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Imagens de duas cidades nas crônicas de Ricardo Paranhos

IMAGENS DE DUAS CIDADES NAS CRÔNICAS DE RICARDO PARANHOS

IMAGES FROM TWO CITIES IN THE CHRONICLES OF RICARDO PARANHOS

Valdeci Rezende Borges1


Cleber Jacinto Dias2

Resumo: Abstract:
Neste artigo, a intenção é abordar, por meio das In this article, the intention is to address, by means
crônicas de Ricardo Paranhos, as representações of Ricardo Paranhos chronicles, the representations
por ele elaboradas sobre algumas cidades da região, elaborated by him about some cities in the region
pensada como território e lugar de cultura. Por um as territory and place of culture. On the one hand, it
lado, atém-se à cidade goiana de Catalão, e, por is referred to Catatão, Goiás, and, on the other hand
outro, à mineira de Araguari. O objetivo é perceber to Araguari, Minas Gerais. The aim is to realize the
as imagens produzidas sobre elas, fruto do olhar do images produced about them, as a result of the writer’s
cronista, que focou alguns aspectos de suas práticas point of view that focused at some aspects of social
sociais, de sua cultura urbana letrada. practices, its literate urban culture.
Palavras-chave: cidades, representações, Ricardo Keywords: a city, representations, Ricardo Paranhos.
Paranhos.

1
Dr. em História pela PUC/SP. Prof. do Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão. Pesquisador
CNPq. E-mail: valdecirborges@terra.com.br
2
Graduado em História pela Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão.

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As cidades têm sido objetos de investigação his- PARANHOS, A IMPRENSA E AS LETRAS: POR
tórica sob diversos olhares. O espaço urbano, como ENTRE CRÔNICAS E MEMÓRIAS
produto das atividades humanas e objeto de cultura,
Paranhos nasceu em Catalão (GO), em 1866.
revela práticas nele realizadas, guardando marcas de
Estudou nos Colégio Nosso Senhor do Bonim, de
comportamentos e de relações estabelecidas no seu
Entre-Rios (Ipameri, GO); no Colégio Genettes, de
interior ao longo do tempo. Pesquisar as práticas, os
Paracatu (MG); no Colégio Moretzsonh (SP). Prestou
modos, os lugares e os objetos da ação humana em
exames no Curso Preparatório à Faculdade de Direito
algumas cidades da região, circunvizinhas de Catalão,
do Largo de S. Francisco, mas abandonou os estudos,
por meio das suas representações nas crônicas de Pa-
voltando a Catalão, por razão de saúde. Foi boêmio,
ranhos, possibilita-nos lê-las e captar as especiicida-
seresteiro, político, bom orador e advogado prático
des a elas atribuídas, conhecê-las através de seus ha-
(rábula). No Rio de Janeiro, publicou O Crime de
bitantes que foram, pelo cronista, eleitos e destacados
Catalão e Os Canibais, em 1898, tratando da violên-
como emblemáticos na construção de traços de uma
cia em sua terra antes de 1894, do assassinato de seu
identidade, de um modo de ser de tais sociedades.
pai por questões políticas, abordando “um ambiente
As representações tecidas sobre as cidades pro-
de terrorismo político, onde prevalecia o coronelismo
piciam-nos acessar experiências urbanas vivenciadas
armado de capangas”. Com a República, as relações
e apreendidas por seus habitantes, observar práticas
de força desenvolvidas em Goiás excluíram sua fa-
e imagens delas construídas no tempo e no espaço, as
mília da política. Atuou na imprensa como redator do
memórias acerca do vivido e desejado por aqueles que
jornal Goyaz e Minas, editado em Araguari e, ao que
as habitavam e que nelas deixaram suas marcas (PE-
parece, depois, em Catalão, onde colaborou no jornal
SAVENTO, 2007, p. 11).
Sul de Goiás. Por motivos políticos, mudou-se para
Minas Gerais, primeiro, em 1908, para Estrela do Sul
e, depois, em 1911, para Araguari, onde colaborou no
jornal O Triângulo nos anos de 1920 e 1930. Seus úl-

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timos anos de vida foram em Corumbaíba (GO), fale- tidade” nos costumes sociais, tratadas com saudades,
cendo em 1941(VIEIRA, 1972, p. 1-2; VAZ, 1984, p. pois contrapostas aos tempos “atuais”, da “civilização”
37; KLEIN, 1999). e do “progresso”. Nos tempos antigos, vistos sob a ótica
Na imprensa, publicou poesias e crônicas sobre da moral, “tudo era atrasado”, mas era “tempo do bem
vários assuntos. Tratou da oposição entre os tempos e da ordem”. Já no momento no qual escrevia, a civili-
antigos e modernos, da cultura letrada e popular, da zação dissolvia a tradição e seus valores.
urbana e rural, de práticas de sociabilidade, como o
batuque, a serenata, as cavalhadas, as festas religiosas [...] Mas aqueles tempos, apesar do atraso, tinham
de santo, as profanas de casamento e aniversário, de uma grande vantagem sobre os atuais: neles havia ca-
clube informal de diversão, da cachaça, de iguras de ráter em abundância, o que nos falta quase por com-
chefes políticos, de coronéis e de caboclos, como o pleto. Essa falta tem sido considerada como uma das
índio Afonso, de músicos, de capoeiras, de oradores, nossas crises morais graves. Será, porventura, o cará-
conferencistas e poetas, de poesia e conferências, de ter incompatível com a civilização? Se assim fosse,
visitas ilustres e honrosas, das cartas e cartões nas so- seria o caso de se preferir o atraso ao progresso.
ciabilidades intelectuais e pessoais, de vigários esqui- O homem de hoje se distingue pela inteligência e a
sitos, de brincadeiras infantis, de pessoas ilustres da e cultura; o antigo se impunha pela honestidade e o ca-
na cidade, de certos lugares, como casas, de coisas na- ráter. A civilização traz a dissolução dos costumes.
turais e sobrenaturais, de atividades esportivas, como Quanto mais civilizado o meio, mais corrupto (PA-
o futebol, do jogo do bicho, de fatos políticos. Por tais RANHOS, 1972, p. 337-8).
escritos, calcados na memória, podem-se conhecer fa-
cetas da cultura urbana da região. Se, por um lado, a inteligência e a cultura eram
Na crônica “Nos tempos antigos”, busca, na me- aspectos positivos da civilização, do tempo atual, por
mória traços característicos de épocas passadas e perdi- outro, a insegurança, a falta de ética e de respeito, as
das, marcadas pela presença de “caráter” e de “hones- incertezas, eram marcas do tempo do progresso. O
cronista recorda certos costumes antigos, de grande

