimido nesses dias
festivos porque as pessoas que se reúnem não lhe dão a sensação de ser
amado nem que tenha tido uma família real e carinhosa.
O normal não tem necessidade de transformar a vida em alguma coisa
diferente. Não precisa de recursos filosóficos. Ele sabe apenas que está vivo
e que goza a vida, e nada mais.
Poderíamos usar todo o resto deste livro descrevendo o normal. O normal
representa, simplesmente, um caminho tranquilo e sem tropeços.
12 - O PACIENTE PÓS-PRIMAL

Qual é a qualidade especial da pessoa que se submete à Terapia Primal?


Não existe nenhuma qualidade especial de paciente. Eles variam dos
dezessete aos quarenta e oito com a maior porcentagem entre vinte e
trinta. As suas ocupações variam indo desde antigos frades até
profissionais de toda espécie inclusive muitos psicólogos e artistas. Da
mesma forma que a condição de educação de classe média é um fator
importante na terapia convencional, o mesmo acontece com os intelectuais
na Terapia Primal. Os pacientes vêm de todas as religiões e de todas as
partes do país bem como de muitas subculturas.
O grosso de meus pacientes já passou por outras espécies de terapia
durante muitos anos desde a psicanálise, a terapia racional, a terapia
Gestalt, a existencial, o tratamento de Wilhelm Reich. Com a exceção dos
métodos de Reich, todas as outras escolas usaram uma variedade de
técnicas tendo como centro o uso do insight, que discutiremos mais tarde.
Tivemos pacientes solteiros, casados e divorciados. O estado conjugal dos
pacientes é, muitas vezes, importante. Se for mais velho e tiver família, ele
vai ser mais difícil de tratar. Isso será devido ao fato dele haver lançado
suas raízes irreais numa relação com uma esposa neurótica ou talvez tenha
escolhido um emprego irreal junto com amigos também irreais. Em resumo,
ele tem que abrir mão de muita coisa até se tornar real, e não são muitos
os que estejam dispostos a isso depois de atingirem os quarenta ou
cinquenta. Quando uma pessoa mais velha, entrincheirada por trás de um
casamento neurótico durante uma ou duas décadas, torna-se real, o
cônjuge que não estiver se tratando poderá começar a solapar o
tratamento que se tornará então difícil e desagradável para o paciente.
Talvez o paciente ideal para a Terapia Primal seja alguém solteiro e ainda
moço sem interesses vinculados na irrealidade. No entanto, tivemos
numerosos pacientes de meia idade, ainda susceptíveis a mudanças, que
alcançaram grande sucesso com essa terapia.
O notável é o fato de serem poucos os pacientes que façam a menor ideia
a respeito do tratamento a que vão submeter-se. A despeito de sua forma
revolucionária, os pacientes nunca se espantam com o método Primal.
Parece que logo percebem-lhe o sentido, quaisquer que tenham sido as
suas vidas pregressas.
Vamos então olhar um paciente que acaba de completar a sua terapia.
Como é ele?
Ele passa a funcionar de maneira diferente e isso muitas vezes implica um
novo emprego. Muitos deles não podem mais fazer coisas fora da
realidade. Não podem voltar à rotina de vendedores nem se dedicar a
enfadonhas tarefas de papelório burocrático. Dois agentes de polícia
encarregados de fiscalizar os presos soltos em liberdade condicional
chegaram à conclusão que não podiam mais fazer aquilo pois o que
desejavam era tentar que os seus fiscalizados se regenerassem. Dois
psicólogos que estavam esperando para treinar como terapeutas primais
preferiram aceitar empregos inferiores em lugar de continuarem a
trabalhar no ramo da psicologia que eles consideram irreal. Um deles era
conselheiro matrimonial que verificou ser impossível voltar ao seu trabalho
onde só cuidava de comportamentos superficiais. Um operário resolveu
entrar para uma universidade porque achava que ali teria maiores
possibilidades para ganhar dinheiro. Uma professora deixou o seu emprego
e transferiu-se para uma outra escola porque verificou ser impossível
trabalhar com um diretor neurótico.
Um dos índices comuns de normalidade entre as outras escolas de
psicoterapia é o funcionamento. Isso significa que a pessoa normal é
considerada como um membro eficiente e produtivo da sociedade. O ponto
de vista Primal é diferente. Os pacientes pós-Primais já não se submetem
mais a empregos exaustivos. Em termos Primais, o neurótico se exaure para
sentir-se com algum valor, para ser reconhecido e amado.
Os psicólogos Primais, por exemplo, são obrigados a passar pela terapia
como parte de seu curso. Embora se mostrem dispostos a trabalhar trinta
ou quarenta horas em terapia antes de seu tratamento, já não concordam
em fazer o mesmo depois. Sabem que muitas vezes o neurótico tira de suas
funções a sua identidade em lugar de tirá-la de seus sentimentos. Assim,
uma pessoa pode ocupar os cargos mais importantes com grande
eficiência, e ainda assim ser bem doente. Um paciente depois de terminar
a sua terapia disse que mantinha ele mesmo e tudo em sua volta muito
bem organizado para não se dar conta de sua real desorganização. "Eu
tinha que continuar funcionando, planejando e trabalhando para não me
desintegrar.'' As funções dessa pessoa passaram a ser a sua vida.
Muitos pacientes pós-Primais chegam à conclusão que uma grande parte
daquilo que julgavam necessário fazer antes já não é assim tão urgente.
Por isso, os domingos ficam sendo o dia de brincar com as crianças em lugar
de ir limpar a garagem. Um paciente chegou a dizer que como sentia -se
dono de si mesmo pretendia levar uma vida melhor e mais descansada.
Desde que leva uma vida mais tranquila, o paciente pós-Primal já não
precisa lutar tanto e tem assim mais tempo para dedicar à mulher e aos
filhos.
Os pacientes pós-Primais fazem menos mas o que fazem é alguma coisa
real de forma que sua contribuição à sociedade é muito mais benéfica. As
professoras escolares, por exemplo, exigem muito menos dos alunos e
ensinam-lhes muito mais. Permitem aos alunos uma inteira liberdade de
expressão e ensinam-lhes coisas muito relevantes para suas vidas, pelo
menos até onde isso é possível dentro do atual regime escolar.
Esses pacientes não estão tentando vender a ninguém coisas que eles não
precisam. Houve um empregado que continuou no seu emprego porque
achou que era real aquilo que fazia. Deixou de fazer serões porque achou
que era melhor ficar com a família, já não tinha mais aquela ansiedade para
comprar coisas novas e deixou de jogar para dar melhor emprego ao
dinheiro.
Essa questão da motivação e muito importante porque uma grande parte
do mundo gira em torno de motivações neuróticas. Houve um paciente que
disse que se fosse possível aproveitar a energia que existe dentro de um
neurótico ela chegaria para arrastar um trem. Lembro-me de um paciente
que depois de uma das suas últimas sessões não conseguia levantar a
cabeça do chão durante mais de uma hora. Ele era limpador de piscinas que
dera duro a vida inteira, e costumava saudar os amigos com a exclamação
neurótica Dando duro, hein?" Depois de haver destruído toda a sua
motivação neurótica ele não conseguia mais mover um músculo. Tirou
umas férias longas depois da terapia e quando voltou ao trabalho verificou
que já não conseguia mais limpar dezesseis piscinas num dia, e achava
milagroso que tivesse feito tanto antes. A neurose tornara-o imune ao
cansaço. Contratou um empregado, passou a ganhar menos, mas apreciava
mais a vida.
Muitos são os neuróticos que produzem apenas para sentirem-se
importantes em lugar de fazerem o que seja realmente importante para
eles. Um psicólogo, depois do tratamento, deixou de fazer um biscate, que
consistia na entrega de trabalhos a sociedades de cultura. Disse que toda a
energia era usada não para comunicar-se com seus colegas e sim para
ganhar prestígio.
Acho que as transformações mais importantes que ocorrem com os
pacientes que terminam o tratamento Primal são de ordem físic a. Isso é
porque se trata de uma terapia psicofísica e não simplesmente um método
de insight. Por exemplo, cerca de um terço das mulheres de busto
relativamente reduzido chegaram à conclusão que seus seios tinham
crescido quando verificaram que precisavam de maiores soutiens. Uma
mulher que viera de avião, de uma cidade distante, para a terapia voltou
para casa depois de algumas semanas de tratamento. O seu marido ficou
espantado e certo que ela tinha tomado injeções de hormônios. Fiz com
que muitas mulheres pedissem aos seus médicos que tomassem suas
medidas para verificar os crescimentos alegados, e houve confirmação em
todos os casos.
Tivemos outros casos de desenvolvimento em adultos. Dois pacientes,
rapazes com vinte e poucos anos, constataram o nascimento de barba que
nunca existira antes. Muitos outros notaram odores no suor do corpo pela
primeira vez. Muitos constataram o crescimento de pés e mãos. Nada disso
pode ser considerado como resultado de sugestão pois nunca damos aos
pacientes a menor ideia do que esperamos como resultados. A mulher das
mãos, por exemplo, só percebeu que elas tinham crescido quando verificou
que suas luvas velhas não lhe serviam mais.
A explicação de tudo isso deve necessariamente ficar em suspenso até que
seja possível fazer-se exames fisiológicos. Um colega, bioquímico, foi de
opinião que uma boa parte disso pode ser explicado em termos de
transformações hormonais. Isso, por seu lado, pode finalmente afetar o
mecanismo do código genético das células. A sua hipótese é que em vista
da supressão do sistema e da alteração na produção do hormônio nos
primórdios da vida há uma certa sequência genética que não se processa,
o que poderia, por exemplo, retardar o crescimento da barba.
Na opinião do bioquímico, pode ocorrer uma mudança no entrelaçamento
de relações de todo o sistema hormonal possibilitando mudanças que
talvez não ocorram com injeções de hormônios.
A Primal pode deflagrar toda a sequência do crescimento outra vez.
Teremos que esperar pelos resultados das pesquisas fisiológicas para uma
boa explicação dos fenômenos observados.
Enquanto ainda estamos no campo de mudanças hormonais, devo dizer
que, em todos os casos de mulheres que tinham cãibras pré-menstruais ou
períodos irregulares de menstruação, elas tiveram esses problemas
resolvidos completamente com a Terapia Primal.
Mulheres que antes eram frígidas ou com relações sexuais dolorosas,
verificaram haver melhor lubrificação da vagina, algumas vezes até mesmo
sem qualquer provocação sexual. Uma mulher ficou preocupada com aquilo
a que chamava de um constante desejo de sexo, o que lhe acontecia pela
primeira vez na vida, e que antes era apenas uma obrigação para satisfazer
ao marido.
São muitas as mudanças nos pacientes, e uma delas é o equilíbrio. As
pessoas passam a andar mais firmes e com mais desembaraço. Já não
caminham mais como robôs.
Os pacientes pós-Primais também registram uma mudança completa na
coordenação de movimentos. Um rapaz que jogava tênis verificou que
conseguia ganhar de outros que antes eram muitos melhores do que ele.
Uma certa parte disso pode ser explicado pela completa ausência de
tensão, pela remoção do split que antes não permitia um funcionamento
coordenado dos sistemas do corpo e da respiração.
Durante uma das sessões ele percebeu que finalmente conseguia respirar
em ritmo perfeito com o resto do corpo.
A Primal não produz uma sensação eufórica. Produz apenas a sensação real
que parece maior por causa do processo de embotamento anterior. A
tensão embota toda a engrenagem sensorial que nos torna neuróticos não
somente no comportamento como também no olfato e no gosto.
Tampouco produz qualquer nova ou especial qualidade de sensação, mas
faz com que nossa capacidade sensorial latente seja experimentada em
toda plenitude. O paciente pós-Primal torna-se mais alerta e percebe
melhor as vozes e a música. Também melhora a capacidade visual. Dois
pacientes que usavam óculos já não precisam mais deles.
Uma paciente teve as seguintes palavras depois de sua Terapia Primal.
"Toda a minha vida estava até então fora de foco. A Terapia Primal
proporcionou-me as lentes para ver tudo mais nítido e claro. Sinto cheiros
que nunca existiram para mim. Pela primeira vez foi-me desagradável
sentir o cheiro corporal de meu marido. A minha vida era cinzenta, mas
agora já vejo com nitidez todas as cores."
Também se constatam mudanças de temperatura. Uma paciente disse que
era como se ela tivesse passado a vida inteira sentindo frio, mas não o frio
da vida. Quando ela realmente sentia o vazio e o frio de sua vida infantil
com a família, punha-se a tremer convulsivamente durante mais de meia
hora. Só deixou de sentir frio quando passou a sentir. A sensação é,
evidentemente, uma experiência térmica real. Já houve muitas
experiências de condicionamento nas quais se constatou como os vasos
sanguíneos tendem a se contrair em antecipação à dor, e isso leva-nos a
imaginar que a mesma coisa acontece em antecipação à Dor Primal.
Embora muitos pacientes constatem essa sensação de frio quando estão à
beira de uma dolorosa sensação Primal, alguns neuróticos com
vulnerabilidade vascular reagem à Dor de maneira diferente. Estão sempre
sentindo calor e são como caldeiras que reagem ao mundo em termos de
raiva e não de medo.
Em termos Primais, a pessoa que está sempre encolhida e procurando
agasalhos está passando por um processo simbólico que é comum em
muitos neuróticos. É o meio que usam para não sentirem frio e para se
aquecerem. Por outro lado, aqueles que nunca precisam de agasalhos
podem estar apenas pretendendo que não precisam do calor de ninguém
nem de coisa alguma. São pessoas que se acham independentes e que
consideram uma fraqueza qualquer necessidade.
O paciente pós-Primal não pode ser irreal fisiologicamente. Já não usa mais
agasalhos desnecessários porque seu corpo logo reagiria rejeitando-os.
A reação em termos de medo ou raiva logo se torna aparente na
constituição química do corpo. Se tivermos dois grupos separados, uma das
pessoas que demonstram raiva e outro das que a escondem, vamos
encontrar diferenças nos índices e nas qualidades de hormônios
eliminados. O grupo que esconde a raiva provavelmente eliminará um
hormônio chamado norepinefrina enquanto o outro eliminará a adrenalina
pura. É interessante notar que os bioquímicos costumam se referir ao
hormônio norepinefrina como o hormônio "incompleto." 25
Vamos então considerar os pacientes pós-primais à luz de alguns
fenômenos não físicos.
Tivemos um rapaz formado que era fanático pelo futebol e torcia como um
louco por um determinado time. Sabia o nome e a vida esportiva e privada
de todos os jogadores, mas, no seu caso, aquilo era uma simples
representação simbólica ostensiva. Nunca pertencera a agremiação alguma
mas pensava que daquela forma, poderia se identificar com aquele clube e
passar a fazer parte de alguma coisa torcendo para que ele ganhasse para
assim compensar o fato de ser ele um perdedor a vida inteira. Depois de
resolver o seu problema pessoal de uma forma real não precisava mais
representar simbolicamente. Aliás, esse não foi o único paciente torcedor
fanático que tivemos, e com outros aconteceu também a mesma coisa.

25
Indico ao leitor o trabalho de Hans Selye sobre hormônios e stress, The Stress of Life, N.York:
McGraw-HilI, 1950.
Houve um que, de apaixonado incondicional de ópera, passou a apreciar
normalmente a música mais popular achando que ela é mais uma
"celebração da vida", ao passo que a ópera era para ele uma verdadeira
agonia.
Também notamos mudanças marcantes em níveis de inteligência. Um
paciente explicou-me que "se fosse esperto quando era pequeno, teria
morrido porque teria percebido o quanto era odiado pelos pais. Só
sobrevivi porque mostrei-me obtuso desligando uma parte de meu
cérebro. Eu já reparei crianças que são inteligentes e espertas e que, de
repente, se transformam. Creio que a razão é porque recebem a mensagem
Primal e fingem não entendê-la."
Os cursos universitários logo se tornam fáceis para esses pacientes, pois
eles sabem que uma parte de tais cursos é como se fosse um jogo e, então,
não se tornam ansiosos.
Tornam-se mais articulados porque finalmente conseguiram articular
coisas a que não se atreviam durante toda a vida. Tornam-se perceptivos e
decididos não apenas em aparência mas também mentalmente. Caminham
desempenados em lugar de tímidos e curvados.
Podem ter vida social pois já não sentem mais medo quando fazem visitas.
Outros que estavam sempre correndo sem destino já agora sabem como
ficar em casa lendo e apreciam ficar sós.
O pós-Primal passa a gozar a vida de forma mais intensa e completa. Gosta
de tudo que faz.
E o que acontece com a criatividade dessa gente? Será que ela também
some junto com a neurose? A resposta é negativa. Ninguém perde suas
qualidades artísticas. O que se modifica é o conteúdo da arte que
produzem. Devemos lembrar que a imaginação neurótica significa a
simbolização daquilo que é inconsciente. Assim, o neurótico sempre se
manifesta de forma abstrata e indireta. O conteúdo de sua arte é a forma
peculiar que suas sensações e pensamentos assumem artisticamente
depois de contornar a Dor. É claro que sem o bloqueio da Dor o conteúdo
mudará. O ato criativo do neurótico é a maneira pela qual persiste em não
perceber, ou antes, em sentir. A perspectiva artística do paciente pós -
Primal também se transforma. Ela passa a ver e ouvir as coisas de forma
diferente. A neurose não é um fator essencial para a arte.
Vamos ver agora o que acontece com as relações com outras pessoas. Uma
mulher que terminara a sua terapia saiu para jantar com o marido que
nunca se submetera a tratamento. Não permitiu que ele escolhesse os
pratos para ela e para tornar as coisas ainda piores mandou suspender o
vinho que ele escolhera pedindo um outro que ela gostava. Ele ficou furioso
e levantou-se da mesa. Houve uma cena e ele acusou-a de estar tentando
"castrá-lo", de não querer mais reconhecer que ele era o homem, quando
tudo que ela fizera fora apenas deixar de ser submissa e humilde com o ele
gostava, para ser uma pessoa de verdade.
É interessante notar que os casais que se submetem à Terapia Primal nunca
mais se separam. Não sentem mais necessidade neurótica de alguém mais
porque já sentiram suas verdadeiras necessidades. Já não existe razão
alguma para não se darem bem. Não exigem coisa absurdas um do outro
porque não são irreais. Cada cônjuge torna-se apenas um ser humano
razoável que se contenta em viver e deixar que os outros vivam.
Os pacientes que se submeteram à Primal já não toleram mais fingimentos
e, sendo assim, afastam-se de muitos velhos amigos. Preferem manter
relações entre eles e é comum saírem casamentos dentro do grupo. As
amizades deixam de ser possessivas para serem tolerantes, e isso se nota
até mesmo em seus rostos. Já não são mais aquelas máscaras forçadas para
esconder sentimentos. Não precisam fingir para o mundo e, portanto, o seu
semblante é natural. Verificam que já não precisam de tanto dinheiro como
antes. Comem menos, saem menos e levam vidas mais moderadas. Os
leitores ávidos, especialmente aqueles que devoraram romances,
abandonam grande parte de suas leituras. Uma paciente explicou que a
necessidade de ficção, que antes a dominava, era para viver fora da
realidade, e aquilo já não era mais necessário.
Suas vidas já não são mais tão regimentadas. Comem quando sentem fome,
compram roupas só quando precisam e procuram satisfação sexual quando
sentem tal necessidade e não quando estão tensos. Isso significa menos
atividade sexual mas também uma apreciação mais completa daquela que
é praticada. A maior parte passa a ouvir mais música do que antes,
conforme me disseram alguns diplomados universitários.
Será que a vida deles torna-se monótona e insípida? A resposta é afirmativa
pelos padrões neuróticos, mas devemos lembrar que a excitação nos
neuróticos é o resultado da tensão. Isto quer dizer que o neurótico está
constantemente num estado de excitação interna e que muitas vezes
condiciona a sua vida para funcionar com ela. Ele se entrega a toda sorte
de atividades mas logo que elas cessem, a tensão se instala outra vez.
De uma certa forma, a pessoa torna-se um novo ser humano depois de
haver passado pela Terapia Primal. Ela nunca sente-se eufórica demais nem
tampouco deprimida. Apenas sabe o que isso significa. É muito difícil
encararmos uma pessoa irreal porque estamos sempre pensando estar em
contato com alguém ausente. Todo contato com as pessoas que passam
pela Primal torna-se agradável, pois sentimos estar falando com gente que
existe.
O indivíduo pós-Primal encara de forma diferente a solidão. Uma pessoa
que se submeteu ao tratamento durante dois anos disse-me que a solidão
já não era problema para ele. Já não sente a mesma angústia que antes da
terapia. Sente-se bem em companhia de si mesmo e acha que essa é a
melhor que existe.
Ele não precisa recorrer ao álcool para rir ou ser amável, como acontece
com tantos neuróticos. Sente um imenso alívio por estar livre de quaisquer
compulsões. Delicia-se com o fato de estar livre de alergias, dores de
cabeça ou quaisquer outros sintomas. Tem um verdadeiro controle da vida.
Já tratei antes da questão de empregos. É um fato que muitos pacientes
mudam de empregos depois de passar pela Terapia Primal. Houve um que
me disse que "antes eu vivia para o emprego, mas agora vivo para mim
mesmo." Geralmente a sua atitude consiste em encontrar alguma coisa que
goste de fazer sem se preocupar com seu valor como carreira. Houve um
que achou melhor ser sapateiro do que galgar posição importante numa
companhia de seguro. Gostava de trabalhar com as mãos, mas não tinha
coragem de fazer aquilo porque vinha de uma família de classe média de
alguns recursos. Enquanto não encontrava trabalho, confessou-me que,
pela primeira vez na vida, sentia-se aliviado por não ter um emprego.
O trabalho demasiado ou as ambições intelectuais fora da realidade não
fazem parte da vida de quem já passou pela Primal. Isso talvez seja uma
reação a uma sociedade que faz apoteose do autossacrifício, mas não quer
dizer, contudo, que todas as carreiras sejam abandonadas. Muitos
continuam em suas profissões. Tudo depende da motivação neurótica
quanto à escolha da primitiva carreira.
A pouca importância dada aos empregos e carreiras é também devido a um
outro fator. Durante anos, ou talvez décadas, o corpo e a mente do
neurótico foram atropelados. Ele precisa de tempo para se reagrupar.
Precisa de um período de cura não somente para a sua condição de
neurótico como também pela dura experiência com a Terapia Primal. O fato
de não ser mais neurótico depois de muitos anos é uma experiência
inteiramente nova e ele precisa de tempo para poder saboreá-la.
Relação com os pais

Uma das mais previsíveis mudanças devidas à Primal é a relação do


paciente com os pais. Quando os filhos deixam de lutar para conquistar o
amor dos pais a situação inverte-se e são os pais que saem para a conquista
do amor dos filhos. Quanto mais normalmente se comportarem os filhos,
mais desesperados se tornam os pais. Devemos ter sempre em mente que
o filho neurótico é uma defesa para os pais, já que eles foram, usados para
abafar a Dor dos mesmos. Era contra os filhos que os pais podiam se virar
para sentirem-se superiores. Ela era a filha carinhosa que cuidava de sua
mãe. Sem ter um filho para quem possam escrever, telefonar ou visitar, os
pais logo começam a sentir a sua Dor ao mesmo tempo que verificam o
vazio de suas vidas. Começam então a lutar para trazer o filho de volta
àquilo que ele era. Aí já são os pais neuróticos que são realmente a criança
pequena que necessita de conselhos e conforto, e de todas as coisas que
nunca conseguiram de seus próprios pais.
Por que será que são os filhos que se tornam os sintomas dos pais
neuróticos? Por que os pais não descarregam sobre outros? Simplesmente
porque os filhos são os mais indefesos e, portanto, os pais não precisam de
tantas defesas para eles. Isso significa que os pais encontram mais
facilidades para descarregarem sobre os filhos os seus antigos sentimentos
reprimidos pois eles não podem reagir. Eu creio que a melhor maneira para
chegar a uma conclusão sobre alguém é observar quais são as suas relações
com os filhos. Se os pais amargaram a vida quando eram crianças, debaixo
do jugo de seus pais, então, eles podem tentar mostrar-se certos cada dia
de sua vida como pai, fazendo com que seus filhos sintam-se errados, ou
pode mostrar-se importante fazendo com que o filho se dê conta que nada
vale. Pode também seguir um outro caminho igualmente destruidor
fazendo com que o filho se torne importante para que ele, pai, possa sentir -
se ainda mais importante. De qualquer forma que isso seja feito, o
resultado é o uso de uma criança indefesa para instrumento de velhos
problemas dos pais. O fim desse processo é que a criança perde a noção de
suas próprias necessidades (é o split) na sua ânsia para satisfaze r aos pais.
Acontecem coisas muito sérias com os pais de pacientes pós-primais.
Geralmente tornam-se deprimidos zangados ou doentes. A mãe de uma
moça de uns vinte anos ficou muito doente e teve que ser hospitalizada
sem que fosse possível diagnosticar o seu mal, até que a filha foi para a sua
cabeceira. Aí tudo desapareceu. A mãe de um rapaz que era efeminado
ficou furiosa com a sua agressividade e reclamou em voz alta "O que foi
que aconteceu com o meu doce filhinho?" Uma outra caiu em profunda
depressão quando sua filha deixou de visitá-la todas as semanas e resolveu
viajar para uma escola. Tinha vivido toda a sua existência agarrada à filha
e não podia imaginar ficar sozinha no mundo.
Torna-se extremamente difícil para o paciente pós-Primal tolerar toda a
irrealidade dos pais, e então ele procura afastar-se deles para evitar certos
conflitos. Os pais neuróticos não querem saber dos filhos como eles são
porque desejam sempre moldá-los para atenderem às suas necessidades e
abafar as suas dores. Um paciente chegou a dizer que fora um órfão que
tinha pais, só que eles eram os pais do filho que inventavam e nunca se
preocupavam com o real.
As dificuldades começam durante a Primal quando o paciente descobre,
pela primeira vez, o que deseja e o que, infelizmente, nunca é o que os pais
também querem. É um período difícil e trágico para filhos e pais. O paciente
pós-Primal não se torna deliberadamente cruel e não mostra aos pais os
seus pecados. Sabe que eles não vão modificar-se e que serão sempre os
mesmos, Ele vai agora cuidar só de sua vida o que, aliás, é o que nós todos
desejamos. Lembro-me de uma moça que passou toda a sua vida servindo
de intermediário entre o pai e a mãe que viviam brigando. Quando ela
deixou de exercer o pesado papel de pacificadora, descobriu que eles,
finalmente, já se davam bem.
O que acontece muitas vezes é que os filhos tornam-se mais valiosos para
os pais quando esses últimos são obrigados a lutar pelo amor dos filhos,
quando antes nunca lhe haviam reconhecido valor algum. Assim, à medida
que os pacientes pós-primais tornam-se mais reais e independentes, eles
constatam que são mais procurados pelos pais. Os pais nunca percebem
que quando um filho, que talvez já tenha seus quarenta anos, não interfere
em suas vidas, é porque ele está realmente lhes dando uma demonstração
de amor. Antes da terapia os pais mediam o amor pela quantidade de
visitas, de telefonemas ou de presentes caros. Quando o filho já não cuida
da quantidade e sim da qualidade de sentimentos que lhes oferece, os pais
neuróticos muitas vezes não sabem como reagir porque nunca levaram em
conta os sentimentos dos filhos.
O paciente pós-Primal pode manter relações com os pais em termos outros
que não sejam de luta. Desde que chegue ao ponto de aceitar a si mesmo,
ele já pode aceitar também os pais. Percebe que se agir como neurótico
aquilo será para ele como se fosse uma sentença de prisão perpétua e
ninguém escolhe isso voluntariamente. Depois de tudo por que passou ele
tem uma profunda compreensão da dor dos pais, pois sabe que eles
também eram vítimas.
Ser pai é uma tarefa difícil pois envolve a pessoa moldar-se em si mesma e
não naquilo que precisa para ela. As necessidades não satisfeitas dentro de
um pai servem de prova se ele pode ou não ser um pai criador. Não importa
se esse pai é um psicólogo ou psiquiatra; desde que essas necessidades
sepultadas ainda estejam lá, o filho sofrerá. O vulto do sofrimento do filho
dependerá do quanto o pai tenha sido obrigado a apagar-se para viver com
seus pais. O que o pai verá no filho é a sua própria necessidade e a
esperança que alimentava de realizá-la. O filho nunca será considerado
pelo que ele é, e isso começa logo com o nome que lhe dão no batismo.
Há certos nomes que, de antemão, representam as expectativas dos pais
logo que ele nasce.
O pai também pode ser uma boa pessoa que tudo faz para viver bem com
os filhos, mas que, devido às suas necessidades anteriores, tem que estar
sempre reclamando. Há pais que falam tanto que não dão vez aos filhos
para terem suas próprias ideias.
Uma vez que os pais neuróticos veem refletidas nos filhos as suas próprias
necessidades, o filho que mais sofre é aquele cujos pais mais necessitam.
Os pais que destroem não são aqueles que parecem excêntricos e sim os
que têm aspirações e ambições para os filhos. Isso não irá permitir que os
filhos tenham personalidade já que eles estarão sempre muito ocupados
satisfazendo as necessidades dos pais. Os pais destrutivos, em suma, são
aqueles com os quais os filhos foram obrigados a transigir. "Eu farei isto se
você fizer aquilo." Isso é o amor sob condições e a condição imposta é que
o filho torne-se neurótico.
O indivíduo que passa pela Primal vai magoar-se outra vez, especialmente
com a violência e as moléstias que vê em torno dele, mas não vai ser
neurótico nunca mais. Será afetado pelo que acontecer em torno dele mas
esses acontecimentos não conseguirão dividi-lo. Em resumo, ele reagirá
com sentimento e não com tensão. É um ser humano vulnerável,
diretamente afetado pelos estímulos no mundo, mas nunca será dominado
porque pode contar consigo mesmo todo o tempo. Eu sou de opinião que
ele vai construir um novo mundo para viver, um mundo real destinado a
resolver os problemas reais de seus habitantes.
Gary
O caso que se segue vai com todos os seus detalhes para mostrar como
funciona o processo da Terapia Primal. Mesmo assim, ainda foi preciso
fazer alguns cortes em vista das restrições de espaço.
No princípio do tratamento Gary era praticamente um paranoico. O seu
primeiro grupo foi marcado por uma discussão com outro membro do
grupo pois ele acreditava que essa pessoa e eu estávamos combinados para
isolá-lo. Escondia seus sentimentos com demonstrações de indignação. Nós
fizemos a sua raiva desaparecer e isso levou-o ao seu ferimento afastando-
o da paranoia. Chamo Gary de "brigão das ruas" porque essa era a sua
principal ocupação antes dos vinte anos. Agora ele já "não fica mais
zangado" e essa mudança reflete-se no seu rosto e no modo de falar. Logo
que chegou ele parecia ser durão tanto no comportamento como na
aparência. Agora já podemos classificá-lo como "delicado." Antes da
terapia ele tinha algum problema que o mantinha sempre meio encurvado,
mas agora isso já desapareceu e ele anda bem desempenado.
25 de fevereiro
Hoje eu explodi pela primeira vez. A sensação é como se a gente tirasse um
grande peso do peito e começa então a despejar o que tem dentro. Foi tudo
saindo aos borbotões em ondas e torrentes. Nunca pensei,
conscientemente, em deter alguma coisa. Não tenho certeza de sentir -me
expurgado, e nem sei mesmo se esta é a palavra certa, mas me sinto mais
leve e mais à vontade. Depois senti-me esgotado, senti minha energia
solapada, menos hostilidade e, certamente, não tinha raiva de ninguém.
Toda a avalanche parece ter sido espontânea e, pelo menos, não consigo
lembrar-me se foi Janov ou eu que provocamos ou quem começou, mas
tenho certeza que toda essa porcaria vem fervendo em mim durante os
últimos dezoito anos mais ou menos. De repente eu senti-me envolvido,
como se fosse um orgasmo, aproveitando-me de tudo o que ele tinha com
gritos, explosões, lamentações, palavrões, gemidos. Vomitei uma porção
de coisas que julgava haver desde muito esquecido completamente, mas
agora vejo que estavam apenas armazenadas, e que vinham me devorando
durante todos esses anos. Disse coisas que já desejara dizer milhões de
vezes antes sem nunca conseguir.
Agora, esta noite, eu sinto um pouco da solidão e da dor que venho
tentando afastar. Sei agora que a dor é uma coisa física, e quando somos
obrigados a trazê-la à tona ficamos engasgados porque é tão nauseante
sermos forçados a lembrar. O sofrimento que tenho armazenado dentro de
mim deve estar podre e venenoso depois de todos esses anos, mas sei que
preciso expulsá-lo para fora de mim para então poder ter a oportunidade
de viver decentemente, pelo menos de agora em diante.
Continuo encontrando dificuldades para encontrar-me. Hoje tirei um sono
de uma hora e depois fiquei só comigo o resto do dia até a hora do jantar.
Ainda não posso induzir-me a sentir realmente as coisas. Fico ruminando
no meu espírito procurando alguma coisa para ocupar meu pensamento,
um pedaço de um poema ou de uma canção. Continuo a lutar comigo
mesmo. Acho que procuro fugir de sentimentos ou de sensações. O mais
difícil mesmo é ficar só. Acho que estou chegando à conclusão que sou um
chato.
O resto da tarde não foi muito mal. Fiquei deitado de costas a maior parte
do dia procurando tornar a viver o que já me havia recordado durante o dia
todo, mas sem conseguir. Fui para o grupo à noite e tendo chegado com
dez minutos de atraso levei a bronca do Janov, dizendo que não queria
saber de hora de neuróticos. Eu nunca tinha pensado naquilo sob tal
aspecto. Eu agora percebo como estou doente porque vejo toda aquela
gente lá sem vergonha nem medo do que fazem deitados no chão. Teve um
cara que me fez ficar todo enrodilhado por dentro e eu percebia toda a
minha luta interna sem nada conseguir. Eu também não tenho bem certeza
se algum deles me causou alguma impressão. Cada vez percebo mais que
há uma luta por dentro de mim e comigo mesmo para não sentir as coisas.
Basta ver o que sinto nas tripas. Quando voltei ao motel fiz tudo para
conseguir chegar à minha Primal, mas só o que consegui foram algumas
lágrimas. Tentei recriar as condições propícias mas nada consegui. Sentia
um tremendo aperto no estômago. Estava apertado mesmo. Tentei a tal
coisa de papai, mas nada. Finalmente, um pouco mais tarde descansei e
senti-me tão melhor que tornei a descansar e uma hora depois tentei
novamente a Primal mas ainda nada consegui. Continuava a sentir o aperto,
mas já não era tão forte. Isso tudo durou de dez até doze e trinta.
26 de fevereiro
Mais uma vez, pela terceira noite consecutiva, não consigo dormir
profundamente. Não tenho sonhos. Viro-me na cama e acordo algumas
vezes. Acordei às 2, 6h45m e 8h15m. Saí da cama às 8h30m. Tomei um
pequeno café e fiquei ouvindo o Bolero enquanto batia isto na máquina.
Vou ficar só comigo mesmo até a hora da consulta na parte da tarde.
A Primal de hoje foi uma devastação. Fiquei assombrado quando vi o
quanto tinha armazenado em matéria de sofrimento. Isto é que eu acho
verdadeiramente notável nesta terapia. Estamos sempre nos espantando
com a quantidade de veneno que conseguimos acumular em nosso corpo.
Creio que no meu caso o que estou fazendo agora é dizer a uma porção de
gente "foda-se" o mais alto que posso e com o máximo de veneno possível.
Não podia fazer isso quando era menino porque não tinha defesa. Uma
outra coisa boa a respeito dessa Terapia Primal é que ela prova para a gente
que os sentimentos e a Dor são coisas físicas e reais. E uma coisa que está
lá nas nossas entranhas dilacerando-nos ou então também pode estar nos
ombros ou no peito. Quase ficamos engasgados quando abrimos a boca
para respirar. A Dor é uma coisa nojenta. Hoje cheguei a pensar que ia ficar
perturbado. Não conseguia parar de xingar meus velhos e depois virei -me
para os garotos. Sinto-me satisfeito, e aliviado por haver gritado aquilo
tudo. Estou me sentindo bem mal. Sou realmente um cara bem doente
mentalmente. Preciso me recompor todo.
Depois de um almoço ligeiro fui de carro até a praia. Creio que já fui lá
centenas de vezes, mas dessa vez eu estava bem sozinho. Eu e a praia.
Caminhei na beira-mar uma boa estirada, pisando conchas e pedacinhos de
pau, sentindo meus pés mergulharem na areia bem molhada. Ventava
muito. Era um vento penetrante que me atravessava a roupa e ia até os
ossos. Era uma delícia respirar bem fundo e fiquei com o rosto esfogueado.
Não consigo explicar, mas hoje, quando estava lá, senti-me cheio de vida,
como já não me sentia desde muito. Sentia-me vivo mesmo.
Agora já não acho tão ruim a história de solidão. Já vejo que posso ficar só
horas esquecidas sem sentir-me nervoso e tomo mais interesse pelo que se
passa no meu corpo. Já não preciso mais uma ajuda como um rádio ou
livros. Mas ainda não acho que é o bastante. Esta noite fiquei só outra vez.
Espero que consiga dormir, mas talvez fosse melhor se eu passasse uma
outra noite horrorosa porque essa é a única forma para depois ter noites
boas.
Acabo de notar que quando fico raivoso as coisas que falo são palavrões,
mas essa não é a parte mais interessante, e sim aquela em que começo a
falar a linguagem rude e grosseira de outros tempos. Parece que estou
fazendo de propósito escolhendo a única linguagem que tenho a certeza de
ser bem compreendida por eles. Acho que há muita realidade no que falo
e assim não preciso dar-me ao trabalho de ficar procurando palavras.
Aquela que sai lá de dentro é sempre a que está certa.
Acabo de pensar numa coisa que me parece importante. Quando estou
atravessando uma Primal com os velhos, fico sempre esticando os braços
como se quisesse alcançá-los no rosto, mas hoje, com meus irmãos, não me
lembro de ter feito isso. Esmurrei o sofá para valer mas não dirigi meus
socos para eles, e acho que isso é importante. Também, se é que estou bem
lembrado, não lhes disse palavrões. Uma outra coisa que muito me intriga
é que quando estou falando com o meu velho estou sempre batendo em
mim mesmo, e batendo de verdade. Embora não dê para machucar-me fico
bolando qual será a razão para eu estar batendo em mim mesmo. Deve ser
a culpa. Estou tão cheio de culpas que cheguei a pedir desculpas a meus
pais hoje tentando explicar-me. Mas seja lá o que for, creio que o Janov
está certo quando diz que estão me magoando, pois estão mesmo. Eu sei
porque estou com a Dor.
27 de fevereiro
A noite passada até que foi bem boa. Dormi muito bem. Não sei se isso será
bom ou mau para a terapia. Fiquei só durante um longo período de pouco
mais de quatro horas que passaram com relativa facilidade. Tentei chegar
à Primal sozinho, mas só o que consegui foram lágrimas. Acho que a sessão
de hoje foi boa. Não tive nenhum ataque violento como nos três dias
anteriores. Mesmo assim, ainda grito muito e me debato. Parece que nos
últimos dois dias consegui estabelecer mais ligações. Não sei se isso está
certo, mas vejo-me chegando a uma certa conclusão a respeito de alguma
coisa e depois consigo estabelecer um elo com algo importante. Não tive
acessos de choro hoje, mas também não senti nada que me fizesse chorar.
Quando digo "senti" estou me referindo a um sentimento de necessidade
física que realmente está bem viva dentro de mim. Nunca mais vou duvidar
que os sentimentos sejam coisas físicas reais que acontecem dentro de mim
e que passarão a acontecer do lado de fora desde que me permita senti -las
assim. O estranho é que desde que eu sinta isso muitas vezes a sensação
abandona-me. Por exemplo, hoje eu não tive vontade de chorar por estar
só ao passo que nos últimos dias isso levava-me a fortes crises de lágrimas.
Hoje tudo se resumiu em falar. Sinto-me confuso sobre o que isso possa
ser. Poderia significar 1) que eu estava bloqueando o sentimento, mas isso
eu duvido porque o Janov não permitiria ou então 2) que eu poderia viver
com o sentimento sem ser preciso chorar, se é que isso faz algum sentido.
O que eu quero dizer, por exemplo, é o seguinte: Uma mulher tem que
passar pela sensação de ser obrigada a perder um seio por causa de câncer.
Ela chora a não poder mais pôr causa disso e sente toda a tristeza, mas
então perde o seio mas consegue viver com a dor que isso lhe causa desde
que ela a sinta ou tome conhecimento dela. Creio que isso já faz algum
sentido.
Foi muito chato hoje quando tive que reconhecer que havia mentido para
Janov. Sentia uma dor na parte de trás da cabeça e na área do mastoide.
Janov disse que era um "pensamento não sentido" e ele estava certo
mesmo. O pensamento era o conhecimento que eu tinha de haver mentido
e estar guardando um segredo, e a dor era porque eu não estava sentindo
aquela sensação. Em resumo, eu estava doente. Consegui expelir a mentira
e quase imediatamente a dor desapareceu, apenas uns dois ou três minutos
depois. Eu havia passado a noite em casa quando na verdade devia ter ido
para o motel. Claro que com isso criei dificuldades para a minha terapia. Só
fiz por causa do dinheiro que não queria gastar, da mesma forma que meu
pai. Mas realmente, se acontecer que, depois de todos os meus esforços
para não ficar parecido com meu pai, eu ficar mesmo parecido com ele em
algumas coisas, então já não compreendo porque me deixei ficar tão
doente. O que é realmente muito estranho na Terapia Primal é o fato de a
gente não poder mentir para o terapeuta pois se isso acontecer teremos
certamente que acabar contando-lhe a verdade. No fim já ninguém tem
vontade de mentir. Isso será realmente muito bom para mim, pois toda
minha vida fui um mentiroso inveterado, e desejo sinceramente não ser
mais.
Hoje, de 1 h45m até 5h30m fiquei só, e depois também das 6 até meia-
noite. Não foi muito ruim e cada vez está ficando mais fácil. Também é
possível que alguma coisa não esteja certa aí porque eu deveria sentir mais
dor e sofrimento. Também pode ser que aí esteja o que há de errado
comigo. Talvez eu sinta que preciso punir-me por alguma coisa.
1° de março
Estava muito nervoso e inquieto na sessão de sábado de manhã. O primeiro
cara do grupo fez-me ficar cheio de ansiedade. Senti uma apertura no
estômago; fiquei com a garganta seca e meu corpo queria se retesar.
Quando Janov me fez o sinal que era a minha vez senti mais alívio do que
medo. Fiz o melhor que podia, mas não sei se fiz bem. Tudo aquilo parecia -
me terrível. Era a primeira vez em toda a minha vida que eu ouvia tanta
lamentação, choro e gritos sem ficar aterrorizado. Eu parecia estar por
dentro e nada mais. Uma pessoa começava a gritar e aquilo despertava um
outro, e logo que as coisas estavam se aquietando um outro entrava em
cena e tudo recomeçava. Finalmente tudo sossegou como se todos
tivessem chegado a uma conclusão natural. Isso também só acontece na
Terapia Primal. O terapeuta não perde a calma com o menor grito ou
gemido do paciente. Ele, ao contrário, provoca-os. E aqui está o Janov
andando no meio dos corpos deitados falando pacientemente com um e
com outro, fazendo sinais para sua mulher, enquanto à sua volta todo
mundo grita e chora a sua dor. E durante toda a trapalhada ele não para de
tomar café. Não sei por que não desandei a dar gostosas gargalhadas diante
daquilo tudo. Era tudo tão estranho! Tão fora de realidade! E foi então aí
que percebi que era a minha vida, a minha vida de cérebro lavado, que me
fazia pensar que tudo aquilo era irreal. Nada poderia ser mais real do que
aquilo, do que aquele sofrimento realmente humano. Só que minha
estúpida educação insistia em dizer-me que as pessoas não choram quando
sofrem. Elas escondem os seus sofrimentos como bons palhaços que são.
Então aquilo era real. Depois eu senti-me expurgado, limpo e cansado. Eu
não chorava tanto quanto os outros embora tivesse chorado mais que
alguns, mas mesmo aquilo não tinha importância.
Passei algum tempo na praia e procurei alguma coisa boa. Fui comprar
ostras e mexilhões. O vendedor falava sem parar e eu tinha a impressão
que aquilo não acabava mais embora talvez tivesse durado apenas alguns
minutos. De qualquer forma senti-me impaciente e nervoso. Parecia
desamparado e minha garganta foi-se apertando, meu estômago foi-se
embrulhando. Eu só queria dar o fora no sacana e voltar para a beira d a
praia com as ondas lambendo-me os pés e sentindo o cheiro de maresia.
Cheguei a pensarem sair correndo deixando ali em cima do balcão as ostras
já embrulhadas que ainda não estavam pagas. Não saí. Eu realmente queria
uma coisa que eu e minha mulher gostávamos muito. Depois do jantar fui
para o quarto onde fiquei algumas horas. Não aconteceu nada e eu sentia -
me bem tranquilo. Assisti a Morangos Selvagens e chorei. Não estava
pronto para aquilo. Acho que foram as relações do cara com seu pai (o
médico) que despertaram alguma coisa em mim e ainda senti mais quando
o próprio doutor não conseguia sentir... Fui para a cama às duas depois de
ficar sentado na sala sozinho durante algum tempo.
3 de março
Estou começando a segunda semana de terapia individual. Durante as
últimas cinco noites tenho dormido bem, com exceção de sexta-feira. Mas
há uma diferença. Muito antes de eu começar a terapia, muito tempo antes
mesmo, até me parecem anos, meu sono era como se eu estivesse drogado.
Não só dormia como uma pedra como também era uma pedra para acordar.
Acho que era porque eu estava usando o sono para fugir de meus
sofrimentos e problemas. Especialmente nos últimos seis meses, eu vinha
usando o sono como uma forma de escapismo. Mas agora já durmo
tranquilo e também desperto com facilidade saltando logo da cama sem
aquela agonia de antes.
Se eu viver mais uns trinta anos e continuar a fumar como agora, uns trinta
cigarros por dia, eu gastarei com isso uns seis mil dólares. Mesmo que a
terapia me custe dois mil ou dois mil e quinhentos dólares, eu ainda estarei
lucrando se com ele deixar de fumar. Aliás já deixei mesmo. Posso até viver
mais de trinta anos.
A sessão de hoje foi muito boa. Diria até mesmo que estava agradável, mas
o que quero dizer mesmo é que sinto estar fazendo alguma coisa realmente
boa para minha saúde mental. Coisa estranha a respeito de meus pais. Fico
sentindo coisas diferentes mudando de raiva para tristeza, para pena, para
indignação, para desprezo, para defesa, quando penso neles. Ficou muito
confuso. Agora sei que eles sempre foram e são aquilo que são. Não há
nada que possa mudar isso. Não há nada que faça mudar o sofrimento e a
dor que me causaram. Mas também descobri alguma coisa que não sabia.
Eu também lhes causei muitos sofrimentos. Talvez menos sérios, talvez
menos marcantes, mas eu também retribuí. Só que comecei na defensiva e
depois passei para a agressão. Mas foram eles que iniciaram tudo. E o
resultado agora é um só: tristeza, desperdício e tragédia. Eu agora sinto a
terrível tragédia humana de gente que vive junto, confinados em lugares
apertados, agredindo-se e ferindo-se uns aos outros e deixando sempre
profundas cicatrizes emocionais. Agora é que eu vejo como tudo é tão
triste. O que digo é que tudo isso me faz chorar mesmo de verdade, e não
são lágrimas de amargura e sim lágrimas tristes e sinceras. Não choro mais
como fazia a semana atrasada na base do como-foi-que-isso-aconteceu ou
antes-tivesse-sido-assim. Eu agora choro simplesmente porque sinto o
trágico desperdício humano, o sofrimento e o prejuízo.
Telefonei hoje para meus pais. Primeiro, quando meu pai atendeu, eu não
conseguia nem falar. Consegui finalmente e estou até espantado como foi
fácil falar com o cara. Com minha mãe já foi um pouco diferente. Durante
a conversa contei-lhe que tinha sofrido uma crise de estafa. Ela nem quis
ouvir-me. Já se habituara a não me ouvir e não queria saber de nada. Não
sei o que é que há com ela. É um negócio de "meu filhinho não é desses",
etc. etc. Foi então que lhe contei direitinho que era um ataque mental e
físico ao mesmo tempo, e aí ela pareceu mostrar alguma preocupação ou
interesse, mas não alarma. Reagiu com aquelas expressões costumeiras
que eu estava já farto de ouvir. De um modo geral não foi muito satisfatória
a conversa.
Durante o resto da tarde descansei sozinho. Susan não estava sentindo -se
bem de manhã e eu resolvi fazer o jantar. Fiz arroz com cury, salada e as
ostras. Elas estavam ótimas e eu comecei logo que ela chegou em casa e
ficamos os dois a olhar como se abriam na água fervendo. E aí comecei a
sentir uma coisa engraçada imaginando que as ostras eram criaturas, que
eram muito feias, e comecei a rir muito. E então pela primeira vez, desde
muito tempo, senti-me despreocupado e realmente bem disposto. Fiquei
só o resto da noite.
4 de março
Na sessão de hoje fiquei muito confuso quanto ao que sinto por meus pais.
Sinto a dor dos sofrimentos, a dor da própria dor, a dor da tristeza. E agora
posso sentir como é dolorosamente triste, realmente triste, toda a tragédia
e a futilidade humana. Acho que ontem eu queria que minha mãe
mostrasse algum interesse ou verdadeira preocupação. Sei que se meu
filho me telefonasse dizendo que tinha tido uma crise mental, eu logo teria
reagido com providências com alguma coisa que ele pudesse querer de
mim. Foi nesse ponto que comecei a sentir que minha mãe já não sabia
como reagir. Culpei-me um pouco por aquilo pensando que sempre
houvera resistido à sua afeição no passado e que seus conselhos nunca
tinham muita substância, que quase sempre eram ridículos. Fiquei confuso
sem saber mais o que dizer nem a quem dizer. Só conseguia sentir a trágica
tristeza de toda a trapalhada.
Esqueci de dizer que também tinha telefonado para meu irmão Ted ontem
logo depois que falei com minha mãe. Com ele a conversa foi um pouco
maluca logo de saída. Contei-lhe o que havia e ele ficou surpreendido.
Perguntou-me especificamente qual a razão de eu me submeter a
tratamento e eu respondi que sentia-me infeliz e bem fodido. Ele não
compreendia. Então eu perguntei se ele lembrava bem como eu era lá em
Brooklyn quando dava-lhe surras, perseguia-o, sempre mandão, cruel e
mau, e também com os outros companheiros. A sua resposta espantou -me
quando disse que todos os irmãos eram assim, que aquilo fazia parte do
crescimento. Ele não chegava a perceber o problema mais sério, o que
significava ter que viver com a Dor reprimida daquela espécie de vida e o
que aquilo fazia com os nossos miolos. Quando lhe disse isso ele reagiu
dizendo que sempre que se sentia na merda ele logo pensava que ainda
tinha sorte porque poderia ser muito pior. Ele com certeza pensa que com
isso seus problemas acabam, mas duvido muito. Certamente engole a dor
como faz muita gente e continua a viver sem senti-la. Continuou dizendo
que todos nós na família tínhamos sorte porque as coisas não estavam
ainda piores. Tínhamos sorte porque nossos pais ainda estavam vivos
quando acontecem tantos desastres de automóvel, tantos incêndios. Por
um momento cheguei a imaginar que ele estava falando como se eu
estivesse me queixando. Mas então eu vi tudo. O que é real é real mesmo,
e a Dor de um sofrimento é real. E também é real o processo de cada um
se defender ou de se isolar mentalmente de outras dores. E essa é a
realidade real pela qual estou passando. E portanto, não adianta eu ficar
me julgando com muita sorte mediante uma teórica comparação com
alguma infelicidade abstrata. Não faz a gente sentir. Apenas nos
proporciona uma experiência cerebral que as coisas poderiam ser piores,
mas é só pensamento e não o sentimento. Assim, o que meu irmão faz
realmente, ou diz que faz, é anestesiar-se contra a dor pensando em
alguma coisa diferente. Seria realmente fantástico se todos os que sofrem
ficassem imaginando que as coisas poderiam ser piores e com isso
diminuíssem suas dores, mas não é isso que acontece. É preciso a gente
sentir, reviver ou realmente viver a Dor pela primeira vez para poder
expulsá-la de nosso sistema.
Então eu contei ao Janov a conversa que tive com meu irmão. Mas agora,
neste instante, ainda tenho toda essa confusão na cabeça. Já começou
aquela dor, aquela mesma dor que já senti antes milhares de vezes. É uma
dor estranha e quando a sinto fico num estado de perturbação ou
irritabilidade, de chateação ou indecisão. Em outras palavras, é como se
alguma coisa estivesse me cutucando à espera de uma decisão ou solução
sem que eu saiba o que fazer. Então sinto a dor na cabeça e fico
extremamente agitado não pela dor mas sim por saber que fui eu mesmo
quem a provocou. Fico agitado até o ponto de querer gritar, de insistir para
me fazer ouvir, ou então de bater em alguma coisa, etc. Geralmente
consigo livrar-me dela explodindo e depois deito-me para descansar ou
recuperar. Foi nesse ponto que senti a dor e fiquei irritado, senti todo o
corpo coçando e muito agitado. Tremendo em espasmos. Senti-me como
se estivesse preso num casulo elástico debatendo-me com todo o corpo
para fugir dali. Queria uma solução ou uma resolução acerca da confusão
com meus pais. Fiquei ainda mais agitado, e quando Janov perguntou -me o
que estava sentindo eu disse que era "nervoso", que era a palavra que
julgava mais apropriada para toda a minha complicação. Ele disse "tortura"
e eu achei que era mesmo aquela a palavra mais apropriada. Estava sendo
torturada por meus pensamentos e sentimentos juntos com a dor. E logo
em um minuto, ou menos, a dor saiu completamente de minha cabeça.
Saí e fui falar com Ted hoje de tarde. Ele perdeu o emprego e também
sente-se perdido. Está mesmo perdido. É tudo o que posso dizer. Gosto
muito dele mas não vejo o que posso fazer para ajudá-lo agora. Ele
certamente gostaria de receber algum auxílio da família, mas eu não estou
em condições. Fiquei só ouvindo e ele falou quase sozinho. Parecia estar
no fim e eu não sabia o que fazer. Ele dizia que só podia trabalhar num
posto de gasolina pois era a única coisa que sabia fazer. Não sei o que há
com ele para que tenha pretensões tão humildes. Será que não espera
alguma coisa melhor da vida? Acho que ele está mesmo bem fodido e nada
mais posso fazer senão sentir pena.
De noite comecei a pensar como andava imaginando que não estava
ficando melhor. Já tinha parado aquela história dos gritos e não sabia se
estava progredindo bem. Janov disse-me outra vez que isso era parte da
moléstia. Essa ideia de estar querendo sempre ser o máximo em tudo. Não
vejo o que tenho de provar. O que será?
5 de março
Hoje foi um dia terrível demais. Comecei falando de fantasias homossexuais
e da visita ontem a meu irmão. Que raio de merda há comigo de errado?
Eu não sou o pai dele e não tenho que me meter fingindo que sou. Que
raio! De qualquer forma, eu queria mesmo era falar nessa história de
homossexualismo porque suspeito, sei ou sinto, que sou vítima dessa coisa
louca como acontece com tantos outros homens no país. Eu só queria
compreender bem aquilo de uma vez por todas. É simplesmente um jogo
intelectual de merda dizer que o homem nasce da mulher e do homem e
que, portanto, ele traz em si alguma feminilidade por meio da transferência
genética ou da hereditariedade. Essa expressão "portanto" é uma merda
porque não explica coisa nenhuma. Eu sei disso.
Aterrorizante. Realmente. Se alguém me perguntasse como me senti no
primeiro dia de minha Terapia Primal, eu teria respondido "aterrorizado".
Mas hoje, depois do que me aconteceu hoje, eu diria que aquilo tinha sido
apenas um susto porque foi hoje que senti e vi o verdadeiro terror. Muito
bem. Então eu entrei naquele tema, cheguei a um estado de agitação, e
quando Janov me disse para falar o que sentia, eu disse, "sinto medo". É
isso mesmo. Eu quero dizer que não fui eu quem falou a palavra medo. Foi
o MEDO que disse "medo". Pensam que é maluquice? Não é não. Na Terapia
Primal o verdadeiro sentimento parece que fala por si. Tudo que a gente
tem a fazer é abrir a boca e deixar a palavra vir lá de dentro saindo por ali.
O que estou dizendo é que ela vem sozinha. A palavra que representa o seu
sentimento vem lá das entranhas, desde que a gente deixe, e fala por si
mesma. Isso é real. Em outras palavras, a gente não pode mentir na Terapia
Primal sem estar sabendo. Claro que a gente pode mentir se quiser, mas a
gente logo sente que mentiu porque aquilo tem que vir à tona. Ontem eu
passei por essa experiência. O ÓDIO saiu-me da boca.
Muito bem, continuei. Logo depois disse, "Medo de ser bicha." Aquilo era
incrível porque eram apenas palavras, mas não tinha certeza do que estava
dizendo. Poderia ser: 1) Medo? Eu sou bicha, como se estivesse falando
para o próprio medo. Ou então poderia ser: 2) Medo de ser bicha, e aí
estaria omitindo o muito importante "eu tenho".
E então Janov me obrigou a começar a dizer para papai que eu era bicha.
Foi mais ou menos nessa altura que eu perdi o controle. Aposto que era
uma porra tão terrível que eu fugi com medo do que ia sentir dentro de
mim. Durante a próxima meia hora fiquei numa tortura. Comecei a sentir
dores e a chorar, e aquilo era mesmo real. Mas aqui há uma coisa
espantosa. Cada vez que terminava uma Primal eu ficava com uma espécie
de ressaca, um sentimento misturado com uma convicção de não haver
feito o que devia. Era realmente fantástico. Eu estava dizendo a mim
mesmo que não tinha passado por uma Primal e que aquele troço que eu
teria que enfrentar ainda estava lá mesmo para ser enfrentado. Houve uma
hora que cheguei bem perto, tão perto que cheguei a gaguejar e pensei que
ia vomitar. Eu creio que passei por três Primais falsas antes de receber a
mensagem alta e clara de meu corpo que eu estava fingindo, que não
estava chegando ao troço real onde algo estava realmente acontecendo.
Nesse ponto eu fiquei apavorado. Pensei que ia ficar maluco, ou pelo
menos, foi o que eu disse. Mas agora já sei por que falei aquilo. Era porque
não podia lutar com aquela parte de mim mesmo que continuava dizendo
que ainda havia alguma coisa que eu teria que enfrentar. Em outras
palavras, eu não podia fugir ao que dizia para mim mesmo e estava ficando
muito agitado. Janov continuava a insistir para eu não oferecer resistência.
Creio que ele queria dizer para eu desistir de lutar contra aquilo que sabia
mas que não queria sentir. Mas eu não podia fazer nada daquilo. A verdade
era que estava realmente apavorado.
O que me apavorava, ou pelo menos aquilo que mais certo me parecia, era
a possibilidade de ver-me como um homoerótico. Conservava na lembrança
um retrato meu ao colo de meu pai e também que estava gostando, mas
então olhei e vi que era um homem e fiquei enojado. Chegaram-me aos
lábios as palavras "vergonha", "repulsa" e "nojo". Não sei bem o que foi
que me fez ficar todo torto. Podia ter sido porque estava gostando do
contato físico com um homem, podia estar sendo isso mesmo. Também
podia ser que estivesse sentindo bem lá dentro algum desejo imediato de
ejacular porque ainda estava sentindo na piroca uma necessidade
premente de mijar. Janov diz que não deixa porque seria como se mijasse
tudo que estava sentindo, e então, porque tenho confiança no cara, eu
seguro a vontade de mijar e fico muito agitado. Pode ter sido um
sentimento, o princípio de um sentimento, que era como se eu fosse um
objeto sexual feminino. Isso está bem perto do que eu estava sentindo. Eu
estava sentindo que estava gostando de ser aquilo embora por outro lado
detestasse por causa do nojo e da vergonha e também pelo ultraje de ser
usado daquela forma. Agora acabo de tornar a ler a última frase porque
estava sentindo uma espécie de repulsão ao mesmo tempo que batia a
máquina e cheguei a um ponto em que já não sabia mais o que estava
batendo.
Bem, pelo menos já sei o que devo enfrentar. Janov disse-me que era para
lá que nós íamos. Para dentro do que era realmente aterrador.
Agora, aqui há alguma coisa fantástica. Houve um ponto hoje, quando
estava debaixo de grande ansiedade, medo ou coisa parecida, que comecei
a sentir todo o funcionamento interno de meu corpo, especialmente na
área do coração, do estômago e dos intestinos. Realmente fantástico.
Sentia tudo como se fosse uma máquina funcionando, mas o que era
realmente notável era eu sentir tudo como se estivesse funcionando em
planos diferentes do corpo. Eu disse a Janov que eram camadas, mas agora
percebo que sentia as diversas partes de meu corpo funcionarem umas
sobre as outras. Não posso dizer quais eram os órgãos que sentia, mas
positivamente sentia movimentos e ritmo e uma espécie de funcionamento
harmonioso lá dentro de mim. Fantástico.
A outra coisa de hoje foi que eu realmente senti-me todo retorcido e fiquei
gritando que ia virar menina. Senti-me letárgico como se já não possuísse
mais nenhum desejo de lutar.
6 de março
Na noite passada fiquei acordado o tempo todo e acertava o despertador
para cada meia hora para o caso de dormir. Devia ser mais ou menos seis e
meia quando adormeci. Sonhei que estava namorando, ou coisa parecida,
uma mulher que era uma vagabunda mesmo. Tinha uma boceta gigantesca
que eu segurava com as duas mãos para espremer ou manipular. Era como
se estivesse segurando uma esponja enorme, e depois cheguei-a até a
ponta do meu pau e provavelmente esfreguei-a nele. Foi nesse ponto que
acordei ejaculando nas calças e, como sempre, sentindo que alguém me
fodia.
Contei o sonho a Janov hoje e ele perguntou-me se minha atitude com as
mulheres era sempre um sentimento delas serem apenas um monte de
bocetas. Disse que não, mas depois, no meio de uma conversa, referi -me à
minha mãe como uma boceta estúpida, mas depois lembrei-me que sempre
usava aquela expressão para Susan e sua mãe e que tinha escrito aquilo
mesmo no meu diário na noite anterior. Isto tem importância. A sessão de
hoje não foi, nem de perto, o terror que eu imaginava. Eu simplesmente
não conseguia chegar a coisa alguma bem profunda e nem mesmo chorei.
Apenas umas lágrimas escassas. Isso não me agradou porque fiquei
pensando que não estava conseguindo nada. Já contei ao Janov que não
fumo mais, aliás não sinto mesmo vontade. Já não tenho mais aquela
estranha sensação no estômago quando minha mulher está fazendo
alguma coisa que antes irritava-me. Já não sinto mais aquela necessidade
de ir ter com ela para conversar fiado. Agora já vejo as nossas relações sob
um aspecto diferente. Já posso ouvir meus pais falarem sem ficar
impaciente nem sentir por eles a intolerância de antes. Não tenho mesmo
vontade de brigar com ninguém. Não sinto mesmo nenhuma disposição
para a beligerância. Claro que é ridículo dizer que não estou melhorando.
Pois já não faço mais coisas que vinha fazendo desde anos, e isso só com
nove sessões de terapia. Além disso tenho ainda muitas outras mudanças
em muitas áreas diferentes. Portanto, devo estar maluco se tenho qualquer
dúvida quanto ao meu progresso para recuperar a saúde. Isto leva -me a
especular que a pessoa "doente", mesmo quando está bem a caminho da
recuperação, não gosta de reconhecer isso porque prefere continuar
pensando que ainda está doente.
7 de março
A sessão de hoje foi um colosso. Um colosso mesmo. Não consigo lembrar -
me como cheguei àquela coisa real, mas deve ter sido depois de quase uma
hora que gastei em outras coisas. Finalmente comecei a sentir-me muito
só, a sentir a solidão. Ocorreu-me então que os filósofos, os existencialistas
e todos os outros não sabiam o que estavam dizendo quando falavam em
solidão, ou quando tentavam descrevê-la. Não há razão para todas as
complicadas expressões que usam, e que, em última análise, são apenas
merda e nada mais. Então comecei a fazer funcionar esse sentimento,
fechei os olhos, e foi aí que aconteceu alguma coisa realmente grande.
Vi-me um menininho de uns cinco ou seis anos, de pé ao lado de minha
mãe que olhava para o espelho só de soutien, com papelotes, e apertando
o espartilho. Eu fiquei ali só olhando. Depois cresci. O processo desse
crescimento era muito parecido com aquele que Walt Disney usa para
mostrar uma flor desabrochando. Em outras palavras, eu vi-me crescendo
fisicamente de repente e já era um rapazinho. Então levei a mão direita à
cintura como se estivesse analisando minha mãe. E aí procurei seus seios.
Não tanto para chupar e sim mais para esfregar meu rosto neles
procurando sempre, especialmente, enfiar os bicos nos meus olhos. Era
assombroso. Janov mandou que eu perguntasse ao garoto o que ele estava
fazendo. Perguntei mas ele não respondeu. Gritei então perguntando-lhe
o que estava fazendo como se não pudesse acreditar. Ora imagine esfregar
os bicos dos seios nos olhos. Ele não respondeu mas continuou. Eu falei
sobre outras coisas, mas sempre olhando para o que o menino estava
fazendo.
Em outras palavras, para todos os efeitos práticos, ele existia mesmo ali no
canto do quarto e ainda mais fazendo aquilo. Para mim, porém, ele estava
muito longe e eu cerrava os olhos para ver o que ele estava fazendo. Aí ele
diminuiu e voltou a ser o garotinho de seis anos outra vez. Estava sentado
em cima das pernas cruzadas, todo encurvado e com as mãos no rosto
enquanto uma torrente de lágrimas lhe descia pelas faces. Estava
literalmente chorando anos e rios de lágrimas.
Nesse ponto eu contei para Janov alguma coisa que me acontecera
centenas de vezes. Quando estava meio tonto eu via em minha mente
palavras sem sentido. Eram coisas como smplgh, oxwyong, hmply. Janov
pediu-me que lhe dissesse quais as palavras que eu via, e respondi-lhe que
elas estavam por trás de uma espécie de tela ou cortina como a cortina de
teatro. Disse-me para abrir a cortina e dizer-lhe o que via. Lembro-me que
tive medo e encontrei dificuldades para abrir. Finalmente vi umas palavras
que tentei pronunciar. Então vi um cartaz pendurado em cima do rapazinho
encurvado também com um letreiro que não entendia. Ele gaguejava e não
conseguia se fazer entender.
Durante toda essa experiência eu sentia-me num estado "altamente
imaginativo vendo e sentindo". Quero dizer que sabia estar no consultório
de Janov mas via e ouvia tudo que se passava no teatro de minha mente
embora tivesse os olhos fechados. Estava experimentando uma peça muito
simbólica e estava me aprofundando bem. Passou-se mais algum tempo
com a mesma coisa do menino chorando e eu aí também já estava
chorando. Então Janov perguntou-me o que mais eu via. Isso também foi
notável. Vi a minha velha rua cheia de gente, mas só via as pessoas como
no cinema, da cintura para cima. Era como se eu estivesse no cinema vendo
aquela gente toda andando, mas ninguém falava, todos estavam sombrios
e cansados e uns não viam os outros. Então vi por que o meninozinho não
conseguia o que queria, e que, naturalmente, era amor. Não tinha amor
porque o pai e a mãe não tinham tempo para aquilo. Todos andavam
apressados sem se dar conta uns dos outros, e o menino nada conseguia.
Janov mandou que eu lhe dissesse e que procurasse confortá-lo. Eu então
estiquei o braço direito e bati-lhe nas costas e nos ombros dizendo-lhe que
tudo era assim. Era melhor não procurar saber a razão da falta de amor.
Era mais simplesmente constatar o fato e nada mais. Procure tirar alguma
coisa boa da vida. Procure uma moça e aproveite o amor os dois juntos. E
outras coisas no mesmo estilo. Durante algum tempo falei outras coisas
com Janov. De repente o menino levantou-se e correu para mim furioso. E
corria mesmo. Parecia estar correndo desde muito anos. Fiquei nervoso,
não sei por que. Comecei a gritar-lhe que ficasse longe de mim. Dei
pontapés e estiquei as mãos para ele não chegar perto mas ele continuava.
Lembrei-me de Janov falando "desista de lutar, desista de lutar." Continuei
gritando não. E ele continuava a vir. De repente sumiu. Abri os olhos e
perguntei muito admirado onde estava ele e por que tinha desaparecido.
Janov mandou que eu o procurasse. Olhei em todo o consultório e acabei
descobrindo onde ele estava. Janov disse-me que ele estava lá dentro de
mim. Eu sabia que estava mesmo, mas não queria acreditar. Fechei os olhos
e tentei recompor o quadro para ver novamente o menino. Fiz o possível,
mas naturalmente nada consegui. Eu sabia onde ele estava e quem era. E
aí então chorei de verdade.
Tinha visto minha vida desdobrar-se na minha frente, talvez muito
simbolicamente, mas ainda assim, era a minha vida. Não podia haver
engano. Fiquei ali sentindo-me esgotado mas um pouco feliz. Aceitava tudo
o que tinha acontecido. Tudo era real. Creio que essa sessão foi um bom
passo na direção que devem seguir todas as outras sessões. Sinto-me leve
depois dela. É como se tivesse tirado um peso enorme de cima de mim.
Estava mais leve e mais livre.
Mesmo assim, ainda tenho uma dúvida de não haver enfrentado todas as
coisas terríveis que começara nos dias anteriores. O tema geral era o medo
do homossexualismo e creio que consegui de algum modo envolver-me
profundamente nesse assunto.
Passei algum tempo na praia no resto do dia, dei umas voltas e vim para
casa. Susan não está falando comigo mas isso não me aflige. Cada vez mais
dou-me conta de sua doença. O que me perturba muito é o seu egoísmo
em me apoquentar quando sabe muito bem como é importante para mim
toda essa história de Primal. E ainda assim, ela faz tudo para me contrariar.
10 de março
A sessão de hoje foi muito importante. Passei por uma coma consciente,
conforme diz Janov e que eu acho lindo. Já antes me referi a isso em outras
palavras, mas acho que "coma consciente" é a expressão certa para usar
aqui. Comecei procurando relacionar tudo que acontecera ontem. Sentia
dificuldade para despertar o verdadeiro sentimento. Comecei a sentir-me
perseguido por aquele sentimento estranho e não conseguia articular coisa
alguma. Fiquei calado durante algum tempo.
Depois então comecei a sentir o que estava acontecendo.
Primeiro, eu sabia que por baixo da raiva há uma dor que eu não queria
sentir. A raiva e o fingimento são táticas de manobras de diversão que
usamos para esconder os sentimentos reais de dores profundas ou de
sofrimentos. Na Terapia Primal nós sabemos disso porque passamos por aí
no sofá e se quisermos ficar bons não procuramos fugir à Dor ou
sentimento. Por isso eu sabia que estava com um sentimento bloqueado.
Só que não sabia como nem por que. Fiquei ali deitado e então descobri
como e por que.
Sentia necessidade de dar uma mijada. Então percebi a verdade que dizia
que tudo que eu realmente sentia era a NECESSIDADE DE ESCAPAR DO
SENTIMENTO ATRAVÉS DE UMA MIJADA. Eu não precisava mijar realmente
considerando a quantidade de líquido que ingerira naquelas doze horas e
o fato de já haver mijado cinco vezes. Assim, tudo que estava fazendo era
criar a necessidade de mijar para escapar ao sentimento de uma certa Dor
em minhas entranhas. Estava querendo expulsar a Dor pela uretra. Em
outras palavras, em lugar de trazer a Dor à superfície eu estava tentando
jogá-la fora com a urina. Aquilo era tão simples que eu estava espantado
de não haver percebido antes. Então outras coisas começaram a fazer
sentido como o fato de muita gente, durante toda a minha vida, sempre
haver indagado por que eu urinava com tanta frequência, como se
estivessem interessados pela minha saúde, ao passo que outros
cumprimentavam-me pelo magnífico funcionamento dos meus rins. Tudo
era tolice. Eu estava mesmo era mijando meus sofrimentos e dores.
Ao mesmo tempo estava acontecendo uma outra coisa. Não conseguia
respirar fundo sem engasgar e apareceu-me uma tossezinha que parecia
dos brônquios. Ora, eu sabia muito bem que não havia razão para aquela
tosse porque já não fumava havia umas semanas. Portanto, a porra da tosse
era também uma manobra de diversão que meu corpo aprendera a praticar
para desviar minha atenção das dores e sofrimentos.
Fiquei verdadeiramente pasmado. Ali deitado calmamente eu havia
compreendido tudo e estava começando a ligar algumas coisas
importantes. 1) Existe a dor; 2) Eu quero evitar senti-la; 3) Porque sentir
significa sofrimento e dor; 4) Meu corpo inventa a necessidade de mijar
como tática de diversão; 5) Assim, eu concentro toda minha força para
aguentar a urina; 6) Já agora não posso usar toda a minha força para sentir
porque preciso dela para aguentar a urina que quer sair e se eu afrouxar
vou mijar no sofá do Janov; 7) Para ter bem a certeza que toda a minha
força está sendo desviada, eu "fabrico" uma tossezinha; 8) Agora já preciso
concentrar-me para aguentar a urina e a tosse e não tenho mais força para
sentir porque, para isso, teria que deixar de controlar a bexiga e não posso
fazer isso. Assim, pus-me a salvo do sentimento transformando meu corpo
em armadilha. E fico ali deitado e assombrado com tudo aquilo.
Agora lembro-me que uns cinco minutos antes eu tinha-me sentido irritado
e tolhido. Agora lembro-me que estiquei-me todo para sentir-me melhor,
mas o que estava fazendo mesmo era ajeitar-me para ficar bem calmo. Eu
vinha me enganando através- de todos aqueles anos e ANOS! Claro que
fiquei calmo quando fiz isso, mas agora já sabia que a calma não era devido
à Dor que sentira. Fiquei ali deitado e assombrado por haver descoberto
aquela verdade a meu respeito. Fiquei ali bastante tempo, talvez uns vinte
minutos e, aos poucos, os verdadeiros sentimentos foram voltando, mas
dessa vez deixei-me levar por eles.
O sentimento dizia solidão. Janov mandou que eu contasse à mamãe e foi
o que fiz, mas ela não conseguiu fazer nada. Ficou ali com a cabeça
tristemente caída e os braços pendurados. Eu a via no meu coma
consciente. Isso durou um ou dois minutos. Aí ela começou a afastar -se
devagar. Acompanhei-a imaginando o que iria acontecer. Gritei-lhe
pedindo que esperasse. Que não fosse embora. Que voltasse. Percebia q ue
tinha os braços esticados em súplica. Ela continuou andando e desapareceu
lentamente. Então, também lentamente, umas figuras vieram caminhando
para mim. Finalmente pareciam ser Susan e sua mãe, mas depois era Susan
sozinha. Fiquei com medo e gritei-lhe que não se aproximasse. Ela veio para
bem perto de mim e minha mãe também estava bem ali. Eu respirava
ofegante e fiquei assim um minuto até conseguir acalmar-me do medo de
haver visto minha mulher surgir de onde minha mãe tinha desaparecido.
Devo dizer aqui que logo que comecei a sentir aquilo, eu também gritei
umas palavras que pareciam vir de minhas entranhas, "Não amor — doente
precisa — casei com minha mãe." Disse essas palavras algumas vezes e, de
repente, o quadro fez sentido para mim. O teatro de minha mente estava
representando para mim o fato de eu haver casado com minha mãe na
pessoa de outra mulher. Isso, naturalmente, era aterrador. Mas não
conseguia livrar-me desse sentimento nem mesmo mijando. Além disso,
quando a gente está em coma consciente a única coisa que desejamos é
senti-lo. A gente sabe que não precisa ter medo dele porque já estamos lá.
A parte mais difícil e chegar lá.
Muito bem, então aqui estão minha mãe e minha mulher, lado a lado, cada
qual dizendo como cada uma delas é maravilhosa e como gostam de mim.
14 de março
Hoje, sexta-feira, tudo foi simplesmente incrível. Eu mesmo não sei bem o
que aconteceu, mas preciso consignar tudo aqui por escrito. Em primeiro
lugar, eu contei ao Janov o que se passara comigo ontem de tarde e de
noite. Devia ser mesmo um caminho porque passei cerca de sete horas
ouvindo música clássica com rapsódias boêmias, romenas e húngaras,
sonatas de Enesco, concertos, sinfonias. Fiquei completamente perdido em
todas as peças que ouvia. Algumas vezes levantava-me e dançava ou então
caminhava em volta da sala, e outras vezes imitava o som de alguns
instrumentos. Fiquei sendo a orquestra. Estava passando por uma
experiência incrível envolvido na dimensão som/música. Não sabia de mais
nada. Algumas vezes chorava. Foi quando lembrei-me que a terapia
individual terminaria depois de sexta-feira; quando comecei a sentir-me
verdadeiramente só ali na sala com a música apenas; quando senti o desejo
de chamar alguém, mas não havia absolutamente ninguém que eu
desejasse chamar no telefone. Sentia-me muito leve e um tanto estático.
Aí chegou a Susan que trouxe com ela uma atmosfera de aborrecimento e
contrariedade. Depois disso fiquei indeciso entre muitos sentimentos
opostos: raiva, desprezo, solidão, irritabilidade, mau humor, egoísmo.
Achei que ela representava uma invasão em tudo que era meu e que
passava a ser diferente com a sua presença. Depois que ela foi para a cama
eu fiquei sentado sozinho ali no escuro olhando a cidade e depois liguei a
TV assistindo a um pedaço de um filme chamado The Gangster estrelando
Barry Sullivan por volta de 1947. Era um filme fora do comum já que nos
mostrava uma deterioração do ser humano com sua destruição pelo crime
e pelo mal. Bem bonito, mesmo.
Depois passei uma noite agitada. Cada vez tendo mais e mais comas
simbólicos, e agora são sonhos também simbólicos. Tive um incrível. Eu
estava num imenso salão de baile onde havia uma festa. Era um salão
multidimensional que devia ter pelo menos cinco dimensões, e uns três ou
quatro planos diferentes. Era uma coisa louca. É difícil encontrar palavras
que possam descrever. As criaturas todas eram muito estranhas. Havia uma
grande quantidade delas com trajes também estranhos demais. Tinha uma
pessoa que estava fantasiada de alvo com os círculos brancos e pretos e a
mosca no meio; uma outra era um coelho com o rabo embandeirado; outra
era um personagem da TV; havia um bloco de concreto que andava; um
tipo com cara de pervertido muito magro e cheio de espinhas; uma moça
cujo rosto estava desfigurado porque lhe haviam jogado ácido. E uma
quantidade mais. Eu estava vendo um mundo louco. Tinha pensado naquilo
na noite de quinta-feira. Estivera pensando como ia ser difícil voltar a um
mundo de tolices e doenças, e de gente esquisita. Via-me como um
desajustado porque era mais real, quando os desajustados eram eles. O
gigantesco salão estava cheio das loucuras da TV e do cinema. Tinha uma
moça da propaganda vestida com minissaia com um buraco na altura da
boceta e os homens vinham até ela para enfiar ali e chupar uns canudos
daqueles que se usa para refrigerantes.
Muito bem. Então ali estou eu no meio daquela loucura que é mais do que
simbólica. Vejo-me numa cama estranha com um cara ao meu lado vestido
de nababo ou príncipe indiano. Tem um turbante e está cheio de joias com
uma roupagem estranha. Sinto alguma coisa rolar para cima de mim... Viro-
me para o cara e pergunto o que é aquilo. Não posso lembrar-me o que ele
respondeu mas tenho a impressão que disse ser uma mulher. Resolvi
experimentar esticando o braço para onde deviam estar seus seios e fiquei
com uma teta carnuda na mão. Ataquei a criatura que me fazia lembrar
uma mulher gorda de Brueghel vestida numa espécie de pijama amarelo.
Aquilo parecia um ursinho de pelúcia bem macio. Agarrei-lhe a boceta com
as duas mãos e comecei a esfregá-la no meu pênis e aí acordei ejaculando.
Saltei da cama pensando que já fosse tarde e que perdera minha hora com
Janov, mas eram apenas seis e meia!
Depois que contei isso tudo para o Janov, ele tentou fazer com que eu
sentisse alguma coisa e que voltasse àquele tema de solidão. Fiz tudo que
podia mas nada consegui. Pela experiência que já tinha, eu sabia que estava
lutando comigo mesmo, mas as minhas defesas são tão sutis que é difícil
saber. Foi então que senti um estalo. Um relâmpago. E gritei: PARE DE
TOSSIR! PARE DE TOSSIR! E continuei convencendo-me para parar com a
porra da tosse que era uma forma sabida para fugir ao sentimento. E deu
certo. Comecei então a voltar à realidade. Ainda continuava a sensação de
solidão. Eu tinha a impressão que minha mente ruminava. Estava
começando a receber sinais remotos do interior do corpo dizendo-me que
havia ainda alguma coisa para ser sentida, alguma coisa muito grande, e
que, mais uma vez, eu estava usando alguma espécie de subterfúgio para
combater. Fiquei assim ainda algum tempo numa espécie de ganido até
que, finalmente, permiti que um sentimento me invadisse, ou me desse um
"banho", como sugeriu Janov. Gosto mais dessa expressão em lugar de
"mergulhar abaixo" porque ela é mais gráfica para mim e permite-me
realmente o funcionamento de minha imaginação deixando que aquilo me
"lave". Sentia uma dor aguda no coração, na cabeça e na região do
mastoide. Durante a maior parte da sessão essas dores foram se
alternando. Também senti dor de barriga. Tentei sentir alguma coisa e
fiquei com medo de vomitar por ali tudo. Agora já sabia que era realmente
ruim o que estava escondido.
Comecei a falar de sexo porque tudo na frente de meus olhos indicava um
tema sexual. Falei então de Sylvia e como aquilo tinha sido bom antes de
se tornar uma merda, e dei de falar sobre minha história sexual em geral
dizendo que eu, simplesmente, não prestava, ou então não era bastante
bom. Estava falando e falando contando uma experiência natural com
minha mulher, falando de sexo... e foi então que vi as palavras "adorando...
eu... adoro" ou coisa parecida. Mas não conseguia estabelecer a ligação.
Sabia que estava me metendo em alguma coisa grande e estava realmente
começando a ficar ansioso, mas não conseguia a ligação. Parecia estar
dizendo coisas sem nexo. Comecei então a lembrar-me dos casais casados
que conhecera em minha vida e via todos eles na minha mente, e
constatava sempre que a mulher era a mais forte, mais dominadora do que
o marido infeliz. Falei sobre aquilo durante algum tempo e depois passei
para o casamento de meus pais dizendo que ali o meu velho era sempre
quem mandava. Via-o naquele papel que muitos cínicos gostam de
representar, ou seja, manter sempre a mulher descalça e grávida. Em
outras palavras, a mulher é apenas um bocado de merda. Depois falei de
minhas atitudes com respeito a mulheres, mas continuava terrivelmente
incapaz de fazer ligações.
Então Janov fez-me falar com mamãe porque eu estava lhe contando minha
vida com ela. Percebia que ela, de certa forma, havia-me transformado
num assexuado, ou mais precisamente, havia-me desmasculinizado
tratando-me como se eu fosse menina, sempre dizendo que eu era "lindo"
e levando-me ao toalete das senhoras quando saía comigo. Janov disse-me
que falasse com ela. Eu estava falando com ela, perguntando-lhe por que
me tratara assim, quando, de repente, ela me disse que queria seu papai.
Ela sentou-se com as pernas cruzadas e de cabeça baixa com os punhos
cerrados batendo no colo e gritando sem parar "eu quero papai..." Eu fiquei
tão agitado que gritei-lhe dizendo que eu estava morto e mais outras
coisas. Ela começou a ir embora e eu a chamei de volta. Aí ela encontrou
meu pai já bem distante. Ela continuava chorando e chamando por seu pai
e pensava que ele era o seu "papai", ao mesmo tempo que meu velho
começava a despi-la, depois deitou-a e trepou em cima dela. Nesse ponto
fiquei com o estômago todo embrulhado e não queria olhar. Imaginava até
mesmo estar ouvindo o barulho de seus órgãos como se fosse um pistão
entrando num pote de mingau. Isso durou algum tempo e eu contava tudo
ao Janov. (Em outras palavras, o meu velho vinha trepando na minha velha
muitos anos antes de se casarem. Ela tinha quase 30 anos quando se casou.
Aquilo parecia indicar que ela ia ficar para tia e a única maneira de arranjar
um casamento era mesmo aquela. Pelo menos foi o que pensei.)
Nesse ponto aconteceu uma coisa espantosa. Eu vi-me sendo concebido na
barriga dela. Gritei para o Janov que eu estava sendo fabricado. De sse
quadro passei para um outro em que via mamãe e papai passeando na
avenida e sendo cumprimentados pelas pessoas que encontravam. Na
outra cena mamãe estava dizendo, "não quero..." referindo-se à criança
que trazia. O velho então diz que casa e vejo quando eles se casam. Conto
isso ao Janov. Na próxima cena ela está no hospital e nasce o menino. Só
que esse merda sou EU.
Fico pasmado, assombrado! É incrível! Até mesmo agora ainda não tenho
certeza se estava fantasiando, tendo alucinações, ou então estava em coma
consciente. Espero que a verdade esteja com o coma. Ela está gritando e
chorando. O doutor está me levantando. Como posso saber que sou eu?
Bem, estou suando da boceta de minha mãe passando pelas suas coxas
gordas. Mais ainda, nasci estrangulado pelo cordão umbilical. Mamãe está
gritando dizendo para me deixar morrer, dizendo que não me quer ou coisa
parecida. O médico grita que estou estrangulado, que sou um "bebê azul"
ou qualquer merda parecida. Na realidade, isso aconteceu.
Quando chego a este ponto fico assombrado ao perceber que realmente
consegui voltar ao meu primeiro dia. Não posso afirmar com certeza quanto
disso era o coma consciente, quanto era excesso de imaginação ou quanto
era fantasia. Mas eu quase posso afirmar, pelas outras experiências que
tive, que era mesmo o coma consciente. Uma vez, talvez duas, eu percebi
momentaneamente a intrusão de uma outra realidade. Digo "uma outra
realidade" porque o estado de coma consciente é um estado de realidade
em que me encontro no momento. Para todos os fins ou propósitos eu sou
real nele. No entanto, é bastante uma ordem incisiva "muito bem, Gary"
para trazer-me de volta à outra realidade. A intrusão dessa outra realidade
eu comecei a sentir quando lutava pela minha vida no sofá e alguma coisa
me dizia que aquilo era o sofá do consultório de Janov. Estou me
estendendo aqui porque sinto-me muito confuso com o que me aconteceu
hoje. Se é mesmo verdade que a mente é capaz de guardar lembranças
anteriores à vida consciente, então nós chegamos realmente a alguma
coisa.
De qualquer forma, comecei a lutar pela vida de uma forma frenética.
Lembro-me que esticava os braços para cima e que fazia todos aqueles
ruídos que fazem os bebês. Gritei para Janov que estava me sentindo
estrangulado e queria com aquilo dizer para os médicos que estava bem
vivo, mas as palavras eram difíceis de formar. Finalmente nasci! Já estava
respirando. Lembro-me também que estavam me segurando pelos pés, de
cabeça para baixo. Depois veio-me a calma e comecei a rir. "Consegui ...
Consegui... Consegui... estou vivo." Estava respirando bem e entrei num
estado de calma. Tentei então ligar as peças. Via-me claramente como um
filho indesejado e ao mesmo tempo desejado e como o filhinho da mamãe.
Vi retratos meus durante o crescimento, sempre junto com ela. Devo dizer
que eram retratos que ela até hoje ainda conserva em seu poder. Cresci de
uma forma sem exemplo. Antes, durante o coma, cresci verticalmente.
Agora ali eu estava crescendo na horizontal. Da cesta para o berço, para
uma caminha e para uma cama de casal. Espantoso! Numa das cenas minha
mãe está brincando com minha piroca como se fosse um brinquedo entre
seus dedos. Dei um grito perguntando que diabo estava ela fazendo e se
pensava que eu era um brinquedo. E aí então percebi que era assim mesmo
que ela me via e como pensava que eu era.
Em uma outra cena eu estou na cama e ouço na sala ao lado vozes e risos
de mulheres num jogo de cartas. Cheguei até mesmo a apontar o quarto
com o dedo enquanto falava. Todas falam de seus filhos, como cuidam
deles, como brincam com eles. Não sei como, a conversa se encaminhou
para piadas em que elas contavam como brincavam com as pirocas dos
filhos, e as brincadeiras sempre envolviam os maridos. Ouço fragmentos de
conversas e interrogações. Acho que foi minha mãe que falou que também
fazia aquilo mas que eu era muito pequeno. Não consigo lembrar-me o que
foi. Alguma coisa como o que ela faria se conseguisse encontrar o que
queria ... agora eu vejo o filme Night Games em que a mãe humilha o filho
primeiro provocando-o até ficar com o pau duro quando começa a brincar
com ele por baixo do lençol. Aí então ela arranca o lençol, zanga com ele,
dá-lhe uns tapas nas mãos e vai embora. É quando lembro-me da mesma
cena de minha mãe comigo, quando também me bate nas mãos e zanga na
sua voz anasalada de judia. Não consigo lembrar se isso aconteceu mesmo
em minha vida real, mas se não aconteceu então não posso compreender
como veio se enfiar no meu coma consciente.
Mais ou menos nessa altura eu voltei à realidade e fiquei ali assombrado
com o que me acontecera além de estar completamente exausto. Ainda
havia uma grande quantidade de pedaços flutuando. Percebi que teria de
me aprofundar ainda mais e contar a respeito de mamãe antes que me
tornasse sexualmente potente. Mas não sei ainda. Estou apenas
imaginando. Percebi que não tinha havido homens em minha vida que eu
pudesse imitar ou tomar por modelo de forma positiva. Só tinha o velho
que certamente me encheu o suficiente para eu me foder e uma porção de
operários na vizinhança que não poderiam proporcionar modelo algum a
ser imitado. Também lembro-me agora, embora não venha ao caso, que no
princípio da sessão de hoje eu falei a respeito de minha preocupação com
pensamentos de mulheres e os sonhos que costumava ter com minha tia.
Eram sonhos de sua boceta enorme que me engolia pela cabeça e que
corria atrás de mim ... Chegava a esfregar meu rosto nela ... Mas basta.
E ali estava tudo. Fiquei com um gosto amargo na boca e com a garganta
seca, como se tudo aquilo fosse bem desagradável, mas sabia que ainda
havia mais ali. Várias Observações Relativas à Terapia Primal
15 de maio
No dia sete ou oito de maio, aí por volta das dez horas da noite, tive uma
sensação de vida. Senti toda a minha existência. Aquilo durou muito pouco,
talvez uns cinco segundos. Posso chegar perto do que realmente aconteceu
dizendo que foi uma experiência hilariante, deliciosa, exaustiva e
eletrizante. Nem sei se vou encontrar palavras certas pois como poderá
uma sociedade de gente realmente sem sentimentos conseguir o
vocabulário adequado para alguma coisa que nunca experimentaram? Na
mesma hora em que senti tudo aquilo vi logo que não iria encontrar
palavras certas para contar tudo direitinho. Aí fico pensando se o problema
está no fato de não contarmos com palavras que possam exprimir os
sentimentos ou se tal problema não existe mesmo já que é inteiramente
impossível traduzir os sentimentos em meras palavras feitas pelo homem.
Para mim, o fato de sentir-me não foi apenas uma experiência íntima. Foi
uma coisa total. Estava deitado no chão depois de haver passado por
algumas sensações preliminares quando percebi que havia algo diferente
na minha coluna vertebral. Não conseguia descobrir o que era por mais que
tentasse, e Janov então perguntou-me o que era. Eu disse-lhe que me
sentia direito. E aí comecei a chorar. E chorava pela simples beleza em
sentir-me direito (integral) pela segunda vez em toda a minha vida.
Comecei a ligar as coisas e cheguei à conclusão que a outra ocasião tinha
sido no momento exato em que nascera. Não era de admirar que eu não
soubesse as palavras exatas para exprimir o que sentia. Já sentira antes
mas já lá iam quase vinte e sete anos. O que disse apenas num parágrafo
realmente levou dois meses de terapia para chegar a esse nível de
compreensão absoluta. Foram horas agoniantes de autoconfrontação, de
lágrimas e dores.
Para mim, sentir-me total era sentir exatamente onde eu estava no
universo. Abri todos os canais. Percebi logo, por exemplo, que sentia a
solidez e a força de minha área pélvica. Em outras palavras, conseguia
sentir meu corpo, o meu eu. Também senti que minha coluna estava
direitinha. É isso que quero dizer o que a gente sente quando passa por
uma experiência total. Estou agora convencido que a saúde verdadeira e
completa significa uma perfeita integridade mental ou emocional e física.
Quando posso sentir-me é porque posso também sentir tudo. Talvez o ser
humano possa desenvolver um sétimo sentido acerca dele mesmo.
Imagine-se a possibilidade dessa nova espécie de vida conseguir tal sentido
e realmente ser capaz de diagnosticar suas próprias moléstias. Desde que
fosse completamente saudável eu não sofreria as doenças psicossomáticas
ou psiconeuróticas. Conseguiria perceber o crescimento de qualquer tumor
estranho dentro de meu corpo. Poderia provavelmente sentir a
deterioração dos tecidos do estômago como um aviso prévio da úlcera. Por
outro lado, nada disso jamais aconteceria comigo desde que eu fosse
totalmente sadio e integrado.
É uma especulação sem fim. O que é triste, no entanto, é perceber como
meus pais atrapalharam tudo para mim e como os pais deles fizeram o
mesmo com eles e assim em retrocesso até o começo. Somos vítimas da
ignorância e continuamos vitimando os outros pela nossa ignorância. Sentir
a grande tragédia da espécie humana é primeiro sentir a nossa própria, é
ver ir à garra o nosso potencial; é sentir nossa dolorosa insignificância e
imaginar o que poderíamos ter sido.
Nessa mesma noite eu fui impulsionado por toda a minha existência par a
uma espécie de condição na qual senti na fração de um momento o que a
espécie poderia ser se nós todos, os seres humanos, fôssemos saudáveis.
Vi a possibilidade da duração da vida chegar talvez aos 150 anos. Vi o fim
das moléstias e vi toda a humanidade concentrada nos esforços científicos
para erradicar as moléstias. Vime livre de toda esta merda que tenho na
cabeça com ela então desempenhando o papel para que foi destinada. Toda
essa visão levou-me às lágrimas. O intelectualismo é a maldição da
humanidade. Verifiquei que a minha louca corrida atrás do saber durante
tantos anos cada vez mais me afastara dele. Quando me senti eu mesmo
naqueles breves segundos, eu senti também minha beleza, minha
majestade, minha grandeza. É um sentimento de plenitude, de plenitude
completa e então, e só então, posso eu amar outra pessoa. Aí já terei amor
para dar. Quando puder amar-me todo o tempo, eu poderei então também
amar mulher e filhos. O amor para mim significa a graça de receber e não
de desejar ou de tomar. Para mim agora tomar significa o gesto de estender
os braços num gesto de tomar. Receber é simplesmente a capacidade de
receber sem desejos neuróticos. Assim, o recebimento do amor poria um
fim imediato ao amor condicionado de forçar as crianças a representar para
os pais. Receber é simplesmente receber dos outros apenas o que eles
podem dar, sem avaliação, julgamento ou comparação. Nunca mais haveria
desapontamentos por não haver recebido bastante. Cada qual saberia a sua
posição e respeitaria a posição alheia, e todos evitariam os que pudessem
incomodar. Isto é verdade. A pessoa sadia deve se afastar das pessoas
doentes porque elas sempre podem aporrinhá-las com suas doenças.
Mas isto não é tudo. Muito importante para mim foi conseguir estabelecer
ligações com meus pais, com meus nervos, com minha respiração, com
minha bexiga, com minha tosse, e com as doenças físicas e mentais.
Durante os dois últimos meses minhas sessões primais vêm envolvendo
esses elementos, algumas vezes isolados e outras misturados. Mas e sta
noite eu juntei-os todos. Esta ligação infinitamente complexa mas
espantosamente simples veio quando eu senti tudo o que ela significava e
que isso ficou registrado em mim. Eu estava tossindo e expelindo uma
saliva muito grossa que parecia me engasgar. Meu nariz também estava
entupido e eu parecia que ia estourar. Na verdade, meu nariz estava limpo
e desimpedido, e o, que eu estava sentindo era a obstrução das narinas que
ia até dentro da cabeça que também estava cheia. Com muita dificuldade
consegui dizer o que estava sentindo. E foi "mamãe" que me saiu da boca.
Eu estava cuspindo fora todos os pedaços de merda que me vinham
sufocando a vida inteira. Eu estava escarrando merda. Para mim, essa
palavra merda significa tudo isso. Significa ser rejeitado, ser ignorado, ser
brutalizado, ser tonteado com gritos, ser espancado e ser trucidado pelas
línguas de meus pais. Tudo isso é horrível. Sentia a merda de minha vida.
Passei toda a minha vida engasgado com aquela merda que estava
tentando me sair pela boca. Quando cheguei no mundo querendo amor só
consegui merda, e isso prolongou-se por toda a minha vida. E agora eu
sentia toda aquela merda dentro de mim. Devo dizer também que a
primeira coisa que fiz naquela noite foi deixar sair. Isso é muito importante.
Antes eu tinha me contido. Relaxei-me todo. Nunca percebera o quanto
andava contraído. Logo que comecei a sentir entreguei-me
completamente. A principal razão para eu andar sempre muito teso e rígido
era que não queria deixar nada escapar por qualquer orifício de meu corpo.
Esse "nada" eram os sentimentos transformados em coisas que tinham que
sair. Agora que eu me entregara e que não saía nada, eu sentia
perfeitamente toda aquela massa de merda dentro de mim. Durante toda
a vida eu conseguia evitar que ela saísse usando todos os meios possíveis
como a tosse, o pigarro, o nariz entupido, etc. Tudo isso para que não
sentisse os sofrimentos. Agora, pela primeira vez em minha vida, aliás a
segunda, tudo estava desimpedido. Tudo estava aberto. Assim não
precisava mais gastar força e energia para me conter. Estava livre para
sentir minha merda. Claro que é uma agonia.
16 de maio
Cada dia fica mais claro para mim que quanto mais eu consigo recuperar
minha saúde, tanto mais todo o mundo pensa que há alguma coisa err ada
comigo. As roupas, as cores e as modas não são as minhas. Minha mulher
diz que esse não é o Cary que ela conhece. O mesmo me aconteceu depois
de uma sessão especialmente gigantesca. Toda a antiga tensão dissipou -se
e eu fiquei parecendo mais moço. Logo no dia seguinte começaram a me
perguntar o que havia comigo, e se eu estava doente. As pessoas parecem
estar sempre querendo se meter na vida alheia. Acham que isso torna mais
fácil na sociedade o estabelecimento mútuo de relações. Todo o mundo
está sempre tentando coligir dados e fatos sobre os outros para formar a
sua imagem, e quando os outros fazem qualquer coisa fora do figurino logo
são acusados de estarem querendo ser diferentes. O que eles estão
realmente querendo fazer é mostrar um pouco o que lhes vai por dentro.
17 de maio
Hoje comecei a fazer ligações. A primeira coisa que senti foi uma agonia
nas entranhas. Sentia que havia um grito querendo sair de lá (era o bebê
Gary, o verdadeiro Gary que queria nascer) mas eu não conseguia reunir
todo o meu ser para dar aquele tremendo grito. Só conseguia deixar sair
um forte guincho. Sentia o sistema funcionando com toda a minha força e
sentia a intensidade do grito que queria sair mas para o qual eu não
conseguia reunir a colossal energia necessária, e então sentia a ligação
mostrando-me que preferia a doença. Só o que precisava era aquele grito
com toda a força de meus pulmões para eu nascer. Lutei com isso durante
muito tempo. Finalmente levantei-me e fui para o quarto ao lado para
poder ficar só. Levantei-me porque queria ficar isolado e também porque
estava ouvindo tudo que os outros falavam com uma nova clareza
cristalina.
Ainda só conseguia fazer sair uns fios de saliva grossa e sentia que estava
cheio dela, nas tripas, na cabeça e no nariz. Sentia que era aquela mesma
merda já minha conhecida durante a última semana. Parecia existir uma
ligação que eu teria que fazer para sair aquele tremendo peso de merda e
para eu poder nascer. Eu tinha que senti-la antes de expeli-la de minhas
tripas pela garganta e pela boca. Sentir aquilo significava querer mamãe e
papai e isso significava estar doente. A doença que eu agora sentia não era
a de estar louco, mas também a sensação física de sentir-me doente por
dentro e de sentir no fundo da garganta aquele gosto revoltante de doença.
De repente eu comecei a sentir-me com a necessidade daquele grito
colossal que parecia estar se acumulando dentro do meu centro de
gravidade, bem lá no fundo do estômago. Meu corpo parecia estar
reunindo toda a força necessária e quando o grito sacudiu-me o corpo
vergou-se para frente. Continuei assim durante vários gritos, todos eles
trazendo aquela mania de querer mamãe e papai, e a sua forma era uma
saliva pastosa e grossa. Senti uma grande dor nas entranhas e continuava
a chamar mamãe e papai lá do mais profundo de meu ser e sempre que
soltava um daqueles gritos sentia aquela mesma sensação doentia de
rejeição, desespero, de não ser ouvido nem notado. Nunca tinha sentido
tanto assim pois senão teria ficado permanentemente louco. Pouco depois
disso comecei a sentir uns sinais de outro grito. Juntei toda a minha força
e quando ele saiu estremecendo-me parecia que ainda faltava alguma
coisa, e que o grito não tinha saído por inteiro chamando o Gary. Senti que
vinha aquela saliva mas ela parecia agora mais limpa e clara. E quando senti
o líquido nas mãos senti também que o grito voltava pela garganta abaixo
para dentro de minhas entranhas. O grito parecia ser um ovo, ou antes,
apenas a sua gema solta. Procurei desesperadamente trazê-lo de volta
porque ocorreu-me o pensamento que aquilo era para mim a própria vida.
Desesperei nesse ponto porque estava completamente exausto.
Dormi umas três horas e voltei ao grupo. Estava muito tonto mas sentia
que aquele grito estava querendo sair a todo momento e eu ia me sentindo
mais aliviado. Toda aquela força que usara para gritar ajudara muito a
desobstruir as passagens entupidas do nariz e ouvidos. De qualquer forma,
já sei o que há para mim: a luta para me encontrar, para nascer, para
defender a minha vida. Desde a noite passada sinto-me muito mal dentro
do corpo. As sessões primais deslocam blocos de doenças cimentadas.
A noite de sexta-feira e a manhã de sábado fizeram-me sentir realmente
toda a profundidade de minha estupidez e da doença. Sentia que só faltava
aquele grito para eu ficar mais perto da cura e não conseguia soltá -lo.
Sentia toda a minha tragédia de estar ao meu alcance a minha cura e eu,
contudo, preferia continuar doente. Vou cuidar de mim agora mesmo de
verdade. O meu instinto e a necessidade de sentir-me bom tornaram-se
muito mais afiados depois dessa experiência. Uma pessoa saudável
desejaria continuar sempre com sessões como as de sexta-feira e sábado.
Eu quero dar o fora delas o mais cedo que me for possível.
20 de maio
O grupo noturno de terça-feira foi bom para mim por ser tão doloroso. Foi
uma continuação do que eu não conseguira terminar no sábado e que vinha
desde então crescendo dentro de mim. Gritei chamando minha mãe e
continuei gritando durante toda a sessão. Dentro de mim eu sentia o
amargo desapontamento e o vazio de nunca haver sentido minha mãe dar -
me o que eu precisava. Sei que nasci precisando de tudo e quando fui
rejeitado pela primeira vez fiquei deformado para o resto de todos esses
anos.
Minhas lágrimas e gritos atingiram maior profundidade na noite passada.
Quero dizer que sentia o grito vindo de minhas entranhas. Também soava
diferente, como se fosse o grito de um rapazinho, claro! E quando senti
aquilo comecei a chorar percebendo que sou apenas um menino, uma
criança, realmente. Tudo isso dói e dói mesmo mas não há meio de evitar.
Ainda assim estou satisfeito por haver chegado até lá embaixo porque
assim senti realmente a agonia do doente que precisa de ajuda.
24 de maio
Hoje foi um dia importante porque consegui chegar ainda mais fundo com
meu grito. Os gritos foram hoje incontroláveis e vieram bem lá de dentro
de mim sacudindo-me todo. Creio que foi realmente a primeira vez que eu
consegui sentir a grande necessidade e o grande vazio por não ter o amor
de papai. Na terça-feira aconteceu o mesmo, só que era com mamãe. Os
gritos vão mais fundos, muito mais do que antes. Uma vez que a merda de
meu pai está concentrada na cabeça, o nariz fica inteiramente limpo.
Derramei todas as lágrimas que me foram sempre "proibidas", e todas
aquelas que contive durante todos esses anos explodiram finalmente. Com
minha mãe, a doença está localizada nos intestinos e isso resulta numa
tosse violenta com catarro e bile que eu vou sempre engolindo para não
deixar sair o que sinto.
Mas como chorei hoje! Era como se eu realmente nunca tivesse chorado
assim em toda a minha vida. Às vezes eu lembrava-me que era assim que
chorava quando era menino. Era assim que chorava quando queria meu pai.
Finalmente, quando fiquei mais calmo, consegui deixar que todas as peças
se encaixassem em seus lugares certos.
A sessão da noite de sexta-feira realmente levou-me a uma nova fase de
sentimentos e experiências. A segunda fase é uma maior intensidade, uma
percepção mais profunda, uma dor e um sofrimento mais nítidos, um mais
alto sentimento ou instinto desejando ficar bom, um cansaço mais geral,
um olho mais atento para fugir da loucura alheia e uma sensação mais
agradável de estar só. Creio que essa fase dois é a mesma coisa de antes
com maior profundidade, dimensão e altura. E isso significa apenas a gente
sentir-se um pouquinho melhor.
1° de junho
O fato de eu estar querendo um cigarro é para mim uma beleza porque não
preciso de outra indicação para mostrar-me que estou querendo abafar
meus sentimentos. Fico irritado e isso é uma outra indicação no mesmo
sentido. Mas na realidade, o que está mesmo ali é um grito colossal. É do
tamanho de meu corpo e é tão alto quanto todo o meu ser possa fazê -lo. O
grito sou eu e as lágrimas que querem correr são as lágrimas de anos e que
estavam guardadas. Não estou bem certo por que desejo gritar e chorar
agora, mas tenho uma sensação de ser pequenino, uma sensação de
desamparo e de falibilidade.
Durante as últimas semanas coisas estranhas estão acontecendo em meus
sonhos. Eles não são muito difíceis de lembrar mas também não tenho
certeza se alguma coisa acontece neles. Aliás tudo tem sido muito estranho
com meu sono nas duas últimas semanas. É como se eu estivesse acordado
sabendo que estava dormindo e também dormindo sabendo que estava
mesmo dormindo. É um negócio louco assim. Uma ou duas vezes acordo
(pelo menos penso) perguntando-me se estou mesmo acordado. É na
"dimensão" dessa experiência que eu venho dormindo. Estou chorando
agora porque sinto-me ainda mais louco quando escrevo isto. Mas,
realmente, parece que o sono é para mim uma coisa com dimensão na qual
funciona um novo sentido, talvez aquele sétimo sentido indefinido. Coisas
estranhas acontecem com esse sentido, mas não consigo lembrar-me de
nada.
Já por duas vezes verifiquei que sei que estou dormindo. Em outras
palavras, eu acredito que alguma coisa dentro da mente funciona quando
estamos dormindo. Talvez seja, outra vez, o tal sétimo sentido indefinido.
Eu não estava sonhando que dormia. Eu estava dormindo e aquilo era como
se eu estivesse acordado por dentro enquanto a minha parte externa
estava ali dormindo.
2 de junho
Hoje eu senti-me envolvido por um movimento, o movimento e ritmo de
alguma sensação que não conseguia explicar. Afinal, dentro de uns trinta
ou quarenta minutos, ela veio à tona. Tinha alguma coisa a ver com desejo,
nada em especial, apenas desejo. Parecia concentrar-se inteiramente em
minha boca. Finalmente esse desejo manifestou-se em voz alta. De repente
senti a necessidade urgente de chamar meus pais, chamar, chamar e
chamar. O chamado era tão forte como se a minha própria vida estivesse
dependendo de eu ser ouvido. Eu chegava a sentir meus gritos vindo de
minhas entranhas mas, mesmo assim, não sentia satisfação alguma.
Naquela fração de segundo do nada, vivendo aquilo que sentia, percebi
completamente que estava sendo ouvido. Na realidade, naquela fração de
segundo parecia que meu corpo já havia sentido o vazio, mas a minha
mente tinha que passar por três alternativas a fim de estabelecer uma
ligação: 1) Eu não podia ser ouvido; 2) Eu não era ouvido; 3) Eu era ouvido.
A número 3 foi a ligação instantânea. Eu era ouvido, mas eles não me
ouviam, eles simplesmente não estavam ligando muito. Eu digo "eles"
porque o desejo, naquele ponto da experiência Primal, não era dirigido
para o pai ou a mãe especialmente. O pleno impacto daquele
reconhecimento total provocou em mim uma torrente de lágrimas. As
lágrimas escorriam e eu respirava bem já que o nariz não estava mais
obstruído. Nesse ponto ouvi o meu grito. Para mim essa é a única
verdadeira maneira de chorar quando se chora com todo nosso ser.
Então pareceu que minha boca parecia estar funcionando. Senti uma
premente necessidade de chupar, de chupar mesmo. Aquilo era difícil de
fazer.
Comecei então a pensar se seria mesmo aquilo o que eu sentia. Janov
incitou-me e eu comecei a chupar entregando-me ao que o corpo me pedia.
O que eu estava querendo era simplesmente mamãe, ou antes os seios da
mamãe. A dor que sentia era a mesma de sempre quando sinto que a quero.
E com isso chorei. Então, na minha boca já se formava uma pergunta, "por
que ela não gostava de mim?" Eu já sentira a tremenda rejeição de não
receber cuidados, isto é, de ter o seio para mamar, de ser levado ao colo
para estar junto dos seios muitas vezes. E esta é a parte mais importante
dessa experiência: muitas vezes. Estou certo que minha mãe cuidava de
mim de acordo com o seu temperamento, mas não de acordo com minhas
exigências de criança. E ali agora, naquela noite, eu estava sentindo outra
vez aquela rejeição quando ela não me ouvia gritar. E então eu ficava ali
fazendo aquela pergunta silenciosa com a boca o mais aberto que eu podia.
Não conseguia compreender aquilo. Eu gritava silenciosamente
perguntando-lhe por que não cuidava de mim e percebia agora que o
desejo indistinto de uma hora atrás era realmente dirigido para minha mãe.
O que eu queria mesmo era os seus seios suculentos enfiados na minha
boca sedenta onde ainda não havia dentes. E ali agora, talvez pela se gunda
vez em toda a minha vida, eu estava experimentando outra vez aquele
desejo esfaimado. A primeira vez fora ao nascer, vinte e seis anos antes, e
a segunda era ali naquela noite. De uma certa forma, todos os elementos
para um perfeito reconhecimento de minha posição naquele momento
preciso estavam se reunindo. O significado de minha Primal foi para mim
um impacto vindo de trás. Era como se o significado viesse de minhas
entranhas e saísse pela boca com um grito meu dizendo que não podia
falar. Claro que meu desejo ficou em silêncio porque isso foi antes de eu
poder transformá-lo em palavras. Eu ainda não aprendera a falar. Então,
mais tarde, quando já sabia falar, já estava tão confuso a respeito de amor
que não sabia mais pedir. Foi só depois de tudo aquilo que meu desejo fez
sentido. Foi o que descobriu tudo. Senti esta noite que não podia mais
permitir-me estar pensando ser ainda uma criança, e sentia tudo que havia
de horrível naquilo.
Voltei a mim logo depois disso e fiquei ali pensando como minha vida teria
sido completamente diferente se todos os meus desejos de criança
houvessem sido satisfeitos, se minha mãe houvesse me acalentado sempre
que meu corpo pedisse...
8 de junho
Fiz com que todo o meu corpo se esforçasse para um tremendo grito ou
uma crise de choro. Já tinha feito isso muitas vezes antes, mas nunca fora
ouvido. A razão para estar repetindo aquilo ali no sábado era para não
deixar sombra de dúvida que eu tinha mesmo gritado alto bastante para
ser ouvido. E por isso o meu grito era tão longo e profundo. Se eu fosse
acreditar que tinha sido ouvido sem que eles se importassem, isso
significaria para mim a solidão, que era justamente o que estava
procurando evitar. Também, se eu abandonasse a luta isso significaria que
estava sempre só e sem ter o que queria. Isso significaria também a solidão,
seria o reconhecimento que nada havia para mim nem nunca houvera, e
que eu fora enganado pensando que poderia conseguir alguma coisa de
meus pais quando eles nada tinham para me dar.
De qualquer forma tentei. Primeiro com meu pai, numa longa agonia, e
depois com minha mãe. Nada dos dois. Com minha mãe houve um
momento em que ia verter umas gotas de urina. Depois imaginei que talvez
devesse ser esperma e aquilo fazia sentido. Outra vez, tudo que sentia era
desejá-la com meu corpo de vinte e seis anos e o desejo crescera junto com
o instinto de sexo. É por isso que sou impotente. É porque o meu pau está
escravizado à minha mãe. No meu insano desejo de seu amor, eu atirei tudo
em jogo na luta para consegui-la e aí estava incluído o meu pau.
Durante as últimas horas eu venho sentindo alguma coisa muito estranha.
Eu sei que meu corpo está doente com um resfriado, mas eu não sinto a
doença. Ao contrário, sinto-me muito bem disposto. É como se o resfriado
estivesse num outro eu e o eu verdadeiro estivesse ouvindo música e
batendo esta história na máquina. Isso nunca aconteceu comigo com
exceção da breve experiência de ontem. É como se não fosse mais preciso
exagerar minha doença pois já não há mais a mamãe para cuidar de mim.
Assim é melhor desistir e simplesmente deixar o corpo ficar doente. O meu
espírito, no entanto, não precisa ficar doente só porque o corpo ficou
ligeiramente afetado por um resfriado. Claro que ainda sou um doente.
Mas o que quero dizer é que nas duas vezes que passei pelas Primais a
minha temperatura baixou muito e eu senti-me melhor. Estou convencido
agora que todas as pequenas doenças que tive a vida inteira não teriam
sido tão sérias se eu tivesse contado com o amor desde que nasci...
Sei bem que não existe um meio termo entre saúde e doença. Ou a gente
está bem ou então ainda tem alguns vestígios da neurose. Quanto a
defesas, eu também pensei que deveria tê-las, mas agora isso já não tem
mais importância. Ninguém pode mais ferir-me senão fisicamente, e
portanto, não preciso mais de defesas. Parece que muita gente acha os
outros opressivos. Isso não é bem o que sinto. Claro que acho intolerável
muita coisa que as pessoas fazem, e também muito triste. É possível que
essa gente que fala assim goze de muito mais saúde do que eu e que
quando eu chegar ao mesmo ponto que eles estão eu também me sentirei
assim. Já posso andar bem pelas ruas. Desisti completamente de contatos
sociais. Desde que comecei a terapia a minha vida social limitou -se a umas
seis noites de cinema, um teatro, um restaurante, três visitas a velhos
amigos e três visitas aos pais. Fora disso alguns contatos esporádicos.
Quase não falo mais no telefone.
O que me aconteceu foi que já não sinto mais uma tão grande necessidade
de pessoas. Ao mesmo tempo acho muito bom simplesmente descansar e
não me aporrinhar. E isso nunca me aconteceu na vida. Por fora eu era o
Sr. Durão, o cara que não dava bola, etc. Já agora eu acho muito fácil sorrir
para as pessoas desconhecidas, um bom dia aqui e outro ali. Já senti
pessoalmente a tragédia da vida em minha família vivendo todos muito
juntos embora a quilômetros de distância com referência aos sentimentos
e pensamentos. Essa profunda tristeza traduziu-se em mim em gostar de
ser agradável e até mesmo terno.
Seja como for, quando me vejo agora, sei que não há condições de voltar.
Pode lá quem quiser dizer que a paixão por uma saúde completa é o mesmo
que uma loucura total, mas isso eu mesmo vou descobrir quem está certo.
Não voltarei de forma alguma ao que era antes em qualidades ou defeitos.
E isso inclui o fumo, as doenças psiconeuróticas, o sono em demasia e a
gordura. Para o inferno com a loucura. Para o inferno com as defesas.
14 de junho
Hoje é o último dia de minha décima sexta semana de Terapia Primal. Não
sei bem o que isso possa significar, mas sei que me sinto descansado como
nunca antes em toda a minha vida.
Na noite de terça-feira nada consegui, e quando penso naquilo depois do
que me aconteceu hoje, eu acredito que estava tentando reviver naquela
noite uma antiga Primal, qualquer uma outra Primal para chegar a uma
Primal. A semana foi muito boa apesar do resfriado. O meu eu
mental/emocional não toma conhecimento do resfriado já que isso só
acontece com o meu eu doente e irreal. Assim, esta semana foi muito boa
e também a que passou.
15 de junho
Da mesma forma que o Dia das Mães do mês passado, o Dia dos Pais hoje
fez-me sentir a mesma agonia da tragédia de minha família comigo. Não
dei a menor, atenção ao Dia das Mães como também não estou dando hoje
ao Dia dos Pais. Nada significam para mim. Se ainda fosse dos que procuram
a vingança, talvez a minha conduta fosse uma poética justiça. Eles me
foderam desde que nasci e eu agora estou tirando a forra. Mais isso tudo é
maluquice. Não existe essa história de "tirar a forra" ou de retribuir. Não
existe nada e é isso o que eu sinto, e o que me faz sofrer.
O que torna a tragédia ainda mais aguda para mim é que vejo como meus
velhos aumentaram seus esforços para me agarrarem. Desde que me casei
eles sempre aumentaram seus esforços com presentes para me manter
fixo, como se fosse uma borboleta presa pelas asas numa tábua. Primeiro
veio a declaração de minha mãe dizendo-me que nunca esquecesse que a
casa deles continuava sendo minha. Depois foi quando, em verdade,
sentiram-se na obrigação de me escreverem uma vez por semana quando
eu fui para os Corpos da Paz, e isso quando haviam passado toda vida deles
sem me escreverem uma linha quando eu estivera longe deles. Agora já
recorrem aos presentes de dez dólares no meu aniversário ou no de Susan,
e de cinquenta para quando mudamos de casa. Merda. Tudo isso, no modo
de pensar deles, é simplesmente para mostrar-me o quanto se preocupam
comigo e como se preocuparam a vida inteira. Assim, não conse guem
compreender por que, nos últimos três meses, eu não os visitei mais nem
mesmo telefonei. Creio que gostariam se eu me sentisse culpado.
Mas agora já é muito tarde para isso e para uma porção de outras coisas.
Já não tenho mais condições para julgar-me culpado depois de tudo que
venho fazendo aqui com Janov em horas de agonia na intimidade de minha
mente perturbada. O que eu sinto, e o que tive que sentir para poder ficar
bom, foi o vazio que era a minha recompensa por tudo que fazia para
conseguir o amor de meus pais.
Assim, quando chegamos a alguma coisa como agora, quando os filhos,
moços e velhos, estão "honrando seus pais" isso não faz mais sentido. No
meu caso, seria uma coisa insensata continuar no meu desejo neurótico do
amor de mamãe e papai. É uma futilidade. Não posso honrar meus pais nem
tampouco respeitá-los. Posso aceitá-los pelo que sempre foram comigo,
sem amor e sem cuidados. Mas também compreendo que eles sofreram o
mesmo que seus pais. Só que eles não percebiam, eram estúpidos e
desprovidos de insight. Portanto não posso culpá-los por isso nem
tampouco odiá-los. Não posso culpá-los por coisa alguma que tenha
acontecido desde o dia em que tive o verdadeiro insight, porque daí em
diante, a responsabilidade de conservar-me com boa saúde passou a ser
minha. É por isso que esses dias são tristes porque lembram-me a grande
mentira que me pregaram, aos meus irmãos e a toda a humanidade.
Simplesmente não há nada. Nada mesmo. E eu sinto-me feliz por ter a
liberdade de sentir esse nada. Se eu ainda estivesse muito doente, não
estaria lutando assim por todas essas coisas, por um amor que nunca
existiu. Não há nada que seja muito desagradável. Nada mesmo.
12 de julho
Hoje termino vinte semanas de terapia. Não me sinto disposto a escrever
uma conclusão a meu respeito nem tampouco alguma coisa que possa
servir como testemunho, mas sempre há uma coisa que gostaria de dizer a
respeito. Há vinte semanas eu estava num ponto de minha vida que era
uma verdadeira confusão. Já contei aqui neste diário o que se passou
comigo. Hoje, quando me vejo e sinto o que sou, não posso deixar de dizer
isto.
1. Eu estou quase completamente livre de comportamentos compulsivos.
Não fumo mais, deixei de comer em demasia e nunca como entre as
refeições. Nunca cheguei a roer as unhas ou beber em demasia e, portanto,
isso não era problema. Deixei, no entanto, de beber vinho às refeições.
Houve um tempo que pensava que isso era "bem".
2. Raramente fico zangado. Antes eu zangava-me com todos que se
aproximavam de mim, fossem eles inspetores de tráfego, professores,
médicos, guardadores de carro, atendentes de bombas de gasolina, etc.
etc. Brigava para valer por qualquer motivo, ou sem ele, até os vinte anos.
Fazia questão de andar de cara fechada e de usar linguagem suja à menor
provocação. Hoje posso considerar-me praticamente tímido, e isso
começou com apenas duas semanas de tratamento. Não tenho nem mesmo
vergonha de usar essa expressão, pois sou realmente uma pessoa bondosa.
O meu trabalho coloca-me em contato com gente irritada que gosta de
brigar e de xingar, mas eu mantenho-me impassível. Isso, para mim, é uma
beleza.
3. Fico um pouco aborrecido quando não demonstro meus sentimentos.
Aliás, a verdade é que essas ocasiões são tão raras que já nem me lembro
quando foi a última vez. Mas antes, era assim que eu estava o tempo todo.
Acordava assim e na hora de dormir ainda estava pior. Muito raramente
tinha um dia alegre. Agora, todos os meus dias são alegres. Não é coisa
forçada e sim muito natural. Acordo logo cedo, sem despertador, e chego
até mesmo a sorrir para minha mulher. Já chego até a cumprimentar as
pessoas que encontro e até mesmo a sorrir. Para outros isso pode parecer
natural, mas para mim e para minha mulher é uma simples maravilha.
4. Sou muito proficiente, ao contrário de eficiente já que deixo isso para as
máquinas, nas minhas atividades diárias. Em outras palavras, não tenho a
cabeça cheia de maluquices nem nada nas tripas que me leve à loucura.
Posso trabalhar oito horas por dia em qualquer lugar. Posso acordar tarde
se quiser, e posso voltar para casa mais cedo se quiser. Meu trabalho é
importante e sou talvez o único no meu ramo que pode fazer isso. O curioso
é que quase ninguém compreende o que eu faço, mas eu já perdi
completamente aquele zelo neurótico de sair contando para todo mundo o
que faço, e quer compreendam ou não, o problema não é meu. Minha
proficiência estende-se a outras áreas fazendo coisas aqui e ali e dando
conselhos quando me pedem.
5. Minha vida está bem ordenada e estável, ao contrário de bem
organizada. Isso pode parecer estranho, mas "bem ordenada" significa que
gozo a vida e faço o que bem entendo. Antes tudo que era meu era
atrapalhado e confuso. Agora não gasto mais tanta energia. Isto é
realmente uma forma de auto conservação. Cuido de mim porque sei que
valho e porque gosto de fazê-lo.
6. Sou, "naturalmente", mais inteligente com maior frequência. Isso pode
parecer convencimento, mas eu antes "pensava" que era esperto e hoje sei
que eu represento a minha inteligência. Assim não preciso entupir a cabeça
com informações a não ser que esteja interessado no assunto. Nesse caso
eu tenho uma certa esperteza natural. Aliás minhas leituras diminuíram nas
últimas vinte semanas para apenas 3 romances muito bons. Antes eu era
conhecido pelo meu apetite insaciável de leitura. Era comum devorar três
ou quatro livros por semana.
7. Não tenho nenhuma atividade social e o que gosto mesmo é de ficar
sozinho. Antes eu não conseguia isso e até chegava a considerar a solidão
como uma boa maluquice. Isso tudo mudou. Gosto de ficar só. Para mim é
o máximo. Quanto mais me adianto na terapia mais aprecio a solidão. Antes
a solidão para mim significava ficar só em casa lendo um livro, mas agora
nem isso é preciso. Fico inteiramente só e gosto. Não tem leituras, nem
discos nem TV. E é bom.
8. Gozo uma saúde física total porque estou isento de tensões. Antes eu
estava sempre às voltas com doenças. Todos os anos tinha na certa
resfriados sérios e bronquites. As dores de cabeça semanais eram
constantes. Já não tenho mais nada disso depois que comecei a terapia. É
possível que de repente me apareça uma dorzinha de cabeça, mas é só
descansar um pouco e ela já passou. Também tinha uma hiperacidez
gástrica constante e muito dolorosa. Já estou completamente livre disso a
não ser raras sensações de azia depois de tomar suco de tomate ou laranja.
Já não tomo mais remédios para isso quando antes tinha sempre um bom
estoque no bolso.
9. Sinto-me geralmente alerta percebendo tudo com muita clareza. Isso
pode ser uma continuação do n.º 6, mas o que quero dizer é que presto
muita atenção ao que se fala em volta de mim. Posso logo perceber o perigo
em qualquer conversa. Quando me sinto bem eu mesmo quase tenho as
qualidades de um vidente. Isso não quer dizer que eu viva planejando
golpes. Eu simplesmente percebo o que se passa em torno de mim.
10. Sou uma pessoa delicada e gosto de coisas delicadas. Nunca fui assim e
nada me parecia delicado. Agora eu gosto realmente de cuidar de flores e
de vê-las crescer, gosto de ouvir o riso das crianças na rua. Gosto de fazer
festa a cachorros. Antes só dava alguma atenção à vida humana. Só com
vinte e cinco anos tive o meu primeiro gato. Tenho perdido muito do que
era irreal em mim e estou fazendo com que surja a parte real.
11. A vida não é só de lutas. Antes ninguém me convenceria disso. Para
mim agora, a vida não é mais ganhar uma luta ou uma batalha. Ela consiste
em abrir mão da luta e da batalha. Sempre que quero lutar começam a
aparecer as dificuldades. Só o que tenho a fazer é ser o que sou e a vida
será sempre bela a despeito dos altos e baixos.
Isto é mais ou menos tudo o que quero deixar escrito, é possível que
alguma coisa aqui precise de maiores explicações. Tudo que sei é que eu
compreendo muito bem. Escrevi tudo sem muita consciência do que estava
fazendo, ia escrevendo o que me vinha à cabeça. Não uso meias palavras.
O meu primeiro passo, talvez, foi sair andando nu e se estou ainda
parecendo um pouco irreal é talvez porque sou mesmo. Mas qualquer que
seja a irrealidade que eu ainda tenha, há um novo sentido de
inevitabilidade em minha vida, a qual levará ao fim toda a irrealidade. Não
há nenhuma maneira de desmentir o que disse: a Terapia Primal salvou -me
a vida como também não tenho meio algum para provar aos outros isso.
Toda a questão de provas, aliás, não tem razão de ser. É bastante eu saber
que minha vida foi alterada para melhor porque é uma vida mais real cada
dia que passa, devagar mas seguramente. E sei também que é mais real
porque quanto mais sinto o mau, o podre, o feio e o desespero, mais me
sinto bom, puro, belo e amável. Nunca a dialética foi tão apropriada como
nesta terapia.
13 - A RELAÇÃO DA TERAPIA PRIMAL COM OUTROS
MÉTODOS TERAPÊUTICOS

