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Mitra 82

Aquela vida de Liang tivera muito mais que Koji poderia imaginar, mas ele estava ali, firme como
as pedras que ela pegava no caminho e hoje, olhando para Miwa, não via muita diferença entre
quem ela fora enquanto Liang e a mulher destemida que se tornara nessa nova vida.
Koji não compreendia o mecanismo de viver, morrer e viver outra vez. Ele não sabia se tinha vivido
antes, se renascera, ou porque Liang era Miwa. Tudo que sabia lhe bastava, e lhe contentava mais
ainda, ter o privilégio de estar seguindo com ela por seus caminhos. 
Olhou com ternura a moça que dormia e sentando ao lado da cama pôs sua mão sobre a mão azul
que tanto amava. Elas não foram assim sempre, e já não se lembrava como eram antes, mas sabia
que se tornaram azuis pelas maravilhosas imagens que produziam quando transformava o
imaculado pano branco em um pedaço de céu.
Não passara muito até Koji ouvir uma batida forte na porta. Sabia que era George que vinha chamar
Miwa para a cerimonia do final do dia. Como sempre fazia, assoprou lentamente o rosto de Miwa
porque ela acordava com o gesto. Ficou olhando, esperando o resultado de seu sopro, e como não
poderia ser diferente, um sorriso de dentes pretos se formou no rosto da mulher e seus olhos
abriram, para ouvir, a tempo, a próxima batida na porta.
De um salto ela estava em pé. Abriu a porta que se achava somente encostada, e sorrindo ficou
olhando para George, que embora não retribuísse o sorriso, tinha nos olhos toda sorte de bons
sentimentos.
"Me acompanhe. Não podemos perder a contemplação vespertina."- e fez um sinal para que ela
fosse com ele. Miwa estranhava ele falar sua língua, e passando as mãos pelos cabelos afim de
ajeitá-los, só o seguiu. George que virou-se para esperá-la, estranhou que a porta se fechara
suavemente, assim que ela passou. Pensou que era muito pesada para um vento fazer aquilo.
Desviou a atenção e seguiu rápido pelos corredores que levavam ao outro prédio da abadia.
Conforme iam, Miwa ouvia um som melodioso como jamais ouvira igual. quanto mais se
aproximavam, mais ela se encantava com a música, diferente de tudo que conhecia, encorpada, Um
a umvigorosa e tranquilizante. Eram cantos gregorianos, entoados a maestria pelos abades e
monges, dando graças ao senhor pelo dia que amanhecia.
Com a música abençoada, o sol ia tomando lugar no mundo e, deixando os seus raios tocarem os
vitrais da nave, envolvendo de cores e magia o ambiente. Vislumbrada com a vivencia daquele
momento, Miwa desejou poder transferir a música e a luz para um belo pedaço de seda ou linho,
onde depois de colorido, bordaria pontos de brilho distribuindo pedrarias por toda sua obra. Baixou
os olhos por saber não ter cores além do azul ou pedras, ou linhas para tal trabalho, mas com o que
havia trazido, certamente conseguiria fazer o paraíso azul para eternizar aquele instante.
Quando a cerimonia acabou, partiram todos em silencio mortal, um a um, em fila, pelo corredor, só
parando no refeitório, para um desjejum simples, mas tão farto que alimentaria um homem pelo dia
todo. O que Miwa não sabia é que era preciso se abastecer o suficiente para o trabalho que seguiria
o dia todo.
Mitra 83

Um a um os monges iam se levantando conforme terminavam a refeição, sumindo pelos corredores,


enquanto Miwa, lentamente ia comendo porções mínimas, daquela comida tão diferente e que a
fazia sentir-se mal, enfastiada e, por vezes, ansiada. Não era o sabor, tão pouco a comida em si,
mas como se alimentara minimamente durante o tempo da viagem, qualquer quantia que fosse mais
de uma colher a deixava naquele estado.

George continuou sentado em silencio, esperando a moça terminar sua refeição. Pensava que ela
deveria ser muito bonita, não fossem as marcas que o tempo deixara em seu corpo judiado. As mãos
tingidas, os dentes tingidos, os cabelos em desalinho. Tudo em sua imagem destoava dos gestos
delicados e da doçura de seu olhar, mas George percebia algo mais naquela criatura, algo
inexplicável, misterioso, que lhe aguçava para a descoberta.

Não tinha sido dessa maneira com Midori, que saliente e festiva, encantara a todos com sua
personalidade e alegria. Ela cantava alto, se movimentava amplamente para falar, quase um ato
teatral, cheio de emoção, mesmo que fosse para responder um breve “sim”. Criaturas encantadoras
as mulheres, feitas de uma parte do homem, para serem cuidadas e protegidas por ele.