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sentido social, que foram suprimidos pelo novo tem- Velhacaria, - progresso e civilização (PARANHOS,
po, da falta de escrúpulo para atingir o sucesso em 1972, p. 338).
tudo, a qualquer custo.
Para Paranhos, no novo tempo, quase se extin-
Antigamente um io de barba servia de documento; guiram certas posturas, como a humildade, a bene-
hoje, nem o próprio documento, por mais rigoroso volência e a honra, comuns nos tempos do “atraso”.
que seja tem valor. [...] Opondo aos tempos antigos, de pessoas e laços cor-
diais, sem hostilidade e velhacaria, da vida simples, do
Nos tempos antigos não se encontrava um homem
desfrutar de afeto e de herdar caráter, ediicou a ima-
velhaco; hoje é raro ver um que seja sério. Em co-
gem de um tempo nada inocente, cujas novas práticas
mércio, em política, em tudo, o não ter escrúpulo é
nefastas considerava como “avanço”.
hoje condição indispensável de sucesso. Quanto me-
nos escrupuloso o indivíduo, mais facilmente tem em Eis porque, apesar do atraso dos tempos antigos, tenho
fazer fortuna ou em galgar posições elevadas (PARA- tanta saudade deles. A vida era mais suave, mais ino-
NHOS, 1972, p. 338). cente. Não era esta falta de lealdade, este formidável
Os tempos do “atraso” eram os tempos da “vida avanço em que se vive, cada qual procurando passar a
mais suave”, mais “inocente”. Em contrapartida, o perna no próximo! (PARANHOS, 1972, p. 338).
avanço do novo tempo foi visto como da “falta de le- Os tempos antigos, do atraso, eram de vida or-
aldade” e do “passar a perna” no próximo: deira e pacíica. Já na cidade do progresso, o lugar e
a existência das pessoas eram marcados pela intran-
Hoje, a gente precisa ser velhaco, para se livrar dos
quilidade, hostilidade e práticas condenadas. A violên-
velhacos. Um homem sério e consciencioso não pode
cia não era sinal do atraso, mas, sim, dos tempos da
viver tranquilo nos tempos atuais; o ambiente lhe é
civilização, do hoje, no qual o cronista vivia. Assim,
completamente hostil.
Paranhos dista da visão de historiadores catalanos,
Caráter, cousa própria dos bobos da antiguidade.

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chamados por Ribeiro (2002, p. 22) de amadores, os a tais cidades. Delas, emergem imagens, dispersas e
quais caminharam em sentido contrário, ao associar fragmentadas, de tais lugares, e o foco recai, sobre-
violência e atraso em oposição ao progresso, à civili- maneira, nos aspectos intelectuais. As cidades foram
zação, à ordem dos tempos ditos “atuais”. apresentadas, sobretudo, como lugar de práticas inte-
Contrapondo ao que via a seu redor no presente, lectuais e de agentes socioproissionais, que lidavam
o cronista restaurava o passado por meio de suas me- com o universo da cultura letrada e a possuíam, ainda
mórias. Suas crônicas registraram e são repositórios que alguns aspectos materiais e tecnológicos também
de memórias de fatos da vida cotidiana da cidade de tenham sido apontados.
Catalão e das cidades circunvizinhas, por onde ele vi- “Nos tempos antigos”, encontra-se referência di-
vera. Para Nora (1993, p. 19), buscar um sentido para reta à cidade de Catalão, embora a abordagem possa ser
o passado na história-memória, ocorre a partir de uma estendida às outras cidades da região. O texto remete a
brecha entre o presente e o passado, expressa num an- anos próximos de 1891, quando Paranhos fora Deputa-
tes e depois. Paranhos, ao recorrer a certas lembranças do na Constituição Goiana. Nele, a imagem da cidade
contidas em sua memória, transpondo-as para o uni- está ligada ao “atraso” ao tratar dos meios de transporte
verso da crônica, produz registros da história do que e de deslocamento usados na integração entre Catalão e
via acontecer ou do que ouviu dizer. Goiás para realizar as atividades legislativas:

Nos tempos antigos tudo era atrasado, a começar dos


REPRESENTAÇÕES DE CATALÃO: UMA
meios de transporte, que eram o lombo do burro e o
CIDADE DAS LETRAS
encapotado carro de boi; de eixo rotativo e rodas com
Paranhos produziu uma série de crônicas so- cravas grandes em relevo, pesadão, ronceiro e de chiar
bre algumas cidades da região, tais como “Catalão” monótono. Que viagens custosas e demoradas! Quantas
(5); “Estrela do Sul” (2) e “Araguari” (2). Mas ou- vezes não fui eu de Catalão a Goiás, a cavalo, a im de
tras, mesmo com títulos diversos, também se referem tomar parte nos trabalhos legislativos! 80 léguas escan-

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chado, como uma tesoura aberta, no lombo de um burro ao longe e muito azul, morro que decantei na minha
trotão, dias e dias exposto à inclemência do sol, que me poesia Despedida de Catalão, escrita na ocasião em
punha vermelho como tijolo cru e me pilava por com- que me transferi para a capital de Goiás; avisto, quan-
pleto o apêndice olfativo (PARANHOS, 1972, p. 337). do bem límpida atmosfera, a locomotiva quando vai
subindo ou vem descendo a serra da Bocaina; vejo-lhe
Os tempos antigos, do “atraso”, foram caracte- os relexos das vidraças dos carros, apesar da distân-
rizados por se servirem de meios de locomoção de cia de 50 quilômetros, ou de mais talvez; vejo a noite,
tração animal, pela diiculdade da viagem, pelo des- o clarão produzido pela iluminação de Goiandira (PA-
conforto de tais meios e pelo longo tempo gasto nos RANHOS, 1972, p. 353).
percursos. O cotidiano urbano era marcado pela pre-
sença de burros, cavalos e carros de bois, cada qual Ferrovias, carros, urbanização são termos coro-
com seus traços, atravessando o espaço citadino; de lários no ideário do progresso e da civilização, símbo-
homens lidando com tais animais e objetos expostos à los de um tempo e parâmetros de medição do estágio
luz do sol e queimados por seus raios. de desenvolvimento de regiões e lugares (ARRUDA,
Já em “Irregularidade em tudo”, escrita após 2000, p. 99, 109). Paranhos remetia a um tempo após
1911, quando Paranhos morou no povoado de Araião a chegada da Estrada de Ferro Goiás na região, que
(Arião), “distante 30 quilômetros de Corumbaíba”, ocorreu por volta de 1913 em Goiandira e, depois,
alguns símbolos do “progresso” foram associados às em Catalão. Outro cotidiano urbano começava a ser
cidades de Catalão e Goiandira, como a locomotiva, desenhado, no qual os animais foram dando lugar às
os automóveis e a iluminação elétrica: máquinas, ao automóvel e à locomotiva, e, para tal, o
espaço citadino passava a ser provido com novos edi-
Que situação esplêndida a deste lugarejo! Das janelas fícios e equipamentos, como a estação ferroviária e a
da casa em que me acho hospedado descortino hori- luz elétrica, o que lhe dava nova aparência.
zontes vastíssimos, serranias longíquas, de peris os Mas, se Catalão e Goiandira foram associadas
mais caprichosos. Avisto o Morro da Saudade, muito a tais símbolos do progresso, Araião ainda tinha as