A Terapia Primal é uma estrutura conceituai formulada para explicar um


fenômeno que ocorreu em meu consultório. Eu acredito que ela seja uma
teoria singular e não alguma extensão de outra já existente, embora se
possa encontrar aspectos da Teoria Primal em outros métodos
psicológicos. O objetivo deste capítulo é comparar brevemente a Teoria
Primal com algumas outras técnicas. Não tenho a intenção de me alongar
muito nas outras teorias e sim apenas discutir certos aspectos de alguma
que tenham bastante uso ou aceitação. Os conceitos de insight e
transferência merecerão tratamento especial, já que representam algum
papel em certas terapias.
A Escola Freudiana ou Psicanalítica

Em certos aspectos, a Terapia Primal fechou um círculo voltando ao Freud


primitivo. Foi ele quem destacou a importância das incidências de neuroses
na mais tenra infância e também quem compreendeu a relação existente
entre os sentimentos reprimidos e as aberrações mentais. Foi ainda Freud
quem focalizou sistematicamente a introspecção e quem mostrou a
importância dos processos internos no que eles afetam o comportamento
ostensivo. Sua explicação dos sistemas de defesa ainda são notáveis marcos
de contribuição no campo da psicologia. Infelizmente, os neofreudianos em
suas tentativas para melhorar Freud transferiram a ênfase da tenra infância
para as imediatas funções do ego. Aquilo que é agora considerado como
progressiva pelos neofreudianos, é visto como regressivo em termos
Primais.
Freud sempre destacou em todas as suas exposições que a análise cuidava
dos derivativos do inconsciente onde estavam incluídas a livre associação
e a análise de sonhos. Creio que podemos logo ir diretamente ao
inconsciente sem ter que examinar qualquer material derivativo. Aliás, o
exame de matéria derivativa parece prolongar a terapia sem necessidade.
Por ser um método muito direto, a Terapia Primal permite reduzir
consideravelmente o período terapêutico. Quando os psicólogos analistas
envolvem os pacientes na análise de seus sonhos ou de suas associações
mentais enquanto estão ali deitados no sofá, eles estão fazendo
exatamente aquilo que não deixa eles enfrentarem os seus sentimentos.
Por exemplo, o sonho pode mostrar que um paciente alimenta uma
hostilidade inconsciente contra a mãe ou tem medo do pai, e isso é
apontado pelo terapeuta. Mas o que ele não faz, na minha opinião, é
permitir que o paciente se torne possuído de raiva que o faça gritar
inteiramente descontrolado. Nos moldes freudianos isso seria considerado
como conduta desintegradora. Eu creio o contrário, que é integradora já
que integra os sentimentos inconscientes da pessoa de volta ao seu sistema
consciente.
Eu acho que é inválida qualquer espécie de análise. Quero que fique bem
claro o que quero dizer exatamente quando falo da análise freudiana de
material derivativo. Vamos pensar novamente no paradigma Primal. Existe
uma necessidade ou sentimento que não pode ser percebido ou que não
tem coragem para isso. Está bloqueado e o que aparece é alguma coisa
simbólica, um pensamento ou ato substituto. A análise do material
derivativo é uma análise desse domínio simbólico e pode ser evitada numa
trapalhada sem fim de símbolos como os sonhos, alucinações, falsos
valores, ilusões, etc. Graficamente seria representada assim:

Vamos então pensar nisto nos termos mais simples. Temos um sinal de
fome, e o símbolo que surge na consciência é um pensamento de alimento,
algo que virá satisfazer essa necessidade. A mente automaticamente
apresenta os símbolos corretos ao corpo para que a necessidade seja logo
satisfeita para garantir a sobrevivência. Mas vamos então supor que seja
proibido pensar em "alimento". Então a pessoa, por medo ou pela dor é
obrigada a substituir por um outro pensamento, por uma ideia simbólica. É
obrigada a substituir alguma coisa irreal para consciente, porque a sua
necessidade real ainda existe, mas está bloqueada.
E o mesmo acontece com a necessidade de amor. A criança sente
necessidade de ser aconchegada, de que se fale com ela, mas cedo aprende
que não vai ser amada. A necessidade está lá e deve ser satisfeita de
qualquer maneira. E então a criança substitui. Ora, qualquer substituto,
desde que não seja real, tem que ser simbólico. A necessidade bloqueada
será simbolizada por sonhos, ilusões, manias, atividades, etc. Todos esses
símbolos originam-se na necessidade- sentimento. Algumas vezes, quando
já não há mais possibilidades de satisfação, a pessoa pode tentar liquidar o
sentimento por meio do álcool ou das drogas, embora os dois ainda sejam
atos simbólicos resultantes da necessidade. Tratar da bebida ou das drogas
sem levar em conta a necessidade é exatamente o mesmo que tratar dos
sonhos sem levar em conta as necessidades do corpo.
Estou afirmando que tratar de quaisquer derivativos simbólicos é uma
inutilidade, e é isso que tornou a psicanálise uma coisa tão demorada e
agoniante. Já é tempo de mergulharmos através dos símbolos, de chegar
até à necessidade, e com isso encurtar a terapia talvez por anos, para que
as pessoas fiquem curadas.
Uma das implicações centrais do que disse acima é que os testes de
projeção são desnecessários, exceto em casos muito raros. Quero me
referir aos testes de Rorschach, ao de Percepção Temática, etc. Todos são
testes de projeção simbólica. Depende do ponto de vista teórico do
psicólogo o teste que escolherá. Se ele for da escola de Jung verá uma
coisa; se for de Freud, uma outra; de Adler, ainda outra. É tudo uma
questão de palpite, quaisquer que sejam o número de anos que
procurarmos para tornar válidos nossos testes, porque estamos inferindo
um sentimento de um outro ser humano, e é somente ele, o paciente, que
sabe qual é.
Uma importante diferença entre as perspectivas freudianas e as Primais
gira em torno do conceito do sistema de defesa. A opinião analítica indica
que o sistema de defesa é necessário e saudável. Assim sendo, dificilmente
encontraríamos um terapeuta freudiano forçando uma penetração e
explosão dessa estrutura de defesa para liberar totalmente os sentimentos
inconscientes. Em lugar disso, todos os sentimentos que surgissem seriam
incorporados, explicados e finalmente compreendidos dentro da estrutura
teórica de Freud. O significado do sentimento seria, dessa forma, extraído
de alguma coisa completamente pessoal e abstraído em alguma coisa
conceituai. É por isso que não há interpretação na Terapia Primal. Os
sentimentos que vão subindo contêm seus próprios significados.
A opinião Primal é que não existe um sistema de defesa que seja saudável.
Todos eles são doenças. Isso não quer dizer que não se busque os
sentimentos na psicanálise, mas eles geralmente não são os Primais que
podem convulsionar os pacientes. Quando um paciente exibe essa espécie
de "histeria" em psicanálise, isso é geralmente considerado como um
rompimento das defesas, e logo se adotam medidas para reparar o sistema
em lugar de fazer com que o paciente mergulhe ainda mais na "histeria".
Os freudianos acreditam que existem certos instintos agressivos ou
destrutivos em nós que tornam necessário estabelecer controle e equilíbrio
para que a pessoa possa funcionar socialmente bem. Trabalhando dentro
de tal estrutura, seria inconcebível para um terapeuta freudiano soltar as
rédeas a essas forças "destrutivas". E no entanto, o terapeuta Primal
desperta esses sentimentos exatamente para que o sistema de defesa
controlado se esfacele. Nesse ponto as duas teorias são antagônicas, pelas
razões já expostas acima.
Michaels resume assim o ponto de vista psicanalítico: 26 "A medicina está,
aos poucos, abandonando o mito da pessoa normal... somos todos
relativamente neuróticos. Os princípios básicos de psicanálise afirmam que
o conflito é a essência da vida e que as renúncias instintivas são o preço
que se paga para sermos seres humanos e civilizados."

26
Joseph H. Michaels, "Character Structure and Character Disorders" American Handbook of
Psychiatry (New York: Basic Books, 1959) Silvano Arieti, ed .
Michaels segue parafraseando Alexander Pope, "Ser neurótico é ser
humano." Também Levine acredita nisso quando diz "A normalidade... não
existe." 27 O ponto de vista Primal é que a normalidade está muito na ordem
das coisas e que a anormalidade é uma perversão e distorção desse estado
natural livre de tensões ou ansiedades. Esse é o cerne da diferença. A
psicanálise exige um sistema de defesa porque afirma a existência de uma
ansiedade básica que precisa ser defendida. Já isso não acontece com a
Teoria Primal pois desde que não haja ansiedades básicas não haverá
também necessidade de defesas.
Wilhelm Reich

Em 1942 Reich escreveu: "A neurose não é, de forma alguma, apenas a


expressão de um equilíbrio psíquico perturbado, e sim a expressão de um
distúrbio crônico do equilíbrio Vegetativo e da mobilidade natural." 28
Ele explica que a rigidez muscular não é simplesmente o resultado de
repressão e sim que representa a parte mais essencial desse processo.
"Sem exceção, os pacientes informam que atravessaram períodos de suas
infâncias em que aprenderam a suprimir seu ódio, ansiedade ou amor por
meio de certas práticas que influenciavam suas funções vegetativas, e que
eram sustentar a respiração, tensão dos músculos abdominais, etc." Reich
está mostrando que a neurose não é apenas um acontecimento físico e sim
que todos os acontecimentos psíquicos também são biofísicos.
O importante acerca de seu método é que ele acreditava ser possível atacar
essa estrutura biofísica também fisicamente: "É possível evitar o método
indireto através das manifestações psíquicas para atingir diretamente os
afetos partindo da atitude do corpo. Se isso for feito, o afeto reprimido
surge diante da lembrança correspondente." Assim, muitos são os
terapeutas da escola de Reich que hoje estão cuidando principalmente de
certas manipulações físicas que aliviam as tensões do corpo, e um paciente
que passou por isso contou-me que tais exercícios frequentemente

27
Maurice Levine, Psychotherapy in Medical Practice , N. Y.
Macmilla (n , 1942) 28 Reich, op. cit.
aliviavam as tensões. Como, porém, não eram acompanhados por uma
ligação mental, eles não tinham efeito duradouro.
Não obstante, a teoria de Reich tem muitas coisas importantes a dizer
acerca dos aspectos físicos da neurose. Mais tarde, Reich enfeixou uma boa
parte de sua teoria num exótico conceito sexual que muito o desacreditou
aos olhos de certo setor da comunidade científica, mas se dermos certos
descontos à sua inclinação sexual, verificamos que Reich chega muito perto
do ponto de vista Primal. "Somos levados a lembrar a perda da
espontaneidade nas crianças, o primeiro e mais importante sinal de uma
final supressão sexual na idade dos quatro aos cinco anos. Quando isso
acontece é sempre primeiramente debaixo de uma sensação de 'ficar
morto' ou de 'ser emparedado'. Mais tarde, essa sensação de morto pode
ser em parte disfarçada por uma compensação no comportamento psíquico
como hilaridade superficial ou sociabilidade sem contato." Eu acredito que
Reich está falando acerca do começo da neurose. O que ele diz é o que eu
atribuo à Cena Primal, e até mesmo a idade é a mesma nos dois casos.
O principal foco para Reich situou-se na tensão abdominal. "O tratamento
da tensão abdominal tornou-se tão importante em nossos trabalhos que
hoje não compreendo como foi possível conseguir curas de neuroses,
mesmo parciais, sem primeiro conhecer a sintomatologia do plexo solar."
Prossegue para mostrar como a tensão abdominal produz respiração
deficiente e como, em ocasiões de pavor, as pessoas suspendem a
respiração por meio da contração abdominal.
O que Reich acreditava era que a redução da respiração reduzia também a
absorção de oxigênio, permitia menos energia ao organismo e assim, no
seu raciocínio, aliviava a tensão. Embora eu não tenha muita certeza que
isso aconteça assim, acho que não devemos esquecer dos importantes
insights de Reich quanto à relação existente entre a respiração e a neurose.
Sempre que vejo um paciente pela primeira vez, procuro automaticamente
localizar de onde vem a sua voz e como ele respira.
Citei Reich porque acredito que com o passar do tempo a psicoterapia vem
tendendo a desprezar o corpo e a sua contribuição para a neurose. Como a
neurose é muitas vezes um fenômeno incorpóreo (um split partido do
corpo) nós a tratamos como se realmente fosse somente alguma coisa
incorpórea e mental. Assim, vamos encontrar o foco na associação de ideias
nas terapias de condicionamento ou a substituição de ideias na terapia
racional. Acredito, no entanto, que os adeptos de Reich dos dias de hoje
talvez tenham errado na direção oposta, isto é, que há uma tendência para
se desprezar os processos cerebrais quando se procura aliviar as tensões
físicas. O ponto de vista Primal é que o organismo é uma unidade
psicofísica. Qualquer método, para ser duradouro e bastante eficaz, deve
levar essa unidade em consideração.
Assim, as minhas objeções às várias técnicas como a terapia de toque, de
movimento de corpo, de natação, todas elas com o fim de "liberar" o corpo,
seriam as mesmas que se encontram na terapia de Reich. Eu diria que
qualquer método físico implicitamente prolonga o processo neurótico por
uma técnica em que as ligações mentais são ignoradas ou, pelo menos, não
são consideradas importantes, e em que o corpo é visto como entidade
separada da mente. Eu não acredito que seja possível libertar o corpo,
exceto temporariamente, enquanto existirem dores primais
profundamente ocultas que produzam uma contínua tensão física e mental.
Qualquer tentativa física para fazer isso eu considero simbólica, e já dei
antes aqui um bom exemplo disso.
Eu quero insistir que a mente não pode se livrar de lembranças dolorosas,
que envenenam todo o sistema, por meio de exercícios destinados a tornar
o corpo mais fluido e integrado. Essas lembranças, funcionando num nível
abaixo da consciência, continuam a enviar impulsos para o resto do
organismo prevenindo o perigo, e na minha opinião, esse perigo continuará
até ser sentido e resolvido. Nesse ponto haverá um relaxamento
verdadeiro e os exercícios corporais podem então ajudar. Eu também tenho
as mesmas objeções aos métodos que esperam limpar a mente obrigando
a pessoa a ter pensamentos "saudáveis." Será possível ignorar as
lembranças primais e substituir por pensamentos "alegres", mas isso não
erradica a Dor. No esquema Primal a ligação não só é desejável como
também essencial.
Quando enfrentamos uma neurose devemos ter sempre em mente a
etiologia. O que é que torna uma pessoa tensa anos e décadas seguidas
sem descanso? Hábito? Uma reação condicionada? Talvez, mas acho que é
mais complicado do que isso. A tensão é o sinal de um sistema em
funcionamento tentando resolver as necessidades do corpo. O sistema é
insuficiente, na melhor das hipóteses, já que segue tentando de forma
imprópria sem jamais entender bem que nunca vai resolver o que é
necessário. É com essa rede entrelaçada que devemos tratar e não com
suas partes somente, como os braços e pernas na terapia da dança, ou na
fala com a terapia da palavra, etc. Devemos compreender que uma cabeça
abafada, por exemplo, pode muitas vezes ser a pressão do corpo focalizada
em certa área. Temos que cuidar da pressão, ou então a pessoa será
obrigada a passar o resto da vida assoando o nariz para tentar aliviar a
pressão da cabeça.
A Escola Behaviorista ou de Condicionamento

As técnicas de condicionamento estão ganhando sempre maior


popularidade entre terapeutas, especialmente nos hospícios e nas
universidades. Sem qualquer tentativa para explorar a vasta literatura
nessa área, eu apenas discutirei por alto o método de condicionamento . A
ideia principal é que os problemas emocionais são o resultado de adversas
condições de educação. Diz-se que a neurose é fruto da falta de instrução.
Assim, por motivos de recompensa ou punição, neurótico aprende certas
reações ou hábitos impróprios e eles tendem a se tornar mais fortes com o
tempo. Andrew Salter, em seu livro Condition Reflex Therapy, afirma:
A falta de ajustamento é falta de condicionamento e a psicoterapia é o
recondicionamento. Os problemas do indivíduo são o resultado de suas
experiências sociais, e quando modificamos as suas técnicas de relações
sociais, nós também modificamos a sua personalidade. Não queremos dar
ao indivíduo um conhecimento estratificado de seu passado a que
chamamos "sondagem".
O que desejamos é dar-lhe um conhecimento reflexo de seu futuro a que
chamamos "hábitos".
Essa afirmação de Salter parece representar a opinião geral de muitas
escolas de condicionamento, embora haja entre elas muitas diferenças.
Essencialmente parece ser que aprendemos a ser felizes aprendendo os
hábitos emocionais, da mesma forma que aprendemos a ser infelizes. Esse
método depende muito de como as pessoas funcionam. Um funcionamento
adaptativo, eficiente e produtivo seria um índice de saúde emocional. Já
discuti antes o funcionamento, mas torno a afirmar que ele pouco informa
quanto aos sentimentos da pessoa ou tampouco se ela sente enquanto está
funcionando. Pacientes que sempre funcionaram muito bem em termos de
posição, status, e renda, diziam que se sentiam "mortos" e que tudo que
faziam era desprovido de sentido, pois apenas movimentavam-se. Assim,
embora eles pudessem haver sido mecanizados na infância por duas
máquinas de condiciona- mento — seus pais — que premiavam o
comportamento neurótico e puniam o "bom'', a Dor que isso produzia não
pode ser destruída pela alteração da rota do sintoma ou do
comportamento superficial. Na minha opinião, ela não desaparecerá com
uma modificação na saída.
São inúmeros os exemplos que podemos citar da terapia de
condicionamento. Um deles é um hospício que adotou o seguinte método
para os alcoólatras: Montam um bar e toda vez que um paciente bebe um
gole recebe um choque elétrico doloroso e a corrente vai aumentando até
que ele cuspa fora a bebida em uma bacia que está na sua frente, e então
a corrente é desligada. A ideia é colocar um certo "mau" comportamento
ao lado de um estímulo desagradável e com isso expulsando o hábito
indesejável.
Uma outra variação de condicionamento negativo é mostrar uma série de
cartões a um grupo de homossexuais. Em alguns deles há fotografias de
homens nus. Toda vez que um deles vira um desses cartões logo recebe um
choque. Espera-se que a vista de homens nus torne-se então dolorosa e
desagradável o bastante para evitar o homossexualismo. Na Inglaterra já
se tentou um método de condicionamento positivo com homens
homossexuais. Faziam com que eles se masturbassem até o ponto de
ejaculação, e nesse momento exato surgia uma fotografia de mulher nua.
Com isso esperava- se associar com as mulheres o prazer sexual
expulsando-se as anteriores tendências.
Essas experiências são baseadas na presunção que as pessoas aprendam
novos hábitos por associações agradáveis ou desagradáveis. Embora se
possa considerar como razoável presumir que as pessoas pratiquem as
coisas que são premiadas e cessem as que não são, esse método omite o
dinamismo que está por trás do hábito neurótico. No caso do homossexual,
por exemplo, parece que não se leva em conta a tremenda negação do
amor e a grande necessidade de carinhos. Em lugar disso o pacient e é
castigado para não ter o que quer, e isso só serve para aprofundar a
neurose. Eu penso que as técnicas de condicionamento só trarão aumento
de tensão e talvez sintomas mais sérios.
Não acredito que se deva tratar as doenças cuidando apenas dos sintoma s.
Para tratar da neurose nós precisamos cuidar das necessidades. A tensão
também não é levada em consideração nos métodos de condicionamento.
O método Primal é diferente dos outros. Em lugar de encarar os temores
da pessoa como entidades, a Terapia Primal acredita que o medo está na
pessoa.
A Terapia Primal cuida de processos internos ao passo que os métodos de
condicionamento só cuidam do comportamento ostensivo. Assim um medo
atual é considerado pela Terapia Primal como emanando de alguma coisa
histórica. Quando se trata de fobia, a Terapia Primal indica que o
sentimento, que pode ser o medo neste caso, é sempre real enquanto o
contexto é simbólico. A pessoa pode ter medo não realmente de altura, por
exemplo, mas de alguma coisa que não compreende. A terapia de
condicionamento trataria do sintoma apresentado, que era o medo de
alturas, e tentaria fazer com que a pessoa ficasse mais tranquila em tais
situações. A Terapia Primal tenta mostrar a ligação certa com o medo. Eu
creio que é essa ligação que elimina o medo generalizado e a necessidade
de procurar substitutos.
Implícito em alguns dos métodos de condicionamento temos a presunção
que o homem seja mais ou menos uma máquina cujo comportamento pode
ser fixado ou modificado por manipulação externa sem a intervenção da
consciência. As técnicas de exercícios na vida escolar ou militar parecem
ser uma extensão dessa filosofia. A ideia é que a neurose pode ser alterada
permanentemente mesmo que a pessoa não imagine o que possa ter feito
nascer o seu comportamento irracional ou as condições que puseram um
fim a ele. Além de discordar em terreno psicológico, eu quero me ocupar
da proliferação e aceitação das atuais técnicas de condicionamento. Essa
ideia de considerar os seres humanos como simples unidades que podem
ser manobradas de qualquer forma faz parte de um Zeitgeist, parte da
desumanização do homem, onde os sentimentos, os propósitos e a
inteligência são apenas considerações secundárias na ânsia de se conseguir
resultados. Eu acho que o tratamento mecânico dos seres humanos faz
parte da doença atual e é o que causou originalmente a neurose. O meu
medo é que a psicologia possa ser absorvida pela mecanização social
generalizada onde os efeitos sintomáticos sociais e pessoais, como os
protestos estudantis, são eliminados por técnicas de punição sem que
ninguém se preocupe em indagar a razão.
Para compreender os sintomas nós temos que sondar as causas. Devemos
lembrar sempre que os seres humanos possuem a história de suas vidas.
Talvez parte do problema esteja no fato das técnicas de condicionamento
terem funcionado em animais e que daí foram extrapoladas para os
homens, sem levar em consideração que eles não são animais.
Acho que a teoria do condicionamento teve uma importante função na
história da educação e da psicologia, ou seja, na área da instrução. É certo
que há determinadas condições que facilitam ou inibem a instrução e seria
bom se tivéssemos uma teoria para isso mostrando como as pessoas
aprendem, sob que condições, em que idade. Não creio, porém, que o
ensino possa fazer justiça à complexidade do processo neurótico. As
necessidades são tanto físicas como mentais, e não vejo como elas podem
ser ignoradas e ainda assim permitir que alguém sinta estar realmente
fazendo alguma coisa pela neurose. Eu vejo o processo neurótico como
totalmente psicofísico, ao passo que o processo da instrução é
primordialmente mental. Assim, as manipulações do sistema mental
apenas não podem qualitativamente alterar o sistema, psicofísico.
A Escola Racional
O método racional é a última criação de Albert Ellis. A sua terapia não é
geralmente classificada como um método behaviorista, mas algumas de
suas técnicas são muito parecidas. O terapeuta racional, por exemplo, pode
encorajar um homossexual a tentar um comportamento heterossexual ao
mesmo tempo que continue falando certas frases como "gosto de
mulheres; não tenho medo; gosto de sexo." O que vale é o comportamento,
e espera-se então que os hábitos mudem se emparelharmos o
comportamento "desejável'' com as associações mentais certas.
Basicamente, a escola racional acredita que o neurótico esteja querendo
se convencer de coisas erradas, ou seja, está inconscientemente repetindo
frases que levam ao comportamento irracional. Quando o paciente chega
a perceber as frases e muda-as para algo mais racional, acredita-se que seu
comportamento seguirá o mesmo caminho. Em uma brochura recente
Albert Ellis disse o seguinte:
O método do Instituto Racional é baseado na crença que os indivíduos
podem aprender a viver racionalmente vendo com plena consciência que
suas emoções e comportamentos autodestruidores nascem de suas
próprias filosofias ilógicas. Adquirem essas ideias de forma biossocial e
depois internalizam-nas por meio da repetição. O terapeuta ajuda o
paciente a provocar tais crenças empregando técnicas de modificação de
comportamento. 28
Não é minha opinião que as pessoas vivam irracionalmente devido a
filosofias ilógicas. Elas se comportam dessa maneira porque não lhes
permitiram que agissem racionalmente e de acordo com seus sentimentos
nos primórdios de suas vidas. Eu considero os seres humanos
essencialmente racionais. As filosofias irracionais, na minha opinião,
surgem para explicar ou "racionalizar" o comportamento neurótico.
Quando o indivíduo nega a sua própria verdade, ele é forçado a construir
um emaranhado de "inverdades". Parece que é uma ação inerentemente

28
Institute for Rational Therapy, brochura, 1968 .
racional alguém agir de acordo com seus verdadeiros sentimentos, e
quando os pacientes pós-Primais finalmente sentem a verdade, eles podem
então tornar-se racionais acerca de muita coisa na vida sem precisar de
explicações complicadas ou intelectuais. E por que não compreendiam
antes? Apenas porque o fato de negar os sentimentos significa negar
também a compreensão. Essa negação torna necessárias as ideias
substitutas, isto é, falsas.
Ellis menciona emoções autodestruidoras e nós vamos encontrar essas
noções em muitas teorias. Eu não acredito que haja emoções capazes de
destruir a pessoa. Ao contrário, o que destrói é a negação desses
sentimentos. Os sentimentos não podem destruir o ser porque pertencem
a ele. Aquilo que muitas vezes se considera como emoção destruidora, por
exemplo, a raiva, é o resultado do sofrimento reprimido. A falta de
sentimento é o que destrói o ser e também permite a destruição de outros.
Se é verdade que o neurótico age irracionalmente porque está dizendo para
si mesmo as frases erradas, então por que será que tanta gente diz as coisas
certas e mesmo assim não muda? O fumante pode dizer que 70% de todos
os seus colegas morrerão de câncer do pulmão, e ainda assim, fumar os
seus cigarros de costume. O alcoólatra pode jurar todos os dias que o álcool
apodrece o fígado e mesmo assim continua a entornar a sua pinga
repetidamente. O homossexual pode dizer a si mesmo que realmente adora
as mulheres embora continue a ter relações com homens. Se odeia as
mulheres o seu ódio nada tem de racional. É uma generalização de um
antigo sentimento Primal sepultado que não pode mudar, na minha
opinião, até que o sentimento histórico seja sentido e resolvido. O ódio do
homossexual pelas mulheres pode ser o resultado de anos de terríveis
relações com sua mãe. Dentro de seu contexto apropriado, o ódio pode ser
racional. Na minha opinião, quando se obriga um homossexual, com um
ódio básico por sua mãe, a repetir para si mesmo que adora as mulheres,
isso irá fortalecer a sua ideia e portanto também sua neurose.
Uma paciente Primal que se submetera à terapia racional explicou -me
como tinha sido o tratamento: "Lembro-me de haver dito ao médico que
estava terrivelmente contrariada porque meu namorado me largara. Ele me
disse que eu tinha um comportamento irracional e que eu precisava dizer
a mim mesma que realmente poderia viver sem ele e que não tinha
necessidade de amor para continuar vivendo. Aquilo era bem parecido com
a Ciência Cristã. Eu tinha que fingir estar sentindo uma coisa que,
realmente, não sentia. Por mais que dissesse a mim mesma, eu realmente
não conseguia convencer-me que poderia viver sem o meu namorado.
Agora já compreendo por que. Já senti o que estava querendo com o meu
namorado: era apenas um pai carinhoso."
Eu creio que a diferença básica entre a prática Primal e a racional é o papel
que nossa filosofia representa na neurose. Ellis acredita que as pessoas
agem de acordo com uma filosofia profunda, mas inconsciente, e que
precisa tornar-se consciente. O ponto de vista Primal é que as filosofias são
adotadas em termos da maneira por que agimos com a Dor, isto é, a pessoa
que é direita consigo mesmo tende a ter também ideias, atitudes e
filosofias direitas.
A Terapia da Realidade

