Você está na página 1de 71

ESTUDOS

POLÊMICOS
COLOCAM
EM XEQUE O
PROTETOR SOLAR

TECNOLOGIAS DE
ÚLTIMA GERAÇÃO
MUDAM A VIDA DE
BRASILEIROS COM
A CIÊNCIA AJUDA VOCÊ A MUDAR O MUNDO ED. 359 FEVEREIRO DE 2022 DEFICIÊNCIA

A TRAGÉDIA
DA FOME
NO BRASIL, QUASE 120 MILHÕES DE
PESSOAS VIVEM EM INSEGURANÇA
ALIMENTAR E 19 MILHÕES NÃO TÊM O QUE
COMER. COMO CHEGAMOS A ESSE PONTO?
COMPOSIÇÃO
FEVEREIRO DE 2022

03
CAPA
POR QUE O BRASIL
VOLTOU AO MAPA
DA FOME
(Foto de capa: Anadolu
Agency/ Getty Images)

“Ações de como lidar com uma epidemia


foram propostas no século 15”
23 Entrevista com Priscila Aquino Silva

38
SAÚDE 50
O QUE A CIÊNCIA TECNOLOGIA

DIZ SOBRE A AS HISTÓRIAS DE


SEGURANÇA DO BRASILEIROS USUÁRIOS DE
FILTRO SOLAR PRÓTESES E ÓRTESES

65 QUER QUE EU DESENHE? PRESENTE RADIOATIVO


SOCIEDADE
TEXTO COLABORAÇÃO EDIÇÃO DESIGN
Marília Tomás Mayer Luiza Flavia
Marasciulo Petersen Monteiro Hashimoto

Pessoas pegam comida em


caminhão de pelanca, no Rio
de Janeiro. (Foto: Domingos
Peixoto/Agência O Globo)

A TRAGÉDIA DA FOME
QUASE 120 MILHÕES DE BRASILEIROS CONVIVEM COM A
INSEGURANÇA ALIMENTAR E MAIS DE 19 MILHÕES NÃO
TÊM O QUE COMER. NO PAÍS QUE É CONSIDERADO
O CELEIRO DO MUNDO, COMO CHEGAMOS A ESSE PONTO?

4

“Quando cheguei do palácio que é a cidade, os


meus filhos vieram dizer-me que haviam encon-
trado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu
fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu
filho João José disse-me: pois é, a senhora dis-
se-me que não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar.
Achei um cará no lixo, uma batata doce e uma
batata salsa. Cheguei na favela os meus meni-
nos estavam roendo um pedaço de pão duro.
Não tinha gordura. Pus a carne no fogo com uns
tomates que eu catei lá na Fábrica Peixe. Pus o
cará e a batata. E água. Assim que ferveu, pus
o macarrão que os meninos cataram no lixo.
Os favelados estão convencidos que para viver
precisam imitar os corvos. Amanhã não vou ter
pão. Vou cozinhar a batata doce.”

Poderia ser o relato de uma moradora de Pa-


raisópolis, favela na zona sul de São Paulo que
concentra mais de 100 mil habitantes, ou de
outras comunidades brasileiras. Mas o trecho
acima é de Quarto de Despejo: Diário de uma
Favelada, de Carolina Maria de Jesus. Publi-
cado em 1960, o livro traz um doloroso e real
retrato de como vivia a população da favela
do Canindé, na zona norte da capital paulista,
5

onde a autora mineira também morava. Sessenta e dois anos de-


pois, as descrições de Carolina sobre a miséria e a fome permane-
cem assustadoramente atuais.

Em Paraisópolis, a fome e a insegurança alimentar (termo que


se refere ao acesso escasso e irregular à comida) fazem parte
do dia a dia de muitas famílias, que dependem da mobilização
social para terem o que comer. Segundo Gilson Rodrigues, líder
comunitário e presidente da ONG G10 das Favelas, há quase dois
anos, a demanda por ajuda tem aumentado: todos os dias, a ONG
doa mil marmitas a uma fila que só cresce. No ápice de doações
recebidas, chegaram a oferecer 10 mil refeições em um único dia.
“Temos visto um aumento da fila da fome e de pessoas pedindo
cestas básicas, e a diminuição de pessoas ajudando. A situação
só tem se agravado”, relata Rodrigues.

Brasil afora, quem não consegue ajuda recorre ao lixo. Em 2021,


imagens dramáticas deram uma dimensão do problema: no dia
29 de setembro, uma foto de moradores coletando restos de os-
sos e pelanca de boi de um caminhão frigorífico em um bairro
da região central do Rio de Janeiro estampou a capa do jornal
carioca Extra (veja a imagem na página 3). Poucos dias depois, na
metade de outubro, portais de notícia veicularam um vídeo em
que moradores de Fortaleza aparecem catando lixo diretamente
de um caminhão de coleta às portas de um supermercado.

Esses registros são corroborados por um estudo populacional


6

Levantamento aponta que 19


milhões de brasileiros enfrentaram
a fome na pandemia (Foto: Aloisio
Mauricio / Fotoarena)

elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Se-


gurança Alimentar (Rede PENSSAN). De acordo com o levanta-
mento, 116,8 milhões de brasileiros passaram a vivenciar uma
situação de insegurança alimentar e 19 milhões enfrentaram a
fome durante a pandemia. Os dados foram coletados em dezem-
bro de 2020, ainda no primeiro ano da crise sanitária provocada
pela Covid-19, em uma amostra de 2.180 domicílios de todas as
regiões do país. Desde então, o cenário vem só piorando.
7

UMA HISTÓRIA DE FOME


Escancarada e agravada pelo contexto pandêmico, a fome é uma si-
tuação histórica no Brasil. E não foi Carolina Maria de Jesus a pri-
meira a apontar isso. Um dos pioneiros no ativismo contra a falta de
acesso a comida foi o médico, professor e escritor Josué de Castro.
Ele foi o autor do livro Geografia da Fome, publicado em 1946, que
investiga os aspectos socioeconômicos da situação e desmistifica as
causas determinísticas da fome no país. Por seu ativismo, exerceu
o cargo de presidente do Conselho Executivo da Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) entre 1952
e 1956, além de ter sido eleito deputado federal por Pernambuco e
atuado como embaixador na Organização das Nações Unidas, a ONU.

“A sociedade brasileira sempre conviveu com a fome, a pobreza e


a desigualdade social. Sempre foi levada por uma crença ou ex-
pectativa de que em algum momento o país vai se desenvolver,
uma promessa que nunca se concretiza. Isso é estrutural”, afirma
o economista Nilson Maciel, professor de Políticas Públicas na
Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador de pes-
quisa da Rede PENSSAN. Para o especialista, embora as causas
socioeconômicas da fome no Brasil estejam evidentes desde Jo-
sué de Castro, o problema só começou a ser tratado de forma
mais consistente nos anos 2000, durante o governo de Luiz Iná-
cio Lula da Silva. “Não é que a economia ou essa estrutura de
contrastes tenha se diluído ou sido combatida frontalmente”, ob-
serva Maciel. “O que aconteceu é que houve uma recuperação da
economia, mas junto a isso foram criadas políticas públicas que
8

preencheram esse vazio do Estado, que passou a ser atuante no


combate à fome e à insegurança alimentar.”

A nutricionista Elisabetta Recine, pesquisadora e integrante da As-


sociação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), também estabe-
lece os anos de 2003 e 2004 como principal marcos do combate à
fome no Brasil. Isso porque, nesse período, houve uma série de po-
líticas públicas direcionadas à alimentação, como o fortalecimento
da agricultura familiar, a criação de um programa de alimentação
escolar e o aumento da rede de restaurantes populares. “Outro
conjunto de medidas está ligado a aspectos sociais mais amplos,
como a unificação dos programas de transferência de renda dire-
ta para as famílias. Isso fez com que aquele valor aparentemente
pequeno gerasse um nível de estabilidade nos domicílios”, analisa
Recine, que foi a última presidente do Conselho Nacional de Segu-
rança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão consultivo da Presi-
dência da República extinto em 2019, no primeiro dia do mandato
presidencial de Jair Bolsonaro.

Essas percepções são amparadas pelos números. Segundo o inqué-


rito da Rede PENSSAN, em 2004, 64,8% das famílias brasileiras vi-
viam em uma situação de segurança alimentar, em que há disponi-
bilidade e acesso permanentes a alimentos. A partir daquele ano, o
cenário continuou melhorando, com o auge em 2013, quando 77,1%
dos brasileiros tinham condições de comer bem. Mas, cinco anos de-
pois, em 2018, a taxa caíra para 63,3%, chegando a 44,8% em 2020.
Da mesma forma, o índice de famílias em situação de insegurança
9

alimentar grave (a fome) passou de 4,2% em 2013 para 5,8% em


2018 e 9% em 2020. É como se todo o avanço conquistado a partir
de 2003 tivesse sido desfeito. Culpa da pandemia?

COMPARATIVO DAS ESTIMATIVAS DE (IN)SEGURANÇA ALIMENTAR ENTRE 2004 E 2020

Segurança alimentar Insegurança alimentar Insegurança alimentar Insegurança alimentar


LEVE MODERADA GRAVE

80% 77,1%
69,6%
70%
63,3%
60%
64,8%

50%
44,8%
40%
34,7%
30%
20,7%
20% 13,8% 15,8%
12,6%
12% 8% 10,1% 11,5%
10% 6,1%
9,5% 9%
6,6% 4,2% 5,8%
2004 2009 2013 2018 2020
PNAD PNAD PNAD PNAD INQUÉRITO
VIGISAN

Fonte: Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil. Rede PENSSAN, 2021.

SEM RENDA, SEM COMIDA


Embora a disseminação da Covid-19 tenha, sim, causado estragos
para além da saúde, culpar a atual crise sanitária por males que
nos afligem há séculos não faz muito sentido. “É verdade que com a
10

pandemia houve uma explosão de desemprego.


Mas isso não exime o Estado de atuar. O direito à
alimentação é constitucional”, defende a econo-
mista Nathalie Beghin, do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc), em Brasília. “A fome,
esse panorama que temos observado, não deve
ser atribuído à pandemia em si”, concorda Nilson
Maciel. “Claro, ela agravou o processo, tornou a
situação mais assustadora, mas isso é resultado
de outros [fatores] determinantes.”

