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Publicado em NOVA ESCOLA Edição 240, 01 de Março | 2011

Prática pedagógica

Conhecimento prévio
Entenda por que aquilo cada um já sabe é a ponte para
saber mais
Elisângela Fernandes

Virou quase uma obrigação. Não há (ou pelo


menos não deveria haver) professor que inicie
a abordagem de um conteúdo sem antes
identificar o que sua turma efetivamente
conhece sobre o que será tratado. Apesar de
corriqueira nos dias de hoje, a prática estava
ausente da rotina escolar até o início do século
passado. Foi Jean Piaget (1896-1980) quem
primeiro chamou a atenção para a importância
daquilo que, no atual jargão da área,
convencionou chamar-se de conhecimento
Conteúdo em foco
prévio (leia um resumo do conceito na última
Ainda que não fosse seu objeto de página).
investigação, Piaget (em foto nos
anos 1970) inspirou reflexões sobre
As investigações do cientista suíço foram feitas
os conteúdos escolares essenciais
para aprender sob a perspectiva do desenvolvimento
intelectual. Para entender como a criança
passa de um conhecimento mais simples a
outro mais complexo, Piaget conduziu um trabalho que durou décadas no
Instituto Jean-Jacques Rousseau e no Centro Internacional de Epistemologia
Genética, ambos em Genebra, Suíça. Ao observar exaustivamente como os
pequenos comparavam, classificavam, ordenavam e relacionavam diferentes
objetos, ele compreendeu que a inteligência se desenvolve por um processo
de sucessivas fases (leia um trecho de livro na página 3). Dependendo da
qualidade das interações de cada sujeito com o meio, as estruturas mentais -
condições prévias para o aprendizado, conforme descreve o suíço em sua
obra - vão se tornando mais complexas até o fim da vida. Em cada fase do
desenvolvimento, elas determinam os limites do que os indivíduos podem
compreender.

Dessa perspectiva, fica claro que o cerne de sua investigação relaciona-se à


capacidade de raciocínio. Por não estudar o processo do ponto de vista da
Educação formal, Piaget não se interessava tanto pelo conhecimento como
conteúdo de ensino. Na década de 1960, esse tema mereceu a atenção de
outro célebre pensador da Psicologia da Educação, o americano David
Ausubel (1918-2008). "Ele foi possivelmente um dos primeiros a usar a
expressão conhecimento prévio, hoje consagrada entre os professores", diz
Evelyse dos Santos Lemos, pesquisadora do ensino de Ciências e Biologia do
Instituto Oswaldo Cruz.

De acordo com Ausubel, o que o aluno já sabe - a ideia-âncora, na sua


denominação - é a ponte para a construção de um novo conhecimento por
meio da reconfiguração das estruturas mentais existentes ou da elaboração
de outras novas. Quando a criança reflete sobre um conteúdo novo, ele ganha
significado e torna mais complexo o conhecimento prévio. Para o americano,
o conjunto de saberes que a pessoa traz como contribuição ao aprendizado é
tão essencial que mereceu uma citação contundente, no livro Psicologia
Educacional: "O fator isolado mais importante influenciando a aprendizagem é
aquilo que o aprendiz já sabe. Descubra isso e ensine-o de acordo".

Ao enfatizarem aspectos distintos do conhecimento prévio, as visões de


Piaget e Ausubel se complementam. "Para aprender algo são necessárias
estruturas mentais que deem conta de novas complexidades e também
conteúdos anteriores que ajudam a assimilar saberes", diz Fernando Becker,
professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Sondagens de saberes: como fazê-las bem

Não resta dúvida de que a força conferida ao conhecimento prévio


transformou as rotinas das salas de aula (leia a questão de concurso na última
página). Entretanto, ainda persistem alguns mal-entendidos relacionados ao
tema. O mais básico deles é realizar a sondagem do que a turma sabe, mas
não utilizar esse resultado no planejamento do trabalho diário. "De nada
adianta coletar informações se elas não servirem como guia para orientar
atividades, agrupamentos e intervenções", defende Tania Beatriz Iwaszko
Marques, docente da UFRGS.

Outro engano recorrente diz respeito à forma como as sondagens são


conduzidas. Para muitos professores, diagnosticar conhecimentos prévios
equivale a conversar com os alunos e ver o que eles sabem sobre o assunto.
Essa raramente é a melhor estratégia. Digamos, por exemplo, que o objetivo
de um docente de Educação Física é ensinar futebol. Dificilmente ele vai
conhecer a condição prévia de cada criança a não ser que as coloque para
jogar. "O caminho mais indicado para identificar os saberes dos estudantes é
propor situações-problema, desafios que os obriguem a mobilizar o
conhecimento que possuem para resolver determinada tarefa", afirma Regina
Scarpa, coordenadora pedagógica de NOVA ESCOLA.
Também vale pôr em xeque a tese de que todos os saberes que a turma
possui sempre colaboram para a construção de um conhecimento. Na
verdade, em alguns casos, eles podem até ser um obstáculo. No campo das
Ciências, por exemplo, a experiência empírica das crianças as leva a pensar
que, entre os seres vivos, aqueles que se locomovem são animais, enquanto
os demais são vegetais. Essa noção pode dificultar a compreensão de que
corais e esponjas sejam animais. A nova informação somente será
compreendida quando os alunos perceberem a incoerência explicativa da
ideia anterior. No caso, estudando as características específicas de
celenterados e poríferos e compreendendo que animais e movimento não são
características indissociáveis.