O que eu acho essencialmente errado com as terapias de orientação ou


confrontação é que elas esquecem-se da história do paciente e também
que há sempre uma história por trás do comportamento neurótico. A
terapia da realidade tem uma ampla aceitação atualmente devido a duas
razões. A primeira é que ela é simplista e portanto agrada àqueles que não
gostam de se aprofundar muito nas coisas. Segundo, e mais importante, ela
se adapta perfeitamente ao modo cultural, ou seja, aos conceitos de ação
e responsabilidade que, na minha opinião, é o verdadeiro Zeitgeist cultural
que produz a neurose. É um método desses que quase obrigam as pessoas
a se reunirem para fazerem alguma coisa, mesmo que não estejam
dispostas a tal. Dá-se grande importância à ação responsável, mas essa
responsabilidade sempre parece ser de alguém ou de alguma coisa e nunca
da própria pessoa. Na minha opinião, a terapia da realidade foge dessa
mesma realidade, da realidade do paciente. Exige que o paciente enfrente
um mundo em que ele, geralmente, não está, nem pode estar, até que sinta
a razão para ele estar fazendo aquilo que está mesmo.
A informação seguinte de um paciente claramente indica as diferenças
entre as terapias Primal e da Realidade.
"Já fazem agora três anos e meio que eu entrei para a terapia da realidade
pois estava então à beira de um colapso nervoso. Havia lido em Reality
Therapy e compreendido bem que a neurose se instala quando as
necessidades básicas humanas não são satisfeitas. Dizia o articulista que
essas necessidades são: amar e ser amado e sentir que valemos alguma
coisa para nós e para os outros. E para valer alguma coisa nós devemos
manter um bom padrão de comportamento e isso só poderá ser fazendo o
que for realista, responsável e certo. Esse conceito era compatível e
conveniente para mim e logo pensei que iria me curar depressa pois toda
a minha vida sempre fora orientada pelo que era 'realista, responsável e
certo'.
Com vinte e dois anos eu já era professora de inglês de ginásio e també m
era considerada como socialmente aceitável. Mas então, onde havia eu
errado, e por que estava me desintegrando daquela maneira? Pensei logo
que a Terapia da Realidade iria me ajudar a ver em que ponto tinha errado.
“Durante minhas sessões sempre falei das desagradáveis relações com meu
namorado e com meus pais e do meu geral desencanto pela vida. Achei que
o meu terapeuta dava-me toda a atenção enquanto estava lá sentado por
trás de uma imponente mesa de trabalho, numa confortável poltrona de
couro e fumando um cigarro atrás do outro. A solução para meus
problemas parecia-lhe muito simples. Eu teria que encontrar alguém a
quem quisesse de verdade e que também me fizesse sentir o meu valor. O
que estava implícito na sua recomendação era que eu ia precisar de sinais
externos, e não de mim mesma, para saber o que valia.
"Ao fim de todas as sessões, o terapeuta perguntava sempre quais eram as
providências que eu ia tomar para melhorar a minha situação, e eu,
timidamente, dizia-lhe o que julgava estar certo. Iria tentar não procurar
mais meu namorado; iria ser mais carinhosa com meus pais; iria me ocupar
mais com meu trabalho. Em retrospecto eu vejo agora que estava
fortalecendo aquele mesmo verniz de aceitação social que vinha
carregando comigo a vida inteira tentando esconder o quanto me sentia
infeliz por baixo dele. Sabia o que devia dizer e fazia o jogo do terapeuta
direitinho com um rosto impassível. Sempre fora ótima aluna e a terapia ia
ser mais uma matéria que eu aprenderia bem.
"A despeito das boas notas que estava tendo na terapia, conseguindo a
aprovação do terapeuta, eu via que decidir uma mudança era coisa muito
mais fácil do que levá-la a cabo. Como nada conseguia resolvi parar com a
terapia. Dois meses depois casei com meu namorado, e seis meses depois,
através de uma quantidade de desapontamentos para nós dois, resolvemos
pela separação. Voltei então ao consultório do terapeuta acreditando que
meu desastre tivesse sido devido a não haver seguido seus conselhos desde
o princípio. Decidimos então que eu deixaria definitivamente meu marido,
que procuraria um outro emprego e começaria vida nova buscando alguém
que realmente me amasse. Consegui, realmente, um novo emprego e isso
ocupou todo o meu pensamento afastando-o dos outros problemas. Ainda
assim, dentro de três semanas já estava de novo com o meu marido tendo
imposto como condição para essa nova união que ele iria submeter-se à
terapia junto comigo e que ficaríamos então gritando um com o outro
durante aquela hora. Essa tensão mútua serviu para convencer ao
terapeuta que deveríamos nos submeter a tratamento individual.
Começamos a seguir os seus conselhos, e depois de pouco tempo já
tínhamos conseguido estabelecer uma atmosfera semelhante à calma que
vem antes ou depois das tempestades.
"Quanto ao afastamento de meus pais, consegui convencer minha mãe
para vir comigo à terapia. Tivemos só uma sessão juntas pois durante a
hora inteira ela deblaterou e acusou-me de ser uma filha ingrata, gritou
como eu era uma menina boazinha antes e como agora ela sentia-se
magoada e rejeitada. O terapeuta sugeriu então que esquecêssemos o
passado e tentássemos melhorar o presente. Embora meus pais
continuassem a não me compreender, permanecessem alheados e sempre
me criticando, estabelecemos uma fachada 'socialmente aceitável' para as
relações pais e filha. Contei para meu terapeuta que já visitava meus pais
e considerei a missão cumprida.
"Quando cheguei a esse ponto, eu já estava então com as minhas
necessidades básicas sendo satisfeitas, dentro da realidade da terapia.
Convenci-me de ser amada por meu marido e meus pais, embora sentisse
uma agonia de um vazio e da infelicidade dentro de mim. Pensava, ou
antes, sabia, que tinha algum valor pois já contava com um emprego e um
marido, que estava desempregado quando começou a terapia, mas que já
agora, tinha um bom emprego. Estávamos os dois fazendo o que era
'realista, responsável e certo'. E mesmo assim, ainda não havia uma
verdadeira felicidade, um legítimo contentamento e também não havia
paz. Só tínhamos conseguido colocar todos os nossos ressentimentos e
trapalhadas da raiva recíproca que existia entre nós em um compartimento
perfeitamente estanque. Concluímos a terapia simplesmente tolerando -
nos.
"Um ano mais tarde fui com meu marido para a Terapia Primal. Aque le
tinha sido um ano de brigas violentas, desesperos e amargura e eu chegara
a pensar em suicídio por diversas vezes. A terapia da realidade só servira
para me 'ensinar' a modificar meu comportamento, mas de forma alguma
conseguira aliviar-me das origens da minha infelicidade. Hoje já estou
sentindo minhas antigas dores e estou a caminho do restabelecimento
completo e não apenas de um alívio temporário.
"As diferenças entre as duas terapias me parecem muito nítidas. Em lugar
de toda aquela tolice da terapia da realidade durante uma hora, eu agora
passo o tempo que quero às voltas com as minhas dores. Quanto mais
dores sinto menos dores tenho. Agora já percebo que não preciso de
conselhos e que só me adianta eu sentir a minha Dor. Os conselhos dos
outros apenas obrigam-me a conformar-me com um padrão de
comportamento que me é imposto sem querer saber quem sou ou como
me sinto. É o padrão de uma sociedade neurótica e, infelizmente, em
termos da terapia da realidade, o principal é satisfazer isso, e eu estava m e
conformando com o processo de continuar a ser irreal.
"Na Terapia Primal, por outro lado, eu estou violentamente desfazendo-me
das camadas que não são reais, da fachada e da máscara de suavidade. Ali,
a única coisa que conta é destruir tudo que houver de irreal em mim para
tornar-me a sentir como um perfeito ser humano. Se eu fosse atrás da
terapia da realidade iria continuar neurótica a vida inteira em busca do
impossível que era o amor de meus pais. Com a Terapia Primal eu já não
espero mais que meu marido venha preencher o vazio deixado por meu pai.
Quando estiver boa poderei permitir que meu marido seja ele mesmo e
poderei amá-lo pelo que é e não como um procurador do papai.
"Na terapia da realidade minha neurose foi reforçada porque o terapeuta
ficou sendo o representante de papai. Ele era bom, delicado e atencioso
como eu esperava que meu pai fosse, mas que não conseguira ser. O
resultado foi que fiquei dependendo mais do terapeuta do que de mim
mesma. Dessa maneira, eu ficaria toda a vida naquela terapia. Na Terapia
Primal eu sinto-me alheia ao terapeuta. Sinto-me com a minha solidão e a
verdade é que ninguém se preocupa comigo. Só eu mesma.
"A Terapia Primal faz-me enfrentar aquilo que me tornava doente e não
procura ensinar-me como desviar para outros canais o meu
comportamento neurótico. Ela sabe que o passado não pode ser esquecido.
Ele deve ser sempre lembrado e convocado, e principalmente deve ser
sentido para que eu possa ter um presente. Pela primeira vez em minha
vida eu sinto a esperança de ver o vazio dentro de mim ser cheio e o pesado
manto da Dor externa ser retirado de cima de mim."
Meditação Transcendental

A mania mais recente entre universitários, músicos e artistas é a meditação


transcendental promulgada pelos iogues indianos como Maharishi Mahesh.
A meditação envolve a repetição de um mantra ao mesmo tempo que se
concentra somente na imagem do Deus incluindo qualquer outra distração
interna ou externa. (Mantra é uma expressão em sânscrito que significa
alguma coisa pessoal entre o homem e seu Deus, mais ou menos como o
nosso "Deus tenha piedade de mim".) Os exercícios de respiração entram
em cena, de forma que geralmente antes da pessoa haver atingido o pico
ou "transferência", quase não se percebe a sua respiração. E tudo isso é
feito entre flores, mantos flutuantes e incenso. O objetivo é conseguir uma
integração com Deus e encontrar o supremo relaxamento que equivale ao
êxtase. A meditação tem por fim transcender o que é mundano para chegar
ao espiritual com a meta da autorrealização.
Vivekananda, que foi o fundador da ordem de Ramakrishna, descreve os
propósitos da meditação:
O maior auxílio para a vida espiritual é a meditação. Nela, nós nos
despojamos de todas as condições materiais para sentir nossa natureza
divina. Quanto menos se pensar no corpo melhor será. Pois é o corpo que
nos arrasta para baixo. O que nos torna infelizes são as identificações, as
amizades. Aqui está o segredo: "pensar que sou o espírito e não o corpo, e
que todo o universo, com todas as suas relações, com tudo que é bom e
tudo que é mal, não passa de uma série de pinturas, de cenas numa tela,
que eu estou contemplando." 29
A única forma que encontro para classificar a meditação é chamá-la de anti-
Primal. Ela envolve o desligamento em lugar de ligação, abnegação do eu
em lugar de sentimento e acredita na necessidade do split entre a mente e
o corpo. Parece ser de natureza solipsista, já que nada realmente existe
exceto como uma tela pintada.
Isto não significa que as pessoas não possam usar a meditação com o relax.
Tive um paciente que fora monge Vedanta durante muitos anos e que
informou-me haver praticado a meditação transcendental durante doze
anos e que muitas vezes entrara em estado de êxtase cujo resultado final
foi um colapso e a necessidade de apelar para a terapia. Isso talvez exija
uma explicação. Eu acredito que o estado de êxtase vem de uma completa
supressão do eu, quando a pessoa se entrega a uma fantasia (um deus) de
sua criação e com a mistura disso com a sua imaginação e o afastamento
da realidade. É um estado de total irrealidade, uma espécie de psicose
socialmente institucionalizada. Se, por exemplo, algum paciente viesse nos
dizer que havia-se fundido com Deus e que agora ele e Deus eram uma só
pessoa, nós suspeitaríamos de sua racionalidade, mas quando esse
processo é sancionado por alguma teologia específica nós sempre nos
inclinamos para desprezar a sua inerente irracionalidade.

29
Swami Vivekananda, Works (Advaita Ashrama, 1946), vol. 27.
Devemos lembrar que podemos meditar todos os dias sem, ainda assim,
reduzir a necessidade de meditação. De alguma forma o demônio da tensão
surge de novo todos os dias e tem que ser afugentado com a meditação. Os
rituais, as flores, as roupagens poderão parecer fazer parte do relax
embora não sejam condições essenciais. Não acredito que alguém precise
demonstrar que é alguém. Nós somos o que somos.
Existencialismo

O existencialismo é uma outra corrente da psicologia na atualidade. Este


método tem por fim desfazer um pouco a demasiada importância dada
pelos freudianos aos acontecimentos da infância ao mesmo tempo que
oferece uma estrutura mais dinâmica do que as terapias de
condicionamento. Os existencialistas dão a máxima importância ao que é
atual, e ocupam-se do homem como ser. Não podemos realmente dizer que
o existencialismo seja um sistema terapêutico sistemático pois são poucas
as hipóteses apresentadas que podem ser testadas, nem tampouco existe
uma tentativa metódica para criar um método bem ordenado. O
existencialismo é, em vez disso, altamente filosófico e tira a sua força das
obras de Sartre, Binswanger e Heidegger.
Abraham Maslow é um dos líderes do existencialismo atualmente, e, junto
com Carl Rogers, exerceram um forte impacto nas atuais ideias
psicológicas. 30 Acreditam eles existir uma tendência para a saúde
psicológica a que dão o nome de auto-atualização.
Maslow vê a neurose em termos de uma moléstia de deficiência, já que o
neurótico é deficiente naquilo que precisa para se atualizar.
Todo ser humano tem os dois grupos de forças dentro de si. Um deles
agarra-se à segurança e defensiva levado pelo medo, inclina-se a regredir,
tem medo de crescer e da independência... de liberdade e de separação. O
outro impele-o para a integração do eu, para confiança perante o mundo

30
C.R. Rogers, A Therapist´s View of Personal Gifts (Wallingford, Pa., Pendle Hill, 1960; On
Becoming a Person (Boston: Houghton Mifflin, 1961).
externo ao mesmo tempo que sabe aceitar o seu eu inconsciente mas
real. 31
Eu considero essa integridade como alguma coisa que nasce conosco, mas
concordo com Maslow que existe a necessidade de sermos reais ou
íntegros, isto é, de sermos o que somos. Não acredito, por outro lado, que
haja dentro de nós alguma coisa como uma força neurótica básica e
regressiva, e que ela só aparece quando sofremos algum cerceamento. Não
acredito que o medo, principalmente o medo de crescer, seja básico para
a função humana.
A neurose, para Maslow, é o conflito básico entre as forças defensivas e as
tendências para o crescimento. Essa tendência ele a vê como "Existencial,
instalada na mais profunda natureza do ser humano." Devido à necessidade
de considerar o homem sempre em termos de luta, muitas teorias postulam
o comportamento do homem como uma constante dialética entre algo
negativo e positivo. Assim, Maslow vê a necessidade da segurança como
uma "necessidade prepotente mais primordialmente necessária do que a
autoatualização." Antes que alguém corra riscos e se manifeste, será
preciso que satisfaça ou domine suas necessidade de segurança mais
fortes. O conflito torna-se paradigma básico para o crescimento. Eu não
considero o conflito como algo básico e interno. Ao contrário, penso que a
neurose resulta da pressão contra as tendências ao crescimento natura l e
desenvolvimento do organismo. Parece que não há uma prova concreta de
coisas que se pareça com necessidade de segurança ou medo básico de
independência e liberdade. Parece que aí se trata de comportamento de
neuróticos, mas devemos hesitar antes de atribuir tais comportamentos a
algum fator genético constitucional.
O que Maslow afirma é uma coisa de certo modo parecida com a posição
freudiana, ou seja, que existe uma ansiedade básica que precisa ser
dominada, e a isso ele dá o nome de necessidade de segurança. Nem
mesmo essas nomenclaturas, porém, parecem conseguir afastar Maslow de
sua demonológica opinião sobre o homem. Isso talvez seja devido ao fato

31
Abraham Maslow, Toward a Psychology of Being (Princeton, Van Nostrand 1962).
de nós construirmos nossas teorias psicológicas pelas observações que
tiramos de neuróticos que geralmente têm sempre bastantes demônios
para liquidar.
Não é a deficiência de necessidades que nos mantém imaturos e neuróticos
e sim a falta da satisfação das necessidades reais. De qualquer forma, eu
não consigo ver como pode haver algumas necessidades especiais que só
ocupam uma parte de nós. Toda necessidade é total. Quando não as
satisfazemos é porque somos deficientes.
O auto atualizador de Maslow é aquele que consegue experiências
máximas, os acontecimentos fora do tempo em que é transcendido, e a
pessoa chega a um estado quase igual ao Nirvana. A leitura existencialista
está cheia de discussões sobre essas experiências que aliás são altamente
tentadoras. Muitos de nós certamente gostaríamos de transcender a
miséria e a tristeza de nossas existências diárias, mas Maslow não mostra
claramente como tal experiência pode ser conseguida. É antes um
acontecimento místico. Em vista da falta de exemplos concretos no
trabalho de Maslow, eu vou confiar nas descrições dessas experiências
máximas por dois pacientes que estiveram antes em terapias existenciais
de grupo. O primeiro foi um homem que ficou deprimido durante dias. Ao
fim de uma semana de depressão um amigo convidou-o para escalar
montanhas. Escalaram uma muito íngreme e a pessoa ficou num estado de
euforia absoluta e chamou a isso, muito sério, de experiência máxima. O
que fizera ele? Simplesmente sacudira e livrara-se de sua depressão. Terá
ele transcendido os verdadeiros sentimentos que estavam em jogo na
depressão? Duvido muito. Ele apenas deixara de lado por uns tempos
aqueles sentimentos.
A segunda experiência ocorreu durante uma maratona de nudismo. O
homem estava passando por todos os grupos e era acariciado por todo
mundo. De repente sentiu em todo o corpo uma sensação de calor. Chamou
àquilo de "um instante de identificação com a humanidade." Mas o que foi
realmente? Ele estava recebendo o que achava lhe ser necessário, ou seja,
o calor e as críticas humanas, mas aquilo foi apenas uma experiência
momentânea que não estava ligada à grande dor do que ele precisara toda
a vida. O contato do grupo abafou suas tensões dolorosas e permitiu,
portanto, que ele transcendesse o que era real. Seu Nirvana não era
verdadeiro. Na minha opinião, a transcendência é o que os neuróticos
estão sempre fazendo. Qualquer Nirvana que tenham imaginado haver
atingido era certamente um estado irreal, pois o que eles precisam é a
experiência de descer até seus verdadeiros sentimentos.
A busca de uma experiência máxima muitas vezes parece ser apenas mais
uma luta para encontrar alguma coisa única numa experiência monótona e
apagada. Faz parte de uma esperança irreal.
Aqueles que foram sempre bem tratados pelos pais não têm razão para
desejarem transcendência. As pessoas que terminam a Terapia Primal
nunca falam dessas experiências a que Maslow se refere.
Os existencialistas já estão tentando abandonar as campanhas de
ansiedades básicas e forças instintivas para se concentrarem em processos
de autoatualização, numa campanha para nos levar à saúde. Rollo May e
seus companheiros explicam uma parte da posição existencial 32 : "A
característica do neurótico é que a sua existência está obscurecida...
coberta por nuvens e não sanciona seus atos. O objetivo do Existencialismo
é que o paciente tenha uma existência real." Isso se parece com o que quer
também a Terapia Primal, mas a própria linguagem do existencialismo
escurece a realidade em causa. O que é exatamente a existência? O que
significa para alguém ter a sua existência escurecida pelas nuvens?
O compromisso é coisa importante no existencialismo. O objetivo é ajudar
o paciente a livrar-se do vazio existencial e comprometer-se com alguma
coisa positiva e que caminha em frente. Os existencialistas raciocinam que
as pessoas podem conseguir sentir o seu eu por meio do compromisso. Mas
para que alguém se comprometa com alguma coisa é preciso que esse eu
exista. O neurótico está separado da maior parte de seus atos e portanto,
por definição, não pode se comprometer integralmente com coisa alguma.
Um empresário totalmente comprometido com o seu negócio está
geralmente tentando fazer o seu eu irreal trabalhar, e se sentir o que está

32
Rollo May, Ernest Angel e Henri Ellenberger, Existence (New York, Basic Books, 1960)
fazendo, é muito provável que não esteja totalmente comprometido com a
sua empresa.
Em termos clínicos, a posição existencial é parecida com a escola racional.
Um homossexual passaria a sentir a sua heterossexualidade por meio de
compromissos com atos heterossexuais. Eu acredito, porém, que a neurose
não é apenas uma questão daquilo que fazemos, e sim do que somos. Uma
pessoa pode praticar dezenas de atos heterossexuais e continuar sendo
homossexual porque sente e tem necessidade de alguém do mesmo sexo.
Um ato não vai varrer essa necessidade para sempre. Esse é o engano do
homossexual latente que procura afastar suas tendências com sucessivos
atos heterossexuais, tudo sem resultado. Ele pode até mesmo negar o seu
desejo de amor dos pais. É possível que alguém nunca tenha praticado o
homossexualismo e, ainda assim, sinta-se bastante homossexual.
Discutimos isso na seção do homossexualismo. O neurótico sempre pode
praticar um novo ato, mas isso dificilmente modificará sua neurose.
Os existencialistas, de um modo geral, discutem os compromissos das
pessoas, o seu comportamento atual e a sua filosofia. Eu não acredito que
a discussão possa mudar o que ele é. Para o neurótico, a discussão é muitas
vezes alguma coisa que está por cima do sentimento. Conserva a pessoa
"mental" para que ela não possa sentir sua verdadeira personalidade.
Em Ciências Sociais, "aproximação" refere-se à tentativa, de parte de
algumas terapias, para uma fusão com outras com o fim de fortalecer suas
posições. Assim, nós vamos encontrar teóricos freudianos querendo
misturar seus conceitos com o contexto de uma outra teoria para assim
tornar a sua mais viável, e também vice-versa. Essa reconciliação de
diferenças entre as várias teorias é mais aparente do que real e leva a
verdades mais "estatísticas" do que biológicas.
Quando examinamos a história das ideias psicológicas desde o começo do
século, vamos verificar uma grande importância atribuída à primeira
infância e uma focalização da introspecção. Para contrabalançar isso, os
teóricos do behaviorismo e da instrução abrem mão da introspecção e da
primeira infância para se concentrarem no comportamento. Houve depois
tentativas dos neofreudianos para atualizar a terapia de Freud com a
análise do ego, focalizando as atuais manobras defensivas do paciente.
A Teoria Primal situa-se muito distante dos conceitos behavioristas. O que
o behaviorismo parece fazer é abstrair o sintoma e tentar condicionar ou
descondicionar o comportamento irreal. Funciona com manifestações
irreais e não com causas e portanto não pode fazer mudanças verdadeiras.
A afirmação Primal é que o homem não é uma compilação de padrões de
hábitos nem uma massa de defesas contra os demônios ou instintos
internos. Quando uma pessoa experimenta seus desejos e necessidades
Primais sem medo de perder o amor, ela está experimentando o seu "ser".
Quando não pode fazer isso ela é um “não ser", para usarmos a expressão
existencial. Eu não acredito que qualquer espécie de esforço especial,
sublimação ou compensação possa transformar um neurótico em uma
pessoa com sentimentos. Para ser o que é, o neurótico deve regredir e
sentir o que era antes que tivesse deixado de "ser". Como disse um
paciente, "Para sermos o que somos, temos que ser o que não fomos."
O contentamento ou a felicidade, que geralmente são as metas da
psicoterapia, não são o resultado de insights acumulados, na minha
opinião, como também não são os cânticos ou os mantras repetidos, ne m
tão pouco se deriva da aquisição de hábitos "positivos." Acho eu que, se a
meta terapêutica é fazer o paciente sentir-se satisfeito, esse sentimento só
pode ser alcançado quando o paciente consegue finalmente descobrir o seu
verdadeiro eu. Qualquer felicidade conseguida pelo eu irreal nada mais
será do que uma irrealidade. A verdadeira felicidade, então, significa que a
antiga infelicidade foi solucionada e não existe mais.
Muitos terapeutas me informam que já constataram alguma demonstração
Primal em alguma ocasião, especialmente em maratonas de terapia de
grupo que duram a noite inteira. Geralmente eles são tratados como
histeria, e as pessoas correm a confortá-los procurando acalmá-los em
lugar de ajudá-los a expandirem-se. Se pudessem então ser orientados pela
Teoria Primal, talvez essas histerias resultassem em algo mais importante.
O objetivo das maratonas de terapia é geralmente construtivo e, por
estranho que pareça, muitos terapeutas "esquecem" suas teorias quando
participam de maratonas. Geralmente estão tentando fatigar o sistema de
defesa dos pacientes durante a maratona, e muitas vezes chegam a
conseguir. Porém, sem algum conceito do que está acontecendo, a
maratona muitas vezes transforma-se num exercício de exaustão em que
os pacientes explodem, entregam-se e choram, tornam-se íntimos, mas,
ainda assim, não chegam a fazer as ligações primais que dariam valor à
maratona.
Uma variação da terapia de maratona que está em plena ascensão é a
maratona nudista. As sociedades profissionais já agora frequentemente
incluem especialistas para acompanharem os trabalhos. A maratona
nudista é uma terapia de grupo comum, só que praticada sem roupas.
Destaca a parte sensual e geralmente uma boa parte do tempo passa-se em
piscinas onde se sucedem contatos e carícias para que os participantes
possam "sentir" as outras pessoas. O objetivo geral da maratona de grupo
nu é ajudar as pessoas a se desfazerem das artificialidades que as separam,
a eliminar a vergonha do corpo e aproximar as pessoas. Esse método faz
parte do conceito geral que as pessoas podem aprender a sentir e podem
tornar-se sensíveis e sensuais aprendendo a aceitar seus corpos por meio
de diversos movimentos. Embora isso possa oferecer algum interlúdio
interessante para quem leva uma vida sem sabor, eu não creio que
desperte sentimentos. Isso não se transforma em terapia pelo simples fato
de ser uma experiência sensual.
Quero mais uma vez afirmar que não podemos avaliar o que os outros
sentem. Aprendemos primeiro a sentir a nós mesmos e depois vamos nos
sentir quando sentirmos os outros. Assim, se uma pessoa tiver seus
sentimentos bloqueados, ela poderia possivelmente tocar e sentir outra
pessoa durante um dia inteiro sem sentir coisa alguma. Ser sensual, então,
significa poder perceber nossos sentimentos ou sensações. Se não fosse
assim, então as mulheres frígidas que fingem promiscuidade sexual sempre
tocando e acariciando alguém, ficariam finalmente saciadas. Mas isto não
acontece. Devemos estabelecer a diferença entre os gestos feitos e alguma
coisa sentida internamente. Para que as pessoas se aproximem mais uma
das outras, é preciso que, primeiro, elas se aproximem de si mesmas.
Parece que a destruição das barreiras íntimas contribuem para destruir
também as que existem entre pessoas diferentes.
Há quem pense que o fato de alguém despir-se torna a pessoa menos
defensiva que as outras. Parece ser alguma ideia mágica alimentada por
algumas pessoas que quando alguém faz certos movimentos com vestidos
ou calças isso resulta no desmoronamento de barreiras que já vinham
resistindo durante anos.
Gastei algum tempo com esta discussão para estabelecer a diferença que
existe entre experiências externas e internas. Se não fizéssemos essa
distinção, poderíamos imaginar gente deitada pelo chão debatendo -se e
gritando, convencidos todos que estão passando por uma experiência
Primal. Devemos ter sempre em mente que as atividades que trazem
modificações básicas para os indivíduos devem emanar de seus
sentimentos, e devem vir de dentro para fora. Sem isso, nada mais adianta.
Desde que seja destruída a barreira dos sentimentos os estímulos de fora
penetrarão em todo o sistema. Então farão sentido os exercícios de
sensibilidade que mandam as pessoas ficarem de pé na grama fresca para
aumentar a sua experiência sensual. Isso terá como verdadeira significação
que apenas é bom ficar pisando a relva fresca e não alguma coisa mística
de significado astral.
Psicodrama

O psicodrama é uma técnica muito usada em terapia de grupo de várias


escolas. Eu chamaria essa modalidade de um jogo de suposições. O
paciente recebe um papel designado pelo terapeuta e passa a agir como se
fosse outra pessoa ou então ele mesmo numa posição especial, como, por
exemplo, reagindo e respondendo mal ao patrão. O paciente pode assumir
o papel de sua mãe, pai, irmão ou irmã, professor. Como ele não é mesmo
nada disso, terá então que representar como se fosse outro quando, às
vezes, não se sente disposto nem mesmo a ser o próprio.
O psicodrama tem usos limitados como, por exemplo, para fazer ficar mais
à vontade um grupo que passa pela terapia convencional, mas
essencialmente, ele parece oferecer mais um papel fora da realidade que
a pessoa deve representar depois de já haver representado a si mesmo
durante tantos anos. Nesse caso, a peça é coreografada pelo terapeuta. Eu
acredito que o neurótico, muitas vezes, já foi obrigado a representar e
afogar seus verdadeiros sentimentos em algo que era talvez uma peça
trágica de horrores escrita, dirigida e mal produzida por seus pais.
A ideia mágica e falsa a respeito do psicodrama é que se alguém pode
levantar-se contra a figura da mãe num psicodrama, então poderá fazer
depois o mesmo na vida real. A representação continuará e a pessoa ficará
sendo para sempre mais agressiva, expressiva, etc. Acontece, porém, q ue
a pessoa que representa um papel está fora da realidade e assim, como
pode ela fazer mudanças reais na sua personalidade e na vida? Tudo que
conseguirá será aprender como ser ainda mais neurótico, aperfeiçoando a
sua capacidade para representar de forma que passa a agir pela "deixa" em
lugar de agir pelos sentimentos.
Há ocasiões em que a pessoa se enreda em seus psicodramas e realmente
começa a perder o controle. Nunca vi ninguém em um psicodrama que
chegasse a perder o controle de seu papel. O mais frequente é as pessoas
saberem que estão representando e torna-se então um adulto brincando
de "se eu fosse." Os pacientes primais não representam. Eles são realmente
as criancinhas num completo descontrole.
O significado de tudo isso é que a pessoa é a sua neurose. Nunca chegamos
às verdadeiras origens dos problemas com simples manipulações,
modificação dos sintomas, oferecimentos simbólicos, físicos e mentais, de
viagens nem obrigando a papéis ou situações. As defesas podem ser
embaralhadas continuamente e só cessarão quando o paciente sentir que
é ele mesmo. Até sentir a Dor, tudo será em pura perda, tanto faz que sejam
psicodramas, análises de sonhos, treino de sensibilidade, meditação ou
psicanálise.
Não é possível discutirmos todas as outras escolas de psicologia, da mesma
forma que é impossível responder a todas as perguntas que se originam na
Terapia Primal. Por exemplo, será ela uma forma de hipnose? Exatamente
o contrário embora algumas condições sejam as mesmas. As neuroses
nascem quando os pais exigem que os filhos abram mão de seus
sentimentos para tornar-se o que eles querem. Na hipnose também, uma
autoridade forte pode adormecer o verdadeiro sentimento para fazer o
paciente adotar uma outra identidade. A pessoa hipnotizada entrega -se à
autoridade, da mesma forma que a criança neurótica entrega-se aos pais e
torna-se o que eles querem. A hipnose é a manipulação da frente real, e as
pessoas transformam-se completamente. A hipnose pode ser conseguida
porque a pessoa já está dividida. Desde que não sinta coisa alguma, a
pessoa pode ser transformada em qualquer coisa, e em compensação,
desde que a pessoa sinta-se completamente integrada em si mesma ela não
pode ser hipnotizada nem passar por lavagem cerebral.
Não é por acaso que à medida que se aprofunda a hipnose a pessoa pode
ser picada com um alfinete e nada sentir e usa-se isso para verificar se ela
está mesmo hipnotizada ou não. Eu encaro isso como uma reafirmação da
opinião Primal que o verdadeiro eu, tanto na hipnose como na neurose, já
foi narcotizado e adormecido. A neurose, portanto, é uma forma de
hipnose mais a longo prazo e universal. Se não fosse assim, como
poderíamos explicar o fato do neurótico ser assolado por dores de que não
se dá conta? É bem possível que, em alguns casos, a hipnose produza
estados quase psicóticos. Quando alguém se torna um Liberace, nem
mesmo não sabendo quem é Liberace, e não tem outra consciência, qual é
a diferença entre ele e a pessoa que se tornou Napoleão num hospício? Em
neuroses, psicoses e hipnoses, nós estamos tratando com a parte que
surgiu no split separada do sentimento e da imposição de identidades
irreais. Os pais neuróticos impõem essas identidades ou papéis aos seus
filhos inconscientemente, ao passo que o hipnotizador o faz em sã
consciência. E consegue fazer isso porque há pessoas que estão dispostas,
e até mesmo ansiosas, de se transformarem para poderem ser o bom
menino. A necessidade de ser um súdito leal foi que contribuiu para
produzir os nazistas, ou gente disposta a matar os outros para serv ir à
pátria.
A Terapia Primal é o oposto da hipnose porque se propõe a amarrar a
pessoa aos seus próprios sentimentos fugindo ao que os outros esperam
dela. Desde que está totalmente envolvida com o presente é pouco
provável que alguém possa alhear uma parte da pessoa levando o resto
para uma viagem de "identidade." Uma pessoa real nunca será nazista,
Napoleão ou Liberace. Será sempre ela mesma e mais ninguém.
Muitos neuróticos que terminaram o tratamento explicam que suas vidas
eram antes uma espécie de transe, pois dominados como estavam pelo
passado, mal se davam conta do que acontecia com suas vidas. Uma
paciente disse que era como se fosse um aturdimento perpétuo e que fazia
tudo que os outros queriam só para estar em paz. Pois não é isso que o
indivíduo hipnotizado faz? "Eu serei tudo que você quiser que eu seja,
papai."
Laura
A diferença entre a Terapia Primal e as outras é explicada por Laura que
passou por muitas delas. Ela faz aqui uma excelente descrição gráfica de
uma Primal, mostrando como faz funcionar todo o sistema psicofisiológico.
Eu comecei a Terapia Primal quatro semanas antes de completar trinta
anos, e já estou me tratando durante dez semanas. Não tenho a menor
dúvida quanto à sua validez.
Eu represento um exemplo típico do fracasso das terapias de insight já que
passei por elas durante sete anos com diferentes terapeutas e vim para a
Primal sem qualquer sentimento. Em outras palavras, sete anos de terapia
não conseguiram nem mesmo romper a primeira barreira para me fazer
"sentir bem", isto é, real e sensível. Não vale a pena tratar aqui de minha
raiva, do tempo que perdi e do dinheiro que gastei durante esse tempo
todo. No último ano, e com o meu último terapeuta, um existencialista, eu
cheguei à conclusão que só uma coisa conseguira naqueles sete anos.
Sentia-me à beira de alguma coisa muito grande mas não conseguia senti -
la.
Pensei que ia ficar louca e que ia descobrir algo de terrível a meu respeito.
Agora já vejo que aquilo que eu estava à beira de sentir era realmente o
sentimento!
Não posso começar a fazer aqui uma lista das diferenças entre esta terapia
e as outras do passado. A Terapia Primal funciona. Ela não se sustenta no
sentido de me fazer "sentir-me melhor" e funcionar melhor. É muito fácil
funcionar bem, mas isso não indica necessariamente que estamos bem. Sei
que muita gente não concorda com isto. Falando por mim e por outros que
eu sei estarem funcionando muito bem, eu posso dizer sinceramente que
o funcionamento não indica saúde. No meu caso, indicava apenas que: 1)
aprendi desde pequena que tinha que fazer alguma coisa para ser amada;
2) acreditava que isso era assim. Só conseguiria o amor se fizesse o que me
mandavam; 3) eu precisava muito do amor e continuava a fazer o que
queriam apesar de estar exausta e não gostar; 4) eu já tinha descoberto um
meio muito bom para me enganar pensando que não estava muito doente
já que fazia bem tudo que mandavam. Cerca de três anos atrás eu tomei
noventa comprimidos para dormir querendo suicidar-me. Antes de tomar
o remédio limpei toda a casa, mudei a roupa de cama, tomei um banho e
lavei a cabeça. Até o último momento de meu pior estado, quando senti
que a mente e os sentimentos estavam completamente separados, eu era
uma perfeita dona-de-casa.
Há alguma coisa mais que sempre me perturbou, e também a outros, a
respeito da terapia moderna, que faz a gente funcionar e sentir -se melhor.
Se meus pais não me amavam, o que era uma verdade; se estou realmente
só, como de fato estou; se o mundo está com fome e convulsionado, como
é óbvio que está, então por que estaria eu sentindo-me melhor? Vamos
considerar a terapia racional. Fui uma vez ao Dr. K. que era terapeuta
racional. Naquela ocasião pensei que ele era muito brilhante,
principalmente porque foi muito duro comigo. Lembro-me de parte de
nossa conversa. Eu disse que já não aguentava mais e que queria que meu
namorado viesse procurar-me sem que eu tivesse que lhe pedir. O Dr. K.
foi logo perguntando se eu não achava que aquilo era um sentimento
ridículo e irracional. Quem estava eu pensando que era para que ele tivesse
que me procurar? É já que eu queria tanto vê-lo, por que não ia procurá-
lo? Assim superficialmente, não há nada ilógico no que ele dizia, mas a sua
opinião era muito irreal quando pensava que se mudarmos nosso
pensamento mudaremos também nossos sentimentos.
Aprendi na Terapia Primal, somente por meio do sentimento, e sem
precisar por que, que no fundo de tudo está a minha necessidade
insatisfeita do amor de meus pais. É uma necessidade básica essa do amor
deles. Se tivessem me amado teriam me deixado em paz e teriam me dado
o que eu precisava. Como ambos eram também bebês e também doentes,
eles só podiam me dar o que queriam e não o que eu precisava. E mais
ainda, já que não eram eles mesmos integralmente, precisavam que eu
representasse para eles em lugar de ser apenas o que era. Com cerca de
cinco anos eu deixei de ser uma pessoa com sentimentos verdadeiros.
Tornara-se claro que eu não ia conseguir o que precisava se continuasse a
ser eu mesma, e então deixei de sentir e comecei a representar. Esse foi o
princípio de minha doença. Tudo que fiz dessa época em diante estava cada
vez mais distante do que eu realmente era ou daquilo que realmente
precisava. Quanto mais me separava de meus verdadeiros sentimentos,
mais doente ficava. Aprendi a representar para poder sobreviver, para não
sentir a dor por não conseguir o que queria, e que era o amor deles.
A doença não se cura com uma simples mudança dos sintomas ou das
manifestações dessa necessidade. O Dr. K. queria que eu agisse bem e
realmente, mas não parecia entender que isso não me tornaria nem real
nem curada. Assim, quando não me deixou sentir as sensações do
momento ele também impediu a minha cura. Logo que eu sentisse a
verdadeira necessidade, não apenas uma vez, mas todas as vezes que
pudesse até que a necessidade desaparecesse, o comportamento neurótico
desapareceria também, já que era apenas um disfarce para a necessidade
real. Isso pode parecer milagroso, e até mesmo eu sinto isso, mas foi muito
real. Pouco a pouco, na medida em que sinto mais e mais, eu passo a
representar cada vez menos. Quanto mais me permito sentir-me como um
bebê, na terapia e que precisa do amor dos pais, mais me sinto livre de tal
necessidade, livre para ser adulta, solitária, separada e livre para gozar a
companhia alheia, para não me ocupar dos outros e para saber que jamais
terei o que quero de meus pais, e que ninguém pode solucionar isso para
mim.
Existem outras diferenças entre a Terapia Primal e as outras atuais,
especialmente as diferenças de técnicas, e uma outra, ainda maior, que é
a dos terapeutas, e foi essa que exerceu para mim uma grande influência.
A transferência que fazemos do terapeuta para mamãe ou papai é coisa
que surge automaticamente, da mesma forma que na vida, já que nunc a
realizamos o desejo da necessidade de mamãe e papai. Sendo assim, o
terapeuta não precisa representar o papel de mamãe ou papai para que a
gente sinta. Na realidade, agir como mamãe ou papai bons ou maus, em
lugar de agir como uma pessoa real, só serve para enganar o paciente da
mesma forma como fizeram antes os seus pais. O terapeuta deve ser real
para o seu paciente, pois só assim poderá recusar os fingimentos e mentiras
dele.
A minha primeira terapeuta era uma senhora muito fina e muito
compreensiva. Procurou fazer-me compreender como era mau o meu
comportamento. Tentou ajudar-me para que eu encontrasse na vida um
sentido que ela não tinha para mim junto com a família. Lá estava eu com
dezesseis anos, frequentando o ginásio só em meio-expediente, com meus
pais divorciados, meu pai fazendo tudo para que eu conseguisse refazer
seu casamento, minha mãe morando com outra mulher junto comigo e
minha irmã. Aquilo não fazia sentido para mim e hoje digo com satisfação
que estava então certa no meu pensamento. O meu maior alívio é saber
que a minha luta contra a insânia que via à minha volta era a única coisa
que ainda me mantinha sã, já que era também o que me mantinha
parcialmente em contato com meus sentimentos reais. E ainda assim, os
terapeutas teriam me levado ao matadouro, como uma ovelha bem mansa,
e todos eles, junto com minha família, reforçavam a minha falta de
confiança em meus verdadeiros sentimentos, que era a única coisa capaz
de me salvar, e também na minha total confusão. Eu sentia que todos
estavam loucos em torno de mim, mas o mundo me dizia que a louca era
eu. Diziam-me que eu era uma menina má, e como era criança deveria me
submeter a todos aqueles fingimentos que queriam me impingir e que
passariam a ser a minha realidade. Era o que estava acontecendo, mas não
era a realidade. Felizmente, o cerne da realidade dentro de mim, minhas
reais necessidades e sentimentos, não fugiram. Não conseguiram matar a
criança de cinco anos, aquela criancinha que sabia a sua verdade e ansiava
por ela bem como por sentimentos reais à sua volta. Aquela terapeuta não
fazia ideia que teria chegado a alguma coisa e a algum lugar se tivesse
conseguido chegar também àquela criancinha que estava dentro de mim.
Com o meu segundo terapeuta eu levei mais de dois anos falando a respeito
de meu marido. Tentou muitas vezes fazer-me falar de mim mesma, mas
não conseguiu. Nunca cheguei a chorar mesmo diante de meus terapeutas.
Muitas vezes chegava atrasada para as sessões. Todos três terapeutas
sabiam que aquilo era a minha maneira de representar alguma coisa mais
profunda, mas agindo como se fossem substitutos de meus pais, como
pensavam, tudo que faziam era zangarem comigo e durante os sete anos
eu sempre cheguei tarde para a terapia. Com a Terapia Primal eu só cheguei
atrasada uma vez. Fui logo informada por Art Janov que não seria mais
recebida se chegasse atrasada outra vez. Ao fazer aquilo ele não estava
parecendo ser um papai bom para mim, embora eu desejasse que o meu
houvesse realmente feito a mesma coisa. Ele não estava apenas usando
uma boa técnica, como ficou provado, mas estava também sendo real
comigo. E mais importante ainda, ele não me deu o que eu queria e sim
alguma coisa muito mais valiosa, pois deu-me o que eu precisava.
Era uma vergonha o fato de nenhum de meus terapeutas anteriores haver
reconhecido aquela verdade tão simples. Em fugar disso, permitiam -me
que, bem ali em seus consultórios, eu continuasse a representar e dizer
todas as coisas que escondiam as minhas verdadeiras necessidades. Iam ao
encontro de meus desejos. Permitiam que eu divagasse sem sentido
quando eu precisava deles para me ajudarem a ser tranquila e real sem
representação. Eles permitiam que eu escondesse meus sentimentos
quando representava para eles que eram as minhas mamães e papais.
Acho espantoso que, depois de tanta confusão, as coisas se tornassem tão
simples depois de algumas semanas na Terapia Primal. Nas novas terapias
tão em voga atualmente, as pessoas têm liberdade para exprimir seus
sentimentos, e com isso elas sentem-se aliviadas por algum tempo. Os
pacientes choram em público, possivelmente pela primeira vez assim como
também mostram pensamentos ocultos. Eu falo com experiência própria
pois participei de muitas maratonas de fim de semana com dois terapeutas
e dezesseis pessoas. Naquela ocasião experimentei um grande alívio e
pensei que a experiência tinha sido boa. Só que não havia ninguém lá que
soubesse dirigir-nos.
Existe ainda um outro grande perigo com esses novos métodos e ele está
na afeição que se desenvolve entre os participantes quando procuram
confortar-se reciprocamente, o que só serve para disfarçar as necessidades
reais. Essas maratonas muitas vezes aprovam representações flagrantes
em lugar dos sentimentos. Logo que senti minha primeira experiência
Primal eu percebi que ali estava a verdade, que eu estava sozinha e que
não havia nada que eu conseguisse de quem quer que fosse que pudesse
satisfazer àquela necessidade básica. Uma vez sentida a necessidade real
já não serve mais nenhum substituto.
A experiência Primal é um sentimento profundo que exprime todas as
necessidades que temos. Nunca senti algo parecido antes, exceto talvez
num orgasmo. Depois do orgasmo, muitas mulheres chegam a chorar. Eu
chorei muitas vezes. Agora vejo que é porque, nessa ocasião, a gente chega
o mais perto possível do sentimento de uma necessidade real. Depois de
uma Primal eu verifico que houve uma grande secreção na vagina embora
não sinta contrações ali. Aliás até aqui, todo meu corpo segrega líquidos
durante as Primais. É como se todas as dores estivessem fugindo de mim.
Algumas sessões são mais livres do que outras. Parece que meu corpo sabe
o quanto pode suportar e vai agindo de acordo. Se eu ainda não estiver em
condições de sentir eu luto contra os sentimentos e chego até a chorar
dizendo o que sinto. Mas o grande alívio chega quando todos os controles
cedem, e nesse momento não há pensamentos. Ainda me admiro com o
que acontece já que não contribuo para tal, e não consigo compreender
por que aconteceu, embora goste do resultado. Não tenho mais nenhum
desejo de lutar e sinto o maior alívio de toda a minha vida. As palavras e
soluços jorram sem controle algum. Não penso. Só sinto. Tudo que
acontece constitui surpresa para mim já que não posso controlar a direção
que a Primal vai seguir, mas não é bem uma surpresa já que eu sinto que
tudo é verdade, é a necessidade real e a verdadeira resposta para toda a
confusão que amontoei em cima daquela necessidade.
É triste pensar no tempo todo que gastei lutando contra os sentimentos,
quando essa luta é uma agonia e os sentimentos representam o alívio.
Também é dor. É um alívio abandonar a luta, uma luta de vinte e cinco anos.
A luta evitou que eu sentisse a dor, a dor de eu estar só e de não conseguir
que mamãe e papai me amem.
Como já disse, as minhas Primais têm sido de intensidades variáveis, sendo
que as mais livres foram muito simples e diretas. A primeira ocorreu numa
terapia particular durante as três primeiras semanas de um período
intensivo. Quando começou eu estava fria. Sempre fui muito fria, nos pés
e nas mãos. Quando me deitei no sofá estava gelada e batia os dentes de
frio quase sem me conter. Art disse-me que me entregasse ao frio que
sentia em mim, e antes que me desse conta já ali estava toda enrolada
como um bebê a soluçar que "queria mamãe." Não sei quanto tempo durou
pois não podia controlar. Passei uma boa parte de minha vida chorando
sem nunca encontrar alívio, mas aqueles soluços eram novos para mim pois
pareciam-me mais reais como nunca antes experimentara. A dor era a mais
doce que já me acontecera. Eu sempre agi como se fosse pequenina e tinha
o pé direito sempre voltado para dentro como se me protegesse. Logo que
comecei a sentir-me pequenina o pé direito, que estava virado para dentro,
ficou certo. Art viu quando isso aconteceu pela primeira vez, e depois
quando olhei para os pés, os dois estavam bem certinhos apontando para
cima. Depois da Primal continuei ali deitada. Foi uma experiência cansativa
e fiquei algum tempo sem poder falar. Minhas mãos estavam quentes pela
primeira vez, tanto quanto conseguia lembrar-me, e assim permaneceram
a maior parte do tempo desde então.
14 - INSIGHT E TRANSFERÊNCIA EM PSICOTERAPIA

A Natureza do Insight33

Em 1961, Nicholas Hobbs pronunciou o seu discurso presidencial sobre as


origens do melhoramento na psicoterapia para a American Psychological
Association. As questões de Hobbs a respeito dó papel do insight são
importantes, já que ele representa a maior parte do que geralmente
chamamos de terapia padrão. Sem levar em conta a persuasão teórica, a
maior parte dos terapeutas, sem contar com os behavioristas, que usam o
insight como instrumento, acreditam que se o paciente puder compreender
a razão por que faz alguma coisa, ele inevitavelmente mostrará uma
tendência para abandonar um comportamento neurótico e irracional.
Hobbs mostrava-se preocupado porque, muitas vezes, os pacientes com
muito insight não progrediam. Muitos de nós estamos de acordo com ele.
Hobbs começou a duvidar da eficácia do insight como técnica importante,
e citou exemplos em que ocorriam mudanças sem insight como a terapia
lúdica com as crianças, a de movimento do corpo e o psicodrama. Ele notou
que os terapeutas de diferentes escolas teóricas pareciam promover
diferentes mas igualmente eficazes insights com os mesmos índices de
melhoramentos. Ele imaginava se nas terapias de insight os pacientes
simplesmente aproveitavam-se do sistema pessoal de interpretação dos
terapeutas e dizia então que "O terapeuta não precisa estar certo pois é
bastante que seja convincente. 35
A pergunta que Hobbs faz é: Como podem estar certas todas essas variadas
interpretações? Ou será que há alguma "certa"?

33
Usamos em todo o livro a expressão em inglês, mas para melhor compreensão transcreveremos
do Dicionário de Psicologia de Henri Piéron, ed. Globo, 1966: "Este termo designa, num animal, a
capacidade de compreensão súbita de uma situação no decurso de aprendizagem por ensaio e
erro. O termo que melhor lhe corresponderia em português é intuição, empregado em psicologia
humana. Em português tem-se usado discernimento, apreensão súbita." 35 Nicholas Hobbs,
"Sources of Cain in Psychotherapy", American Psychologist (nov. 1962).
Hobbs define insight: "Quando um cliente afirma alguma coisa sobre ele
mesmo que está de acordo com o que o terapeuta acha que ele tem." Nesse
ponto do desespero, Hobbs deixa para trás o insight como um exercício
infrutífero e passa a discutir o que realmente acredita ser a causa de
melhoras terapêuticas nos pacientes. Ele cita o calor, a compreensão e o
ouvido atento como os maiores fatores de melhoras, ou seja, em outras
palavras, as relações do paciente com o terapeuta. Hobbs termina seu
discurso dizendo que "Não há insights verdadeiros e sim apenas os que são
mais ou menos úteis."
O que é então o insight terapêutico? Eu acredito que seja a explicação do
comportamento irreal. O verdadeiro insight nada mais é senão a Dor virada
pelo avesso. O insight é o núcleo da Dor. É aquilo que precisa ficar
escondido para que a pessoa não tenha que se defrontar com a verdade.
Assim, liberar a Dor equivale a liberar a verdade. As implicações disso são
que não apenas existem simples e "úteis" insights como Hobbs acredita,
como também verdades simples e precisas acerca de todas as pessoas.
Vamos tomar um exemplo. Uma paciente Primal está falando sobre seu pai
que ela considerava um homem essencialmente adorável. Conta como ele
foi maltratado pela mãe dela e como parecia fraco. Depois de falar mais a
tal respeito ela finalmente diz com um certo desprezo "Eu bem gostaria
que ele ficasse firme com ela." Eu então insisto para que a paciente grite
"papai, seja forte por mim!" Ela passa por uma Primal comovente falando
do pai que desistiu da família e fechou-se consigo mesmo, derrotado e sem
ânimo. Ele era o bebê que não conseguiu ajudar a filha e que precisav a de
proteção contra a mãe dela que era uma fera. Logo que ela percebe que
seu pai realmente não a amava e não podia ajudá-la porque era ele quem
precisava de ajuda, ela deixa sair uma torrente de insights: "Foi por isso
que me casei com um cara fraco pois queria transformá-lo no meu pai forte.
É por isso que choro quando meu filho abraça-me. É por isso que tenho
nojo de homens que deixam suas mulheres ridicularizá-los. É por isso, é por
isso..."
E despeja então todos os seus insights que são as explicações para os
milhares de maneiras que ela procurou para cobrir a sua Dor.
Esses insights não são apenas discutíveis. Eles irrompem de um sistema de
ligações e são as extremidades de uma completa experiência sobre
sentimento. Os pacientes chamam a isso de uma precipitação de insights
de natureza quase involuntária. São insights sentidos até a ponta dos pés
como disse um paciente. A liberação da Dor torna as razões mais claras. As
razões são os insights. Logo ao sentir a Dor já é quase impossível não
sermos inundados por insights porque um único sentimento reprimido já
causou muito comportamento neurótico.
Um outro exemplo. Um paciente fala de sua raiva irracional contra sua
mulher e filhos. Diz que não o deixam sossegado um só instante, estão
sempre exigindo coisas, e ele nunca tem tempo para atender ao que é seu.
Então eu pergunto-lhe se ele também se sentia assim com seus pais. "Claro
que era. Lembro-me bem do meu pai entrando no meu quarto quando eu
estava descansando ou ouvindo música. Olhava-me furioso porque eu
estava ali sem fazer nada. Ainda fico furioso quando me lembro como me
aporrinhava. Nem uma só vez lembrou-se de sentar para conversarmos um
pouco. Só sabia me dar ordens." Disse-lhe então que se concentrasse
naquilo e que se deixasse dominar, e logo percebo que ele já está sentindo.
Pergunto-lhe o que desejaria dizer ao pai e ele logo se inflama e eu lhe digo
para falar direto com o pai tudo o que sente. Ele começa com uma torrente
de epítetos indignados e pejorativos, mas logo cede a um sentimento m ais
profundo: "Papai, por favor. Sente-se um pouco aqui para conversarmos.
Mostre-se bonzinho para mim pelo menos uma vez. Eu não quero zangar-
me com você. Eu quero o seu amor, papai!" Nesse ponto o paciente suspira
e soluça sentindo a Dor. E então começam os seus insights: "Era por isso
que eu sempre pedia dinheiro a ele e a outras pessoas. Eu queria que
alguém tomasse conta de mim. É por isso que nunca quero ajudar minha
mulher. Estou reagindo às exigências dele. É por isso que fico zangado
quando as crianças querem minha ajuda." E aí mais choro e mais gritos para
o pai. "Papai, se você soubesse como eu me sentia solitário enquanto
esperava que você fizesse alguma coisa por mim. Bastava chegar em casa
e abraçar-me uma vez só. E por isso que eu me derreto todo quando o meu
chefe me elogia. É por isso que sinto dores de estômago quando ele fica
zangado comigo."
Por aí nós vemos como estão entrelaçados a Dor e os insights. Aliás, os
insights são realmente os componentes mentais da Dor. Aquele homem
sentia suas necessidades reais que estavam depositadas por baixo de toda
a sua raiva e conseguia compreender todas as suas supostas ações
irracionais que resultavam dessas necessidades.
Os pacientes Primais não tomam conhecimento dos insights. Não o
consideram diferente. Quando um paciente está contando o que sente aos
pais, ele está por dentro da situação. Não olha os seus sentimentos a
distância. Em resumo, não é uma parte dividida falando de uma outra. O
processo Primal é uma experiência única. A diferença entre falar com um
médico a respeito de sentimentos e falar com os pais durante a Terapia
Primal é da máxima importância.
Quando um paciente diz "doutor, eu acho que fiz aquilo porque me julguei
uma criança", há a separação do "eu" que está explicando e do "me" que
está sendo explicado. Assim, o ato da explicação na terapia comum
contribui para manter a neurose já que continua o split. Por mais correto
que seja o insight, a neurose torna-se mais profunda.
O método Primal não cuida de explicações pelo terapeuta. Essas
explicações muitas vezes podem ser a moléstia, especialmente na classe
média em que os filhos sempre são obrigados a prestar contas de tudo que
fazem. Os pais de classe média são muito complicados em tudo que fazem,
incluindo as razões para punirem os filhos a quem forçam para se
enquadrarem em seus moldes. Muitas vezes os filhos de operários têm
mais sorte. O pai chega em casa depois de algumas cervejas, surra os filhos
para começo de conversa e a vida continua. Tudo é ali às claras. Não há
complicações para atrapalhar a vida das crianças. É por isso que a Terapia
Primal anda mais depressa com pacientes da classe trabalhadora. Eles não
precisam analisar os pais. Só o que precisam é gritar-lhes todas as surras
que levaram sem motivos.
Eu creio, portanto, que o processo de explicações da psicoterapia
convencional talvez torne o paciente mais neurótico. O que parece fazer é
ajudá-lo a esquematizar o seu comportamento irracional em termos de
alguma teoria enganando-o que está melhor porque está
"compreendendo" ao mesmo tempo que produz o que eu chamo de
"neurótico psicologicamente integrado". A "compreensão" na terapia
convencional é apenas mais um disfarce para a Dor. Uma das principais
pragas da humanidade, depois das doenças mentais, é o tratamento del as.
Não há necessidade dos pacientes explicarem o que sentem e falar sobre
isso ad nauseam. O que eles precisam mesmo é sentir.
Desde que nos separamos dos sentimentos dos pacientes para entrarmos
nos domínios da interpretação terapêutica, quase tudo pode transformar-
se em verdade. O paciente que não consegue sentir aceita qualquer coisa.
É obrigado a aceitar as interpretações alheias de suas ações porque ele
mesmo não consegue ver a verdade. E mais ainda, a interpretação teórica
feita por um terapeuta pode muito bem ser a expressão de seus
sentimentos reprimidos complicadamente simbolizados em termos
teóricos. Dessa forma ele pode encontrar conotações sexuais ou agressivas
no que o paciente está contando e que são mais problemas do terapeuta
do que do paciente. Também pode ser verdade que a interpretação de um
terapeuta nada tenha a ver com sentimentos de ninguém e simplesmente
venha de alguma teoria encontrada em compêndios ou elaborada por
alguém algumas décadas antes. Essa teoria pode haver agradado ao
terapeuta em vista de seus sentimentos reprimidos, e então ele passa a
adotá-la para uso em outros.
Enquanto continuar existindo a barreira para os sentimentos, tanto o
paciente como o terapeuta só podem fazer conjeturas sobre o que está por
baixo. Aos palpites do terapeuta damos o nome de teoria. Quando o
paciente consegue aprender essa teoria na forma como é aplicada ao seu
comportamento, ele pode, ser considerado "curado". Como eu penso que
os insights nunca devem preceder a Dor, acho que a obrigação do terapeuta
é ajudar a remover a barreira entre o pensamento e o sentimento de forma
que o paciente possa, ele mesmo, estabelecer as suas ligações. De outra
forma, o terapeuta pode levar anos explicando as coisas ao paciente que
nunca tem a sua vez.
É possível que tenhamos considerado o insight visto pelo lado errado, já
que ele talvez não cause a mudança e sim seja um resultado dela. Isso
torna-se claro quando consideramos que o insight é o resultado da ligação
entre o sentimento e o pensamento quando aplicado a um comportamento
específico. A "ligação" é o termo-chave pois é possível saber-se as coisas
mentalmente sem estabelecer uma ligação e portanto, sem fazer mudança.
Sem a Dor não pode haver um insight real para o neurótico. Poderíamos
dizer que o insight é o resultado mental da dor que se sente.
A dor está integralmente relacionada com o insight. Enquanto perdurar o
processo do insight dentro de um sistema neurótico onde a Dor impede
que ele penetre todo o sistema, eu duvido que se possa esperar
importantes mudanças de comportamento. Desde que exista o bloqueio da
Dor, o insight só pode constituir mais uma experiência desligada e
fragmentada. A Dor mantém o insight desligado mentalmente e portanto
incapaz de fazer qualquer coisa boa pelo organismo.
Eu comparo a terapia convencional de insight a um relatório apresentado
ao governo por alguma repartição analisando o sistema econômico. O
relatório, da mesma forma que o insight, é incorporado ao sistema. Ê
absorvido e armazenado de forma a não exercer qualquer impacto sobre o
sistema. Devemos realmente esperar que, por mais preciso que seja o
insight, ou o relatório analítico, o sistema continuará a reagir de modo
irracional. Ficará mastigando e absorvendo a verdade até que alguma coisa
aconteça que derrube o sistema irreal.
Os pacientes não querem ouvir explicações alheias. Um deles chegou a
dizer que a neurose era sua invenção e que, por isso, ninguém poderia
explicá-la melhor que ele.
Existem diferenças importantes entre o insight na terapia comum e na
Primal. Na comum, o terapeuta geralmente toma alguma parte do
comportamento neurótico do paciente e infere qual é a verdadeira razão
que existe por trás dele. Toma como referência o comportamento irreal.
Na Terapia Primal, o comportamento irreal só é discutido com o paciente
depois que ele sente o que é inconsciente. Na terapia comum o insight
torna-se um fim em si cuja acumulação acabará produzindo mudanças.
Além disso, o insight é unidimensional. Geralmente só trata de uma parte
do comportamento e a única motivação implícita por trás dele. Na Terapia
Primal, uma Dor muito grande pode levar a várias horas de insights diretos,
e o mais importante é que eles aí muitas vezes convulsionam todo o
sistema. São orgânicos e produzem mudanças totais. Os insights prim ais
são convulsivos porque uma pessoa ligada (com a mente ligada ao corpo)
não pode ter pensamentos dolorosos sem reações do corpo também
dolorosas. Tampouco pode ele sentir dor física durante uma Primal sem tê -
la ligado a uma percepção consciente. Na verdade, à medida que um
paciente Primal vai progredindo ele pode tornar a contar a mesma história
ao fim de sua terapia e passar por uma reação física muito maior do que
quando a contou antes.
A terapia comum geralmente trata de fatos conhecidos quanto ao
comportamento, ao passo que na Primal tudo é desconhecido até a hora
em que é sentido. Um paciente descreveu a diferença. "Parece haver
dentro de mim um grande tumor doloroso. Pendurados nele há umas
pontas embaraçadas que estão me estrangulando. A minha terapia anterior
parecia concentrar-se no desembaraço das pontas para chegar ao cerne da
doença, mas nunca conseguimos isso. Aqui parece como se tivéssemos
extraído o tumor inteiro e tudo ficou então em seu lugar.
Essa expressão de "tudo ficar no seu lugar" é muito comum entre os
pacientes. Um paciente expressou-se de outra forma. "Meu cérebro
mantinha o corpo separado. Acho que se o meu corpo funcionasse
harmoniosamente eu teria sentido toda a minha horrível Dor. Eu dei -lhes o
meu cérebro e depois o corpo."
Um outro paciente muito calmo e todo encurvado descreveu sua
totalidade.
"Quando não há ligação alguma, o corpo e a mente não se mantêm direitos
e eu acho que isso se torna aparente mental e fisicamente. No meu caso
eu escolhi o peito para apertá-lo contra a dor que vinha de baixo e curvei
os ombros como reforço. Apertei a boca e os olhos. Quando estabeleci a
ligação durante a Primal, eu não somente compreendi tudo como também
automaticamente tornei-me ereto e não cheguei a perceber isso senão
quando minha mulher reparou. O estranho é que se trata de uma coisa
involuntária."
Vamos voltar a Hobbs por um momento. Ele acha que o terapeuta deve ter
mais calor humano do que insight, mas eu diria que as duas coisas muito
pouco têm de comum porque a Terapia Primal não se preocupa com
relações. Tudo que o paciente acaba sabendo já estava lá dentro dele e não
entre o terapeuta e ele. O paciente não tem coisa alguma para aprender
com o terapeuta. Quem ensina é o sentimento. Sem um sentimento
profundo, o calor humano do terapeuta só pode ser fingido, mas mesmo
que isso desse resultado, eu ainda assim não vejo como o fato de ser bom
e amável pode anular anos de uma séria repressão neurótica.
Discussão

A verdadeira pessoa que poderia lucrar alguma coisa com a terapia comum
é geralmente aquela que não se beneficia dela, ou seja, a pessoa que
pertence às classes trabalhadoras desarticuladas e que não reclamam. Ela
precisava mais do que qualquer outra mas, infelizmente, ficou de fora.
Quem mais se aproveitou da terapia foi a classe média embora a
brincadeira do insight entre paciente e terapeuta venha sendo um embate
com o sistema de defesa, um encontro intelectual de mentes. A pessoa que
não tem facilidade de expressão nunca poderia participar dessa brincadeira
e só é atendida quando há sua derrocada mental. O que conseguiu até hoje
está descrito num livro Social Class and Mental Illness 34, e consiste mais de
ação do que conversa, com a terapia.de choque, os remédios, a terapia
ocupacional, etc. Ficamos imaginando como pode ser científica uma terapia
que só se aplica a certas camadas sociais. O certo seria que todas as
ciências que se ocupam do comportamento humano não se esquecessem
da maioria da raça humana.
Tem havido uma tal mistura de técnicas de insight, cada uma com um
método diferente, que chegamos a pensar que o comportamento pode ser
discutido dentro de qualquer estrutura de referência. Eu creio que há uma

34
A.B. Hollingshead e F.C. Redlich, Social Class and Mental Illness (N.Y. Wiley, 1958)
realidade, um único conjunto preciso de verdades acerca de todos nós e
que não está sujeito a interpretações.
A Transferência