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marcas e sinais do antigo, como o uso de lamparina 1972, p. 380-6). O autor destacou pessoas inseridas na
a querosene, a ausência de luz elétrica e a presença cultura escrita, nas práticas intelectuais, administrati-
das crenças populares, que valiam como regra. Nesse vas e proissionais, valorizadas no mundo moderno e
sentido, dizia-se que, quando os galos cantavam muito reconhecidas pela sociedade estrangeira, nacional, re-
antes da hora acostumada, era porque, naquela noite, gional e também local.
uma moça fugiria. Para o cronista, era isso costume e Da primeira crônica, emerge a imagem da cida-
“crendice” antiga, “das mais absurdas e grosseiras”, de de antes da chegada da ferrovia. Mesmo assim, o
mas que tinha sentido no imaginário popular. Já nos cronista deu relevo a homens ligados às práticas inte-
espaços do “progresso e da civilização”, não era pre- lectuais e vistos como “autoridades”, gente de “valor”
ciso que os galos cantassem para que moças fugissem; por terem se tornado, posteriormente, nomes ilustres
elas já não andavam “por conta de preconceitos mo- na literatura, na política e na magistratura.
rais, muito menos por conta de cantigas de galos...”
e fugiam quer eles cantassem ou não (PARANHOS, A cidade, apesar de muito afastada dos grandes cen-
1972, p. 353-4). tros, isto naqueles tempos em que não havia estradas
No entanto, embora, por um lado, esse espaço e de ferro e outros meios fáceis de comunicação, teve
ambiente citadino tenha sido representado com mar- por autoridades homens de valor, homens que se tor-
cas de um aparato material considerado, de início, naram, mais tarde, vultos notáveis na literatura, na po-
“atrasado”, mas em “avanço” rumo à “civilização” e lítica e na magistratura. [...] grandes intelectuais, que
ao “progresso”, por outro, apontou-se o exercício das Catalão se orgulha – e com razão, de ter tido em seu
faculdades intelectuais, de criação literária, da existên- seio (PARANHOS, 1972, p. 380-1).
cia de uma esfera política e da inserção nela de alguns
O isolamento e a distância de Catalão das gran-
indivíduos, da existência de órgãos e de instituições
des cidades não impuseram a inexistência de ativida-
públicas e daqueles que ocupavam cargos, como se
des intelectuais. Mas, nos primeiros tempos, buscou
pode perceber nas crônicas “Catalão” (PARANHOS,
fora aqueles que deram ao lugar um “bafejo civili-

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zador” (RIBEIRO, 2002, p. 23). Paranhos mencionou Além de Guimarães, que, na busca das particu-
Bernardo Guimarães, romancista e poeta nacionalmen- lares regionais, tomou o índio e as práticas religiosas
te conhecido, que fora Juiz Municipal, na cidade, em goianas como objeto de representação literária, ou-
meados do XIX e ressaltou que esta, ainda que distante tros homens foram citados. André A. de Pádua Fleu-
dos grandes centros e usando meios de transporte e de ry, goiano de posições intelectuais elevadas, fora Juiz
comunicação associados ao “atraso”, poderia ser vista Municipal, “representante diplomático em Paris”,
como lugar de grande intelectualidade. Procurou elevar “presidente das províncias do Paraná, Espírito San-
a importância da cidade e do estado ao referir que Gui- to e Ceará”, Diretor da Faculdade de Direito de São
marães, para escrever dois de seus grandes romances, Paulo e tinha uma ilha muito “inteligente e culta”, de
inspirou-se em fatos acontecidos na região, o que a tor- “educação aprimoradíssima”. Coelho Bastos, também
nara conhecida nacionalmente por meio da literatura. juiz em Catalão, substituiu Virgínio H. da Costa, “juiz
politiqueiro e perseguidor”, mas de grande intelectua-
Fôra, como icara dito nas minhas crônicas anterio-
lidade, “muitíssimo talentoso e culto”. No Rio de Ja-
res, juiz municipal em Catalão Bernardo Guimarães, o
neiro, Bastos fora chefe de polícia, provando ser um
grande poeta e romancista, uma das glórias da intelectu-
dos “ornamentos da magistratura nacional”. Fagundes
alidade brasileira. Foi em Catalão que escrevera, salvo
Varella foi listado como grande nome da literatura
engano, dois dos seus muitos e apreciados romances,
brasileira que morou em Catalão, vindo do Rio com
o Índio Afonso e o Ermitão do Muquém. No primeiro,
seu pai nomeado juiz de direito em Pirenópolis (antiga
tornou conhecido em todo o país o obscuro sicário das
Meia-Ponte); era “mocinho de 15 anos e já escrevia
margens do Paranaíba, dando aos seus crimes bárbaros
versos” (PARANHOS, 1972, p. 381).
e impressionantes o caráter de verdadeiros rasgos de
Esses nomes e pessoas foram intelectuais e pro-
heroísmo, o que fez que o índio se tornasse legendário.
issionais de certo destaque no cenário cultural e po-
No segundo, tornou conhecida a origem da romaria do
lítico nacional e estavam, mesmo não sendo ilhas
Muquém, outrora mui lorescente e ainda não de todo
“legítimas” da cidade, de alguma forma, associadas
extinta (PARANHOS, 1972, p. 380-1).