Rompendo os pensamentos de George, Miwa olhando para seu prato, de cabeça baixa, quase
envergonhada, falou baixinho.

“Não posso comer mais que isso, mas posso guardar o que sobrou para comer depois.” - sua voz
não saia da boca, era engolida, exigindo um esforço hercúleo de seu interlocutor para ser
compreendida. Mas George sabia que com o tempo isso mudaria. Pedindo que não se preocupasse,
assinalou com a mão para que ela o seguisse.

Koji que estava entre os dois, deu graças por ela deixar a porção sem comer, afinal ele poderia se
aproveitar, finalmente, de um pouquinho das sobras. Enquanto ela se levantava, ele foi aproximando
seu dedo indicador da borda do prato, enquanto um fiozinho iluminado juntava comida e
esfomeado. Nunca ele se atrevera a se aproveitar enquanto ela estava se alimentando, mas sempre
que um restinho sobrava, ele não fazia cerimonia. Ligado ao que lhe parecia um banquete, Koji
recolheu tudo que pode, sentindo aos poucos a força voltar e seus sentidos se aguçarem.
Terminando, seguiu os rastros de Miwa até encontrar com ela na horta, arrancando tudo que não
fosse verdura ou remédio. Seu trabalho naquela manhã seria limpar a horta, para que os legumes
crescessem cheios de vida.

Observando o trabalho de Miwa, Koji lembrou-se de quando Liang havia plantado uma coleção de
mudas e sementes.

“Para que esta plantando tudo isso? - ele sabia que ela não ouvia suas palavras, mas ela poderia
senti-las. Sabendo disso, a resposta era uma questão de tempo.

“Coloquei algumas sementes embrulhadas num pedaço de pano que mantive úmido e elas brotaram.
A terra oferece o crescimento, mas não é necessária para o nascimento. Quem nasce o faz na água,
vive sobre a terra, e retorna para ela quando morre.”

Koji pensou que a terra era a grande engolidora de morte, fazendo desaparecer em si tudo que perde
a vida. Se um dia ele teve um corpo, esse foi engolido pela terra. O que sobrou? Sera que a vida era
esse resto?
Rindo de suas lembranças, Koji continuou a observar o trabalho de Miwa. Ela estava tirando da
terra as mudas indesejáveis, que sem terra ou água, morreriam. “Será que Miwa ainda pensa sobre a
vida e morte enquanto trabalha?”- ele não saberia responder a isso.

Não. Miwa não pensava sobre vida e morte, pensava em como poderia eternizar as luzes e o som da
música dos monges. Tirar os rejeitos da horta era só um trabalho.

Mitra 84

O tempo passava rápido na abadia e os esforços de Miwa rendiam frutos. Ela falava um inglês
atordoado, mas compreensível. Seus modos estavam mais próximos dos ingleses e, suas mãos e
dentes não estavam tão tingidos. Um dos monges havia lhe dado algo para mascar e, dia a dia, seus
dentes iam clareando. Jamais ficariam brancos, mas que ficassem mais claros, já seria muito para
que o aspecto de Miwa se tornasse mais comum.

Koji se agradava das mudanças, mas quando a viu em uma roupa de monge, irritou-se por achar que
ela estaria deixando seu passado para trás. Como poderia se entregar daquela forma aos moldes
daqueles que, nem ao menos, se preocupavam em entender seus costumes? Será que ela se
distanciaria da Miwa que ele conhecia tão bem? Sobraria nela uma pequena porção da sua querida
Liang? Mas seus anseios se acalmaram quando ele viu que ela fazia um nó especial no cordão que
amarrava na cintura, e mais, ela também prendeu os cabelos no alto da cabeça, pegou um dos rachi
que guardava na sacola, e com cuidado esmerado, prendeu-o na parte mais grossa do talher,
verificando se estava firme, espetou-o no coque. Agora sim, ela era uma quase monja misturada
com Liang e Miwa. Suspirando aliviado, ele foi sentar-se em seu canto predileto da cela.

Como não pudesse evitar, Koji lembrou-se do dia em que viu Liang se preparando casar. Ela não
conhecia o noivo, que vinha de um vilarejo vizinho, recomendado por uma casamenteira muito
famosa pelos partidos propícios que arranjava. A avó de Liang guardara com muito cuidado o
dinheiro para esse tempo, pois como a menina não tinha a mãe que morrera no parto, e seu pai
nunca voltara de um combate que fora enviado, era de conhecimento geral o respeito devido ao bom
nome da família, que o avô herdara e honrara. Todos eram parte da historia, e só sobrara Liang e sua
avó. Portanto, ela precisaria de um noivo que sustentasse o bom nome da família.