No Brasil, a pandemia acirrou uma crise eco-


nômica que já vinha se desenhando há pelo
menos seis anos. Segundo o Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre o
último trimestre de 2014 e o último trimestre
de 2015, a taxa de desemprego saltou de 6,6%

“A sociedade brasileira sempre


foi levada por uma crença ou
expectativa de que em algum
momento o país vai se desenvolver,
uma promessa que nunca se
concretiza. Isso é estrutural”
Nilson Maciel, economista e coordenador de pesquisa da Rede PENSSAN
11

para 9,1%. A partir daí, a trajetória foi de crescimento até atingir


um primeiro pico de 13,9% no primeiro trimestre de 2017. Depois
de uma melhora pontual na situação, o desemprego voltou a su-
bir com a Covid-19. O novo ápice ocorreu no primeiro trimestre
de 2021, no auge da crise sanitária: 14,9% de desempregados. Em
termos absolutos, esse índice significa 14,8 milhões de pessoas
sem renda — e sem ter como levar comida à mesa.

“Muitas famílias ficaram desempregadas porque os negócios fe-


charam, vários setores da economia foram afetados e isso acabou
repercutindo na renda familiar”, analisa Maciel, que acrescenta:
“Só que, junto a isso, não se formou no país um movimento sólido
para criar uma compensação a esse processo em andamento”. E,
ao contrário do que muitos pensam, a solução da fome não passa
apenas por oferecer dinheiro ou gerar mais empregos, mas tam-
bém por mudanças no modelo de produção e na política.

ESCASSEZ NO
CELEIRO DO MUNDO
Afinal, como um país tão grande e fértil quanto o Brasil, considerado
o celeiro do mundo, deixa seus cidadãos passarem fome? A respos-
ta está no modelo de produção agrária, que privilegia commodities
voltadas para a exportação em detrimento de alimentos para con-
sumo interno. “A gente segue reproduzindo exatamente a mesma
coisa, com uma concentração fundiária e agrícola produtiva muito
pesada em cima de soja e milho. E disso decorre todo o problema”,
resume Silvio Porto, professor do curso de Educação do Campo na
12

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). “Arroz e fei-


jão ficam subjugados a uma opção de quem produz. O Estado não
tem política, não intervém e não faz absolutamente nada para que
os instrumentos de política agrícola revertam essa situação.”

Um exemplo recente: as chuvas que no início de janeiro castiga-


ram Minas Gerais, maior estado produtor de feijão do país, podem
favorecer a inflação e o abastecimento de alimentos. O Brasil tem
três safras da leguminosa, e você pode até pensar que, como hou-
ve problema na primeira, as outras duas serão induzidas pela alta
nos preços, o que favorece o produtor desse alimento. “Só que isso
não é uma correlação direta. Os preços estão, sim, muito bons, mas
o da soja e do milho estão melhores ainda. E eles têm muito mais
liquidez”, aponta Porto, que é membro do Instituto Fome Zero. “En-
tão, aquele produtor que pode direcionar sua produção, está mi-
grando ou arrendando para a soja. Isso faz com que o crescimento
ano a ano da área de soja esteja substituindo a área de produção
de [outros] alimentos, sobretudo arroz, feijão e mandioca.”

Disso resulta um paradoxo. Ao mesmo tempo em que o país é cam-


peão na produção agrícola, a população experimenta um aumento
nos gastos com comida. Em 2021, o Índice de Preços ao Consumi-
dor Amplo (IPCA), calculado pelo IBGE, foi de 10,06%, mais que o
dobro do de 2020. Para os alimentos em geral, a inflação anual foi
de 7,94% no ano passado. Como bem pontuou Carolina Maria de
Jesus, “atualmente somos escravos do custo de vida” — embora o
“atualmente” a que a autora se refira seja o final dos anos 1950.
13

“A gente tinha conseguido construir


um conjunto de políticas públicas
que deram conta de tirar o Brasil
do mapa da fome em 2014”
Nathalie Beghin, economista do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

Morador da favela Aglomerado


da Serra, em Belo Horizonte,
carregando alimentos em junho
de 2020 (Foto: Getty Images)
14

Uma das consequências é a piora nutricional das refeições. “A


inflação dos alimentos básicos está muito mais alta, então há um
empobrecimento na qualidade da alimentação, que já não era
tão boa. E isso resulta em um padrão alimentar com menos va-
riedade de nutrientes”, observa a nutricionista Elisabetta Recine,
da Abrasco. Reverter esse quadro demanda uma nova política
macroeconômica, que priorize a produção para o mercado brasi-
leiro. Mas também a volta de iniciativas públicas que deram certo
no passado e hoje se encontram ociosas.

Na visão de especialistas, faltam programas sociais e medidas


que busquem resolver o problema da fome — e pior: muitos que
existiam foram desmontados ou descontinuados nos últimos
anos. “A gente tinha conseguido construir um conjunto de políti-
cas públicas que deram conta de tirar o Brasil do mapa da fome
em 2014. Tudo isso começou a ser abandonado com Michel Temer
e totalmente pelo governo de Jair Bolsonaro”, analisa a econo-
mista Nathalie Beghin.

A partir da crise econômica no segundo governo de Dilma Rousse-


ff, o novo mote das lideranças políticas que a sucederam passou a
ser o das reformas. Mudanças nas legislações trabalhista e previ-
denciária, lei de austeridade para gastos públicos (teto de gastos),
entre outras medidas, foram feitas visando uma maior eficiência
estatal. Mas, para o professor da UFRB, representaram uma de-
terioração do papel do Estado no atendimento à população. “Tudo
15

isso é decorrência de uma opção política que é a falta de política. A


não política é uma política desse governo. E o governo sabe o que
quer, sabe o que está fazendo”, avalia Silvio Porto.

UM PROBLEMA DE TODOS
A esse caldo de fatores econômicos, produtivos e políticos que
formam uma superestrutura de desigualdade social e fome no
Brasil, acrescentou-se a crise sanitária. “A pandemia trouxe au-
mento de insegurança alimentar no mundo todo além do que era
‘natural’ ou previsível”, afirma Elisabetta Recine. Segundo o rela-
tório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo,
divulgado em julho de 2021 pela FAO, os estragos causados pela
pandemia contribuíram para que quase 10% da população global
tenha sido afetada pela fome em 2020, um total de 811 milhões
de pessoas. Em 2019, o índice registrado foi de 8,4%. Ainda se-
gundo o levantamento, mais da metade das pessoas que sofrem
com a fome vivem na Ásia (418 milhões), acima de um terço estão
na África (282 milhões) e uma proporção menor mora na América
Latina e no Caribe (60 milhões).

A insegurança alimentar também preocupa. De acordo com a


FAO, em 2020 mais de 2,3 bilhões de pessoas (ou 30% da popula-
ção global) não tiveram acesso a alimentação adequada. Em um
ano, esse indicador saltou tanto quanto nos cinco anos anterio-
res combinados. “É um constrangimento. Falaram que, passada a
pandemia, o Brasil seria melhor, mais solidário. Mas o que esta-
mos vendo é que as pessoas estão se acostumando a esse novo
16

normal com fome e desemprego”, lamenta Gilson Rodrigues, líder


comunitário da favela de Paraisópolis.

Os desdobramentos da fome e da insegurança alimentar não se res-


tringem aos efeitos fisiológicos de quem as vivencia. Quando endê-
micas, afetam o desenvolvimento de toda a sociedade, em aspectos
como educação, saúde pública, trabalho e economia. Mais uma vez,
algo que pode ser entendido nas palavras de Carolina Maria de Je-
sus. “A comida no estômago é como o combustível nas máquinas.
Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Co-
mecei a andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslizava
no espaço”, descreve a autora em Quarto de Despejo. “Comecei a
sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E have-
rá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?”

FUTURO INCERTO
Com o avanço da vacinação e a diminuição do número de mortes por
Covid-19, começamos a vislumbrar a luz no fim do túnel da pande-
mia. Para a fome, porém, as perspectivas não são otimistas se tudo
continuar como está. Na melhor das hipóteses, opina o coordenador
de pesquisa da Rede PENSSAN, as pessoas vão se manifestar em
relação a isso por meio de protestos pacíficos e eleições. “Olhando
para o outro extremo, pode ter uma onda de barbárie. E aí, sai de
baixo, porque vai ter uma população reagindo ao estado em que es-
tamos dizendo ‘pera aí, eu preciso comer’. E a violência passa a ser a
expressão desse tipo de desdobramento”, ilustra Nilson Maciel.
17

Os índices de famílias em
insegurança alimentar grave vêm
crescendo desde 2013 no Brasil
(Foto: Vincent Bosson / Fotoarena)

Para o professor da UFRB, a solução deve partir do Estado, por


meio de três políticas práticas e rápidas em termos de estímulo à
alimentação: o aumento dos recursos via transferência de renda, a
valorização do salário mínimo e a volta dos programas de compras
e estoques públicos de alimentos. “Já temos um bom acúmulo do
que se poderia fazer. É necessário, diante da crise, ter capacidade
criativa para gerar novos instrumentos. Principalmente no apoio
à agroecologia, que é a forma plena de garantir a biodiversidade,
apoiando a agricultura familiar camponesa. Esse é um elemento
que o Brasil avançou pouco”, considera Silvio Porto.

O caminho também passa por uma mudança de mentalidade: aca-


bar com o senso comum de que a fome é um problema individual.
“Com o que tem sido feito, a gente só tem chance de continuar a
piorar. Mas, se isso voltar à agenda política, temos total condição
de reverter a situação”, afirma a pesquisadora da Abrasco.
18

DESPERTAR DA POLÍTICA
Por meio do Ministério da Cidadania, o Governo Federal afirmou,
em nota a GALILEU, que vem “trabalhando sistematicamente para
ampliar o alcance das políticas socioassistenciais, superar a pobre-
za e minimizar os efeitos da desigualdade socioeconômica”. Segun-
do a pasta, mais de 45 milhões de pessoas tiveram atendimento
direto a partir de políticas públicas ao longo da pandemia.

São listados como exemplos o Auxílio Emergencial, que destinou


mais de R$ 300 bilhões a 66 milhões de pessoas entre 2020 e 2021;
e o Auxílio Brasil, que substituiu o Bolsa Família e, entre dezembro
de 2021 e dezembro de 2022, pagará R$ 400 por mês para 17 mi-
lhões de famílias. A cifra bilionária do Auxílio Emergencial ajudou
pessoas que perderam o emprego devido às restrições sanitárias
e teve impactos positivos na economia: o Centro de Pesquisa em
Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo
(USP) estima que, sem o benefício, o Produto Interno Bruto (PIB)
do Brasil teria caído entre 8,4% e 14,8% em 2020. Por outro lado,
a iniciativa não impediu que mais da metade dos brasileiros vi-
venciassem a insegurança alimentar, e que quase 10% passassem
fome, segundo a Rede PENSSAN.

