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Entendendo a automutilação

A necessidade de conversar com os jovens sobre as dores que ele sentem e de começar a prevenção
em casa foi destacada pelo psicólogo Carlos Henrique de Aragão Neto, doutorando em Psicologia
Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília com o tema “Relação entre automutilação e
comportamento suicida”. Nesta conversa sobre automutilação, ele explicou que a prática, em
geral, começa na pré-adolescência, entre 12 e 13 anos, e segue até perto dos 30, com as meninas
sendo maioria. Na avaliação do especialista, é urgente que pais, educadores e cuidadores ensinem
os jovens a lidarem com frustrações e conflitos sem se machucar e sem machucar o outro. “É
importante para que se possa encarar os desafios do mundo”. Confira, a seguir, os principais
pontos:

O que é automutilação?
A Sociedade Internacional para Estudos de Comportamentos Autolesivos define da seguinte forma:
comportamento no qual eu provoco um dano a uma parte do meu corpo, sem a intenção de tirar
minha vida com essa lesão e esse é um propósito não validado socialmente. Esse é um conceito que
internacionalmente se usa para o comportamento autolesivo, que aqui no Brasil é chamado de
automutilação.

Qual a prevalência?
A maior prevalência vai da pré-adolescência até a idade do adulto jovem, ou seja, dos 12, 13 anos
de idade até os 25 a 30 anos. É uma estatística mundial que se repete. No Brasil, ainda não há
dados consistentes sobre esse tipo de comportamento. Em relação a gênero, os estudos
internacionais dizem que há uma leve prevalência entre mulheres, mas em alguns países essa
estatística é igual entre homens e mulheres. No Brasil, por evidências clínicas, há prevalência maior
entre garotas

Motivações
Existe uma escala internacional de um pesquisador canadense no qual foram identificadas 13
funções. Quando se pergunta a um jovem o que os leva a se mutilar, a resposta deles, a mais
prevalente, é: eu sinto uma dor emocional, uma angústia, uma dor no peito, uma dor na alma. A
expressão vai variar de acordo com a pessoa, mas vamos caracterizar como uma angústia muito
grande com a qual a pessoa não sabe lidar. E dizem: eu não tolero, é insuportável para mim naquele
momento e eu me mutilo para o alívio dessa dor emocional. É um discurso paradoxal para as
pessoas leigas imaginar como alguém precisa se machucar para tentar se livrar de uma dor
emocional, mas é exatamente essa a principal função que os jovens alegam. Em seguida, vem a
autopunição. Em geral, jovens com autoestima muito baixa que buscam uma espécie de punição. É
comum dizerem: eu não mereço estar aqui, eu não sinto nada, eu sou um peso… Então, muitas
vezes a pessoa se sente tão entorpecida que busca alguma sensação. São discursos realmente muito
difíceis de compreensão, muito duros, você escutar um jovem falando coisas dessa natureza, mas é
assim que as coisas funcionam para alguns deles.
Múltiplos fatores
Nós não podemos dar uma resposta simples ou simplista para algo tão complexo que gera uma
angústia dessa natureza. Não estamos falando de uma angústia comum, corriqueira. Não é algo
como eu tirei uma nota baixa na minha escola ou eu tive uma discussão com meu melhor amigo e
de repente fiquei triste um dia ou dois. Estamos falando de uma dor profunda, emocional, que
chamamos de angústia. Essas situações sempre são multideterminadas e nunca vêm em função de
um único fator. Você pode até ter um fator que desencadeia o início desse processo, de sentir aquela
angústia tão profunda naquele dia, naquela hora. Mas, quando você observa na clínica, você entende
que muito disso vem de fenômenos que ocorrem dentro da família, por exemplo, pais negligentes,
pais ausentes, pais violentos, todo tipo de violência, psicológica, física, sexual. Ou ainda o bullying
dentro da escola ou cyberbullying, que é o bullying nas redes sociais. É algo muito cruel e um
grande fator de risco para comportamentos autodestrutivos. Quando você tem o bullying presencial
juntamente com cyberbullying essa potência fica ainda maior. Temos também os fenômenos sociais,
por exemplo, estamos vivendo uma grave crise econômico-financeira e ver os pais em sofrimento
ou viver uma situação de desemprego pode contribuir. Todos esses fenômenos ocorrem em função
de uma interação muito complexa de vários fatores.

Contágio
Tem uma estatística internacional que mostra que em torno de 18% das pessoas que se mutilaram o
fizeram em grupo na presença de outros e relataram que começaram o comportamento autolesivo
por causa do efeito de contágio. Na adolescência, nós sabemos que existe uma necessidade muito
grande de se formar uma identidade própria e de pertencer a grupos. Quando você tem um grupo em
que alguns dos membros se mutilam, não é incomum que outros também comecem a se mutilar ou
queiram fazê-lo, como se fosse um ritual de entrada. É frequente, por exemplo, que em uma sala de
aula com um aluno se mutilando, 12 meses depois tenham três ou quatro, justamente pelo efeito de
contágio.

Vazio existencial
O vazio existencial é muito relatado por jovens que estão em risco. São aqueles jovens que dizem
para você o seguinte: a minha vida do jeito que está não tem sentido. E é exatamente nesse ponto do
vazio que se acredita que esse jovem é cooptado. A questão a se avaliar é: Como está o meu filho?
Como ele se sente na vida? Como está se sentindo conosco? O que que ele pensa? Que visão de
mundo ele tem? Quais são os valores que nós, como pais, responsáveis, professores e educadores
estamos passando? Porque sabemos que as principais referências, em tese, são os pais, os
cuidadores. Não podemos achar que as redes sociais são exclusivamente as culpadas pelos males do
mundo. Elas estão aí e vieram para ficar.

Prevenção
A questão parece ser o que podemos fazer para que as crianças desenvolvam habilidades
emocionais para lidar com as dificuldades do mundo, já que é impossível poupá-las dos problemas e
dores. A resposta não é unica, mas uma opção pode ser trabalhar com elas em casa e na escola para
que desenvolvam resiliência e habilidades sociais e emocionais para lidar com bullying e
cyberbullying, com perdas, com frustrações, para aprender a resolver conflitos sem se machucar e
sem machucar o outro. Tudo isso é importante para que a gente possa encarar os desafios do mundo.
Com a colaboração de Adriana Aragão,

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