O processo de transferência desempenha um papel importante em muitas


terapias e especialmente nos métodos analíticos. A transferência é um dos
principais conceitos freudianos para mostrar ao terapeuta quais são as
atitudes e comportamentos irracionais dos pacientes para com ele.
Acredita- se que o paciente projeta no terapeuta a maioria de seus velhos
sentimentos irracionais referentes aos seus pais.
Eu não acredito que a transferência exista como um fenômeno separado e
diferente do comportamento neurótico. O paciente que representa
simbolicamente consigo mesmo certamente fará o mesmo com o
terapeuta. Já que as relações entre paciente e terapeuta são tão intensas
e contínuas, vale a pena analisarmos as neuroses do paciente face ao seu
terapeuta. Além disso, a neurose pode ser intensificada porque o terapeuta
é também uma autoridade, da mesma forma que os pais.
A questão é o que faz o terapeuta com o comportamento neurótico do
paciente. O terapeuta Primal não leva em conta a transferência já que tudo
faz para que seu paciente sinta o que deseja de seus pais. Na realidade, não
existe a relação paciente-terapeuta. Não creio que haja vantagem discutir
aqui a transferência já que queremos chegar às necessidades básicas.
A Terapia Primal desliga qualquer transferência e não permite
comportamento neurótico de espécie alguma porque isso significa que o
paciente está representando e não sentindo. Nós obrigamos o paciente a
ser direto. Em lugar de torná-lo obsequioso ou intelectual, nós lhe dizemos
para atirar-se ao chão gritando o que quer diretamente para os pais. Isso
torna supérflua qualquer discussão quanto às relações paciente- terapeuta.
O que é importante são os sentimentos primitivos para com os pais. Desde
que os sinta estarão eliminadas a transferência e as neuroses.
Quando a pessoa sofre as suas Dores Primais, ela espera alívio de parte do
terapeuta. Quer que o médico seja um bom pai ou uma boa mãe. Agirá
geralmente de tal forma que tentará transformar o médico no bom pai, da
mesma forma que fazia com os pais que não o amavam. Acha que agora o
médico pode ser o pai bom e atencioso que sempre desejou. Dessa forma,
a neurose "funciona". Consegue fazer com que o paciente não sinta o que
deixou de receber de seus pais. Devemos lembrar que o paciente sempre
procura ajuda porque seu fingimento não está lhe dando o que precisa lá
fora, mas dentro do consultório do terapeuta talvez as coisas melhorem.
Quando o terapeuta quer ajudar e oferece alguns conselhos, ele está então
incentivando a transferência "positiva". Uma vez que eu acredito que a
transferência é a neurose, acho que tudo que se faça com o paciente, além
de ajudá-lo a sentir a sua Dor, só pode ser considerado como prejudicial.
Os pacientes muitas vezes apaixonam-se pelos terapeutas porque eles lhe
fornecem o que estão inconscientemente procurando com seu
comportamento neurótico. Não é de admirar se um paciente que nunca
encontrou nada na vida agarre-se à terapia durante anos seguidos desde
que tenha encontrado ali um bom pai, e para isso sujeitam-se a tudo. Na
minha opinião, a última coisa que um paciente deseja é uma discussão da
transferência. Prefere ficar abrigado em suas relações com o analista.
O terapeuta Primal, no entanto, vai até os sentimentos escondidos. Isso
significa fazer cessar todos os sinais de transferência positiva ou negativa
porque tudo é comportamento simbólico. Se alguém me perguntasse o que
aconteceria no caso do terapeuta possuir qualquer fator positivo ou
negativo, eu responderia que ele não está ali para que gostem ou não dele.
Só está ali para causar a Dor e nada mais. Se não for assim, e se ele ainda
não sentiu a sua Dor, o melhor que tem a fazer é abandonar a Terapia
Primal. A contra- transferência não pode ser tolerada nos terapeutas
primais porque isso significaria que eles ainda são neuróticos e, portanto,
não podem praticar essa terapia.
Nunca é demais fazer notar que o resultado de todos os comportamentos
simbólicos é o desligamento do sentimento. A contratransferência é o
mesmo comportamento simbólico com o fim de ser amado que o terapeuta
está representando com seu paciente. Isso, é claro, vai piorar as condições
do paciente que ficará esperando alguma coisa dele. Terá que agir de
maneira a poder estancar a Dor do terapeuta e portanto será irreal e falso
para consigo mesmo.
Vamos agora tomar o exemplo de um terapeuta que se julgue afetuoso e
bom e que abrace o seu choroso paciente procurando confortá-lo com
palavras carinhosas. Para mim esse in loco parentis resultará no
desligamento do sentimento e evitará que o paciente sinta tudo que deve
sofrer para finalmente conseguir chegar onde quer. Poderá fazer com que
o paciente sinta-se totalmente só sem ninguém que o conforte, e essa é a
realidade comum de muitos neuróticos. O conforto de parte do terapeuta
é assim contraproducente. Qualquer atitude dessa natureza só servirá para
privar o paciente de sua razão para lutar.
Se um terapeuta Primal segurar as mãos ou a cabeça de seu paciente, isso
poderá geralmente significar que ele deseja vê-lo mais atraído para os seus
pais. Isso pode ser feito quando o paciente estiver sentindo tudo que não
recebeu de seus pais, e o contraste com o terapeuta servirá para aumentar
a Dor.
Sob o ponto de vista Primal, a razão por que a análise de transferência não
pode funcionar é que o paciente está transferindo para o médico toda a
esperança real em lugar de sentir a sua solidão e desamparo. E quando o
paciente conseguir de fato o que acha que precisa do terapeuta, a sua
situação face à neurose pode ser desesperadora. Com essa transferência
do pai para o terapeuta o paciente seguiu um caminho já conhecido pois
encontrou um substituto.
Na minha opinião, a própria psicoterapia comum muitas vezes contribui
para manter o paciente doente pelas razões já expostas acima. Então ele já
espera neuroticamente por uma nova ajuda dessa terapia.
É a tentativa para satisfazer a necessidade que obriga o neurótico a
modificar as pessoas, inclusive o seu terapeuta. O neurótico não pode
deixar as pessoas serem o que são até que ele seja o que é. Depois que isso
acontecer, já não haverá mais transferência de necessidades passadas para
o presente.
Phillip
Esta é a autobiografia de um homem seriamente deficiente que cresceu
passando por diversos sanatórios. Como acontece com muitos outros
pacientes meus, antes da terapia ele sofria de manifestações físicas que o
tornavam ligeiramente corcunda. Era um delinquente renitente
considerado como mau elemento e diariamente castigado. Depois, já mais
Velho, teve numerosos casos sexuais culminando com um incesto. Sua
patologia era muito séria sob todos os aspectos. Até mesmo quando foi
enviado para uma psicoterapia com uma médica, ele conseguiu armar a
situação para chegar a uma conquista sexual. No linguajar padrão dos
diagnósticos ele era considerado um psicopata. Este caso serve para
mostrar como um ser humano já considerado como irrecuperável pode ser
reabilitado desde que receba uma terapia certa.
Eu sou Phillip, e tenho hoje trinta e seis anos. Tinha três anos quando meus
pais se separaram. Lembro-me quando minha mãe foi-se embora com
minha irmã e eu fiquei ali sem poder compreender o que se passava. Meu
pai tornou a casar quase imediatamente. Minha madrasta dizia que eu era
uma criança que chorava muito, era emburrada e difícil e não queria ser
tocada. Só ficava manso com doces ou balas. Retraí-me e detestava os
intrusos.
Com cinco anos fui para um colégio interno particular junto com meu irmão
mais velho. Meu pai e minha madrasta trabalhavam de dia e ele
frequentava a escola de direito à noite. Eu estava sempre em apuros pois
não me sujeitava ao regime da escola. Isolei-me e passei a viver na escola
como se fosse um estranho até mesmo em visitas e festas. Meu irmão fazia
o que podia para me animar e gostar de tudo como ele fazia, mas eu só
sabia chorar.
Numa ocasião de Natal alguns meninos mais velhos ofereceram-me doces
e balas. Era raro oferecerem-me qualquer coisa mas nessa ocasião comi
tudo que pude. Fomos então chamados ao gabinete do diretor antes de
havermos terminado com o pacote de doces, e lembro-me que fui o último
a ser chamado. Estava apavorado porque não sabia a razão do diretor estar
tão zangado. O pacote pertencia a um outro menino e fora roubado.
Procurei proteger-me da escova e mijei-me todo. Quando tudo acabou eu
tinha um dedo roxo.
O primeiro emprego que meu pai conseguiu como advogado foi trabalhar
para uma fábrica de seda artificial no Sul. Ele comprou uma casa e vivemos
todos juntos o ano inteiro, pela primeira vez. Meu irmão tinha um emprego
de meio expediente depois que terminava as aulas. Algumas vezes me dava
algum dinheiro ou então balas. Eu geralmente roubava dinheiro e balas da
bolsa de minha madrasta e quando ela dava por falta eu negava. Uma noite
ela encontrou uns trocados no bolso de minha calça e acordou-me para
perguntar onde eu tinha conseguido o dinheiro. Eu não respondi. Meu pai
veio e me passou um sermão mandando-me de volta para a cama. Eu tinha
dez anos e meu irmão doze nessa ocasião. Comecei a roubar balas nas lojas.
Meu irmão comprou uma espingarda de ar comprimido com o dinheiro que
ganhava e nós íamos atirar com ela nos fundos da casa. Havia linhas
telefônicas muito altas e nós tentávamos acertar nelas com pedras. Eu mais
parecia uma menina e não tinha força para atirar muito alto, mas meu
irmão não perdia uma. Uma ocasião ele estava me jogando pedras e eu
pedi-lhe que parasse, mas ele não parou. Eu peguei a espingarda e acertei
na sua barriga. Meu pai tirou fora o chumbo e deu-me uma surra de cinto.
Queria que eu pedisse desculpas a meu irmão mas eu teimava em dizer que
ele me provocara.
Sempre andei de cabeça baixa, ombros curvados e chutando as pedras que
encontrava. Estava atravessando a rua e um carro me pegou. O homem
colocou-me no carro e levou-me para casa. Minha madrasta ficou zangada
dizendo que se eu tivesse ido buscar o pão como ela tinha mandado, nada
teria acontecido.
Tinha onze anos quando nos mudamos para Charlotte. Era costume eu e
meu irmão deixarmos Coca-Cola para o Papai Noel e seu ajudante, mas eu
disse a meus pais que não acreditava mais naquilo e sabia que eram eles
que deixavam os presentes. Bebi eu mesmo a Coca-Cola, e na manhã
seguinte, quando me levantei verifiquei que meu irmão tinha recebido
todos os presentes e balas. Ele ofereceu-se para dividir comigo e deu-me o
brinquedo que tinha escolhido para mim no Natal. Joguei tudo contra a
parede e fui mandado para o quarto.
Meus pais tinham saído à noite e havia algumas pontas de cigarros no
cinzeiro. Acendi um que botei fora e despejei o cinzeiro na lata do lixo. As
cortinas pegaram fogo e meu irmão tentou apagar. Vieram os bombeiros e
o chefe perguntou como o fogo tinha começado. Eu disse que talvez meu
pai tivesse deixado um cigarro aceso. Meu irmão contou a verdade. Meus
pais queriam saber por que eu não podia ser um menino bom como meu
irmão. Nós dois brigávamos muito e eu espetava-o com lápis e garfos.
Minha madrasta viu as marcas no braço dele e fez o mesmo em mim para
ver se era bom.
Tinha doze anos quando nasceu meu meio-irmão. Mudamos para perto de
New York. Eu tive que entregar os jornais de meu irmão porque ele foi para
o acampamento de verão com uma turma. Vendi os jornais que não
entreguei e comprei sorvete e balas. Meu pai teve que acertar tudo no fim
do verão. Muitos fregueses cancelaram as assinaturas. Meu pai perguntou -
me se eu não sabia fazer uma coisa certa.
Minha madrasta obrigou-me a ficar sentado aos seus pés para fazer os
deveres da escola. Ela estava com as pernas abertas e não estava de
calcinhas. Não estava olhando quando eu espetei-lhe a boceta com o dedo,
mas quando ela voltou-se eu já estava olhando para os livros. Meu pai e
meu irmão tinham que segurar-me para minha madrasta me beijar. Eu não
gostava de ser beijado. Cuspi no seu rosto e levei um tapa. Discutimos e eu
chamei ela de filha da puta. Ela atirou-me um facão de cozinha. Fugi de
casa e meu pai deu parte à polícia que espalhou o alarme em seis estados.
Fui apanhado e trazido para casa.
Estávamos no verão e tínhamos que ir para a cama às oito horas. Minha
madrasta fechava-me no quarto mas o quarto de meu irmão não era
fechado, e eu podia vê-lo pelo vidro do meu quarto. Ouvia lá fora as outras
crianças brincando. Meu irmão mostrava-me um pedaço de doce e fazia-
me sinal para eu ir lá buscar. Eu saía pela janela passando por cima do
parapeito e ia até lá. Um dia pedi a meu irmão que viesse comigo por ali,
Ele ficou com medo no meio do caminho. Era uma altura de uns doze
metros. Eu fui até onde ele estava e comecei a comer o seu doce, enquanto
ele estava ali zangado e apavorado. Ameaçou dar-me uma surra e fazer
queixa de mim se não o ajudasse. Prometi que ajudava se ele não me
batesse, não fizesse queixa e ainda me pagasse cinquenta centavos. Ele
acabou concordando.
Mudamos para um dos arrabaldes de New York quando eu tinha treze anos.
Eu tinha que tomar conta de meu meio irmão quando voltava da escola.
Bebia a metade do suco de laranja de sua mamadeira, enchia com água o
que faltava e depois dava para ele. Recebi uma medalha na escola
dominical e nasceu minha meia irmã.
Meus pais decidiram mandar-me para uma escola preparatória em New
Jersey. Aprendi a ordenhar vacas, a jogar xadrez e falar alemão. Ingressei
no coro da escola, joguei futebol, basquete e aprendi o boxe.
Fizemos gazeta naquele dia e fomos de calções de banho para a beira do
rio. Havia um salto de uns cinco metros da margem até lá embaixo. Ele era
maior do que eu e começou a me provocar chamando-me de medroso. Dei-
lhe um soco na boca e ele veio para cima de mim. Atirei-me para mergulhar
mas bati com a cabeça nas pedras. Fui expulso da escola e meu pai levou-
me de ambulância para um hospital em New York.
Minha madrasta disse que se eu ficasse em casa ela ia embora. Meu pai
prometeu assinar os papéis se eu passasse no exame para entrar na
Marinha. Passei, mas ele disse que não podia assinar porque eu não tinha
idade ainda e aliás não podia imaginar que eu passaria quando prometeu.
Chamei-o de mentiroso e disse-lhe que o odiava. Ele derrubava-me e eu
tornava a levantar dizendo que já não podia mais me ferir porque eu o
odiava mesmo. Tinha quatorze anos e ele me deu o dinheiro para a
passagem de trem para eu ir morar com minha mãe na Pennsylvania.
Minha mãe, minha irmã e eu dormíamos todos na mesma cama, e logo na
primeira noite agarrei e beijei minha irmã. Fazia gazeta frequentemente e
estava sempre fora de casa de dia e de noite. Minha mãe deixou-me do
lado de fora sem poder entrar e eu passei a noite no porão depois de
arrombar a casa. Ela pediu ao seu amigo que era da polícia para me dar
uma surra. Eu apanhei a faca da cozinha e ameacei-o se tentasse me tocar.
Veio um funcionário da Assistência Social e levou-me para um Abrigo de
Meninos. Fui considerado incorrigível pelo tribunal de menores e colocado
num reformatório para menores delinquentes.
Entrei para o exército e deixei o reformatório com 17 anos. Meu pai morreu
por haver tomado uma dose muito forte de pílulas para dormir e eu fui ao
seu enterro. Olhei para o seu rosto no caixão e não senti nada. Depois do
enterro disse a meu tio que tinha sido promovido para cabo na companhia
de saúde. Ele ficou furioso porque eu não manifestei o devido respeito pela
morte de meu pai.
Eu tinha vinte e ela dezoito e ficamos nos conhecendo num rink de
patinação que havia perto da base. Foi a minha primeira experiência sexual
e dentro de duas semanas estávamos casados. Meu filho tinha seis meses
e estava sempre chorando. Dei-lhe uma surra deixando-lhe manchas nas
nádegas. Minha mulher estava grávida quando me apresentei como
voluntário para servir no exterior e nossa filha nasceu duas semanas antes
de meu embarque. Enquanto estive fora mantive-me dentro dos preceitos
religiosos, ia à missa todos os domingos e guardava só três dólares de meu
pagamento mandando o resto para minha mulher. Mantive uma estrita
fidelidade durante os dois anos que estive fora. Voltei para casa e no
mesmo ano tive contatos sexuais com minha filha de dois anos e meio. Das
cartas que recebera chegara à conclusão que minha mulher tinha andado à
solta. Comecei a beber, fumar e procurar mulheres dentro desse ano.
Quando um outro soldado me falou da infidelidade de minha mulher, eu
ataquei-o com uma ferramenta. Compareci a um tribunal marcial. Tomei
uma dose excessiva de pílulas antes do julgamento e fui enviado para a
psiquiatria. Fui dispensado do serviço militar e saí do hospital. Nasceu
minha segunda filha mas duvidava que fosse minha.
Tinha vinte e cinco anos quando fui para o Texas tendo dito a minha mulher
que depois mandaria buscar a família quando já estivesse estabelecido.
Nunca pensei em fazer isso. Trabalhei, bebi e tive diversos casos lá. Minha
mulher veio ter comigo por conta própria. Dentro de seis meses estávamos
separados e logo nos divorciamos. Eu encontrava-me amargo e desiludido.
Tinha vinte e seis anos e fui para a Califórnia com a intenção de conseguir
uma educação universitária. Quando vi Glória pela primeira vez ela estava
vendendo assinaturas de revistas e eu disse que queria ajudá-la. Vivemos
juntos no meu primeiro ano de universidade, e depois deixei-a quando
comecei a trabalhar numa escola para crianças retardadas. Comecei a ter
ligações sexuais com diversas mulheres de lá e uma delas foi contar ao
diretor que estava grávida de mim. Fui despedido e cheguei a pensar que a
solução seria o suicídio. Continuei com inúmeros casos amorosos, bebia
muito, fumava demais e dormia pouco.
Fay era universitária quando a conheci. Ofereci-me para ajudá-la em seus
estudos pois estava desempregado naquela ocasião. Quando nos casamos
eu só tinha uma semana de aluguel pago e ela foi trabalhar. Procurei
emprego numa agência e fiquei tomando conta de uma criança afásica.
Seus pais não queriam interná-la e queriam que eu a preparasse. Consegui
um emprego com a prefeitura e minha mulher ficou tomando conta da
criança afásica. Eu estava sempre brigando com ela por não saber como
tratar a criança. Divorciamo-nos. Eu andava pensando em suicídio, e pela
primeira vez, reconheci que estava doente e precisava de ajuda. O serviço
de orientação da universidade fez-me entrar numa terapia de grupo.
Logo aprendi a dominar as técnicas empregadas no grupo. Durante esse
período minha irmã e eu discutimos muito o incesto numa base intelectual,
tivemos relações sexuais e vivemos juntos durante um curto período. O
grupo do meu psiquiatra terminou sem haver discutido a minha ligação com
minha irmã e eu ingressei num grupo particular onde a terapia era com uma
psicóloga. Conversei com ela sobre meus inúmeros casos, minha vida
anterior e meu progresso na terapia. Durante um período de três meses
chegamos a uma discussão sobre transferência, tivemos relações sexuais e
eu larguei o meu emprego e fui morar com ela em seu apartamento em
Hollywood Hills. Ela tinha quarenta e muitos e eu estava em fins dos trinta.
Conheci a minha mulher atual nesse grupo e mudei-me para North
Hollywood. Consegui um emprego num hospital psiquiátrico. Inscrevi-me
para um emprego num órgão federal e comecei a trabalhar com pessoas na
comunidade.
Estava no meu terceiro casamento e bebia cada vez mais ao passo que
melhorava meu padrão de vida. Nenhuma das terapias tinha conseguido
curar-me. Eu sempre conseguia embrulhar todos os terapeutas e grupos.
Tornara-me um mestre nas intrigas verbais, na racionalização intelectual,
nas explicações teóricas, na solução de problemas e outras técnicas. Mas
continuava sendo um doente e sabia disso. Tinha progredido passando de
um psicopata "irresponsável, incorrigível e sem instrução" para um
psicopata "responsável, instruído, e de classe média".
Janov estava de pé ao lado de sua mesa quando entrei no seu consultório
pela primeira vez. Enquanto ele falava eu tinha um sorriso no rosto. — Não
fique aí olhando para mim. Não vai encontrar aqui as respostas. Escolha um
sofá. — Assim foi o começo.
Logo meu sorriso desapareceu e deitei-me no sofá. — O que é que sente?
— Minhas respostas foram fragmentadas e irregulares. Comecei a chorar.
Janov falou. — O que há com você? Vamos conversar. Parece-me bem mal.
— Chorei ainda mais e ele ficou esperando. Depois falou. — Diga o que
sente, mas não deve ser chorando. — Eu parei, mas ainda tinha acessos de
choro. Acabei acalmando-me. — Muito bem, diga-me o que sente. — Eu
respondi que sentia ansiedade e sentia-me como se flutuasse. Janov então
respondeu: — Muito bem. Agora mergulhe direto. Ponha as pernas para
fora. Agora mergulhe bem para dentro sem procurar controlar- se de forma
alguma. Vamos lá! Vamos lá! — Eu aí comecei a respirar rapidamente.
Janov: — Agora respire da barriga, bem fundo. Abra a boca e respire da
barriga. Diga AAAAhhh... fundo. Bem fundo! Janov: — O que é? — Minha
cabeça começa a girar. Eu não me entrego. Estou sempre pensando no
medo que tenho da crítica. Meu desejo, minha ânsia, tudo que é meu... não
é realmente o que está acontecendo comigo. Não quero fracassar. Não
quero ser criticado. Janov: — Por quem? — Acho que é pela minha família.
Retrocedo ainda mais. Acho que não me lembro antes dos três. Lembro
depois dos três. Sei que tenho ressentimentos. Não posso perdoar... Janov:
— Diga. — Não posso perdoar minha mãe. Largou- me com três anos. Nunca
aceitei minha madrasta. Surgem as críticas. Por que não sou bom como meu
irmão? Ele se conforma. Eu me rebelo. Eu não quero mesmo ser como ele.
Ele não presta.
Janov: — E o que diria você à sua mãe, se pudesse falar com ela agora, sua
mãe verdadeira? — Eu lhe pediria que me amasse.
Janov: — Pois muito bem, diga-lhe. Fale com ela, vamos, diga o que deseja.
— Começo a respirar com dificuldade e sinto um bolo na garganta. Faço
força. Sinto como se estivesse sendo rasgado pelo meio com as duas
metades uma contra a outra. Eu estava sendo rasgado fisicamente e de
todo jeito. Tento lutar. As minhas duas partes estão presas. Não consegui
evitar. Abri a boca e gritei. Mamãe! Mamãe! Janov: — Chame.
— Eu quero que ela volte. Começo a chorar muito. Está doendo. Engasgo -
me com o que sinto. Grito que quero morrer. Janov: — Diga a ela. — Não
consigo falar. Mamãe, não vá! Desligo. Não consigo evitar o choro, a
sufocação e a dor. Estão me dilacerando. — Odeio... deixe-me só. Mamãe.
Odeio vocês todos, seus sacanas. — Engasgo e gaguejo tentando abafar
meus sentimentos, tentando controlá-los. Mas eles continuam vindo. Meu
corpo dói. O nó na garganta continua. Grito. — Eu quero amor. — Desligo.
Luto. Sempre sai. — Eu quero amor. — Fico mais tranquilo e sinto medo.
Não tenho certeza do que sinto. Vejo que fiz uma porção de coisas sem
querer, só porque queria o amor de meus pais. Tive medo outra vez. Tive
medo de não ser amado e não ser capaz de amar. Sentia-me inútil. Minha
mãe me deixara e eu perguntava por que, sem saber se ela me amava.
Zangava-me com ela. Queria matar. Matar-me. Sentia-me diferente dos
outros. Gritei. Gritei ainda mais continuando a conter-me. Tinha medo de
deixar sair. Tinha medo de descontrolar-me. Tinha medo de começar a
agredir. Bati no sofá e gritei. Eu me odeio! Abri a boca para gritar mas
contive-me e modifiquei o som da palavra que estava com medo de
pronunciar. Estava começando a sentir meu sofrimento pela primeira vez
quando Janov disse: — Diga-lhes. Diga à mamãe e ao papai. Você precisa
dizer a eles que está sofrendo. — Eu só conseguia engasgar-me e conter-
me. A Dor era muito grande. Janov. — Não fique mais calado. Não sofra
mais em silêncio. Grite. Peça socorro. Mamãe, Papai. — Gritei e tornei a
gritar para sair a Dor. Depois sosseguei. Comecei a falar. Agora sei por que
me odeio. Janov: — Por quê? — Porque, realmente, por baixo de tudo isso
eu trocaria qualquer parte minha pelo amor deles, mas assim mesmo
também os odeio. Odeio porque tenho que ser o que eles querem que eu
seja para que eles me amem. Eles se foderam. Estão mais fodidos do que
eu. Janov: — O que foi que você sempre desejou? O que era que você
queria deles? — Eu queria que eles me amassem por mim e que me
deixassem eu ser o que era sem as suas rígidas exigências que isso era bom;
aquilo era ruim; você tem que vencer; não pode dizer o que realment e
sente; tem que dizer o certo, o que é bem, aquilo que eles querem ouvir.
Fiz muita coisa porque nunca consegui dizer "eu quero amor", porque não
podia dizer. Por isso estava sempre encrencado. Lembrei-me da cena de
minha mãe deixando-me sem eu poder pedir-lhe para ficar. Sentia-me
desamparado e solitário, sabendo que tinha sido ali que eu desligara todos
os meus sentimentos. Não chamava mamãe porque seria voltar para sentir
o sofrimento que eu não queria sentir. Também fiquei sabendo por que
desejava ser punido e por que destruía tudo sem querer me enquadrar na
família. Continuei tentando voltar àquela cena inicial e sentir o que tinha
acontecido. Pensava sempre por que tinha sido eu o único que fizera
questão, e por que todo o resto da família se enquadrara. Continuava a
pensar o que havia de errado comigo e descarregava em cima deles e de
tudo que havia na vida. Tinha que voltar para sentir aquilo e não podia
porque eles não deixavam. Todo o meu procedimento falso começou
quando me desliguei e não conseguia sentir meu desamparo e minha
solidão.
Essa foi a minha Cena Primal e a primeira ligação que consegui. O resto é o
resultado dessa origem de meu conflito. Meu corpo sentia a divisão, o
dilaceramento. O meu passado, o passado que eu nunca sentira, estava me
voltando rápido. Tive medo outra vez. Desliguei. Voltava para o quarto
exausto e dormia horas. Quando despertava o medo ainda estava ali e
continuava a sentir o nó na garganta. Tentei negar e fugir do que sentira
antes. Vacilei entre correr para o consultório de Janov, como o menino
apavorado que realmente era, ou então fugir da Dor que provinha da luta
comigo mesmo no sofá. Tinha agora três nós. Um na garganta, um no
diafragma e um no peito. Gritei Mamãe! Mamãe! e via a sua mão ir lá
embaixo para arrancar-me os testículos fazendo-os sair pela boca. Ficaram
agarrados e quando puxei não adiantou. Puxei ainda mais e então eles se
ligaram. O nó na garganta tornou-se cilíndrico e andava para cima e para
baixo. Os três nós já estavam juntos. Entrei em pânico mas sabia que era o
meu pau e meus testículos. O pau começou a ir para baixo e para cima na
garganta quando respirava e masturbei-me. O jato transformou-se em
sêmen na boca e engasguei. Gritei sempre tentando esconder a palavra
"pau" de que tinha tanto medo. "Pau, pau, pau." Qual era o sentido? Talvez
eu fosse homossexual. Apavorei-me. Acabei sabendo que aquilo era o
símbolo de todas as minhas manifestações sexuais destrutivas. Começaram
a surgir os sentimentos algumas vezes em forma simbólica e outras em
forma física. Mas não havia ligação, e eu teria que continuar indo no
passado até que todos se ligassem. Comecei a sentir toda a sequência de
minha vida que nunca me dera conta. Primeiro o fato de eu haver sido
abandonado sem amor com a idade de três anos. Depois a palavra "pau" e
o meu procedimento furioso e destrutivo por meio do sexo para disfarçar
o medo que sentia de ficar sozinho.
Estava só em meu quarto e fiquei apavorado. — Queria me livrar de Janov.
Será que sabe o que está fazendo? Qual será o perigo se abrirmos a caixa
de Pandora? Telefonei para Janov e ameacei-o com a polícia. Ele
perguntou-me por que tinha telefonado e eu confessei que estava com
medo. Medo de meus sentimentos. Queria ficar bom. Queria vomitar o
pênis, os testículos e o sêmen.
Pode ser que saúde seja a realidade. Pode ser que a realidade seja um
homossexual. Não sei. Janov disse-me que seu consultório era o meu
quarto e que ali eu podia ser o que quisesse. Quis correr para meu quarto
para ficar seguro ali, para sentir-me eu ali.
Ao caminhar para Janov senti a garganta apertar e tive vontade de chorar.
Senti que era um meninozinho indo para o meu quarto onde estava certo
ser meninozinho. Deitei-me no sofá e logo veio a sensação. Entreguei-me e
papai apareceu. Comecei a chorar e gritar — Papai, papai, quero seu amor,
— mas engasguei-me na palavra "amor" e fiquei envergonhado. Janov
disse, "implore". Eu pedi e implorei o amor que precisava. Engasguei -me e
senti vergonha. Precisar de amor era o mesmo que ser fraco, e aquilo doía
porque eu sempre tinha me recusado a reconhecer que queria o amor de
meu pai. Tinha que ser assim porque ele não me deixava pedir. Era -lhe
muito doloroso e então eu preferia desligar-me para não sentir a rejeição
de sempre. Mergulhei nos meus sentimentos e surgiu um quadro diante de
meus olhos. Eu estava de pé num círculo de pessoas que me olhavam e eu
fazia-lhe o sinal para se foderem dando gargalhadas. De repente o quadro
mudou e eu me vi nu com todos olhando para mim fazendo caçoada. Era o
meu lado feio. Tive medo ali sozinho tentando cobrir-me com as mãos. Não
conseguia descobrir de quem eram os rostos. Janov disse-me que insistisse.
Olhei bem de perto. Minha cabeça girava. Queria correr. Janov mandou-me
olhar. Olhei e dei um grito de angústia. Era minha família. A minha família
que me olhava e ridicularizava e eu senti-me só e vulnerável, e queria que
papai me protegesse. Vi que ele também era um menino pequeno e
apavorado, como eu. Mas onde estava ele? Chamei e vi que estava morto
no caixão, mas me ouvira. Pedi-lhe que não partisse. Disse-lhe que
precisava dele, e pela primeira vez conversei com ele. Queria-o só para mim
e foi o que lhe disse. Ele estava lá sempre que eu chamava, e eu via as
primeiras cenas de minha vida com ele e dizia tudo aquilo que nunca
dissera ou sentira quando ele era vivo. Em muitas sessões eu queria o pau
de meu pai, ficava zangado, irritado e delicado com ele. Com o tempo veio
a hora de lhe dizer adeus, fechar a tampa do caixão e começou então o
processo de deixá-lo morrer e desaparecer.
Minhas sessões Primais rumaram mais para o simbolismo e eu sentia -me
preso e constrangido. Tentei obrigar-me a sentir o que havia, mas não
consegui. Era como se meu corpo se movesse num certo ritmo cujo
processo eu não podia acelerar ou diminuir. Tentei fumar, mas meu corpo
tornou-se rígido de tensão e senti dor. Era como se houvesse uma batalha
dentro de mim onde eu não conseguia controlar o que se passava. Algumas
vezes queria que terminasse, mas logo tinha medo que aquilo acontecesse.
Era preciso sentir o que estava me constrangendo. Mergulhei no
sentimento e vi um retrato meu com uma coisa parecida como um túmulo
de múmia às minhas costas. Eu estava caminhando pela vida, todo curvado,
com o peso daquilo que controlava tudo o que eu fazia. Era a carga que me
tinha sido imposta por minha família e aquilo estava me tornando louco.
Como poderia sair? Eu tinha que sair! Gritei e comecei a arquear as costas
com todos os músculos do corpo distendidos e chorei gritando de tanta
dor. Foi então que houve a ligação física e dos sentimentos. Eu tinha sido
corcunda durante anos, vergado à vontade de meus pais, mas o corpo
nunca tinha aceitado plenamente a imposição daquele corpo estranho. Em
cada sessão eu ia ficando mais desempenado e os músculos iam se
acomodando. Um sistema inteiramente novo estava se apossando de mim
e eu chegava a sentir as ligações físicas. Ficava exausto depois de cada
sessão e esperava com impaciência pela fase seguinte. Não podia acreditar
que aquilo tivesse um fim. Havia dias de sofrimento incrível, dias
tranquilos, dias de expectativa. Eu nunca sabia o que esperar.
Durante o tempo que decorria entre as fases Primais, o meu corpo parecia
descansar para se preparar para a fase seguinte. Percebi que o corpo ia
assumindo o controle de meu corpo à medida que o cérebro ia cedendo.
Eu estava sentado num grupo quando percebi a presença de uma sensação
que já vinha me acompanhando durante várias sessões. Era uma sensação
de aperto na cabeça que se aprofundava nos ossos e músculos da cabeça,
do pescoço e do rosto. Deitei-me no grupo, pensando que tudo terminaria
em alguns minutos, quando senti medo e percebi que todo meu corpo
queria libertar-se. Gritei "estou com medo!" e Janov disse que eu devia
deixar vir. Meu corpo começou a se mover nas posições mais estranhas
desafiando qualquer controle de minha parte e trazendo gritos de dor com
o desenrolar das defesas físicas e neuróticas. Estava alagado de suor e
dominado pelo poder do meu corpo com o cérebro impotente para fazer
valer sua vontade. Descobri então que o cérebro ditava o que meus pais
queriam que eu fosse ou sentisse enquanto meu corpo rebelava-se e já não
se sujeitava a representar conforme qualquer exigência que não merecesse
sua aprovação. Pela primeira vez na minha vida eu era livre e sabia o que
aquilo significava. Não precisava mais fingir. Meu corpo já não permitia.
Minha cabeça já não podia mais enganar o corpo obrigando-o a submeter-
se. Tentei chegar a um acordo para o meu corpo parar de contorcer-se, mas
não consegui.
Meu corpo decidira e eu não tinha escolha. Meu corpo é um tabernáculo
que já não tolera mais a irreverência. Já sei que a grande maioria das
regras, regulamentos, dogmas e controles impostos pelos pais e pela
sociedade são desnecessários quando se permite que a criança seja real e
responda aos comandos do corpo e do cérebro.
15 - SONO, SONHOS E SÍMBOLOS

Quando a criancinha recusa a realidade catastrófica na Cena Primal, ela


deixa de ser completamente real e traça um caminho para ir se tornando
cada vez mais irreal. Esse processo vai se moldando todos os dias com os
pais que não querem sentir que a criança seja ela mesma e exigem que
projete uma imagem inventada de acordo com aquilo que esperam. Ela
pode então ser o "bom menino", o "palhaço" ou o "completo bobalhão."
Quem quiser ser o eu simbólico terá que estar sempre atento. É preciso
que, noite e dia, esteja sempre alerta para não deixar surgir o eu real.
Durante o dia há as representações simbólicas e durante a noite os sonhos
simbólicos que protegem contra os sentimentos reais até mesmo durante
o sono. Se, por exemplo, uma pessoa cresceu procurando sempre agradar
a uma mãe terrivelmente exigente, ela será sempre subserviente, sempre
procurando desculpar-se, em suma, estará sempre fazendo tudo que lhe
diga o inconsciente quando se oferece para fazer tudo que a mãe quiser
desde que ela seja carinhosa. Todos esses comportamentos são uma
referência simbólica que emana do sentimento central.
Como a necessidade não desaparece ou se modifica durante a noite, ela se
manifesta no sonho, ainda em forma simbólica. O sonho pode ser de tentar
aplacar um monstro ou qualquer outra coisa impossível que nunca é
alcançada.
Esse impossível objetivo simbólico é na realidade o tentar fazer com que a
mãe seja carinhosa.
O primeiro ponto, então, a respeito de sonhos é que eles são extensões do
que se passa durante a vigília e não fenômenos diferentes. São a luta
simbólica da noite, a neurose da noite. Parece razoável que um neurótico
não adormeça neurótico, fique bom durante a noite, e desperte neurótico
na manhã seguinte. As pessoas reais, por outro lado, não têm sonhos irreais
da mesma forma que não mostrarão um comportamento irreal durante o
dia.
O segundo ponto é que os sonhos são a única função das pessoas
simbólicas. Foram precisos muitos meses de Terapia Primal para que eu
percebesse que os sonhos tornam-se mais reais na medida em que a terapia
progride. Quando chegavam ao fim da terapia, os pacientes tornavam -se
normais não só de dia como também em sonhos à noite. A mãe era mãe,
os filhos eram filhos e New York era New York. Mais ainda, os seus sonhos
eram todos no presente, e não mais no passado como acontece com o
sonho dos neuróticos. Isso é lógico, já que os símbolos surgem para
mascarar velhos sentimentos dos tempos de criança. O ser normal já se
livrou do passado. Vive no presente dia e noite.
Uma pessoa que se sente sem importância não pode realizar transações
importantes durante a noite para ocultar tal sentimento. Os seus sonhos
cuidarão disso. Poderá sonhar que está sendo homenageado por seus
feitos. Os sonhos e as realizações concretas durante o dia são aspectos do
mesmo sentimento que não foi sentido. Na Terapia Primal, quando um
paciente se apresenta com um sonho assim, ele é obrigado a ir buscar o
sentimento no seu cerne. O que sentirá será a dolorosa sensação que faz
nascer um comportamento simbólico importante no sonho e também
durante o dia.
O terceiro e mais importante ponto com referência aos sonhos simbólicos
é que eles servem para proteger a sanidade de quem sonha. Isto o
contrasta com a hipótese freudiana que os sonhos servem para proteger o
sono e proporcionar-nos descanso. Se conseguirmos compreender que o
eu real, aquele que converte os sentimentos perigosos em símbolos, é que
nos conserva sãos ou neuróticos, logo também compreendemos que os
sonhos simbólicos são essenciais. De outra forma haveria terríveis Primais
durante o sono.
Algumas vezes os sentimentos reais realmente chegam bem perto até
mesmo durante o sono. Os costumeiros símbolos de sonhos já não
amarram os sentimentos, e o resultado são os pesadelos. O pesadelo é o
sentimento Primal rompendo a defesa neurótica. As pessoas que sonham
simbolizam em um novo nível que é o psicótico. Seus dragões e monstros
são o que eu chamaria de simbolização psicótica. Os pesadelos são uma
loucura noturna. É por isso que se torna tão agradável o despertar de um
deles, e a volta ao mundo real. A sensação do pesadelo desperta-nos para
o consciente de forma que podemos permanecer inconscientes da
sensação, da mesma forma que alguns neuróticos tornam inconscientes
algumas de suas sensações e pensamentos durante o dia com o uso do
mecanismo de defesa. Se pensarmos nisso num nível puramente físico,
vamos verificar que muitas pessoas desmaiam, ou tornam-se
inconscientes, quando submetidas a intensa dor física.
A Primal é a extensão e a conclusão lógicas de um pesadelo. É o sentimento
de terror do pesadelo, sem o disfarce simbólico. Toda pessoa que tem
pesadelos é porque está muito próxima de sua Primal. Está realmente
sentindo uma boa parte do terror até mesmo depois que acorda. O coração
está disparado e os músculos tensos. Só lhe faltou cair realmente numa
Primal. A dor evita isso. Se um terapeuta Primal se encontrasse ali naquele
momento a pessoa entraria em sua Primal e estaria a caminho para tornar-
se real.
O pesadelo que se repete, ou um sonho mau, é uma sensação Primal que
persiste e tem de ser simbolizada da mesma forma durante anos. A
sensação nesses casos é que não há quem nos socorra. Ele sente -se só no
sonho, da mesma forma que sempre esteve só no mundo tentando superar
coisas impossíveis. É preciso gritar por socorro.
Algumas pessoas que sonham tentam gritar "socorro" mas não conseguem
emitir um som, e há uma boa razão para isso. O grito que querem dar é o
grito Primal, e o fato dele não sair significa proteção. Como no exemplo
seguinte. Durante uma sessão uma mulher contava o seu sonho da noite
anterior. "Eu estava sendo atacada e alguma coisa havia me encurralado
num canto do quarto. Tentei escapar para correr à casa do vizinho onde
queria chamar a polícia. Estava sempre discando o número errado, e não
conseguia ligar com a polícia." Fiz ela mergulhar de novo no sonho para
tornar a contá-lo. Ela recusava sempre. Por algum motivo era muito
apavorante. Eu insisti. Quando contou que tinha corrido para a casa do
vizinho eu interrompi-a mandando que chamasse o número certo. Ela
gritou que não podia. Eu insistia. Finalmente ela discou o número certo e
então soltou o horripilante Grito Primal: Socorro! Gritou durante dez
minutos debatendo-se no chão. Ela já vinha gritando por socorro durante
vinte anos sem que seus pais a atendessem. Ela estivera sempre tão
ocupada procurando ajudá-los que não sentia a sua própria necessidade de
ajuda. 35
E por que não tinha conseguido gritar no sonho? Porque tinha esperança.
Se ela tivesse gritado e não viesse ninguém, tudo estaria perdido e ela iria
sentir-se inteiramente desamparada diante do fato que ninguém iria jamais
ajudá-la. O fato de não gritar protegeu-a contra aquilo. Quando gritou no
meu consultório ela amargou todos os horríveis sentimentos de desamparo
e desespero. Assim, sem gritar, ela continuou na sua luta e ainda com
esperança. Também servia para disfarçar seus sentimentos. O grito rompeu
o disfarce irreal e contribuiu para colocá-la no caminho da realidade.
Muitos neuróticos são tão bem protegidos que nunca chegam perto do
grito em seus sonhos. Aliás, quase não lembram seus sonhos em virtude
dos sentimentos e seus símbolos estarem tão profundamente sepultados.
Os neuróticos são gritos ambulantes. Nós gritamos de formas sofisticadas.
O fato de mostrar-se obsequioso significa um grito pedindo para ser
tratado com carinho. Quem fala sem parar está gritando para que lhe deem
atenção.
Como se vê do que fica acima, a neurose não é simplesmente um desajuste
social. Não podemos julgar a neurose ou a falta dela pela maneira como
uma pessoa se comporta em seu emprego. Uma pessoa que funcione bem
durante o dia pode ter pesadelos que mostrem eloquentemente a sua
neurose. Por esta razão, as escalas de ajuste social que pretendem ser um
gráfico da neurose de alguém, passam a ser irrelevantes já que mostram
somente o comportamento do indivíduo durante o dia.
A profundidade da Dor, a densidade do sistema de defesa e a proximidade
dos sentimentos do indivíduo podem geralmente ser medidos em termos
dos símbolos nos sonhos. Quanto maior for a Dor, maiores serão as
probabilidades para os símbolos serem muito complexos. Também, quanto
maior for a Dor mais lutas haverá nos sonhos: passando por baixo de

35
(N. do T.) Em inglês "help" significa socorro e ajuda. Daí a ligação.
cercas, libertando-se de um túnel, galgando íngremes montanhas, etc. Se
as sensações surgem durante o sonho a despeito dos símbolos, podemos
suspeitar que a pessoa tenha uma fraca estrutura de defesa e está muito
junto de seus sentimentos. Este será um caso Primal bem fácil, em geral, e
a pessoa tem uma boa probabilidade para ficar boa. Por outro lado,
devemos suspeitar sempre dos sonhos agradáveis nos neuróticos. Por
exemplo, o sonho repetido em que a pessoa está voando e sentindo -se
livre. A Dor por baixo dessa sensação pode ser muito grande. Em lugar de
sonhar que é um outro Prometeu, o que seria mais real, seus sonhos de
liberdade indicam uma brecha, o split do seu eu constrangido. O sonho de
estar tentando desvencilhar-se de cordas que o amarram, pode indicar uma
maior proximidade dos sentimentos reais da pessoa.
Como é exatamente que um símbolo está ligado a um sentimento? Vamos
ver alguns exemplos. Se uma criança se priva de suas necessidades infantis
e procura mostrar-se crescida só para agradara seus pais que mostram
assim a sua infantilidade, ela pode sonhar estar sendo servida por um
exército de criados. Se uma criança for forçada a ouvir as constantes
discussões dos pais a respeito de dinheiro, se for obrigada a ganhar
dinheiro para as suas despesas em empregos que lhe tomem o tempo todo,
ela pode sonhar que desmaiou para que uma ambulância venha ajudá -la
para levá-la a um hospital onde receberá todos os cuidados necessários.
Sonha isso sem mesmo perceber que está de acordo com os seus
sentimentos. Seu sistema está tentando dizer-lhe o que precisa com os seus
símbolos mentais. Precisamos dar muita atenção a tais símbolos.
Os sonhos simbólicos continuam enquanto perdurar a Dor, da mesma
forma que as viagens simbólicas das drogas ou qualquer outro
comportamento simbólico. São um indício importante não somente do grau
da neurose como também da extensão das melhoras terapêuticas. O
simbolismo dos sonhos é uma coisa que geralmente não pode ser fingida
porque os pacientes não sabem o que eles podem significar. Uma pessoa
que se acha bem e que funciona normalmente, mas que, de repente tem
um sonho altamente simbólico, pode não estar tão bem quanto pensa.
Os sentimentos dentro de um sonho são a parte mais real da pessoa. Há
uma tentação para não darmos a devida atenção a tais sentimentos porque
eles se passam dentro do contexto irreal do sonho. Claro que não há nada
daquelas terríveis coisas sonhadas, mas o medo que tornou as histórias
necessárias é absolutamente real. De outra forma ele não estaria lá nem
nos despertaria apavorados.
É o verdadeiro medo que faz os uniformes nazistas aparecerem nos sonhos
da mesma forma que é o pavor real que faz um paranoico imaginar que as
pessoas na esquina estão todas conspirando contra ele. Como não
conseguem sentir a verdadeira sensação, tanto o que sonha como o
paranoico são obrigados a projetar os seus temores em alguma coisa
aparente. A ilusão paranoica e o sonho simbólico são ambos tentativas para
tornar racional um sentimento inexplicável.
A diferença entre o paranoico e o sonho neurótico é que o paranoico vive
o seu sonho durante o dia. Acredita que seus símbolos são reais. O
neurótico sabe que os seus são irreais.
Muitos neuróticos sofrem pesadelos constantes. Já me ocorreu que, num
certo sentido, eles dormem à noite e, com suas defesas diminuídas, chegam
muito perto da loucura repetidamente. Não é de admirar que tenham medo
de ir dormir. Tais pesadelos, no entanto, parecem aliviar bastante a tensão
evitando que se tornem loucos durante o dia. A pessoa com uma Dor fora
do comum não consegue limitar sua loucura às horas da noite.
Vamos examinar um pesadelo para ver como o comportamento dormindo
e o acordado são extensões um do outro. "Ontem, quando pensei que tudo
ia bem, o diretor de minha escola chamou-me para falar sobre uma
reclamação dos pais de um de meus alunos. Embora eu soubesse que
estavam sempre reclamando e que não havia justificativa para a queixa, eu
fiquei perturbada. Fiquei perturbada o dia inteiro sem conseguir me livrar
daquilo. Não compreendia o que havia comigo e fui deitar-me muito tensa.
E sonhei o seguinte: Estou dirigindo um carro por um caminho estreito e
sinuoso. De repente um carro bate no meu de lado justamente quando eu
imaginava que tudo estava bem. Consigo seguir em frente, mas agora estou
num túnel estreito com curvas fechadas uma atrás da outra. Em todas as
curvas eu bato na parede. Sinto como se aquilo fosse o túnel do horror e
estou sempre batendo nas paredes. Olho pela janela do carro e vejo uma
mulher policial de moto que está me observando e esperando para multar-
me. Não posso escapar. Ela está por trás de mim vendo eu bater pelas
paredes. Estou apavorada. De repente acordo sentindo um grande alívio
por estar fora do túnel, um enorme alívio por saber que não era verdade."
É verdade. A parte da sensação em qualquer pesadelo é sempre verdadeira.
O que não é verdadeiro é o contexto, o modelo mental inventado.
Coloquei-a de novo no pesadelo e fiz com que repetisse com o rosto
coberto como se estivesse revivendo. O mesmo terror começa a se
apoderar dela. Deixo que mergulhe no terror e ser dominada por ele. Logo
ela está muito perturbada e debatendo-se no sofá. Começa a falar de sua
infância. "Eu fui tão boazinha durante tanto tempo, mas fiz algo errado que
era inevitável que trouxe desastre de parte de minha mãe." Aí ela começa
a falar de um incidente na infância quando ela fazia tudo muito bem,
limpava a casa, lavava os pratos, mas acidentalmente derramou algumas
gotas de perfume num móvel. A mãe ficou furiosa e a mandou para o
quarto. Ela ficou deprimida porque tinha se esforçado tanto. E volta então
ao sonho. "Oh, agora já sei. Quando batia com o carro nas paredes era
exatamente como as coisas andavam erradas sempre lá em casa por mais
que eu me esforçasse. A minha mãe estava sempre esperando por mim,
como aquela policial, até que eu cometesse um engano fatal. Por mais que
eu me esforçasse sempre havia alguma coisa lá na esquina, como no sonho.
Depois ela liga isso aos acontecimentos na escola justo quando pensava
que ia muito bem como professora e que alguém veio e destruiu tudo. "É
tudo o mesmo, a escola, o sonho e a minha vida." Aí ela sente toda aquela
vida de sofrimentos e grita, "não fique zangada, mamãe, eu não sou má.
Não estrague a minha vida." Ela está revivendo a escola, o sonho e a sua
vida num único sentimento terrível, o terror de sua mãe e como aquilo
tinha prejudicado toda a sua vida.
Foi a situação na escola que deflagrou o sonho. O sentimento, nos dois
casos, era inconsciente. É espantoso pensar que até mesmo no sono nossos
sistemas conservam-nos inconscientes dos sentimentos perigosos, mas o
organismo humano é realmente uma maravilha. O pesadelo é uma exata
alegoria da situação na escola durante o dia quando tudo vai indo bem e
depois desanda. Como é que o corpo sabe produzir uma tão perfeita
alegoria em sonho quando a mente, ou parte dela, está perfeitamente
inconsciente do sentimento que existe por trás? Eu acredito que os
processos simbólicos do sistema irreal são dispositivos inconscientes,
automáticos e necessários para proteger o organismo.
O pesadelo daquela mulher era uma extensão do terror que ela
experimentava na escola sob a forma de tensão. O sentimento produziu o
sonho para cuidar daquele terror e era de esperar que o resolvesse. Seria
possível ela fugir da policial do sonho? Não. Os neuróticos nunca podem.
Por quê? Porque não pode a mulher livrar-se da policial no sonho? Porque
os verdadeiros sentimentos de uma vida inteira conservam a policial ali. A
policial era símbolo do medo de minha paciente. Ela também costumava
ter pesadelos a respeito da porteira do cinema que sempre a pegava
quando queria entrar sem bilhete. Só conseguiu livrar-se dela quando
resolveu o terror.
Eu acredito que isso explica por que em nossos pesadelos nós nunca
conseguimos escapar, por que ficamos com os pés pesados como chumbo
sem poder correr do inimigo e por que somos constantemente perseguidos,
e a razão é que somos perseguidos por sentimentos Primais sem fim até
que eles se resolvam na realidade com uma Primal. Somos condenados a
ter pesadelos enquanto não solucionarmos esses sentimentos. Quando um
paciente que já teve alta continua a ter pesadelos, nós devemos concluir
que a sua terapia não solucionou o que ele sentia e portanto não tocou a
base do comportamento simbólico e neurótico.
No caso da professora, devemos notar que ela despertou automaticamente
quando o que sentia no sonho era mais do que ela podia suportar. O
desligamento do consciente e o subsequente comportamento neurótico
parecem ser reflexos. Ela despertou para reconstituir suas defesas. Nunca
soubera antes que tinha tanto medo da mãe, e não sabia porque estava
sempre ocupada tentando ser a "menina boazinha da mamãe". Evitava o
medo consciente da mãe sendo bem comportada e carinhosa. A mesma
defesa funcionava na escola, geralmente, porque ela era meticulosa e
mantinha tudo bem limpo e arrumado, além de controlar os seus alunos.
Suas defesas começaram a desmoronar quando surgiu uma queixa de fora.
Assim, o pesadelo não significa medo do objeto que aparece no sonho.
Nesse caso não era medo da polícia. A reação dela era desproporcionada
ao simples fato de um policial multá-la. Também na queixa da mãe na
escola ela exagerou a reação. Tanto a queixa como o sonho eram símbolos
de seus sentimentos infantis. Depois da Primal ela disse que o fato de sentir
os terrores noturnos tinha-a ajudado a compreender os terrores diurnos.
Estavam terminados seus pesadelos de dia ou de noite.
Desde que se sinta o terror ou as Dores Primais de qualquer espécie tudo
isso desaparece para sempre só porque foram sentidos. Logo que sejam
sentidos e ligados, está tudo acabado.
É lógico que os neuróticos tenham um sono inquieto, um sono perturbado
pelos sentimentos reais. A mesma Dor que os persegue durante o dia
também força-os a criarem tipos em sonhos para mantê-los ocupados à
noite. Não é, portanto, de admirar que os neuróticos acordem de manhã
mais cansados do que quando foram dormir! Teve uma noite agitada
procurando fugir ao que sentia. O pobre do neurótico não tem sossego.
Acorda de manhã já cansado sem poder dar conta de seu recado durante o
dia e isso, por sua vez, traz ansiedade e mais problemas que vão perturbar
o seu sono, e assim o ciclo não tem fim.
Vamos agora examinar alguns sonhos para ver o seu simbolismo.
"Meu pai vem me visitar na casa em que estou morando. É num segundo
andar. Ele me dá um beijo na testa e eu caio ferindo o joelho. A ferida fica
pior e mamãe fica zangada com papai por ser tão desastrado."
Nesse sonho verificamos que as pessoas são reais mas a situaçã o não é. O
simbólico é o significado da situação. O que o paciente sentia dentro desse
sonho era: "Eu acho que sempre soube que se aceitasse a afeição de papai
isso me dividiria em dois. Mamãe e eu parecíamos ter uma combinação
para deixar papai mal. Acho que eu também fiz isso para que ela me
amasse. Acho que o fato de amar papai significava desistir do amor de
mamãe."
O sonho número dois teve lugar um mês depois da primeira Primal.
"Eu estou limpando alguma coisa com Janov. Tenho cortes e arranhões na
mão que estão cobertos com uma camada de cera. Digo a Janov que não
consigo mover as mãos porque estão inchadas. Ele diz que posso. Tento
passar mercúrio cromo mas não adianta. A cera repele-o. Percebo que os
cortes são símbolos de velhos sofrimentos que ainda impedem que eu seja
verdadeiramente eu. Sei que não posso mais evitar. Raspo fora a cera e uso
as mãos."
Aqui nós vemos um menor uso do simbolismo e o conhecimento do
significado do símbolo durante o sonho. Parece que o consciente e o
inconsciente se misturam. O paciente percebe que a luta não é real mesmo
em sonho e corrige-a. Em pouco tempo, talvez uns meses, podemos esperar
que desapareçam os restos de vestígios da luta. Os sonhos deverão então
ser tão diretos e verdadeiros como o comportamento acordado.
Mais um sonho:
“Estou no quintal trabalhando com meu pai. Minha mãe chama para jantar
muito zangada. O jantar é triste. Tudo está calado, quieto e morto. Meu pai
tenta contar uma piada e minha avó ri, um riso horrível que mostra sua
dentadura postiça. Mamãe olha para vovó com esperança. Vejo que minha
avó também não ama. De repente percebo tudo. Vejo a família como as
cascas vazias que são. Tudo é sem vida e tristonho. Começo a chorar, peço
licença, e vou para a cozinha. A comida do jantar está pronta mas ninguém
procura servir. Isso me faz chorar ainda mais. Estão todos mortos demais
para fazerem um esforço.
"Minha mãe pergunta se eu estava chorando e meu pai diz que não. Corro
para cima e tranco a porta. Procuro um pedaço de papel para escrever o
sonho. Sei que é importante. Lá embaixo ouço meu pai cantando. Choro
pensando que não tenho um lar em parte alguma."
Há muito pouco simbolismo nesse sonho. A situação é direta e os
sentimentos nela espelham exatamente o que ele sente a seu respeito e
sua vida. Compreende até mesmo em sonho o que significa e o sonho
explica-se por si. Parece que não existe um emaranhado de labirintos para
se atravessar. O paciente parece ter sentido o vazio, a falsidade de sua vida,
e como seu pai, também tenta encobrir seus verdadeiros sentimentos.
Discussão
Se uma pessoa não sofre e se tem relações diretas com seus sentimentos,
não vejo razão alguma para simbolizá-los. Os que terminam o tratamento
Primal não têm sonhos simbólicos pela mesma razão que também não
fazem viagens simbólicas de LSD. Não há Dor e não há necessidade para um
disfarce simbólico. Os acontecimentos de rotina não deflagram velhos
sofrimentos que surgem nos sonhos das pessoas normais porque não
existem sofrimentos sem solução para se misturarem com o presente.
Deve ser óbvio que não há símbolos universais, assim como também não
há sintomas com significados universais. Os símbolos referem-se a
específicos sentimentos dentro do indivíduo. É possível que duas pessoas
tenham o mesmo sonho e que ele tenha significados diferentes.
Os pacientes que terminam a Primal necessitam menos horas de sono e
dizem que seu sono é repousante. Também sonham menos. Houve um
paciente que observou que ia para a cama para dormir em lugar de passar
a noite tendo sonhos.
Aqui está, em resumo, o que alguns de meus pacientes pós-Primais dizem
a respeito de sono e de sonhos. Todos eles dizem que o sono muito
profundo é geralmente neurótico já que constitui uma defesa até mesmo
contra os símbolos nos sonhos neuróticos. Um paciente assim se
expressou: "Eu costumava dormir como se enrolasse o meu consciente num
grosso cobertor. Agora eu durmo como se estivesse coberto por uma gaze.
Diz que antes considerava o sono como um estado inconsciente mas agora
já vê o sono como simples repouso. Já não existe mais o inconsciente.
Um paciente achava que talvez houvesse uma divisão quando julgamos o
sono como algo separado da vigília, e ficamos então imaginando se a
polaridade do sono versus vigília não nos permite ver que são
simplesmente diferentes aspectos do mesmo estado de ser e não duas
entidades distintas ligadas apenas por alguma coisa mística.
Os norte-americanos nas suas lutas diárias ainda têm um sono perturbado.
O censo feito por Louis Harris 36 mostrou que mais de um terço da
população tem problemas com sono pouco satisfatório durante a noite.
Vinte e cinco por cento sente-se por demais exausta para levantar-se de
manhã. Indica ainda que mais da metade da população sente-se solitária e
deprimida durante parte do dia e vinte e três por cento confessou
sentimentos de "distúrbios emocionais". O trabalho duro é responsável por
parte disso, os gritos com as crianças também contribuem, os cigarros e o
álcool ainda ajudam e há sempre a necessidade de tranquilizantes e pílulas
para dormir.
Um interessante estudo feito por um membro da UCLA 37 numa conferência
sobre fisiologia de cérebro mostrou que as pessoas que deixam de fumar
sonham mais e com maior intensidade. Aqui nós vemos a prova para a
hipótese Primal a respeito de sonhos e alívio de tensões. Quando se elimina
os mais comuns aliviadores de tensões, os sonhos arcam com uma carga
dupla. Também, as pesquisas sobre o sono indicam que as pessoas que
tomam pílulas para dormir profundamente sonham menos do que as sem
pílulas. Mas os efeitos posteriores tornam a pessoa mais irritável e
deprimida obrigando a mais aliviadores de tensão como o fumo. O sistema
neurótico, em suma, sempre encontra um jeito.
As pessoas que não sonham bastante devido a pílulas para dormir, logo
passam a sonhar mais quando deixam de tomar o remédio, e são sonhos
mais perturbadores. Não se pode liquidar a neurose com remédios.
É possível um alívio provisório, mas o neurótico tem que pagar o preço. Isso
significa que os tranquilizadores durante o dia só servem para adiar mas
garantem as inevitáveis consequências de sérios distúrbios logo que seja
suspenso o tratamento.
As implicações do que afirmo vão além do fenômeno do sonho e do sono.
Eu quero dizer que as pílulas, por mais propaganda que recebam, não
afetam seriamente as doenças mentais no final das contas. Apenas ajudam
a reprimir o verdadeiro eu produzindo mais pressão interna e mais sérias

36
Los Angeles Times, setembro de 1968.
37
Los Angeles Times, setembro de 1969.
neuroses. As pílulas estão nas mesmas condições que as técnicas de
condicionamento que ajudam a suprimir o mau comportamento por meio
de choques elétricos. Pois não é isso mesmo que os pais fazem com os seus
comportamentos, e não é verdade que o resultado é uma neurose ainda
mais profunda? Há estudos, por exemplo, que mostram um maior número
de ataques de coração durante o sono, e é possível que existam boas razões
fisiológicas para isso. Mas também podemos ficar pensando se o uso de
tranquilizantes durante o dia não cria tanta pressão que precise ser aliviada
pelos sonhos quando os cardíacos vulneráveis já não podem suportá -la.
Os neuróticos sentem dificuldade para dormir porque são constantemente
ativados pela Dor Primal que representa o oposto do sono. O uso de
tranquilizantes e de pílulas para dormir é o mesmo que manter num intenso
fogo uma vasilha bem tampada. Chega una hora em que alguma parte do
sistema tem que ceder, o que, aliás, pode arrastar com todo o organismo.
16 - A NATUREZA DO AMOR

O conceito do amor sempre foi discutido através dos anos, e assim talvez
seja bom considerá-lo sob o ponto de vista Primal.
Nos seus verdadeiros alicerces, o amor significa liberdade de sentimentos
para todos. Significa permitir que todos cresçam naturalmente e que se
expressem com naturalidade. O essencial é que cada um seja o que quer e
que permita a mesma liberdade a todo mundo.
A definição Primal do amor é permitir que todos sejam o que são. E isso só
pode acontecer com satisfação das necessidades.
Implícita na definição de amor está a existência de uma verdadeira relação
entre pessoas que se amam. Afinal de contas, podemos deixar todo mundo
ser o que deseja simplesmente ignorando-os, mas a reação entre duas
pessoas faz parte integral do amor. Devemos lembrar que quando estamos
deixando uma pessoa ser o que ela deseja isso significa a satisfação de suas
necessidades. E é isso que devem fazer os pais que amam os filhos. Mais
tarde surgirão as necessidades a serem, satisfeitas, e o amor então pode
ser recíproco e sincero. Infelizmente, o amor para o neurótico significa a
realização de suas necessidades irreais (na forma de desejos). Signifi ca
presentes ou muitos telefonemas, ou então, ainda, "provas" de eterna
dedicação. O neurótico sente que não é amado quando as suas
necessidades doentias não são atendidas. Que melhor exemplo disso do
que o sofrimento de um homossexual quando é abandonado pelo seu
parceiro?
O amor é sentimento. É quando duas pessoas conversam, tomam café
juntos ou fazem amor. Quando não existe o sentimento, isto é, quando ele
está bloqueado ou escondido, os neuróticos podem fazer tudo isso sem que
haja qualquer resquício de amor.
O amor no princípio da vida significa a satisfação das necessidades Primais.
Nos primeiros meses e anos significa muito colo e carinho. A criança não
dá o nome de "amor" para o colo ou aconchego, mas sente-se magoada
quando não tem isso. O contato físico é condição sine qua non para a
criança. Sem isso não há manifestação do amor. Não é bastante para a
criança "saber" que, de certo modo, é amada por pais que não demonstram
o sentimento. Ela precisa sentir. Sem isso não adianta os protestos orais.
Sem isso não há amor. Os pais que trabalham duro e raramente veem os
filhos, podem imaginar que estão trabalhando para eles, mas se não houver
o contato mútuo, ou quando eles não se dedicam aos filhos, nós devemos
concluir que estão trabalhando para seu próprio alívio. Se a criança tem
necessidade da presença de seus pais e eles estão longe trabalhando, a
maior parte do tempo, então ela não está vendo suas necessidades
satisfeitas.
As crianças que são criadas em instituições onde existe pouco afeto ou
atenção pessoal, geralmente tornam-se personalidades sem expressão e
apagadas. Vivem numa apatia que continuará a existir em sua idade adulta.
Essas crianças automaticamente tentam proteger-se contra a falta de amor
e tornam-se fechadas para não serem mais feridas.
Os estudos feitos com cães chegaram à mesma conclusão. Os animais
tornam-se "frios" e "duros" quando adultos, são quase assexuados e não
reagem aos carinhos.
As mesmas conclusões foram conseguidas com macacos nas famosas
experiências de Harlow em que os animais foram segregados em três
grupos. O primeiro foi criado em completo isolamento, um segundo com
cães que eram bonecas de pano e no terceiro elas eram feitas de arames e
paus 38. Harlow chegou à conclusão que os macacos isolados eram os que
mais sofriam. Pareciam incapazes de oferecer ou receber afeição. Os que
tinham as bonecas de pano pareciam sentir-se tão bem como se fossem as
verdadeiras mães. Comiam bem, não tinham medo, eram mais sociais e
ativos. Harlow mostrou a importância do contato físico. Quando o macaco
abraçava-se à sua mãe de pano os laços de afeição entre eles eram tão
fortes como se fossem ambos reais. Por essas experiências, nós podemos
chegar à conclusão que aquilo a que damos o nome de amor nos primeiros
meses da vida gira em torno do tato e de contatos físicos cheios de calor.

38
Harry F. Harlow, "Love in Infant Monkeys", Scientific American, vol. 200, N.° 6 (junho 1959).
A criança mal amada pode ser aquela que não teve tais contatos.
Os carinhos da tenra idade são importantes, principalmente quando
consideramos que, durante décadas, muitas crianças foram criadas "pelo
figurino". Os pais cuidavam dos filhos mais conforme tabelas e regras do
que pelo que sentiam. Eles eram alimentados pelo horário certo e não
quando choravam com fome, e não os seguravam ao colo quando choravam
com medo de estragá-los. Os guias da pediatria nas últimas décadas foram
influenciados pelo que escreviam os psicólogos behavioristas primitivos
que achavam desaconselhável amimar e amar as crianças quando
choravam pois isso seria para elas uma séria desvantagem quando, mais
tarde, tivessem que enfrentar um mundo frio, duro e hostil. Já agora vemos
que o certo é exatamente o contrário, e ainda mais, que não é só o ato que
conta e sim os sentimentos. Quando um dos pais é tenso e nervoso e cuida
da criança sem a necessária delicadeza, o resultado será o se u sofrimento
no futuro, mas qualquer espécie de atenção dada a ela sempre melhora as
suas condições.
Um bebê sabe quando está molhado, cansado ou quando tem fome. Desde
que receba atenção ele está considerando isso como amor. É o amor que
faz desaparecer a dor. Quando ele tem liberdade para explorar, gritar,
chupar o dedo, segurar a mãe, então nós chamamos isso de amor. Quando
não tem nada disso ele torna-se inquieto. Podemos afirmar que o amor e a
dor são polos opostos. O amor é que dá maior valor ao ser e a dor é que
suprime esse valor.
O contato e o aconchego não são só amor. Se não permitirmos que a
criança demonstre seus sentimentos ela terá que emparedar uma parte de
si mesma e é bem provável que todos os carinhos e aconchegos não
cheguem e que ela ainda se sinta desprezada. Nunca é demais fazer
sobressair a importância da livre expressão, pois isso poderá determinar a
sorte da criança para toda a sua vida. E não são suficientes as
demonstrações de afeto esporádicas e formais.
Uma vez que os sentimentos são todos unificados, eu não acredito que seja
possível proibir alguns e esperar completa exibição de outros. Tudo que a
criança neurótica sentir mais tarde será menos aguçado e mais disfarçado.
Se não permitirmos acessos de raiva numa criança, por exemplo, isso
refletirá muito na sua forma de sentir-se feliz ou amada.
Nenhuma afeição posterior remediará o que lhe foi negado antes, seja isso
melhores condições de vida, mais gente em torno demonstrando afeição.
Isso só será possível se os sentimentos antes recusados forem revividos. O
neurótico passa uma boa parte de sua vida adulta tentando disfarçar a sua
Dor com novos amores, ligações amorosas e namoros, paradoxalmente,
quanto mais amores tiver, menos ele continuará sentindo. Parece ser uma
perseguição sem fim porque, para ele, ser amado significa primeiro que a
antiga Dor de não ser amado deve ser sentida em toda a sua intensidade.
Uma vez que o amor envolve sentimentos da própria pessoa, nós não
podemos transferi-lo para outrem. Quando alguém diz "Você faz-me sentir
como mulher" ou "Com você eu sinto-me amada", isso geralmente significa
que elas não sentem e então precisam de símbolos externos para se
convencerem que são "amadas". O amor não é algo que se dê a alguém até
que ela sinta-se "cheia". Tampouco não podemos ficar vazios de amor nem
de sentimentos. Não é alguma coisa divisível que possa ir sendo dada aos
pedacinhos nem pode ser subdividida em classes como "amor maduro" ou
"amor imaturo".
O neurótico mais velho pode afirmar seu imorredouro amor verbalmente,
mas quando o sentimento entra em jogo os protestos de amor podem
tornar-se sem sentido. E mais ainda, essas afirmações verbais de amor são
súplicas disfarçadas para conseguir que suas próprias necessidades sejam
satisfeitas. As pessoas com sentimentos raramente precisam de
confirmações verbais e as que não os têm estão sempre precisando delas.
O que o neurótico procura no amor é o seu eu que ele nunca teve permissão
para ser. Ele quer alguém especial para poder sentir. Considera como amor
tudo aquilo que não teve e tudo que impede a sua integridade. Algumas
vezes ele tem necessidade de contato físico e pode tentar fabricar o amor
por meio do sexo, ou seja "fazer amor". Algumas vezes procura proteção e
outras quer somente ser compreendido e ter com quem conversar.
O dilema do neurótico é que, embora o amor não seja mais do que a livre
expressão do eu, ele teve de abrir mão de seu sentimento para conseguir
sentir-se amado dos pais quando era criança. O neurótico, por definição,
deve acreditar que é ou que será amado, pois do contrário não continuará
a luta neurótica. Em resumo, como no terceiro grupo de macacos de
Harlow, a criança conserva a ilusão do amor através de sua luta para que
não chegue à conclusão que só lhe restem os arames e paus.
Assim, se uma criança de seis anos soubesse a verdade seria duvidoso se
continuaria ou não a lutar. A promessa de amor, tanto implícita como
explícita, parece ser o que conserva a criança com esperança em lugar de
enfrentar a realidade de sua vida incipiente. Poderá passar toda a sua vida
buscando alguma coisa que não existe, nem mesmo nunca existiu, que é o
amor dos pais. Ela pode fingir-se de engraçada para alegrar os pais, de
estudiosa para impressioná-los ou de inválida para exigir cuidados. O
próprio fingimento impede o amor porque ele está escondendo como
realmente agiria e sentiria.
Pelo que observei, o neurótico torna a criar a sua primitiva situação de mal
amado mais tarde na vida para representar o mesmo drama sempre
esperando por um fim feliz. Quando se casa com uma figura de mãe isso
não significa apenas que a deseje. O que ele deseja é uma mãe que o ame,
mas não quer o amor assim direito. Primeiro ele precisa estabelecer um
ritual. Pode encontrar alguma pessoa fria como sua mãe e tentar consegu ir
dela algum calor. Ou ela encontra alguém rude e grosso como o pai e
procura torná-lo bondoso e delicado. Isso é uma representação simbólica.
Se a pessoa ficar envolvida com o que realmente ame, teria que desistir
porque sempre lhe restaria aquele antigo sentimento de mal amada. Em
resumo, o encontro de uma pessoa agradável serviria para impedir a luta
simbólica para finalmente solucionar os antigos sentimentos. Nesse
sentido, o encontro de amor atual significa sentir a Dor por não conseguir
o antigo amor.
Até mesmo em seus sonhos, o neurótico cria a mesma luta. Sempre há
obstáculos para chegar ao ente amado. Não consegue nunca chegar à
"terra do amor".
Uma vez que nunca teve permissão para sentir, o neurótico muitas vezes
acredita que o amor deve estar em outro lugar e com alguma outra pessoa.
Raramente compreende que está dentro dele mesmo. Creio que toda a sua
agonia é uma tentativa para encontrar-se, mas o problema é que não sabe
como. Não consegue atingir seus sentimentos. Sendo assim, a busca do
amor nada mais é do que a busca para "ser", para sentir. O desespero, a
perseguição, as viagens a novos lugares são frequentemente tentativas
para encontrar aquele alguém especial que vai conseguir fazer com que ele
sinta alguma coisa. Infelizmente só a Dor pode conseguir isso. E assim,
estamos sempre vendo, numa repetição sem fim, o mesmo triste drama,
uma peça de terceira classe com um original monótono, atores incapazes e
sem um epílogo feliz.
Eu acredito que a luta tem por fim fazer com que a pessoa possa finalmente
conseguir, mesmo sob a forma de alternativa, o amor de criancinha que
tanto precisou muitos anos antes sem nunca conseguir. O que certamente
não está procurando é o amor de adulto no presente. Assim, a noção Primal
a respeito de amor gira em torno do fato de ser aquilo que procura a mesma
coisa que sentia falta até mesmo décadas antes. O neurótico está pronto a
definir como amor tudo que preencher tais requisitos. Talvez seja por isso
que há tantas e tão diferentes definições do amor. É porque são muitas
também as diferentes necessidades.
Infelizmente, mesmo se os pais neuróticos se transformassem, de repente,
em pessoas extremosas e compreensivas, nada teria mudado. O neurótico
não pode usar essa espécie de amor nos anos posteriores de sua vida
porque isso também seria apenas uma alternativa para o que realmente
aconteceu anos antes entre a criança e os pais indiferentes. O sentimento
de mal amado tem prioridade.
A criança infeliz, com o seu comportamento neurótico, sua agressão, suas
doenças, seus fracassos, está tentando dizer aos pais "quero ser amada
para não viver mentindo." Como já vimos, a mentira é um pacto
inconsciente entre a criança e os pais no qual ela concorda mentir para si
mesma para poder ser o que eles querem. Concorda em fazer o que eles
querem desde que, mais tarde, eles a compreendam e não lhe seja
necessário mentir. Mas enquanto continuarem com as mentiras as duas
partes estão convencidas que o amor existe entre elas. Ela não põe um fim
à mentira com medo de perder o amor. O estranho é que mais tarde na
vida, quando alguma coisa acontece para desmascarar a mentira, a pessoa
tem a tendência para sentir-se mal amada. O terapeuta Primal não
encontra muita simpatia logo de saída, como acontece com outros
terapeutas, porque ele não participa da mentira, e assim a pessoa não tem
outro remédio senão sentir-se mal amada.
O neurótico, geralmente, é confuso. Acaba pensando que o amor é aquilo
que seus pais indiferentes lhe deram. Se seus pais sempre mostravam -se
"preocupados" com ele, o neurótico irá procurar despertar preocupações
por meio de fracassos ou moléstias. Com a provocação de reações
semelhantes às de seus pais, o neurótico consegue manter vivo o mito do
amor. E muitas vezes está tão empenhado na luta para manter o mito que
nem mesmo sente a sua infelicidade. Ele pode, por exemplo, apresentar -se
para a terapia dizendo, "meus pais não eram perfeitos. Ninguém é. Mas me
amavam lá à moda deles." Eu acredito que essa "à moda deles" foi que fez
da criança um neurótico. Também poderá dizer, "o papai gostava de
disciplina, não era muito expansivo em suas afeições, mas nós sabíamos o
quanto amava os filhos". Isso, traduzido, poderia dizer, "o papai quer
perfeição, nunca faz elogio, nunca mostra afeição, mas enquanto andarmos
direitinhos fazendo o que ele quer podemos considerar que somos
amados". Mas não adianta que a gente tente querer convencer a nós
mesmos. Quem não é amado sabe que não é. Quando alguém na terapia,
com o raciocínio acima, é forçado a gritar que quer ser acalentado e
acariciado pelo pai, o resultado é o sofrimento. Todas as coisas que ele
julgava verdadeiras parecem desmoronar diante da Dor.
Uma paciente insistia que era amada pelos pais que eram nisso muito
exuberantes. Afirmava que o marido era a origem do seu problema. Na
segunda semana da terapia ela sentiu. Voltou ao passado e reviveu uma
cena em que fora preferida à irmã por ser mais boazinha. Durante toda a
sua vida nunca sentiu que não fora amada porque fora a filha boazinha. Os
pais manifestavam a sua preferência por ela de todas as formas e tudo que
tinha a fazer era ser "boa". E porque era boa em lugar de ser o que era,
nunca sentiu falta de amor. Mesmo assim, ela experimentou a Dor Primal,
e essa Dor só se manifestava quando eu não lhe permitia que continuass e
sendo a menina boazinha que sempre fora. Isto é mais um exemplo da
noção Primal que o amor é permitir que as pessoas sejam o que são. Aquela
moça tinha aparentemente tudo mas não era dona dela mesma. Ela era mal
amada.
As crianças entregam-se e sacrificam-se para poder esconder o sentimento
de não serem amadas. Os pais fazem a mesma coisa para esconder quando
não sentem amor pelos filhos. A entrega de si mesmo parece ser parte da
ética Judaico-Cristã na qual nos entregamos a uma divindade em nome do
amor. Houve uma paciente que disse: "Entreguei-me para conseguir o amor
de minha mãe. Quando isso não funcionou eu tentei meu pai, e quando ele
também me falhou eu virei-me para Deus." O neurótico parece estender
esse processo para que possa começar a medir o amor em termos de
quanto os outros se sacrificam por ele.
Não é por acaso que toda a criança amada raramente dá importância ao
amor. Não precisa dar o nome de amor às coisas nem duvida do amor dos
pais. Não precisa da palavra porque tem o sentimento. Todos aqueles que
precisam rotular as coisas com o nome de amor é porque não são amados.
Se os pais quisessem evitar a luta neurótica pelo amor nos filhos, eu lhes
aconselharia que mostrassem com franqueza todos os seus sentimentos e
deixassem as crianças também dizer tudo que quisessem e da maneira que
mais lhe agradasse. Em resumo, isso seria permitir às crianças os mesmos
direitos de todas as outras pessoas. As crianças devem ter liberdade de
expressão porque são seus os sentimentos, mas não podem quebrar as
coisas em casa porque elas pertencem à família. Mas é difícil que uma
criança seja destruidora materialmente desde que possa sê-lo
verbalmente.
Quando nós dizemos tudo que a criança pode sentir e exigimos que ela
examine seus sentimentos, nós já começamos a interferir com a sua
capacidade de sentir. Quando se dá à criança uma total espontaneidade de
todos os sentimentos, é quase certo que ela se tornará uma criança que
espontaneamente irá atirar-se nos braços dos pais com beijos e abraços, e
dessa forma, também os pais serão amados. Nós estamos acostumados a
ver crianças recebendo ordens e não esperamos delas gestos espontâneos
e afetivos. Num lar neurótico o amor torna-se um ritual. Existe o dever da
afeição, o beijo da chegada ou despedida sem um sentimento espontâneo,
e a reprimenda se a criança não cumpre o seu dever. O que o neurótico
consegue de seu filho, geralmente, é um ato despido de sentimento
quando a criança teria muito mais a dar se isso lhe fosse permitido.
Por que é tão geral a perseguição ao amor? Porque se trata da perseguição
ao eu que não existe. Mais precisamente, é a procura de alguém especial
que lhe permita ser o que é.
Já que tantos de nós tivemos nossos sentimentos ignorados ou
massacrados, acabamos fazendo aquilo que não sentimos. Os casamentos
precoces, os romances passageiros, creio eu, são o fruto de frustrações e
desesperos íntimos para sentirmos através de outros. A procura parece não
ter fim porque muito pouca gente sabe realmente o que está procurando.
A perda de um ser amado atualmente não pode levar a resultados
catastróficos como a tentativa de suicídio, a não ser que ela reflita uma
outra perda mais antiga e mais profunda em nossa juventude.
Quando o neurótico, finalmente, sente-se mal amado, ele está preparando
o caminho para sentir-se amado. Quando sentir a Dor é porque está
descobrindo a realidade do corpo e os seus sentimentos, e não pode haver
amor sem sentimento.
17 - SEXUALISMO, HOMOSSEXUALISMO, BISSEXUALISMO

Na Teoria Primal há uma diferença entre sexo como um ato e sexo como
experiência. O ato do sexo envolve todos os movimentos ostensivos feitos
pelos indivíduos durante as relações sexuais. A experiência é o significado
de tais movimentos. Na neurose, a experiência do ato pode ser bem
diferente do próprio ato. Assim, pode-se experimentar o ato heterossexual
de uma forma homossexual e com fantasias também homossexuais. E um
ato homossexual entre dois homens no qual um desempenha o papel
feminino pode ser experimentado como ato heterossexual. Eu caracterizo
a natureza do ato em termos de sua experiência subjetiva, uma diferença
que será importante quando discutirmos o tratamento das aberrações e
perversões sexuais.
É possível, por exemplo, encontrar pessoas que agem como se estivessem
praticando o sexo sem experimentar nenhuma sensação, como é o caso das
mulheres frígidas. O que dá ao sexo o seu significado, então, é a plena
consciência e sensação da situação e o que o altera é o esforço neurótico
para conseguir valores simbólicos do ato.
A hipótese Primal é que quando há privação das necessidades e que os
sentimentos são bloqueados no princípio da vida, eles surgem em forma
simbólica. No sexo, isso significa que o ato será experimentado geralmente
por meio da fantasia, como se satisfizesse a necessidade.
Vamos discutir alguns exemplos. Um homem de trinta anos sofria de
impotência. Perdia a ereção sempre que penetrava na sua mulher. Ele fora
educado por uma mãe fria e "ranzinza" que só lhe dava ordens e nenhum
carinho. Como escapava ao seu conhecimento que merecia carinho, ele
desconhecia e não reconhecia nenhuma necessidade para tal. Casou -se
com uma mulher agressiva e exigente como sua mãe e que tomou conta de
sua vida transformando-o num marido passivo. Quando chegava a hora de
penetrar nela, aquilo já não era mais uma questão de sexo com uma
mulher. Era o meninozinho sendo amado simbolicamente pela mãe. O
aspecto simbólico do ato (o incesto) não permitia que ele funcionasse como
adulto. O homem não reconhecia suas primitivas necessidades de carinho
e procurava a afeição maternal com outras mulheres. As mulheres eram
símbolos do amor maternal e o ato do sexo com elas era simbólico, o que
prejudicava o seu funcionamento. Naturalmente, se as mulheres fossem
apenas fêmeas adultas não seria de esperar o mau funcionamento sexual.
O problema surgia porque elas tornavam-se símbolos da mãe.
Os órgãos sexuais funcionam de maneira verdadeira quando a pessoa é real
e de maneira irreal quando a pessoa também é irreal.
Em todos os atos dos neuróticos há um sistema duplo que funciona: o
sistema real com as suas privações e necessidades, e o sistema irreal que
tenta preencher simbolicamente essas necessidades inconscientes. Assim,
o eu irreal parece estar participando de sexo maduro ao mesmo tempo que
a criança que existe dentro dele está querendo ser amada. E uma vez que
está à procura de amor infantil, o neurótico inconscientemente é obrigado
a fazer de seus parceiros a pessoa dos pais, ou seja, alguém irreal. Não é
de surpreender, portanto, se a pessoa se torna impotente ou se é traída
pelo seu corpo de outras formas.
Um outro exemplo. Um homem não conseguia ereção com sua bela mulher
enquanto ela não lhe falasse de outros homens com quem desejaria ir para
a cama. A sua descrição minuciosa dos órgãos sexuais dos outros home ns
serviam-lhe como estímulo e excitação. A relação com sua mulher, em
termos Primais, era essencialmente homossexual. Ele não tinha relações
com ela e sim com as necessidades que lhe tinham sido negadas na primeira
infância e que surgiam na preocupação simbólica com órgãos sexuais. Esse
mesmo homem tivera um pai fraco e apagado que pouco lhe falava e
nenhum carinho lhe dispensava. Tudo que ele queria tinha que pedir
primeiro à sua mãe que então ia pedir ao pai. Isto é, tinha que ir através da
mãe para chegar ao pai o que era essencialmente a mesma coisa que estava
fazendo com o sexo. A necessidade que sentia do pai estava sempre
presente, mas como lhe era negada, veio a ser simbolizada na forma de um
pênis. Assim, durante o sexo a sua relação era o símbolo do amor paterno
e não sua mulher. Para ser verdadeiramente heterossexual, ele teria que
livrar-se daquela necessidade do pai.
Mais um último exemplo. Durante o ato sexual uma mulher imaginava estar
sendo dominada e brutalizada contra sua vontade. A experiência do ato era
a de uma criança desamparada, uma vítima do sexo e não apenas uma
parceira em igualdade de condições. Essa mulher tivera um pai sádico e
brutal que a chamava de "puta" quando ela era moça, com menos de vinte
anos; não lhe permitia encontros com namorados e ridicularizava a sua
maquilagem. Ela não reconhecia a sua necessidade do amor paterno, mas
durante o ato revia-se como vítima indefesa (do pai) pois só assim
conseguia sentir alguma coisa.
Em todos esses casos, o ato do sexo é simbólico, é uma tentativa para
solucionar velhas necessidades. A pessoa não sente a situação em que se
encontra pois está relacionada com uma fantasia. Assim, para algumas
mulheres, o ato pode significar amor, e para alguns homens pode significar
virilidade, poder, vingança. A função da fantasia durante o sexo é a
recriação da luta primitiva entre pais e filhos. A diferença crucial, no
entanto, é que durante o sexo a pessoa está tendo aquilo que sempre
imaginou encontrar ao fim da luta de toda a sua vida, ou seja, s er beijada,
apertada, acariciada e amada, sentir enfim. O neurótico faz com que
simbolicamente a sua luta “dê certo" proporcionando-lhe um resultado
fantasiado que nunca poderia acontecer na realidade. Houve uma mulher
que disse: “Minhas fantasias durante o sexo são um bom exemplo de como
eu vivia só com a mente em lugar do corpo. Eu nem mesmo sentia o que se
passava da cintura para baixo."
Quando a pessoa sente a sua necessidade original, então a fantasia já não
tem mais função. Quando o homem impotente do primeiro exemplo sentiu
a profunda necessidade de uma mãe boa, humana e carinhosa, ele já não
precisou mais de substitutos. Sua mulher já não era mais sua mãe pois ele
sentia a realidade do que ela fora. O seu problema sexual desapareceu
porque fazia parte de um ato simbólico que não tinha relação alguma com
o que se passava com sua mulher. O mesmo aconteceu com o homem do
segundo exemplo. Depois que sentiu como havia sido terrivelmente
privado de um pai, ele já não precisava mais de símbolos tangíveis qu e o
representassem.
Os exemplos acima mostram que o sexo neurótico é simbólico e nele a
pessoa raramente "vê" o seu parceiro, e o fato dele ser efetuado no escuro
ainda mais aumenta o seu valor simbólico. A fantasia pode nem mesmo ser
consciente. O neurótico pode pensar que seu parceiro é sua mãe ou seu pai
sem perceber que está realizando a fantasia.
Ninguém pode ser completamente heterossexual com a Dor Primal. Se, por
exemplo, uma moça deseja o amor de seu pai, ela pode praticar o sexo com
muitos homens numa tentativa para simbolicamente alcançar esse amor,
mas é bem provável que surjam problemas de frigidez porque enquanto o
sistema irreal está experimentando o sexo com homens, o sistema real está
inconscientemente tentando apenas ser aconchegada e sentir-se amada
(pelo pai). A experiência não é sexual. É infantil já que a mulher está
tentando recuperar o que perdeu no passado. Uma mulher frígida declarou
que "em lugar de me entulhar com comida, eu entulhava-me com os muitos
pênis sempre tentando satisfazer-me de amor. Nada chegava para me
sentir amada. Acho que agora já sei por que não conseguia sensação no
sexo. Se, realmente, me entregasse e sentisse, eu teria também sentido
toda a Dor de nunca haver sido amada. Eu teria sentido exatamente aquilo
que estava procurando conseguir com o sexo. Minhas ilusões evitaram
isso."
Os problemas sexuais tornam-se mais complicados quando um menino
sente grande necessidade de pai e de mãe. No sexo com mulheres, ele
poderá agir como um menino e deixar que sua companheira (o símbolo da
mãe) o manobre. Enquanto isso acontece ele pode ter fantasias
homossexuais. O mesmo pode acontecer com uma mulher que não tenha
contado com o amor de sua mãe. Enquanto essa necessidade não houver
sido satisfeita, isso poderá interferir com todas as atividades
heterossexuais.
As necessidades do passado têm predominância pelas do presente. Não é
de admirar o grande número de mulheres frígidas quando vemos a
criancinha que está lá dentro delas. Elas sentem necessidade de um pai
bondoso e ficam zangadas e desapontadas quando um homem exige delas
sexo adulto em lugar de lhes oferecer um amor paternal.
Amor e Sexo