O Auxilio Brasil, por sua vez, atende 17 milhões de famílias — sendo


que 3 milhões foram incluídas por uma determinação do Supremo
Tribunal Federal (STF), que obrigou o governo a zerar a fila do be-
nefício. Pagará R$ 400 até dezembro de 2022, quase o dobro do
19

ESTRATÉGIASDECOMBATE
OS PRINCIPAIS PROGRAMAS DE ENFRENTAMENTO À FOME NO PAÍS

PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS/ BOLSA FAMÍLIA/AUXÍLIO BRASIL


ALIMENTA BRASIL
O QUE É: O Bolsa Família foi criado em outubro
O QUE É: Instituído em 2 de julho de 2003, de 2003 com o objetivo de unificar e ampliar
visava promover o acesso à alimentação e os programas de transferência de renda já
incentivar a agricultura familiar, comprando existentes. Com ele, famílias poderiam acumular
alimentos diretamente dos produtores rurais até cinco benefícios, de acordo com critérios
e destinando-os a pessoas em situação de como número de filhos matriculados em escola
insegurança alimentar atendidas pela rede de e renda. O valor máximo que uma família
assistência pública e filantrópica. poderia receber até 2020 era R$ 205.
A QUEM ATENDE: Em 2020, beneficiou 22.587 A QUEM ATENDE: Em 2006, 11,1 milhões de
agricultores familiares na modalidade Compra famílias eram atendidas pelo programa,
Com Doação Simultânea. Ao todo, foram totalizando 45 milhões de pessoas.
distribuídas 56,6 mil toneladas de alimentos Rebatizado como Auxílio Brasil em 2021,
para pessoas atendidas em 1.831 unidades da prevê atender 17 milhões de famílias, ou
rede de assistência em todo o Brasil. aproximadamente 53 milhões de brasileiros,
SITUAÇÃO ATUAL: No fim de 2021, o Governo até dezembro de 2022.
Federal remodelou o PAA e o rebatizou de SITUAÇÃO ATUAL: O programa foi remodelado
Programa Alimenta Brasil. Com isso, houve e rebatizado pelo governo de Jair Bolsonaro.
uma alteração no limite máximo de compras Houve um reajuste no valor dos benefícios
diretas, de R$ 8 mil para R$ 12 mil. No projeto acumulados e, até dezembro, o auxílio será
de lei do orçamento federal, foram destinados de R$ 400. Não há informações sobre a
R$ 101 milhões para a iniciativa. continuidade em 2023.
20

BRASIL FRATERNO – COMIDA NO PRATO PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO


O QUE É: Doação alimentícia por meio
ESCOLAR (PNAE)
da isenção do ICMS. Empresas como O QUE É: Criado em 1955 com o nome de
supermercados e distribuidoras de alimentos Campanha da Merenda Escolar, hoje é
têm gastos na logística reversa de produtos considerado um dos maiores programas de
perto do vencimento. Ao destinarem esses alimentação escolar do mundo. Funciona
itens para bancos de alimentos e entidades por meio de transferências obrigatórias da
assistenciais, recebem a isenção no imposto União à rede pública de ensino dos estados e
estadual referente a essa operação. A municípios, que destinam os recursos para a
qualidade e aptidão de consumo dos merenda, contribuindo tanto para a segurança
alimentos doados são fiscalizadas por órgãos alimentar das famílias quanto para prevenir a
como Anvisa e Procons regionais. evasão escolar.
A QUEM ATENDE: O programa entrou em vigor A QUEM ATENDE: O PNAE atinge toda a rede
em novembro de 2021. Segundo o Governo pública de ensino, composta por mais de
Federal, desde setembro de 2020, quando 40 milhões de estudantes.
foi criada, a Rede Brasileira de Bancos de
SITUAÇÃO ATUAL: Desde 1998, o programa é
Alimentos destinou 73,5 mil toneladas de
gerenciado de forma descentralizada pelo
comida a 3,8 milhões de pessoas.
Fundo Nacional de Desenvolvimento da
SITUAÇÃO ATUAL: Recém-criado, ainda não Educação (FNDE), vinculado ao Ministério
se sabe como será na prática a fiscalização da Educação. Em 2021, foram destinados
da qualidade e aptidão de consumo dos R$ 4,2 milhões para escolas públicas de
alimentos doados próximos ao vencimento. todos os estados.

(Fotos: Getty Images)


21

valor máximo do antigo programa. O problema é que faltam mais


informações sobre como será o benefício no ano que vem, motivo
pelo qual muitos acusam a medida de ser mera estratégia para a
reeleição de Bolsonaro.

No âmbito da segurança alimentar, o Ministério da Cidadania


destaca a regulamentação do Alimenta Brasil como evolução do
antigo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). “O Alimenta
Brasil amplia limites de repasses para agricultores familiares e
aprimora a logística para fazer os alimentos saudáveis chegarem
à mesa dos mais necessitados”, afirma a pasta. O novo programa
aumenta o limite de compras diretamente dos produtores de R$
8 mil para R$ 12 mil. No entanto, o orçamento geral para ações
de aquisição de itens da agricultura familiar diminui a cada ano.
Em 2013, auge das medidas de combate à fome, o Governo Fe-
deral destinou quase R$ 1,4 bilhão para programas como o PAA.
Já em 2022, o Projeto de Lei Orçamentária Anual prevê R$ 213,6
milhões em ações do tipo.

O Ministério também cita o programa Brasil Fraterno – Comida no


Prato, que visa diminuir a burocracia e conceder isenção de impos-
tos estaduais a empresas que deem alimentos perto do vencimen-
to para bancos de doação. A ideia é abater custos com a logística
reversa para o descarte, destinando produtos a quem precisa. A
qualidade para consumo será fiscalizada pela Anvisa e pelos Pro-
cons regionais — embora ainda não se saiba como esse processo
acontecerá na prática. “A intenção é reduzir o índice de desperdício
22

de alimentos que poderiam chegar à população em condições de


vulnerabilidade e hoje são jogados fora”, diz a nota.

Por fim, a pasta aponta a reconstituição, em 2021, da Câmara In-


terministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), que
faz parte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio-
nal (Sisan). Junto com a extinção em 2019 do Consea, órgão ligado
ao Sisan, a participação de setores da sociedade civil nas decisões
públicas sobre combate à fome e à insegurança alimentar foi re-
duzida. Reconstituir a Caisan e o Sisan, portanto, é um importante
passo para reverter essa perda.

Em ano de eleições, quando há expectativas sobre o quanto o


trabalho para erradicar a fome se mostrará consistente e dura-
douro, o recado sobre o tamanho do problema também foi dado
por Carolina Maria de Jesus — que antes de se consagrar escri-
tora trabalhou como empregada doméstica e catadora: “O que
aviso aos pretendentes a política é que o povo não tolera a fome.
É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la.” E apesar de
tantos brasileiros a conhecerem há séculos, passou da hora de a
considerarmos intolerável.
23

ENTREVISTA

“Ações de como
lidar com uma
epidemia foram
propostas no
século 15”

COM Priscila Aquino Silva POR Marília Marasciulo


O reinado de D. João II rendeu
frutos duradouros à saúde pública
em Portugal (e até no Brasil). Em
tese de doutorado que virou livro,
historiadora analisa as mudanças
na medicina desde a era medieval

O
O fim do século 15 foi um período de transforma-
ções significativas em Portugal. Sob o reinado de
D. João II, o país viveu um período de paz com o
Reino de Castela, investiu no financiamento e incentivo à
expansão marítima e na retirada de privilégios da nobre-
za de terras, que detinha territórios. Mas, acima de tudo,
representou um ponto de virada no modo de se pensar
e fazer medicina, com a construção de dois grandes hos-
pitais — o Hospital das Caldas da Rainha e o Hospital de
Todos os Santos —, além da centralização estatal da as-
sistência aos enfermos.

A evolução dessas mudanças foi objeto de pesquisa da his-


toriadora e jornalista carioca Priscila Aquino Silva, mestre
e doutora em história medieval pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro. Sua tese foi lançada
em 2021 como livro, com o título O Príncipe Perfeito e a
Saúde do Reino — Medicina e poder em Portugal no sé-
25

culo XV, pela editora Autografia. Silva fez uma investiga-


ção em arquivos portugueses para traçar um panorama da
saúde na época do reinado de D. João II, entre 1481 e 1495.
“Na Idade Média, os hospitais tinham cinco, seis leitos, e
muitas vezes nem médico. Eram hospitais pequenos, que
não eram bem administrados e eram sucateados”, conta a
pesquisadora. Essa realidade mudou conforme novas epi-
demias da peste bubônica assolaram o país, de modo que
o regente entendeu a necessidade de um sistema de saú-
de mais robusto.

Mas, apesar de a estrutura implementada por D. João II ser


mais moderna, a medicina medieval era um reflexo de seu
tempo — muito baseada em astrologia e na crença de que
a doença era um desequilíbrio dos humores do corpo. Ain-
da assim, Aquino enxerga lições que podemos aplicar ao
mundo contemporâneo. “Precisamos entender que, apesar
de a gente ter uma realidade em que espiritualidade e saú-
de estão desvinculadas, a priori, existe uma importância
grande de que a espiritualidade e a saúde estejam vincula-
das com relação à saúde mental, e isso o homem medieval
fazia muito bem”, observa. “É muito interessante voltar a
esse período e refletir sobre como esse homem lidava com
essa indissociabilidade de uma forma muito melhor que
nós.” A seguir, ela fala sobre medicina medieval no reinado
de D. João II e o legado de mudanças e aprendizados que
perduram até hoje.
26

DE ONDE VEM SEU INTERESSE PELA IDADE MÉDIA?

Para os historiadores, o interesse pela Idade Mé-


dia é muito marcante, porque quando a gente pen-
sa na historiografia, quem fez a grande revolução
em termos de leitura, narrativa e história foram PRISCILA
AQUINO SILVA
os historiadores da chamada Escola dos Annales. é historiadora,
Eles pegaram quem veio antes, de uma historio- mestre e doutora
em história
grafia positivista, que se importava com datas, medieval pela
fatos, e construíram uma nova historiografia. Os Universidade
grandes historiadores dessa escola, que revolu- Federal Fluminense
e jornalista pela
cionou a história, eram medievalistas. Então, meu Universidade
interesse veio de conhecer essa revolução dentro do Estado do
Rio de Janeiro.
da historiografia e de ler historiadores como Marc É professora de
Bloch e Lucien Febvre, que são muito conhecidos ensino básico no
e abordam a Idade Média. E aí, dentro da Idade Instituto GayLussac
e de ensino superior
Média, fui trabalhando os documentos. E como é na Faculdade São
que eu cheguei no tema da saúde? Veio por causa Bento. Em 2021, sua
tese de doutorado
da imagem da capa do [meu novo] livro. foi publicada como
livro pela editora
A DA COROA COM O PELICANO? Autografia.