Conhecimento prévio não é sinônimo de pré-requisito

Um último ponto - fundamental - é desfazer a confusão entre conhecimento


prévio e os chamados pré-requisitos. Apesar do uso corrente como sinônimos,
no campo da Educação os dois termos não significam a mesma coisa.
Enquanto conhecimento prévio diz respeito aos saberes que os alunos já
possuem, os pré-requisitos constituem uma lista, muitas vezes arbitrária, de
conteúdos e habilidades sem as quais, teoricamente, não seria possível
avançar para o conteúdo seguinte. Há dois problemas com o uso de pré-
requisitos. O primeiro é excluir do processo educativo alunos que não
dominam determinado tema. O segundo é que, em muitos casos, os pré-
requisitos determinados pelo professor são aleatórios e não têm relação com
o processo de aprendizagem. Na alfabetização, por exemplo, pensava-se há
até pouco tempo que conhecer todas as letras do alfabeto era um pré-
requisito para começar a escrever. Hoje, as pesquisas psicogenéticas mostram
que isso não é verdade, já que as letras do nome próprio funcionam como um
primeiro referencial para as crianças arriscarem a escrita. "Trabalhar com
conhecimento prévio, em vez de pré-requisitos, aprimora o ensino", finaliza
Regina.

Trecho de livro

"Para que um novo instrumento lógico se construa, é preciso sempre instrumentos


lógicos preliminares; quer dizer que a construção de uma nova noção suporá
sempre substratos, subestruturas anteriores e isso por regressões indefinidas."
Jean Piaget, no livro Problemas de Psicologia Genética (coleção Os Pensadores)

Comentário
Para Piaget, todo conhecimento somente é possível porque há outros anteriores.
É dessa maneira que se desenvolve a inteligência. Desde o nascimento, as
pessoas começam a realizar um processo contínuo e infinito de construção do
conhecimento, alcançando níveis cada vez mais complexos. Construídas passo a
passo, as estruturas cognitivas são condições prévias para a elaboração de
outras mais complexas. Ao agir sobre um novo objeto ou situação que entre em
conflito com as capacidades já existentes, as pessoas fazem um esforço de
modificação para que suas estruturas compreendam a novidade.

Questão de concurso

Prefeitura de Teresópolis, RJ, 2005


Concurso para professor de Ciências

"Para que uma aprendizagem significativa possa acontecer, é necessário


investir em ações que potencializem a disponibilidade do aluno para a
aprendizagem, o que se traduz, por exemplo, no empenho em estabelecer
relações entre seus conhecimentos prévios sobre um assunto e o que está
aprendendo sobre ele." (PCN, 1998)

A afirmação acima destacada, partindo de uma perspectiva construtivista,


convida o professor a refletir que, ao iniciar uma nova situação de ensino-
aprendizagem, devemos considerar que:

a) Em geral, os conceitos prévios dos alunos são esquemas mentais


alternativos, imperfeitos, incompletos e, por isso, devem, desde o primeiro
momento, ser afastados do contexto da sala de aula e do ensino.
b) Antes de qualquer nova situação de ensino, deve ser feita uma investigação
extensa de todos os conhecimentos prévios que possam influenciar o objeto
de estudo, devendo ser discutidos apenas no início de uma situação de
ensino.
c) O conhecimento prévio dos alunos constitui um amplo esquema de
ressignificação, devendo ser mobilizado durante todo o processo de ensino-
aprendizagem, pois a partir deles o indivíduo interpreta o mundo.
d) A natureza da estratégia didática não influencia a disponibilização dos
conhecimentos prévios dos estudantes.
e) Todo conhecimento prévio surge do contexto social do estudante e,
portanto, deve ser substituído por meio da transmissão clara e objetiva de
novos materiais adequados de ensino.

Resposta: C.

Comentário
Os conhecimentos prévios dos alunos devem ser considerados pelos professores
durante todo o processo de ensino. Para que isso ocorra, é preciso planejar
situações desafiadoras, que coloquem em jogo o que os estudantes sabem, para
que eles possam refletir sobre as diferenças entre o conhecimento antigo e o novo
e seguir aprendendo.

Resumo do conceito
Conhecimento prévio
Elaboradores: Jean Piaget (1896-1980) e David Ausubel (1918-2008)
O termo designa os saberes que os alunos possuem e que são essenciais para
o aprendizado. Na década de 1920, Jean Piaget identificou as estruturas
mentais como condições prévias para aprender. Nos anos 1960, David
Ausubel chamou de conhecimento prévio os conteúdos fundamentais para
adquirir novos conhecimentos.

Quer saber mais?

CONTATOS
Evelyse dos Santos Lemos
Fernando Becker
Tania Beatriz Iwaszko Marques

BIBLIOGRAFIA
Piaget - Coleção Os Pensadores, Jean Piaget, 296 págs., Ed. Abril Cultural (edição esgotada)
Psicologia Educacional, David Ausubel, Joseph Novak e Helen Hanesian, 625 págs., Ed. Interamericana (edição
esgotada)

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