Muitas mulheres dizem que só podem ir para a cama com alguém que
amem. Em uma mulher neurótica isso pode significar: "Para gozar as
sensações naturais de meu corpo, eu devo convencer meu espírito que isso
significa mais do que é. Para ter liberdade de sentir eu preciso ser amada."
Aqui, mais uma vez, temos a expressão inconsciente da necessidade de
amor como um pré-requisito para a sensação.
Quando uma pessoa foi amada no princípio da vida, ela já não precisará
extrair isso do sexo. O sexo poderá então ser o que é realmente, ou seja,
uma relação íntima entre duas pessoas que se gostam. Será que isso
significa ser o sexo alguma coisa isolada do amor? Não necessariamente,
uma pessoa de juízo não vai sair por aí tentando levar todos para a cama.
Desejará antes partilhar o seu eu, e isso inclui o corpo, com uma pessoa
que goste, o que não significa que prefacie a relação com algum místico
conceito de amor. O sexo deverá ser uma consequência natural de uma
relação como qualquer outra coisa. Não precisa ser justificado pelo amor.
Quando uma mulher neurótica suprime seus sentimentos, sem ligar ao que
possa estar acontecendo em termos de amor, ela provavelmente não
gozará plenamente o sexo, mas se for normal, já não precisará preocupar -
se tanto com o sexo.
Quando a criança nunca recebeu amor de seus pais, ela pode ficar muito
excitada ante a perspectiva de sexo porque acha que finalmente vai
encontrar o que precisa. O resultado é que pode tornar-se impulsiva e não
tomar as necessárias precauções na ânsia de encontrar finalmente aquilo
que nunca teve. O resultado pode ser uma gravidez não desejada, uma
consequência de um impulso desesperado para satisfazer necessidades
imperiosas. Quando, porém, a pessoa já gozou do amor dos pais todo o
desespero do sexo parece desaparecer. Ele torna-se então uma experiência
agradável.
A única proteção contra a promiscuidade futura é o amor dos pais nos
primeiros anos de vida.
O verdadeiro amor é quando um rapaz e uma moça aceitam-se
mutuamente por aquilo que são, e nisso estão incluídos os corpos. Os
neuróticos exploram o corpo alheio para satisfazer suas necessidades. Isso
não permite uma relação igual entre os dois, É frequente um rapaz
neurótico que se apega às partes sexuais de uma moça e não consegue vê -
la como uma pessoa integral. Esse split é chamado como o complexo
madona-prostituta em que as moças boas são desprovidas de sexo e as más
são apenas sexuais.
As mulheres normais não precisam ser seduzidas por frases. Recorrerão ao
sexo quando as relações o exigirem. São muitas as mulheres que dizem
amar seus maridos mas que nada sentem durante o ato sexual. Uma mulher
frígida não pode amar porque ela não pode entregar-se totalmente. Só
pode amar a pessoa plenamente sexual.
Pode ser que haja quem duvide disso mostrando muitos supostos
neuróticos que são grandes apreciadores do sexo. Mas esses mesmos
neuróticos vivem debaixo de grandes tensões que eles mesmos chamam de
sexo depois de havê-las tornado eróticas mentalmente, e cujo verdadeiro
conteúdo é pouco mais do que um espirro. Como prova disso, eu posso
citar o fato que a maioria dos pacientes que perdem a sua tensão nas
primeiras semanas de terapia, perdem também a sua mania de sexo. Mais
ainda, homens e mulheres que se consideravam altamente sexuais antes
do tratamento, afirmam que não faziam ideia da verdadeira sensação
sexual antes de aprenderem a senti-la depois da Terapia Primal. Todos são
unânimes em afirmar que também a qualidade do orgasmo passa por uma
transformação, onde todo o corpo parece participar.
Frigidez e Impotência

De minhas observações durante quinze anos eu verifiquei a prevalência


extremamente alta da frigidez e da impotência, especialmente a frigidez.
Quando falo em frigidez eu quero referir-me à incapacidade para conseguir
um clímax. Variam muito as formas de agir das mulheres frígidas,
dependendo de sua personalidade. Algumas mulheres tornam-se
promíscuas baseadas na esperança de conseguirem encontrar o homem
certo que possa despertar nela sensações. Se o problema foi com a mãe, a
mulher frígida simplesmente não toma conhecimento do sexo. O que ela
experimenta com o seu procedimento, então, pode ser a esperança de
conservar a sua dignidade e honra e assim também o amor de sua mãe.
Muitas mulheres frígidas descobrem que só atingem o orgasmo pela
masturbação. Esse é um bom exemplo da relação das próprias sensações
sem depender de companheiro. As mulheres que fazem isso geralmente
começaram a se masturbar muito cedo sempre acompanhadas das mesmas
espécies de fantasias. O pênis, nesses casos, pode ser apenas símbolo de
ameaça, desonra, invasão etc. e é evitado por causa de seu significado, que
é geralmente inconsciente.
Um exemplo. Uma mulher é educada por uma mãe extremamente afetada
que enche a sua cabeça com mitos sobre o sexo, homens e moralidade. Está
sempre ouvindo que os homens são animais que só querem uma coisa.
Amar e dar o fora. Além de tudo que ouve ela ainda tem uma prova no p ai
que é um bruto. A moça acaba acreditando em tudo que a mãe lhe conta e
recusa-se a qualquer experiência de sexo até o casamento, somente para
então descobrir que é frígida. Queixa-se ao seu médico que sua vagina
parece anestesiada. Eu quero acreditar que essa mulher já não tem mais
sensação de sexo na vagina. Ela sente medo porque não conhece a
sensação sexual. Não é necessariamente um medo consciente, mas não
tendo um pai a quem recorrer, e sendo obrigada a contar só com a mãe
para os restos de afeição que ainda encontra em casa, ela passa a associar
o sexualismo com a reprovação materna. O que fez então, foi literalmente
abrir mão de parte do que sentia pela mãe.
Falando de forma figurada, a vagina dela pertencia à sua mãe. Então, a falta
de sensação tornou-se a sua maneira de apresentar à mãe a imagem da
moça boazinha de quem ela podia orgulhar-se. Logo que ela viu que não
havia mais esperanças para conquistar o amor dos pais começou então a
sentir que a vagina voltava a ser sensível, e isso, aliás, acontece com muitas
pacientes minhas.
Por que teria a vagi na daquela mulher voltado a ser sensível só porque ela
viu que não havia mais esperanças para conseguir o amor de sua mãe?
Porque ela estava tentando encontrar aquele amor em todos os contatos
sexuais, mostrando-se a menina boazinha que sua mãe queria, em outras
palavras, sendo frígida e assexuada. Desde que desistiu daquele amor ela
libertou-se também da luta para tentar consegui-lo simbolicamente por
meio de uma vagina frígida.
Uma mulher, que antes fora frígida, explicou essa condição quando
completou a sua Terapia Primal. "Eu fui criada numa casa muito religiosa
onde nunca se falava em sexo nem mesmo para condená-lo. Falava-se de
mulheres "fáceis" e de promiscuidade o bastante para apavorar-me a
respeito de sexo. Mais tarde, para aceitar as exigências sexuais do meu
corpo, eu imaginava-me como se fosse outra pessoa durante o ato sexual.
Muitas vezes o meu espírito não reconhecia o que meu corpo sentia de
forma que eu imaginava cenas em que estava sendo violentada. Aí, e só aí
eu sentia-me sexual."
Uma mulher tinha fantasias lésbicas, em que uma outra fazia-a gozar com
a língua. Ela se casara com um efeminado que preferia essa forma de
relações e assim a sua fantasia tornava as coisas mais fáceis para ela. Mais
uma vez, em termos Primais, a fantasia, ou seja a experiência durante o
sexo, é uma tentativa para realizar as necessidades reais de ser amada e
beijada pela mãe. É a realização do desejo que produz a capacidade para
sentir e chegar finalmente ao heterossexualismo. Mas a fantasia irreal
nunca pode realizar as necessidades reais, e então o comportamento
simbólico torna-se repetitivo e compulsivo. Quando o marido dela tentou
penetrá-la com o pênis, ela tornou-se completamente frígida e o ato foi
muito doloroso. Na sua inimitável linguagem, o corpo estava lhe dizendo
que a Dor estava lá dentro dela.
Não devemos atribuir a frigidez apenas a uma deficiente educação sexual
ou a experiências fracassadas. Muitas moças são tão fechadas que quase
podemos garantir a sua futura frigidez, um problema que vai se tornando
cada vez mais frequente. Praticamente todas as mulheres que passam pela
Terapia Primal sentem-se completamente diferentes com relação aos
problemas de sexo, mesmo que isso não tenha sido a razão ostensiva de
haverem recorrido à terapia.
Para que o leitor faça uma ideia da complexidade do problema, aqui estão
as palavras de uma mulher que fora frígida e que completara um mês de
Terapia Primal:
"Uma coisa que aprendi nessa terapia é a maneira pela qual o corpo ajudou-
me a bloquear as sensações. Eu era frígida e portanto pensava comigo
mesmo que a minha vagina apertada devia ser a maneira de defender -me
contra mim mesma, contra toda sensação ligada a isso. Voltei para casa
depois de uma sessão de grupo e abri a vagina com as mãos o máximo que
consegui para ver exatamente o que ia sentir. Fiquei espantada quando me
lembrei de uma coisa ao mesmo tempo que começava a sentir uma dor em
torno da vagina. E de repente, achei-me então pequenina com minha mãe
mudando-me as fraldas com uma certa brutalidade e beliscando-me a
vagina. Lembrei-me que ela sempre fazia aquilo quando me mudava as
fraldas e senti que a vagina se contraía para pôr um fim ao sofrimento. No
dia seguinte eu tive minhas primeiras relações sexuais com meu marido
sem qualquer sofrimento."
Foi esse o ponto que Wilhelm Reich apresentou. O corpo forma uma defesa.
No entanto, aquela mulher poderia ter manipulado a sua vagina durante
dias seguidos sem qualquer resultado apreciável se já não tivesse passado
por muitas dores que estavam abrindo o caminho para as suas lembranças
das fraldas. O importante foi a ligação e não a manipulação. Ao abrir a
vagina com a mão ela ajudou a desbloquear uma defesa específica, da
mesma forma que afrouxando uma barriga tensa por meio de respiração
profunda nós fazemos surgir as sensações.
Essa situação faz-me lembrar um outro caso com um homem impotente.
Durante uma de suas primeiras sessões ele foi pressionado para cair na sua
mais terrível fantasia que era a de incesto com sua mãe. Durante essa
fantasia ele lembrou-se quando ela o deixou sozinho na creche do colégio.
Ele sentiu-se mal e aí começou a reviver a dolorosa cena. Para sentir-se
melhor começou a brincar com o seu pênis. Na Primal ele ligou a solidão e
o desejo da mãe com sua brincadeira com o pênis. Queria que ela voltasse
para não se sentir tão solitário. Depois isso tornou-se uma fantasia desejar
o sexo com sua mãe. Na medida em que ia ficando mais velho essas
fantasias chegavam a apavorá-lo, e por motivos que nunca descobriu elas
transformaram-se em fantasias homossexuais que continuaram até a sua
idade adulta. Durante essa Primal ele afinal descobriu o que era: "Não se
aborreça mamãe, não é a você que eu quero. Eu quero homens."
Esse homem sofreu fantasias homossexuais durante anos por causa do que
lhe aconteceu na creche da escola. Claro que aquilo só não foi a causa, já
que além de tudo ele ainda foi negligenciado e abandonado muito cedo, e
isso foi o mais decisivo. Suas fantasias, dolorosas e perturbadoras, mesmo
assim serviram para cobrir algo ainda mais intolerável que era os
sentimentos incestuosos para com sua mãe.
Muitas mulheres frígidas e homens impotentes pensam que podem
funcionar melhor no sexo depois de beber. Isso acontece porque a bebida
amortece as dores Primais e assim facilita a necessidade do controle do
corpo pelo eu irreal. Com as dores assim reduzidas a necessidade de
controle é menor. À medida que o controle diminui também diminuem os
controles da mente sobre os sentimentos do corpo. Infelizmente, o álcool
também amortece as sensações durante o sexo que perde então muito de
seu valor.
O sexo significa sentir o corpo e não controlá-lo. Se o corpo está guardando
antigos sentimentos o abandono do controle significa dar-lhes liberdade.
Assim algumas mulheres transformam-se em verdadeiros tigres na cama
agarrando, arranhando e mordendo, pensando erradamente que isso
demonstra paixão sexual. Há paixão, em verdade, mas não é sexual. É uma
raiva reprimida que surge quando o corpo começa a sentir. Pode ser que o
sexo para os neuróticos seja metade violência, e talvez a justaposição de
sexo e violência nos anúncios de cinema não seja acidental. Mas não é
necessariamente a violência que é reprimida. As mulheres que gritam no
clímax de suas experiências sexuais estão apenas demonstrando tristeza
reprimida. Quaisquer que sejam as dores reprimidas, a pessoa não pode
sentir plena sexualidade até que todos os sentimentos neuróticos
contaminantes tenham sido afastados.
A frigidez sexual não é apenas um problema de sentimentos sexuais e sim
um problema de sensação. A liberdade de sentir significa liberdade sexual.
Ser reprimido significa repressão sexual, mesmo quando parece haver um
bom funcionamento sexual. Quando uma pessoa vem para a Terapia Primal
e diz que tem apenas um problema sexual, nós logo descobrimos os seus
outros temores e repressões. Também quando alguém vem com outros
problemas nós devemos suspeitar sempre de problemas sexuais, já que os
problemas não podem ser parciais uma vez que todas as nossas partes são
interligadas.
Na terapia convencional eu ajudei muitas mulheres a compreender suas
atitudes puritanas sobre sexo e muitas vezes aconselhei-as quanto a
técnicas de sexo mas isso de pouco lhes servia. Quando se sente a Dor na
Terapia Primal isso parece resolver os problemas de sexo sem qualquer
recurso a técnicas. Parece que o caminho para a vagina não passa pela
cabeça.
O neurótico tem um estoque de dores que não deixam as novas
informações fazerem o corpo sentir. A informação sexual permanecerá
mental até que o corpo seja liberado.
A mulher de um médico que eu tratei alguns anos atrás tinha por costume
ir a um acampamento perto de sua casa para ter relações sexuais com cinco
ou seis homens sucessivamente sempre procurando aquele que a fizesse
sentir. Mas nenhum conseguia isso porque ela se havia desligado e
somente ela mesmo poderia tornar a ligar-se. Embora essa mulher fosse
inteligente e soubesse também que suas incursões ao acampamento eram
infrutíferas e perigosas, e que eu lhe mostrasse o que estava realmente
fazendo, ela, ainda assim, não desistia. Era escrava de suas necessidades.
Mesmo conhecendo os perigos e compreendendo o que estava fazendo,
ela nem assim desistia. Queria sensações.
Eu acredito ser um erro pensar que alguém possa receber uma educação
liberal a respeito de sexo e com isso modificar suas atitudes quanto ao
assunto para resolver problemas sexuais. Qualquer que seja a educação ou
qualquer que seja a atitude para com o sexo, as falhas sexuais persistirão
até que as novas atitudes cresçam do corpo e de seus sentimentos.
Os fatores culturais devem ser levados em consideração em todos os
problemas de sexo. A crença generalizada que as mulheres vieram ao
mundo para fazer a felicidade dos homens fez nascer noções especiais
como, por exemplo, a psicologia feminina. Implícito na ideia que as
mulheres devem fazer a felicidade dos homens está uma outra ideia que os
homens são superiores e que as mulheres devem viver para o seu homem.
Isto também é pura neurose. Ninguém pode viver para outrem ou por causa
de alguém mais, a não ser que seja doente, e isso é, infelizmente, o que
muitos homens desejam de suas mulheres. Ninguém pode fazer uma outra
pessoa sentir coisa alguma, e isso inclui sentir-se feliz. A função do ser
humano é simplesmente viver.
Os neuróticos acham que para excitar a mulher é preciso haver romance,
luzes difusas, frases escolhidas e bebida. Assim, em lugar de cuidar do sexo
tratam de seduzir a mulher. A mulher que não precisa dessa sedução, que
é sincera e livre quanto aos seus desejos sexuais, é muitas vezes
considerada imoral. Parte da razão para isso é que os homens que se
sentem pouco machos parecem imaginar que sendo agressivos com as
mulheres, conquistando-as sexualmente, eles, de certa forma, tornam-se
homens de verdade. O fato de dominar uma mulher não torna um homem
mais macho como também um adulto não fica mais importante pelo
simples fato de dominar uma criança.
Numa sociedade equilibrada, sem splits ou neuroses, não existe esse
abismo entre homens e mulheres. Eles devem ser iguais com as mesmas
necessidades e sentimentos. Não pode existir psicologia masculina ou
feminina porque isso seria uma psicologia dividida.
Perversões

Há ocasiões em que uma pessoa precisa de mais do que a simples f antasia


mental durante o sexo. Um homem pode estar vestido de mulher, usar
maquilagem, sair à rua, e ainda assim saber que é homem. Mas se ele
dentro do vestido acreditar que é realmente mulher, então é porque deu
um gigantesco passo no simbólico caminho para a irrealidade. As pressões
internas podem não apenas fazer um homem fantasiar que está sendo
espancado durante o sexo, como também pode chegar ao ponto de exigir
que seja realmente flagelado para chegar ao orgasmo.
A perversão implica que o peso das privações do passado chegou a um
ponto que está fora do controle do método comum do comportamento das
pessoas, para o momento do ritual, e isso afoga-as em comportamentos
quase totalmente simbólicos, talvez quase uma psicose momentânea.
Atendi a um homem que precisava ser amarrado e espancado para
conseguir a ereção. Embora esse ritual tivesse várias facetas psicológicas,
ele parecia nascer principalmente da relação com sua mãe sádica que vivia
a espancá-lo. Ele então queria tornar a criar aquela relação entre os dois
de uma forma quase literal com a mesma esperança inconsciente que
alimentava no passado de ser espancado o bastante para encontrar
descanso, prazer e bondade.
Esse ritual masoquista era um drama restrito que simbolizava toda uma
plêiade de experiências passadas que a pessoa procurava resolver como
alternativa. Bem no seu cerne está a esperança que alguém se dê conta de
seu sofrimento e que ponha um fim a ele. Parece que é necessário sangue
de verdade e ferimentos para que alguns pais cheguem a perceber que os
filhos precisam de ajuda. Alguns filhos levam isso mais longe roubando
carros, ateando incêndios ou sendo espancados. O ritual descoberto e
imaginado pelo pervertido pode ser considerado uma extensão do ritual
inconsciente que o neurótico exibe em todas as suas experiências durante
o dia. No ritual mais generalizado, por exemplo, ele pode fingir -se
espancado e derrotado como se dissesse "não me castigue mais. Já estou
liquidado." O neurótico não pervertido parece recorrer a um ritual mais
generalizado.
Um paciente meu que era exibicionista tentou descrever sua perversão. "É
como a gente é quando é criança e que tem sempre alguém procurando
aporrinhar. Minha mãe odiava os homens. Eu creio que queria ser uma
menina para ela. Acabei tendo que mostrar meu pênis a mulheres na rua
para provar que não era menina. Devia estar bem ruinzinho para fazer uma
coisa assim." Esse homem, casado e com filhos, certamente tinha todas as
provas visíveis de sua virilidade, mas aquilo não era o suficiente. Ele tin ha
que continuar no seu ritual até o dia em que chegou às suas origens e
tornou a viver todos os esforços que fazia para conseguir de sua mãe uma
palavra de carinho.
Mesmo sabendo, como sabia, esse homem era impelido ao seu ato por uma
força incontrolável. Os verdadeiros desejos dele de ser macho surgiam
sempre através de tudo que o cercava. O objetivo de seu ritual era ser real.
Eu considero a impulsividade como sendo resultado da tensão e de velhos
sentimentos que tornam irracional os atos impulsivos. A pessoa impulsiva
não age pelos seus sentimentos e sim pela falta de sentimentos. Isso é o
oposto do ato espontâneo que é baseado nos sentimentos. O
comportamento espontâneo dificilmente é irracional, por mais rápida que
seja a reação, porque ela é de uma pessoa real para condições reais.
O que parece erradicar as perversões é sentir e denunciar a mensagem
implícita no ritual. Por exemplo, se o exibicionista, com a exibição de seu
pênis, queria dizer "eu quero ser menino, mamãe", então ele terá que
sentir todas as maneiras que não lhe permitem ser o menino. Cada cena
lembrada, isto é, cada sessão Primal, irá removendo mais uma peça do
ritual exibicionista até que não sobrem mais impulsos. Cada cena reviverá
como sua mãe estava sempre querendo impedi-lo de ser menino dizendo
"não brinque com seu pênis. Não se meta com meninas", ou então
conservando seus cabelos grandes e não deixando ele meter-se com
esportes, etc. Cada um desses incidentes, quando sua mãe não o deixava
ser o que era, um menino, servia para incentivar a perversão até que ela
surgia. E todas essas perversões são metodicamente destruídas, da mesma
forma que foram construídas, quando as cenas são revividas. Durante uma
sessão por exemplo, um exibicionista segurou seu pênis gritando "mamãe,
não tem nada sujo. Eu estou segurando em mim mesmo. Eu quero sentir-
me."
O exibicionismo desse homem, como aliás todas as perversões, não faziam
realmente sentido. Ele estava tentando ser real mostrando o pênis,
obviamente a maneira mais irreal para fazê-lo. Mas embora toda a sua
história tivesse tentado fazer dele uma menina, sempre persistiu a
necessidade dele ser o que era, embora de forma destorcida.
As perversões são facilmente tratáveis pela Terapia Primal devido ao seu
evidente simbolismo. Parecem ter sido preparadas para a Primal pois vão
logo dizendo diretamente qual é a necessidade, sem ser preciso adivinhar.
Simplesmente com a suspensão do ritual, a tremenda força que o impelia
transforma-se imediatamente numa Primal com todas as suas ligações.
Lenny
Lenny é um psicólogo formado com vinte e seis anos de idade. Embora
houvesse estudado psicologia e comportamentos anormais durante anos
na universidade e usasse os seus conhecimentos no cargo que ocupava,
isso não lhe servia de nada para resolver os seus problemas pessoais, como
já vamos ver, uma prova irrefutável que o conhecimento sozinho não é
suficiente para mudar a neurose. Quando ele entrava em seu ritual, Lenny
penetrava num novo mundo onde esquecia tudo que aprendera sobre
comportamento. O seu caso ajuda-nos a compreender a perversão em
geral, e a impulsividade em termos específicos.
Eu vim para a terapia depois de haver sido preso por exibir meu pênis e
masturbar-me em público. Eu sempre fora masturbador em casa mas aquilo
não conseguia aliviar a minha tensão. Passei então a fazer isso nas ruas ou
então dentro do meu carro encostado às filas de ônibus onde houvesse
mulheres. Sempre que ficava sozinho em casa eu sentia vontade de sair
para masturbar-me. Não conseguia controlar-me de forma alguma e tornei-
me exibicionista.
Onde as outras pessoas recorreriam a cigarro ou bebida para aliviar a
tensão, eu recorria ao pênis. Só sabia que quando estava sozinho começava
a sentir-me mal e queria passar a sentir-me bem. Com o tempo, porém, as
fantasias de mulheres durante as masturbações em casa já não eram
bastante em vista da natureza de minha doença. Todos os sintomas antes
da terapia eram físicos como asma, úlceras, sinusite e uma caspa crônica,
e tudo isso desapareceu. Só pensava no corpo e em algum ato físico.
Percebia que estava ficando mais doente quando já não eram suficientes
os quadros mentais durante minhas masturbações, mas não sabia o que
fazer. Sentia necessidade de ver as caras das mulheres em pessoa. Saía
andando pela rua até encontrar uma mulher cujo rosto eu podia ficar
olhando durante o meu ato. Algumas vezes ia de carro e estacionava junto
dela. Durante o orgasmo eu olhava para ela para ter a certeza que estava
me vendo. Com aquilo eu dava vida à minha fantasia.
Depois do orgasmo eu me sentia tremendamente aliviado como se
houvesse retirado um grande peso de cima de mim. Saía no carro sentindo-
me livre e ia trabalhar procurando ajudar outras pessoas, como se nada
houvesse acontecido. Mas era só uma questão de tempo até chegar a hora
de fazer tudo outra vez.
Aquilo que começou como algumas saídas na rua acabou como ocupação
de tempo integral. Gastava quatro ou cinco horas por dia e não pensava
noutra coisa. Via que estava ficando louco porque uma parte de meu corpo
sabia que era loucura ao passo que a outra parte continuava fazendo
aquilo.
O que aconteceu foi que meu espírito desligou-se do corpo e os dois agiam
separadamente. Durante os rituais de exibicionismo eu ficava numa
espécie de nimbo. Sabia vagamente onde estava mas tudo continuava
sendo um nevoeiro.
Tentei lutar contra aquilo já que minha profissão e meu emprego estavam
em jogo. Quando sentia o impulso eu tentava recusar-me, mas era
impossível. Sentia minha consciência desmoronar. A força dentro de mim
crescia dia a dia sem eu saber por que. Estava sempre tonto e nem mesmo
no emprego eu conseguia raciocinar. Sentia-me como se fosse duas
pessoas. Era apenas uma pessoa inconsciente que fazia aquelas coisas.
Sei agora, depois da terapia, que em breve estaria louco. Sentia, cada vez
mais, que meu corpo e minha mente estavam separados, cada qual fazendo
coisa diferente.
Na minha condição de neurótico eu não conseguia saber o que me tornava
impulsivo. Era muito doloroso. Começava a sentir a dor logo que ficava
sozinho e tinha que fazer aquilo.
Durante a terapia eu deixava que o impulso me envolvesse. Em lugar de me
dividir fugindo do sentimento e masturbando-me, eu finalmente conseguia
que a mente acompanhasse o corpo e isso levava a verdades horríveis.
Lembro-me da minha primeira Primal, quando cheguei sentindo o impulso.
Quase saí no carro para a rua em busca de uma mulher. O terapeuta disse -
me que deixasse vir o impulso. Senti a ereção e fiquei tremendamente
excitado. Pensei que ia certamente acontecer. No ápice da sensação eu
comecei a gritar, "não! não! não!" Depois vi um rosto de mulher, Jesus! Era
o rosto de minha mãe. Comecei a gritar. "Mamãe, mamãe! Está doendo!
Está doendo! Não me deixe sozinho! Papai vai me matar." Não podia lhe
dizer o medo que tinha de meu pai. Compreendi imediatamente que
quando exibia o meu pênis eu queria que uma mulher estranha visse o meu
rosto contorcido pelo orgasmo para verificar então que eu precisava
proteção. Era minha mãe que precisava conhecer meu medo, mas eu nunca
tinha coragem para lhe contar. Aliás ela estava também muito doente para
eu estar a sobrecarregá-la com meus problemas. E eu então agia daquela
forma maluca nas paradas de ônibus.
A pressão que me levava a fazer tudo aquilo era o medo de meu pai e a
necessidade de proteção de minha mãe. Logo que liguei tudo direitinho já
não precisei mais fazer demonstrações. De fato, já não havia mais pressão
e sim apenas dor.
Antes da terapia a minha mente nunca estava junto com o corpo. Não posso
compreender como terminei o ginásio. Ainda leio e escrevo muito mal. Mas
era um bom atleta e tinha muita habilidade manual. Consertava as coisas.
Eu tinha que ser estúpido porque quando ficava esperto e começava a
estabelecer as ligações mentais com toda aquela pressão que me levava
para a rua, eu acabava descobrindo-me estirado no chão do consultório do
Dr. Janov debatendo-me como um peixe fora da água. Aquelas sensações
eram dinamite. Vejo agora que se não tivesse a liberação sob fiança depois
que fui preso, eu certamente teria ficado louco varrido. Exibia -me porque
aquele era o único meio que eu tinha para afastar-me das sensações. Por
mais louco que pareça, ainda mesmo depois de preso e sabendo a encrenca
em que me metera, eu continuava a sair para masturbar-me em frente de
mulheres enquanto aguardava o meu julgamento! Não encontrava saída.
Antes da terapia eu mesmo julgava-me altamente sexual, mas agora
transformei as convulsões do orgasmo em convulsões Primais e já não sinto
a mesma compulsão pelo sexo. Na minha opinião a perversão nada tem a
ver com sexo. Quando masturbava-me, o que estava realmente querendo
era ajuda. Era a minha maneira de pedir socorro. Aquilo que fazia não tinha
a menor relação com desejo sexual. Era uma perversão diferente. Há muita
gente com diferentes formas de perversão. Os homens de negócios
pervertem suas necessidades de amor nas transações que fazem. Eu
perverti meus sentimentos no meu pênis. Tudo que queria era que minha
mãe percebesse o meu sofrimento e finalmente desse-me o que me negara
em criança.
Jim
Eu tenho vinte e dois anos e nasci no Alabama. Hoje moro em Los Angeles,
a única cidade que sempre simbolizou para mim tudo que havia de pior em
todos os sentidos. Só de pensar em ter de morar em Los Angeles eu tinha
uma verdadeira sensação de repulsa. Agora ela é simplesmente uma cidade
suja e tensa que nada mais significa para mim.
Meu pai é oficial de carreira da Força Aérea. É também ministro
presbiteriano e original de uma pequena cidade em Indiana. Minha mãe é
do Mississippi.
Nunca tive um lar. As minhas primeiras lembranças são do Japão onde eu
uma vez fugi de casa com quatro anos e onde meu pai estava destacado.
Depois disso passamos a mudar cada um ou dois anos, viajando no nosso
Oldsmobile que servia de arena para as lutas da família enquanto
atravessávamos os vários estados da União. O carro também servia como
o lugar de onde eu não tinha jeito de fugir quando minha mãe resolvia
exemplar-me com um pedaço de mangueira de borracha quando eu não
andava direito. Eu finalmente consegui sumir com ela na lata de lixo de um
motel em Denver.
Aquelas viagens constantes poderiam ter sido bem divertidas para um
garoto, e algumas vezes eram mesmo, a despeito de jamais haver paz na
família. Tudo eram discussões e brigas e até mesmo eu servia de pretexto
para muitas delas quando chegava a hora de escolher minhas roupas,
minhas comidas, meus amigos e até mesmo meus programas de TV. Ela
estava sempre ali para me dizer o que achava melhor para mim com aquela
inflexão na voz que claramente me dizia que se eu não fizesse como ela
queria era porque não lhe queria bem, etc. etc. Aquilo enchia e era um
método terrivelmente eficaz para conseguir que eu fizesse o que fosse
exatamente o que ela queria. E o caso era que eu gostava muito deles, de
mamãe e de papai. Mais do que qualquer outra pessoa no mundo, de modo
que ficava desesperado quando ela começava ameaçar-me com um
estremecimento nas nossas relações se eu não fizesse tudo que ela queria
e um moço não tem muita escolha.
Assim, antes de mais nada, todas as decisões que tomo devem ter o seu
beneplácito. Se ela não gosta do que eu gosto, eu simplesmente tenho que
descobrir um meio para esconder meus sentimentos para ser e fazer o que
ela quer que eu faça e seja.
Mamãe não gosta de homens. Não quer que eu seja homem apesar de
haver nascido com uma piroca como todo homem, mesmo que ela seja
ainda pequenina. Ela criou-me para ser mulher e eu recebi a mensagem
desde cedo. Ela não gostava que eu fosse como era. Queria que eu fosse a
seu gosto...
Com esse terrível fator acompanhando-me desde pequenino eu tinha ainda
o pavoroso espectro do divórcio de meus pais que me perseguiu durante
esses vinte e dois anos. Agora, quando estou acabando a minha terapia,
eles estão finalmente divorciando-se. Quando eu tinha sete anos e nós
morávamos no Texas, meu pai chegou bêbado uma noite e ela ficou uma
fera e deu-lhe uma tal surra até que ela mesmo caiu no chão extenuada e
gritando que não podia apanhar assim e que ia se divorciar. Eu assisti a
tudo aterrorizado, sem que nenhum deles percebesse minha presença .
Tentei intervir mas não adiantou. Eu já tinha idade bastante para
compreender o que significava divórcio e fiquei apavorado. Perguntei a
mamãe o que ia acontecer comigo e ela disse que não sabia, continuando
afazer as malas. Nenhum dos dois me ligava a mínima. Fiquei rodando pela
casa com meu cavalinho de brinquedo pensando o que iria acontecer
comigo. E fiquei assim até começar a minha Terapia Primal.
Quando voltei da escola naquele dia, depois de toda a inquietação e agonia,
eles já tinham acalmado e tudo estava bem pois papai prometera não
repetir a bebedeira. Durante os quinze anos que se seguiram a cena
repetiu-se um sem-número de vezes deixando-me sempre apavorado com
uma separação que nunca acontecia.
Ainda não falei muito de papai porque ele nunca estava presente. Eu
odiava-o porque ele não me protegia de minha mãe e deixava ela destruir-
me. E gostava muito dele nos poucos momentos que passávamos juntos.
Papai também queria gostar de mim mas tinha medo de mostrar seus
sentimentos por causa das consequências.
Com a neurose e a família que eu tinha, era preciso muito cuidado para não
chegar muito perto de meus sentimentos. Precisava mostrar-me frio
quando estava com a família. Permanecer aparentemente como se fosse
forte e independente. Há uma diferença entre travestis e homossexuais. Eu
tinha um grande medo de meninas e só dei um beijo de boa noite quando
já estava no ginásio. E ela era mais velha do que eu.
Eu batia muita punheta para manter baixa minha tensão, mas precisava ter
cuidado pois minha mãe estava sempre vigiando e não queria que eu
pegasse a piroca.
Comecei a fazer boa figura nos esportes e também a namorar. Já no fim do
ginásio eu fui escolhido para orador da turma, campeão de oratória do
estado, jornalista e pronto para a universidade. Sentia-me infeliz. Durante
muito tempo, quando mamãe saía, eu vestia as roupas dela, tanto de cima
como de baixo e dava vazão à minha fantasia de já ser como ela queria e
então ela iria amar-me finalmente. Era tudo uma merda ou talvez pior
ainda.
Quando entrei na universidade eu reprimi essas atividades continuando
com a minha fantasia e batendo punhetas como todo mundo. Mas os
estudos e a atmosfera eram tão pesados que nem mesmo isso adiantava.
Não tinha namoradas. A corrida rasa onde eu era campeão tomava muito
tempo e prejudicava os estudos, mas não ajudava a aliviar a tensão. Como
era bom no esporte e na corrida as coisas ficavam um pouco mais fáceis.
No fim do primeiro ano tornei-me ativista. O treinador de corrida era cheio
de preconceitos e expulsou um estudante estrangeiro só por causa da
cabeleira de "Beatle". Eu já estava cheio de tudo.
Naquele verão arranjei uma namorada firme pela primeira vez na minha
vida. Foi a primeira pessoa com a qual senti alguma coisa. Mas não
conseguia de forma alguma trepar mesmo com ela segurando meu pau
quando estávamos na cama. Durante seis meses lutamos
desesperadamente sem nada conseguir. Quase fiquei louco. Vivia
aterrorizado de ser reprovado e ter que abandonar a universidade e
comecei a escrever notas estilo Kierkegaard, à Ia Bob Dylan, Ken Kesey et
al. Sentia-me tenso com o que escrevia de mitos, existencialismo e o trágico
heroísmo do homem da rua mas achava que aquilo era a única maneira de
manter-me são. Estava tentando manter a Dor lá embaixo, e estava
conseguindo.
Foi nesse ponto que fiz a notável descoberta que ninguém tinha o direito
de me dizer para matar alguém. Muito simples. Mas a simplicidade, como
o sentimento, simplesmente tinham-me escapado desde que eu começara
a preocupar-me com o que iria acontecer comigo. Fiquei tão empolgado
pela simples noção que a transformei numa espécie de antidogma. Fiz
algum trabalho de resistência no Arizona e tentei imaginar como sintetizar
política e arte. Ir para a cadeia por causa do serviço militar ou expatriar -me
para escrever meus grandes livros para o mundo e morrer com trinta e nove
anos. Como fazer as duas coisas? Eram problemas sérios com sérios
sentimentos por baixo. Mamãe e papai. Precisava mostrar a mamãe.
Precisava ajudar para as pessoas não lutarem mais (mamãe e papai).
Precisava encontrar um lar de paz, simplicidade e permanência (nós todos
juntos). Precisava ser forte e eficiente (papai), e por aí além. Recusei -me a
servir mas sem violência. Iria escrever e estudar até que viessem me
prender. Muito passivo.
No primeiro dia da terapia eu contei para Art como tive vontade de mandar
meu pai a merda quando ele recusou-se a me dar o dinheiro para o
tratamento. Art disse apenas "Não diga!"
E eu disse: — E também gostaria que ele me ajudasse.
— Pois então peça a ele.
— Pelo telefone?
— Não. Peça a ele. Aqui mesmo.
Tentei mas senti a garganta tapada.
— Não quero fazer isso e você sabe que não quero.
— Peça a ele.
E eu pedi. Quando dei por mim já tinha me contorcido todo no sofá gritando
para que papai viesse ajudar-me e sentindo no corpo e na mente toda a
raiva que reprimira durante tanto tempo. Quando comecei a perder as
forças e fui descansando, as minhas mãos começaram a formigar. Chegava
a sentir meus intestinos. E aquilo era apenas o princípio.
Foi o bastante para um dia. Saí sentindo-me o máximo, mas já pela tarde
estava aporrinhado. Outros sentimentos começavam a surgir, agora que a
tensão estava cedendo. Atenção. O que vai acontecer?
No dia seguinte estava ansioso pela Primal e queria forçar a mão mas aquilo
não adiantava. Durante cinco dias eu fui temperando até que finalmente,
no grupo, eu fiquei tão tenso que tudo explodiu naturalmente, outra vez
com papai. Queria que ele me ajudasse. No dia seguinte foram lágrimas,
muitas lágrimas. Tinha-me sentido tão perdido em toda a minha vida.
Nunca ninguém me ouvia. E tanto tinha me esforçado para agradar a
mamãe e papai para que eles me amassem. Quando os pais são infelizes
eles não têm tempo para permitirem que os filhos sejam eles mesmos. O
amor exige uma atenção complicada e altruísta.
Desde então venho passando por todos os sentimentos. Alguns são de
raiva, alguns de solidão, outros são de tristeza e ainda há os que são
sensações muito sutis de calor, cheiro, frio, gosto e tato que devem ser
ligados à lembrança respectiva na mente. É um processo de afinar a mente
com o corpo. É sentir todos os sentimentos reprimidos para que não haja
mais nenhuns que causem medo. É um inferno e é maravilhoso.
Algumas vezes os sentimentos saem fáceis, mas outras exigem dias para
preparar até que a tensão ceda. Passei por um período de três semanas
sentindo-me louco como aconteceu naquela ocasião em que minha garota
deixou-me. Era uma separação total do sentimento efetuada pelo
pensamento a cada segundo do que iria acontecer depois. Cheguei a um
ponto em que quase podia ver a separação invisível entre meu corpo e o
mundo em torno. Ficou mais grosso e senti que algum sentimento grande
aproximava-se. Certo. Eu mesmo provocara. Merda. Era uma forma bem
sofisticada para não sentir. Para controlar, para antecipar e para orientar.
Numa manhã eu fora ao consultório de Art e falara com mamãe e papai
naquela Cena Primal em que lhes perguntara o que aconteceria comigo e
pedira para que não se divorciassem. Pedi aquilo sentindo-me medroso
como se tivesse sete anos. Quando acabei já a separação afastava -se e
então descansei. Ia deixar que tudo acontecesse. Mais tarde mergulhei
mais naquele sentimento e a separação foi desaparecendo ainda mais.
Agora, sempre que tenho um sentimento Primal eu me sinto um pouco mais
no presente. A separação foi destruída.
O que estou começando a sentir como resultado da Terapia Primal é
simplesmente a mim mesmo. De princípio eu me sentia mais forte de uma
forma neurótica. Estava começando a gozar de alguma liberdade de
sentimentos pela primeira vez em minha vida e aquilo aumentou minhas
esperanças e meus sonhos. Mas esperança e sonhos são os sintomas de
sentimentos reprimidos. Representam a palavra abstrata que
costumávamos usar para esconder nossas necessidades. Desde que se
tenha sentido toda a necessidade não há mais esperança para satisfazê -la.
Não há mais necessidade de utopias políticas ou sucessos artísticos. Já não
existe mais sucesso ou fracasso. Só existe a gente. Eu. Não há mais
necessidade de ser um crônico e trágico fracasso para que alguém venha
me consolar como papai e mamãe nunca fizeram. Ou abraçar-me e ouvir-
me.
Ainda não cheguei ao fim. Ainda desejo um pouco mamãe e papai. Ainda
sinto necessidade de sentir. Já terminei com meu pai e pouco falta para
minha mãe. Ainda tenho sonhos em que me encontro nu no banheiro das
senhoras no supermercado com o pau duro e sem lugar para escondê -lo e
só desejando que alguma senhora bondosa ou minha mãe intervenham.
Mesmo assim é incrível como mudei. Minha voz já está uma oitava mais
abaixo porque não estou mais desligado do estômago. Ouço tudo que me
dizem pela primeira vez sem necessidade de repetição. Não preciso mais
passar horas discutindo com amigos doentes o que está acontecendo no
mundo. Já emagreci dez quilos sem pensar nisso, porque já não mais como
para evitar as sensações do estômago vazio e solitário como todo o resto
de mim. Já não fumo mais pois não suporto o gosto. Não acho mais graça
no álcool. A comida tem gosto. Os objetos reais não são mais símbolos que
despertam pensamentos e aumentam a tensão. Um policial é apenas um
policial e não meu pai. Não quer dizer que goste mais deles. Simplesmente
não me fazem mais raiva. O oceano é apenas o mar e não o pai e a mãe da
vida.
As tetas já são quase apenas tetas. Uma boceta já é quase apenas uma
boceta. Não são mais os símbolos que eram e dentro em pouco não serão
mais nada.
Já estou bastante bem para sentir e saber o que é real e não é nada como
eu esperava que fosse.
Como resultado da terapia, tudo está se tornando literal. Acho graça no
dinheiro porque não passa de pedaços de metal que nós trazemos conosco
para trocar por coisas. Agora tudo que e irreal já nada representa para
minha vida. É como se as palavras nada mais significassem. Só os
sentimentos. Fico achando que o mundo em que vivo é apenas uma cena
de arte POP feita de propósito. Fico pensando que estão todos no lugar
errado sem saber que estão porque já se adaptaram. Chego a encher de ter
que escrever sobre isso já que ninguém se importa. Finalmente já me
transformei completamente. O travestismo já é coisa do passado. Toda a
minha vida me diziam que a minha sanidade era louca e eu acabei
acreditando. Agora acho que os loucos são eles e eu sou o são.
Homossexualismo

O ato homossexual não é um ato sexual. É baseado na negativa do


sexualismo real e é uma representação simbólica da necessidade de amor
por meio do sexo. Toda pessoa realmente sexual é heterossexual. O
homossexual geralmente enche suas necessidades com erotismo para
parecer muito sexual. Desde que perca o seu companheiro fica parecendo
um viciado sem droga. Sem o seu companheiro ele está dentro da Dor que
sempre existiu embora desprovida de sexo. O objetivo, contudo, não é o
sexo e sim o amor.
O homossexual é o mais tenso de todos os neuróticos porque foi o que mais
se afastou do seu eu real. A tensão pode levá-lo à bebida, às drogas, ao
sexo compulsivo e ainda fica insatisfeito. Muitos homossexuais que atendi
queixavam-se de sintomas psicossomáticos. A violência que vemos nos
homossexuais é o resultado da autonegação. Toda pessoa que não pode
ser o que é fica muito zangada.
Eu defino o homossexualismo como todo ato entre duas pessoas que é
experimentado como se ocorresse entre membros do mesmo sexo. Se um
homem fez amor com uma mulher, mas durante o ato está totalmente
envolvido ruma fantasia sobre homens, então eu diria que a experiência é
homossexual. Quando alguém realmente faz amor com uma pessoa do
mesmo sexo, isso significa que ele está mais totalmente envolvido no
comportamento simbólico. Não há split ou qualquer fragmento seu que o
leve para o heterossexualismo. Ele desistiu da luta e torrou-se mais
completamente o que não é.
Há homens e mulheres com casamentos homossexuais que não
reconhecem o fato. Um homem afeminado pode escolher uma mulher
masculina para esposa sem dar-se conta que está realmente fazendo amor
com um homem. Há alguma espécie de radar que junta essa gente. O
homem que sofreu a falta do amor do pai e que não quer reconhecer seus
impulsos homossexuais, pode então escolher uma mulher masculinizada, e
deixará a ela o papel masculino do casal. O ponto é que o neurótico pode
transformar qualquer um naquilo que ele não é. Assim, um homem pode
transformar uma mulher em homem no seu espírito da mesma maneira que
transforma o policial no pai ou a professora na mãe. O que manda é a
necessidade.
Todo aquele que fantasia durante o sexo está mais perto de seus
sentimentos do que quem representa a fantasia. Ela, pelo menos, indica o
reconhecimento mental de uma necessidade, ou mais corretamente, o
reconhecimento de um símbolo da necessidade. Dar vida a isso significa a
total supressão da necessidade e seus símbolos.
Minha experiência indica que o homossexualismo pode ser o resultado de
qualquer número de permutas na interação da família. O menino
homossexual pode ter um pai fraco, um pai tirano ou nenhum pai. O que
importa é que ele sente necessidade de um pai amoroso. Não há razão para
ir esmiuçar as específicas relações do menino. O que é preciso conhecer
são as necessidades. É ela que está sendo representada no
homossexualismo.
Muita coisa depende da própria criança. Se ela é naturalmente atlética isso
pode ser o tipo preferido pelo pai, e o contrário também pode acontecer.
Se a mãe for muito carinhosa, a criança pode ficar agarrada com ela, mas
se for fria já ela poderá agarrar-se com o pai. Não há constelação de família
que leve ao homossexualismo.
Um menino que tenha um pai bêbado e brutal pode detestar tudo que seja
masculino, ao passo que um outro com o mesmo pai talvez prefira tornar-
se um homem digno em oposição ao pai. Se a mãe odiar os homens isso
poderá fazer a filha partilhar da mesma ideia como também se voltará
contra as mulheres em geral se a mãe for de natureza odienta. Não existe
uma fórmula para explicar as neuroses. O que precisamos compreender é
a reação íntima da criança ao que está acontecendo.
O comportamento que resulta na criança geralmente não é uma decisão
consciente bem pensada. Vão-se-lhe acrescendo outras experiências para
torná-lo na imagem desejada para satisfazer as necessidades reprimidas
dos pais. Isso significa em termos práticos que ela deve ser o que os pais
desejam para que haja paz em casa.
Uma vez que a criança não pode compreender que seu pai é sádico ou que
sua mãe é lésbica, ela começa a acreditar que tudo que faz está errado.
Pode ir repudiando cada vez mais suas inclinações naturais até o dia em
que for um completo invertido.
Muitos homossexuais parecem não perceber o óbvio. Eles estão
procurando substitutos. Muitos fazem a apoteose do amor homossexual
como o único e verdadeiro amor, e citam então os gregos como prova. Mas
se trata de amor irreal praticado por pessoas irreais. O que dá força à busca
do sexo pelo homossexual em toda a sua intensidade é a necessidade de
sentir-se amado afinal e assim terminar com a incômoda tensão.
Um ex-homossexual assim se expressou: "Cada novo contato sexual
deixava-me sempre mal satisfeito sem que eu soubesse por que. Pensei que
só queria um pênis, quanto maior melhor, até o dia em que consegui.
Depois queria cada vez mais. Depois de perceber como queria meu pai, eu
vi então que não era um pênis o que eu queria. Acho que fiquei com a mania
de gritar porque não conseguia gritar pelo sacana." Disse esse paciente que
o seu comportamento homossexual, que começou muito antes dos vinte
anos, era um grito constante chamando uma coisa que nunca veio e que
era a ajuda dos pais.
Se chegarmos à conclusão que o homossexualismo, na maioria dos casos, é
essa necessidade de amor dos pais, podemos então dizer que o objetivo do
homossexualismo é o heterossexualismo. Não creio que essa afirmativa
seja simplesmente semântica. Significa que o objetivo de todas as neuroses
é a eliminação de nossa Dor para então nos tornarmos pessoas reais e
sensíveis. Quando a dor desaparece, seria de esperar que desaparecesse
também o homossexualismo, e é o que acontece.
O que isso indica é que nenhuma quantidade de atos heterossexuais pode
alterar a condição homossexual até que a Dor seja sentida. Não adianta o
sexo com dezenas de mulheres para fazer desaparecer a necessidade
desesperada que alguém sinta de seu pai. Isso significa que não há carinho
de espécie algum, da parte de homens ou mulheres, no momento presente,
que possa alterar uma aberração sexual.
O que o homossexual pode experimentar quando é beijado por uma mulher
é uma coisa simbólica, é o amor de seu pai. Os beijos não chegam para
tanto, sejam eles de mulher ou de homem. Podem, isso sim, piorar as
condições no homossexual escondendo temporariamente a sua
necessidade do pai. Os carinhos de mulher, portanto, impedem que ele
sinta a sua Dor que é a única coisa importante para ele tornar -se
heterossexual.
O homossexual ainda teria necessidade do amor de um homem se durante
sua infância tivesse contado com o amor de sua mãe? Eu acredito que não.
Precisa do amor masculino porque foi privado do amor dos pais. Busca o
amor do homem porque, por uma variedade de razões, a luta começou
quando não conseguiu o amor do pai.
Mesmo que um esplêndido e amoroso padrasto surgisse de repente na vida
de um rapaz entre 13 e 19 anos, eu não acredito que isso faria diferença.
Se o passado do rapaz tivesse- o obrigado a privar-se do que precisava para
sobreviver a um pai sádico, por exemplo, então esse padrasto por mais
amoroso que fosse já pouco poderia fazer. Isso significa que o rapaz
continua a sofrer as dores Primais embora já agora viva num ambiente feliz.
Esse ponto é confirmado em outras áreas além do homossexualismo. Os
pacientes cujos pais se tornaram mais carinhosos com o correr dos anos
ainda não conseguem desmanchar a tensão e a neurose causadas por
sofrimentos anteriores. O passado está sempre atravessado no caminho do
presente. Se alguém pudesse sentir plenamente o amor no presente, isso
significaria que ele poderia sentir plenamente. Mas sentir plenamente,
para o neurótico, significa sentir primeiro a Dor pois é o que logo surge
quando ele sente. Então, depois de sentir a Dor ele pode aceitar todo o
amor presente.
Enquanto houver velhas privações, elas acionarão os comportamentos
destorcidos, pervertidos e simbólicos. Os casamentos homossexuais, por
exemplo, podem durar anos. Os dois podem parecer satisfeitos e até
mesmo sentir amor, mas continua a existir um alto nível de tensão e
homossexualismo (neurose). Por quê? Simplesmente porque os amantes
homossexuais estão satisfazendo-se apenas simbolicamente, sem qualquer
realidade. Cada um está querendo conseguir do outro o amor do pai. Desde
que sintam a necessidade real cessa logo a procura simbólica 39 . O
homossexualismo não é uma doença especial e sim apenas um caminho
diferente para a satisfação de uma necessidade reprimida ou insatisfeita.
Quanto a "andar direito" sem solucionar a neurose, isso só serve para
aprofundar a mentira. Significa pretender desistir da necessidade do amor
paterno, e ninguém pode fazer isso enquanto a necessidade continuar a
existir. A única forma para livrar-se dessa necessidade é senti-la.
Identidade e Homossexualismo

Se uma pessoa não pode ser o que é, ele terá que sair em busca de sua
identidade. Estará de antemão condenado a não encontrá-la já que nada
mais é senão o próprio eu que não conseguia exprimir-se. Assim, a busca
da identidade é um empreendimento neurótico levado a cabo por gente
sem sentimento que geralmente precisa encontrar alguém ou alguma coisa
além deles mesmos para lhes dizer o que ou quem são por dentro. O
paciente pós-Primal, por exemplo, já não pode sofrer crise de identidade.
Ele sente, e portanto não tem razão para querer saber quem é realmente.
A Teoria Primal afirma que somente quando não tem licença de ser ela
mesma é que a criança sente necessidade de copiar, conscientemente ou
não, os comportamentos, os ideais, as atitudes e maneirismos de outros.
Uma criança educada por pais normais não procura identificar-se com eles.
Terá seus atributos próprios.
Eu acredito que um menino que nasce e é criado somente entre mulheres
não se tornará feminino por isso. Desde que seja amado e tenha liberdade
de ser o que é, ele será bem masculino, mas se for criado por mulheres
neuróticas ele provavelmente tornar-se-á feminino.
As pessoas que estão sempre duvidando de sua identidade são aquelas que
tinham que mudar a sua personalidade para agradar aos pais e conseguir
deles alguma coisa que parecesse amor. Sempre que são forçadas a fi ngir

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Os casamentos homossexuais são geralmente instáveis simplesmente porque são simbólicos
arranjos que não podem satisfazer os interessados durante muito tempo.
em lugar de serem o que são isso só serve para lançar a confusão quanto
às suas identidades. Nós só podemos ser quem somos.
Uma implicação da Teoria Primal quanto à identidade é que um pai ou uma
mãe sozinhos, que sejam seres humanos amorosos, podem muito bem criar
um filho ou uma filha sem dificuldades. Uma mulher pode criar um filho
muito bem sem precisar da presença de um pai, e sem que isso venha
torná-lo afeminado. É melhor a falta de um pai do que a presença de um
que seja frio e brutal.
Eu não acredito que haja qualquer diferença importante, em termos de
patologia, entre um menino que tenta imitar um machão ou um outro que
tente identificar-se com mulheres. A diferença entre o homossexual ativo
e o passivo parece estar somente na direção que tomam para fugir da Dor
e não nos seus níveis. Quando o ativo começa a adotar atividades másculas
como as motos, barba crescida, esportes pesados, isso indica que ele ainda
não sente ser ele mesmo e está procurando identificar-se com o que pensa
ser masculino. Talvez ainda esteja procurando o amor do pai e tente então
ser o homem de verdade que ele tanto desejava. O passivo talvez tenha se
desligado do pai para copiar tudo que é de sua mãe.
De formas menos óbvias, muitos homens e mulheres que não conseguem
sentir-se adotam as imagens ou roupagens daquilo que querem ser. A
necessidade de projetar uma "imagem'' pode ser uma indicação de
sentimentos íntimos bem diferentes, e vamos encontrar muitas vezes
aberrações sexuais nesses sentimentos sepultados. A minha experiência
clínica indica que embora um homem mostre uma boa aparência
masculina, a tentativa para mostrar-se "o machão" serve para encobrira
impotência ou as fantasias e terrores homossexuais. Um paciente meu, que
antes era barbado, disse-me que "a luta era manter a barba bem grande
para eu sentir-me como homem, mas agora já não preciso mais dela. Eu
antes não compreendia, mas agora tudo está claro para mim."
Bissexualismo e Homossexualismo Latentes

Desde os tempos de Freud, diversas escolas de psicologia vêm afirmando a


básica bissexualidade do homem. Afirmam que todos nós somos parte
heterossexuais e parte homossexuais. O objetivo de um bom sistema de
defesa, então, seria suprimir as latentes tendências homossexuais e
organizar boas relações com o sexo oposto. Assim, essas teorias acreditam
que o homossexualismo adolescente pode ser normal até que o indivíduo
chegue ao que é chamado de estágio genital de desenvolvimento. Há
algumas teorias que acham normais os sonhos homossexuais. São muitos
os que foram privados do amor de pai e mãe e isso redunda numa
necessidade de amor de qualquer dos sexos. Essa necessidade é tão
universal que somos tentados a considerar o bissexualismo como um
fenômeno geral.
Eu não acredito que haja uma básica tendência genética homossexual no
homem. Se isso fosse verdade, o homossexual curado continuaria a sentir
as mesmas tendências, e não é isso o que acontece pelo que tenho
constatado com os meus pacientes depois de passarem pela Terapia Primal.
A julgar pela maneira como combinam as partes masculinas e femininas o
mais sensato parece ser somente o heterossexualismo desde que se trate
de um corpo são. Quando consideramos que o sexo entre homem e mulher
e a essência básica da vida, torna-se difícil encontrar um raciocínio lógico
para justificar o tema do bissexualismo.
O homem que se sente atraído para outros homens certamente não teve o
amor de seu pai de que tanto necessitava, mas não se dava conta disso
porque odiava o pai que havia abandonado a família quando ele tinha dez
anos. Podemos dizer que suas necessidades homossexuais latentes eram a
parte mais real dele naquela ocasião e seu comportamento heterossexual
era o menos real pois apenas fingia desinteresse pelos homens. O que é
latente no neurótico, então, são as necessidades sem solução. Desde que
fossem satisfeitas deixariam de existir de qualquer forma.
Por exemplo, se uma moça não tivesse tido na sua infância o calor e os
carinhos de sua mãe, nós diríamos que ela teria necessidades latentes de
amor feminino. Se, mais tarde, ela for seduzida por outra mulher bastante
carinhosa as tendências latentes seriam transformadas em comportamento
ostensivo. A diferença entre o homossexual ostensivo e o latente, então,
seria apenas o ato e não a necessidade. O que evita o ato em muitos
homossexuais latentes pode ser o medo, a repulsa social, crenças
religiosas, etc. Pode acontecer que não apareça ninguém no momento
crítico para seduzir a moça homossexual latente, e nesse caso suas
tendências continuariam latentes. Algumas vezes essas tendências são
percebidas ao passo que em outras continuam completamente ignoradas
para a pessoa que poderá estar muito ocupada mostrando o estado latente
em lugar de senti-lo. Nas pessoas cujo meio social condene o
homossexualismo é bem possível que a condição latente nem seja notada
e ela permaneça escondida e criando tensão.
Este conceito de latência pode ser importante para compreendermos os
comportamentos no vício de drogas e no alcoolismo onde o índice de
inclinações homossexuais latentes é extremamente alto em ambos os
sexos. O desejo incontido para alguma espécie de alívio físico como a
bebida parece ser inevitável naqueles que fogem às tendências. O
homossexual ostensivo pelo menos cedeu aos desejos aparentes e
encontra, de tempos em tempos, aquilo a que emana de amor Nesse
sentido, ele aceita plenamente a sua irrealidade. O bêbado e o viciado
pagam um alto preço, evidentemente, quando se recusam a reconhecer as
necessidades. A necessidade para alguma espécie de amor de parte de
alguém do mesmo sexo pode também ser tão forte tanto no homossexual
latente como no ostensivo. Não adianta fingir que isso não existe.
O paradoxo do alcoólatra é que ele muitas vezes usa o amor pela bebida
como sinal de sua masculinidade. A bebida só serve para mascarar su as
necessidades até que ele chegue ao ponto de não sentir mais dor. Pode ser
nessa hora, quando não sinta mais o medo, que ele afinal chegue a fazer
aquilo que já vem querendo desde anos, e que é agarrar-se a um homem.
Podemos dizer que a diferença essencial entre o homossexual latente e o
ostensivo é que o latente já foi convencido a agir dentro de seu sexo. Suas
ideias foram mudadas e já nem mesmo se parecem com aquilo que sente
em seu íntimo. Acaba acreditando em sua própria mentira, mas não
encontra jeito para espantar os sentimentos latentes da mesma forma que
espantou as ideias. Embora julgue que já não precisa mais de carinhos, o
alcoólatra sente necessidade de tirar isso da garrafa até que sinta algum
alívio momentâneo. Pode sair de casa todas as noites em busca de um bar
onde possa afogar a Dor sem chegar a perceber que é presa dela, mas se o
privarmos desse comportamento simbólico isso só servirá para exacerbar
a neurose.
Eu acredito que se todos reconhecessem as tendências latentes que
existem em alguns de nós dentro do seu verdadeiro significado da
necessidade de amor dos pais e não de estranhas perversões, poderíamos
conseguir muito para melhorar alguns críticos problemas sociais que nos
assolam.
Discussão
Eu acredito que seja essencial nós reconhecermos o comportamento sexual
anormal como parte de uma neurose total e não como algum ato especial
e bizarro desligado daquilo que a pessoa realmente é. Mas já não acredito
que seja preciso um especialista em homossexualismo para tratar disso, da
mesma forma que fosse preciso recorrer a especialista para tratar qualquer
outra maneira de fugir à Dor. O tratamento do homossexualismo não
significa conseguir um comportamento adequado. Para mim ele significa
conseguir o verdadeiro comportamento. Talvez tenhamos tentado usar
categorias e abstrações sem perceber que estávamos tratando de pessoas
que já haviam encontrado meios para se protegerem dos seus sofrimentos.
Muitos homossexuais deixam de recorrer à psiquiatria por julgarem que
nós, os profissionais, consideramos o seu mal sem cura, como se aquilo
fosse alguma doença especial que exigisse conhecimentos também
especiais. Eu não o considero diferente de qualquer outra espécie de
neurose, exceto em grau de patologia. Isto significa que se nós podemos
curar uma neurose, então devemos poder também curar todas elas.
A psicoterapia já adotou um bom número de métodos para o tratamento
das aberrações sexuais. Em vista do fracasso da terapia de insight, nós
muitas vezes tentamos apenas ajudar o homossexual a aceitar a sua doença
e viver com ela mais confortavelmente. Um dos atuais métodos de
tratamento que parece agradar aos profissionais é o de condicionamento.
Um dos que já mostramos é feito com a apresentação de fotografias de
homens nus aos homossexuais ao mesmo tempo que lhe aplicam um
choque elétrico bem fraco. O objetivo é despertar a aversão ao hábito. Um
outro método é incentivar o homossexual à prática de atos heterossexuais
ao mesmo tempo que ele se convence que não tem medo do sexo oposto.
Há uma aparência de cura em alguns casos porque os métodos de
condicionamento alteram alguns comportamentos anormais. Isso ajuda a
complicar o que entendemos como cura, isto é, se olharmos apenas para o
comportamento ostensivo. Se investigarmos por baixo do comportame nto
e medirmos o nível de tensão que continua a subir, nós verificaremos que
apenas modificamos o hábito do sexo para enquadrá-lo mais no sistema de
valores do terapeuta.
É melhor tratar o homossexual latente antes que ele tenha tomado gosto.
Logo que tenha encontrado satisfação em tal substituto, o mais provável
será ele acreditar que finalmente encontrou o que deseja e já não quererá
ser ajudado. Mas mesmo que tenha sido homossexual durante alguns anos,
eu ainda acho que ele pode ser tratado, e a hora mais certa para começar
a cura será quando tiver se separado do seu companheiro de sexo. Ele sofre
com a sua falta e pode entregar-se à bebida, pode sair para outra cidade,
sempre tentando fugir da sombra que o persegue. Eu creio que o
homossexual pode ser tratado com sucesso na hora em que para de fugir e
sente então a sua Dor. O homossexual é o eu simbólico sem quaisquer
alicerces básicos. Evapora-se com a Dor já que era apenas uma fantasia.
Eu não acredito que crianças pequenas diferenciem entre amor masc ulino
ou feminino. Tudo que desejam é o calor humano e não as carícias especiais
de uma mulher ou os abraços de um homem. Na minha opinião, o que causa
a neurose é a luta para tornar-se amado que faz surgir todas as aberrações.
Se a criança pudesse ser espontânea em seus carinhos e no seu
comportamento geral com os pais, tenho a certeza que não precisaria de
fingimentos.
Elizabeth
Quando conheci Elizabeth, ela era lésbica. Tinha toda a aparência de um
homem até mesmo no andar. Era viciada em metedrina. Transformou-se
completamente, e hoje é funcionária da Justiça encarregada de vigiar os
viciados que conseguem liberdade condicional e assim está ajudando
aqueles que tão bem conheceu antes. A sua solução para a frigidez pode
servir a muita gente vítima desse mesmo problema já tão comum.
Meu nome é Elizabeth. Nasci numa cidade do Sul e tenho uma irmã gêmea.
Tenho vinte e seis anos. Minha irmã é um ano e meio mais moça. Meu pai
é professor de engenharia e minha mãe procura ajudar nas despesas da
casa fazendo diversos serviços.
Tinha quatro anos e meio quando surgiram os primeiros problemas, tanto
quanto posso lembrar-me. Parecia ser alérgica a tudo: poeira, penas, flores,
peles e alimentos com amido.
Quando tínhamos seis anos mudamos para a Califórnia. Nessa altura eu
comecei a roubar os níqueis de meu pai para comprar balas. Algumas vezes
roubava também dinheiro da mesada de minha irmã e aí então enchia -me
de doces.
Passava a maior parte do tempo na escola sonhando com fantasias loucas,
com príncipes encantados.
Durante um curto período, quando tinha sete anos, meus pais levaram -me
a um psiquiatra e nessa ocasião minha mãe disse-me que era porque eu
estava sempre reclamando que ela não me amava. Alguns anos mais tarde
ela disse-me que também era porque eu roubava dinheiro miúdo nas casas
de colegas. O diagnóstico do médico foi que eu era uma criança que
precisava muito de amor e também com grande capacidade de amar.
No quinto ano minha professora incentivou-me para trabalhos artísticos.
Adorava pintar cenas dos índios Hopi em cores vivas, laranja, turquesa e
vermelho. A maioria era de índias Hopi segurando filhos nos braços. Não
conseguia dar expressão aos seus rostos. Quando era pequena, a pintura
era a única coisa que eu gostava de fazer. Ganhei alguns prêmios e meus
pais matricularam-me numa escola de arte e eu fiquei entusiasmada.
Tentaram ensinar-me formas e linhas. Fiquei sem a única liberdade que
tinha. Meus pais achavam que eu tinha força criadora e diziam que tudo
que eu tocava se transformava em ouro. Eu já não achava mais graça. Era
uma chateação. Minhas mãos tornaram-se tensas. Já não faziam o que eu
queria. Pensei que teria de ser perfeita para elas me obedecerem.
Meus pais passavam todo o tempo que tinham livre fazendo coisas para a
casa. As crianças tinham que assumir responsabilidades desde pequeninas.
Tinha sempre o raio do trabalho que éramos obrigadas a fazer. Havia um
sistema de quotas para nós. Estávamos sempre arquitetando planos para
fugirmos ao trabalho. Quando saía para brincar sempre sentia-me culpada
pois havia trabalho ainda por terminar em casa. Nunca cuidei de meu
quarto. Era uma bagunça completa. Era de gritar, e era mesmo ele que
gritava por mim.
Entre os treze e dezenove anos eu tive um número normal de amigos entre
moças e rapazes. A verdade era que eu passava mais tempo com as moças
do que com os rapazes. Sempre me apaixonava pelas meninas mais
populares da escola. A minha melhor amiga era Roberta que era linda mas
também fria como gelo. Brincávamos de mulher e fazíamos roupas b em
escandalosas. Usávamos soutiens acolchoados e estávamos sempre
preocupadas com métodos milagrosos para desenvolver nossos seios. Os
que tínhamos eram uma verdadeira humilhação. Fazíamos tudo sempre
juntas. Amávamo-nos ao mesmo tempo que odiávamo-nos. Na escola
éramos conhecidas como as Gêmeas de Ouro em Pó. Meus pais achavam
que minha amizade com Roberta estava me virando a cabeça.
Quando fiz quinze anos mandaram-me para fora durante um ano porque
minha mãe não podia mais comigo. Uma outra aluna da escola tomou-me
sob sua proteção. Éramos as duas ginasianas inseparáveis. As nossas
relações posteriores por correspondência, ou breves visitas, sempre foram
muito alegres.
Quando voltei, meus pais colocaram-me em outra escola esperando que a
minha amizade por Roberta arrefecesse, e de fato foi o que aconteceu. No
entanto, logo encontrei Janet e passava a maior parte do tempo com tolas
palestras intelectuais. Cada qual julgava a outra brilhante e ela dizia que
eu era o seu "alter ego"
Eu geralmente dava em cima do rapaz mais difícil de conquistar, mas logo
que conseguia não demorava a ver-me livre dele. Quando tinha dezessete
anos entreguei a minha virgindade porque estava na moda. Não senti nada.
No entanto, depois de perseguir-me e de trepar comigo, foi ele quem me
deixou. Aí percebi que tinha sido usada. Fiz o que me foi possível para
ocultar a mágoa.
Com dezoito anos eu estava realmente confusa, perdida e infeliz. Nada
havia que me satisfizesse. Uma noite entrei pelo quarto de meus pais e
pedi-lhes que me levassem a um psiquiatra e foi assim que durante uns seis
meses estive entregue a um que eles escolheram. No outro dia encontrei
uma lista que eu fizera uma noite das coisas que queria falar com ele:
— meu interesse pela semântica
— sinto-me como se fosse ameba felicidade?
— desejo de gritar
— professores não gostam de mim
— desejo de devorar
— apatia análise de pessoas
— rapazes mais velhos
— homens
— sou egocêntrica
— ódio pela sociedade.
Nada realmente mudara, a não ser que eu tinha agora quem me ouvisse.
Meu pai também estava às voltas com um psiquiatra e afinal meus pais
resolveram divorciar-se. Fiquei arrasada. Não podia acreditar. Meu pai
tornou a casar. Fui então para uma universidade onde meu pai ia ensinar
durante um ano. Lá encontrei mais uma outra "grande" amiga. Bonnie e eu
éramos inseparáveis. Ela era doce e etérea e, para mim, era a poesia. Era
uma adoração mútua.
Quando voltei para a Califórnia as coisas ficaram cada vez piores. Comecei
a me afundar. Minha mãe tinha tornado a casar, e não queriam que eu
morasse com eles. Minha irmã casara e convidou-me para morar com ela.
Já nessa altura eu não queria mais saber de homens. Quando tivera
relações com eles não conseguira sentir nada e, além disso, cada vez
interessava-me mais por lésbicas. Durante o dia eu vestia-me sobriamente
e trabalhava num banco. À noite soltava meus cabelos e ia juntar -me com
a turma no bar. Mas também não me entregava completamente às
mulheres. Continuava com aquela lésbica que era muito parecida com
minha mãe. Fazíamos muitas coisas, mas eu não queria nada da cintura
para baixo. Eu não conseguia me adaptar a moças ou rapazes. Falei com
minha madrasta que era realmente a única amiga que eu tinha. Ela contou
a meu pai e os dois levaram-me à casa do Dr. Janov. Lembro-me bem de
nossa primeira entrevista. A todas as suas perguntas a minha resposta era
sempre a mesma: "não sei." Resolveram então que eu mudaria para a sua
cidade para começar uma terapia intensiva.
Tudo terminou muito bem. Consegui um emprego. Parei de sair com moças
e passei a sair com homens, mas só que eram geralmente bem mais velhos
do que eu. Um deles era professor de filosofia, tinha sido ministro religioso
e estava com cinquenta anos. Eu trepava com ele e ao mesmo tempo saía
com seu filho de vinte anos. Aí comecei a pensar que poderia viver por
minha conta e mudei-me para Los Angeles. Morei algum tempo com minha
mãe e meu padrasto, mas logo encontrei emprego e mudei-me para meu
apartamento. Quase todas as noites de domingo eu tinha crises de choro.
Sempre me sentia despreparada para a segunda-feira. Não dava conta de
meu serviço e em lugar disso estava sempre passeando e visitando minha
irmã ou amigos. Uma de minhas melhores amigas era Hildie que eu
conhecia desde os seis anos. Era a minha crise periódica de estabilidade.
Também tinha um namorado platônico, Raymond. Passeávamos muito
escalando montanhas, andando de carro, comendo fora ou indo a cinemas.
No que me dizia respeito, o sexo estava fora do programa. Não me sentia
atraída para ele nesse sentido. Durante seis meses frequentei um
psiquiatra. Só ele falava e pregava e eu raramente abria a boca. As coisas
não iam bem. Quando soube que o Dr. Janov ia mudar-se para Los Angeles
eu resolvi procurá-lo. Entrei num grupo.
Eu tinha o hábito da pílula que meu médico havia receitado para eu não
engordar, quando tinha dezessete anos. Tomava uma por dia durante cinco
dias e nos fins de semana esbaldava-me na comida. Disse ao Dr. Janov: "Eu
tomo as pílulas para não sentir a vida... sinto menos com elas ... sou tão
sensível à vida que não posso suportá-la. Preciso da pílula para amortecer
a vida. Com a pílula eu sinto-me morta. A música é muito metálica. Sinto-
me dentro de uma casca." Todas as manhãs eu refletia que apenas
atravessaria aquele dia sem vivê-lo. Com a pílula eu conseguia manter o
meu peso e comer o que queria, sem chegar a sentir o que acontecia
comigo. E isso durou sete anos. Uma manhã eu verifiquei que não poderia
atravessar o dia sem a pílula. Estava viciada. Bem, eu sabia que Art estava
trabalhando na sua nova ideia de Primal. Senti que ele poderia ajudar-me
e larguei a pílula. Algumas semanas depois larguei os cigarros. Passei a ver
Art algumas vezes sozinha e ele parecia estar me preparando para alguma
coisa.
Na tarde de 17 de setembro de 1967 eu escrevi: AJUDE-ME A SENTIR A
DOR... ESTOU DOENTE PORQUE NÃO CONSIGO SENTIR NADA... TENHO A
CERTEZA QUE PELO MENOS A DOR ME MOSTRARIA QUE AINDA ESTOU VIVA
... PORQUE REALMENTE SINTO-ME MORTA.
No grupo naquela noite, eu estava lembrando uma situação que me
acontecera algumas noites antes. Raymond estava me fazendo uma
massagem no pescoço e nos ombros quando eu lembrei-me como sentira
falta do carinho de meus pais. O médico pediu-me que tomasse parte num
pequeno psicodrama com Steve, um rapaz do grupo. Deitei-me no chão de
barriga para baixo. Steve começou a me contar uma história para dormir
ao mesmo tempo que massageava-me os ombros. Eu queria relaxar-me
para apreciar, mas fiquei tensa. Quando ele me acariciou os cabelos e a
parte de trás do pescoço, eu fiquei excitada mas tive medo e esquivei-me.
Ele continuou a acariciar-me os cabelos e o pescoço e a tensão aumentou.
Então olhei para as mãos de Steve e vi que eram as mãos de meu pai e
então disse, "Meu Deus, são as mãos de meu pai... estou na cama com os
lençóis amarrotados." E aí senti-me tão pequena como se tivesse seis
meses e era meu pai quem me acariciava... fiquei tão excitada que pensei
ter um orgasmo... então suas mãos me deixaram e eu perdi o controle e
comecei a cair para dentro de mim mesmo ... pensei que ia cair para
sempre. Via relâmpagos de luzes vermelhas e brancas junto com barulhos
tremendos... eu estava explodindo em milhões de pedacinhos... sabia que
ia morrer... aquilo era o fim ... estava sendo eletrocutada... e então, lá do
fundo do meu ser, encontrei forças para gritar... ao mesmo tempo que
gritava eu percebia que rolava e contorcia-me pelo chão... derrubei alguma
coisa ... aí parei e disse que queria chegar ao orgasmo ... outra vez senti
dentro de mim e senti meu corpo sendo eletrocutado e gritei e rolei pelo
chão... Depois fiquei de costas e senti um vento fresco passando por cima
de mim. Abri os olhos e olhei em volta ... aí falei calmamente "foi a Dor".
Estava viva. Tinha sobrevivido. Tinha conseguido quebrar a casca e estava
agora dentro de mim mesma.
Mais tarde percebi que aquilo fora a minha Cena Primal. Quando bebê,
ninguém me aconchegava. Mas, no entanto, meu pai diz-me que costumava
acariciar-me quando eu era bebê. Foi exatamente aí que eu desliguei.
Ninguém me segurava ao colo a não ser meu pai para "acariciar-me" como
se eu fosse uma mulher. A Dor terrível era porque eu precisava ter colo
para poder sobreviver. Em lugar disso eu era provocada por meu pai e
levada ao ponto de excitação, e então era abandonada. Quando se é bebê,
a gente precisa de muito colo. Desliguei porque se ficasse ali mais tempo e
sentisse eu teria explodido em pedacinhos. Em lugar disso eu dividi - me.
Daquele dia em diante tornei-me tensa. Tinha desligado tão
completamente que nem mesmo sentia a minha tensão. Tornei-me o
símbolo daquilo que era ainda muito pequena para sentir — fragmentada.
Na manhã seguinte estava supersensível a tudo. Minhas pernas ainda
estavam tensas e mal conseguia ter-me em pé. Via bem onde estava. Queria
falar e andar mais lentamente. Já não tinha mais pressa. Nada tinha a dizer
nem lugar nenhum para ir. Sentia-me atordoada por tudo aquilo e uma
tremenda pena da luta perdida. Toda a minha vida tinha sido a luta para
conseguir o amor de meus pais e eu a representara através de meus
amigos. Tudo era um enorme fingimento e falsidade.
Meu emprego no hospital, atendendo ao telefone e marcando horas para
as velhas gritarem, tornou-se insuportável e eu o abandonei.
A primeira Primal que começou a fazer sentido para mim foi quando eu
tentei regredir para sentir aquela primeira Dor mas nada encontrei. Sim,
minha vida era vazia e eu não tinha nada. Era tudo fingido. Para não me
sentir morta tornara-me dramática. Agora já o meu rosto não podia mais
fazer aquelas contorções. Sentia-me viva pela primeira vez na vida.
Comecei a escrever as mudanças que se operavam em mim. Tudo tornava -
se real. As cores eram vivas. As paisagens pareciam quadros. Já não via o
mundo através de um telescópio. Meus ouvidos estavam por demais
sensíveis e não podia aguentar muito barulho. Minhas mãos estavam soltas
pois já não precisavam mais agarrar-se em nada. Que liberdade! Estava
realmente livre. Escrevi "Estou começando a desabrochar. Hoje eu estou
saindo de meu casulo! Gosto de nascer. Há tanta coisa para aprender... mas
o mais importante é que agora é agora. Ontem já era. Amanhã ainda não
chegou. Agora é agora. Sentia-me com cinco anos de idade. Muito novinha.
Escrevi: "Já posso engolir porque minha garganta já está ligada."
As Primais começaram a suceder-se. Sentia o frio de meu corpo. O frio
vinha de minha espera pelo calor de meus pais. Depois dessa Primal minha
circulação aumentou. As mãos e os pés estavam vermelhos e quentes pela
primeira vez na minha vida. Houve muitas Primais em que desejava meus
pais. Art obrigava-me a chamar por eles e quando chamava a sensação
enchia-me de como eu desejava que eles viessem mas eles não vinham.
Aliás, essa sensação de querê-los perdurou até o fim do tratamento.
Sempre que sentia a vontade, era num nível mais profundo e mais rea l.
Quando sentia o que realmente queria já não precisava mais entulhar -me
de comida para encher o vazio de não conseguir o que queria. Era por isso
que eu comia tanto naqueles fins de semana. Nunca estava satisfeita.
Porque não era a comida que eu queria. Também nunca sentia o estômago
e assim não sabia se estava cheio ou não. Essa terapia transforma alguns
sonhos em realidade. Quando era glutona, eu costumava sonhar que ia
sempre ser esbelta sem esforço. Nunca pensei que conseguiria livrar -me
daquela mania de comer. Agora eu como o que quero e quando quero e
tenho um corpo bem bonito.
Eu era frígida. Gostava de beijar, abraçar, apertar, mas nunca sentia nada
na vagina. Durante algum tempo nessa terapia eu estava saindo com um
rapaz bem fogoso, mas aquele meu antigo padrão era sempre o mesmo.
Quando trepávamos eu queria muito chegar ao fim mas não conseguia e
continuava desejando intensamente um orgasmo. Art disse-me que eu
pensava que o sexo era amor e que eu não queria sexo. Ainda queria papai.
E era verdade. A saudade de meu pai era um sentimento que me vinha até
a raiz dos cabelos. Estava poupando-me para papai. Para ele eu me
conservaria num congelador. E então senti aquele calor na vagina. Dois dias
mais tarde um outro sonho tornou-se realidade. Tive um orgasmo
completo. Foi uma beleza. Senti-o em todas as células de meu corpo. Foi
delicioso. Quando terminou tudo eu senti-me igual por fora e por dentro.
Uma imensa serenidade. Sei agora que se não fosse aquilo teria continuado
frígida toda a minha vida. Teria continuado inteiramente assexuada com
Raymond. Meu pai e Raymond eram muito parecidos, só que eu
compreendia Raymond e não conseguia compreender meu pai. Raymond
tinha muitas atenções comigo e meu pai não. Raymond até mesmo lia para
mim como papai costumava fazer quando eu era criança. Raymond era um
pai liberal. Ele satisfazia as minhas necessidades e eu não precisava
satisfazer as dele. Toda a minha vida eu receara meu pai. Era um completo
estranho para mim quando eu era criança. Nunca sabia o que esperar dele.
Só sabia que não devia incomodá-lo. O mais difícil para eu desistir de meu
pai foi que ele era um homem basicamente bom. Um homem muito
humano, em princípio.
Houve algumas Primais violentas. Uma foi a sensação horrorosa que meus
pais tinham me matado. Eles estavam mortos e não queriam que eu
vivesse. Outro foi a que eu era escrava de meus pais. Depois tinha
tremendos sentimentos de indignação e raiva contra minha mãe. Ela não
brincava comigo. Eu vivia implorando. Queria que me segurasse ao colo e
que me amasse. Agora já eu sentia a razão de haver escolhido minhas
amigas. Queria que elas me amassem porque já tinha sepultado meus
sentimentos por minha mãe. Julgava-me secretamente tão feia que me
rodeava de moças bonitas. Em lugar de reconhecer a minha falta de
sentimento com minha mãe eu entrei em competição com Roberta que era
fria, bela e tola como minha mãe. E com todas elas era a mesma coisa, só
que eu nunca ficava satisfeita pois elas afinal não eram minha mãe.
Já que me sentia pouco feminina, eu procurava mulheres ainda menos
femininas do que eu. Tentei arranjar-me com mulheres macho. Com Stacy
e Mary eu me sentia "mulher". Elas eram mulheres que me desejavam e
queriam que eu fosse feminina. Minha mãe era sempre muito fria comigo
a não ser quando entornava umas bebidas. Então abraçava-me e beijava-
me com tanto sexualismo que sentia nojo. Eu ainda estava na Terapia
Primal quando ela telefonou-me às duas e meia da madrugada apenas para
dizer que me amava e sentia muita falta de mim. Fiquei assombrada e
desliguei sem uma só palavra. No dia seguinte eu percebi então o que era
ser lésbica. Minha mãe estava provocando-me para eu amá-la. A mãe quer
ser amada pela filha. Minha mãe nunca me deixou sentir-me bonita ou
feminina. Tentou fazer de mim sua mãe. Não me amava mas queria que eu
a amasse. Então, ser alegre é quando a filha rejeita a rejeição da mãe indo
para uma outra mulher para que se amem mutuamente começando assim
uma representação simbólica. A diferença entre a lésbica ativa e a passiva
é o grau de feminilidade desprezada. Uma ainda luta para sentir como
mulher enquanto a outra procura ser homem. Uma psicótica minha amiga
nessa última categoria escreveu um poema em prosa que mostra bem o
que é o lesbianismo. O seu título é Gente Frágil:
Este é o poço do cianureto.
Esta é a fonte onde bebem os perdidos na tentativa de saciar sua
sede, pensando que a busca terminou ... e o néctar transforma -
se então em ácido na boca suja. O orvalho se evapora na flor que
se estiola em seu caule, ou então é apanhada para ser atirada
fora. A violeta torna-se uma planta de estufa, uma coisa que só
vive em vasos, e perdendo a timidez que tinha na floresta ela
assume o brilho da cidade...
Este é o poço, este é o limbo do líquido, e o líquido são as lágrimas, e o
poço é cavado no abismo de vidas despedaçadas ... Nós cantamos o amor
e lembramos a primeira paixão. Sim, sim, vemos aqueles olhos que
pareciam não ter fundo e que eram claros como um lago tranquilo.
Sentimos outra vez a tremura e o ardor daqueles lábios que tínhamos medo
de tocar... e sentimos a excitação. E é em vão que numa busca sem fim
tentamos chegar à excitação de nosso primeiro amor...
Agora somos fortes — somos brilhantes — e frágeis e nossa é a
superfície brilhante — a gargalhada alegre e farfalhante — o
aperto de mão descuidado e as lágrimas que vêm depois. Os
anos passam rápidos — e somos nós que conversamos — nós
que sepultamos os sonhos de nossa juventude. Para alguns de
nós o poço já secou, e somente restam os cristais salgados. E
esquecemos isso... até que algum golpe solerte reabra a velha
ferida para nos fazer sentir a ardência do sal ...
É sim, nós somos gente alegre ... somos vivos, espertos ... e
também somos frágeis!
Já para o fim da terapia eu experimentei o ácido. Comecei a sentir algo
muito profundo e apaguei. Apagar é realmente quando a gente se desliga
de seus sentimentos. Fiquei louca. Foi um inferno verdadeiro!
Senti-me como se estivesse em Sem Saída de Sartre e não conseguia
descobrir a entrada para voltar à realidade. No dia seguinte quis matar-me.
Não foi bem querer matar-me e sim porque, na primeira vez em minha vida,
eu sentia-me terrivelmente só e apavorada. Já não podia tirar mais nada
do mundo. Tinha medo de sentir-me sozinha completamente porque isso
poderia destruir-me, mas, ainda assim, eu também tinha medo que
impulsivamente poderia destruir-me se verificasse que não aguentava
mais. Então fui ficando só aos poucos.
Durante semanas sentia-me louca. Não conseguia distinguir o real do irreal.
Uma noite, no grupo, vi-me no chão querendo com todas as células de meu
corpo. Bem lá do fundo de mim eu ouvia o chorinho de criança. Senti -me
com dois anos. Nunca sentira assim tão plenamente, exceto o orgasmo. E
então senti vertigem. O desequilíbrio continuou até que voltei a sentir todo
aquele desejo.
Houve algumas mudanças físicas que espero sejam permanentes, e que
ocorreram durante toda a Terapia Primal. Minhas alergias desapareceram
completamente. Minha pele tornou-se mais macia e as espinhas sumiram.
Meus seios ficaram mais fartos e os bicos mais maduros. Meus músculos
estão finalmente relaxados.
Valerá a pena? Será que sinto-me realmente diferente depois de tudo isso?
Bem, é a diferença entre a vida e a morte, só que eu não sabia que estava
morta até que tornei-me viva. Mas agora que estou viva nada mais tenho
para justificar a vida. Entrei na terapia para encontrar uma nova
autoimagem e só encontrei a mim mesma. O que é bom quanto à realidade
é que ela nunca deixa ninguém mal.
18 - OS FUNDAMENTOS DO MEDO E DA RAIVA