Isso. No mestrado, eu estudava a imagem de Dom


João II, e descobri essa imagem do pelicano. Ela é
muito incrível em termos de mensagem. No ima-
ginário medieval, o pelicano bica o próprio peito
27

para dar seu sangue aos filhotes famintos. É uma


imagem messiânica, que tudo tem a ver com Cris-
to no momento da salvação. Então achei muito
incrível essa imagem e essa associação do rei com
Cristo, do rei com o pai que dá o sangue para os
seus filhotes famintos. Quando fui ver onde es-
tava essa imagem, vi que ela aparecia em vários
lugares, entre eles os hospitais.

E no caso de Dom João II e da Dona Leonor, a rai-


nha, eles foram vanguarda nesse quesito: modifi-
caram e revolucionaram a questão assistencial. Na
Idade Média, os hospitais tinham cinco, seis leitos,
e muitas vezes nem médico. Eles eram construí-
dos por aquele cristão pecador que queria salvar
sua alma. Eram hospitais pequenos, que não eram
bem administrados e eram sucateados. Aí Dom
João II vê a população lamentando, várias ondas
de epidemias chegando a Portugal, e constrói duas
grandes obras hospitalares: o Hospital Real de To-
dos os Santos e o Hospital das Caldas da Rainha.

O QUE SIGNIFICA FALAR EM MEDICINA MEDIEVAL?

Apesar de a estrutura hospitalar que Dom João II


implementou ser muito mais moderna, a medici-
na medieval continua sendo medicina medieval.
28

Uma medicina baseada em muitas questões rela-


cionadas à astrologia, então eles acreditavam que
a peste poderia vir pelos ventos e astros, por um
cometa que passou. Era uma medicina muito ba-
seada na literatura hipocrática, de Hipócrates, que
afirmava que a doença era um desequilíbrio dos
humores do corpo. Para equilibrá-los, eles tinham
algumas técnicas, como a sangria. Também acre-
ditavam na dietética: comer certos alimentos em
detrimento de outros.

Tem o exemplo interessante da mezinha medieval,


um remédio que os boticários faziam. Dentro dos
hospitais, havia boticários, que são os nossos far-
macêuticos. E tem uma mezinha descrita em um
livro de Dom Duarte, um dos reis antes de Dom
João II, que é recomendada pelo físico real como
a melhor mezinha que existe contra a peste. Para
fazê-la, você pega um texugo, embebeda o texu-
go, mata o texugo e sangra o texugo. Depois, mói
a pele e os ossos do animal, mistura com o sangue
dele, um pouco de vinho e muitas ervas medicinais
e aromáticas, que eles chamavam de especiarias.
Esse suco é o que você vai dar para o doente.
29

UM ASSUNTO QUE VOCÊ TRAZ NO LIVRO É O DE QUE A SAÚDE ERA


ABORDADA DO PONTO DE VISTA CORPORAL E ESPIRITUAL. COMO
ESSAS NOÇÕES FORAM SE ENTRELAÇANDO NA IDADE MÉDIA?

Isso é muito interessante. Nos dias de hoje, a pan-


demia nos mostrou que a saúde mental está mui-
to ligada à saúde corporal, então essas questões
são cruciais para o mundo contemporâneo. Na-
quele período, não existia muito a separação que
nós temos hoje, de saúde corporal e saúde espi-
ritual. Tanto que, para entrar no hospital, você ti-
nha que se confessar. Eles achavam que o melhor
remédio para a peste, o primeiro remédio, seria a
confissão. O homem medieval é profundamente
religioso. Para ele, havia uma unidade de corpo e
espírito, então não poderia querer curar o corpo
se fosse pecador. Para o rei, por exemplo, não ti-
nha muita diferença entre construir um hospital e

“Uma coisa engraçada é


que, hoje, muitos hospitais
também têm igrejas. A
questão espiritual continua
muito presente”
Silva comenta similaridades entre práticas na Idade Média e atualmente
30

fazer uma procissão. Eram duas ações importan-


tes para a saúde da cidade; uma é corporal, a ou-
tra, espiritual. Tanto que, nos documentos, ele [D.
João II] prevê como ação para combater a peste a
promoção de um sírio, uma procissão.

MAS, AO LONGO DO TEMPO, NA PRÓPRIA IDADE MÉDIA, A NOÇÃO


QUE SE TINHA DE SAÚDE E ASSISTÊNCIA FOI SE TRANSFORMAN-
DO. QUAIS FORAM ESSAS MUDANÇAS?

Na Idade Média, a noção de assistência não pode


ser dissociada da questão da caridade cristã. A pró-
pria instituição do Hospital Real de Todos os San-
tos, lá no regimento, dizia que os doentes tinham
que orar não sei quantas missas para a alma do rei
Dom João II. O que a gente viu foram mudanças de
estrutura. E o livro mostra como se iniciou uma mu-
dança, que gerou o que a gente conhece hoje como
estrutura hospitalar. No Hospital Real de Todos os
Santos, o regimento, que é o documento que insti-
tui o funcionamento do hospital, prevê que o físico
— o médico — faça visitas aos pacientes duas vezes
por dia, de manhã e à tarde, e que ele prescreva.
Eles tinham uma tábua em que o físico prescrevia
o remédio, [isto é] a mezinha que o boticário tinha
que fazer para aquele paciente. Essa é uma estru-
tura parecida com o que a gente tem hoje.
31

AINDA EXISTEM SIMILARIDADES ENTRE AS PRÁTICAS DAQUELA


ÉPOCA E AS DE HOJE?

Uma coisa engraçada é que, hoje em dia, muitos de


nossos hospitais também têm igrejas. A questão
espiritual continua muito presente, além de outras
estruturas. Em uma palestra para estudantes de
enfermagem, eu falei um pouco do Hospital Real
de Todos os Santos, e uma de suas práticas era de
não deixar o doente ver o morto. Eles tinham um
tipo de corredor que ficava atrás dos leitos para
passar com os mortos. E os estudantes me disse-
ram que isso é feito atualmente também.

MAS POR QUE, AFINAL, A MEDICINA GANHOU TANTA IMPORTÂNCIA


NO REINADO DE DOM JOÃO II?

Acho que não foi exatamente Dom João II. Foi um


processo que veio junto com uma dinastia, a Di-
nastia de Avis. Ela fez a Revolução de Avis, que
centralizou o poder, formou o Estado de Portugal
enquanto Estado Moderno. E o que a gente viu
com Dom João II e com a Dinastia de Avis foi uma
tentativa de organizar a saúde, por entender jus-
tamente que é uma área muito importante, visto
que a população aumentou, a epidemia chegou.
A epidemia [de peste bubônica] foi algo crucial,
32

pois mudou a mentalidade do mundo medieval e


a forma como o homem via a morte e a vida.

MAS EXISTIA ALGUM INTERESSE OU PERCEPÇÃO DE QUE A SAÚ-


DE PODIA SER UM MECANISMO DE DEMONSTRAÇÃO DE PODER OU
CONTROLE?

Dom João II foi um rei muito querido pelos por-


tugueses. Ele perseguiu a alta nobreza com muita
força, porque queria centralizar politicamente o
poder. E centralizou também a saúde, os hospitais.
Com isso, ele retirou muitas prerrogativas e privi-
légios que essa alta nobreza de terras tinha. E por
que centralizar a saúde e a assistência? Num perí-
odo anterior a Dom João II, os pequenos hospitais
entraram em uma grande crise de administração,
havia muita corrupção, eram mal geridos, malcui-
dados e o dinheiro era desviado muitas vezes. E o
que Dom João II fez? Ele pegou o dinheiro e as ter-
ras que as pessoas tinham doado para hospitais e
centralizou tudo em um grande hospital.

FOIPOR ISSOQUE ELE RECEBEUA ALCUNHADE PRÍNCIPEPERFEITO?

Sim. Ele vinculou a imagem dele a Cristo, é uma


imagem cristocêntrica, tanto no caso dele se colo-
car como rei que tem como a imagem um pelicano
33

quanto porque o pelicano é uma imagem de Cris-


to. Ele é o “perfeito”, porque justamente centrali-
za o poder e olha a população, os mais pobres. O
hospital da Idade Média não era para ricos. Esses
recebiam visitas do físico em casa. O pobre não
tinha essa condição, ele tinha que ir para o hos-
pital. E, além disso, Dom João II e toda a Dinastia
de Avis tinham uma vinculação muito forte com
as ideias franciscanas. O franciscanismo, dentro
da Igreja Católica, tem todo um ideal de valorizar
a pobreza, de que o pobre é o espelho de Cristo,
é um segundo Cristo, então acho que aí também
tem uma grande explicação para a ideia de por
que ele quer assistência.

UMA DESSAS IDEIAS FOI A CRIAÇÃO DAS SANTAS CASAS, QUE FOI
UMA OBRA DE DONA LEONOR. E ATÉ HOJE AS SANTAS CASAS SÃO
MUITO IMPORTANTES PARA O SISTEMA DE SAÚDE PÚBLICA BRA-
SILEIRO. COMO VOCÊ AVALIA ESSA RELAÇÃO ENTRE MEDICINA,
RELIGIÃO E POLÍTICA DE ESTADO?

As Santas Casas de Misericórdia têm uma ques-


tão religiosa muito forte. Quando a gente olha
um documento da Santa Casa de Misericórdia de
Portugal, a primeira, em Lisboa, ela não tem a in-
tenção evidente de cuidar da doença. A intenção
inicial era fazer as 14 obras de misericórdia, e ela
34

focou na causa dos presos. O preso na Idade Mé-


dia não tinha direito nenhum. Se não tivesse uma
família que o sustentasse lá dentro na prisão, ele
morria de fome, porque o Estado não trazia nada.
Mas depois as Santas Casas acabaram abrindo
para outras obras de misericórdia e focando na
obra da saúde, de assistir os doentes. E aí, quan-
do temos o Império Português, que se formou
depois disso, aonde Portugal foi, você tem uma
Santa Casa de Misericórdia.

ENTRE TODAS ESSAS MUDANÇAS QUE DOM JOÃO II REALIZOU,


QUAIS FORAM AS MAIS SIGNIFICATIVAS PARA O MODO DE SE PEN-
SAR E PRATICAR MEDICINA?