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a ela. Paranhos estabeleceu tais laços visando enalte- so internato mineiro formador das elites do Império.
cer a cidade com a presença de tais iguras num dado Azevedo lá estivera “nos tempos em que esse estabe-
momento de sua história. Nomes associados a cargos, lecimento de ensino era o que havia de mais perfeito
atividades, cidades, estados e países considerados mo- no gênero, pelo que se tornou notável pela variedade
dernos, importantes e de destaque no cenário cultural e profundeza dos conhecimentos”. Tinha “produções
e político nacional e até estrangeiro. Mesmo sendo poéticas de valor”, muitas publicadas no Goiáz e Mi-
localidade “afastada dos grandes centros”, Catalão nas na seção literária “Arcadia Catalana”, mas “não
mantinha laços com o mundo moderno e civilizado, publicou todas, porque eram pornográicas a maior
era lugar de “grandes intelectuais”. Mas os referidos, parte delas.” (PARANHOS, 1972, p. 381).
de início, vieram de fora. Para o cronista, conforme O cronista referiu-se também a outros nomes,
Klein (1999), esses homens, reconhecidos por sua cul- como: José Netto de Campos Carneiro, médico que
tura letrada, possibilitavam construir certa identidade “exercia a medicina gratuitamente e atendia aos po-
para a cidade, projetavam-na e a tornavam conhecida bres” e fora Intendente Municipal. Afonso B. da Sil-
no estado e no país. va Paranhos, que estudara no “seminário de Goiás” e
Se Paranhos teceu a imagem de uma cidade de cursava medicina no Rio de Janeiro quando morreu;
“grandes” por dependência daqueles que vieram de fora visto pelo Arcebispo da Bahia como das “maio-
fora, na crônica seguinte, abordou uma “antiga gera- res glórias intelectuais” de Goiás. Alceu V. Rodrigues,
ção de intelectuais catalanos”, os quais lhe davam um farmacêutico, izera curso brilhante e era “poeta de
traço identitário. O foco voltou-se, então, para den- verdade”, deixando “belas produções, as quais fo-
tro, o que denota que já era possível, ao menos, tentar ram publicadas na seção “Arcadia Catalana”. Eliseu
fazê-lo. Segundo ele, “Sob o ponto de vista intelectual de Lima, professor, cursou humanidades no “Cara-
não tem sido essa terra das mais obscuras”. Meio aos ça”; Cristiano Victor Rodrigues estudou no Rio, não
intelectuais dessa antiga geração, mencionou Roque completou seus estudos, mas foi farmacêutico prático,
Alves de Azevedo, que estudou no “Caraça”, famo- “aplicava medicina com acerto e segurança, quando

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não havia médicos em Catalão”, e possuía “produções Na terceira crônica sobre “Catalão”, Paranhos
literárias inéditas, de valor”, não conhecidas e publi- ateve-se, também, a pessoas inseridas no universo da
cadas (PARANHOS, 1972, p. 381-2). cultura escrita e das práticas intelectuais. Fez menção
Nesse universo de nomes mencionados, de ativi- a uma nova geração de intelectuais do período, como
dades intelectuais e proissionais listadas, a formação Gastão de Deus, formado em direito e colaborador do
escolar da maioria ocorrera em grandes cidades, como Goiáz e Minas na “Arcádia Catalana”; Álvaro Para-
Rio e São Paulo, além daqueles que a tiveram no Ca- nhos de Mendonça, que estudou pouco tempo em São
raça, de Minas. Este Colégio, fundado pela Congrega- Paulo e foi encarregado do recenseamento da zona de
ção Lazarista, em 1820, e fechado em 1912, formava Catalão no governo de Epitácio Pessoa; Galeno Pa-
os adolescentes abastados, a elite mineira e brasileira, ranhos, advogado e jornalista; Anchises e Achylles
num espírito cristão, para atuarem nos destinos da na- Brêtas, professores no ensino secundário em Men-
ção. Sua educação humanística, junto a outros colé- des (RJ); José C. Paranhos, farmacêutico em Imparei
gios, como o Pedro II no Rio, dava distinção a seus onde era chefe político; Francisco Victor Rodrigues,
frequentadores (ANDRADE, 2000). médico no Rio; Wagner Estellita Campos, advogado e
Inserido no mundo moderno que possuía um jornalista, Diretor da Secretaria de Segurança Pública
olhar que valorizava a cultura letrada, suas formas de Goiás; Thareis e Jairo Campos, advogados, sendo
de expressão e seus modos de transmissão, como as o segundo promotor púbico numa comarca do Para-
instituições e as atividades a ela ligadas, que dava im- ná; Antonio J. Azzi, que não frequentou colégios, mas
portância à participação e à inserção na administração possuía cultura adquirida por esforço próprio, tendo se
pública e nos quadros dos governos, Paranhos, como “tornado conhecido como literato e um dos melhores
homem ilustrado, ainado com tais expectativas e im- jornalistas do Estado” e só depois estudando direito e
buído de tal visão de mundo, deu destaque às pessoas sendo considerado como “uma das maiores glórias in-
e às práticas que o representavam, que estavam com telectuais de Catalão”; Rivadávia Mendonça, formado
ele ainadas e o faziam avançar. em direito no Rio, residente em São Paulo, onde atu-