Três mulheres a ajudavam aprontar-se. A sogra estava com elas, e avaliava tudo quanto podia, pois
se houvesse qualquer motivo que desabonasse Liang, o casamento seria desfeito imediatamente.
Docemente, a sogra, observava os modos da moça que tinha certeza, seria uma boa esposa para seu
filho, e filha obediente para ela. Tudo a contento, o casamento se deu e Koji viu nascerem as
gêmeas, depois os dois meninos, e estava lá para ver nascerem os filhos dos filhos também, sendo
testemunha da vida querida e próspera que Liang vivera. Ele, e somente ele, compartilhou depois
daquele dia os pensamentos que Liang guardava longe do conhecimento de todos, que a
imaginavam apenas uma mulher como qualquer outra.

Quando Miwa saiu, um fiozinho de luz esverdeada foi se desprendendo do broche formando um
rastro. Koji se levantou e foi comendo rapidamente o fio de luz, pois sabia que não poderia deixar
nenhum resto que se acumulasse em torno de Miwa. Era sempre da mesma forma, bastava que o
broche fosse tirado de seu embrulho, que a luz se formava, e se ele não a consumisse rapidamente,
outros o fariam, e ele não deixaria que outros se aproximassem dela. Aquela joia era uma velha
conhecida, que embora ele não lembrasse de onde, sabia de seus efeitos.
Assim que Miwa chegou para sua aula, George a admirou, e sentiu-se feliz por ver um pouco de
vaidade trazer mais expectativas para a vida futura da moça. Aproveitando isso deu inicio ao
assunto do dia.

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“Olhe ao seu redor, observe os detalhes e cada coisa que compõe o seu viver nesse momento. Não
se apresse em observar, procure as minucias.”- Miwa que esperava uma aula como as outras, não
entendeu porque George pedia aquilo, mas procurou olhar para tudo, tentando descobrir algo que
não soubesse o significado, poderia ser que ele quisesse lhe ensinar algo novo. Bateu os olhos uma
segunda vez em seu entorno, olhou para o professor e esperou.

George esperava que ela andasse pela sala e olhasse cada coisa com minucia, mas vendo que Miwa
não faria mais que dar um ‘passar de olhos’ pelo que sua vista alcançasse, resolveu continuar.

“O que nessa sala possui vida, além de nós?- era uma questão simples que ela poderia responder
com apenas uma palavra, não fosse o assunto que abordariam.

“Nada além de nós possui vida aqui. Tudo é coisa.”- estavam sós na sala, e afora objetos, nada mais
vivia.

“Escolha qualquer coisa e a ponha sobre a mesa”- Miwa sempre apreciava um cálice que George
mantinha perto da lareira e não precisou de tempo algum para se decidir. Foi até o objeto e o pôs
diante do professor.

“Por algum motivo você escolheu esse cálice. Entre tudo que aqui há, você elegeu essa peça por
ela , de alguma forma, possuir virtudes.”

Miwa estranhou a palavra virtude usada para um objeto, visto que aprendera que virtude seria um
atributo humano. Como não questionava, seu olhar não conseguiu esconder a duvida que lhe afligiu
a alma, mas esperou tranquilamente que seu professor continuasse.

“Sabemos que esse objeto não possui vida, ele não pulsa, não pensa, não se expressa. Mas não resta
dúvida para nós que ele exista. Então, viver e existir possuem conceitos diferentes. Mas, também,
não nos resta duvida que devido as suas virtudes ele nos seja almejado. Mas como algo que somente
existe possui virtude se esse atributo é humano? Em ‘virtude’ de nossos estudos usamos um cálice
como exemplo. Para ‘o fim’ de nossos estudos usamos um cálice como exemplo. Assim, a sua
virtude se exprime em seu uso. Se eu lhe oferecesse veneno nesse cálice, isso mudaria sua virtude?
Evidentemente que não, pois a sua virtude é a ação que ele detêm e não a ação que eu aplicaria a
ele.”- George andou pela sala, com as mãos postas dedos contra dedos, o olhar meio perdido e a
alma em um turbilhão de palavras e conceitos que aprendera ao longo dos anos, tentando encontrar
a maneira mais simples de explicar as coisas para sua aluna.