Existem rupturas e permanências. As rupturas fo-


ram inúmeras. A questão de separar uma ala para
os doentes, de ter enfermarias separadas para
mulheres e para homens, ter um corpo de profis-
sionais de saúde contratados e frequentando o
hospital, ter o físico da casa, o boticário dentro do
hospital, uma equipe de enfermagem. Dom João II
é vanguarda em Portugal, mas na verdade o Hospi-
tal Real de Todos os Santos se inspirou nos hospi-
tais italianos, que já tinham essa estrutura. Então,
ele fez essa mudança estrutural de um hospital
que tinha toda uma essência medieval, porque a
35

“Enfrentar a morte, a epidemia,


o desconhecido requer um
governo forte. Como no caso
de Dom João II, que obedecia
à ciência da época”
Priscila Silva faz um paralelo entre o governo português medieval
e a gestão brasileira da pandemia de Covid-19

medicina aplicada ali continuava sendo com san-


grias, purgantes e clisteres [injeção de mediamen-
tos pelo ânus], mas ao mesmo tempo trouxe uma
estrutura muito nova e que acabou permanecendo
no mundo por séculos.

Além disso, podemos ver a relação dele com a epi-


demia. Muitas coisas parecidas com o que a gen-
te conhece hoje. Eles também faziam quarentena,
não deixavam o doente entrar em uma cidade...
Eles já tinham a noção de contágio, então o hos-
pital para os pacientes de peste era um hospital
específico, não era o mesmo dos outros doentes.
A mesma coisa que a gente faz hoje com as alas
de Covid-19, por exemplo.
36

É IMPOSSÍVEL NÃO ENXERGAR UM PARALELO ENTRE AS MEDIDAS


QUE ELE ADOTOU E AS QUE O GOVERNO FEDERAL BRASILEIRO NÃO
ADOTOU DURANTE A PANDEMIA. A GENTE ESTÁ PIOR EM 2021 DO
QUE PORTUGAL ESTEVE NO SÉCULO 15 COM A PESTE?

Acho o seguinte: Dom João II cuidou das cidades


do reino de uma maneira muito forte, até por-
que ele já conhecia a peste. A Covid-19 era uma
doença completamente nova [em 2020], a gente
não a conhecia, o que não é desculpa para nada.
Epidemia é epidemia. Mas, no caso de Dom João
II, já se conhecia há cem anos a peste bubônica.
Então, ele já sabia os efeitos, sabia que tinha que
lidar com quarentena, tinha muitos cuidados que
nós não assistimos na nossa atual epidemia de
Covid-19, realmente.

Podemos fazer relações até com os remédios. A


gente ri das mezinhas do homem medieval, mas o
que se viu de misturas para tratar a Covid-19 tam-
bém não está no gibi. Enfrentar a morte, enfrentar
a epidemia, enfrentar o desconhecido é algo que
requer um governo forte — como no caso de Dom
João II, em que os físicos davam aconselhamento
e ele os obedecia, obedecia à ciência da época.
37

PARA VOCÊ, QUE LIÇÕES PODERÍAMOS TIRAR DAS MUDANÇAS


QUE ACONTECERAM NA SAÚDE DAQUELE PERÍODO E APLICAR NO
CENÁRIO ATUAL?

A gente precisa entender que, apesar de termos


uma realidade em que espiritualidade e saúde
estão desvinculadas, a priori, existe uma impor-
tância grande de que a espiritualidade e a saúde
estejam vinculadas com relação à saúde mental, e O PRÍNCIPE
PERFEITO E A
isso o homem medieval fazia muito bem. Para ele, SAÚDE DO REINO
não havia nenhuma divisão entre corpo e mente. É Priscila Aquino
Silva (editora
muito interessante voltar a esse período e refletir Autografia,
sobre como esse homem lidava com essa indisso- 390 páginas,
R$ 60)
ciabilidade de uma forma muito melhor que nós.

E, além disso, revelar que muitas ações de como


lidar com uma epidemia foram propostas há mui-
to tempo, desde o século 15. Não era para a gente
ter resistido tanto a isso por causa de questões
econômicas, até porque depois de morto não tem
economia para ninguém. As epidemias ao longo
dos séculos foram tratadas com padrões, proto-
colos que já são muito antigos e que deram certo
naquele período — e que poderiam ter funciona-
do também para a gente.
SAÚDE
XTO Marília Marasciulo
TEXTO ÃO Luiza
EDIÇÃO Lu Monteiro DESIGN Flav
Flavia Hashimoto

Sim,
use
filtro
solar!
PESQUISAS INDICAM RISCO DE TOXICIDADE DE SUBSTÂNCIAS
ENCONTRADAS NOS PROTETORES, MAS ESPECIALISTAS ALERTAM PARA
PERIGO MAIOR: DEIXAR DE USÁ-LOS
(Fotos: Getty Images)
H
Há milênios a humanidade busca formas de se proteger dos raios
solares. No Egito, os principais produtos eram a mamona, o jas-
mim e o óleo de amêndoas. Na Grécia Antiga, os atletas olímpicos
besuntavam seus corpos nus em misturas com óleo de oliva. E
na era moderna, quando frequentar a praia virou um hábito de
lazer, a proteção passou a ser física — basta olhar fotos antigas
e ver as pessoas com roupas do dia a dia ou trajes de banho que
iam da cabeça aos pés.

Foi só em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, que uma subs-


tância realmente eficaz foi criada. Os soldados norte-americanos
que combatiam em territórios no oceano Pacífico sofriam muito
com as queimaduras, até que um farmacêutico chamado Benjamin
Green produziu um creme viscoso, de cor avermelhada e feito à
base de petróleo. O produto foi logo adotado pelo exército e de-
pois teve sua fórmula aprimorada para o grande público, que hoje
tem acesso a uma variedade de níveis de proteção e texturas ofe-
recidas por diferentes marcas.
40

Mais recentemente, porém, alguns ingredientes dos filtros solares


passaram a ser questionados por parte da comunidade científica.
A partir principalmente do início dos anos 2000, começaram a sur-
gir estudos que apontam possíveis consequências ruins do uso de
protetor à saúde e ao meio ambiente. Eles sugerem, por exemplo,
que a reação da luz solar com as substâncias químicas dos filtros
gera subprodutos potencialmente tóxicos quando absorvidos pela
pele. Ou ainda que esses compostos, quando entram no mar, são
prejudiciais ao ecossistema.

Seria a hora de atualizar aquele famoso poema que, no início des-


te milênio, fez sucesso no Brasil na voz do jornalista e apresenta-
dor Pedro Bial? A resposta pura e simples é não. “Em termos de
saúde pública, o uso do protetor solar para prevenir contra o cân-
cer de pele é muito importante”, destaca o dermatologista Sérgio
Schalka, coordenador do Consenso Brasileiro de Fotoproteção. “A
única alternativa para as pessoas é voltar a ter o comportamento
do século 19 de não sair ao sol ou ir à praia vestido completamente.
Enquanto o benefício é claro e relevante, o risco é bastante discu-
tível.” Mas isso não significa que não seja necessário aprofundar as
pesquisas e, caso a toxicidade das substâncias se confirme, encon-
trar substitutas — o que já vem sendo feito por muitas fabricantes,
apesar de o assunto ainda ser rodeado por controvérsias.

SEGURANÇA EM XEQUE
Atualmente, existem dois métodos principais de proteção solar. Os
filtros físicos contêm nanopartículas que funcionam como barreira
41

contra a radiação vinda do Sol, caso do óxido de zinco e do dióxido


de titânio. Já os filtros químicos funcionam a partir de moléculas
orgânicas que captam a energia dos raios ultravioleta (UV), mudam
a estrutura das ondas e as devolvem em um comprimento maior,
de modo que não são absorvidas na pele. Em geral, os produtos
modernos combinam ambos os componentes para garantir o fator
de proteção solar (FPS) prometido.

Dentre as várias substâncias filtrantes presentes nos protetores


solares, a oxibenzona é considerada a principal vilã. Pesquisas
atribuem a ela prejuízos à saúde das pessoas e à natureza. Experi-
mentos de laboratório em animais revelaram que ela tem um efei-
to estrogênico, colaborando para a disrupção hormonal. Estudos
em humanos mostraram um potencial alergênico da substância. E
em testes feitos em aquários, altas doses do composto colabora-
ram para o branqueamento de corais.

Já na década de 1990, poucos anos depois dos primeiros filtros


serem lançados no Brasil, estudos demonstraram que a oxiben-
zona é absorvida pela pele durante a aplicação do protetor solar
em uma taxa entre 1% e 2%. Posteriormente, uma análise de 2.517
amostras de urina coletadas nos Estados Unidos entre 2003 e
2004, cujos resultados foram publicados em 2008, mostrou que
a substância foi detectada em 96,8% dos voluntários. O fato de
o composto circular na corrente sanguínea gerou preocupações
sobre sua toxicidade.
42

USE FILTRO SOLAR — MAS NÃO SÓ


O protetor
ot não confere imunidade total à radiação do Sol. Na
visão da dermatologista TaTatiana Blumetti, da SBD, o ideal é
buscar o equilíbrio, focando sempre na qualidade de vida, e
seguir os seguintes cuidados:

• Proteja-se na sombra no
horário de pico (das 10h às 16h);
• Aplique o protetor 30 minutos
antes de sair de casa;
• Use FPS mínimo de 30 (e maior
que 50 para peles claras);
• Ao aplicar, meça a referência
de 1 colher de chá para rosto
e pescoço, cada braço, tórax,
dorso; e 2 colheres de chá para
cada perna. Não esqueça de
áreas como nariz, pés e perto
do cabelo;
• Mesmo com filtro, vista roupas
e chapéu.

Uma das primeiras pesquisas a mostrar o potencial malefício da oxi-


benzona foi publicada em 2001. Em análises in vitro e in vivo, cientis-
tas liderados pela pesquisadora Margret Schlumpf, da Universidade
de Zurique, na Suíça, administraram a substância em ratos imaturos
por via oral. As conclusões apontaram para seu efeito estrogênico,
afetando o desenvolvimento do útero das cobaias e levantando pre-
ocupações sobre os efeitos hormonais do composto químico.

Pesquisas semelhantes indicaram que a oxibenzona também pode


prejudicar a vida marinha, colaborando para o branqueamento de
corais. As primeiras evidências são de 2008. Com estudos in situ e
em laboratório, pesquisadores liderados pelo biólogo marinho Ro-
berto Danovaro, da Universidade Politécnica de Marche, na Itália,
43

introduziram quantidades de filtro solar em amostras oriundas dos


oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, além do Mar Vermelho. A con-
clusão foi categórica: “Os protetores solares causam o branquea-
mento rápido e completo dos corais duros, mesmo em concentra-
ções extremamente baixas. O efeito dos protetores solares se deve
aos filtros ultravioletas orgânicos.”