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ava na “estação radiográica Educadora”, fazendo “a processo de formação educacional e de exercício pro-
exposição e a crítica dos mais notáveis acontecimentos issional. Conforme o cronista, na intenção de inserir
mundiais, ocorridos na semana”. Segundo Paranhos, Catalão num universo cultural mais amplo, a cidade
havia muitos outros rapazes em cursos preparatórios não estava fora de tais circuitos, ela era uma malha
para ingresso em faculdades e outros, já acadêmicos, dessa rede. Homens de fora nela circulavam, e alguns
que viriam, em breve, “aumentar o número dos que da terra atuavam noutras paragens, havendo trocas de
se constituem verdadeiros ornamentos intelectuais de honrarias e empréstimo de prestígios.
Catalão” (PARANHOS, 1972, p. 383-4). Portanto, vislumbramos uma cidade na qual vi-
Nas crônicas sobre Catalão, até aqui tratadas, viam homens de letras, administradores, funcionários
Paranhos mencionou pessoas que ele valorizou por públicos e proissionais liberais, onde os ilhos das fa-
suas atividades intelectuais, políticas e proissionais. mílias de posse deixavam seus lares e de circularem
Nomes que, de uma forma ou de outra, estiveram as- pelo espaço citadino restrito, familiar e atrasado, quan-
sociados a instituições de ensino, cargos públicos, em- do chegava a hora de irem para a escola secundária e
presas de comunicação, atividades literárias, cidades para faculdade ou para trabalharem e exercerem as fun-
e estados. Indivíduos que foram vistos como gente de ções que sua formação permitia em outras localidades.
relevo e importantes na vida nacional, não raro sendo Eram os tempos “antigos” da educação e instrução da
adjetivados como “glórias” e “ornamentos”, como os prole das famílias abastadas realizada fora, nos quais
“melhores” ou “maiores”. Rio de Janeiro, São Paulo, predominava a escolarização dos ilhos do sexo mas-
Minas Gerais, Paraná, foram cidades e estados desta- culino em detrimento das ilhas. Os novos tempos vi-
cados nesse exercício de levantamento e elevação de venciados na cidade, chamados de “hoje” pelo cronista,
Catalão, de sua inserção num circuito de homens no- com a presença de educandários, abriram condições
táveis que circulavam por tais lugares. Rio, São Paulo para que as mulheres também recebessem instrução.
e Minas, eram lugares por onde transitavam as elites Entretanto, o autor não deixou de mencionar
brasileiras provinciais e, depois, estaduais, em seu também “‘a intelectualidade feminina”, referindo-se

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às várias professoras, elegendo-as como importan- Dentre as iguras da intelectualidade feminina,


tes iguras da educação em Catalão. Isso ocorreu na estavam Victorita Victor Rodrigues, uma das jovens
quarta crônica da série “Catalão”. É interessante notar, “mais inteligentes e cultas do Estado”, que estudou
aqui, as exposições sobre a leitura das condições em no Rio e fez “curso completo de humanidades”. Es-
que se dava a educação dos jovens nesse período, ob- tudou fora e, ao voltar, colaborou para a formação
servando, também, a menção de dois tempos distintos, da juventude em Catalão; fora professora do colégio
o antigo e aquele considerado atual, que indicavam as N. S. Mãe de Deus, contribuindo para a “prosperida-
mudanças ocorridas nesse campo: de desse conceituado estabelecimento de ensino”. Já
Theresila e Dorzinha Netto eram normalistas talento-
Era antigamente mui difícil a educação da mocidade,
sas; a primeira, “professora de português” no colégio
devido à falta de educandários no interior. Só os pais
abastados podiam educar os ilhos, pois para fazê-lo,
citado, e a segunda “escrevia admiravelmente”. Astréa
era preciso mandá-los para S. Paulo ou Rio, com des- Brêtas recebeu destaque pela escrita de um artigo so-
pesas formidáveis. A formatura de um rapaz icava bre a morte de uma parenta, o qual saiu na Gazeta
em dezenas e dezenas de contos de réis, uma fortuna. de Catalão. Por im, tornou-se freira e lecionou “num
Hoje, está facílima a instrução, porque existem esta- convento” de São Paulo. Nesse universo de mulheres
belecimentos de ensino secundário equiparados em inseridas no mundo da escrita e da educação, aparece-
diversas cidades do interior. E é por se ter tornado fá- ram ainda Mariazinha Netto Campos e Elvira Righeto,
cil a instrução, que Catalão vai, dia a dia, se apurando normalistas. A primeira fora “Diretora do Grupo Es-
sob o ponto de vista intelectual. É já crescido o nú- colar” e “professora de diversas matérias no Colégio
mero de moças que, à semelhança da nova geração de Mãe de Deus”, tendo “grande competência para o ma-
rapazes, aí se distinguem pela inteligência e a cultura gistério”. A segunda era uma “inteligência de escol”,
(PARANHOS, 1972, p. 384). um dos “expoentes da intelectualidade feminina de
Catalão”. Paranhos avaliou que ainda havia na cidade

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Imagens de duas cidades nas crônicas de Ricardo Paranhos

“outras muitas jovens catalanas inteligentes e cultas”, mórias, o autor quis mostrar que a cidade merecia ser
que não foram mencionadas nesta “alinhavada croni- lembrada pelas qualidades de seus habitantes letrados
quita, escrita currente calamo, à hora de se fechar o e como um lugar marcado pelo progresso. Para Klein
correio” (PARANHOS, 1972, p. 384-5). (1999, p. 57), almejava torná-la “conhecida em todo
Desse modo, podemos imaginar Catalão como Estado de Goiás e, se possível, nacionalmente”. Se
uma cidade, em cujo cotidiano, percorriam por suas aos homens foi comum associar seus nomes aos de
ruas diretoras, professoras, alunas normalistas e alunos cidades de outros estados, ao mencionar sua forma-
indo para a escola, inseridos num universo da cultura ção educacional e exercício proissional, o mesmo não
letrada e possuindo o conhecimento dela oriundos, ocorreu, em proporção igual, em relação às mulheres,
exercitando a prática da escrita em diversos contextos as quais, quase sempre, tanto se formaram quanto atu-
que o requeriam, fazendo avançar no lugar sua presen- aram na própria cidade.
ça e forma de ver e lidar com o mundo. O cronista registrava e resgatava certos elementos,
Ao analisarmos as crônicas “Catalão”, perce- fatos e facetas da vida cotidiana da cidade para construir
bemos que Paranhos, ao mencionar os nomes de tais uma memória da sociedade, “memória escrita, algo do
pessoas que viveram na cidade por algum tempo, ou real vivenciado, que icava impresso e arquivado”. Por
que eram ilhas da terra, procurou construir uma iden- isso, era um historiador, intérprete, que apresentava e
tidade cultural e intelectual para a cidade. A invenção recriava aspectos do acontecido, intelectual que narrava
de uma cidade de intelectuais, de letrados e familiari- e que vivia sob o primado da narrativa, que observava
zados com a cultura escrita, opõe-se à imagem difu- e colecionava vestígios do cotidiano e os contava de
sa no imaginário social de lugar violento e agressivo, modo circunstancial a seus leitores nas folhas dos jor-
conforme indicado na crônica que remete ao médico nais (BORELLI, 1996, p. 68).
Martinho Palmerston. Por meio das atividades e práti-
cas de tais indivíduos, as quais se constituem em me-