A Raiva

Um dos mitos a respeito dos seres humanos é aquele que acha que por
baixo de nossos plácidos exteriores todos nós somos um ebuliente
caldeirão de fúria e violência mantido e controlado somente pela
sociedade. Quando falha o sistema de controle, explode a violência inata
do homem e o resultado são as guerras, os holocaustos. No entanto, eu
estou sempre espantado pelo que encontro de falta de agressividade e
violência nas pessoas quando se lhes tiram as chamadas fachadas
civilizadas. Os pacientes Primais nunca são raivosos apesar de expostos e
indefesos. Não há raiva. Talvez seja o próprio processo de civilização que
torne os seres humanos tão faltos de civilização entre eles, trazendo como
resultado a frustração e hostilidade. Ser civilizado significa possuir o
controle de nossos sentimentos, e isso pode ser a origem da raiva interna.
Eu acredito que o homem raivoso é o que não foi amado, é o que não
conseguiu ser o que era. Ele tem geralmente raiva dos pais que não o
deixavam em paz e dele mesmo por continuar com a negação de si mesmo.
Mas a necessidade é fundamental e a raiva é secundária, já que é o que
acontece quando as necessidades não são atendidas. Quando olhamos para
o processo Primal, nós vemos uma sequência que é quase matemática na
sua falta de variação. Nas primeiras Primais há geralmente raiva, no
segundo grupo aparece o sofrimento e no terceiro a necessidade de amor.
O maior sofrimento é geralmente a necessidade insatisfeita. A sequência
Primal é a vida de trás para diante. Primeiro, na infância, havia a
necessidade de amor, depois o sofrimento por não consegui-lo e
finalmente a raiva para aliviar o sofrimento. O que geralmente acontece
com o neurótico é que ele saltou por cima do primeiro e do segundo e
encontrou-se com uma raiva inexplicável. Mas a raiva, como a depressão,
é uma reação ao sofrimento e não uma característica fundamental do
homem. Algumas vezes é mais fácil a uma criança sentir raiva do que
tolerar o terrível sentimento de solidão e rejeição e então ela finge que o
sentimento de solidão e de falta de amor é coisa diferente: ódio. Mas os
pacientes na Terapia Primal raramente sentem ódio dos pais. Geralmente
querem apenas amor e querem saber por que não lhe dão isso. O neurótico
depois de crescido tende a pensar que seu único sentimento é o ódio, mas
quando chega na terapia ele verifica que o ódio é apenas uma outra cortina
que ele lançou sobre a necessidade. Logo que sente a necessidade já quase
não resta mais raiva. Nos grupos primais, por exemplo, quase nunca
encontramos a troca de hostilidades entre os seus componentes, como
acontece na terapia convencional. Tampouco demonstram raiva pelo
terapeuta. O que há é apenas muito sofrimento.
A Teoria Primal encara a raiva como um sentimento contra alguém que está
tentando destruir a vida. Devemos lembrar que os pais neuróticos estão
inconscientemente matando os filhos, num certo sentido, já que estão
matando suas verdadeiras personalidades. A morte psicofísica é um
processo real em que a vida está sendo retirada deles. O resultado é a raiva,
já que sermos alguma coisa que não somos é o mesmo que a morte.
Quando o neurótico suprime a necessidade de amor e sente apenas a raiva,
ele pode tentar descarregá-la em alvos simbólicos como a esposa, os filhos
ou os empregados durante todas as horas do dia. Desde que não estabeleça
a ligação certa com a origem de sua raiva ele poderá descarregá -la em
formas irreais, as mais incríveis e repugnantes, como cuspir na cara da
esposa, simplesmente porque ela duvidou de alguma coisa que dissera. Na
Terapia Primal ele sentiu a raiva de nunca haver sido acreditado pelos pais,
e isso veio extravasar mais tarde sobre a sua esposa.
Se tornarmos a raiva real ela desaparecerá. Até que isso aconteça, muitas
explosões de raiva contra as pessoas no presente serão apenas
fingimentos. É claro que também há raivas verdadeiras, e que não emanam
do passado. Quando alguém faz alguma coisa errada que nos contrarie, a
raiva pode ser legítima, mas quando as explosões são diárias o predomínio
deve estar no passado. Isso significa que o neurótico está sempre pronto a
sentir aquilo que reprimiu antes. O que ficou sem solução na infância irá se
infiltrando em tudo que a pessoa fizer mais tarde até que seja resolvido.
Acho que é importante diferenciar entre a raiva real e a simbólica. O
exemplo seguinte pode esclarecer este ponto.
Uma jovem professora que tinha sempre um sorriso nos lábios e maneiras
atenciosas veio procurar ajuda para um constante estado de tensão e
aperto nos seus músculos. Durante a segunda sessão ela contou como seu
pai sempre a criticava, irritava e ridicularizava, e de repente, ficou furiosa
e começou a bater no travesseiro durante mais de cinco minutos. Depois
que passou o acesso disse-me que nunca poderia imaginar a existência de
tanta raiva dentro dela.
A tensão, no entanto, persistia. Durante sua quinta visita ela passou a
discutir outra vez sobre as injustiças do passado. Começou então a
estremecer-se toda violentamente ao mesmo tempo que dava vazão ao seu
ódio dizendo como ia estrangular todo mundo, como ia cortar seu pai em
pedacinhos por todo o sofrimento que lhe causara sem nunca lhe permitir
defender-se, como iria enfiar uma faca na mãe que permitira aquilo e por
aí além. Tudo isso foi dito aos gritos em meio de convulsões e gemidos,
apertando a barriga e inteiramente descontrolada.
Aquela mulher nunca em toda a sua vida havia levantado a voz para
alguém. Isso não era coisa que pudesse fazer na educação que recebera em
casa. Confessou afinal que depois daquela sessão sentia-se solta e
imprevisível pela primeira vez em sua vida.
Foram necessários alguns estágios na sua terapia. Primeiro, ela tinha uma
vaga e difusa tensão durante toda a sua vida que a mantinha amarrada. A
primeira Primal tratou de sondar essa tensão para sentir a parte física da
raiva, para reconhecer até mesmo que estava com raiva. Depois ela
amassou o travesseiro porque ainda não tinha estabelecido a ligação
mental. Aquilo era uma representação simbólica. Claro que ela não tinha
raiva do travesseiro que era apenas o objeto simbólico para descarregar a
sua fúria, da mesma forma que acontece com crianças filhos de pais
raivosos. Só que no caso da criança indefesa os pais raivosos sempre
encontram uma razão para justificar a explosão. Com o correr do tempo as
crianças passam a dar aos pais razões reais para as raivas.
Logo que estabeleceu a principal ligação, essa mulher deixou de sentir a
raiva e consequentemente desapareceu aquela tensão crônica dos
músculos que sentira toda a sua vida.
Nas terapias anteriores a que se submetera o método era encorajá-la a
descarregar a raiva e hostilidade sobre os outros componentes do grupo.
Ela sentia que estava melhorando, mas ainda sentia os ombros doerem, e
isso era porque persistia a sua antiga raiva de menina. O que acontece, na
minha opinião, é que o eu real, indefeso e passivo, finge que se impõe,
especialmente na atmosfera segura da terapia de grupo. Na terapia, uma
"boa" moça exprime a sua raiva da mesma forma que a boa moça em casa
a esconde. Ambos os comportamentos representam a luta pelo amor.
A diferença entre a raiva real e irreal ou simbólica é muito importante
porque eu acredito que a falta de atenção a esse ponto levou a muitas
distorções terapêuticas. Assim, gasta-se muito tempo na psicoterapia de
crianças quando elas são obrigadas a esmurrar sacos. No nível de adultos,
existem as chamadas clínicas de brigas onde os cônjuges são colocados
numa sala para aprenderem argumentos de ataque e defesa nas suas
discussões. Na minha opinião, tudo isso é simbólico e nada pode resolver
de forma real. A mulher de quem falei acima mostrava-se zangada com seus
companheiros de terapia mas, na verdade, não tinha raiva deles. As coisas
que fazia serviam para despertar suas antigas raivas. Quando se sentia
ignorada, criticada, interrompida ou suprimida, aquilo despertava a fúria
contra os pais, mas ela continuava a ignorar que era um sentimento antigo.
A força de sua raiva contra os companheiros do grupo era realmente
irracional. Parecia um pouco com aquilo que se lê nos jornais da mulher
que matou o marido só porque ele não levou para fora a lata do lixo,
quando foi alguma coisa no passado que deflagrou a violência. Também
serve para explicar por que alguns pais têm medo de espancar os filhos por
alguma coisa insignificante. Raciocinam que a sua filosofia de educação de
filhos proíbe o espancamento quando a realidade é que sentem medo que
isso dê vazão à violência latente das crianças.
Possivelmente, uma das razões para a existência das clínicas de brigas e
também do encorajamento de expressões hostis na terapia de grupo, talvez
seja que a raiva ou violência é considerada como coisa natural que deve ser
extraída periodicamente e a que Freud chamava de "agressão instintiva". É
uma grande tentação para os psicólogos acreditarem nesse suposto
instinto, porque nós realmente constatamos muita hostilidade em nossos
pacientes. Nós vemos apenas essa violência porque não levamos os
pacientes até bem no fundo de seus sentimentos, de suas necessidades. O
que vemos é o que está por cima da necessidade, ou seja, a re ação da
frustração à necessidade.
Já que acreditamos em um instinto agressivo nós, muitas vezes, gastamos
muito tempo em nossas terapias ajudando as pessoas a cuidarem de suas
agressões, isto é, a controlá-las. Eu creio que temos que fazer o contrário.
Devemos deixar sentir toda a raiva para depois erradicá-la. Quando a
pessoa pode sentir a si mesmo, em lugar de representar simbolicamente os
seus sentimentos, ela dificilmente agirá impulsiva ou agressivamente. A
dialética da raiva, como a da Dor, é que ela desaparece logo que é sentida,
em caso contrário fica esperando por isso.
O conceito de cada qual cuidar de si implica o split neurótico. O perigoso é
esse split porque ele significa que os sentimentos reprimidos devem ser
controlados. Assim, a pessoa desinibida, espontânea e descontrolada é a
que mais provavelmente terá menos agressões internas.
Mais uma vez, quero tornar claro que espontaneidade significa sentimento,
ao passo que impulsividade é o resultado de sentimentos reprimidos.
Assim, uma pessoa impulsiva pode, em verdade, agir agressivamente e
portanto precisa de controle. Durante anos nós vimos considerando os
indivíduos impulsivos como pessoas livres e anarquizadas, esquecendo que
elas são geralmente presas a antigos sentimentos bem definidos a que
estão dando vazão de maneira reduzida e não, de forma alguma, a
liberdade ou anarquia que possa parecer.
Uma pessoa pode ter explosões diárias durante toda a sua vida sem,
contudo, perceber que é zangada. Geralmente consegue arrumar as coisas
de tal modo que justifique seu acesso de raiva sem ter necessidade de
sentir a sua origem. Se o neurótico não encontra alguma coisa para
justificar a raiva, podemos ter certeza que ele encontrará meios para torcer
qualquer coisa insignificante para manter a vazão dessa raiva. Esse
despistamento, em geral, seria na direção de necessidades reprimidas e
não simplesmente uma questão semântica.
A raiva do neurótico pode depender de alguma situação anterior que lhe
causou sofrimento. Por exemplo, eu tive uma paciente que ficava com raiva
quando os filhos não ajudavam na arrumação da casa. Dava-lhes surras e
tudo, afinal, era porque sua mãe a obrigava arrumar a casa desde os oito
anos.
A pressão alta é um possível resultado da repressão da raiva. Quando
pacientes com tendência para hipertensão terminam sessões tumultuosas
é frequente notarmos uma queda na pressão. Se considerarmos isso em
termos de bombeamento de maior pressão num organismo até que ela
exerça alguma força sobre todo o sistema circulatório, então é fácil vermos
como essa pessoa pode tornar-se potencialmente violenta desde que não
existam mais restrições. Por outro lado, a elevação da pressão torna -se
compreensível quando as restrições são continuamente impostas.
A divisão na cultura norte-americana atual entre a ética familiar e a societal
é muito nítida. O "bom" menino em casa nunca mostra sua raiva contra os
pais, ao passo que o "bom" menino da sociedade mata para servir ao seu
país. Um torna-se uma condição para o outro. O mesmo rapaz reprime-se
e mata outros só para ser "bom".
A raiva é muitas vezes semeada pelos pais que veem nos filhos a negação
de suas vidas. Os pais que nunca tiveram realmente uma oportunidade para
serem livres e felizes, que casaram cedo e sacrificaram-se durante anos
pelos filhos, vingam-se neles que são então os que sofrem, que devem
pagar só porque estão vivos e porque a sua simples existência constitui a
negação da liberdade dos pais. A criança começa a ser punida muito cedo.
Não lhe darão licença para dizer o que querem, não podem chorar nem
gritar. Recebem uma verdadeira onda de ordens que deverão cumprir para
terem o direito de viver. Todos os dias ensinam-lhes que têm que cuidar de
si sem pedir ajuda até que chegue o dia em que terão que cuidar dos pais,
de suas responsabilidades e obrigações. Bem cedo na vida a criança
compreenderá que é um empecilho e tentará desesperadamente purgar
por um crime que não cometeu. Crescerá depressa demais e fará tudo para
acalmar seus pais irritados que a odeiam sem qualquer razão. Uma paciente
que tinha sido a causa do casamento dos pais ainda antes dos vinte anos
disse: "Passei toda a existência tentando descobrir a razão para minha vida
caótica, para todas aquelas críticas e recriminações pelas coisas mais
triviais que eu fazia. Finalmente estudei filosofia para descobrir uma razão
na vida, isto é, para disfarçar o fato de não haver uma razão plausível para
o que se passava em minha casa."
Há muito pouca raiva depois das Primais porque eu acredito que ela seja o
contrário da esperança. A esperança nessa espécie de raiva é a de
converter os país em gente boa e de bons sentimentos. Por exemplo, a
fantasia de alguns pacientes meus depois de terminarem a terapia
convencional era que iriam ver os pais para fazer-lhes ver tudo que de mal
tinham feito contra eles, mas implícita nessa confrontação estava a
esperança que os pais vissem como tinham sido horríveis e logo se
tornassem diferentes e carinhosos.
Eu considero como sinal de neurose quando os meus pacientes ainda
sentem raiva. Primeiro, porque isso implica uma falsa esperança. Segundo,
porque a raiva implica as necessidades que continuam a existir nas
criancinhas que ainda não se desligaram dos pais. Não existe a raiva de
adulto, se o paciente já é realmente adulto, pela mesma razão que ele nã o
se zangaria pelo comportamento neurótico em qualquer outra pessoa.
Seria um adulto vendo objetivamente a neurose dos pais. A objetividade é
a ausência de sentimentos inconscientes que fazem uma pessoa desviar a
realidade da Dor encaminhando-a para a satisfação da necessidade. Seriam
apenas mais dois adultos neuróticos. Só há raiva contra os pais quando a
pessoa quer que eles mudem para o que ela quer. Desde que a necessidade
seja satisfeita a raiva desaparece.
O que realmente existe nos pacientes Primais é o grande sentido de
tragédia quanto a uma infância desperdiçada. Há, ao mesmo tempo, um
grande alívio já que terminou a luta de uma vida inteira. Os pacientes não
se interessam por vinganças pelo que aconteceu no passado, já que dão
mais importância para a nova vida que têm diante deles.
Ciúme e Inveja

O ciúme e a inveja são outras duas faces da raiva, e também são causados
pelo sentimento de falta de amor dos pais. Como a criança não pode
mostrar uma hostilidade direta pelos pais, ela tende a se desvi ar para os
irmãos que passam a ser apenas símbolos.
Por que será a criança zangada e ciumenta? Talvez porque desde cedo os
pais transmitem a elas uma noção que o amor é, de certa forma, uma
quantidade limitada e que depressa se gasta. Então estão sempre
mostrando os irmãos como exemplo para tudo e a criança fica então com a
impressão que não está recebendo toda a sua parte e daí o ciúme. Implícito
nesse sentimento está a existência de partes e isso acontece nos lares de
neuróticos onde os pais não dão abertamente e sim apenas vão
distribuindo aos poucos e sempre com alguma "condição." A criança é
então obrigada a lutar por tudo que quiser e poderá mostrar-se zangada
com os outros que estão ameaçando a sua porcentagem.
A ausência de ciúme ou inveja significa um amor completo. Na minha
opinião essa condição não existe naturalmente nas crianças, e aliás, nem
tampouco a raiva. É possível que brigue com os irmãos, mas são geralmente
os pais que mais exigem, criticam e negam o que a criança precisa. São os
pais que se mostram impacientes e irritáveis com manifestações infantis e
que talvez podem mostrar preferências por uns em detrimento de outros.
O que os pais neuróticos veem quando olham para os filhos é a esperança,
a imagem do que precisam — respeito, adulação, atenção. Estão se ligando
a um símbolo e não à criança. A criança que recebe aquilo que se parece
com amor é aquela que se torna, portanto, um neurótico simbólico em
lugar de alguém que pode se dizer dono de sentimentos próprios. Pois é
esse filho preferido que foi completamente destruído quem, a mais das
vezes, funciona bem em sua vida. O rebelde, aquele que não se conformou
nem se submeteu, talvez nunca funcione bem, mas, ainda assim, talvez se
aproxime mais de um ente humano do que o seu outro irmão que funciona
bem.
A pobre criança que é a favorita muitas vezes apanha da outra menos
favorecida e passa toda a sua mocidade pagando por um crime que foi
cometido pelos pais. Em um certo sentido, esse ciúme ou inveja é a forma
que o filho menos favorecido procura para conseguir a sua parte.
O ciúme infantil continua pela vida inteira e o filho invejoso ou ciumento,
ignorado pelos pais, pode crescer e ter filhos que ele punirá e
amesquinhará quando exigirem atenção de sua mãe. Essa situação
persistirá até que a pessoa encontre o contexto certo para sua raiva
plenamente sentida.
A criança não somente se sente zangada por não ser amada como também
se sente frustrada por não ter conseguido dar amor a ninguém. Além disso
há ainda a amargura de nem mesmo poder pedir o amor que necessita. Um
paciente disse que exigir amor na sua casa era considerado um crime e um
outro tinha medo de chegar-se ao pai para não ser considerado maricas.
Para aqueles que acreditam que o ciúme, a inveja e a hostilidade são
instintos naturais no homem, eu só posso dizer que os sonhos de meus
pacientes que terminam a Primal, e também o seu comportamento diário,
são completamente desprovidos de qualquer conteúdo de raiva, ciúme ou
inveja. Assim, mesmo que eles conseguissem controlar isso durante o dia,
seria de esperar que tudo surgisse nos sonhos quando os controles são mais
frouxos, mas não é o que acontece. Isso indica que o conceito de um
conglomerado instintivo de agressão deve estar errado. Se realmente há
qualquer instinto, ele deverá ser pelo amor, ou seja, pela própria pessoa.
Medo

Quando meu filho tinha dez anos, ele começou a ter terrores noturnos sem
que eu pudesse compreender a razão. Tinha medo de um homem que
estava no armário. Isso durou um mês até que eu resolvi tirar a coisa a
limpo. Uma noite, quando ele ia para a cama e pediu-me que deixasse as
luzes acesas e o rádio ligado eu resolvi submetê-lo a uma Primal. Obriguei-
o a mergulhar naquela sensação de medo para que ela tomasse conta dele.
Ele começou a tremer e a voz afinou. Dizia que não queria e que tinha
medo. Eu insisti. Quando mergulhou no terror eu lhe disse que gritasse o
que sentia mas ele dizia que não podia, não podia. Tornei a insistir e
finalmente ele disse, "não tenho palavras, papai. Mamãe está me
segurando pelas fraldas e tentando espetar-me em alguma coisa." Estava
aterrorizado e sentia-se indefeso. "Eu nunca achei que o homem do
armário ia matar-me com um revólver. Achava que ele ia estrangular-me."
Qual era a razão? Uma tarde, antes do tal medo começar, eu estava
brincando de luta com ele e o mantive preso pelos ombros de encontro ao
chão. Não me pareceu que houvesse qualquer trauma e esquecemos
daquilo até a hora da Primal quando suas lembranças voltaram à época em
que tinha oito meses. Chegava a lembrar a cor e a forma da bacia. Depois
do banho, ele estava correndo e fugindo enquanto minha mulher tentava
lhe colocar as fraldas até que já zangada ela segurou-o com força. O medo
vinha daquela experiência.
Em termos Primais, um medo irracional aparentemente, mas constante, é
geralmente uma manifestação de um medo anterior e muito mais
profundo. É o medo de então e não de agora, de forma que tentar
convencer alguém de alguma fobia irracional, como o medo de meu filho,
seria o mesmo que tentar apagar de sua mente uma lembrança.
A razão para a continuação das fobias é que elas se alimentam num
conglomerado de medo da Primal. Insistindo num velho tema, os terrores
neuróticos são também simbólicos. Os terrores reais não podem ser
atingidos sem a ajuda e apoio, de modo que a pessoa contenta-se com
substitutos. Assim surge o medo de elevadores, de cavernas, de altura, de
cães, de multidões, quando, na realidade, eles têm origem no passado.
Podemos dizer que os terrores atuais são como sonhos, ou seja, uma
tentativa para transformar em racionais antigos sentimentos que, dentro
do contexto atual, são considerados irracionais.
Mas ainda assim, isso é mais do que tornar os antigos sentimentos
racionais. É uma forma simbólica para controlar tais terrores. De certa
forma, o neurótico deve pensar que se conseguir manter as coisas sob
controle, já não precisará mais ter medo. Por isso o neurótico evita o que
teme, ou o que pensa temer. Não entra em avião e evita as alturas.
Essas atividades muitas vezes ajudam a controlar tais medos isolando-os
em compartimentos separados. Mas se alguém chega perto do objeto de
seu pavor, o que surge é um medo real simbolizado pela situação presente.
O neurótico que chega à beira de um despenhadeiro pode realmente temer
que perca o controle sobre seus sentimentos de autodestruição, e não
simplesmente que tenha medo de altura.
Eu quero crer que haja duas razões importantes para a escolha de um medo
irreal (fobia). A primeira é a verdadeira ocorrência de um trauma real
como, por exemplo, um acidente de automóvel ou uma queda de algum
telhado. Para o neurótico que passasse por isso, o medo de automóveis e
de alturas poderia se prolongar além do razoável e até mesmo durar a vida
inteira.
O que o neurótico geralmente faz é generalizar de uma única experiência
para uma classe muito mais ampla de outras sem qualquer relação com o
medo original. É o mesmo que acontece com o neurótico que por causa de
uma experiência desagradável com a mãe generaliza isso para se estender
a todas as mulheres.
A segunda razão para a adoção de uma fobia pode ser o valor simbólico do
medo atual. Os que se julgaram esmagados pelos pais poderão ter medo
de ficarem encurralados em lugares apertados como elevadores cheios. Os
que se sentiram totalmente abandonados pelos pais podem ter medo de
espaços muito amplos onde poderiam perder-se ou, pelo menos, sentirem-
se perdidos. Essa mesma pessoa, aliás, poderá ser a que se casa com um
tipo "mandão" que vai dirigi-la para o resto da vida. Isso, na minha opinião,
é importante, porque o medo neurótico é parte de todo o sistema
neurótico e não apenas um acontecimento isolado. Assim, as tentativas
para tratar do medo específico sem uma relação com o sistema total só
serviriam para perpetuar o sistema neurótico fragmentado e desviar a
atenção do paciente para longe da coisa real.
Recentemente tivemos uma mulher que recorreu à nossa terapia porque
tinha pavor de aranhas pretas. Não atacamos o seu medo diretamente, mas
depois de algumas semanas de tratamento ela começou a falar de seus
sentimentos a respeito de seu pai. Descobriu que estava sempre com medo
dele. Reviveu uma cena em que tivera medo dele e gritou "papai, não me
meta mais medo!" E logo a seguir, "papai, não me deixe ter medo." Ele fazia
tanta caçoada de seus medos que ela já não queria demonstrá-los. Mais
tarde ela ficou confusa e passou por duas sensações ao mesmo tempo. A
primeira era "não me toque, papai!" e a outra "segure-me, não quero
sentir-me só em toda aquela escuridão." Logo que conseguiu gritar o medo
que sentia do pai seguiu-se uma torrente de insights. "Estou vendo tudo
agora. Sempre tive medo, mas era tão sutil e tão inconsistente. Um dia eu
vi aquela grande aranha preta no banheiro e saí correndo e gritando.
Finalmente podia gritar o meu medo. Já encontrei a razão. Meu medo era
real, mas eu liguei-o a uma outra coisa que não era."
Quando sentem suas defesas atacadas, os pacientes Primais experimentam
uma vaga ansiedade. Quando eu não permiti que um capitão dos fuzileiros
praguejasse durante o tratamento, aquilo ameaçou a sua posição de
homem importante. Fez com que ele se aproximasse mais do fato que era
um garotinho que sofria. Ele não sabia exatamente o que sentia, exceto
que tinha uma sensação de medo e desamparo desde que não pudesse
gritar palavrões. A ansiedade neurótica é o medo de ficar exposto contra o
sofrimento Primal. A conduta neurótica serve para ocultar o sofrimento. O
homem a que me referi era de uma família de fuzileiros a que pertenciam
seu pai e irmãos. Para poder viver na família era preciso ser duro,
independente e livre de emoções. Ele não poderia tolerar a possibilidade
de precisar do aconchego do pai. Aquela necessidade sepultada mantinha -
o tenso, e quando o disfarce tornou-se mais tênue a tensão transformou-
se em ansiedade.
Já o contrário aconteceu com outro homem que precisava mostrar-se
agressivo. Tinha medo de deixar de ser o queridinho da mamãe se ficasse
zangado, e chegava a tremer só de pensar que isso poderia acontecer.
O medo trabalha para a sobrevivência. É ele que nos faz desviar de objetos
que caem, mas mantém a criança viva não permitindo que ela sinta os
primitivos sentimentos catastróficos que poderiam fazê-la desistir de viver.
O medo é aquilo que contribui para produzir as neuroses que nos protegem
de catástrofes. As pessoas que não podem continuar a ser neuróticas
muitas vezes tornam-se medrosas ou ansiosas. Quando não permitimos
que nossos pacientes finjam, eles ficam piores.
Da mesma forma que todos os neuróticos devem mostrar- se zangados por
não serem amados, também todos eles devem sentir um medo íntimo.
Alguns não tomam conhecimento do medo, outros projetam o medo em
fobias e ainda outros mostram o medo em formas de contrafobias. O medo
mostra quando se aproxima a Dor Primal. Uma indicação disso é que
quando a Dor Primal aumenta, depois de enfraquecer uma defesa, o medo
também aumenta.
O medo neurótico é o medo que a pessoa tem de perder a mentira com que
vive. Qualquer ataque à mentira provoca o medo porque ela contém a
esperança. Quando uma moça tenta ser rapaz para agradar ao pai, e
quando se mete em esportes e falha, ela pode tornar-se ansiosa porque a
sua personalidade real está surgindo. Quando um menino pretende ser o
queridinho da mamãe, ele pode tornar-se ansioso se ela fizer caçoada de
sua linguagem de garoto como muito chula.
O paciente Primal tem mais medo quando todo o seu jogo neurótico está
quase a terminar. Nosso objetivo é provocar esse medo para que ele possa
empurrá-lo para dentro de seus sentimentos verdadeiros. Tem medo de ser
real, e é por isso que é neurótico.
É muito importante o relacionamento do medo com a dor. As pessoas
exibem uma fachada para não sofrerem. Se alguém for exatamente o que
é, não poderá ser ferido e não precisa mostrar-se ansioso. A função do
medo, real ou não, é evitar nosso sofrimento. A única forma para
conquistar o medo é sentir o sofrimento. Enquanto o medo não for sentido,
ele continuará.
Contrafobia

A contrafobia corresponde a mergulhar naquilo que mais tememos. Assim,


se uma pessoa tem medo de alturas, ela pode dedicar-se aos saltos de esqui
para provar que não tem.
A atividade contrafóbica deve ser compulsiva e continuada porque a pessoa
está tentando negar um medo real por meio de uma atividade simbólica.
Eu considero a contrafobia como a mais séria forma de neurose porque os
sentimentos reais ficam sepultados tão profundamente que obrigam a
pessoa a fingir totalmente. A contrafobia, portanto, indica um estado
repressivo mais total. Um saltador de esqui que eu atendi em terapia tinha
um terrível pavor da morte. Em cada salto chegava muito perto da morte,
mas não achava a coisa tão ruim assim. Cada um de seus saltos era uma
tentativa para afogar o medo inconsciente... O que tornava a sua atividade
compulsiva era que os medos reais voltavam todos os dias para exigir novas
provas que realmente não existiam. Depois que quebrou uma perna num
salto, ficou muito satisfeito pois já não precisava saber se tinha medo ou
não.
Pode ser considerada contrafóbica qualquer ação contrária a um real
sentimento de medo. O sexo é um bom exemplo. Muitos homens têm medo
do sexo, mas são levados a ele compulsivamente com medo de não serem
considerados homens de verdade. Isto acontece especialmente com
aqueles que têm tendências latentes para o homossexualismo. Para provar
ao mundo que isso não existe, eles podem tentar conquistar todas as moças
que veem, falar constantemente com mulheres sobre sexo, ridicularizar os
bichas e brigar com outros homens. Podem ainda casar e ter muitos filhos
para provar a sua virilidade, e quanto mais meninos melhor.
A maior parte da raiva neurótica corresponde à contrafobia. É a reação ao
medo. A mãe bate no filho que correu na frente de um carro em movimento
porque o terror levou-a à raiva. A raiva, na maioria dos casos, é a negação
do medo.
Um "homem" não mostra medo e sim raiva que é um traço mais masculino.
Quantos homens serão capazes de reconhecer e proclamar o seu medo?
Para indicar as causas da contrafobia, vamos tomar o exemplo do menino
de cinco anos que correu escada acima procurando o pai, ao mesmo tem po
que grita por ele ao chegar à porta do quarto. Ao abri-la verifica que seu
pai está fazendo uma mala. — Vou viajar e você vai ficar só com sua mãe.
— A ideia de nunca mais ver seu pai pode ser catastrófica. O que faz o
menino com tal sentimento de medo? Como não há lugar onde possa
descarregá-lo, ninguém que possa ajudá-lo a compreender o que está
acontecendo, o medo fica sepultado. Mais tarde, para se ver livre da tensão
que o persegue e que é causada pelo medo sepultado, ele pode imaginar
situações de medo. Pode enfrentar touros ou tomar parte em corridas de
automóveis, atividades que tornam legítimas os receios latentes.
Finalmente, então, ele já encontrou alguma coisa em que fixar o medo.
Poderá reconhecer esse medo de tais situações que são apenas substitutas
da verdadeira, isto é, que nunca mais terá um pai.
Um paciente lembra-se que caiu num lago e quase afogou- se. Quando saiu
foi obrigado a voltar à água para conquistar o medo. Seu pai obrigou -o a
agir contrafobicamente.
A contrafobia é um traço geral de personalidade. O fato de se agir contra
uma espécie de sentimento muitas vezes significa comportar-se contra
diferentes espécies de sentimentos. A sociedade também nos ajuda a cair
na contrafobia. Todos os dias estão nos dizendo como conquistar o medo,
como dominar a frustração, como livrar-nos de inadequabilidades. Tudo
que precisamos fazer é eliminar nossos sentimentos.
Tais sentimentos, porém, constituem nossas vidas. Não se pode conquistar
a vida e viver. Chega o dia em que isso assume um sentido literal, pois eu
acredito que os contrafóbicos, aqueles que suprimiram neles mesmos os
sentimentos de vida tão profundamente, podem finalmente conseguir
safar-se de alguma forma.
A contrafobia é aquilo que mantém vivo o medo. Negar o medo significa
ter que lutar por ele simbolicamente a vida inteira. O fóbico pelo menos
reconhece que tem medo, e isso já é um passo acima na escada para a
saúde.
Medos Infantis

Uma grande porcentagem de medos infantis ocorre quando a criança está


só na cama à noite. As crianças podem ser valentes bastante para saltarem
de um trampolim, mas sentem medo do escuro. Uma parte da razão é que
a criança fica só. O medo é igual àquele que ocorre quando isolamos
pacientes em quartos de hotel antes de iniciarem o tratamento Prima l. É o
medo do próprio eu. As crianças geralmente disfarçam esse medo
projetando-o para fora e dizendo que o medo é de ladrões. Seu espírito
concentra-se em causas aparentes como o farfalhar de folhas, uma porta
que bate, uma sombra na parede. Cada uma dessas coisas ajuda a justificar
o medo latente.
Os pais devem ter o cuidado para não roubar dos filhos os seus medos.
Sempre é fácil dizer que não há razão para medo, e uma porção de outros
argumentos, mas isso só consegue sepultar o medo que tornará depois a
surgir de diferentes modos desde as camas molhadas até doenças físicas.
Se os pais não conseguem compreender a razão para o medo da criança, o
melhor é contemporizar de qualquer modo em lugar de suprimi-lo.
Muitos de nós já sofremos desses terrores noturnos quando éramos
crianças e a maioria não conseguiu livrar-se deles completamente. Nós
ainda temos medo do fantasma, mas em lugar de ter medo daquele que
está escondido no armário, nós temos medo de alguma vaga conspiração
de alguma nação ou grupo com más intenções contra nós. O conteúdo dos
medos aparentes muda mas ele não tem grande importância. Sempre
precisaremos do fantasma, de uma ou outra forma, até recuperarmos a
saúde.
Por que é que a solidão no escuro causa tanto medo? Há aquela sensação
incipiente do sono que se aproxima, e isso significa que nossas guardas
afrouxarão deixando passar todos os demônios que foram afastados
durante o dia. Não há nada intrinsecamente apavorante na solidão, mas o
neurótico que está fugindo ou defendendo-se de si mesmo sempre está
com medo. Precisa ligar o rádio ou a TV para não se sentir só. "Só" não tem
para o neurótico o mesmo significado que tem para as pessoas normais.
"Só" significa sentir a falta de apoio, proteção e amor de parte dos pais e é
contra isso que ele deve defender-se. As crianças sentem mais medo
quando os pais saem à noite, e é nessa ocasião que o pavor da morte pode
surgir para associar-se ao sono, porque a falta de proteção na tenra idade
pode significar morte.
Discussão
Uma vez que o significado de todas as fobias é simbólico, e portanto
idiossincrásico para cada pessoa, não existem significados universais para
as fobias. Duas pessoas com a mesma fobia podem ter razões
completamente diferentes para tal. Seria tempo perdido tentarmos
descobrir os significados de fobias. Deve-se concentrar toda a atenção
naquilo que é real, nos temores reais. Tornar os temores reais significa
tornar as fobias desnecessárias.
O que parece confirmar a hipótese Primal com respeito ao medo é a forma
como as fobias desaparecem, para nunca mais voltarem sob forma alguma,
logo que alguém sente o medo real. Eu quero insistir que nenhum
comportamento irracional pode ser solucionado quando se trata com o
irracional. A conduta irracional não pode ser combatida nem pela lógi ca
nem pelos fatos. As situações de fato não despertam comportamento
irracional nas pessoas normais. A base das fobias (os temores Primais) é
uma coisa real e somente o contexto de fato torna a fobia irracional.
Sempre é tentador acreditar que alguém pode ajudar a resolver um
problema de fato de uma ou outra forma. Para mim, acho que é tempo
perdido a ideia de aconselharmos os neuróticos apresentando-lhes
compêndios com fatos. A informação pode ser de valor, mas a grande força
por trás do comportamento irracional é a força Primal. Fatos esparsos,
apresentados aqui e ali, não conseguem deter a maré Primal. Precisamos
ter sempre em mente que não estamos tratando de temores ou raiva e sim
com pessoas que sentem medo. A essência da Terapia Primal é ajudar as
pessoa? para dominarem os grandes medos da primeira infância para que
possam sentir tudo que lhes seja possível isento de qualquer temor.
Kim
As sementes de minha neurose encontram-se na minha infância com a
família. O tema que surge constantemente durante esses anos é que meus
pais só cuidavam de me oferecer presentes materiais em lugar de me
oferecerem seu amor. Não me lembro de haver sido uma única vez levada
ao colo ou acariciada por eles quando era pequenina. E ainda assim nunca
achei que eles não me amassem.
Mas como posso saber que eles realmente não me amam nem nunca me
amaram? Faz muito pouco tempo que minha mãe contou-me, como se
aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, como foi o primeiro encontro
de meu pai comigo quando voltou da Segunda Guerra Mundial. Fez minha
mãe acordar-me, viu que eu era como todas as outras crianças, e saiu do
quarto. Dizem que quando me contaram isso eu chorei durante horas. Claro
que não me lembro do fato, mas sei que durante um ano depois daquela
noite, eu tinha uma espécie de ritual noturno em que engatinhava e batia
com a cabeça na cabeceira do berço. Acho que tinha medo de ser
abandonada. Com o barulho que fazia batendo com a cabeça eu queria
apenas lembrar minha existência a meus pais, que dormiam no quarto ao
lado.
Uma outra indicação dessa falta de amor era que meu pai fazia bem claro
que teria preferido um filho. Vivia chateando minha mãe porque não lhe
dava um menino. Usava sempre meu cabelo curto. Quando voltava da
escola enfiava-me em roupas de homem. Mais tarde acostumei-me a beber
cerveja quando ia assistir a partidas de futebol com meu pai. Já que ele
queria um menino, eu seria o que ele queria desde que com isso
conseguisse o seu amor.
Houve, finalmente, um incidente em que meu pai disse-me francamente
que nunca me amaria como eu era, e depois de uma discussão pelo telefone
quando eu estava na universidade, ele acabou dizendo que resolveríamos
o assunto quando eu viesse para casa no verão para então ver como deveria
ser a nova Kim que fosse aceitável para mim e para ele.
O amor que me dispensavam tomava a forma de restrições e rígida
disciplina que diziam ser "para o meu bem". Tinha que implorar tudo aquilo
que as outras crianças geralmente faziam. Quando acordava de manhã já
encontrava uma lista de dez obrigações para fazer antes de sair de casa, e
isso fazia de mim uma criança nervosa e irritadiça. Qualquer falta era
punida com pancada, quando era criança, e depois mais tarde, até antes
dos vinte anos, com proibição de sair de casa durante um mês. A
"administração de justiça" era sempre acompanhada de gritaria. Lembro-
me que depois dessas batalhas meu pai vinha ao meu quarto para
perguntar por que eu me sentia tão infeliz e era tão malcriada quando tinha
tudo quanto uma moça poderia desejar. Aquilo me deixava confusa.
O que poderia eu querer então? Não sabia a resposta. Nunca me ocorreu
pedir-lhe apenas o seu amor. Tinha medo que se pedisse iria enfrentar uma
recusa e teria então que esconder o meu sofrimento. Em lugar disso
escondi o meu desejo por trás de uma raiva violenta. Nunca respondi às
perguntas de meu pai.
A última coisa que quero mencionar sobre a vida em casa nos primeiros
tempos é que estavam sempre brigando e eu era sempre a razão para as
brigas. As discussões geralmente explodiam em alguma violência entre eu
e minha irmã e terminavam com meu pai me batendo. Lembro-me de uma
briga entre minha mãe e eu ao fim da qual ela falou com meu pai que uma
de nós duas teria que sair de casa. Concordei que seria eu. Revidava sempre
com violência e sarcasmo para assim esconder meu sofrimento.
O denominador comum em tudo que venho contando é sempre a falta de
amor, e isso eu recusava-me a reconhecer procurando sempre esconder
sob uma variedade de disfarces. Defendia-me desligando-me de todos os
sentimentos para que não sofresse pela falta de amor em toda a minha
vida. Esse desligamento não parecia ser uma decisão consciente e sim antes
um reflexo empregado pelo corpo para proteger minha integridade, como
fazia quando batia com a cabeça no berço. Toda minha vida girara em torno
daquilo pelo fato de não contar com o amor de meus pais. Desde então
nada se modificara e apenas havia mais sofisticação nos meus meios de
defesa para cobrir a necessidade que sentia.
Uma defesa, que fazia parte de mim desde a idade de quatro anos, era a
existência de condições crônicas. Quando eu tinha quatro anos, meu pai
ficou zangado comigo e atirou-me em cima de minha cama como se eu
fosse uma bola de futebol. Lembro-me bem do medo que tive quando me
vi voando no ar e caindo em cima da cama batendo de encontro à parede.
Logo depois disso surgiu uma erupção de pele com grandes tumores sem
qualquer razão aparente e que durou dois anos.
Acredito que essa infecção, e todas as outras que sofri, foram o resultado
do medo que sentia e que não queria demonstrar. Naquela ocasião em que
me atirou na cama, eu percebi que meu pai poderia ferir-me seriamente,
ou mesmo matar-me, desde que o quisesse. Era preciso que eu me
modificasse para lhe agradar e aplacar a sua raiva.
Lembro-me quando brincava com minha irmã e nós duas queríamos ser
homens para recebermos carinho e atenção. Podíamos fazer aquilo em
brinquedos mas não nos arriscávamos a pedir com medo da recusa.
Só quando eu ficava doente meus pais pareciam preocupar-se comigo de
forma positiva. Isso explica por que durante meu primeiro ano na
universidade longe de casa eu sempre estava doente. Creio que estava
tentando dizer a meus pais indiretamente que ainda precisava deles e
queria que cuidassem de mim.
A outra defesa minha foi tornar-me muito fria. Para mim o amor significava
restrições. Se demonstrasse amor por meus pais, ou por qualquer outra
pessoa, eu estaria vulnerável a seus ataques.
A rejeição de parte de meus pais, e especialmente de meu pai, afetou
drasticamente as minhas relações com os homens. Até a idade de dezesseis
anos eu competi com homens em nível intelectual e físico. Agia como rapaz
e tinha uma aparência masculina. Depois fiz dos homens o reservatório de
onde tentava extrair o amor que nunca recebera de meu pai. Começou a
funcionar o dualismo mente-corpo. Os homens que escolhia tinham que ser
atléticos e altos, e ao mesmo tempo num nível intelectual inferior ao meu.
Queria sempre controlá-los ao mesmo tempo que usufruía todo o amor
físico que sempre me fora negado. Não queria arriscar-me a ser rejeitada
como acontecera com meu pai. O resultado foi a promiscuidade. Naquela
época eu não podia compreender a razão que me fazia ir para a cama com
qualquer um que se parecesse com um perfeito atleta.
Essa promiscuidade terminou depois que fui rejeitada por um homem.
Fiquei desarvorada. Passei a encontrar mais satisfação na companhia de
mulheres bem alegres. Embora nunca me comportasse como lésbica,
muitas vezes sentia-me como se fosse mesmo. Nessa ocasião surgiu-me
uma infecção na vagina que impedia minhas atividades sexuais. Tentei ser
menino para conquistar o amor de meu pai e depois quis ser mulher para
fazer amor com todo mundo, e afinal acabei sendo neutra.
A minha principal defesa por não ser amada foi a escola, pois por meio dela
esperava conquistar o amor de meus pais. Meu desempenho na escola foi
o máximo, sempre com altas notas, cargos e honrarias. Esperava assim ter
a aprovação de meus pais já que as outras pessoas na escola me
aprovavam.
A intelectualidade servia-me para tentar conseguir o amor de meus pais ao
mesmo tempo que também servia para distanciar-me da Dor. Sempre que
tinha qualquer contrariedade pegava num livro e mergulhava nele.
Conseguia então sentir a minha dor chorando quando alguma coisa
acontecia com um dos personagens com quem já me havia identificado. Na
universidade estudei muito a história intelectual da Europa e
especialmente a da Alemanha, um país odiado por meus pais sem qualquer
razão aparente. Eu queria então descobrir o que havia de errado com a
Alemanha. Talvez aí descobrisse o que havia entre meus pais e eu. A
Alemanha, com confusão e anarquia por dentro, sempre buscava poder e
influência lá fora de suas fronteiras. Eu, que também estava confusa e não
conseguia sentir a Dor interna, sempre procurava mostrar minhas
qualidades a quem quisesse ver como era inteligente.
Quando entrei na faculdade já não tinha mais a ilusão que o meu
comportamento escolar pudesse influenciar meus pais, e, ainda por cima,
a escola entediava-me. Foi aí que senti a necessidade de uma outra defesa
contra a Dor que subia e fui encontrá-la nas drogas. Nos primeiros anos da
faculdade fumei a maconha e depois passei para as outras drogas.
Quando fui para a faculdade em New York já a maconha e o LSD não me
adiantavam e recorri à heroína para ver se conseguia alguma coisa que
melhorasse meus acessos de choro e solidão. Mas nem mesmo essas drogas
serviram e cheguei então ao colapso mental e físico.
Saí de New York completamente arrasada e comecei a Terapia Primal dois
meses depois, porque sentia que todas as minhas defesas estavam cedendo
e já não podia me controlar. Já sentia que meu cérebro não funcionava e
não conseguia compreender. A Terapia Primal ensinou-me que o meu
sentimento de falta de amor de meus pais nunca fora resolvido e que eu
tinha recorrido a substitutos de novas defesas para esconder a necessidade
que sentia e fugir de minha Dor em lugar de procurar senti-la.
O primeiro estágio da terapia consistiu em derrubar o que ainda restava de
meu sistema de defesa já bem abalado. A simples ausência de drogas e
cigarros aumentava a minha tensão a um tal ponto que todo meu corpo
tremia. Embora estivesse só, numa cidade onde não conhecia ninguém, foi
depois das três semanas de isolamento exigidas pela terapia que eu me
senti realmente só. Sempre pensara que era solitária por minha própria
escolha e que poderia deixar de sê-lo logo que quisesse. Agora, porém, eu
descobria que fora solitária durante toda a minha vida e que durante esse
período só desejara ser parte de alguma coisa (a família) ou, mais
especificamente, de alguém (meus pais). Percebi que quando estava só
antes eu sempre sentia alguém observando-me e penetrando em meus
pensamentos. Acredito agora que tudo aquilo era a esperança, que ainda
acalentava, que meus pais gostassem de mim. Agora sinto e sei que estou
inteiramente só.
Com a maior parte das defesas mais óbvias removidas, minha mente
começou a se encher com as lembranças do passado. Todas elas enchiam -
me de tristeza e comecei a reviver cenas do passado, deixando que elas
tomassem conta de mim já que tomava parte em todas.
A maioria de minhas Primais durante os primeiros meses da terapia giravam
em torno do frio que sentia. Logo que me deitava o corpo começava a
tremer, os dentes batiam e os pés e mãos ficavam azulados. Passei por
Primais que duravam duas horas durante as quais eu apenas tremia.
Primeiro pensei que aquele frio era todo exterior e só depois percebi que
era interior, que era a neurose. Tinha que livrar-me daquilo que conseguira
devido à falta de amor de meus pais para então poder reviver as
experiências dolorosas que estava encobrindo.
Logo que as tremuras tinham quase terminado eu encontrei-me
completamente sem defesas. Muitas vezes, quando via meus pais, eu
desandava a chorar ao menor sinal de reprovação da parte deles. Uma
noite eu fui assistir a A Gaivota de Chekhov e durante a cena em que o filho
pede à mãe para não abandoná-lo, eu senti uma coisa que me vinha do
estômago e como não queria ter uma Primal ali no teatro tentei reagir ma s
desmaiei e tive que ser carregada para fora.
Quando esses sentimentos profundamente arraigados são liberados não há
jeito de contê-los, e aliás, isso só poderá resultar em completa confusão.
No meu caso isso se manifesta com palavras incoerentes e uma e spécie de
afasia. Uma noite falei com cinco componentes do grupo de terapia e não
consegui compreender coisa alguma do que diziam. Compreendia as
palavras soltas mas que não faziam sentido para formar qualquer frase. Eu
mal podia falar e sentia-me como se não estivesse ali, e sim em algum outro
lugar. Quando tentei falar também não fazia sentido. A confusão resultante
da falta de comunicação desligou-me dos outros e era um simbolismo de
minha solidão. Logo que percebi aquilo caí numa Primal em que implorava
aos meus pais para não me deixarem só. A confusão passou.
Em outra ocasião, a confusão que surgiu com a supressão de uma sensação
causou-me uma grande desorientação. O meu namorado ficou zangado
comigo e, embora tivéssemos visitas, fez questão de manifestar-se.
Comecei a sentir que logo se seguiria uma rejeição e que voltaria a estar
só. Desliguei-me da sensação e tentei mostrar-me boa dona-de-casa. Foi aí
que voltei-me e esbarrei em cheio contra a parede e fiz um "galo" na testa.
Logo que consegui acalmar-me com a rejeição de meu namorado e passei
a sentir a Dor maior da rejeição de meu pai, recuperei a coerência de
palavra e direção. Ao acontecer o rompimento, ele foi relativamente
indolor já que estava apenas sendo rejeitada por um namorado e não por
meu pai.
A minha grande demonstração veio cinco meses depois de começar a
terapia. Estava sentada numa sessão de grupo quando meus olhos se
turvaram e senti que ia desmaiar. Era uma coisa que sentia muitas vezes
antes de uma Primal intensa.
Logo estava deitada no sofá gritando como nunca fizera antes. Gritava
pedindo a mamãe e papai que me levassem para casa. Implorava-lhes que
me levassem sempre com gritos cada vez mais altos. Durante esse tempo
não me dava conta do corpo.
Todo o meu ser estava concentrado na voz que gritava e eu voltei a minha
dor. Estava dizendo aquilo que sempre desejara dizer desde que me
entendia. Nunca tivera coragem de dizer tal coisa com medo que meus pais
me rejeitassem ostensivamente. Como já não tinha defesas, as palavras
jorraram-me da boca. Pela primeira vez em minha vida eu estava
completamente descontrolada e indefesa. Foi essa a encruzilhada
definitiva na minha terapia.
Durante os próximos três meses eu pedia aos meus pais, nas minhas
sessões Primais, que não me fizessem sofrer. Já lhes havia confessado meu
amor e estava portanto completamente vulnerável à minha Dor. Em uma
das sessões eu gritei com toda a força pedindo a meu pai que não me
fizesse sofrer mais. Aquilo devia ter parecido como se alguém estivesse
tentando matar-me, e era mesmo o que eu pensava. A Dor me vinha em
imensas vagas diversas vezes por dia e frequentemente eu tinha que sair
quase chorando. Todas as noites sonhava que meus pais me rejeitavam e
até mesmo me odiavam e despertava com um soluço na garganta. Achava
difícil sair da cama e quase impossível funcionar como professora durante
a semana. Parecia-me que aquela Dor duraria para sempre.
Agora já fazem nove meses que comecei com a terapia. Já sou uma nova
pessoa, ou antes, já sou eu mesma. Os meus sintomas psicossomáticos
estão começando a desaparecer. Já não sinto mais a tensão que pensara
ter de suportar durante toda a minha vida.
Embora tivesse atravessado um período de promiscuidade sexual eu era
frígida antes, durante e depois dessa época. Não conseguia sentir coisa
alguma, nem mesmo o prazer sexual. Verifico agora que quando tento
conter a manifestação de um sentimento, fico absolutamente frígida, mas
logo que sinto alguma coisa de mim mesmo, já não estou mais nessa
condição.
Não preciso mais de drogas para me esconder do fato de minha solidão
absoluta. Aprendi que preciso sentir a minha Dor para poder livrar -me dela
definitivamente em lugar de mantê-la afogada em drogas. Já não preciso
mais de drogas. Já sinto e percebo que meus pais nunca me amaram nem
jamais me amarão como sou. Escolhi ser eu mesma em lugar de tentar,
consciente e inconscientemente, descobrir o que eles desejam em troca de
seu amor. Sou livre.
Suicídio
O recurso ao suicídio, na minha opinião, é quando falharam todas as
tentativas da pessoa para matar a sua Dor. Quando a neurose não consegue
aliviar a Dor, a pessoa pode ser forçada a medidas mais drásticas. Pode
parecer paradoxal, mas o suicídio é o último refúgio da esperança para o
neurótico decidido a ser irreal até o fim.
Uma moça de vinte e nove anos que se submeteu à Terapia Primal tentou
o suicídio alguns meses antes de começar o tratamento. Tinha sido
abandonada pelo amante. Ela implorou, pediu e finalmente ameaçou-o,
mas foi tudo em vão. Foi para casa e preparou tudo metodicamente.
Separou noventa pílulas em lotes de seis que começou a engolir
inteiramente desligada. Mas a certa altura, quando começou a sentir a
respiração difícil, ela entrou em pânico, chamou uma amiga e pediu-lhe que
viesse com o médico.
Quando foi abandonada pelo amante sentiu-se desprezada e sem amor.
Logo que ele saiu ela começou a reviver todo o vazio que sentira quando
era criança, quando fora também rejeitada pelos pais. Tentou matar -se
quando sentiu o impacto de tudo aquilo.
O desligamento muitas vezes constatado em tentativas de suicídios vem
reforçar a hipótese Primal que o suicídio é um ato dividido no qual o
objetivo raramente é a completa destruição do indivíduo. É uma tentativa
para conservar o eu com a obliteração da Dor que a neurose não pode mais
esconder. Essa mulher nunca pensou em morrer, e a prova foi que tão cedo
sentiu-se mal e com a morte iminente, logo pediu socorro. Evidentemente,
os neuróticos procuram matar- se simbolicamente como, aliás, fazem com
tudo mais. Alguns podem estar dispostos a ir até o fim para manter intacta
a neurose. Houve uma paciente que disse, "o suicídio não é assim tão
irracional se considerarmos que todas as neuroses são a luta para
conservar o indesejado."
A neurose é o suicídio. Se alguém já deu parte ou o todo de sua vida aos
pais para ser amado, já não é tão importante assim matar-se de forma mais
literal. Quando a neurose falha surge a alternativa do suicídio.
Muitos neuróticos parecem preferir o suicídio em lugar de continuarem a
viver a vida que levam. Eu não acredito que o suicídio signifique uma ânsia
de morrer apenas e sim talvez também o sentimento de não saber o que
fazer para aliviar a Dor. A pessoa já cansou de lutar. Ou precisa de uma
nova luta que lhe traga um alívio provisório, ou então precisa liquidar a luta
definitivamente na Terapia Primal.
É preciso lembrar que a neurose tanto salva como mata. Ela protege o eu
real evitando sua desintegração, mas ao fazer isso ela também sepulta esse
mesmo eu. A criança então cresce agarrada a um eu irreal que,
paradoxalmente, está a estrangulá-la.
Talvez fique mais claro se imaginarmos isso como uma progressão. A
criancinha em primeiro lugar tenta ser amada pelo que ela é. Quando isso
falha ela vai procurar o amor mostrando-se diferente do que é, mas quando
até isso falha só lhe sobram duas escolhas. No princípio da vida pode ser a
psicose, mas no fim da vida pode ser o suicídio.
Suicídio é esperança. É uma representação tal que chega a matar o
sentimento de um desespero crescente. É muitas vezes uma tentativa
desesperada para evitar o sentimento catastrófico de que não há no mundo
uma só pessoa querida. Vão até o suicídio numa tentativa desesperada para
que haja alguém que sinta.
Algumas vezes a tentativa traz os resultados desejados quando as pesso as
começam a procurar, quando a família vem ajudar, quando todos parecem
sentir por não haverem percebido as condições de desespero. Mas quando
os amigos param com as visitas, quando a família retira-se, o quase suicida
fica outra vez só com o eu que prefere destruir em lugar de sentir.
Em geral, a tentativa de suicídio é um ato de alguém que viveu fora de si e
por intermédio de outros, já que não lhe permitiram viver dentro de suas
necessidades e sentimentos. O centro da existência de indivíduos com
mania de suicídio situa-se muitas vezes fora deles mesmos.
Um rapaz que estava na Terapia Primal contou que a mãe com quem
morava estava numa agitação crescente. Quanto mais ele melhorava mais
deprimida ficava ela. A maior parte da vida dele tinha-se passado cuidando
de sua mãe que estava sempre sofrendo de alguma coisa. Quando ele
começou a ficar independente ela ficou desesperada. Ele tencionava sair
de casa para morar só. Nesse ponto sua mãe tentou suborná-lo com um
novo carro e depois ficou doente. Quando tudo falhou ela encenou uma
fraca tentativa de suicídio com sedativos tendo porém o cuidado de chamar
o médico bem a tempo.
A mãe do rapaz não podia conceber ser obrigada a cuidar dela mesmo. Já
havia muitos anos que estava separada do marido que havia substituído
pelo filho. Desde os primeiros anos do casamento ela havia manipulado
todo mundo para ficar sendo a criança dependente, precisamente o que
sua mãe fizera com ela. Com a idade de cinquenta anos ela ainda estava
tentando ser o bebezinho que nunca conseguira ser antes. Era o bebê que
existia dentro dela que evidentemente achava ser impossível a vida sem ter
alguém para se apoiar.
Claro que há muitos suicídios completos e nesses casos a pessoa poderá ter
sofrido de algum sério distúrbio mental e já não consegue distinguir entre
o que é real ou não. Mesmo aí, no recôndito de sua mentalidade doente,
ela pode agasalhar a esperança de que sua morte sirva para alguma coisa.
Quando examinamos detidamente o ódio por si mesmo e as resultantes
tentativas de autodestruição, chegamos a descobrir que o
verdadeiramente odiado é o eu irreal. O ponto do suicídio parece chegar
quando nem o eu real ou o irreal podem ser amados. O que deve ser feito
com quem quer suicidar-se, na minha opinião, é ajudá-lo a sentir em toda
a sua intensidade o eu que ele está querendo destruir. Logo que sinta que
o eu desprezado não é realmente uma ameaça à sua existência, já não terá
mais vontade de destruí-lo.
O que geralmente se dá aos que pensam em suicídio é uma ajuda para
esconder os verdadeiros sentimentos que lhe são mais chegados. Talvez
cheguem a alguma clínica onde os esforços são dirigidos no sentido de
remendar as coisas para que os pacientes continuem funcionando. Muitas
vezes chegam a receitar drogas para aliviar o paciente e assim afastá-lo
cada vez mais de tudo o que sente. E no entanto, são exatamente tais
sentimentos que precisam ser sentidos para liquidar o eu irreal que age
irracionalmente. Posso afirmar que o perigo vem do eu irreal que é quem
toma mais vulto com a aproximação da crise. Acredito que enquanto a
pessoa tiver um terapeuta com quem se agarrar, o perigo do suicídio será
sempre menor, mas quais são as razões existentes que nos levam a crer
que ela desistirá da maneira de suicídio depois que já não tiver mais o
terapeuta?
As clínicas que se especializam em crises tentam solucionar a situação
quando o paciente já não pode levar a vida como está acostumado, mas
não é justamente isso que precisa ser eliminado em lugar de reforçado? O
reforço de um sistema de defesa leva à desumanização porque separa a
pessoa de seus sentimentos mais profundos. É claro que temos
considerações de ordem prática já que podemos raciocinar que não há
tempo para se fazer o que, de outra forma, pode ser feito rapidamente com
a aproximação de uma crise. E se for o caso da pessoa não querer uma
mudança radical? Eu acredito que todo mundo tem direito a ser irreal, mas
pelo menos a pessoa deveria ser informada que há uma alternativa em
lugar de repetidas tentativas de suicídio.
Devemos também levar em consideração os efeitos societais de se permitir
que um suicida em potencial ande solto pelas ruas, por trás do volante de
algum carro e talvez querendo levar alguém com ele.
Nessa conjuntura, vale a pena notar que os pacientes Primais não pensam
em suicídio. Acabam sabendo o valor que têm e não gostam de arriscar a
vida e aprendem que o eu real é bom e portanto não há razão para desejar
destruí-lo.
Parece paradoxal afirmar que o objetivo de quem se mata é o desejo de
viver, mas as minhas experiências com pessoas que tentaram suicidar-se
tornam impossível chegar-se a uma outra conclusão. Há exceções, como os
portadores de moléstias incuráveis, mas, em regra geral, a tentativa para a
morte é uma súplica neurótica de quem quer ser amado. E nesse sen tido,
essa tentativa não é senão um anseio de vida.
19 - DROGAS E VÍCIO

Dietilamida do Ácido Lisérgico (LSD-25)