Recentemente, o óxido de zinco — principal componente dos fil-


tros físicos, em geral tidos como mais seguros — também foi alvo
de dúvidas. Uma pesquisa divulgada em outubro de 2021, feita pe-
las universidades de Oregon, nos EUA, e de Leeds, na Inglaterra,
revelou que, após poucas horas de exposição solar, a substância
perde o efeito filtrante e se torna, inclusive, tóxica. “Durante os
testes, descobrimos que o óxido de zinco causa degradação de ou-
tros absorvedores de UV, e a proteção fornecida pelos protetores
solares foi reduzida de forma significativa em um tempo relativa-
mente curto, principalmente na região UVA”, disse o professor Ja-
mes Hutchinson, da Universidade de Oregon, em comunicado.

MÉTODO ARRISCADO
Estudos como esses causaram reações de governos e órgãos regu-
ladores mundo afora. Quando as primeiras pesquisas começaram a
surgir, agências regulatórias de países da Europa e dos Estados Uni-
dos passaram a limitar a presença da oxibenzona em 6% (no Brasil,
o limite permanece 10%). Nos EUA, a limitação veio em 2013 e, na
União Europeia, em 2008. Legislações ambientais, com o intuito de
proteger os corais, proibiram o uso de produtos com a substância
44

no Havaí e na ilha de Key West, ambos nos Esta-


dos Unidos, e no arquipélago de Palau.

Filtros químicos também não são mais reco-


mendados para crianças devido ao risco de pro-
vocar alergia. “A principal preocupação é em re-
lação a quanto essas moléculas, ao receberem
energia da luz, podem se decompor em outras
moléculas, e esses subprodutos penetrarem
na pele”, explica o pesquisador Paulo Newton
Tonolli, doutor em bioquímica pelo Instituto de
Química da Universidade de São Paulo (USP)
e especialista em fotoquímica e fotobiologia.
“Mas, muitas vezes, os estudos têm problemas
metodológicos. Às vezes, querem ver o efeito
tóxico e acabam usando uma quantidade muito
maior do que uma pessoa acabaria aplicando
na pele”, pondera.

“Muitos estudos têm problemas


metodológicos (...) querem ver o
efeito tóxico [do protetor] e acabam
usando uma quantidade muito
maior do que uma pessoa aplicaria”
Paulo Newton Tonolli, doutor em bioquímica pelo Instituto de Química da USP
45

Na visão do dermatologista Schalka, não existem justificativas para


evitar o uso de protetor solar por causa de resultados como esses.
“A oxibenzona está no mercado americano há pelo menos 30 anos.
É massivamente oferecida. Do ponto de vista clínico, nunca se ob-
servou nenhum tipo de doença relacionada ao contato com essa
substância ou com protetor solar em geral”, ressalta.

Essas ponderações são corroboradas por revisões críticas que se


debruçaram sobre pesquisas já realizadas. Um artigo publicado
em 2020 no International Journal of Dermatology analisou 29
estudos sobre efeitos da oxibenzona em humnanos e concluiu
que “as evidências não são suficientes para estabelecer uma re-
lação causal entre níveis elevados e sistêmicos de oxibenzona e
octinoxato [outra substância dos filtros solares] e resultados ad-
versos para a saúde”. Já um trabalho publicado também em 2020
no periódico Environmental Toxicology and Chemistry analisou
12 pesquisas sobre os impactos do composto na vida marinha e
a conclusão foi semelhante: de que existem “evidências limitadas
para sugerir que sua presença está causando danos significati-
vos aos recifes de coral”.

MAIOR RISCO É NÃO USAR


Entre dermatologistas, a unanimidade é de que o principal risco está
em não utilizar filtro solar. Desenvolvidos para prevenir queimadu-
ras, os protetores ganharam uma importância maior ainda a partir
do entendimento de que os raios UVA e UVB emitidos pelo Sol co-
laboram para o desenvolvimento do câncer de pele. De acordo com
46

QUAL O MELHOR FPS PARA VOCÊ?


O FPS é a medida de proteção contra os raios solares ultravioleta B (UVB), os responsáveis
por deixar a pele vermelha. O índice indica quanto tempo é possível se expor ao sol sem que
isso aconteça. Por exemplo, se uma pessoa geralmente se queima depois de 5 minutos de
exposição, usando um protetor solar com FPS 30 ela pode ficar exposta por duas horas e meia
(30 vezes 5 é igual a 150, que em minutos equivale a duas horas e meia).

A principal diferença entre os números do FPS está no tempo de proteção, e não na qualidade
do protetor. Além de conhecer a própria pele para determinar qual FPS é ideal para seu
fototipo, é importante levar em conta localização e época do ano (a incidência dos raios é maior
no verão), o tempo que pretende ficar no sol e a resistência do filtro à água.

o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o câncer de pele é o tipo mais


comum no Brasil. Entre 2020 e 2022, estima-se que a doença, em
suas variadas formas, atingirá mais de 600 mil homens e mulheres.

Segundo a dermatologista Tatiana Blumetti, assessora do depar-


tamento de oncologia cutânea da Sociedade Brasileira de Derma-
tologia (SBD), são três os principais tipos de câncer de pele. O mais
comum é o carcinoma basocelular, que se desenvolve nas células
basais da pele, na camada mais profunda. Manifesta-se em tumo-
res pequenos, como feridas que não saram, e tem uma capacidade
reduzida de metástase.

O segundo tipo mais comum é o carcinoma espinocelular, que


tem origem na camada cutânea mais superficial. É um pouco mais
agressivo que o basocelular e pode gerar alguns tipos de metás-
tase. Por fim, o mais severo e menos comum é o melanoma, que
47

mesmo pequeno, com tumores medindo cerca de 6 milímetros,


pode se espalhar para outros órgãos, como cérebro, pulmão e fí-
gado, e levar à morte. “Daí o conceito errado de que câncer de pele
não é grave”, adverte Blumetti.

REGULAMENTAÇÃO RIGOROSA
Com tantas contestações, muitos dos elementos “polêmicos” pre-
sentes nos filtros já estão entrando em desuso. “Se falar de pro-
tetor solar hoje em relação há cinco ou 10 anos, eles estão bem
melhores. Muitos nem usam mais as substâncias ‘duvidosas’”, afir-
ma Schalka. E isso ocorre por iniciativa da própria indústria. “Por
exemplo, hoje, para crianças e bebês, só são produzidos os pro-
tetores físicos com óxido de zinco. E estão desenvolvendo outros
componentes menos tóxicos, obtidos a partir de extratos naturais,
como a bixina, do urucum”, aponta Tonolli.

Esse também é um compromisso e uma posição oficial da Asso-


ciação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e
Cosméticos (ABIHPEC), entidade que representa o setor. “As dis-
cussões sobre ingredientes de proteção solar são constantes, glo-
bais e baseadas em ciência. A ABIHPEC acompanha tais fóruns de
discussão aqui no Brasil, assim como no mundo todo e, junto com
seus associados, tem todo o interesse em seguir buscando o de-
senvolvimento de novas moléculas, cada vez mais tecnológicas”,
declara a instituição, em nota enviada à reportagem.

Por aqui, todos os produtos de higiene pessoal, cosméticos e


48

perfumes são regularizados pela Agência Na-


cional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Nisso
se incluem os filtros solares, que devem se-
guir três listas: a de substâncias proibidas, a
de substâncias de uso restrito e a de substân-
cias permitidas para conservantes, corantes,
filtros ultravioletas e alisantes/onduladores.
“Essas listas são periodicamente atualizadas
considerando o processo de desenvolvimento
científico e tecnológico na área de cosméticos.
Os critérios para a atualização das listas, reco-
nhecidas pela comunidade científica, conside-
ram os aspectos de saúde e segurança para o
usuário”, explica a agência, também em nota.

Na Anvisa, os filtros solares são classificados


como produtos de Grau 2, de modo que preci-
sam de comprovação de segurança e eficácia.
Fabricação e comercialização dependem da

“As pessoas tendem a ouvir o que


elas querem e se agarram a isso
para justificar hábitos que não são
saudáveis [não usar protetor]”
Tatiana Blumetti, dermatologista e membro da SBD
49

concessão de registro publicado no Diário Oficial da União. Esse


registro é concedido após aprovação da equipe técnica da Coorde-
nação de Cosméticos, que avalia os estudos de eficácia apresenta-
dos pela fabricante no ato da solicitação.

Embora a regulamentação brasileira considere a comunidade cien-


tífica global e a legislação de outros países e blocos, como Estados
Unidos e União Europeia, há algumas particularidades. Nos EUA,
por exemplo, os protetores solares são enquadrados como medi-
camentos; na Europa, assim como no Brasil, são considerados cos-
méticos, mas a forma de declarar o FPS é diferente. Aqui, o rótulo
deve apresentar o número inteiro do fator de proteção, que preci-
sa ser de no mínimo 6 e menor que 100. Na União Europeia, o valor
mínimo também é 6, mas produtos com FPS acima de 50 podem
constar 50+ na rotulagem.