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IMAGENS DE ARAGUARI: DO manifestou estranhamento ante o precário e nada mo-


“FORMIDÁVEL ATRASO” AO “PROGRESSO derno quadro urbano com o qual se deparou. Mas, que
VERTIGINOSO” imagens produziu e fez circular sobre a cidade edii-
cando sua memória?
Já nas crônicas “Araguari”, Paranhos descreveu Arruda (2000, p. 41) pondera que a memória não
a cidade em dois momentos, em 1911 e depois em se resume a um conjunto de lembranças a respeito de
1937. Não raro, representou-a recorrendo igualmente um fato ou espaço, mas constitui-se num processo de
às noções de modernidade, de atraso e de progresso ao luta ao redor do que foi escolhido para ser guardado e
referir-se a essa sociedade, mostrando que seu discur- daquilo que deveria ser preservado, das imagens que
so estava ainado com aquele realizado nos grandes foram postas em circulação sobre determinado lugar
centros urbanos brasileiros, como Rio e São Paulo, e pessoas. Inserido, por certo, num campo de disputas
dentre outros, que enalteciam e perseguiam seus íco- entre cidades, que deine as representações que elabo-
nes. Chamou a atenção, principalmente, para os as- ra, o cronista delineou um quadro desolador acerca de
pectos materiais e intelectuais da sociedade. Araguari, talvez por esta já possuir transporte férreo,
A constituição de tais crônicas sobre a cidade mi- símbolo do progresso de uma era numa dada visão de
neira dista daquelas de Catalão. Se a respeito da última mundo, desde 1896 e, por, só em 1909, ter iniciado sua
nada se falou acerca de seu espaço físico e aspectos de expansão para chegar até Goiás. Para ele, a cidade, an-
urbanidade, dando destaque apenas às iguras de inte- tigamente, era a imagem do atraso, possuindo parcas e
lectuais e de proissionais considerados importantes, restritas condições de saúde pública e péssimas edii-
no que se refere à primeira, o foco direcionara-se às cações, sendo desprovida de serviços de infraestrutura:
condições materiais e de infraestrutura urbana, pouco
Quando me transferi para essa cidade, isto em 1911,
aludindo aos traços intelectuais. A cidade de Catalão
era ela atrasadíssima sob todos os pontos de vista. Ca-
do momento já possuía melhores condições, logo, di-
sario péssimo, ruas horrivelmente sujas e esburacadas,
versas da cidade vizinha? Paranhos, possivelmente,
intransitáveis, quase, na estação chuvosa. Asseio não
tendo Catalão como parâmetro de cidade progressista,

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Imagens de duas cidades nas crônicas de Ricardo Paranhos

havia, absolutamente. Raro os quintais em que se não professora que escrevia “çodade” e não saudade (PA-
engordavam porcos em chiqueiros. Os animais mortos RANHOS, 1972, p. 409-10).
jaziam podres nas ruas, até serem consumidos pelos Se de Catalão fora representada como cidade le-
corvos. Quando alguém protestava contra o formidá- trada ou de elite, de que permitia se construir a ima-
vel absurdo, passavam a ser removidos para o pequeno gem de lugar de vida intelectual e de cultura escrita,
córrego que divide em duas partes a cidade; mas a re- Araguari era a negação da letra. Paranhos escrevera
moção da carniça pouca ou nenhuma vantagem trazia 120 sonetos, em gênero humorístico, sobre a cidade,
à saúde pública, porque continuava a mesma infecção que foram publicados na folha local e muitos trans-
dentro no perímetro urbano, em pontos de muito trân- critos por diversos jornais de Minas e uma revista de
sito, como são os aterros (PARANHOS, 1972, p. 409). Belo Horizonte. Segundo o cronista, tais escritos não
Outros inconvenientes do precário espaço urba- tinham a intenção de ridicularizar a cidade, mas “lhe
no araguarino foram expostos. Condições negativas e corrigir os maus costumes”. Sua escrita, de intencio-
perigosas para o bem-estar da população, como uma nalidade pedagógica, possuía proposta educativa, ten-
“grande quantidade de animais soltos na cidade”, que do a missão de despertar a população e seus dirigentes
pastavam nas ruas e eram “um perigo, mormente para políticos para essas más condições de vida urbana, por
as crianças”. Por outro lado, “se aqueles tempos era vezes, tão comum e costumeira que nem era percebida
assim Araguari sob o ponto de vista material”, dife- (PARANHOS, 1972, p. 411).
rente não era culturalmente, “sob o intelectual era Portanto, baseando-se na crônica acima exposta,
uma miséria”: “O povo tinha mais medo de livro aber- podemos tecer um quadro da cidade de Araguari, em
to que de garrucha engatilhada. Ninguém se animava cujo cotidiano, os habitantes transitavam por entre ca-
a proferir um discurso ou a recitar um soneto numa sas e ruas sujas, esburacadas, cheias de lama ou poeira,
reunião.” Além disso, “O grupo escolar compunha-se animais mortos e capinzal, repletas de vacas, cavalos e
de um corpo docente ignorante, incompetente para o porcos, além dos cheiros que lhes eram peculiares. Tais
magistério, a começar do diretor”, sem falar de uma imagens adensavam aquela de um lugar onde os habitan-