Para muitos jovens, o LSD, também conhecido como o ácido, é uma maneira
de viver. Os efeitos do LSD parecem tão profundos, mas tão místicos, q ue
já degenerou num culto, um Weltanschauung. Os consumidores crônicos
geralmente o chamam de "uma longa viagem no espaço interior", ao passo
que outros dizem ser a viagem para a realidade.
Eu acredito que o LSD seja uma viagem à realidade no sentido que ele
estimula intensos sentimentos reais, mas o neurótico faz com essa
realidade o mesmo que faz com a realidade em geral, isto é, transforma -a
em alguma coisa simbólica.
Não há dúvida que o LSD estimula os sentimentos e sensações, já que
temos provas clínicas disso. Recentemente o LSD foi administrado a um
grupo de macacos que foram depois sacrificados e autopsiados. A maior
concentração da droga foi encontrada nas áreas do cérebro conhecidas
como relacionadas ao sentimento e sensações
O problema com o uso do LSD é que ele abre artificialmente os indivíduos
para mais realidade do que eles podem tolerar dentro de seus sistemas
neuróticos, e o resultado é um pesadelo em pleno dia, é a psicose. A razão
para a defesa é manter a integridade do organismo. O LSD desarticula a
defesa e o resultado trágico é que os consumidores da droga estão lotando
as enfermarias da neuropsiquiatria em todo o país. Geralmente, é possível
reconquistar o sistema neurótico depois que passa o efeito da droga,
exceto em alguns casos em que os sistemas de defesa originais já eram
fracos.
A resistência do sistema de defesa junto com a dose ingerida são os fatores
que determinam como a pessoa vai reagir sob a ação do LSD. Pode
acontecer, e já tem acontecido, que uma pessoa com um sistema de defesa
reforçado não reage de forma alguma à droga.
Uma das razões para o LSD ser considerado como psicodélico é a fuga
simbólica. O estímulo das sensações produz uma explosão de ideias
simbólicas que são muitas vezes confundidas como expansão da mente . O
que precisamos compreender é que essa expansão é uma defesa. O
maníaco psicótico com ideias extravagantes é um perfeito exemplo de
expansão da mente fugindo das sensações.
Os pacientes maníacos atendidos por mim, muitas vezes espíritos
brilhantes, chegavam a escrever quase um livro em três ou quatro semanas.
O que distingue a psicose da neurose é o grau e a complexidade da
simbolização. Na neurose ainda há muito contato com a realidade ao passo
que na psicose isso já talvez não exista mais e a pessoa pode estar envolvida
pelo simbolismo, já não podendo mais diferenciar entre símbolos e
realidade. Com a continuação do processo de deterioração, a pessoa pode
chegar a não saber mais quem é, onde está ou em que ano vive.
Os resultados do uso do LSD parecem confirmar uma das principais
hipóteses Primais, ou seja, que a neurose começa a manter-nos afastados
da realidade de nossos sentimentos e que esses mesmos sentimentos,
quando experimentados nos primeiros anos devida, podem levar à loucura.
O estímulo de todas as sensações Primais de maneira repentina e artificial
com o uso de uma droga pode levar às mesmas possibilidades de loucura.
Nos primeiros tempos da pesquisa do LSD, a droga era conhecida como um
agente psicotomimético (imitador de psicose). Era usado para o estudo da
psicose. No princípio não houve muita preocupação porque acreditava -se
que a droga produzia a psicose que, no entanto, desaparecia, quando ela
não era mais administrada, mas o entusiasmo logo cessou quando
apareceram casos em que isso não aconteceu. O resultado foi que o LSD foi
condenado para a maior parte dos fins de pesquisa, já para não falar do seu
uso generalizado.
Eu acredito que o LSD não somente imita a psicose como também produz
uma loucura real, embora muitas vezes passageira. Além disso, eu não
acredito que as propriedades intrínsecas da droga tenham alguma coisa a
ver com as reações bizarras, a não ser até onde estimulam sensações em
demasia.
Alguns meses atrás, uma moça de vinte e um anos que fora diagnosticada
em um hospital neuropsiquiátrico como "pós-LSD esquizofrênica" veio a
nós para tratamento Primal. Havia ingerido grandes doses do ácido depois
de alguns cigarros de maconha e durante o efeito do ácido entrou em
estado de pânico. Quando acabou o efeito da droga ela começou a sentir
coisas estranhas. Sentia-se levantada da cadeira e levada para fora e outras
vezes fitava desesperadamente uma lâmpada acesa sem saber o que estava
vendo realmente.
Foi enviada ao hospital neuropsiquiátrico para observação, ingeriu
tranquilizantes e dentro de uma semana estava de volta em casa.
Continuava na mesma dentro da irrealidade e depois de algumas semanas
comecei a tratá-la. Caiu logo em transe Primal onde começou a reviver a
experiência com o LSD por sua própria iniciativa. Começou a dizer "tudo me
cheira a merda. Há merda nas paredes. Meu Deus, está em toda a parte. Eu
nem posso limpar-me." (Aí tentou limpar- se mas eu lhe disse o que era)
Oh! Oh! Vou ficar maluca. Quem sou eu? Quem sou eu? (Eu a obriguei a
ficar com a sensação) Ah! Já sei. Sou eu, eu sou merda, sou merda!" Nesse
ponto começou a chorar e deixou sair uma série de insights mostrando que
era assim mesmo que sempre se sentira, sem se dar conta. Falou sobre sua
família muito pobre que consistia num pai beberrão e numa mãe espancada
e infeliz. Discutiu como sentia-se insignificante. Nunca aspirara ou tentara
ser alguém porque sentia-se como se fosse "um bocado de merda que não
valia nada." Havia acobertado seus sentimentos e origem sob um verniz de
cultura e intelectualismo falsos que o ácido certamente destruíra. Para
poder sobreviver ela havia transformado a realidade em irrealidade.
Um outro caso de psicose nada tinha a ver com a droga. Essa paciente fora
para um colégio interno com a idade de sete anos devido ao divórc io dos
pais. Prometeram-lhe que a mãe iria visitá-la com frequência, mas isso não
aconteceu. Suas visitas eram poucas, vinha embriagada e em companhia de
homens e depois nunca mais veio. Escreveu algumas cartas explicando por
que não podia ir e depois também parou de escrever. A criança começou a
sentir a realidade de seu abandono. Começou a evitar contatos sociais e
para amenizar a sensação de abandono ela inventou um companheiro
imaginário que estava sempre ao seu lado. Com o correr do tempo o seu
companheiro começou a conversar com ela contando- lhe coisas estranhas,
dizendo-lhe que algumas pessoas eram contra ela e queriam isolá-la
completamente. Aos poucos ela foi mergulhando numa psicose para
afugentar a realidade ameaçadora.
Nos dois casos, eu acredito que foi a realidade que produziu a irrealidade.
As duas pessoas estavam loucas porque não queriam ver a verdade desde
que não fossem mais loucas.
Na Cena Primal, defrontando-se com essa verdade, surgiu um sistema
alternado que veio ajudar a esconder a realidade. Sua função era
fragmentar e depois simbolizar a verdade permitindo que a criança
neurótica desse vazão aos seus sentimentos sem perceber o que estava
fazendo. Ela começou a fingir. Mas quando a realidade é esmagadora, tanto
devido a algum acontecimento ou a uma droga como o LSD que não permite
fingimento, a psicose está à espreita. Com o LSD não há muita possibilidade
de fingir, já que as sensações são fortes e imediatas, pois a pessoa não pode
fingir que está muito ocupada com outra coisa qualquer. Precisa haver o
simbolismo mental ou físico como acontece com sonhos e ideias bizarras
ou a incapacidade de levantar um braço e completa paralisação de
coordenação física. No caso de estranhas mudanças no corpo podemos
dizer que a pessoa tornou física a sua psicose. Isso significaria o mesmo
split ou divisão como existe na psicose.
Esse split foi discutido por uma antiga paciente psicótica. "Era terrível
sentir que o corpo estava-se tornando meu, verme como menininha
procurando compreender os movimentos de suas pernas e pés. Meu corpo
sempre funcionaria independente como se não fosse meu. Será que a razão
para o esquizofrênico tanto se preocupar com o seu corpo é devido ao fato
dele ser uma coisa tão estranha? Eu acho que chega a hora em que o corpo
deve separar-se do apercebimento para poder ficar bem longe da Dor. Eu
acredito que a distorção secreta do significado daquilo que acontece em
torno de nós é esse processo automático de tornar tão separados o corpo
e as sensações".
Um outro exemplo da materialização da sensação foi oferecido por um
paciente que, num período de um ano antes da terapia, havia tomado o
LSD dez vezes. Entre outras reações ele sempre sentia uma espécie de
zumbido persistente na boca durante todo o tempo da viagem. Durante a
Primal teve a mesma sensação e inexplicavelmente começou a chupar o
dedo polegar. O zumbido continuou, no entanto, até que ele chegou à
conclusão que não era o polegar que ele queria chupar e sim o seio de sua
mãe. Logo que esclareceu isso o zumbido cessou.
Esse homem tinha sido desmamado prematuramente conforme alguma
tabela que sua mãe seguira de algum livro sobre pediatria. Embora fumasse
dois maços por dia e chupasse furiosamente seus cigarros, ele custou a
acreditar que ainda sentisse aquela necessidade do seio materno, mas
lembrou-se que tinha sempre alguma coisa na boca até onde sua memória
alcançava. Ele tinha escondido seus sentimentos tão bem que o único
momento em que mais aproximou-se da realidade foi quando tomou uma
droga poderosa. Mas fica demonstrado que a simbolização se instala para
proteger o organismo quando as sensações são por demais penosas.
Cerca de vinte pacientes nossos tomaram LSD antes da terapia, sendo que
alguns em doses repetidas. Quando começamos com a Terapia Primal
tivemos alguns pacientes que tomaram o LSD durante o tratamento sem
que eu soubesse disso. Eles me contaram mais tarde que acreditavam na
eficácia da droga para apressar o tratamento. Como já dissemos antes, não
somente são proibidos todos os remédios, e até mesmo a aspirina, durante
a Terapia Primal, como também os pacientes já recebem agora instruções
escritas para que não se repita o uso do LSD. Mesmo assim, a experiência
com o LSD em uns sete pacientes nossos durante a terapia teve bastante
valor para a compreensão das reações psicológicas ao ácido. Os pacientes
Primais que ainda tinham dores antigas foram bombardeados diretamente
pelo que lhes restava de sensações ou sentimentos e conseguiram ligá -los
logo às suas origens, sem que houvesse simbolismo. Em alguns casos as
dores continuaram num estilo de livre associação durante duas ou três
horas.
Dois pacientes que tomaram o LSD depois de três ou quatro meses de
terapia, tiveram reações momentâneas e simbólicas. No primeiro caso o
paciente teve alucinações em que via pessoas nas paredes em práticas
estranhas. Ficou intrigado com o que via até que descobriu. "Estava
fazendo uma exibição para mim mesmo cá fora para não sentir o que se
passava por dentro. O drama realmente continha muitos sentimentos
meus, especialmente a raiva. Acho que estava tentando convencer-me que
tudo aquilo nada tinha a ver comigo. Tão cedo percebi que aqueles eram
os meus sentimentos eu me entreguei a eles e tudo desapareceu da
parede." Antes de uma Terapia Primal, no entanto, o mais certo seria q ue
ele continuaria com suas alucinações até passar o efeito da droga.
O segundo paciente tomou o LSD no quarto mês de terapia e começou a
imaginar que as pessoas estavam todas contra ele e só queriam vê-lo
sofrendo. Suas mãos começaram a inchar e então veio o sentimento em
que pedia ao pai que fosse carinhoso com ele. As mãos voltaram ao normal
e já não imaginava mais que as outras pessoas estivessem contra ele. Se
ainda tivesse muita dor bloqueando-lhe o caminho, dificilmente
estabeleceria aquela simples ligação.
A maior parte dos pacientes que tomaram o LSD depois de alguns meses de
terapia já tinham experimentado antes, e sempre contavam as viagens
simbólicas. Uma pessoa sentiu as mãos paralisadas durante uma viagem
anterior enquanto uma outra se debatia no chão com terríveis dores de
estômago. Uma terceira viu vermes saindo-lhe da boca e do nariz e houve
ainda alguém que viu o seu esqueleto num espelho. Mais tarde, quando
recordaram aquelas experiências, todos eles surpreenderam-se como o
corpo automaticamente parecia simbolizar a dor. O símbolo em todos os
casos referia-se a uma específica sensação reprimida. Eu desconfio então
que as dores não cessam até que sejam sentidas pelo que realmente são.
Os pacientes que já estavam em conclusão de terapia não sentiam muita
coisa com a droga. Não tiveram alucinações nem sensações de
despersonalização. As suas viagens nada tinham de místicas ou belas, já
que eram apenas os sentimentos reais que vinham à superfície. Isso é uma
conclusão importante pois contribui para provar a hipótese Primal
referente à doença mental e à Dor Primal. Na ausência de significativa Dor
Primal, não existe doença mental sob intenso estímulo.
Minhas observações mostram que o LSD talvez não seja alucinógeno para
uma pessoa normal, nem é tampouco psicotomimético para os portadores
de Dor Primal.
O LSD não permite o estabelecimento de ligações sólidas, e somente essas
ligações permitem mudanças duradouras. São muitas as razões pelas quais
as ligações não podem ser estabelecidas sob a influência do LSD e a mais
importante é a que significa o sofrimento da Dor Primal. Sob o LSD as
pessoas podem sentir alguma coisa que minutos depois já nem se lembram
mais. A droga leva-os de uma sensação a outra sem que nenhuma delas
fique fortemente estabelecida no consciente. A plena consciência é
indispensável para um pleno sentimento pois do contrário é uma massa de
sensações que podem ser confundidas com sentimentos. Um paciente
explicou que "as Primais são mais seguras do que o LSD. Quando alguém
sente alguma coisa durante a Primal, isso pode durar uma hora e pode-se
então estabelecer a ligação com algum acontecimento da vida. Com o LSD
eu fui continuadamente empurrado, sem conseguir concentrar-me em
coisa alguma. A droga produzia tantos impulsos ao mesmo tempo que um
sentimento levava a outro numa cadeia sem fim que quase me deixou
maluco." Um outro que também tomara o LSD disse, "embora soubesse que
sentira alguma coisa com o LSD, eu sempre queria que me confirmassem o
que havia dito." Em resumo, ele não tinha a certeza do que era real, embora
fosse real o que dizia e sentia. A droga amortece o pleno impacto da
realidade.
Nenhuma das pessoas que tomaram o LSD antes da Terapia Primal
chegaram a afirmar terem conseguido chegar aos sentimentos básicos
Primais com a droga. Nunca, por exemplo, uma só delas sentiu a solidão
que surge na Primal, uma solidão misturada com lembranças de haver sido
abandonado só no berço. Com o LSD acontecia tanta coisa que não dava
para voltar as lembranças primitivas, e até mesmo com a droga, as
primeiras dores realmente traumáticas sempre serão simbolizadas.
O que o LSD não faz, em resumo, é permitir que aconteça o específico
processo de decifração em que certos sentimentos estão ligados a
lembranças especiais que são resolvidas. O homem que tinha zumbido na
boca fez dez viagens de LSD sem descobrir o seu significado, ao passo que
uma única sessão Primal foi o suficiente para estabelecer a ligação certa.
Isso não significa que o LSD não produza muitas insights que nunca seriam
alcançados dentro de condições normais, embora eles ainda sejam
fragmentados e tenham lugar dentro de um sistema neurótico.
Será preciso esclarecer melhor a afirmativa que o LSD não causa
necessariamente a psicose em pessoas normais. Eu acredito que se dermos
a alguém bastante LSD, isso poderá produzir uma tal pletora de impulsos
no cérebro que cause uma completa desorientação e passageira psicose,
mas o caso é que esse estado não duraria mais do que o efeito da droga
sobre uma pessoa normal, ao passo que pode ser de efeito permanente
para o neurótico. Nunca é demais insistir no perigo que representa para o
neurótico. Até mesmo uma única dose que não produza uma psicose, pode
abalar tanto o sistema de defesa que torne a pessoa susceptível a situações
futuras que, de outra forma, nunca chegariam a afetá-la.
Há viagens de LSD verdadeiramente aterrorizantes ou depressivas. A
pessoa pode ficar apavorada com monstros ou pode ver aranhas passeando
pelo seu corpo, e terá depois que recorrer aos tranquilizantes que também
são muito usados nos hospitais psiquiátricos para alucinações. Eu acho que
nesses casos o que está sendo tranquilizada é a Dor Primal que com isso
reduz a necessidade dos simbolismos. Se todas as outras condições forem
iguais, essa viagem chega perigosamente perto da Dor.
É possível que a primeira viagem do LSD não seja das piores em vista das
defesas existentes, mas quando as viagens se sucedem num assalto ao
sistema de defesas e surgem os problemas, elas podem tornar-se penosas.
Não é de surpreender que depois de uma viagem ruim a pessoa não se
atreva a tomar a droga outra vez, embora isso indique que ela está muito
perto de tornar-se real. Ela desiste antes que isso aconteça talvez por sentir
que o real e o irreal estão juntos e quanto mais perto se chega, para mais
longe se deve fugir. Os pacientes da Terapia Primal, quando chegam bem
no fim de seu tratamento, muitas vezes pensam que vão ficar loucos
quando estão em vésperas de se despojar dos últimos resquícios de defesa
contra o sentimento total de solidão e desespero que sempre existiu neles.
Talvez não seja simples acidente o fato de termos conseguido bons
resultados com pessoas que usaram o LSD algumas vezes antes da terapia.
Desconfio muito dos que só fazem viagens lindas já que isso signifi ca que o
split é tão profundo que nem mesmo uma droga poderosa conseguiu afetá-
lo. A pessoa que não se encontra muito perto de seus sentimentos é levada
ao ácido ou à maconha repetidamente, inconscientemente impelidas pela
esperança implícita que eles lhe oferecem. Todas as vezes, no entanto, ela
estará fazendo viagens neuróticas as mais variadas. A substância da viagem
simbólica não tem grande importância a não ser no que pode referir -se
indiretamente à Dor subjacente. O que precisamos lembrar sempre é que
a viagem boa para o neurótico deve ser irreal já que o estímulo dos
sentimentos num neurótico com o uso de drogas significa estimular a Dor.
A pessoa que faz a viagem boa ou mística não está fazendo mais do que o
neurótico ebuliente faz sem precisar de drogas quando pinta na mente
bonitos quadros para esconderem o que se passa em seu corpo e nos
recessos de sua mente.
Heroína

O LSD é uma das poucas drogas que estimulam os sentidos enquanto outras
servem para amortecê-los como acontece com a heroína. Ela entra em ação
quando a neurose não consegue suprimir a Dor. A neurose é o narcótico
interno de quem não é viciado.
O viciado em heroína geralmente já não conta mais com defesas internas
para deter sua tensão, e então precisa recorrer à agulha. Com a minha
experiência eu classifico os viciados em heroína em duas categorias. O
número predominante deles são sem vida, letárgicos e completamente
aniquilados pela tensão. Precisam amortecer todo o corpo para dominar a
Dor. A outra categoria são os maníacos e hiperativos que estão sempre
correndo. As duas espécies descobriram caminhos diferentes para cuidar
de seu enorme sofrimento e ambas são obrigadas a recorrer às drogas
quando suas defesas já não conseguem aliviar a tensão. Alguns sentem -se
aliviados só com a maconha, mas ela é muito fraca para a Dor do viciado
em heroína. Outros que ainda contam com algumas defesas podem se dar
bem com a maconha.
De qualquer forma, não é a maconha que leva ao uso da heroína e sim a
Dor.
A Dor em si não justifica o uso de drogas. O ambiente cultural é
positivamente um fator. Se uma pessoa perturbada for criada no Harlem,
junto com o jazz onde a droga é coisa corriqueira, ela pode facilmente
chegar até à heroína, ao passo que um outro criado numa fazenda de
Montana poderia entregar-se ao álcool e tumultos em bares quando
quisesse ver-se livre de tensões. A dinâmica interna das duas pessoas pode
ser a mesma, e só o que varia é a válvula de escape.
O nível de alta tensão do viciado em drogas conserva-o sempre em
movimento. Não consegue fixar-se numa coisa durante o tempo necessário
para o sucesso, e a longa história de seus fracassos vai aumentando seus
problemas. Uma das razões para o fracasso da terapia comum com os
viciados pode ser devido ao fato deles não se submeterem ao lento e
tedioso processo do insight.
Como sabemos, os viciados, de um modo geral, não se interessam muito
pelo sexo, e não é difícil descobrir a razão. Os que sentem dor, seja ela
psicológica ou física, não podem interessar-se por mulheres, e as drogas
ainda aumentam essa condição assexuada. Sentir a Dor é o mesmo que
sentir tudo mais e matar a dor é o mesmo que matar todos os outros
sentimentos, sendo que o sexo é uma das primeiras vítimas.
A relação entre o vício e o homossexualismo latente pode ser constata da
com qualquer visita a um hospital de narcóticos, especialmente no caso de
mulheres viciadas. Muitas delas são homossexuais ou com tendências para
isso ainda reprimidas. Uma viciada explicou a situação nas seguintes
palavras: "Eu, realmente, nunca desejei homens, mas sempre mantive
relações sexuais com eles para não me sentir diminuída. Sei agora que
sempre quis uma mãe. Quanto mais trepava com homens mais revoltada
ficava. Tinha que recorrer às drogas."
A necessidade de relações sexuais com homens que ela sentia era a forma
que encontrara para reprimir seus sentimentos, a necessidade de sua mãe.
Enquanto reprimia suas necessidades era forçada a recorrer às drogas.
Quando conseguia encontrar válvulas de escape que servissem como
substitutos, já não precisava tanto de drogas. Quando foi para a prisão
onde não havia drogas para satisfazê-la, ela sucumbiu ao homossexualismo
ostensivo. Logo que sentiu a necessidade de sua mãe numa sessão Primal
ela já não precisou mais de drogas ou de sexo com outras mulheres.
Aquelas que precisam de anfetaminas, de narcóticos ou barbitúricos
também refletem apenas uma diferença na direção da tensão. Os de tensão
muito profunda parecem precisar de alguma coisa para rompê-la e aqueles
em quem a tensão é ascendente precisam de alguma coisa para reprimi-la.
Há ocasiões em que a mesma pessoa pode usar as duas em ciclos
alternados.
O seguinte é uma citação da carta que recebi de um viciado antes de
começar o tratamento.
Sempre que leio a expressão "mata a dor" aplicada à heroína, eu me lembro
das inúmeras vezes que as pessoas me diziam que a heroína era uma
viagem para a morte... era o suicídio lento. No entanto, foi só
recentemente que eu senti o aspecto da morte na droga que serve para
matar a dor. Olhava os viciados inteiramente alheios à vida, num perpétuo
estado de embrutecimento, verdadeiros mortos-vivos, e sempre sentia
que, para mim, a droga era apenas uma forma perigosa para a prática da
medicina sem licença. Tudo que queria era aparar bem as rebarbas de uma
existência cheia de ansiedade... um atalho para o perfeito estado de
conforto livre de dor. Era o jeito que eu tinha para tomar o cheiro e
funcionar com concentração fazendo as coisas que tinham que ser feitas.
Tudo que jamais desejara fora atravessar a vida sem sofrer todas aquelas
dores por que passam os homens desde muito antes de eu nascer. Passei a
vida inteira mentindo para fugir a castigos e sofrimentos. Passei pela escola
como gato sobre brasas, sem estudar e sem chegar perto da realidade. A
única coisa que consegui fazer bem como criança foram as mágicas, e
parece que desde então tudo para mim não passa de mágica e é sempre
isso que estou esperando da vida. Desde muito cedo em minha vida aprendi
a ser um mestre em meias verdades. Isso era fácil de fazer, já que, em
minha família, ninguém se interessava pelo que realmente acontecia.
Consegui os primeiros anos de universidade com relativa facilidade e sem
grandes esforços driblando uns e embrulhando outros. Deixei os estudos e
meti-me em negócios com grandes ideias e pequenos conhecimentos.
Tomei muito dinheiro emprestado e não preciso dizer que em pouco tempo
tinha gasto tudo. Empreguei-me e fui logo despedido. De repente tudo
começou a cair em cima de mim e já não tinha mais para onde fugir. Tentei
embrulhar minha mulher mas o dinheiro acabou. Foi então que encontrei
o que queria. Já não precisava enfrentar nada. O mundo era belo. Não
precisava pensar em fracassos... Comecei a frequentar o Harlem. Já
conhecia a heroína e seus perigos mas comecei a cheirar. Tudo fic ava
calmo. A vida corria tranquila e sem dificuldades. Só comecei as aplicações
na veia nove meses depois. Já não pensava mais em sexo. Mijei o resto do
dinheiro que ainda tinha e as coisas ficaram feias. Entrei em recesso e
consegui parar com a heroína. Até mesmo arranjei um emprego. Estava
contente comigo mesmo pois afinal conseguira parar depois de um ano e
meio de vício e sentia-me satisfeito. Continuava ainda com a maconha, mas
aquilo até que era social. O emprego ia bem e tudo estava ótimo, mas o
emprego pifou e eu não estava preparado para mais nada. Tentei escrever
mas não saiu nada. As semanas passavam e eu estava ficando assustado.
Um convidado de fim de semana era viciado e tinha a droga com ele. Tomei
a primeira picada depois de um intervalo de dois anos. Senti-me ótimo
outra vez. Pensei que podia controlar-me e mudei-me para a Califórnia
onde esperava melhorar. Já não posso mais passar sem ela... Até o mês
passado eu nem pensava em largar. Senti-me tão mal e com tanta dor
quando acordei que, pela primeira vez, cheguei a compreender como as
pessoas se suicidam. Não quero morrer, quero viver. Tenho que parar.
Ainda tenho muito para viver. A solução não é a droga. Extingue a minha
dor mas faz nascer uma outra. Droga é droga. Deve haver uma outra
solução. Socorro.
Trinta minutos depois de escrever esta carta ele tomou uma dose. Parece
que a consciência do perigo da heroína e o desesperado desejo de parar
ainda são desprovidos de sentido para a pessoa que sofre.
Quando a pessoa suspende a heroína ela entra num transe parecido com
uma condição Primal. De fato, o autor da carta deve ter pensado que estava
presenciando um estado de suspensão da droga quando teve a sua primeira
Primal, com as dores de estômago, suores, tremuras e a Dor. Eu tenho
certeza que os sintomas que surgem quando se suspende a heroína são
fisiológicos. No entanto, os viciados em heroína que passaram pela Primal
acreditam que a maior parte dos sintomas da suspensão da droga são
Primais. Quando consideramos a heroína como defesa, bem podemos
compreender como a pessoa pode cair na Primal desde que a defesa seja
removida.
Da mesma forma que a heroína, a Terapia Primal mata a dor fazendo o
viciado senti-la. Na minha experiência, o viciado é mais fácil de tratar do
que muitos neuróticos que construíram uma complicada rede de defesa
que terá de ser desmantelada. O tratamento do viciado é mais rápido e
preciso.
Há uma grande diferença com o viciado na Terapia Primal. Ele precisa ficar
sob vigilância constante durante os primeiros dois meses de tratamento.
Os outros pacientes que conseguiram romper as barreiras, podem sob
pressão, voltar aos seus sintomas anteriores, mas quando o viciado volta
ao seu sintoma, o resultado é um desastre. De nada valerão as promessas
que fizer. Ninguém é mais astucioso do que um viciado quando se trata de
tentar conseguir a droga.
Se conseguirmos atravessar o período inicial de tratamento do viciado, o
resto torna-se mais fácil, mas ainda assim, eu recomendaria dez a quinze
semanas de clausura durante a Terapia Primal.
Discussão
Alguns dos métodos atuais para o tratamento dos viciados em drogas
inclinam-se para uma linha dura. Chamam os viciados de sem-vergonhas,
estúpidos e dizem-lhe na cara que não são homens. Eu não concordo com
essa atitude pois julgo que muitos deles já sofreram bastante sem ser
preciso serem ainda espezinhados pela sociedade. É possível que o grupo
de pressão que se encontra em alguns abrigos para tratamento de viciados
ajude a condicionar o comportamento dos mesmos, mas isso certamente
nada faz para satisfazer-lhes a necessidade de amor. Quando a Dor existe,
não há ameaças nem castigos que possam ajudar. Desde que desapareça a
Dor Primal já não será mais necessário insultar ou implorar os viciados para
que mudem de comportamento.
Tampouco acredito que seja de vantagem para eles a obrigação de se
comportarem "como adultos". Muitos viciados foram obrigados a serem
adultos antes de serem crianças. As pressões e ameaças da sociedade de
nada servem pois a maioria deles está preparada para enfrentar um mundo
hostil. Eles, no entanto, não sabem defender-se da delicadeza.
As pessoas não vivem se espetando diariamente só porque são fracas ou
estúpidas. São doentes, e a sua doença é mais séria e real do que as
chamadas doenças físicas. O uso da droga não é um desafio atrevido e sim
o resultado inevitável de um corpo que sofre e que tenta encontrar alívio.
Muitos centros de tratamento de viciados podem mostrar excelentes
resultados com uma alta porcentagem de recuperação de seus clientes.
Não acredito que seja importante que o viciado deixe de usar drogas não
perigosas e tudo que puder ser feito a esse respeito certamente contribuirá
para o resultado final, mas não considero como cura o fato dele abandonar
o vício. Mesmo que os viciados em heroína nos centros de tratamento
abandonem a droga e passem a fumar cigarros ou tomar café em grandes
quantidades, eles, ainda assim, continuam sendo viciados, na minha
opinião. Os altos níveis de tensão estarão sempre à espreita esperando um
momento de fraqueza. Desde que ele possa dar o duro no trabalho, fumar
para espantar a Dor e contar com o apoio dos que o cercam, é bem provável
que fique afastado das drogas durante anos ou talvez mesmo para sempre,
mas qualquer mudança em sua vida poderá trazer de volta a Dor que
sempre esteve lá, e o vício voltará.
A duração da abstenção não constitui indicação de qualquer suscetibilidade
ao vício. Desde que encontre um firme apoio em tudo que o cerca, o
indivíduo com um alto nível de tensão pode conservar-se afastado das
drogas durante toda a sua vida, ao passo que outros com nível inferior
atirados às ruas sem qualquer ajuda logo voltarão ao vício. Quase todos os
dias recebo chamados de pessoas que estiveram durante anos em prisões
e que logo voltam ao vício.
Embora os abrigos espalhados por toda a parte sirvam muito para ajudar
os viciados, eu ainda os considero como uma espécie de trabalho
missionário. O viciado é acolhido por gente bem intencionada que talvez
logicamente o considerem estúpido em lugar de doente, mas se o víc io é
uma doença, as suas causas devem ser investigadas muito além do sim ples
comportamento superficial.
Maconha

A maconha tem um efeito bem diferente da heroína. O que pode acontecer


com as pessoas que ficam sob a sua influência depende de três fatores: 1)
a quantidade fumada; 2) a profundidade do sistema de defesa e 3) a
intensidade da Dor Primal que ele esconde. Com uma quantidade bastante
grande de maconha será possível conseguir-se quase as mesmas reações
do LSD e isso aconteceria desde que houvesse uma grande Dor subjacente
exigindo uma fuga simbólica ou então no caso do sistema de defesa ser
muito vulnerável.
Não é raro, por exemplo, vermos alguém que já tenha tomado LSD voltar a
um momentâneo estado psicótico com o subsequente uso da maconha. A
viagem original do LSD para o primeiro assalto importante ao sistema de
defesa trazendo a pessoa para mais perto de sua Dor, e o subsequente uso
da maconha poderiam fazer desmoronar todo o sistema neurótico. É aí que
está o perigo do uso continuado das duas drogas. Uma paciente que fumava
maconha depois de haver tomado LSD começou a sentir um medo
constante de ser cortada ao meio por uma navalhada e logo depois passou
a ter medo de ser embrulhada na cama em que dormia. Esses símbolos
tornaram-se compulsivos e obsessivos porque o sistema de defesa contra
o medo tinha sido enfraquecido pelas drogas. Em breve os temores tornar -
se-iam tão insistentes que seriam necessárias mais reações simbólicas e a
pessoa entraria em colapso.
Em geral, os efeitos da maconha são mais agradáveis porque o sistema de
defesa apenas cede um pouco e não se desmorona completamente como
pode acontecer com grandes doses de LSD, e assim a pessoa poderá
experimentar um estado de euforia ou misticismo nos primeiros contatos
com a droga. Aos poucos isso irá se tornando mais sério e desagradável. Os
pacientes Primais que perderam seus sistemas de defesa não conseguem
tolerar a maconha, conforme casos que aconteceram em nossa clínica.
O neurótico comum que fuma a maconha pela primeira vez pode sentir
apenas efeitos fisiológicos como palpitações e tonteiras, ou então
desagradáveis reações de ansiedade. No estudo das reações a qualquer
droga não devemos olhar apenas para a sua parte química. No caso da
maconha, a pessoa com uma boa defesa na sua primeira experiência pode
permitir que a Dor venha à tona mas não o suficiente para ameaçar todo o
sistema e apenas produzindo sensações novas e estranhas.
O mesmo acontece com uma outra droga mais conhecida que é a cafeína.
Nós geralmente não nos consideramos viciados em cafeína apesar de muita
gente não poder passar sem o seu café em diversas ocasiões. Uma pessoa
bem dopada como um viciado em heroína pode tomar dez xícaras de café
sem qualquer resultado aparente, mas os que terminam a sua cura Primal
não podem tolerar nem mesmo uma ou duas xícaras. Quase todos eles
abandonaram o café. Desde que não exista um sistema de defesa que
intervenha, qualquer substância química causa um efeito sério e direto
sobre o corpo.
Podemos ver assim que o sistema de defesa pode determinar num grau
amplo a nossa forma de reação às drogas, já que ele filtra, amortece ou
bloqueia os estímulos externos e internos cujo processo de reação é
independente. Não podemos, portanto, defender o eu interno ao mesmo
tempo que nos comportamos de outra forma com o externo. Tampouco
podemos ser reais psicologicamente sem sofrermos os efeitos fortes e
diretos de drogas como a maconha ou a cafeína. Ser real significa ser
sistematicamente real; ser irreal significa ser sistematicamente irreal.
Eu acredito que muitos consumidores de maconha estão tentando ser reais
mas estão fazendo isso de uma forma irreal. Em um certo sentido "ficar
alto" é simbólico, já que significa agir inteiramente livre, mas a verdadeira
liberdade significa sentir o eu magoado e não apenas liberado
provisoriamente com drogas da opressão causada pelo sistema irreal.
A diferença entre o verdadeiro viciado em heroína e o fumante de maconha
é que, de uma forma geral, a maconha não é a chave ou a única defesa de
quem fuma, já que ele conta com outras defesas e até mesmo com a
tensão, ao passo que o viciado em heroína já não tem mais defesas. Ela é a
sua defesa e ele só funciona com a droga. De um modo geral, o fumante de
maconha tem menos Dor do que o viciado em heroína. A maconha ajuda a
erguer a repressão de forma que a pessoa às vezes sente abrir-se todos os
seus órgãos sensoriais. Consegue ouvir nuances num disco ou ver cores
estranhas num quadro, e esse processo também produz insights, o que já
não acontece com a heroína. Uma paciente recordou-se de sua experiência
com a maconha antes de fazer a sua Primal. "Numa ocasião em que estava
"alta" eu, de repente, lembrei-me de meu pessoal fazendo caçoada de mim
por causa da maneira como pronunciava certas palavras, e obrigavam -me
então a declamar algumas frases difíceis uma porção de vezes quando havia
visitas, e davam grandes gargalhadas. Percebi que desde aquela época eu
ficara com medo de falar diante dos outros."
Esse insight veio de uma lembrança reprimida que a maconha liberou. A
cena era triste e nunca teria sido lembrada normalmente. Desde que era
consciente tornava-se possível ligar o comportamento presente com a Dor
do passado. Isso é o insight. Se aquela mesma lembrança tivesse ocorrido
durante uma Primal, a Dor poderia ser terrível e os insights mais prolíficos
e fisicamente envolvedores.
Não é segredo o fato da juventude de hoje sentir uma grande atração pela
maconha. Por alguma razão, a sociedade decidiu que a melhor maneira
para a solução do problema é a repressão da droga em vez de procurar as
causas que levam a ela. A juventude de hoje sinceramente não sabe de
nenhum outro caminho para chegar ao que sentem a não ser com o uso de
drogas, mormente depois do que já lhes aconteceu antes. A questão não é
saber por que se viram para as drogas e sim por que foram desligados.
O que acontece a muita gente com o uso da maconha é que as defesas
tornam-se maiores. São levadas a grandes gargalhadas ou a comer com
voracidade, já que conseguem sentir embora não seja o sentimento real. O
que a droga faz, essencialmente, é devolver a pessoa ao seu corpo. As
gargalhadas incontroláveis, por exemplo, são muito mais uma experiência
corporal para muitos neuróticos do que a gargalhada sem a droga. Os
pacientes que terminaram suas Primais já não precisam mais de maconha
ou drogas, e eu acho que essa é uma melhor solução para o problema.
Sally
Quando Sally chegou ao meu consultório, vinha do hospital
neuropsiquiátrico local com o diagnóstico de "psicose pós-LSD". O colapso
final resultou de uma viagem do ácido seguida de intenso uso de maconha.
Constituiu um rápido tratamento, como, aliás, é o caso com aqueles que se
encontram à beira do colapso.
Tenho vinte e um anos. A minha vida em casa em criança era uma briga
constante. Meus pais estavam sempre brigando e eu me tornei nervosa ao
extremo. Os meus primeiros quatro anos de escola foram num colégio
católico e o resultado foi um completo desastre. As freiras não gostavam
de mim e estavam sempre a castigar-me. Obrigavam-me a escrever a lição
de catecismo dez vezes durante o recreio enquanto todas as outras
meninas brincavam, sem que eu jamais compreendesse por que estava
sendo punida. Sentia-me infeliz e urinava na aula, enfiava o dedo no nariz
sem que ninguém me ajudasse. Lembro-me como sentia-me solitária ainda
tão pequenina e esse pavor veio estar comigo já em idade adulta.
Uma vez que a vida na escola era uma merda da mesma forma que a vida
em casa, eu recorria ao único refúgio que encontrava para não enlouquecer
e então cantava. Na escola isso me tornou mais querida nos primeiros anos
do secundário já que tinha uma boa voz. Tomei parte no coro da igreja no
domingo é no dia de S. Patrício cantando uma canção irlandesa. Quando
ficava só em casa vivia num mundo de drama. Fantasiava imaginando -me
estrela de cinema e ganhando prêmios. Teria ficado louca naquela ocasião
se houvesse percebido que minha vida era simplesmente merda, mas a
minha fantasia tornava-me a vida bela. Lembro-me que sentia dores
quando cantava ou representava para mim mesma, e a dor me dizia que
aquilo não era real, e era apenas um sonho. Tinha crises de choro na
expectativa de ver meu sonho realizado, querendo ser alguém já que até
ali era ninguém. Não tinha a menor confiança no futuro e não sabia o que
seria de mim. Durante toda a minha vida continuei sendo a criancinha sem
jamais chegar à realidade. Continuava a enfiar o dedo no nariz e a chorar
pedindo ajuda, pedindo para crescer, mas ninguém podia me ajudar pois
eu chorava em segredo, e, aliás, não queria mesmo que me ajudass em.
É engraçado a gente ser neurótica. Crescemos fisicamente, sabemos mais,
compreendemos muito mais e muitas vezes chegamos até mesmo a
comportarmo-nos como mais velhas pois é isso que esperam de nós. Mas
lá bem dentro da gente continua a existir aquela criancinha que só quer ser
amada e acariciada, que quer ser protegida. Há uma constante luta interna
para termos aquilo que desesperadamente precisamos, ou seja, o amor,
proteção e tudo mais. Queremos crescer, queremos ser adultos, mas
sempre existe lá dentro de nós alguma coisa em suspenso.
Comecei a terapia em janeiro, e cheguei até lá devido aos acontecimentos
que tinham começado oito meses antes. Vinha tomando LSD sem sentir
efeitos maus, mas na última vez que tomei aquilo deflagrou uma coisa que
eu considerava loucura.
Meu companheiro e eu tomamos duas cápsulas cada um. Eu estava de mau
humor porque queria ir a uma festa, mas ele não quis ir e então tomamos
o ácido.
No fim fomos a uma outra espécie de festa. Havia lá os que já tinham,
tomado a droga e outros que não tinham. Já me sentia melhor até que o
LSD começou a fazer efeito e todos os meus sentidos tornaram-se mais
agudos. Sentia até mesmo o meu próprio cheiro. Olhei em torno para ver
se os outros também estavam sentindo. Ninguém parecia sentir. Corri ao
banheiro e comecei a ensaboar-me as axilas mas nada consegui. Sentia-me
suja e cheirando a merda. Quando voltei falei com meu companheiro e
fomos lá para fora. De repente senti uma espécie de ataque. Sentia perder
a cabeça mas logo voltava. Comecei a sentir medo. E tudo tornou a
acontecer outra vez repetindo-se durante sete horas. Nunca sabia se iria
então voltar ao normal. Não descobri realidades. Era uma série de visões e
completo terror, e estava convencida que ia ficar completamente louca.
Depois de sete horas melhorei um pouco, os ataques passaram mas eu
ainda tinha muito medo.
Tentei dormir mas estava sempre abrindo os olhos apavorada.
Depois de alguns dias voltei ao normal.
Só dois meses mais tarde comecei a sentir os efeitos marginais d a droga.
Tudo começou com um pesadelo. Acordei aos berros pois sonhara que
tinha ficado louca. Foi um pavor horroroso e total. Não conseguia dormir e
acordei meu companheiro que procurou animar-me. Eu não queria aquilo
e sim saber o que estava acontecendo de errado. Precisava saber.
Naquele dia e durante muitos meses seguidos vivi um verdadeiro inferno.
Tinha a certeza que estava louca devido às ideias que me ocorriam. Já
faziam dois meses depois que tomara o LSD e ainda me sentia como se
estivesse cheia dele.
Queria saber por que.
É praticamente impossível tentar explicar tudo que me tornou louca, a não
ser que minhas defesas estavam arrasadas. Com isso quero dizer que não
conseguia raciocinar. Nada me parecia certo. Não sabia se a parede era
parede ou se a cadeira era cadeira. Não conseguia sentir-me. Estava
sempre apavorada. Sentia-me presa de minha mente e pensava que a única
solução seria a câmara de gás. Não esperava sobreviver àquela crise.
Nesse intervalo as coisas iam se sucedendo em torno de mim sem que eu
me desse conta. O meu companheiro estava negociando com drogas. Não
tinha emprego e eu também não tinha, mas tínhamos dinheiro ilegal. Nosso
apartamento estava sempre cheio de cabeludos viciados e era grande o
estoque de drogas. Aquilo era o paraíso dos viciados. Eu não tomava
conhecimento de nada que se passava e tampouco me importava. Durante
todo esse tempo não tomei droga alguma nem mesmo sentia desejo. Só
pensava no que estava acontecendo com a minha cabeça e considerava-me
maluca irremediavelmente.
Era aquele o ponto certo para eu ter começado com a Primal, mas
infelizmente isso ainda não fora descoberto. Assim, quando entrei para
uma terapia em vista do meu desespero, tudo mudou mas de forma
totalmente diferente do que é agora. Foi então que aprendi a construir
minhas defesas. Já não tinha mais medo o tempo todo e sim apenas durante
algum tempo. Também já tinha alguém em quem me apoiar, uma pessoa
que podia responder as minhas perguntas, meu terapeuta, em suma.
Acreditava em tudo que ele dizia e não precisava mais ter medo. Confiava
cegamente naquele homem que para mim passou a ser um Deus, um pai e
um protetor de minha sanidade mental.
Quando nosso grupo de terapia começou a descobrir coisas sobre a Dor
Primal, senti dentro de mim uma coisa muito forte mas sentia-me infeliz.
Não sabia o que queria ser ou fazer. A minha primeira experiência Primal
foi deflagrada por uma decisão. Estava decidida a casar-me com meu
companheiro. As coisas tinham mudado. Ele já tinha um bom emprego que
nada tinha a ver com drogas e eu também tinha um bem bom. Já estávamos
começando a parecer gente comum, já éramos um casal de jovens normais.
Depois dessa decisão, numa noite no grupo em que estávamos
conversando e que eu me sentia tão feliz, parei de repente, e olhei bem
para dentro de mim, e foi aí que vi que ainda não tinha encontrado a
solução.
Deitei-me no chão e comecei a respirar fundo. Logo seguiram-se gritos de
raiva. Sentia-me como merda. Sentei-me lembrando que as pessoas do
grupo tinham-me feito perguntas e que eu respondera, mas não me
lembrava de nada. Todos em volta de mim estavam alegres e me diziam
que eu tinha conseguido, e repetiam aquilo muitas vezes. E eu só pensava
que era uma merda porque durante toda a minha vida só fizera mentir para
mim mesma. Toda a minha vida tinha sido uma palhaçada sem o menor
sentido. Eu era nada.
Essa foi a minha primeira brecha para chegar à realidade.
Depois dessa Primal passei por muitas outras e em todas elas livrava -me
sempre de algum sofrimento grande que estava guardado bem lá dentro.
Foi muito mais fácil livrar-me da esperança de conseguir o amor de meu pai
porque ele sempre fora mais real. Já com minha mãe o caso era diferente.
Meu pai tinha um emprego no qual permaneceu durante trinta anos, mas
sempre bebia muito. Quando brigavam, o que era quase todos os dias, eu
e meus irmãos ficávamos ao lado de mamãe que era quem mais sofria, mas
que insistia em manter a família reunida.
Livrei-me de meu pai com maior facilidade porque nunca me enganara a
seu respeito. Sempre fora um sacana muito ordinário que não valia nada.
Com minha mãe a coisa era diferente. Eu estava convencida que ela me
amava muito e ela também pensava a mesma coisa. Assim, era-me difícil
desistir de um amor que eu acreditava existir embora soubesse que tal não
acontecia.
Uma das minhas últimas sessões Primais foi quando eu finalmente desisti
de seu amor. Estava estirada no chão gritando e sentia a Dor no meu
estômago. Minha mãe saiu-me das entranhas quando eu gritava sem cessar
chamando-a e perguntando-lhe porque não me amava. Eu sabia que aquela
era a verdade e que toda a minha vida lutara para conquistar o seu amor.
Ela me dizia em palavras que me amava, e eu sabia que se fosse boazinha
chegaria um dia a ter o seu amor, mas eu não sabia ser boazinha. Eu sempre
queria zangar com todo mundo e só não o fazia com medo de perder o seu
amor.
Depois de cada Primal a minha voz descia um pouco na escala. Houve um
momento que chegou a um baixo profundo, embora durante toda a minha
vida ela tivesse sido aguda e suave. Agora estava sendo a voz real.
Também a visão parecia melhorar, pois já não tinha mais medo da luz.
Minhas ideias tornaram-se mais claras e já conseguia falar com outras
pessoas e fazer-me compreender por elas. Tinha confiança naquilo que
dizia porque sabia que era eu quem estava ferido. Antes eu nunca sabia
pois dentro de mim havia duas pessoas numa luta constante.
Já não vejo mais lutas em minha vida pois estou sempre conformada com
tudo que acontece. Posso escolher o que desejo que aconteça e posso fazer
o que muito bem entendo.
Encontrei a felicidade porque cheguei a compreender que vivemos num
mundo irreal e que a maior parte de sua população também é irreal. É assim
que devem pensar as pessoas sadias e como nada podemos fazer quanto à
vida alheia, mesmo quando isso nos oferece perigo, o melhor será não nos
preocuparmos com o que eles fazem. Devemos fazer o que for possível para
nos proteger e nada mais. Por mais irreal que seja o mundo eu consegui
encontrar nele a minha realidade e é ela que o torna real simplesmente
porque é minha.
Voracidade

Eu considero a voracidade como um vício porque a pessoa que precisa estar


sempre comendo considera a comida como uma espécie de injeção
constante de alguma droga tranquilizante. A pessoa voraz muitas vezes
nem tem fome. Come para satisfazer um impulso incontrolável que
geralmente a assalta quando está sozinha. A gordura que cria com essa
comida serve como camada isolante contra a Dor. Por esta razão, as
pessoas gordas geralmente são pacientes difíceis para a Primal.
Já falei aqui antes sobre a tensão ascendente e descendente e isso se torna
evidente no tratamento das pessoas obesas. Muitas delas chegam à terapia
sem ansiedades já que a sua Dor vem sendo mantida adormecida à custa
de drogas, de bebidas ou comida. Com isso sempre conseguiram abafar e
empurrar para dentro os sentimentos reais que estão sempre prontos para
virem à tona desde que não sejam protegidos pela comida. Essa é a tensão
descendente. Não é bem sentida como tensão e sim antes como uma
sensação de vazio disfarçada em fome. Um paciente assim manifestou -se:
"Eu comia para afastar a tensão que tentava me devorar. Toda a minha vida
girou em torno da próxima refeição. Havia tão pouco em nossa família que
a comida servia de tudo para mim. Era a única coisa que minha mãe fazia
por mim e que eu achava boa." E ela comia para não chegar a sentir o que
havia de desagradável na vida de sua família.
A tensão ascendente é aquela que acontece com quem come demais e que
não consegue isso durante algum tempo. Na primeira semana de terapia,
por exemplo, quando o paciente não pode comer muito, as suas defesas
baixam enfraquecidas pelo terapeuta e ele se torna ansioso. Começa a
sonhar mais do que antes, não pode ficar parado, e logo perde o apetite
bem a contragosto. Isso é porque os seus sentidos estão em ascensão e são
tão fortes que impedem a ingestão de alimento. Perderá muito peso nas
primeiras três semanas sem precisar se esforçar.
Quando alguém come mais do que precisa, é claro que não é por ca usa da
comida. Trata-se de algo simbólico. Há quem diga que isso equivale a
encher o vazio do corpo para não sentir o vazio da vida. Outros acreditam
que ainda é a criancinha que existe lá dentro e que ainda sente
necessidades orais, e alguém chegou a dizer que "estava comendo para
matar a fome da criancinha que não tinha comido."
Cada pessoa gorda tem uma determinada constelação que é a responsável
pelo seu estado. São muitas as dinâmicas que contribuem para formar o
comilão.
O que é muito importante lembrar é o fato que a comida é a válvula de
escape para muitas espécies de necessidades, e o mesmo acontece com o
sexo. O alimento abafa a Dor que pode não ter relação alguma com
qualquer privação anterior, e assim, a terapia não precisa ocupar -se disso.
O alimento pode ser escolhido para abafar a dor em lugar de drogas ou
bebidas conforme for a subcultura em que o indivíduo tenha vivido, e que
talvez dê mais valor à comida ao mesmo tempo que proíbe as bebidas. O
neurótico tem desejos falsos e, terapeuticamente, cuidar disso significa
não tratar o que é real.
Tivemos o exemplo de uma mulher que estava em tratamento Primal e que,
de repente, começou a comer. Contou o sonho que tivera: "Minha mãe
estava flutuando no espaço com uma faca de açougueiro na mão pron ta
para desfechar em mim. Fiquei aterrorizada e tentei escapar. Quero fingir
que não sou eu e sim um monstrinho qualquer, mas não adianta. Ela vai
atacar-me e eu acordo." Eu faço com que ela mergulhe no sentido do sonho
passando a contá-lo como se estivesse acontecendo naquela hora. Ela
torna a passar pelo terror e então compreende toda a situação. Sua mãe
era muito possessiva de seu pai e queria manter-se bonitinha e esbelta para
ter sempre a sua atenção. Em algum ponto de sua vida a paciente começou
a sentir que sua mãe não queria vê-la esbelta e graciosa, e para fazer-lhe a
vontade a menina começou a ficar gorda continuando assim durante a
maior parte de sua vida. Tinha sentido o ciúme da mãe, e o seu grito Primal
foi "Mamãe, não fique zangada. Eu não vou levar meu pai". E foi para isso
que tornou-se obesa. A maior ameaça à sua existência era, portanto,
tornar-se esbelta e graciosa. A gordura era a sua defesa e nenhuma terapia
conseguia alterar aquilo até que começou a sentir-se diferente.
Depois que passou pela Primal ela verificou que realmente sua mãe tinha
ciúmes dela e logo depois da Primal começou a emagrecer.
Isso mostra bem como pode ser complexo o problema da gordura. Algumas
mulheres sentem medo de serem bonitas por causa das consequências
sexuais que isso acarreta. Outras comem porque encontram a comida ao
seu alcance ao passo que o amor já não está. Alguns neuróticos comem
para mostrar que ninguém conseguirá enchê-los. Desde que não tiveram o
que queriam na primeira infância eles chegaram à conclusão que só
queriam comida. Uma mulher chegou a dizer que não vivia em seu corpo
porque ali havia muita dor e insatisfação, e portanto passou a viver da
cabeça enchendo o corpo com comida para abafar os sofrimentos.
Há um conhecido axioma que afirma a existência de um magro dentro de
cada gordo. É uma outra maneira de dizer que existe uma pessoa real
dentro de cada outra irreal. Eu já descobri que quanto mais normal for o
corpo, mais perto estará o neurótico de sua realidade e sua Dor. Portanto,
a primeira coisa a fazer para o tratamento Primal dos que comem muito é
deixá-los passar fome para desmanchar a sua falsa frente. Durante esse
período eles devem ser vigiados tão severamente como se fossem viciados,
pois serão capazes de todas as astúcias quando começarmos a desmanchar
suas defesas.
O glutão estará em perigo até que a maioria de suas necessidades forem
sentidas. Tive um paciente que chegou a confessar-me que se ficasse magro
e a vida não melhorasse ele então perderia as esperanças. Quando era
gordo tinha sempre a esperança de ser magro, e mais ainda, podia achar
que era a gordura que causava seus fracassos sociais e não ele mesmo.
Cada gordo alimenta uma esperança diferente.
A única maneira de deter um apetite voraz é liberar-se das antigas
necessidades compulsivas.
Um livro a respeito de obesidade de autoria de um conhecido médico
informa que o paciente deve ser educado para uma alimentação racional.
Insiste para que leve em conta as calorias de todos os alimentos e chega
então à desoladora conclusão que a pessoa deve cuidar-se durante toda a
sua vida. Essa história de calorias já é por demais batida e rebatida e todos
já a sabem de cor e salteado, mas tudo isso só serve para mostrar suas
esperanças irreais.
Enquanto o glutão puder ocupar-se com alimentos e dietas, ele nunca
enfrentará o que está realmente errado, e isso explica por que nenhum
método dividido para o problema da obesidade poderá ser bem sucedido.
Os que olham o problema dum ponto de vista exclusivo de dietas e
remédios, estão apenas considerando o corpo ao passo que o método
psicológico erra também pelo outro lado.
No final das contas somente um método psicofisiológico será bem
sucedido. A verdade é que um colega meu que trabalha junto com uma
equipe de médicos dietéticos informou-me que as recidivas para a
obesidade entre seus pacientes quase equivalem às que acontecem com os
viciados em drogas.
20 - PSICOSE: DROGA E ANTIDROGA

A minha experiência levou-me à conclusão de que não existe uma coisa que
possa ser chamada como um latente "processo psicótico" nem tampouco
ideias bizarras escondidas naquilo que Aldous Huxley chamou de
"Antípodas da Mente". Bem no fundo de cada neurótico está a realidade
dolorosa que é a sanidade desde que possa ser sentida. A insanidade,
nesses termos, é então a defesa contra essa esmagadora realidade. Há
gente que fica louca para não sentir sua verdade. Isso é uma viravolta das
muitas teorias em psicologia que consideram o homem como
inerentemente irracional controlado apenas pela sociedade. Toda
irracionalidade, sonhos, alucinações e ilusões são para mim apenas os
escudos que nos mantêm a salvo e em funcionamento.
Quanto à severidade da psicose, se o ego não teve seis ou sete anos para
consolidar antes da ocorrência do split, nós só podemos esperar um e go
fraco como consideram os freudianos. Se continuarmos a negar à criança o
apoio e amor e se ela não contar com válvulas de escape para os ferimentos
Primais, esses assaltos adicionais ao ego já enfraquecido irão resultar num
outro forte e irreal para proteger a criança indefesa. O ego irreal predomina
então e protege a criança levando-a porém para a psicose. Essa
predominância do ego irreal (o ego que não sente) responde pelo aspecto
sem vida que constatamos nos neuróticos e psicóticos reprimidos.
Literalmente, eles estão mais mortos do que vivos.
A psicose, portanto, é um aprofundamento do split neurótico que produz
uma nova qualidade de existência. A prova gráfica do split é a paranoia na
qual a pessoa não consegue mais conter a dissociação dentro de si mesmo
nem tampouco continuar usando o corpo como defesa. Dessa forma, ele
projeta seus sentimentos para fora de si mesmo, coloca seus pensamentos
em cabeças alheias ou imagina que todos conspiram contra ele ou então
controlam seus pensamentos.
Embora o conteúdo da paranoia seja diferente em cada um, o processo é
sempre o mesmo, isto é, a proteção da pessoa contra a Dor intolerável. Por
exemplo, a pessoa que não pode aguentar a sua terrível solidão pode
imaginar que haja alguém sempre a vigiá-la. Tudo que a pessoa imaginária
estiver pensando representa o simbolismo de seus sentimentos.
Claro que é lógico esperar sofrimento depois de haver passado por uma
infância sofrida. O paranoico não percebe que está reagindo às lembranças.
Suas manias são reais. São as lembranças reprimidas que foram projetadas
no mundo e que a Dor tornou reais. Só verá vermes saindo de uma parede
se isso tiver qualquer significação interna.
Os paranoicos geralmente veem ou ouvem coisas externas que sirvam para
aliviar o sofrimento interno. O sofrimento deve ser muito intenso para
forçar uma pessoa a colocar uma distância tão grande entre ela e os seus
sentimentos.
A paranoia é ainda, de certa forma, ligada aos seus sentimentos. Pelo
menos as suas manias são mais organizadas em contraste com as espécies
mais desintegradas de psicóticos que só falam tolices incompreensíveis.
Os paranoicos, de um modo geral, ainda conseguem estabelecer contato.
Ainda conseguem citar fatos e coisas da vida real. Só se torna evidente a
sua esquisitice quando é atingida uma certa área. Em termos Primais,
quando os sentimentos reais são deflagrados, o sistema irreal precipita -se
para transformá-los em símbolos. Embora o paranoico perceba bem os
fatos da vida real, ele pode tornar-se ansioso por qualquer insignificância
sempre imaginando que alguém está querendo prejudicá-lo. A razão para
o paranoico ver sempre conspirações secretas contra ele em lugar de
alguma coisa ostensiva, é porque ele é uma parábola de seus próprios
segredos e sentimentos. Desde que projeta o segredo para o exterior ele já
pode concentrar-se em alguma nova preocupação. Isso é parecido com o
neurótico com a diferença que a sua fobia é um pouco mais plausível.
Para podermos compreender bem as alucinações e manias, é preciso
compreender primeiro a profundeza do terror Primal, uma sensação que
nunca vemos já que a conservamos bem controlada a maior parte do
tempo, e fazemos isso envolvendo-o em ideias agradáveis. Vamos
considerar um exemplo bem comum que é a crença em um além que torne
a morte menos final e irrevogável. Claro que não vamos considerar essa
crença como psicótica porque ela é uma ideia socialmente
institucionalizada, mas se muitos não acreditam nisso o que acontece
então? Essa crença irracional, considerada assim porque não se a poia em
coisa alguma que seja válida, pode existir numa pessoa que, em tudo mais,
seja eminentemente racional, mas que, devido ao terror Primal, é obrigada
a entrelaçar numa teia bem irracional para manter o sentimento a
distância. Para estabelecer uma ponte ligando a aparente incongruência de
suas ideias conflitantes mas coexistentes, ela pode ser obrigada a recorrer
a uma outra noção irracional, ou seja, que existe um lado "negro" ou
"irracional" em todos nós que desafia raciocínio ou explicação.
E toda essa superestrutura ideológica tem por único fim evitar o
sentimento real!
A qualidade bizarra da mania ou da alucinação dependerá sempre da
profundidade do terror. Quanto maior for o medo, mais complicado será o
raciocínio para escondê-lo. Enquanto for possível alinhar os sentimentos
de certa forma, a mente pode conservar-se ordenada e controlada. Quando
isso não for possível, por qualquer razão, a pessoa é levada ao terror.
A Dor de todos os psicóticos é imensa porque o seu ego real e o irreal não
são aceitos. A pessoa não teve outros recursos na infância senão retirar -se
do mundo. Se eu quisesse mostrar em poucas palavras a diferença entre o
neurótico e o psicótico eu diria que o neurótico encontrou um meio para
viver confortável no mundo, ao passo que nada pode fazer isso pelo
psicótico.
O que acontece quando a pessoa torna-se paranoica é que devido ao stress
o ego irreal já não consegue mais manter- se integrado e esfacela-se.
Acontece isso quando a mente já não pode mais conter as sensações do
corpo. Quando chega a esse ponto, a psique do indivíduo é reconstituída
num novo nível psicótico. Houve um paciente que disse, "a loucura é
quando a gente não pode mais fazer funcionar nossa neurose."
O fato do paranoico muitas vezes manter diálogos consigo mesmo é uma
indicação do split que já mencionei, onde um ego conversa com o outro. O
neurótico geralmente consegue manter o diálogo dentro de sua cabeça,
mas o psicótico já não tem tanta sorte. A percepção desse processo é
explicada por um paciente que fora paranoico. "No começo de minha vida
eu deixei de ouvir as mentiras de meus pais e passei então a ouvir só o que
queria. A minha audição para o mundo exterior foi-se fechando tanto que
cheguei a pensar que ia ficar surdo. Pouco depois só ouvia o que inventava.
Eram as vozes. Depois da Primal recuperei a audição. Descobri que já não
podia mais ouvir como as coisas eram realmente em minha infância e sim
apenas como eu tinha que inventá-las."
A dialética da paranoia, como aliás também acontece com todos os
comportamentos irreais, é que quanto mais perto chegamos das verdades
penosas, para mais longe precisamos fugir. Então variam as distâncias da
realidade, e elas vão desde interpretar mal o que se vê até ver o que não
existe. A Teoria Primal é que quanto mais estamos perto de nossos
sentimentos, mais chegados estaremos à realidade exterior e mais
nitidamente perceberemos os outros e os fenômenos sociais. Quanto mais
bloqueado estiver a realidade interna, mais deficiente será a percepção
social. Assim, o paranoico na fuga desesperada de sua própria verdade é
obrigado a alterar a sua realidade exterior, e muitas vezes de forma bem
estranha.
O verdadeiro contato com a realidade é sempre um processo interno já que
as defesas estão organizadas contra o mundo interno e não o externo. Não
é dos outros que o esquizofrênico tem medo. São os outros que
demonstram o medo do que sentem. É comum os pacientes depois de
Primais constatarem que, pela primeira vez, podem tocar em alguma coisa
real.
Os paranoicos com suas projeções dão-nos boas indicações do que existe
no complexo Primal, mas, na minha opinião, de nada servirá analisar essas
projeções simbólicas, entrar no sistema das manias, fingir com o paciente
ou procurar dissuadi-lo de suas irrealidades paranoicas. Não é com palavras
que conseguiremos eliminar a Dor do paranoico, nem tampouco de outros
doentes.
Enquanto as categorias dos diagnósticos para os psicóticos (catatônicos,
esquizofrênicos, maníaco-depressivos, e paranoicos) não afetarem
materialmente a espécie de tratamento que recebem, todos os
diagnósticos serão irrelevantes. Se for possível estabelecer o contato com
eles, então haverá probabilidades de cura.
É fundamental o conceito da neurose ou da psicose como defesas. O ponto
crítico surge quando se despertam os sentimentos, e a pessoa pode senti-
los ou não e tornar-se com isso um doente mental. A criancinha reprime
seus sentimentos, o seu ego real, e torna-se outra pessoa, alguém como
seus pais desejam. Sua neurose é uma defesa. O adulto que reprime suas
sensações Primais pode também entrar em colapso e tornar-se outra
pessoa, só que essa pessoa pode estar totalmente fora da realidade e ser
Napoleão, Mussolini ou o Papa. Um colapso nervoso é parecido com uma
Primal sem o terapeuta. É quando alguém começa a perceber os
sentimentos Primais e foge aterrorizado para um refúgio mental fora da
realidade.
Se a criancinha tivesse para quem apelar quando sentiu a sensação Primal,
ela provavelmente não teria sofrido o split que a transformou em alguém
diferente, e o mesmo acontece com os adultos. Ele só pode voltar para si
mesmo, isto é, para a saúde e não para a doença.
Segue-se um relatório do tratamento de uma psicótica com trinta e cinco
anos de idade que tinha manias e alucinações, ouvia uma voz que orientava
sua vida. Até aqui ela já passou por mais de sessenta Primais durante um
período de doze meses e tudo indica que não voltará à sua psicose. Seus
sonhos são reais e já não ouve mais a voz que acompanhou-a durante
tantos anos.
A vida dessa mulher foi uma coisa terrível. Foi violentada pelo pai bêbado
e sádico quando tinha apenas três anos e meio. O seu split deve ter
ocorrido nessa ocasião e ela só veio a lembrar-se do fato depois de umas
vinte sessões Primais. Logo que se lembrou daquilo reviveu também outros
aspectos de seu trauma nas sessões seguintes. Foram necessárias mais
outras vinte sessões para integrar a terrível experiência.
Surgiram dois egos quando se deu o split com a idade de três anos e meio.
A cada ano que passava ela se tornava cada vez mais dirigida por uma voz
a quem obedecia. Era a voz do ego real para mantê-la viva e que conseguiu
o seu intento. Ela passa então a falar de seus egos divididos.
"Estaria eu louca quando cantava como um índio na floresta? Estaria louca
quando pensava que a voz me dizia o que devia ou não fazer ou ver? Eu
creio que a resposta deveria ser afirmativa. Não consegui ver o mundo real
em torno de mim porque vivia com a Dor. Fugia de tudo com medo da
repetição dos primitivos horrores. Não queria compreender nem lembrar o
que acontecera. Tinha medo de ser levada ao suicídio e então projetava os
meus sentimentos de medo sobre as outras pessoas. Acredito que minha
loucura tenha sido causada por Dor em demasia e por baixo daquela
loucura estava a verdadeira Dor que eu não podia suportar. Sei agora que
reprimia os meus sentimentos para que nada me levasse à Dor. Já que tudo
era loucura em torno de mim quando criança, estaria eu louca ao recusar -
me a acreditar no que via? Pode o desejo da sobrevivência a qualquer preço
ser chamado de loucura quando isso significa uma morte interna para que
uma parte possa viver? Se eu tivesse percebido o horror em que vivia,
percebido que não havia quem me ouvisse se falasse a verdade, duvido
muito que tivesse sobrevivido."
Claro que a sua loucura era uma defesa contra a sanidade. Morando com a
mãe que a mantinha junto ao pai sádico e louco, suspeitando desde cedo
que sua mãe não a queria ou talvez mesmo desejasse vê-la morta, era
realmente uma coisa terrível, pois não tinha para onde apelar. Mais tarde
contou-me:
"Uma coisa impossível de acreditar era como eu era desprezada somente
porque ainda estava viva ali naquela casa. Tentava mostrar-me boa e
obediente mesmo sem compreender."
O princípio do fim da sua Dor foi quando ela começou a sentir a sua psicose.
Desde pequena ouvia uma algazarra dentro da cabeça e durante a Primal
descobriu que aquilo era toda a gritaria que se acumulara desde sua mais
tenra infância.
Ao aproximar-se o fim de sua terapia ela escreveu: "Eu acho que foi um
milagre eu ter vivido e estar viva até hoje. Estou entrando num grau de
sentimento humano que certamente todas as outras pessoas possuem
desde que nascem. Sei que tudo ainda é muito frágil. Tenho medo de ser
novamente dividida."
"Eu via o meu ego separado sem que ele me falasse. Era obrigada a segui-
lo e a ouvi-lo, sempre com medo de sair daquele mundo para entrar num
outro que julgava louco. Ele contava-me o que havia de belo na cor e no
som. Dizia-me que tudo que sentia era porque não o seguia; que não odiava
ninguém porque o ódio não era real e sim apenas o medo de sofrer. Era o
medo e a expectativa da Dor."
"Dizia-me que a realidade era amor porque só nela sé encontra a
verdadeira compreensão e aceitação da pessoa e dos outros. Dizia -me que
eu era humana e nada mais, e agora já acredito. Agora quem me apavora
são as pessoas irreais porque usam-se mutuamente para provocar, acalmar
ou rejeitar a sensação de não ser amada. Talvez a terapia convencional
tivesse tentado forçar-me a ver tudo aquilo, mas ela não teria funcionado
porque eu sei agora que as necessidades precisam ser sentidas antes de
nos darmos conta da impossibilidade de serem satisfeitas."
Durante a sua Primal ela se sentiu louca e cheia de manias sempre que
chegava perto do sentimento de nunca ter sido amada pela mãe, de nunca
ter tido um pai que lhe ouvisse os problemas, nunca ter sido acariciada por
mais que fizesse. O objetivo era fazer com que ela compreendesse por que
tinha se dividido para entrar naquela câmara de horrores de onde havia
fugido tantos anos antes e descido a toda aquela agonia só para encontrar-
se novamente. Isso só pode ser conseguido aos poucos conforme o corpo
possa acomodar, pois, de outro modo, não se chegará ao sentimento. O
medo e a dor juntarão suas forças para afastar o sentimento e continuar o
split.
Por aí podemos ver que dentro da Terapia Primal o processo da reversão
da psicose é parecido com o tratamento Primal da neurose. O psicótico, no
entanto, é diferente do neurótico devido à tremenda quantidade de Dor e
à fragilidade do ego real.
Em vista dessa enorme Dor, o espaço de tempo necessário para tratar um
psicótico pode ser o dobro ou o triplo daquele que se emprega para o
neurótico. Além disso temos sempre que guardar o seu meio ambiente
durante o tratamento para evitar as influências externas. Mas a nossa
experiência até aqui exige um otimismo cauteloso quanto à possível
recuperação já que o tratamento do neurótico e psicótico é bem parecido.
É só sentir aquilo que causou o split de forma que a pessoa não precise
mais transformar a realidade em irrealidade para poder funcionar.
Citando mais uma vez a minha paciente psicótica:
"Eu sou ainda muito ignorante a respeito de várias coisas mas o que escrevi
é a verdade. Por trás de minha psicose está a falta de esperança, o fa to de
não ser amada e a terrível solidão. Qualquer outro louco que sinta o que
eu senti gritará também como eu gritei. Esta noite, na escuridão do silêncio
e da solidão, eu sinto que em tudo que faço, em tudo que vejo e falo, estou
novamente tornando-me um ser humano. O mundo está se tornando belo
porque eu estou me tornando naquilo que as pessoas acreditam que Deus
seja. Amor sem qualquer Dor e sem mudança.
"Há nos Salmos uma linha que diz: Ainda que eu venha a caminhar no vale
com as sombras da morte nem mesmo assim terei medo do mal. Sei que
esse vale era ali onde comecei já fazem tantos anos, onde acreditava que
alguém me amasse, onde era amada por Deus e eu sentia que Ele estava
em minha mente. Sinto o despontar de uma nova realidade."
21 - CONCLUSÕES

Como é espantoso verificar que a linguagem de meus sentimentos


e a linguagem de minha inteligência vêm me dizendo a mesma
coisa de formas diferentes. Que magnífico exemplo da divisão
entre a mente e o corpo, entre os sentimentos e o pensamento... O
fato de não poder compreender porque não sente, de não sentir
porque não compreende ... o medo do desconhecido.
Barbara, uma paciente

A Terapia Primal é essencialmente um processo dialético em que vamos


amadurecendo à medida que sentimos nossas necessidades infantis, em
que uma pessoa se torna calorosa quando sente sua frieza, em que se torna
forte quando sente a fraqueza, em que o sentimento do passado traz-nos
ao presente e em que o sentimento da morte do sistema irreal traz-nos de
volta à vida. É o contrário da neurose em que temos medo e agimos com
bravura, sentimo-nos pequenos e agimos como grandes e estamos sempre
representando o passado no presente.
Eu acredito que a Terapia Primal funciona porque o paciente finalmente
tem a sua oportunidade para sentir o que vem procurando esconder
durante a vida inteira. Ele já não precisa fingir que é adulto e controlado e
pode ser o que nunca se atreveu, e pode falar tudo que nunca antes teve
coragem para dizer. Eu afirmo que a moléstia é a repressão dos
sentimentos e o remédio é poder sentir.
O sistema irreal foi necessário nos primórdios da vida, mas quando chega
mais tarde só serve para deturpar e estrangular. Não permitirá descanso
ou sono sem terror e tensão. E esse sistema irreal que fica encarregado de
aplicar os tranquilizantes ao sistema real para evitar o seu grito num
momento de descuido. É o sistema irreal que entulha o outro com a comida
que ele não quer nem pode digerir. É o que arrasta o real num ciclo sem
fim de trabalhos e projetos. Muito metodicamente ele vai matando a
pessoa de forma literal. Enquanto isso, sempre funciona bem. Mantém a
Dor afastada por meio de uma barreira ao sentimento. A vida é apenas um
processo de caminharmos até a hora da morte, sempre sentindo
desesperadamente que o tempo está correndo sem que tenhamos
começado a viver.
Enquanto qualquer parte do sistema irreal tiver permissão para continuar,
ele será sempre vigoroso e suprimirá o sistema real. É total em todo o
sentido da palavra, e faço muita questão disso porque muitas ter apias
sérias cuidam de fragmentos da neurose acreditando que eles são
entidades independentes sem relação com qualquer sistema. Assim, temos
clínicas para fumantes e beberrões, hospitais especiais para viciados de
drogas, instituições dietéticas, hipnose do medo, condicionamento de
sintomas por meio de choques ou prêmios, terapias de meditação e
contato.
A Teoria Primal afirma que todo o sistema tem de ser erradicado. Se isso
não for feito, sempre encontraremos pais tolerantes ou ingênuos que
assumem a responsabilidade pelos filhos delinquentes até que, dentro em
pouco, ele está de novo às voltas com a justiça por causa de sua neurose.
Os neuróticos são muito astuciosos quando querem conservar a sua
condição.
A nossa terapia só cuida dos sentidos, sensações e sentimentos, e tanto
nos ocupamos do presente como do mais remoto passado que são, aliás,
os que não nos deixam sentir o presente. Nós estamos em busca do sentido
dos sentimentos que os neuróticos deixaram para trás, mas que, mesmo
assim, ainda interferem na sua vida diária. São os sentimentos que trazem
as lembranças dos pais e de sua falta de amor pelo filho.
São esses sentimentos Primais que se introduzem na vida diária para causar
perturbações. São esses sentimentos os responsáveis pelos sonhos mau s,
para os casamentos precipitados ou para produzir impulsos pervertidos
difíceis de se resistir. São sentimentos que continuam intocados durante
sessenta ou setenta anos de vida. Para curar isso é bastante senti -los.
É uma curiosa contradição que o neurótico que se deixa prender pelo
passado é justamente aquele que não tem passado. Foi desligado dele pela
Dor Primal, e assim precisa continuar repetindo a sua história dia após dia.
Por isso mesmo não muda muito durante toda a sua existência. Aos
quarenta anos ainda se parece muito com o garoto de doze.
O homem normal tem uma história e uma continuidade que não foi
interrompida pela Dor. É tudo de si mesmo. O neurótico sempre preso ao
seu passado pode ter o seu desenvolvimento físico e mental prejudicado.
Logo que se livra de seus impedimentos passa então a desenvolver -se
normalmente em todos os sentidos.
Tudo quanto tenho observado nas pessoas que terminam a Terapia Primal
leva-me a crer que elas terão vidas mais saudáveis e mais longas.
Ser real significa o fim das depressões, das fobias ou ansiedades. É o fim da
tensão crônica, das drogas, do álcool, do fumo, da comida exagerada. Ser
real significa não ser mais preciso fingir simbolicamente.
Ser real significa poder produzir mais sem os impedimentos que
geralmente estão sempre presentes nas pessoas criadoras. Significa
relações desinteressadas que resultarão em novos seres humanos sobre a
Terra e sempre satisfeitos. Ser real é termos todas as nossas necessidades
satisfeitas e também podermos satisfazer as dos outros.
O necessário é aquilo que é básico. As crianças sentem necessidades. As
necessidades estão sempre relacionadas com os primeiros anos de vida.
Podemos fazer o que quisermos com as necessidades, em todos os
sentidos, e isso em nada modificará o seu significado. Assim, uma
necessidade básica frustrada pode mais tarde transformar-se em desejo de
bebida, comida ou sexo, mas a verdadeira necessidade estará sempre lá
tornando os substitutos compulsivos e importunos. E isso é a Terapia
Primal, ou seja, o sentimento da necessidade.
Deveríamos imaginar que numa sociedade normal em que as necessidades
reais fossem reconhecidas e satisfeitas, haveria muito pouco
comportamento irracional para interferir. Não haveria tantas imposições
ou regras porque as pessoas normais compreenderiam as necessidades e
viveriam menos perigosamente. Respeitariam os direitos alheios e também
as vidas.
A supressão de sentimentos e necessidades exige muito controle. Quando
um sistema real não é digno de confiança, todas as peças do
comportamento precisam ser conferidas e examinadas, e finalmente
controladas. O controle é necessário para conter o sistema real, mas a
doença exige seus sintomas. Assim, um controle aqui ou ali significa um
sintoma diferente em algum outro lugar. O controle total significa a
construção de uma pressão interna até que o sistema desmorone.
Numa sociedade irreal, aqueles que demonstram menos sentimentos
podem ser considerados como modelos ao passo que os opostos são
geralmente classificados como histéricos. Num ambiente irreal a paixão é
suspeita e a sua falta é garantia. Isso chegou a tais extremos que todos os
que cuidam da saúde em nossa sociedade, os psicólogos e os psiquiatras,
já aprenderam a agir assim. A impassibilidade é uma das condições. A
criança que é criada por pais impassivos, lacônicos frequentadores de
cinemas ou professores que são a verdadeira essência da impassibilidade,
acabam caindo nas mãos de algum terapeuta impassivo.
A Terapia Primal procura mostrar que as medidas reformistas da s terapias
convencionais apenas ajudam a modificar a fachada, mas deixam intacta a
neurose. Na minha opinião, as laboriosas e lentas terapias de insight
mantém a pessoa no processo da melhora de saúde sem contudo chegarem
a ficar completamente boa.
Eu acho que a terapia convencional foi bem aceita pelos intelectuais de
classe média devido ao seu método suave e delicado que poupa
susceptibilidades sem chegar à estrutura básica.
Implícito no método da psicoterapia convencional está o fato que
conseguimos compreender nossos sentimentos e necessidades
inconscientes e que mudamos tornando-os conscientes. A opinião Primal é
que a consciência é o resultado do sentimento, e o mero conhecimento das
necessidades não representa solução. Isso é porque as necessidades não
se situam numa cápsula instalada no cérebro. As expressões reprimidas,
verbais ou físicas, tornam-se necessidades até que sejam resolvidas. As
necessidades devem ser sentidas dentro do organismo porque elas se
infiltram em todo o corpo. Se não fosse assim, não haveria sintomas
psicossomáticos. Desde que seja verdade que a tensão é a necessidade
Primal desligada e que ela também se encontra em todo o sistema, então
torna- se claro que as necessidades são sistemáticas, pois, de outra forma,
nós teríamos que concluir que as necessidades residem apenas em um
bolso de cérebro e seria então bastante tornar o inconsciente consciente.
Mais ainda, as necessidades não somente devem ser sentidas em todo o
corpo como também devem ser satisfeitas como o foram. A razão para o
adulto Primal poder finalmente livrar-se de suas necessidades é que elas
ocorreram na sua infância e, uma vez satisfeitas, já não são mais
verdadeiras necessidades no adulto. Um paciente era o "queridinho da
mamãe" quando pequenino só porque não molhava as calças ou a cama.
Quando cresceu urinava muito pouco. Durante a terapia começou a urinar
quase de hora em hora até que reviveu os dias da infância em que ele
conseguia se conter para ser o bem amado. Depois disso aquela
necessidade desapareceu por completo.
Embora seja incrível a tragédia que presenciamos no mundo de hoje,
parece que ainda não há suficiente sentimento de horror. Talvez seja a
neurose que permita todas as atrocidades que presenciamos quando todos
nós estamos tentando fugir loucamente de nosso horror pessoal. É por isso
que os pais neuróticos não conseguem ver o horror naquilo que fazem com
os filhos, por que não percebem que estão lentamente matando um ser
humano. Nunca se dão conta que ele está ali. O resultado societal desse
mecanismo de repressão em massa é muito parecido com o que acontece
individualmente quando vemos o comportamento afastado da realidade. É
por isso que tanta gente passa pela lavagem de cérebro, depois de verem
e ouvirem somente o que alivia a Dor, e por privarem os corpos de seus
sentidos.
Quando um sistema irreal não consegue satisfazer as necessidades, então
ele deve poder oferecer esperança e luta em seu lugar. Dessa forma, os
indivíduos se mostrarão dispostos a abrir mão das necessidades reais para
partir em busca de valores simbólicos como o poder, o prestígio, a posição
e o sucesso, mas a satisfação simbólica nunca é suficiente porque as
necessidades persistem.
Muitos psicólogos e psiquiatras desistiram das escolas doutrinárias da
psicoterapia e já não mais se classificam como freudianos ou junguianos,
preferindo um método eclético. O que parece não estar ainda bem claro é
que o ecletismo pode ser um solipsismo invertido no qual quase tudo pode
ser verdade porque nada o é. Eu diria que o ecletismo é uma defesa contra
a crença numa única realidade, já que alimenta a mania que nós podemos
tolerar todos os métodos. Eu acho que o que aconteceu com a psicologia
foi que ela desligou dos sentimentos dos pacientes individuais e teceu
hipóteses acerca de certos comportamentos baseados em estudos feitos
em animais ou em teorias de duas décadas passadas.
Essas abstrações teóricas muitas vezes se mostraram ser um pouco melhor
na explicação e previsão de processos psicológicos do que a opinião do
paciente sobre o seu próprio comportamento.
Talvez não se deve esperar que os psicólogos sejam diferentes das outras
pessoas. As teorias que eles adotam são simplesmente opiniões
sofisticadas do homem e do seu mundo. Essas ideias devem estar de acordo
com o resto das ideias dos psicólogos, isto é, elas devem ajudar a fortalecer
o sistema de defesa e a deter a Dor que, aliás, é a verdade. Assim, a não
ser que o psicólogo esteja bem desprovido de defesas, é muito pouco
provável que ele venha a adotar um método baseado na ausência de
defesas e de ter as pessoas preparadas para a Dor total. Tentar fazer com
que um psicólogo bem defendido adote um novo conjunto de ideias acerca
de indivíduos, seria quase o mesmo que tentar resolver as ideias irreais e
as dores do paciente só por meio de palavras.
A psicoterapia, até aqui e de um modo geral, vem cuidando de
interpretação. Isso sugere que os psicólogos são os detentores de um certo
conjunto de verdades sobre a existência humana. Não somente eu não
acredito na existência dessas verdades, como ainda também não penso que
haja verdades especiais que uma pessoa possa passar para uma outra. Os
problemas psicológicos, na minha estimativa, só podem ser resolvidos de
dentro para fora e não ao contrário. Ninguém pode dizer a um outro o que
significam os atos desse outro. Assim as terapias de confronto e de
encontro estão fadadas ao fracasso nesse sentido.
E quando um paciente consegue sentir, eu estou convencido que será
desnecessário tudo que temos feito para compreender o comportamento
humano por meio de tabelas, gráficos ou esquemas, pois tudo isso nada
mais pode ser senão a simbolização das ações simbólicas das pessoas.
Proponho que evitemos analisar e tratar o que é irreal para cuidar
diretamente do que é real.
Eu acho uma infelicidade os psicólogos haverem gasto tanto tempo com o
refinamento de suas descrições do comportamento humano, com todos os
seus jogos, brinquedos e artifícios, na crença que isso iria levá -los às
respostas do que desejavam saber sobre tal comportamento. Descrições
não são respostas. Elas não explicam o por que, por mais detalhadas que
sejam, nem tampouco nos trazem um passo mais para perto da resposta.
Agora que o leitor já chegou até aqui, ele pode estar imaginando quem,
então, estará habilitado para praticar a Terapia Primal. A nossa experiência
no preparo de psicólogos no Instituto indica que isso só pode ser feito por
quem já tenha passado por ela. A razão é que somente passando por todo
o processo pode alguém compreender bem o seu impacto e toda a sua
técnica. Em segundo lugar, e mais importante, é indispensável a ausência
de Dor bloqueada para conseguir um bom tratamento do paciente. Todo
aquele que não for psicologicamente saudável dificilmente conseguirá
eliminar a Dor do paciente porque terá dificuldades em orientá-lo na
direção certa. Ou então se o terapeuta estiver também escondendo alguma
Dor, ele pode falhar no momento preciso em que o paciente poderia ser
levado ao transe Primal. Um terapeuta Primal neurótico que queira bancar
o profissional pode bombardear o paciente com insights de um vocabulário
técnico, e se quiser ser agradável poderá ainda não conseguir assaltar o
sistema de defesa do paciente. Faça lá o que fizer, ele nunca deve privar o
paciente de seus sentimentos. Isso é coisa fácil de fazer e lembro-me de
um caso logo que comecei com a Terapia Primal. O paciente era um rapaz
que só fazia queixar-se da tragédia que era a sua vida e eu então respondi-
lhe que ele ainda era muito moço e que tinha ainda uma vida bem grande
à sua frente. Com isso eu privei-o da necessidade de sentir a tragédia dos
seus vinte anos passados.
O terapeuta Primal deve ser isento de defesas. Ele terá que enfrentar horas
terríveis com seus pacientes e nunca deverá ser tentado a acalmar os seus
sofrimentos, quando é justamente o contrário que deverá fazer. De
qualquer forma, eu realmente não acredito que os pacientes queiram ser
acalmados. Eles querem alguém com quem possam sentir-se realmente o
que são, por maiores que sejam as suas infelicidades.
Um terapeuta irreal pode, sem querer, obrigar o paciente a aceitar a sua
irrealidade. O seu prestígio e posição representam a realidade para o
paciente. Mesmo que ele passe meses sem falar-lhes, isso é muitas vezes
reconhecido como uma prática certa. Se o terapeuta mostrar-se frio e
alheado o paciente lutará para conseguir outra vez algum calor. Sê ele se
mostrar com superioridade intelectual, existe uma expectativa implícita
que o paciente deve curvar-se diante de suas qualidades intelectuais. O
paciente nunca deve ser levado a agir de modo especial com o seu
terapeuta e nunca deve imaginar que esse terapeuta tenha necessidades
que devam ser satisfeitas, consciente ou inconscientemente, pelo paciente.
E o que devemos esperar das qualificações profissionais de um terapeuta
Primal? Ele precisa conhecer alguma coisa sobre fisiologia e neurologia
para não chegar a tratar de alguma lesão orgânica do cérebro como se fosse
psicológica. Deve possuir apreciação de metodologia científica para poder
distinguir as provas. Deve aprender a não especular abstratamente sobre
o que se passa por dentro das pessoas e sim a ser bastante aberto para
animar o paciente e lhe contar o que é real.
Deve ter qualidades para sentir e perceber bem e isso, naturalmente,
significa que já deve ter sentido todas as suas dores. Isso automaticamente
permite que ele compreenda os outros. Desde que sinta o ritmo certo de
sua própria vida, ele pode também sentir a falta disso na vida dos outros.
Ele sentirá e assim saberá quando os outros não sentem. Em resumo, ele
deverá ter as qualidades que muitos de nós já deixamos para trás nos
primeiros anos de nossas vidas. Deve ser direto, aberto, delicado e cheio
de calor humano.
Não posso acreditar que um neurótico, por mais teorias que conheça, possa
sinceramente ajudar um paciente também neurótico. Nunca pode saber
quando o paciente está bloqueando ou não seus sentimentos desde que
também ele, o terapeuta, esteja bloqueando os seus. O neurótico não vive
no presente. O terapeuta Primal deve estar sempre com seu paciente para
poder sentir o que ele sente e saber quando deve intervir, mas nunca
conseguirá isso se perder-se em explicações ao seu doente.
A irrealidade do terapeuta pode limitar a realidade do paciente da mesma
forma que isso acontece entre pai e filho. Não é só o que o terapeuta faz
que tem importância, e sim também o que ele é.
Existem técnicas Primais específicas, mas elas de nada valem nas mãos de
um neurótico, mesmo que ele conheça fisiologia, sociologia ou psicologia.
O terapeuta Primal não trata de pacientes "analíticos" com deficiências de
superego ou com pacientes "existenciais" em crise. Em resumo, ele não
trata de categorias ou tipos teóricos. Sabemos que quando um paciente se
apresenta para a terapia ele geralmente está agindo fora da realidade. Não
vemos necessidade para classificar essas ações e fazemos delas algo
diferente como, por exemplo, má identificação psicossexual. O terapeuta
Primal não trata de um compulsivo ou um histérico, e sim de uma pessoa
que, de certa forma, esconde os seus sentimentos. Ele não se ocupa muito
da cobertura, a não ser como um incidente, já que se ocupa somente da
realidade que está escondida.
A dificuldade com o neurótico é que ele já passou a vida inteira fazendo
coisas irreais e pode bem fazer o mesmo na sua escolha de terapeuta. Pode
ir procurar as falsas psicoterapias e falsos psicoterapeutas para ficar
pensando que está se tratando sem cuidar da Dor. A terapia é quase
sempre, como tudo mais que fez na vida, apenas uma coisa simbólica e não
a real. Talvez entre em alguma aula de análise de sonhos ou terapias de
grupo especiais conduzidas por leigos. É muito comum o neurótico ir
procurar as terapias "rápidas" já que toda a sua vida fez as coisas correndo.
Esses programas todos, geralmente, têm por fim transformar as pessoas
em outras novas quando o problema, na minha opinião, deverá ser
transformá-las no que são.
A existência de entrada e saída separadas nos consultórios é uma herança
que vem dos primeiros dias da psicanálise. É bem possível que o fato dos
pacientes não se encontrarem, combinando com ausência de relógios no
consultório, leve a pensamentos errados quanto à legitimidade da terapia,
fazendo com que o paciente imagine ser vergonhoso alguém sofrer de
doença mental.
É verdade que o paciente muitas vezes sai do consultório com os olhos
vermelhos e os cabelos em desalinho, mas não vejo razão para que os
outros pacientes não possam constatar essa realidade. Não há razão para
se esconder coisa alguma. Aliás, há até pacientes que se sentem
confortados quando vêm tais cenas, pois verificam que é coisa normal.
Somos levados a imaginar por que os transes Primais não ocorrem
espontaneamente com os terapeutas convencionais. Uma razão
importante pode ser a do psicoterapeuta sobrecarregado não ter tempo
suficiente para dedicar a um só paciente para chegar ao ponto decisivo.
Muitas vezes o paciente estará quase chegando a alguma coisa muito
importante quando se esgotam os cinquenta minutos de seu tempo. Numa
sociedade em que "tempo é dinheiro" é muito difícil a gente encontrar
quem tenha tempo para um trabalho perfeito. Os nossos pacientes
frequentemente observam que se sentem tranquilos só de saber que estão
sozinhos na terapia individual durante um período de três semanas em que
somente os seus sentimentos ditam o fim da sessão.
O tempo também não é a única consideração. Quando, na terapia
convencional, ocorre alguma anormalidade como uma incipiente
demonstração Primal, o terapeuta geralmente tenta enquadrar o
acontecimento dentro de alguma interpretação teórica preconcebida em
lugar de deixar que a natureza siga o seu curso. O terapeuta Primal deve
permitir-se uma perda de controle mais ou menos igual à do paciente. Deve
permitir que aconteçam coisas para as quais não encontre explicações.
Acontece porém que esse fato incomum pode não se manifestar dentro do
contexto da psicoterapia, onde só se trata da mente do indivíduo. Ele deve
também andar dentro do consultório em lugar de permanecer sentado na
sua poltrona.
Se fosse possível ao terapeuta deixar de tentar descobrir o seu paciente,
ele teria então tempo para fazer uma grande descoberta: Não há nada para
ele descobrir. O paciente não precisa de ajuda desde que esteja sentindo
sua Dor. Nós, os profissionais, estamos querendo sempre acertar e fazer
com que nossas teorias funcionem controlando bem os pacientes. Isso não
quer dizer que as teorias não sejam importantes, e se nós estamos
conseguindo Primais todos os dias é porque temos uma teoria que nos
orienta, mas elas devem derivar-se das observações.
Eu já posso antever a possibilidade de uma grande revolução no tratamento
das moléstias psicológicas dentro de muito pouco tempo. O período
relativamente curto do tratamento Primal leva-me a acreditar que em
breve já não viveremos numa era de ansiedades.
Já que precisamos da ajuda e cooperação dos profissionais das doenças
mentais, aqui fica o nosso brado de alerta: Muito cuidado com a tendência
para tentar incorporar a Teoria Primal às outras teorias que os terapeutas
já conhecem bem depois de tantos anos. Se forem buscar as teoria s do
passado para explicar as manifestações Primais, igualando-as com alguma
coisa que já foi dito décadas atrás, isso significará engajarmo-nos na luta
neurótica para fazer sentido antigo de alguma coisa nova. Embora a Teoria
Primal tenha certas semelhanças com alguns outros métodos diferentes,
eu peço que ela seja examinada pelo seu valor intrínseco.
É claro que acredito na existência de uma verdade que é a realidade. A
previsibilidade da técnica Primal leva-me a crer que o princípio da Dor pode
ser uma verdade importante que estabeleça o comportamento humano.
Tudo indica que há um conjunto de leis que governam esse comportamento
e especialmente os processos neuróticos que são tão precisos quanto as
leis que governam as ciências físicas. Não são muitas as explicações para a
gravidade e também não deveria haver milhares de métodos para explicar
a neurose. Eu não consigo compreender como seja possível existir uma
quantidade de teorias psicológicas, todas elas válidas e todas contribuindo
para alguma coisa importante e verdadeira. Se uma teoria é válida, e eu
acredito na validez das noções Primais, então os outros métodos são
inválidos. Quando digo que a neurose é a manifestação simbólica de
sentimentos ocultos e que podemos eliminá-la pondo a descoberto os
sentimentos, e quando nós fazemos isso e consistentemente, e
previsivelmente, eliminamos as manifestações neuróticas, então nós
estamos mostrando o valor de nossas hipóteses. Acho que a razão para
havermos adotado tantos métodos psicológicos para a neurose é porque
ainda não estabelecemos teorias de previsão.
A falta de infinitas possibilidades para explicar o comportamento pode
fazer muita gente desanimar. Diz a tradição liberal que deve haver muitos
lados para todas as questões e que ninguém pode ser o único detentor da
verdade. Ninguém discutirá as leis físicas que trazem a eletricidade para
nossos lares, mas todos estão propensos a acreditar que o homem seja por
demais complicado para ser governado por leis científicas. Quando
aceitamos uma resposta estamos abrindo mão da luta para descobrir a
verdade. Parece que sentimo-nos mais confortáveis com a luta.
Alguns de nós preferem a terra dos neuróticos onde nada pode ser
absolutamente verdadeiro porque pode levar-nos para longe de outras
verdades pessoais muito dolorosas. O neurótico tem um interesse pessoal
na negação da verdade e é isso que temos que encontrar quando dizemos
que já descobrimos a verdade. Encontrar a verdade é o mesmo que
encontrar a liberdade. Significa a eliminação da escolha neurótica que nada
mais é senão a anarquia racionalizada. O neurótico que deseja ter a
liberdade de ver todos os lados, muitas vezes não percebe que pode ir
diretamente ao que é verdade, ao que é a sua verdade e não a minha. Só
precisa viajar dentro dele mesmo, que sempre é mais perto do que a Índia.
A ciência é a busca da verdade, o que não impede que ela seja encontrada.
Muitas vezes nós, nas ciências sociais, contentamo-nos com as verdades
estatísticas em lugar das humanas e empilhamos casos para "provar" o
nosso ponto quando, a meu ver, a verdade científica afinal de contas
respalda-se na previsibilidade, ou seja, em fazer com que uma cura
aconteça, e não simplesmente em construir raciocínios técnicos para
explicar mais tarde por que alguém melhorou com esta ou aquela terapia.
Nós ainda precisamos estudar muito e pesquisar a Teoria Primal e a sua
Terapia, e é isso que vamos fazer. Mesmo assim, os resultados até aqui são
bastante promissores para convencerem-se que a Terapia Primal trará
efeitos duradouros para os seus pacientes porque, afinal de contas, ela não
é senão a devolução da pessoa ao que ela verdadeiramente é. Depois de
acontecer isso, a pessoa já não poderá mais voltar a esconder-se na sua
irrealidade nem mesmo que queira. A volta à neurose, depois de Tera pia
Primal, seria o mesmo que perder a eminência a que chegamos, a barba
que finalmente conseguimos que crescesse ou ver os seios murcharem para
o que eram antes da Primal, tudo isso é difícil de acontecer, mas são avisos
importantes que dizem estarmos curando uma doença psicofisiológica e
não um distúrbio mental.
Minha mais profunda esperança é que os profissionais aceitem enfrentar
um método revolucionário para a neurose e talvez também percebam que
já se passou quase um século de psicoterapia sem que se possa perceber
qualquer mudança significativa na cura das moléstias mentais. Acho que já
é tempo de reconhecermos que os métodos de remendos para derrubar
um sistema irreal não funcionam nem jamais realmente funcionaram.
Para o neurótico sofredor que talvez pense ser a Terapia Primal muito
complicada ou difícil para suportar, eu diria apenas que a tarefa hercúlea é
ser aquilo que a gente não é. O que há de mais fácil é sermos o que somos.
APÊNDICE A