Mesmo que nenhuma agência de saúde tenha constatado resul-


tados clínicos de malefícios, a preocupação com a absorção de
substâncias químicas no corpo e no ambiente é válida. “Não vamos
mentir, é verdade que existem alguns protetores com componen-
tes nas fórmulas que podem ter absorção. Eles provavelmente vão
acabar sendo removidos do mercado”, reconhece a dermatologista
da SBD. “Mas as pessoas tendem a ouvir o que elas querem e se
agarram a isso para justificar hábitos que não são saudáveis”. Até
o momento, as evidências científicas seguem apontando para o
que já sabemos há décadas: use filtro solar.
TECNOLOGIA
TEXTO André Bernardo EDIÇÃO Luiza Monteiro DESIGN Flavia Hashimoto

O pianista e maestro João Carlos


Martins, de 81 anos, usa órteses
nas mãos. (Foto: Luís França)

BRASILEIROS
EXTRAORDINÁRIOS
VÍTIMAS DE DOENÇAS OU ACIDENTES, ADULTOS E
CRIANÇAS DO PAÍS GANHAM VIDA NOVA COM APARELHOS
FEITOS EM IMPRESSORAS 3D OU FIBRA DE CARBONO
T
Todas as manhãs, o pianista João Car-
los Martins, de 81 anos, ensaia de três
a quatro horas em seu apartamento em
São Paulo. No dia 19 de novembro de
2022, ele volta a se apresentar no Carne-
gie Hall, em Nova York. Além de reger a
orquestra, vai executar três peças: duas
dos alemães Johann Sebastian Bach
(1685-1750) e Robert Schumann (1810-1856)
CADA UM,
e um tributo ao argentino Alberto Ginastera CADA UM
(1916-1983). “Será a primeira vez, depois de 22 Órtese e prótese
não são a mesma
anos, que volto a tocar com os dez dedos”, conta coisa. Entenda as
diferenças entre
Martins a GALILEU. “Meu último concerto com os aparelhos
as duas mãos foi em 1998, quando toquei com a
Royal Philharmonic Orchestra, em Londres”. ÓRTESE
São acessórios que
auxiliam na função
ou correção de uma
O músico chegou a anunciar publicamente sua parte do corpo —
como uma luva
despedida do piano. Foi no programa Fantásti- que mantenha os
dedos abertos ou
co, da TV Globo, em 17 de fevereiro de 2019. Uma até mesmo óculos e
aparelho dentário.
série de infortúnios o obrigaram a tocar apenas
com os polegares. Em 1958, foi diagnosticado PRÓTESE
A ideia é substituir
com distonia focal, um distúrbio neurológico as funções de um
membro ou órgão,
que provoca contrações involuntárias nas mãos por exemplo, que foi
amputado ou não
e, no caso de músicos, impossibilita a execução tenha o desempenho
adequado. Pode
de seus instrumentos. Já em 1965, durante uma fazer o papel de
mãos, pernas ou
partida de futebol no Central Park, uma queda do ouvido.

atingiu o nervo ulnar, na altura do cotovelo, e


52

provocou a atrofia de três dedos da mão esquerda. Trinta anos de-


pois, ao reagir a um assalto na Bulgária, Martins levou uma barra
de ferro na cabeça que lhe rendeu uma lesão cerebral. Ao longo da
carreira, foi submetido a 24 cirurgias.

Nos áureos tempos, o exímio pianista chegava a tocar 21 notas por


segundo; nos últimos anos, porém, “tocava uma nota em 21 se-
gundos”. Quem assistiu ao Fantástico naquela noite foi o designer
industrial Ubiratan Bizarro Costa. Nas horas livres, ele gosta de
criar artefatos de design inclusivo como um exoesqueleto mecâ-
nico para pessoas com deficiência ou uma scooter adaptada sobre
um skate elétrico para paraplégicos. De sua casa em Sumaré (SP),
decidiu bolar um jeito de ajudar Martins a cancelar a aposentado-
ria. Depois de assistir a incontáveis vídeos do pianista no YouTube,
chegou ao protótipo de uma luva extensora biônica.

Feita de borracha sintética, hastes de aço flexíveis e placa de fibra


de carbono, a órtese mantém abertos os dedos do pianista, flexio-
nados por causa da distonia. “As hastes funcionam como molas”, ex-
plica Costa. “Quando o maestro pressiona as teclas para baixo, as
hastes ‘empurram’ os dedos para cima”. Em cinco meses, o designer
desenhou as luvas, imprimiu-as em uma impressora 3D e as apre-
sentou ao maestro. “A primeira versão parecia uma luva de boxe”, ri
Martins. “Os dedos não encostavam nas teclas. Impossível tocar”.

Costa fez ajustes e deu o novo modelo de presente ao pianista.


De tanto tocar, ele quebrou a segunda versão. O designer, então,
53

trocou o plástico por aço. E, a pedido do músico, imprimiu na cor


preta. De ajuste em ajuste, a luva está em sua sexta versão. “Não
chego perto do virtuoso que já fui um dia. Mas posso tocar peças
importantes de Bach excepcionalmente bem”, avalia o maestro,
que conclui, citando um dos aforismos preferidos de seu pai, José
da Silva Martins: “O impossível só existe no dicionário dos tolos”.

A MENINA “BIÔNICA”
Se o pianista João Carlos Martins pediu que suas luvas fossem pre-
tas, Maria Beattriz Santana da Costa, de 4 anos, escolheu a cor
rosa. Apaixonada por princesas e unicórnios, ela tinha apenas 2
anos quando contraiu uma infecção bacteriana e chegou a passar
40 dias na UTI de um hospital em Brasília. Sobreviveu ao choque
séptico, mas, por causa da necrose, os médicos tiveram que am-
putar suas mãos e três dedos do pé esquerdo. Em outubro do ano
passado, ganhou um par de próteses fabricadas em impressora 3D
por alunos do Centro Universitário IESB, no Distrito Federal.

A prótese pode ser feita com plástico PLA, de origem vegetal, ou


ABS, derivado do petróleo. Cada peça custa cerca de R$ 150, leva
30 horas para ficar pronta e reproduz o movimento de agarrar. Há
modelos feitos de plástico que brilha no escuro e até os que imi-
tam pedra, ferro ou madeira. “Cabos e elásticos funcionam como
os tendões da mão”, explica o arquiteto Renan Balzani, professor
do IESB. “Quando a Maria Beattriz flexiona o braço, ela fecha a
mão. Quando relaxa, abre”.
54

Maria Beattriz Costa


perdeu as mãos aos
2 anos de idade.
(Foto: Divulgação)

Uma das vantagens da prótese tridimensional é seu baixo custo.


Outros modelos mais arrojados podem chegar a R$ 300 mil, já com
a reabilitação incluída. No entanto, apesar de ser leve, barata e re-
sistente, tem suas limitações: não pode carregar materiais pesados
nem pegar objetos pequenos. “Não é frágil, mas requer cuidados.
Andar de bicicleta, por exemplo, não é recomendado. Afinal, não
é feita de adamantium”, brinca Balzani, numa referência ao metal
quase indestrutível do qual são feitas as garras do Wolverine, o X-
-Men mais famoso da Marvel.

A prótese de Maria Beattriz é do tipo mecânica. Seus movimentos


são limitados: os dedos se movem juntos, não separados. O espectro
é amplo e vai de modelos mais simples, como a estética, que não exe-
cuta movimentos, aos mais complexos, como a mioelétrica, controla-
da por sensores afixados no membro remanescente. Quem explica é
Maria Elizete Kunkel, professora do curso de engenharia biomédica
55

do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São


Paulo (Unifesp), em São José dos Campos (SP). “Próteses mioelétri-
cas permitem ao usuário movimentos finos e de grande precisão. No
entanto, seu custo é alto e a reabilitação, demorada”.

Maria Beattriz é uma das muitas beneficiadas pelo e-NABLE Brasil.


Criado em 2012 por Ivan Owen, um designer de Seattle, nos Es-
tados Unidos, o projeto recorre a impressoras 3D de baixo custo
para desenhar, imprimir, montar e distribuir próteses de membros
superiores, acionadas pelo punho ou pelo cotovelo. O público-alvo
são crianças e adultos que nasceram com má formação em dedos,
mãos e braços ou sofreram amputação devido a guerras, doenças
ou acidentes. Detalhe: membros inferiores não são impressos em
3D. “Não suportariam o peso do corpo”, justifica Kunkel.

As próteses convencionais podem ser feitas de alumínio ou mesmo


titânio. No passado, já foram de madeira e couro. Hoje, o material
mais usado é a fibra de carbono — são leves, flexíveis e resisten-
tes. O fisioterapeuta Anderson Nolé, diretor da BioniCenter, apon-
ta outro ganho: a redução do gasto energético. “Quem usa prótese
se cansa mais ao caminhar. Com os modelos em fibra de carbono,
o desgaste é menor, porque ela absorve a energia e a ‘devolve’ sob
a forma de impulso. Funciona como uma mola”, diz.

Situada também em São José dos Campos, a BioniCenter reabili-


ta cerca de 120 pacientes por ano. Sempre que um deles lhe per-
gunta qual é a prótese ideal, Nolé responde: “Depende”. “Jamais
56

vou indicar uma de última geração para um paciente com idade


avançada ou grau de atividade baixo. Nem sempre o modelo mais
caro é o melhor”.

MUITO ALÉM DOS LIMITES


De vez em sempre, a influenciadora digital Paola Antonini, de 27
anos, encontra crianças pelas ruas de Belo Horizonte ou nos luga-
res que visita pelo mundo afora. As reações delas, ao verem sua
“perninha brilhante”, são sempre inusitadas: “Pai, o que é aquilo?”,
cochicham algumas; “Mãe, por que a perna dela é assim?”, inda-
gam outras. Brincalhona, Antonini costuma variar as respostas:
de “Estou virando um robô” a “Sou uma mulher biônica”. Com 2,7
milhões de seguidores no Instagram, ela nunca escondeu de nin-
guém que, por causa de um atropelamento em 2014, usa próte-
se na perna esquerda. Pelo contrário: está sempre usando novas
versões coloridas e brilhantes do aparelho. “Próteses resgatam
a autoestima do usuário”, afirma o fisioterapeuta Fabrício Daniel
de Lima, diretor do Instituto de Prótese e Órtese (IPO), na capital
mineira. “Cada vez mais, um número maior de amputados quer
exibir suas próteses e personalizá-las com desenhos de super-he-
róis ou escudos de times de futebol”.

Em dezembro de 2014, Paola e seu então namorado, Arthur, decidi-


ram passar o Réveillon em Búzios, no Rio de Janeiro. Na manhã do
dia 27, os dois arrumavam suas bagagens no porta-malas do carro
do rapaz, que estava estacionado, quando uma motorista alcooli-
zada perdeu o controle da direção e bateu na traseira do veículo.
57

Paola Antonini, de 27
anos, quer aprender algo
novo todos os dias. (Foto:
Reprodução Instagram)
58

Arthur sofreu ferimentos leves, mas Paola teve


a perna esquerda esmagada. Entrou no centro
cirúrgico às nove da manhã e saiu de lá às onze
da noite. Depois de 14 horas de operação, os mé-
dicos decidiram amputar sua perna um pouco
abaixo do joelho. “Perdi uma perna, mas ganhei
asas”, relata a autora de Perdi uma parte de mim
e renasci, lançado em dezembro de 2021 pela
Globo Livros. “Conquistei todos os meus maiores
sonhos. Nada disso teria acontecido se, desde o
início, eu não tivesse decidido encarar aquela no-
tícia com otimismo”.