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tes eram um povo avesso às letras e até o corpo docente a dia, melhoradas pelo calçamento. Uma das maiores
do grupo escolar era ignorante e incompetente para exer- provas de seu desenvolvimento progressivo é a Com-
cer as atividades de instrução e, assim, poder agir sobre panhia Melhoramentos de Araguari, a qual se formou
esse quadro. Conforme Arruda (2000, p. 184), a rejeição com o im de construir a ponte sobre o Paranaíba, no
e condenação aos modos de vida e hábitos, como a su- porto do Veloso, obra gigantesca prestes a ser conclu-
jeira e suas consequências para a saúde, a preocupação ída e na qual é despendido o vultoso capital de 700
com a higiene, com a organização espacial da cidade e as contos de réis! Em que outro lugar do interior já se fez
condições de moradia, reletem um conlito entre formas por iniciativa particular, tamanho esforço em benefício
de ver o mundo. Ocorria a negação de uma paisagem a publico? (PARANHOS, 1972, p. 411).
partir de outro modelo, de uma projeção de modo de vida
Bons edifícios, melhoras na infraestrutura e in-
urbana, moderno, e suas concepções.
vestimentos em vias de acesso à cidade, benefícios
Já em 1937, o autor descreveu a mesma cidade,
públicos e a presença da Companhia de Melhoramen-
outrora vista como atrasada, dando destaque a seu pro-
tos foram ressaltados. Davam à cidade novo aspecto,
gredir. Segundo ele, houve uma transformação comple-
moderno, e eram símbolos de um “progresso vertigi-
ta; a cidade cresceu admiravelmente e tornou-se “mo-
noso”. Fazendo parte do “empolgante [...] progresso
derna”, sua paisagem foi modiicada adequando-se a
de Araguari”, o cronista mencionou alguns “melhora-
uma visão de mundo progressista e desenvolvimentista.
mentos” como a construção de “inúmeros prédios de
Que diferença de Araguari daqueles tempos do de hoje! feição moderna, um grande e belo edifício na praça do
O de outrora impressionava pelo formidável atraso; o jardim”, o começo da ediicação do Cinema, “impor-
de hoje impressiona pelo progresso vertiginoso. Uma tante obra de arte [...] uma das melhores de Minas”,
transformação completa. A cidade vai num crescendo fruto da ação empreendedora de “um dos homens
admirável. As boas construções multiplicam-se, dando- mais dinâmicos e úteis do lugar”, Santos Laureano,
-lhe aspecto de cidade moderna. As ruas vão sendo, dia que merecia tornar-se nome de rua ou praça da cidade
(PARANHOS, 1972, p. 411).

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Imagens de duas cidades nas crônicas de Ricardo Paranhos

As construções com traços modernos, praças, rescos por seu interior, a exemplo de casas de diversão
jardins, a ediicação do cinema e a presença de ho- para homens que os costumes e a moral tanto conde-
mens empreendedores foram vistos como elementos navam (VIEIRA, 2005). Se o cinema de Araguari foi
e obras relevantes para alavancarem o progresso e as construído por uma Companhia dessas, o Cine Teatro
condições de vida e culturais da cidade. É importante Real de Catalão, nos seus áureos tempos, foi adminis-
notar a menção à uma Companhia de Melhoramen- trado pela Sociedade Melhoramentos de Catalão Ltda,
tos, pois, por meio de tais tipos de empresas, muitos constituída para administrar esse espaço de cultura,
serviços públicos foram realizados no Brasil, a partir conforme Lorenzi (http://nossocatalao.blogspot.com).
de meados do século XIX, quando esse tipo de em- Já no que se refere ao campo intelectual araguarino,
preendimento passou a ser possível. Segundo Borges Paranhos apontou também uma grande mudança, indi-
(2005, p. 131), José de Alencar já apontava que vários cando a presença de órgãos da imprensa e atividades jor-
melhoramentos urbanos, voltados para o aformose- nalísticas, além daquelas associadas à educação escolar.
amento e a higiene pública da cidade do Rio de Ja-
neiro, eram realizados por essas companhias. Para o Sob o ponto de vista intelectual, não é menos impres-
cronista, esse tipo de empresa desenvolvia-se podero- sionante o progresso de Araguari. Atestam-no seus
samente na cidade e a iluminação a gás, as estradas, os três jornais bem feitos e bem escritos; seus dois esta-
açougues, o asseio público, a construção de ruas, tudo belecimentos de ensino equipados; seu grupo escolar
estava sendo promovido por esse poderoso espírito de bem organizado; sua mocidade de ambos os sexos, in-
associação que agitava a cidade. teligente e culta e os bons elementos intelectuais que
Assim, Araguari e Catalão não fugiram desse para aí se transferiram e aí exercem a sua benéica
contexto, ainda que, num tempo bem posterior àquele atividade (PARANHOS, 1972, p. 411).
que Alencar descreveu. Do Rio oitocentista, esse “es-
Sendo assim, podemos imaginar o cotidiano da
pírito” espalhou-se Brasil afora e, até meados do sécu-
cidade de Araguari transformado em todos os termos.
lo XX, produziu empreendimentos inusitados e pito-
Onde antes se percebia um povo marcado, por vezes,

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pelo marasmo e indolência, agora, observamos uma Sul”, destacou também as pessoas inseridas no campo
sociedade próspera tanto material quanto intelectual- da cultura escrita e das práticas proissionais associadas
mente, buscando transformações e melhorias contínu- ao universo intelectual, numa abordagem próxima à de
as, as quais, almejadas não somente em Araguari, mas Catalão. Mas não foram apenas políticos, administrado-
no país todo nesse período. Eram as primeiras décadas res públicos e literatos ou os que circulavam em outras
da república, marcadas por mudanças econômicas, so- cidades, estados e países estrangeiros, como estudantes
ciais e culturais, tendo como ponto de partida os ideais ou proissionais, que Paranhos mencionou. Destacou
de “ordem e progresso”. homens ligados às atividades comerciais e inanceiras,
Sevcenko (1989, p. 237), remetendo-se à cida- remeteu à extração mineral e sua história na cidade.
de do Rio de Janeiro, nas décadas situadas em torno Mencionou a época em que se transferiu para o lugar
da transição dos séculos XIX e XX, assinalou que as (1908-11), exaltando também as boas pessoas e bons
mudanças implementadas nesse período e experimen- costumes, que lhes garantia melhores condições de vida
tadas na cidade transformaram-se em literatura, como (PARANHOS, 1972, p. 394).
izera Lima Barreto. De forma similar, Paranhos, ao Dos intelectuais da antiga Bagagem citados por Pa-
escrever, investiga seu tempo e sua sociedade, regis- ranhos, focamos a igura do Dr. Martinho Palmerston,
trando os anseios e as frustrações de uma época e de grande amigo do cronista e considerado “um dos mais
um povo ou de um grupo, como o ideário do atraso, do notáveis bagagenses”. Possuía fama como médico, por
progresso e da civilização. causa das “importantes curas que amiúde efetuava”.
Ao analisar a cidade de Araguari, em 1911, e de- Residia em Araguari, onde tinha consultório e circulava
pois em 1937, Paranhos mostra instantes particulares da pelas “cidades circunvizinhas”, às quais era “constan-
história vivida armazenados em sua memória, a qual o temente chamado”. O próprio cronista o invocou, certa
obrigava a se reencontrar em tais lugares e espaços aos vez, em Catalão, “num caso de doença grave na família”,
quais pertenceu, ainda que com um olhar de estranha- num tempo em que tais proissionais não eram muitos e
mento dessa sociedade. Já nas crônicas sobre “Estrela do nem eicientes (PARANHOS, 1972, p. 396).