“A coisa é virtuosa por si, e sua virtude não se abala pelo uso que faça dela.”- faltavam palavras a
Miwa para expor seus pensamentos, mas isso não a impediria de mostrar seu entendimento - “Uma
faca tem como virtude cortar, e não perde sua virtude se eu usar seu corte para tirar a vida de
alguém. Isso é certo?”

“Sim, você entendeu. Agora, coloquemos isso no homem.”

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“Enquanto coisas são virtuosas por existir, o homem não é virtuoso pelo mesmo motivo. O homem
é virtuoso pelo uso que faz de sua vida. Enquanto coisas carregam a virtuosidade pelo que são, o
homem constrói sua virtuosidade sobre o que consegue ser. Infelizmente,o homem nunca é aquilo
que mostra ou pensa. No recôndito de sua alma existem e persistem suas fraquezas, sua justiça cega
que tem como balança seus próprios pensamentos e certezas, não admitindo, na maioria das vezes, o
quanto o egoismo faz parte de si e destrói o que possa haver de virtude”. - George ouvia as palavras
que pronunciava como se fossem para ele mesmo, como se fossem um monologo lhe fazendo
lembrar de sua eterna luta para tornar-se minimamente virtuoso. Acreditava que a virtude se
encontra na entrega, na certeza de que o amparo de Deus é solido e vivo, que o desapego só
promove a amplitude. -“Então, virtude não é fazer o bem e o melhor. Virtude é a aplicação do bem e
do melhor que possamos desenvolver em nós. Virtude é a consciência de refletirmos Deus.” - As
palavras ecoavam pelo recinto, naquele momento, não mais para instruírem Miwa, mas para que o
próprio George se instruísse.

Miwa tinha com ela a capacidade de compreender tudo em forma de imagens e tons de azul.
Fechava os olhos e via o branco de um tecido ir se tingindo, gradativamente, absorvendo aos poucos
o azul que daria vida onde antes só havia luz. As palavras de George formavam ondas de sentimento
que desenhavam em sua tela imaginaria, a representação do que o discurso pretendia fazer entender.

“A vida, Miwa, é um eterno oferecer e receber. E a troca do que trazemos, possuímos, conquistamos
em todo e qualquer sentido, ofertando aos nossos pares, ligados pelo espirito ou pelo sangue. A
virtude é essa troca. Compreende?” - os olhos de George estavam perdidos na luz que entrava na
sala pela vidraça, fazendo o ar mostrar inúmeras partículas que dançavam soltas na claridade. Por
um momento ele desejou ser aquela partícula.

Em seu quase transe, Miwa, compreendia e sentia o ensinamento, mas diferente de George que
desejava ser a partícula na luz, Miwa era o azul que tingia a tela. Era a tinta que a planta oferecia, e
que se deixava ser sugada pelo pano, fazendo a diferença, enriquecendo, melhorando e
fortalecendo.

Koji que estava ouvindo tudo, foi se aproximando de Miwa, abraçou-a pelas costas depositando um
beijo suave em seus cabelos negros e compartilhando do que ela sentia. De olhos fechados ela ainda
volitava nas sensações que a oferta generosa de George lhe provocaram.

Quando voltou para sua cela, entendeu que já passara tempo demais ali, e que desejava levar para o
mundo e as outras pessoas o que acabara de experimentar. Pensou que de nada adiantaria
permanecer naquele lugar, recebendo ensinamentos, uns sobre os outros, sem poder digerir nenhum.
Lhe bastava ter compreendido aquele sentido da vida. Lhe bastava ter reconhecido o que é
virtuosidade, mas não lhe bastava ter conhecimento, era preciso pintar o tecido de azul. Ela iria para
o mundo, e nele seria virtude.

Arrumou suas coisas, se despediu de todos e caminhou para a cidade. O tempo e a vida foram
retornando a Miwa aquele momento, onde ela jurou a si mesma que não importaria quantas vidas
houvessem desde que ela pudesse se dedicar aos sem voz, aos desamparados, aos tristes, aos
combalidos. E assim é até estes tempos. Assim foi onde me encontrei com ela naquele hospital
improvisado, mas que vivia de dedicação e amor. Será diferente hoje?

Em cada vida que eu acompanhava, eu me fortalecia. Queria voltar a estar no mundo pra cumprir as
promessas feitas a mim mesma. Fazer minhas tempestades… Como foi prometido por Hyfa eu
poderia voltar, mas ainda queria saber onde Lapin estava e pedi a ele se seria possível. Ele me
informou que deveria seguir como meu coração desejasse, e assim não muito tempo depois me vi
em um campo aberto, num lugar perdido no mundo, com um homem caído ao chão. Era meu Lapin.
Deveria ter cautela em me aproximar, mas também deveria mostrar ao mundo que aprendera tudo
que me foi proposto desde que deixei Bon. Mas não queria essa jornada sozinha, queria que Lapin,
meu Moche, estivesse comigo. Alguém duvida que consegui?