TOM
Tom figura aqui neste Apêndice porque o seu tratamento está sendo todo
registrado num filme documentário sobre a Terapia Primal e aqui vão as
suas observações pessoais sobre o tratamento que, aliás, ainda não tinha
terminado quando saiu este livro.
Ele tem trinta e cinco anos, é professor de História e divorciado. Recebeu
uma educação tipicamente norte- americana. Nunca demonstrou uma
neurose aparente. Tudo ia bem com ele, era responsável, bom pai, mas
sentia que alguma coisa estava faltando em sua vida.
Vivia procurando o que poderia ser. Já tinha passado por treinos de
sensibilidade e grupos especiais de encontro. Com isso ficou sabendo muita
coisa a respeito das pessoas, mas pouco serviu para os seus problemas. Não
era, de forma alguma, o que se pode chamar de neurótico, embora eu
viesse a descobrir mais tarde que rangia tanto os dentes durante a noite
que tinha um aparelho especial para colocar na boca. Era muito delicado e
respeitoso, amava seu país e seus filhos e levava-os em viagens de recreio.
De um modo geral parecia feliz. Embora tivesse sempre feito aquilo que
julgava certo, ainda assim sentia que a vida era vazia e não estava lhe
dando o que seria de esperar.
Antes de nos procurar para a terapia ele considerava-se um intelectual
completamente envolvido pela história das ideias, pelos sistem as
filosóficos, e citava, de cor, longos trechos de autores notáveis. Com tudo
isso achava que não estava vivendo a sua vida de forma inteligente.
Muitas vezes, a intelectualidade é o processo físico repressivo que funciona
como se fosse uma verdadeira couraça para o corpo. Em termos Primais, a
inteligência é a capacidade para pensarmos o que sentimos e vice -versa.
Tom era professor universitário mas não se considerava bastante vivo e
dizia que seus sentimentos eram por demais dolorosos para que pudesse
perceber tudo que queria.
A sua estrutura de valores mudou radicalmente no curto período de três
semanas. Para entendermos essa rápida transformação, temos que nos
lembrar que na Terapia Primal, logo desde a infância, as ideias fluem para
a mente vindo das mais profundas experiências dos sentidos. Assim, a
mente já não inventa mais sistemas de valores para esconder a Dor, e
quando o espírito já não é mais usado para reprimir os sentimentos, a
pessoa torna-se real. Os velhos valores e ideias desmoronam-se porque
eram principalmente estruturas falsas. Tom nunca conseguira ter seus
verdadeiros pensamentos e sentimentos. Aceitava sempre o que lhe
mandavam os pais e a igreja. Não adiantava querer mostrar-lhe que as
ideias eram falsas ou irracionais. Essas irracionalidades eram supérfluas já
que o seu espírito estava sempre de acordo com os seus sentimentos.
Ao cair da tarde na véspera do início de minha terapia eu fui para um
pequeno hotel muito tranquilo em Beverly Hills. Só saí do quarto no dia
seguinte de manhã para ir ao consultório do Dr. Janov.
Ao ficar sozinho naquele quarto muito pequenino sem poder fazer nada
nem ter com quem falar, senti-me um pouco nervoso. Não tinha nada para
fazer e estava inteiramente alheado do mundo. Não fazia a menor ideia do
que iria conseguir com aquela terapia. Não conseguia ver um futuro e só
tinha o meu passado. Dentro em pouco começaram a penetrar naquele
quartinho todos os acontecimentos de importância de minha vida. Para
surpresa minha todas aquelas lembranças e reflexões eram
extraordinariamente nítidas embora curiosamente irreais. Desejava ver-me
de novo envolvido em tudo aquilo mas não conseguia. Havia alguma coisa
que me detinha. Por quê? Era como se estivesse contemplando a minha
vida de muito longe através de poderoso telescópio. Confundia-me o fato
de não conseguir envolver-me. Comecei a sentir que talvez não estivesse
levando tudo aquilo muito a sério. Pois então aquela não era a hora de eu
estar sofrendo? Tentei descobrir alguma explicação, mas nada consegui.
Fui então para a cama.
Segunda-feira
Minha terapia começou como todas as outras por que já havia passado
antes. Entrei no consultório onde mandaram-me deitar num sofá escuro
num dos lados da sala. Pediram-me que explicasse porque estava ali.
Eu andava muito mal satisfeito com o meu emprego nos últimos dois anos.
Pensava seriamente em abandonar o magistério. Minha vida amorosa não
me havia dado o que esperara dela em matéria de felicidade. Tinha passado
por um casamento e duas ligações. Quando estava na metade dessas
explicações Art interrompeu-me. "Não é por isso que você está aqui. Você
veio porque é um perdedor. Nunca fará diferença a espécie de emprego
que escolher. Continuará sendo infeliz porque é um perdedor." E só com
aquela cotovelada ele abriu-me ao meio. Não tinha mais nada para explicar.
Depois queria que eu lhe falasse sobre meu pai. Ele era gerente numa firma
de transportes. Todo mundo gostava dele porque era muito atencioso. Mas
já não era grande coisa como pai. Passava a maior parte do tempo no
escritório, e raramente voltava para casa antes das sete. Nunca saía ou
bebia. Era só trabalhar.
Chegava em casa, jantava, sentava-se na poltrona e adormecia. Sempre
fazia coisas em casa. Também gostava de ouvir o futebol no rádio. Fora
disso quase não havia mais nada para dizer. Nunca fazíamos nada juntos.
Eu jogava o basquete no ginásio mas ele nunca foi para me ver. Um dia foi
com mamãe a um jogo de beisebol em que eu tomava parte. Fiquei tão
nervoso que não dei uma dentro. Logo depois vi o carro deles sa ir. Pode
imaginar como senti-me.
Aí fui tomado de surpresa. Art mandou que eu pedisse ajuda ao papai. Não
compreendia onde ele queria chegar, mas comecei a fazer o que me pedia.
Tentei algumas vezes e depois vi que não adiantava e que papai não me
ajudaria. Art não insistiu e passamos adiante.
Pediu-me que lhe contasse como era a minha vida em casa quando criança
e eu comecei a lhe contar como era o "programa". Aquilo era apenas um
esquema algumas vezes sutil e outras bem transparente e destinava -se a
proporcionar o meu bem-estar por meio de forças externas e
desconhecidas. Tornava-se evidente em casa, na igreja e na escola. Desde
que minha mãe era quem mandava em casa, e que a casa era o elo
institucional mais junto de meus primeiros anos, eu acabei assoc iando
minha mãe com o programa. Em casa ela estava sempre me perseguindo
de todas as formas mais irritantes e chegava até aos berros. Eu podia sujar -
me quando saía para brincar, mas não muito. Devia comportar-me como
um bom menino católico respeitando os mais velhos, fazendo como fosse
mandado e não tendo pensamentos sujos. Para todos os fins práticos, a
casa era como se não existisse. Era cheia de antiguidades e estavam sempre
me aporrinhando para não quebrar alguma coisa. Nem podia pensar em
trazer para dentro dela os meus companheiros porque, em primeiro lugar,
não devia ter mais do que um ou dois pois senão minha mãe ficaria nervosa.
Segundo, brincar dentro de casa era como se eu fosse um liberado
condicional sob constante vigilância. Tudo era proibido. Assim, sempre que
quisesse brincar com meus companheiros eu tinha que ir lá para fora, e
quanto mais longe melhor.
Minha família era muito católica e eu, naturalmente, fui para uma escola
católica onde, durante doze anos, tive freiras como professoras! Pa ra
tornar tudo ainda pior, minha mãe tinha duas irmãs que eram freiras e que
ensinavam nessa escola. Assim, todas as freiras conheciam minha mãe.
Para mim aquilo parecia ser uma formidável conspiração. Logo que
deixasse de ser um bom menino católico o mundo desabava-me por todos
os lados. Eu nem sabia ao certo onde terminava a família nem onde
principiavam a igreja e a escola. Aquilo era o programa.
Quando acabei de contar o programa Art perguntou-me qual fora a minha
reação para aquela vida infantil. Aquilo foi como se ele tivesse atirado um
fósforo aceso num poço de gasolina. Eu explodi em tiradas flamejantes que
eram uma verdadeira delícia. Era como se quisesse com aquilo queimar
todo o programa até não restar mais nada. E comecei então a berrar o mais
alto que podia. "Foda-se o programa! Foda-se! Foda-se! Foda-se!" E
quando as chamas se extinguiram, já um pouco mais calmo, arrematei
então, “E fodam-se vocês também, mamãe e papai, já que são os
representantes oficiais do programa."
Depois fiquei ali em silêncio ainda algum tempo já tendo, dado vazão à
minha raiva. Art perguntou-me sobre minhas relações com meu irmão Bill
e eu lhe disse que eram bem fraquinhas. Era três anos mais velho do que
eu e não gostava de ver um guri agarrado ao seu traseiro. Durante um breve
período, quando eu tinha uns dezesseis anos tivemos alguma espécie de
aproximação quando íamos assistir junto a fitas de bang-bang e depois
bebíamos uma cervejinha. Mas essas ocasiões eram poucas e também não
durou muito tempo a nossa camaradagem. Ao ficar mais velho a imagem
que tinha de Bill começou a modificar-se e já o via longe de mim como se
estivesse morto. Ele me tirava o gosto de viver e fui me afastando.
Parece que todas as complicações giravam em torno de mim, e quando
meus pais me apertavam Bill sempre juntava-se a eles ao passo que eu
nunca encontrava uma oportunidade para lhe pagar na mesma moeda.
Nunca podia contar com ele para os meus problemas. Ficava zangado e
sentido e sentia- me cada vez mais solitário. Assim, quando ele tinha lá suas
encrencas, eu me sentia melhor e menos solitário. Bill era aquela espécie
de criança que está fazendo sempre coisas espetaculares para chamar a
atenção dos outros, algumas vezes até mesmo com risco de sua vida. Houve
uma ocasião que me senti melhor. Nós tínhamos ido a um salão de danças
com amigos seus que logo o desafiaram para beber uma caixa de cerveja.
Não foi preciso muito e logo Bill começou a virar as vinte e quatro garrafas.
Foi levado para casa completamente bêbado enquanto os outros cá for a
entoavam canções apropriadas. Mamãe e papai ficaram horrorizados
pensando no que diriam os vizinhos. Eu também estava com medo quando
os vi tão zangados, mas intimamente estava também gozando ao ver Bill
descer do seu pedestal.
Pensei que aquilo fosse contribuir para uma melhor união entre nós dois,
mas não foi o que aconteceu. Art comentou então que eu devia ter sido um
garoto bem solitário, e eu concordei com ele. Não tinha ninguém para
quem apelar. Gostava de sair para andar no mato com companheiros o u
sozinho e conhecia tudo a palmo. Íamos nadar no rio. Às vezes fazíamos
incursões em campos de fazendeiros e conseguíamos batatas e milho que
levávamos para cozinhar em fogueiras ou em cima de pedras quentes. Para
sobremesa tínhamos as frutas do mato. Algumas vezes pescávamos ou
procurávamos cobras ou sapos. Lembro-me de uma ocasião em que levei
um garoto para mostrar-lhe um mamão que ele nunca tinha visto. Comeu
tanto que chegou a vomitar. Achei muito engraçado.
Quando era garoto gostava muito de jogar bola e era muito disputado
porque era mesmo bom de bola, e aí então sentia-me realmente bem já
que raramente era assim tão disputado.
Mais tarde saía à noite para algum bar ou salão de dança, e outras vezes
saía para a rua para falar com quem me aparecesse. Quanto mais velho
ficava mais procurava afastar-me de casa. Durante o curso superior jamais
trouxe um livro para estudar em casa. Sentia necessidade de sair.
Finalmente fui para a universidade e depois disso passava muito pouco
tempo em casa.
Quando acabei, Art disse-me que me julgara muito passivo e acomodatício
nas relações com meus pais, e eu lhe dei razão. Depois ele me perguntou
se eu jamais sentira-me como se fosse mulher ou se tivera fantasias
homossexuais. Fez-me a pergunta de um modo que me pareceu uma
insinuação maldosa e não gostei. Respondi não a ambas as perguntas.
Art não insistiu mais. Voltou novamente para o tal programa e eu fiquei
nervoso e quis sair para urinar. Perguntei-lhe onde era mas ele não me
deixou ir, dizendo-me que eu iria mijar o que sentia. Contive-me algum
tempo mas depois não aguentei mais. Ele me disse que teríamos que parar
sempre que eu quisesse mijar. Fiquei com raiva porque pensei que ele
estava querendo manipular-me. Saí para urinar. Quando voltei a porta
estava trancada. Bati mas ninguém abriu. Fiquei safado da vida. Bati até
quase botar a porta abaixo até que ele veio abrir. Perguntei-lhe por que
fizera aquilo e ele respondeu com a cara mais cínica do mundo que era para
ninguém mais entrar. A minha única resposta foi Merda! e voltei para o
sofá onde fiquei a falar ainda durante meia hora.
Depois que cheguei em casa comecei a ficar furioso porque ele tinha me
chamado de perdedor. A expressão ia-me a calhar. Cheguei até a pensar se
realmente tivera fantasias homossexuais. Nunca fui muito de brigar, mas
comecei a ficar furioso com Art. Antes de começarmos outra vez ele tinha
me prevenido que seria necessário adiar a sessão por um dia porque estava
com uma "laringite". Eu ainda não conseguia engolir aquela sua insinuação
de homossexualismo e a brincadeira da porta naquela manhã ainda mais
me irritava. Estava decidido a esclarecer tudo na manhã seguinte.
Terça-feira
Cheguei às nove e cinquenta e encontrei a porta fechada. Queria ficar só
para acumular bastante raiva e então fui para o banheiro esperar até às
dez. Quando cheguei a porta já estava aberta e então entrei. Art
perguntou-me por que estava atrasado. Olhei para o relógio e vi que
passavam três minutos. Disse-lhe que estivera ali antes e encontrara a
porta fechada. Mandou-me deitar e eu lhe disse que não deitaria pois
queria falar com ele cara a cara. Ele estalou os dedos e disse-me que
deitasse pois estávamos perdendo tempo. O som dos dedos estalando
irritaram-me ainda mais e em lugar de obedecer eu fui até a cadeira e
sentei-me na sua frente dizendo-lhe que queria esclarecer algumas coisas
antes. Disse-lhe que estava cheio de estar sendo manipulado e que queria
dizer o que sentia. Ele me disse que eu estava brincando. Disse-me outra
vez para deitar-me no sofá. Dessa vez eu fui mas minhas ideias estavam
bem atrapalhadas.
Comecei com a minha raiva. Disse-lhe que por trás dela eu estava furioso
comigo mesmo porque era um perdedor. Ele me perguntou o que eu sentia.
Disse-lhe que o peito apertava e sentia a barriga ardendo. Ele disse que
tinha que pedir ao meu pai para acabar com aquilo. Obrigou-me a respirar
fundo com a boca aberta. Aquilo pareceu transportar-me para uma outra
vida, mas nada consegui com o apelo ao meu pai. Disse-lhe que ele nunca
me ajudaria. Perguntou-me como me sentia. Respondi que sentia-me
solitário e desprezado. Isso fez-me ficar triste. Ele me mandou respirar mais
dizendo-me para deixar a dor sair. Dessa vez a coisa funcionou. Comecei a
contorcer-me de dor. Sentia o estômago em chamas e parecia que o peito
estava sendo esmagado. Ele mandou que continuasse e que pedisse ajuda
ao papai. Comecei a martelar o sofá como um louco e a gritar por papai até
sentir-me exausto.
Depois de um descanso Art perguntou-me o que eu tinha conseguido
expelir. Durante algum tempo senti-me tão assombrado com a experiência
que não conseguia explicar coisa alguma. Finalmente reconheci toda a
culpa, o medo de ser eu mesmo e a frustração por não conseguir isso. De
repente percebi o que significava o meu apelo a papai. Não tinha
conseguido compreender a sua tática, mas agora estava aflito para falar.
Disse-lhe que já não me parecia tão absurdo pedir o auxílio de papai pois
tinha compreendido que eu estava falando ao papai que estava dentro de
mim, o papai que eu sempre desejara ter. Expliquei que era uma questão
de conseguir que aquele papai me aceitasse como eu era e que me ajudasse
a livrar-me daquela sensação de desprezo e solidão.
Ele me perguntou o que eu iria fazer a seguir e eu lhe disse que, em
primeiro lugar, eu precisava aprender a sentir aquele pai que tinha dentro
de mim. Sentir como era. Sentir como a gente sente as coisas boas para
depois saber o que fazer daquilo. Depois disse-lhe como era bom ter um
pai que pudesse ajudar, um pai que gostasse da gente. Sentia-me tão bem
que ri-me muito e depois chorei durante algum tempo.
Logo que consegui falar novamente, contei-lhe como sentira minha solidão
e o desprezo. Depois lembrei-me da criancinha solitária num Natal quando
fiquei sentado embaixo da Árvore olhando muito triste para as luzes depois
que me haviam dito que naquele ano não haveria o Papai Noel pois o Bill já
estava muito crescido para aquilo e eu certamente não me importaria. De
uma certa maneira estavam com a razão porque eu também já sabia que
tudo era fingido e a história dos presentes não era muito importante. Mas
foi a maneira deles falarem que acabou com o meu amor pelo Natal e foi aí
que percebi que gostava daquilo. Tudo o que eu queria do Natal era um
papai e uma mamãe de verdade, que gostassem muito de mim assim
mesmo como eu era. Naquele ano eu fui uma criança que teve um Natal
muito triste.
Quarta-feira
Hoje o Art fez-me deitar no chão. A sessão foi toda no chão, da mesma
forma que todas as outras seguintes. Perguntou-me o que fizera desde a
véspera e eu contei-lhe que ficara muito cansado, que ainda estava
cansado, e que tinha passado todo o tempo descansando. Desde o primeiro
dia eu estabelecera uma rotina. Depois da terapia eu voltaria para casa,
almoçaria, descansaria mais ou menos uma hora, escreveria minhas notas
sobre a sessão do dia, refletiria sobre ela, jantaria, escreveria mais, ficaria
sentado sem fazer nada durante uma hora e depois iria para a cama.
Verificara que concentrando-me exclusivamente na terapia, eu poderia
conseguir muitos insights e lembrar-me de muitas coisas do passado que
talvez ajudassem. Mas o dia anterior fora tão exaustivo que depois de
escrever eu não consegui fazer mais nada.
Fiquei ali deitado como se estivesse morto. Três acontecimentos vieram à
minha mente e eu passei a narrá-los.
O primeiro foi o dia em que papai levou Bill, um primo nosso e eu a um jogo
em Cincinnati. Eu tinha uns cinco anos e estava assombrado com tudo o
que via. Quando entramos no campo fiquei vidrado. Quando terminou o
jogo nós saímos todos e quando íamos passando pelo portão eu me voltei
para dar mais uma olhada para o campo. Queria ainda ficar lá, talvez até
mesmo a noite inteira! Quando finalmente voltei-me não vi mais meu pai
nem os outros. Entrei em pânico e abri o berro. As pessoas juntaram-se em
torno de mim para saber o que era, mas logo apareceu papai com os outros.
Tomamos um ônibus para levar-nos à estação mas eu já não me aguentava
mais e queria mijar. Falei com papai mas ele disse que não podia fazer nada
e que eu mijasse mesmo nas calças. Senti um grande alívio mas ao mesmo
tempo lembro-me também como foi ruim voltar para casa com as calças de
lã molhadas.
O segundo foi nos meus primeiros anos de escola. Havia dias que eu voltava
da escola e encontrava a porta fechada. Eu ia então para a porta dos fundos
e batia gritando para mamãe deixar-me entrar. Então um dos vizinhos vinha
e dizia que ela não estava em casa e eu não podia fazer outra coisa senão
sentar-me para esperar que ela voltasse.
O terceiro foi numa noite quando eu devia ter uns oito anos. Nós não
tínhamos carro. As únicas ocasiões que eu tinha para andar de automóvel
era quando meus avós vinham para buscar-nos. Numa noite de domingo eu
estava de visita na casa de um vizinho do outro lado da rua quando eles
vieram buscar-nos para dar um passeio. Meus pais disseram- lhes para não
esperarem por mim e eu ainda vi quando iam saindo para dobrar a esquina.
Corri e gritei o mais que pude mas não os alcancei mais.
Art perguntou-me por que eu me lembrava daquilo e eu respondi que era
porque tinham sido as ocasiões em que eu me sentira solitário e
abandonado. Ele me perguntou como eu sentia aquilo e eu lhe respondi
que sentia um mal no estômago e no peito. Ele tentou fazer-me respirar
como na véspera, mas eu estava cansado demais. Fiquei ali deitado sem
movimento. Quando finalmente mexi-me ele me perguntou o que eu
sentia. Disse-lhe que sentia uma dor nas costas. Ele me disse que não era
uma dor física. Eu lhe disse que me sentia como se estivesse no programa
quando não podia fazer isto nem aquilo.
Fiquei ali deitado muito tempo pensando no programa. Finalmente disse -
lhe que eu acabara descobrindo uma forma para não ser tão desprezado.
Eu ia ajudar as outras pessoas em alguma coisa. Ia trabalhar para os outros.
Um dia meu avô foi encontrar-me na rua segurando uma folha de papel
entre os dentes enquanto dois caras a cortavam ao meio com um chicote.
Mandou-me parar sem compreender o que eu estava fazendo. Então Art
interrompeu-me para dizer que ele fizera aquilo porque se interessava por
mim e não queria ver-me machucado. Eu respondi que ele realmente
gostava de mim e eu lhe disse o quanto também gostava dele e como tinha
sofrido quando ele morrera. Chorei como nunca antes em toda a minha
vida. Foi o dia mais triste que tive.
Depois que parei de chorar contei tudo sobre meu avô. Como tinha
paciência comigo ensinando-me uma porção de coisas.
Ao fim da sessão Art fez uma observação que me surpreendeu e que não
conseguia compreender. Depois de chegar em casa tornei a pensar naquilo
e cheguei à conclusão que ele queria apenas dizer que eu era um perdedor.
Hoje foi meu dia mais difícil. Ontem eu estava zangado mas estava mais
animado. Hoje voltei para o chão emburrado como uma criança com o nariz
pregado na vidraça querendo participar da vida, como disse Art. Começo a
sentir que vai ser uma caminhada bem longa. Depois de trabalhar tanto
parece que ainda não fiz nenhum progresso.
Comecei a pensar naquela história de ser um perdedor. Sempre me senti
assim nos vários estágios de minha vida. Não sei sentir-me de outra forma.
Parece ser uma coisa tão difícil tornar a aprender tudo que nem sei como
vou conseguir.
Quinta-feira
Hoje eu comecei me sentindo desanimado ao perceber que toda a minha
vida girara em torno de minha condição de perdedor e que teria de
percorrer um caminho muito longo para construir um novo estilo de vida.
Contei a Art o que achava dele considerar-me um perdedor falando com
um sotaque de vagabundo do Meio Oeste. Ele me pediu então que contasse
como fora o enterro de meu avô depois de me perguntar se eu
comparecera à cerimônia. E eu então contei-lhe tudo sobre o velório, sobre
a morte e sobre o enterro.
Disse-lhe ainda que não chorara muito. Um pouco no primeiro dia e um
pouco quando vi o caixão descendo na sepultura. Mas tentei portar-me
como um homem. Ele me perguntou se eu tinha dito adeus a meu avô antes
dele descer à sepultura e eu disse-lhe que não por causa de tanta gente
que havia ali. Ele então me disse para dizer o adeus ali mesmo e o quanto
eu sentia a sua falta.
E eu então disse adeus a meu avô com todo o meu amor e tudo que sentia
em meu corpo. Eu chorei e conversei com meu avô até não ter mais nada
para dizer. Chorei que me despenquei relembrando todos os momentos
que havíamos passado juntos e tudo que ele fizera por mim. Ainda estou
chorando agora ao escrever isto.
Então Art me disse que eu falasse com meu pai contando- lhe como
desejaria que ele tivesse sido como meu avô. Eu fiz o que ele mandava e
depois contei também para Art que meus pais não queriam que eu nascesse
e ele ficou tão furioso quando soube que minha mãe estava grávida que
até ameaçou de cortar fora o seu pau. Depois contei ao meu pai ali tudo o
que sentia e como queria que ele gostasse de minha mãe e de mim.
Falei então a respeito de minha mãe e como era difícil lidar com ela que
estava sempre nervosa. Aí comecei a sentir outra vez aquela mesma dor
nas costas como ontem. Ele me perguntou como era e eu contei que era
como se estivesse fazendo força contra alguma coisa. — Contra o quê? —
Contra a solidão e o abandono. Era como se eu estivesse andando descalço
sobre pedras afiadas. Ao menor descuido me cortaria todo.
Aí Art me disse para eu contar à minha mãe que ela estava me cortando
todo e eu larguei-me completamente com toda a força de meus pulmões.
Quando acabei de gritar senti vontade de mijar.
Ao voltar do banheiro Art mostrou certa surpresa dizendo-me que eu
estava aprendendo bem depressa. Fiquei bem contente com isso. Quando
cheguei em casa comecei a pensar como poderia explicar na terapia porque
eu sempre fora perdedor. Tenho estado programando isso. Desde que eu
saiba que já sou perdedor, então já não devo aborrecer-me ao ser
abandonado. Já saí fora do jogo antes que eles tenham uma oportunidade
para me jogar fora.
Sexta-feira
Hoje foi meu primeiro dia em sessão de grupo. Durante algum tempo fiquei
só olhando. Depois deitei-me no chão e disse adeus para o vovô outra vez.
Quando foi chegando ao fim eu senti que ele compreenderia que nós afinal
tínhamos seguido nossos caminhos separados, ele para a morte e eu para
a idade adulta. Senti que estávamos então bem juntos apesar de seguirmos
caminhos diferentes. Art disse-me para aprofundar-me ainda mais e eu fiz
o melhor que pude com toda a gritaria e choro que ouvia em torno de mim.
Não estava acostumado àquilo mas em pouco já me habituaria.
Depois de todos haverem levantado Art apresentou-me a cada um e
conversamos. Eu lhes disse que sabia não estar ainda em condições de
contribuir com alguma coisa. Disse- lhes também que tinha acordado
naquela manhã disposto a deixar de pensar em mulheres pois sabia que já
estava bem fodido com todos os meus sentidos. Art voltou-se para mim e
disse que eu não tinha a aparência de ser assim tão sexual. Ficou
surpreendido com aquilo. Depois acrescentou que tudo era porque eu
estava escondendo um latente homossexualismo. Isso foi o fim.
Quando cheguei em casa tinha a cabeça estalando. O estômago estava
embrulhado e não consegui comer coisa alguma. Só conseguia ficar ali
sentado no chão. Sentia que tinha de ser bicha, latente ou não. Não queria
viver. Queria ver-me livre daquela ideia. Comecei a pensar em tudo outra
vez tentando identificar vestígios de bicha em mim. Comecei a sentir tanto
dor que tive de telefonar para Art. Ele estava em Santa Bárbara. Eu queria
cair numa Primal e perguntei-lhe como fazer para ter uma em casa. Ele
disse que não dava certo e deu-me alguns telefones de outros que
poderiam me ajudar. Eu queria saber dele se podia livrar-me daquela
história de bicha, e ele disse que não havia problema. Chorei aliviado e
respondi que poderia esperar até a segunda-feira para a minha Primal.
Segunda-feira
Tivemos dificuldades em começar hoje. Tinha conseguido abafar meus
sentimentos depois de falar com Art no telefone e não conseguia funcionar.
Art queria saber o que acontecera no sábado. Tentei contar quanto podia
mas não consegui.
Art perguntou-me então como sentia-me agora, e foi aí que eu virei uma
fera com ele. Chorava e gritava. "Por que você não veio no sábado quando
eu precisei? Que boa merda fez comigo! Solta-me aquela história de bicha
em cima de mim e depois dá o fora da cidade. Você na certa sabia a reação
que eu ia ter!"
Ele mandou-me deitar outra vez dizendo que não fazia mal e que haveria
uma outra oportunidade. Disse-me para lhe contar a minha vida. Contei
como tinha-me apaixonado por Betty, como tinha trepado com Louise e
depois casado com Phyllis. Ele falou da história da mulher mais velha e quis
saber tudo de Vi. Quando cheguei ao fim do caso com Betty, à parte
traumática, senti vontade de mijar. Já vinha sentindo aquilo logo que
começara a falar dela. Contei para Art e ele me disse que ficasse assim
mesmo sentindo e não movesse um músculo. Antes eu tinha ficado com os
braços dormentes e tinha-os esticado no chão, sem saber o que fazer com
eles. Art disse-me para não mover-me e apenas sentir o que se passava.
Fiquei ali e logo depois senti um aperto na barriga como se alguma coisa
quisesse subir. Logo depois comecei a debater-me com braços e pernas no
chão e com a cabeça rolando enquanto a tensão aumentava. Podia sentir
que era um bebê no berço. Fiquei com as mãos tensas como fazem os bebês
quando choram. A boca estava torcida como se eu quisesse tirar alguma
coisa de uma garrafa vazia. Não falei nem gritei. Sentia falta de ar.
Finalmente fiquei tão cansado que parei e fiquei ali deitado muito quieto.
Depois, consciente e lentamente, repeti tudo que fizera antes com as mãos
e com a boca para ter a certeza de que me lembrava.
Senti-me bem tonto quando saí da Primal e não sei exatamente o que
aconteceu, mas vou tentar mais ou menos. Art disse, "Não deixavam você
pegar nele, não é?" Eu peguei no meu pau e respondi, "Não. Sempre me
davam uns tapas." Aí mostrei como era dando-me tapas nas mãos. "Não
queriam que você tivesse um pauzinho, não é?" É isso mesmo. Sentei- me
e esfreguei o pau. Levantei-me e fui para a frente do espelho, arriei as
calças, esfreguei o pau e disse a mamãe e papai que estava certo. Depois
eu disse a Art que só podia ter um pau em segredo mas queria que ele fosse
parte de toda a minha vida. "Você então sabia, não sabia?" perguntou ele.
"Claro que sabia! E era por isso que tinha medo. Eles sabiam que eu sabia
e trataram logo de esconder." "E foi aí que você tornou-se um
bichazinho..." "Foi isso mesmo."
Foi uma coisa esplêndida que senti quando esfreguei meu pau e disse a
mamãe e papai que estava certo. "Fui procurar aquele sentimento na
filosofia, na religião, no meu trabalho e sabe Deus onde mais, e vim
encontrá-lo hoje ali no meu pau! Você é um colosso, Art! Que maravilha!"
Depois de chegar em casa passei a maior parte do dia esfregando o meu
pau e dizendo a mamãe e papai que estava certo. Ao sair do consultório eu
vi um homem mais velho que eu caminhando pelo corredor em minha
direção. Meu primeiro sentimento foi aquele antigo de passividade,
incerteza e vergonha íntima ao ver um homem que parecia mais importante
do que eu. Depois senti que eu tinha um pau também e minha atitude
mudou. De repente senti-me confortável e à vontade. Nunca tinha-me
sentido assim antes. Uma beleza! Senti a mesma coisa quando cruzei com
umas mulheres na rua.
Já não tenho mais o mesmo passado. Devo regredir e reconstituir todo meu
passado para que se conforme com o que aprendi agora. Preciso fazer isso
para conseguir continuidade em minha vida. Sem continuidade a mudança
não pode processar-se direitinho.
Na terapia eu quero expressar-me cada vez mais sem precisar seguir as
sequências lógicas e regulares de frases completas e ligadas com as outras.
Fico todo atrapalhado tentando experimentar e ao mesmo tempo duplicar
alguma coisa dentro de um padrão verbal ou imaginário.
Terça-feira
Hoje Art tentou fazer-me chorar como bebê, mas não conseguiu. Ia quase
chegando onde ele queria mas depois a coisa me fugia. Fiquei me
debatendo ali no chão durante três horas e meia. Tentei escapar querendo
mijar mas não consegui. Se mijasse já não iria chorar pois meus
sentimentos sairiam na mijada. Se chorasse, relaxaria os músculos e me
mijaria todo.
Mesmo assim, o esforço resultou em alguns insights de imenso valor. Senti
a raiva de minha mãe quando eu me debatia e chorava no berço. Não
aguentava aquilo e queria esconder-me. Fiquei sabendo como era nunca
ter o leite suficiente e ter que chupar o ar. Senti a falta de amor nos seus
rostos de americanos góticos. Queria me esconder de suas expressões frias.
Enfiei-me embaixo do sofá e gritei para Art perguntando-lhe o que queria
de mim. Aprendi a falar o tatibitate dos bebês e sentia a distância que
existia entre meu pai e eu. Era como se ele me aparecesse ali para dize r-
me que não esperasse dele carinho de pai. Lembrei-me que sempre me
escondia o seu pau e não queria que eu o visse nu. Também nunca vi minha
mãe nua.
Quando aquilo acabou eu estava completamente exausto, tão exausto que
nem mesmo podia escrever tudo que se passara. Isto aqui foi o melhor que
consegui.
Às vezes, quando era pequenino, eu me escondia embaixo de uma cama ou
por trás de algum sofá. Gostava de ficar ali sozinho sem que minha mãe me
visse. E foi o mesmo que fiz hoje enfiando-me embaixo do sofá. Agora estou
lembrando. Ficava cansado de ver o rosto dela zangado. Então escondia -
me para ficar só.
O padrão de meu comportamento na terapia é muito típico. Começo com
muita força, mas logo alguma coisa se embrulha. Depois começo a chegar
ao ponto em que me torno um meninozinho indefeso. Não compreendo
nada. Só vejo que minha atenção está sendo desviada do que estou fazendo
realmente para ser dirigida a alguma coisa diferente.
Quarta-feira
Hoje debati-me no chão outra vez. Fiquei sabendo como tinha sido rígida a
minha educação. Meu corpo não tinha licença para fazer o que queria. Eu
estava numa camisa-de-força. Não tinha licença para nada. Nunca brinquei
com minha mãe. Nunca cheguei a sugar-lhe o seio.
Hoje aprendi a rolar e brincar no chão, mas houve a mesma confusão da
vontade de mijar. E ainda não conseguimos chegar àquele medo do sábado
outra vez.
Quinta-feira
Hoje senti outra vez o medo, aquele medo de ser bicha. Não foi como o do
sábado em casa, mas senti o bastante para saber o que era. Estava n o chão
outra vez corpo bebê, mas depois fiquei confuso. Não sabia se devia ficar
zangado ou continuar sendo bebê ali mesmo no chão. Aí tive outra vez a
vontade de mijar.
Dessa vez fiquei zangado. Fiquei uma fúria durante muito tempo. Soquei os
travesseiros e briguei com mamãe para ser dono de meu corpo. Gritei e
zanguei-me com a pressão que sentia na barriga dizendo a ela que queria
ser o dono de meu corpo. Continuei gritando até que, com surpresa,
percebi que já tinha o que queria. Não sentia mais vontade de mijar. Já
controlava o meu corpo com a raiva! Conseguira pela violência o que me
pertencia por direito, era dono de meu corpo.
Sexta-feira
Hoje voltamos outra vez à mamãe e ao papai quando eu era menino. Contei
para o Art como o papai era inteiramente desligado, como eu realmente
não tinha para quem me virar, como era solitário no colégio e na
universidade sem ter quem me aconselhasse e como tinha casado com
alguém tão desligada como a Phyllis.
Depois conversamos sobre minhas dúvidas acerca das escolas públicas.
Verificamos que era um programa bom, respeitável e bem classe média,
mas eu queria que o programa se fodesse. Disse ao Art que estava com
medo pois ainda não sabia bem como era o meu novo eu e não queria
desligar-me logo do outro que já conhecia. Depois verifiquei que teria que
fazer aquilo de qualquer forma pois senão estaria enquadrado no programa
e tinha que ser bicha e eu não queria ser mais bicha de maneira alguma!
Ele me perguntou o que eu conseguira naquelas duas semanas e respondi -
lhe que tinha conseguido meu passado e meu corpo. Ele me perguntou o
que eu queria fazer e eu lhe disse que queria ensinar às pessoas tanto
individual como politicamente.
Cheguei em casa numa completa euforia. Estava entusiasmado com a
perspectiva de fazer alguma coisa útil em minha vida. Percebi que não havia
um substituto para aquilo em mulheres, fumo, bebida, dinheiro, maconha
ou drogas.
Sábado
Hoje eles começaram no chão outra vez em grupo. Depois de alguns
haverem começado a chorar chamando suas mamães, eu comecei a ficar
zangado porque não podia voltar. Não havia para onde ir. Art viu -me lá
sentado e mandou eu me deitar no chão. Eu comecei a esmurrar o chão
numa raiva cega e incontida. Então gritei com raiva que estava louco, que
queria minha vida de volta. Art veio e disse-me que eu vinha fugindo já
faziam vinte anos e que agora era difícil voltar para mamãe e papai. "Então
eu posso gritar pelo vovô porque ele gostava de mim." Art ordenou-me que
dissesse a eles que eu queria voltar. E foi o que eu fiz chorando e soluçando
durante algum tempo. Depois eu contei ao Art a respeito de meu tio Mac
em quem meu avô dera o contra porque queria ser músico e como Mac
ficara odiando o vovô e entregara-se à bebida que o levara à morte. Art
disse-me que era aquilo mesmo que eu estava fazendo comigo, mas eu lhe
respondi que o tio Mac, pelo menos, sabia o que queria e eu ainda não sei.
Comecei a pensar em Mac que fora meu tio preferido, em minha morte
lenta, no que mamãe e papai me haviam feito. Senti uma dor enorme na
barriga e na cabeça. Depois virei criança. Quando voltei a mim os outros
estavam todos me olhando. Disseram que eu os tinha apavorado com a
minha raiva.
Contei para todos como vinha tentando durante toda a semana que o medo
tomasse conta de meu corpo. Uma mulher observou que eu não estava
deitado quando a dor chegou. Estava na minha crise infantil. Aquilo parecia
uma boa ideia, tanto mais que meu sistema não estava funcionando.
Quando cheguei em casa senti uma dorzinha nas costas no mesmo lugar
que doía quando estava deitado lá no chão.
À noite fui a uma festa. Era a primeira reunião social a que comparecia em
duas semanas. Não tinha vontade de fumar nem de beber mas queria
trepar. Sentiame bem, diferente e novo, e muito mais vivo. Encontrei uma
linda loura chamada Francês e uma outra, moreninha, chamada Eileen num
vestido muito decotado e com jóias. Mas eu preferi Francês porque ela
sabia fazer maravilhas com o corpo. Fiquei vendo-a dançar e depois tentei
também dançar mas não consegui e comecei a sentir outra vez aquela
antiga sensação de bicha ao mesmo tempo que notava muita gente com a
mesma coisa. Gostei da trepada na Francês depois da festa, mas teria
preferido se ela não tivesse vindo com todos aqueles elogios sobre a minha
virilidade. Quase lhe dei uns conselhos.
No dia seguinte tirei um cochilo e na hora que estava acordando senti uma
coisa que estava começando a perceber, da mesma forma que a gente vê a
luz da manhã antes do sol surgir. Já vinha sentindo aquilo desde dias, vindo
e sumindo, e tinha medo. Parecia-me terrível que aquilo fosse uma maneira
para preparar-me ao que estava para vir e o que deveria fazer. Senti que o
dia estava muito próximo e que devia preparar-me. Segunda-feira
O que aprendi hoje deve ser tratado de um modo geral porque era muito
físico.
Contei para o Art tudo que tinha acontecido no fim de semana e o que tinha
sentido em casa a respeito de meu avô. Então Art disse-me para dizer adeus
a todos eles dizendo-lhes que gostava muito deles todos mas que iria seguir
o meu caminho e que podiam ficar descansados que eu não faria o mesmo
que o tio Mac.
Aí tive que ir mijar e Art disse-me para tentar puxar para cima em lugar de
abafar para baixo. E foi o que fiz com tudo que tinha. Senti a pressão ir
melhorando aos poucos até onde minha mente podia se desligar para o
corpo tomar conta. Isso aconteceu quando senti-me bem com o pau e a
minha coordenação respiratória era perfeita. Quando isso aconteceu foi
que eu percebi que todos aqueles anos eu vinha respirando mal.
Quando eu examinei mais aquilo percebi que eram os movimentos que eu
queria fazer no berço sem conseguir e por isso tinha aquelas crises infantis.
Sentiame bem no corpo inteiro com aquela respiração ritmada como se
estivesse trepando, mas eu estava de costas. Aquilo fazia desaparecer toda
a raiva ou frustração. Não consegui tudo nesse dia. Minhas extremidades
ainda estão rígidas, mas elas chegarão lá.
Terça-feira
Não aconteceu muita coisa hoje. Estava muito cansado da longa e exaustiva
sessão de ontem. Art percebeu e deixou- me ir depois de meia hora.
Quando cheguei em casa senti aquela mesma velha tristeza.
Quarta-feira
Disse a Art que queria ver o que era aquela tristeza e ele me mandou
mergulhar nela bem fundo. Foi o que fiz dizendo-me que não prestava, que
estava perdendo meu tempo e dinheiro com a terapia e que nada ia ser
diferente quando eu acabasse. Depois lamentei-me por não ter outra coisa
que pudesse fazer além de ensinar. E comecei a pensar tristemente que
não poderia continuar meus estudos nos cursos superiores porque não
tinha dinheiro; era muito velho e não bastante inteligente. Resumi todas
as minhas queixas dizendo que nada ia mudar e que nem valia a pena
tentar, já que eu era um caso perdido.
Art mandou que eu me aprofundasse ainda mais e eu respondi que estava
mergulhando num buraco escuro onde estava só sem ninguém que me
quisesse. Ele mandou que eu pedisse socorro a mamãe e papai. Eu fiz mas
não valeu nada. Ele disse que eu respirasse fundo e mergulhasse ainda
mais. Aí a minha barriga começou a doer. Disse a Art que não tinha
confiança em mais ninguém e que queria ficar só. Não gosto de gente em
volta de mim quando estou na fossa. Não sei o que poderão me fazer. Então
eu contei como me escondia embaixo do sofá quando era pequenino.
Escondia-me também no "closet" ao lado do quarto de dormir. Gostava de
lugares escuros e isolados onde pudesse ficar só. Disse-me que respirasse
mais fundo ainda. Eu respondi que o bebê estava se afogando. A cabeça
rodava-me e eu estava afundando. Art mandou que pedisse socorro a
mamãe e eu pedi. Ela estava ali bem parada. Então Art disse-me que
deixasse o bebê afogar-se. Eu senti um imenso peso no peito. Tinha muita
dificuldade para respirar. Art disse-me para não respirar mais e deixar o
bebê afogar-se. E eu deixei! Em silêncio. Sem uma lágrima. Frio como minha
mãe. Mas olhando em retrospecto eu não acredito que o bebê tenha se
afogado. Ele apenas foi sumindo e desapareceu de minha consciência.
Então Art pediu-me que tornasse a contar as poucas vezes em que mamãe
ou papai tinham mostrado algum amor por mim. Eu disse que vira
verdadeiras lágrimas nos olhos dela quando estivera muito mal com
pneumonia. Também contei que às vezes papai levava-nos para um passeio
a pé até à estação para ver o trem chegar. Quando era pequenino eu
costumava fantasiar o trem chegando todas as noites antes de eu dormir.
Via quando ele vinha chegando cada vez mais perto de mim e caía no sono.
Achava que desde que o trem chegasse eu podia adormecer. Disse a Art
que sentia alguma ligação entre o sonho e quando estava no "closet." Nos
dois casos estava no escuro e sozinho. Estava sempre sozinho.
Por mais que me esforçasse, não conseguia lembrar-me ter sido alguma vez
acariciado por meus pais ou recebido deles qualquer demonstração física
de amor. Lembrava-me de quando me encolhia junto dela para tirar um
sono no sofá. Lembrava-me esticando o braço para sentir a barba de meu
pai. Lembro-me quando ele fazia a barba e do perfume que usava.
Geralmente cantava alguma coisa e ria para mim. Eu quase tinha medo de
me encostar nele.
Quinta-feira
Disse a Art que estava desolado por haver deixado o bebê afogar -se ontem
sem verter uma só lágrima.
Expliquei para ele que era muito raro eu receber qualquer elogio por
alguma coisa feita. Ficava secretamente eufórico quando via meu nome na
página do esporte, mas quando alguém me falava naquilo eu ficava
encabulado. O mesmo aconteceu quando as pessoas souberam que eu ia
para a Fordham. Eu teria preferido que não soubessem de nada. Nunca me
orgulhava do que fazia pois não queria ser convencido. Art perguntou-me
por que fazia aquilo. Respondi-lhe que não queria ser diferente dos outros
já que o sucesso só poderia abrir mais o abismo entre meu pai e eu. Assim,
da mesma forma que meu pai, eu me havia conformado em atrair para mim
um sentimento de pena de parte dos outros.
Fiquei ali durante muito tempo conversando e pensando no coitado do meu
pai. Então vi o que estava fazendo e dei um grito de espanto. Art quis saber
o que era e eu então expliquei. "Pois aqui estou eu com pena de meu pai
porque ele não foi um pai melhor para mim. E também de nada adiantou
os outros sentirem pena dele. Pois continue, papai. Continue assim mesmo,
que já não faz diferença. Agora o problema já é seu e você nada mais pode
fazer. Continue sendo assim que já não me faz diferença. Já é tarde agora.
Adeus, papai, é muito triste dizer adeus. Suas intenções eram boas, mas eu
tenho de seguir em frente.
Quando cheguei em casa almocei e depois dormi um pouco. Na hora que
acordei senti uma certa disposição para estudar psicologia. E isso me
trouxe lágrimas aos olhos.
Sexta-feira
Tiramos o dia de folga e eu levei o meu garoto para nadar no Lago Gregory.
Foi muito bom mas eu não estava tranquilo. Ficamos deitados num barco
no meio do lago. Eu não conseguia me descontrair por completo. Voltei à
infância quando queria mamãe e ela não estava lá. Não era só ela em
pessoa que não estava lá. Era também a sua alma que não estava lá. A sua
alma fria e insensível que não deixava ninguém em dúvida a respeito de
amor.
Sábado — Grupo
Fui assoberbado pelo bebê que queria sua mamãe. Era esse o tal sonho
importante. É isso que vai acontecer e que venho me preparando para
enfrentar. Tentei entrar nisso hoje mas consegui muito pouco. Depois fiz
aquilo que estava acostumado a fazer sempre que minha mãe me
escorraçava. Tive uma crise de choro e mijei-me todo.
Segunda-feira
Hoje eu voltei à mamãe. Comecei a sentir aquela dor de ser desprezado e
de sentir-me só. Fiquei zangado e gritei. Gritei que odiava tudo e que
odiava minha mãe por fazer aquilo comigo. Depois chorei amargamente
sentindo o que perdia. Procurei alcançar mamãe e nada senti. Chorei
gritando por ela e nada senti. Contei para Art como tinha inveja das
crianças que recebiam atenção e consideração dos pais. Contei para minha
mãe como a vida com ela tinha que ser nas suas condições ou senão era a
condenação. Tudo muito triste e muito só.
Terça-feira
— Como está você? Começou Art.
— Ora, sinto-me na fossa hoje.
— Como assim?
— Ontem eu estava muito triste porque sentia-me só. Sempre senti-me
melhor com minha avó do que com minha mãe.
— Fale-me a respeito dela.
— Era uma grande alma. Paciente e compreensiva. Não estava sempre
zangando comigo como minha mãe. Quando tinha problemas sempre corria
para ela. Ouvia-me com paciência e apoiava-me. Sempre que ficava doente
na escola eu ia para a casa dela porque sabia que não ficava zangada
comigo e cuidaria de mim. Dava-me logo um caldo e algum remédio caseiro.
Deixava tudo que estava fazendo para me atender primeiro. Depois que o
vovô morreu ela mudou-se para um apartamento. Eu ia visitá-la e fazer
coisas para ela porque sabia que gostava de companhia. Depois que caiu e
quebrou a bacia ela se mudou para bem perto da igreja para não perder as
missas. Era também perto do meu colégio e eu ia sempre lá para ver se ela
estava bem. Se faltasse alguma coisa eu dava um jeito. Eu gostava muito
dela. Queria ter estado lá quando ela morreu.
— Pois então diga-lhe adeus agora.
E foi o que eu fiz chorando muito quase igual quando da morte de meu avô.
Agradeci-lhe por tudo que fizera por mim. Senti que era mais fácil chorar
por ela e meu avô do que por minha mãe e meu pai.
— Agora deixe o bebê chorar sua mamãe. Só chorar.
E então chorei. Não com palavras porque na noite anterior
eu estava deitado no sofá e lembrei-me que as palavras me afastam do
grande medo e do grande sentimento. Em lugar disso chorei com
implorações sem palavras e logo senti como se estivesse inundado por um
aguaceiro de primavera. Era sentimento puro sem palavras nem imagens
de vovô, vovó, mamãe ou papai. Era só a pura necessidade. Chorei com
todo o meu ser. Todo o meu corpo chorava soluçando e as lágrimas corriam
como se fossem sangue de uma ferida aberta.
Depois que parei de chorar estava banhado de felicidade. Art perguntou-
me por que e eu respondi que me sentia íntegro.
— O que quer você dizer com isso?
— Bem, há muitas formas para se explicar isso. Eu posso ir até o princípio
de meus sentimentos de quando nasci sem entrar em conflito com eles.
Não precisei deixar nenhum de fora para evitar o conflito. Agora tenho toda
a gama de meus sentidos. Tenho o meu bebê, e vou tomar muito cuidado
com elezinho. Vou ficar ao seu lado para apoiá-lo sempre que ele precisar.
A minha história toda já está em dia.
O dia inteiro senti-me como se fosse um broto que acabasse de surgir da
terra. Tudo era ternura para mim. Ondas de sentimento banhavam -me o
dia inteiro. Essa noite, no grupo, uma moça chorou porque sentia muita
dor só de estar viva. Começamos a conversar o que nós, da comunidade
Primal, devíamos fazer num mundo tão bárbaro. Eu estava bem perto de
uma Primal mas não sabia como chegar lá. Não quis dar uma saída falsa e
estragar toda a cena. Queria dizer a ela com toda a minha alma que eu
também tinha a Dor mas que, ainda assim, queria viver pois há calor e
alegria em podermos cuidar da Dor que sentimos dentro de nós. A Dor,
como todas as outras experiências, é uma coisa de momento. Se
aprendermos a cuidar dela, como amar e cuidar de nós mesmos, então a
nossa Dor, se for autêntica, irá conduzir-nos ao calor, ao amor, à alegria
seja lá o que for que esteja acontecendo neste mundo bárbaro. E isso
porque a Dor não está no mundo, e sim nos nossos corpos onde podemos
cuidar dela. E assim tudo dá certo. A vida torna-se um problema real que
nos encaminha para a morte somente quando mantemos a Dor afastada.
Eu não disse tudo isso, pois de pouco teria valido. Nós todos falamos muito,
mesmo quando o que temos a dizer possui um certo grau de validez. Por
isso vim para casa e escrevi, mas pensei que tinha voltado de mãos vazias
porque não consegui cair no transe Primal nem mesmo dentro de tanta
emoção.
Estou-me tornando íntegro agora. Já sou o meu corpo. Sou uma grande
sinfonia de sentimentos vários e ricos, todos eles harmoniosamente
percorrendo meu corpo e se complementando. O meu sexo, a estrutura e
a energia de meu corpo, minha raiva, meu medo, meu calor, minha tristeza,
minha alegria, tudo isso tem seu tempo e seu contexto, e todos servindo -
se mutuamente para atender às necessidades dos outros. Estou me
tornando integrado agora. Tornei a nascer de minha própria linhagem.
Agora eu sou o meu pai e sou a minha mãe. Sou o meu corpo e sou o que
eu sinto.
Quarta-feira
Hoje de manhã chorei de pura necessidade. Ouvindo o adagio do Quarteto
de Beethoven em Lá Menor, eu fiquei de pé no meio da sala de jantar e
chorei com a música, da mesma forma que deixei o bebê chorar dentro de
mim ontem na terapia. Nunca ouvi outra música que evoque um tal
sentimento de dor física. Não havia imagens nem palavras. Havia a pura
tristeza e dor na música e eu chorei apreciando as duas.
Quinta-feira
Sentei-me para trabalhar nas minhas notas. Cheguei até à página 45 sem
mamãe, triste e solitário. Pensei na viagem que estou querendo fazer até
em casa. Irei querer ver mais alguém além de mamãe e papai? Não. Vou
como terapia e não para divertir-me. Bem, é verdade. Quero ver a tia Millie
e o tio Les. Millie foi muito boa para mim quando eu era garoto. E o Les
também. Quero agradecer a eles como já agradeci ao vovô e à vovó que me
ajudaram quando eu estava triste e só. Como se fosse um órfão apesar de
ter pais. Bang! Caio numa triste e solitária Primal. Bang! É isso o que era a
Primal em Lá Menor: triste e solitária. Bang! Já sou real outra vez.
Sexta-feira
É o primeiro dia hoje, desde segunda-feira, que não tenho uma Primal. Mas
sinto uma aproximando-se. Hoje de manhã pensei em ir em casa para ver
qual a reação do pessoal. Sem emprego. Cabelos compridos.
Desmantelado. Já via mamãe com sua cara de preocupada. Depois pensei
comigo mesmo. Sabe o que acontece com essa sua preocupação, mamãe?
Ela me separa. Faz de mim um caso separado. Há algo errado comigo. É a
sua mania de imaginar alguma coisa errada comigo para você poder ficar
por cima. Se houver alguma coisa errada comigo você tira o corpo fora. Mas
você sabe o que isso fez comigo, mamãe? Fez de mim um estranho. Fez de
mim um triste orfãozinho com pais.
Foi assim que percebi como tenho medo de sair de dentro do saco burguês.
Tenho medo que mamãe e papai me deixem de fora. Estou com medo. UM
MEDO MUITO GRANDE. O meninozinho triste e solitário.
Segunda-feira / Sexta-feira
Voltei a Woodsville para visitar meus pais. Era a primeira vez que voltava
lá depois de dez anos ou mais. A visita confirmou todos os sentimentos que
tinham surgido na terapia a respeito deles. Fizeram uma cena de tristeza
ao serem entrevistado diante das câmaras. (Para o filme documentário que
está sendo feito de meu tratamento.) A relutância nada tinha a ver com
meu passado embora fossem interrogados somente sobre isso. Minha mãe
tentou me chatear por causa do divórcio, de haver abandonado a Igreja
Católica e de ter largado o emprego. Esperei para ver o que diria meu pai.
Nada, como de costume. Ele deixou ela falar. Então eu dei um basta na
chateação que estava me magoando muito. O comportamento de papai foi
típico. Então mamãe tentou chamar-me de maluco e aí não aguentei mais.
Depois disso as coisas começaram a melhorar na aparência, mas por dentro
era tudo o mesmo. Nessa noite resolvi sair só para ter uma folga. Depois
de sair de casa senti aquela velha sensação de órfão que já conhecia bem
de minha juventude errante.
Fiquei imaginando como tinha conseguido aguentar tudo aquilo naquela
ocasião.
Voltei à velha estação dos trens, ao rio, ao mato e à grande ponte.
Voltaramme todos aqueles sentimentos antigos do menino que buscava
refúgio no mato. Fiquei ali na ponte chorando pelo menino que naquela
ocasião não podia sentir a sua dor. Fiquei então ali e chorei para que ele
visse que agora já tudo estava acabado. Senti-me reconfortado e grato
àqueles lugares antigos por darem ao menino alguma ideia do que ele tanto
precisava.
Fui visitar meus tios e contei-lhe sobre meu tratamento pois sabia que eles
se interessariam e compreenderiam. Foi maravilhoso estar novamente com
eles. Senti uma enorme alegria em dizer-lhes o quanto lhes queria, o
quanto eles significavam para mim e o quanto haviam feito por mim na
minha adolescência. Eles ficaram satisfeitíssimos. As vibrações ficaram na
sala durante toda a noite.
Fui ao cemitério visitar as sepulturas de meus avós. Ajoelhei-me ali e
conteilhes tudo sobre minha terapia. Fiquei muito tempo ajoelhado e
chorando conversando com eles. Quando parei de chorar ainda fiquei mais
algum tempo em completo silêncio. Nunca tinha visto antes a sepultura de
minha avó. Já lá iam vinte anos desde a morte de meu avô. Para mim era
como se fosse apenas ontem. Meu tio Mac também estava ali. Meu pobre
tio Mac. Curvei-me sobre a lápide de meus avós e saí.
Minha volta ao lar trouxe-me mais para perto do calor que desejo sentir,
pois confirmou a realidade de minha Dor e de minha terapia. Agora só resta
passar pela Dor. Do outro lado está o calor. Agora já sei onde estão o calor
e o amor. Estão do outro lado da Dor. E eu tenho que atravessar. Já passei
muito pela Dor para compreender isso. Agora já está mais fácil para mim.
Nos meus velhos tempos eu não funcionaria nos melhores níveis para
conseguir obter a piedade. Sempre confundira piedade com calor e amor.
Nos meus velhos tempos eu queria ver as pessoas terem pena de mim.
Queria ter delas todo o amor e afeição que não conseguia de meus pais,
mas que precisava desesperadamente. Depois esperei que alguém
aparecesse para ter pena de mim (mamãe) e apoiar-me e socorrer-me
(papai).
Conclusões
Depois de três semanas de terapia eu passei por algumas mudanças
importantes.
Primeiro. Antes eu vinha fumando três maços de cigarros por dia. Parei de
fumar e nem tenho vontade de recomeçar.
Segunda. Antes eu bebia moderadamente. Frequentava bares duran te a
semana. Embora fosse raro beber demais, gostava de virar uns quatro ou
cinco uísques. Tudo isso passou.
Terceiro. Minhas atividades sexuais diminuíram consideravelmente. Antes
eu trepava pelo menos três vezes por semana. Desde que comecei a
terapia, já faz um mês e meio, só fiz isso três vezes. No entanto, embora
sinta que as duas primeiras mudanças são permanentes, ainda não vejo
claramente quais são os meus sentimentos quanto à vida sexual. Antes da
terapia eu levava muitas mulheres para a cama e era raro ser a mesma mais
do que uma vez por semana. Aquilo era uma forma para eu esconder a
minha dor profunda, a dor de ser desprezado, de ser um perdedor.
Ninguém pode ser um bom perdedor se olhar o fato bem de frente. É
preciso fugir dele. É preciso ter uma cobertura para esconder a vergonha
de ser perdedor. A minha cobertura eram as mulheres. Agora já não preciso
mais disso. Mas ainda preciso pensar nos meus desejos reais. É bem
possível que seja apenas uma mulher ou algumas ... não sei.
Quarto. Já não tenho problemas com o sono e nem sinto mais dores de
cabeça.
Quinta. Uma boa porção da tensão já cedeu. Ainda resta alguma, mas sinto
que está diminuindo.
Sexta. Minhas relações com as pessoas estão mudando. É uma coisa muito
lenta e sutil e difícil de descrever. Já não tenho mais aquela sensação de
ser dominado e passivo, com a mesma intensidade que tinha antes da
terapia. Aquela sensação de bicha também não é mais tão frequente.
Algumas vezes fico confuso sem distinguir entre a sensação de bicha e a
simples sensação de desamparo por não ser amado. A identificação das
duas é coisa nova para mim. Agora já posso ver a diferença na sensação de
estar só. Quando me sinto bicha eu não me sinto só. Sinto sempre uma
presença ominosa que me espreita nas sombras. Na outra sensação sinto-
me muito só, mas isso não me incomoda. É até mesmo agradável conforme
as circunstâncias.
Sinto-me mais distante em minhas relações com as pessoas, mas é uma
distância que parece estar cultivando uma nova capacidade para
intimidade. Ainda é muito incipiente e nova mas fico excitado com suas
possibilidades futuras. Nos seus efeitos presentes isso apenas me intriga.
Nas minhas relações com os outros, e também quando estou só, eu sinto o
profundo e indescritível sofrimento de todo o amor perdido de que eu
tanto necessitava na minha infância. Algumas vezes isso é tão grande que
chega a paralisar-me. Ainda sinto isso mais do que qualquer outra coisa. Na
maioria das vezes chego à beira das lágrimas ou então fico com muito
medo. Para a maioria das pessoas eu talvez pareça bem triste. Estou certo
que meus amigos não iniciados ainda pensam intimamente que não veem
grandes resultados da terapia em mim.
Para terminar, minha orientação está passando por uma completa
modificação, embora esse processo ainda não esteja completo. Mesmo
assim ainda é possível apontar algumas mudanças.
Uma das coisas é que já não sinto mais a necessidade de ser reconhecido
no mundo profissional, como também já não sou mais dominado pela
necessidade do amor de uma ou mais mulheres. Ainda não posso dizer com
toda a sinceridade se essas necessidades foram ou não substituídas. Em
alguns aspectos eu me sinto como se estivesse no limbo ou em alguma
espécie de terra de ninguém. Mas isso não é muito desconcertante porque
sinto as coisas novas que surgem. Embora ainda seja prematuro falar a tal
respeito, o fato é que isso está lá e está crescendo.
Sinto a mais radical transformação na minha estrutura de valores. Percebo
agora, cada vez mais, os valores que estão surgindo da dinâmica de meu
organismo. Esse processo é dirigido pelo corpo e não pelo espírito. Claro
que o espírito tem um papel, mas ele é apenas auxiliar. Seria melhor dizer
que ele não toma parte ativa no processo embora observe e registre o que
está acontecendo, da mesma forma que a ciência moderna já observou na
estrutura e na dinâmica do átomo e depois fabricou um sistema de prótons,
nêutrons, electrons e tudo mais para registrar o que foi observado.
O que estou tentando afirmar é que os conceitos de valores ou ideias com
os quais tentamos controlar nosso comportamento e experiências, não se
originam propriamente no pensamento. O fato de ordenarmos nossas
experiências em termos de ideias é o resultado de uma doença que nos
desliga dos processos orgânicos do ambiente e dos nossos mesmos.
Estamos sempre com pronunciamentos e exclamações tolas e insensatas
como "A mente sobre a matéria!" ou "Consiga controlar-se!" Essas e
inúmeras outras observações revelam a profunda divisão de nossa opinião
da vida, e o resultado é que tornamo-nos divididos do mundo ao mesmo
tempo que de nós mesmos.
Falando positivamente, estou afirmando que o valor dos conceitos ou
ideias pelos quais queremos ordenar as nossas vidas origina-se
propriamente nas experiências dos organismos das pessoas. Eles mostram
as necessidades do organismo para uma existência sadia, o que é uma outra
forma de dizermos que exprimem aquilo que realmente desejamos. As
ideias estão em jogo e elas representam um papel importante. Mas o que
é realmente importante compreendermos é que as ideias são derivadas da
experiência. Por exemplo, eu não imagino reunir-me a um grupo de pessoas
para depois juntar-me a elas. Em primeiro lugar eu experimento a minha
sensação de estar só. E depois então é que tenho a ideia. A natureza des sa
ideia é duplicar a experiência, é uma espécie de fotografia dela. Com isso
eu posso identificar a experiência, relacioná-la com outras e, finalmente,
agir de acordo com ela. Para mim isso é de importância capital. Isso
significa que meus valores e metas, aquilo que os homens tradicionalmente
consideram a coisa mais sagrada da vida, possuem realmente uma origem
na estrutura orgânica de meu ser. Portanto, será sumamente desagradável
para mim permitir que esse processo de formação de valores fique ao cargo
de minha mente ou da de qualquer outro, ou de alguma autoridade pública
ou ainda um sistema filosófico que se considere o dono da verdade.
APÊNDICE B

INSTRUÇÕES PARA OS NOVOS PACIENTES PRIMAIS

Para que a Terapia Primal seja eficiente, é preciso que o paciente coopere
seguindo sem desvios as instruções muito simples que passamos a
enumerar.
1. Quarenta e oito horas antes de começar a terapia é preciso abandonar
completamente o fumo e as bebidas alcoólicas, inclusive cerveja e vinho.
2. Não tomar remédio algum como aspirina, pílulas sedativas,
tranquilizantes, excitantes, estimulantes ou qualquer outro que possa
afetar sua condição. Pare com todas as pílulas quatro ou cinco dias antes
de começar a terapia e continue sem elas durante o período do tratamento.
3. Todo mundo já sabe o que é preciso fazer para aliviar a tensão. Pare com
isso! Isso significa desistir de alimentação compulsiva, roer unhas, fingir -se
ocupado e sempre com pressa, dormir demais, etc.
4. Vinte e quatro horas antes da terapia será preciso ficar inteiramente só,
preferivelmente num quarto de hotel perto do consultório. Não fazer
chamadas telefônicas, não receber amigos, não ver TV nem ir ao cinema.
Eliminar todas as distrações. Entrar no hotel na tarde da véspera do começo
da terapia e procurar não sair do quarto senão no dia seguinte na hora da
consulta.
5. Quando começar a Terapia Primal faça tudo que lhe disser o terapeuta.
De forma alguma poderá lhe acontecer qualquer coisa desagradável. Não
são usados truques nem são feitas afirmativas para causarem qualquer
efeito especial. Esta terapia nada tem a ver com ô Zen, o hipnotismo ou o
uso de qualquer medicamento. Ela é baseada em sólidos princípios
científicos já aplicados com sucesso em inúmeros indivíduos que se
submeteram ao tratamento.
6. A fase inicial da terapia é aproximadamente de três semanas, e durante
esse tempo ninguém deverá pretender trabalhar ou frequentar escola.
Geralmente, esse será o único tratamento individual necessário, podendo
no entanto haver alguma exceção que necessite horas de
acompanhamento de quando em quando. Durante a primeira ou segunda
semana os pacientes serão atendidos em consultas que poderão durar duas
horas. Todos podem desistir a qualquer momento que desejem já que as
sessões são abertas. Durante a terceira semana, conforme forem as suas
necessidades, os pacientes serão atendidos diversas vezes.
7. Depois da terceira semana o paciente será colocado num grupo pós-
Primal composto de pessoas que já passaram pelo tratamento. Esses
reúnem-se uma ou duas vezes por semana. São indispensáveis já que fazem
parte do plano terapêutico. Todos devem fazer o possível para comparecer
a essas reuniões pelo período de alguns meses. Depois disso estará
terminada a Terapia Primal.

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