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Imagens de duas cidades nas crônicas de Ricardo Paranhos

Sua pessoa lembra, ainda, outra igura valorizada suía luz elétrica e tinha grande fama de violenta, mos-
culturalmente no tempo, o orador, presente em vários trando como esse agia ao transitar à noite por suas ruas
momentos de sociabilidade. Era “orador de largos recur- e como lidava com a reputação que ela possuía:
sos”, muito “luente, imaginoso, de eloquência arrebata-
dora”, sendo, muitas vezes, forçado, pelas suas qualida- Quando fora a Catalão, toda vez que se via forçado
des, a produzir discursos em reuniões e festas, fosse qual a sair à rua, tarde da noite, a im de visitar algum do-
fosse o assunto, “por mais árido que fosse”. O orador ente, levava (a cidade ainda não era iluminada) uma
aproximava o mundo das letras e da oralidade através lanterna e a cada passo a erguia altura do rosto, para
de discursos, brindes e vivas. Numa época e lugar em que bem visto fosse, e dizia em alta voz, pausadamen-
que os livros eram escassos, os oradores e discursos orais te, para que fosse bem ouvido:
tiveram papel importante na constituição da sociedade, - Eu sou o dr. Martinho Palmerston, médico. Não vim
conduzindo e difundindo ideias ao público formado de aqui para matar; vim para dar saúde e vida.
auditores que era receptor das mensagens (PARANHOS, Isto como acima icou dito, ele repetia a cada instan-
1972, p. 397; CANDIDO, 1986, p. 223-6). te, não sei se por escárnio, ou se pelo receio de ser,
Mas Martinho representa ainda outra persona- por engano, vítima de uma agressão (PARANHOS,
gem comum naqueles tempos e em lugares do inte- 1972, p. 397).
rior, o rábula. Devido a sua intelectualidade, certa vez,
participou de uma audiência jurídica em Araguari, na Ao recordar-se de Martinho, o fez “com pro-
condição de advogado, mesmo sem formação, como funda saudade” dos tempos em que andavam juntos
era usual, nada entendendo de Direito Criminal. Fez nas “troças e farras inocentes”, em práticas culturais
longa defesa do acusado, assegurando sua inocência, e como as serenatas ao luar, o cantar de modinhas ao
o réu foi absolvido (PARANHOS, 1972, p. 397). som do violão, que eram experiências vivenciadas
Paranhos, ao falar das andanças do médico em por esses “boêmios incorrigíveis”. Desses Paranhos
Catalão, alude aos tempos em que a cidade não pos- dizia restar somente as “lembranças do passado”, as

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Emblemas, v. 7, n. 1, 63-84, Jan-Jun, 2010

quais eram matéria de seu exercício literário (PARA- crônicas, que tornam aspectos e traços de tempos pas-
NHOS, 1972, p. 397). sados e do presente em textos, mostram outras práticas
Ao citar nomes de pessoas ligadas às práticas inte- da vida cotidiana e da cultura urbana, como as festas
lectuais, o cronista não se restringia a elas e nem apenas religiosas de Nossa Senhora do Rosário e do Divino,
as enalteceu em si; produziu representações das cida- os batuques, as cavalhadas, o jogo do bicho, o futebol,
des em que estavam inseridas. As noções de “atraso” e dentre outros aspectos da sociabilidade dos habitantes
“progresso” remetem às mudanças que ocorreriam no da região, as quais são matéria de outro texto.
Brasil, ao imaginário tecido sobre elas, observadas em
tantas cidades e discursos, como o jornalístico e literá- REFERÊNCIAS
rio. Esses espaços e tempos experimentaram a oposi-
ção entre o atrasado e o avançado, a “tensão” entre o FONTES
costume, o herdado, e o que era modiicado, o novo. O
PARANHOS, Ricardo. Obras completas. Goiânia:
progresso é relativo às condições de cada lugar.
Ed. Cerne, 1972.
A cidade é sempre um lugar no tempo, um espaço
com reconhecimento e signiicação, com tempos ma- BIBLIOGRAFIA
terializados em uma superfície, objeto de produção de
imagens e discursos que a representam, de emoções, sen- ANDRADE, Mariza Guerra de. A educação exilada:
timentos, utopias, esperanças, desejos e medos, individu- Colégio do Caraça. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
ais e coletivos, que a tornam portadora de sentido e cons-
ARRUDA, G. Cidades e sertões: entre a história e a
tituem suas memórias (PESAVENTO, 2007, p. 14-5).
memória. Bauru:EDUSC, 2000.
Portanto, Paranhos, como nosso informante e
guia, nos leva a encontrar ainda, por meio de outras BORELLI, Silvia H. S. Ação, suspense, emoção. Lite-
crônicas, outras cidades e culturas que não apenas as ratura e cultura de massa no Brasil. São Paulo, EDUC/
práticas relacionadas à cultura letrada e escrita. Suas Estação Liberdade, 1996.

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Imagens de duas cidades nas crônicas de Ricardo Paranhos

BORGES, V. R. A cidade do Rio de Janeiro imperial: PESAVENTO, Sandra J. Cidades visíveis, cidades sen-
construindo uma cultura de corte. Estudos Ibero-ame- síveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de His-
ricanos, Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 121-43, jun. 2005. tória, São Paulo, v. 27, n.. 53, p.11-23, jan.- jun., 2007.
CANDIDO, Antonio. O escritor e o público. In: COUTI- RIBEIRO, José Eustáquio. História e identidade: o
NHO, A. (org.) A literatura no Brasil. 3 ed., Rio de Ja- processo de constituição historiográica de localida-
neiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986. v. 1, p. 219-30. des regionais... In: FREITAS, E. M. (org.) Produzindo
História, pensando o local... Uberlândia: Asppectus,
CHARTIER, R. Cultura escrita, literatura e história.
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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: ten-
D’ALÉSSIO, Márcia Mansor. Memória: leituras de
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tória, São Paulo, v. 13, no 25/6, p. 97-103, set. 1993.
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Aprovado para publicação em: 06/09/2010

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