Mas me deixe tomar um pouco mais de seu tempo…

Seu Tata 01

Eu estava andando pela fazenda, averiguando as cercas, que de tempo em tempo, necessitam de
manutenção. Era um dia quente, sem qualquer vento e com sol ardendo na pele. Andamos muito
quando senti uma dor estranha no peito que me obrigou a  debruçar sobre o pescoço do Marfim.
Meu cavalo era robusto e só servia a mim, como tudo naquelas terras. Não lembro-me de ter caído,
mas acordei no chão, limpei as roupas da poeira e levantei, ainda com um pouco de tontura. Criei
Marfim desde seu nascimento, parido pela melhor égua da fazenda. Era preparado para só ser
montado por mim e voltar para a sede se alguma coisa acontecesse. Se por algum motivo em nossas
diligências ele se afastasse, era só assobiar que ele vinha, tranquilo, para perto. Sendo assim,
quando  percebi que Marfim estava distante, assobiei, mas estranhamente, ele não me atendeu.

“Estamos ficando velhos, meu amigo.” - Era só o que restava pensar.

Não sentia os pés firmes no chão, mas procurei aprumar o corpo e andar,  sem cambalear, até
alcançar o meu amigo teimoso e voltarmos para casa. Mas conforme me aproximava , vi que
focinhava alguma coisa e  estranhei, e quando cheguei mais perto, foi que levei um soco no
estômago,  pois era a mim que ele focinhava. Estava caído no chão, parado, parecendo desmaiado.
Achei que a batida na cabeça havia sido mais forte que pensei. Eu  estava estranho.

“Estranho não, meu querido, morto.”

Essas palavras vieram de uma voz estranhamente conhecida e  que provocaram uma onda de
irritabilidade que me fez virar e dar de topo com uma mulher nunca vista, de sotaque carregado e
que eu não sabia porque estava ali, falando comigo. Repentinamente  muitas coisas passaram na
minha mente e, sem entender nada daquilo, só sobrou um não sei quê de estranheza.

“Isso mesmo, morto. Bem morto, sem dúvidas, morto.”

Ela falava  como se estivesse feliz, e como se fosse  comum alguém dizer,sorrindo, com ar de
sarcasmo, que se está morto. Minha paciência, quase sempre  pouca, sumiu de vez, mas não
conseguia pronunciar uma palavra, me esforcei para falar, mas a boca se movia sem som.
Aquela mulher foi chegando mais perto, com os braços abertos, sorriso no rosto e ar de vitoriosa.

“Isso mesmo. Mortinho. Pode tentar gritar, esbravejar, fique à vontade, porque sendo precavida
como sou, cuidei de não podermos ouvir seus rompantes. Mas, se você se acalmar, posso explicar
tudo, meu querido. Agora, force a mente para lembrar-se de mim.... Não seria fácil  ter-me
esquecido.”

Em um segundo, mesmo sem querer, me recordei daquele rosto, daquela voz e vi em minha mente
as duas crianças. A menina era mais velha, com uns 10 anos, puxando um menino mirradinho e bem
mais novo. Ela pedia que andassem mais depressa pra não serem castigados  ao chegar  em casa,
mesmo sabendo que não existiria castigo algum. Isso era uma forma de assustar o menino, que
olhava para trás procurando o cachorro, que os seguia. Marfim, era  o nome daquele cachorro.

“Não!  Marfim era meu cavalo, mas também era aquele cachorro.”
Vi uma senhora obesa na porta da casa, limpando as mãos num avental encardido, ar de cansada.
Um amor imenso encheu o meu  peito e senti uma saudade que não sabia de quem. Melhor dizendo,
saudade daquela criatura robusta e macia, irritada e feliz. Minha mãe, isso, minha mãe.

“Vamos vcs dois, rapidinho para dentro. Lavem as mãos e o rosto, que o jantar estará na mesa logo
mais.”

O menino, que sabia ser eu, foi  puxado para o colo daquela mulher,  que com o avental esfregou
minha cara e me apertou, até meus ossos estralarem.
Quanto amor existia naqueles gestos, quanto carinho entre aquelas criaturas.
Um tapa na minha cabeça surgiu do nada me tirando daquele momento .
Um tapinha de brincadeira que a menina costumava dar toda vez que passava por mim. E foi assim,
por um tapa, que percebi que a menina era aquela mulher na minha frente.

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