Desde então, Paola Antonini fez um pacto consi-


go mesma: tentaria algo novo todos os dias. Em
suas redes sociais, gosta de postar fotos suas
jogando tênis, praticando surfe ou esquiando na
neve. O trecho de uma canção da banda cana-
dense Nickelback, If today was your last day, ta-
tuado em seu braço esquerdo, resume seu novo

“Conquistei todos os meus maiores


sonhos. Nada disso teria acontecido
se eu não tivesse decidido encarar
aquela notícia com otimismo”
Paola Antonini, 27 anos, influenciadora digital que perdeu a perna esquerda num
acidente em 2014
59

estilo de vida: “Live like you’ll never live it twice” (“Viva como se você
nunca fosse viver outra vez”, em livre tradução). “Sempre gostei de
me desafiar e ir além dos meus limites”, afirma a mineira que, em
2020, fundou um instituto que leva seu nome e se propõe a ajudar
pessoas com deficiência física por meio da doação de próteses, ór-
teses e outros acessórios.

CIBORGUES ESPORTIVOS
Não há registros oficiais de quantos usuários de próteses e órte-
ses existem hoje no Brasil. Três dos mais famosos são o cantor Ro-
berto Carlos, que teve parte da perna direita amputada depois de
um acidente na linha do trem em 29 de junho de 1947; o ex-goleiro
da Chapecoense Jakson Follmann, um dos sobreviventes da queda
de um avião na madrugada de 29 de novembro de 2016; e o atleta
paralímpico Alan Fonteles, medalha de ouro em Londres 2012 e
de prata em Pequim 2008 e Rio 2016. O universo paralímpico, a
propósito, é o tema de Biônicos, o primeiro filme brasileiro de sci-fi
da Netflix. “O que aconteceria se, no futuro, atletas paralímpicos
saltassem mais alto, corressem mais rápido ou batessem mais for-
te do que os atletas olímpicos?”, provoca o diretor Afonso Poyart.

A ficção não está tão distante assim da realidade. Em 2015, no Mun-


dial de Atletismo Paralímpico em Doha, no Catar, o alemão Markus
Rehm, que usa uma prótese no lugar da perna direita, conquistou a
marca de 8,40m no salto em distância. Se competisse em Olimpí-
adas, teria levado o ouro. A título de comparação, o britânico Greg
Rutherford ganhou a prova em Londres 2012 com 8,31m.
60

Enquanto o longa da Netflix não estreia (a previsão é 2023), o públi-


co pode assistir ao curta Protesys no YouTube. Misto de documen-
tário com ficção, conta a história do atleta paralímpico Flavio Reitz,
que é convidado por uma startup fictícia para participar de um ex-
perimento que transforma amputados em ciborgues.

No curta, cientistas implantam um microchip em seu córtex mo-


tor e ele passa a controlar os movimentos da prótese com a for-
ça da mente. “Se algo parecido acontecesse comigo, não pensaria
duas vezes. Adoraria ser o precursor de algo que pode mudar a
vida de muitos”, garante Reitz, quinto lugar no salto em altura em
Londres 2012, que perdeu a perna esquerda em 2002 por causa
de um câncer no fêmur.

ÓRGÃOS ARTIFICIAIS
Na década de 1970, uma série de TV fez muito sucesso no Brasil:
O homem de seis milhões de dólares (1974-1978). Baseada no livro
Cyborg (1972), escrito por Martin Caidin, contava a história do pi-
loto Steve Austin (Lee Majors), que sofre um acidente de avião e
recebe três próteses biônicas: duas pernas, o braço direito e o olho
esquerdo. Era capaz, entre outras proezas sobre-humanas, de cor-
rer a uma velocidade estimada em 90 km/h.

Inverossimilhanças à parte, O homem de seis milhões de dólares


durou cinco temporadas, ganhou três telefilmes (1987, 1989 e 1994)
e gerou um spin-off, A mulher biônica (1976-1978). Vítima de um
61

acidente de paraquedas, a tenista Jaime Sommers (Lindsay Wag-


ner) recebe três implantes: duas pernas, um braço e um ouvido.
Na vida real, a modelo Brenda Costa, de 39 anos, também tem um
“ouvido biônico” para chamar de seu. Não, ela não é capaz de ouvir
sons inaudíveis, de diferentes frequências e a longas distâncias.
Graças a um implante coclear, a carioca consegue façanhas ainda
mais extraordinárias, como ouvir o barulho do vento, o choro dos
filhos (Antônia e Gabriel, hoje com 13 e 6 anos, respectivamente) e
a voz do pai, Marcos, exclamando: “Que felicidade!”. “A adaptação
foi difícil”, reconhece a modelo. “Você precisa treinar seu cérebro
para distinguir sons que nunca ouviu na vida”. E dá um exemplo:
“Levei um susto na primeira vez que ouvi meu xixi. Não sabia que
era tão barulhento!”, diverte-se.

A surdez de Brenda é do tipo congênita, ou seja, de nascença. Nunca


estudou em escola especial nem aprendeu a linguagem de sinais.
Em compensação, faz leitura labial em cinco idiomas: português, in-
glês, francês, italiano e espanhol. No colégio, sofreu bullying de al-
guns colegas. Um deles chegou a pegar seu aparelho auditivo. Bren-
da, então, aproveitou um momento de descuido do garoto e, num
movimento rápido, arrancou seus óculos. “Então, como é a vida sem
óculos? Ruim, né?”, perguntou, na frente de todos. “Vamos fazer um
trato: você larga do meu pé e eu devolvo seus óculos. Feito?”. Da-
quele dia em diante, nunca mais ninguém mexeu com ela no colégio.

Em 2006, aos 24 anos, a modelo se submeteu a um implante co-


clear — cóclea é a região do ouvido que capta sons. Popularmente
62

conhecido como “ouvido biônico”, é um disposi-


tivo eletrônico que capta o som do ambiente e
o transforma em impulso elétrico. Daí, o nervo
auditivo é estimulado e transmite informações
para o cérebro. “Quanto menor o tempo de sur-
dez, melhores serão os resultados”, explica o
médico Ricardo Bento, professor de otorrinola-
ringologia da Faculdade de Medicina da Univer-
sidade de São Paulo (FMUSP). Só no Brasil, exis-
tem cerca de 8 mil usuários. Desses, 3 mil foram
operados no Hospital das Clínicas da FMUSP. “O
usuário pode levar uma vida praticamente nor-
mal. O único problema é na hora de passar pelo
detector de metais”, avisa Bento.

O mundo das próteses vai além das pernas que


andam de skate, das mãos que tocam cavaqui-
nho ou dos ouvidos que escutam os sons da na-
tureza. Enquanto a bioimpressão 3D de órgãos
humanos não se torna realidade, corações arti-
ficiais, feitos de plástico e titânio, já batem no

“A adaptação foi difícil (...) Você


precisa treinar seu cérebro para
distinguir sons que nunca ouviu”
Brenda Costa, de 39 anos, nasceu com surdez e usa um implante coclear
63

A modelo Brenda Costa


usa um “ouvido biônico”
para escutar.
(Foto: Diego Kung)
64

peito de pessoas com insuficiência cardíaca avançada — algumas


delas brasileiras. Os modelos mais modernos pesam, em média,
900 gramas (três vezes mais que um normal) e, para bombear o
sangue, precisam de uma bateria recarregável de lítio. “O paciente
não pode ficar muito tempo distante de uma fonte de energia elé-
trica, senão a bateria descarrega e o coração para de funcionar”,
alerta o cirurgião cardíaco Fábio Jatene, professor de cirurgia car-
diovascular da FMUSP.

Esses aparelhos são indicados principalmente em duas situações.


A primeira delas diz respeito a quem aguarda na fila de transplan-
te por um coração novo: enquanto não encontra um doador com-
patível, usa o modelo artificial. A segunda é a chamada terapia de
destino, em que a pessoa não pode se submeter a um transplante
por razões como idade avançada, problema de saúde ou falta de
doador. Nesse caso, o uso do coração artificial é permanente — em
geral, ele dura de quatro a cinco anos.

Há ainda a possibilidade do xenotransplante, com a troca de ór-


gãos ocorrendo entre espécies. No último dia 10 de janeiro, Da-
vid Bennett, um norte-americano de 57 anos, recebeu o primeiro
transplante de coração geneticamente modificado de um porco.
Mas essa é outra história — e, ao contrário dos avanços e da rela-
tiva popularização das próteses e órteses, a ciência tem um lon-
go caminho pela frente.
65

QUER QUE EU DESENHE?


POR BERNARDO FRANÇA

COMO O CASAL DE
CIENTISTAS MARIE E PIERRE
CURIE CONTRIBUIU PARA
UM PRESENTE DE NATAL
REVOLUCIONÁRIO EM 1898
TEXTO Camila Mazzotto
66

Um dia depois do Natal de 1898, em 26 de


dezembro, os pesquisadores Marie e Pierre
Curie deram à ciência um presente para
lá de revolucionário. Eles anunciaram a
descoberta de um elemento que, por si só,
inauguraria uma nova era não só na química,
mas também na medicina: o rádio (Ra).
67

O comunicado foi feito à Academia de


Ciências de Paris em nota também assinada
por Gustave Bémont, chefe de pesquisas da
Escola Municipal de Física e Química, onde
Pierre lecionava. A dupla improvisou um
laboratório no porão, que virou celeiro
para descobertas sobre a radioatividade.
68

O fenômeno fora recém-descoberto por Henri


Becquerel, que constatou que minérios de
urânio emitiam raios capazes de penetrar a
matéria. Mas foi Marie quem cunhou o termo.
Com um aparelho inventado por Pierre, ela
mediu esses raios e descobriu que o rádio era
900 vezes mais radioativo que o urânio.
69

Enquanto Pierre passou a analisar as


propriedades da radiação, Marie isolou o
Ra e determinou seu peso atômico em 225.
Junto a Becquerel, o casal recebeu o Prêmio
Nobel de Física em 1903. A polonesa também
foi laureada com o Nobel de Química em 1911,
pela descoberta do rádio e do polônio.
70

Entre outras coisas, os estudos dos Curie


indicaram que o rádio, com sua capacidade
de destruir células, poderia ser útil no
combate ao câncer (daí veio a radioterapia).
Na 1ª Guerra Mundial, Marie equipou as
primeiras unidades móveis de radiologia
com aparelhos raio-X.
71

A cientista fundou dois institutos de


pesquisa, em Paris e em Varsóvia, além
de ter viajado o mundo (inclusive o Brasil)
para espalhar o conhecimento do casal.
A exposição à radiação, perigo então
desconhecido, levou-a à morte aos 66 anos,
em 4 de julho de 1934 — Pierre falecera
atropelado 28 anos antes.

Você também pode gostar