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Guerras do Século XXI: Considerações sobre Guerras Híbridas e

Lawfare
21st Century Wars: Considerations for Hybrid Wars and Lawfare

Mariléia Tonietto 1
Universidade Federal do Paraná (Curitiba, Paraná, Brasil)
marileiatonietto@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/2895281470238580

Larissa Ramina 2
Universidade Federal do Paraná (Curitiba, Paraná, Brasil)
raminalarissa@gmail.com
0000-0003-3359-9358

RESUMO:
O artigo trata das estratégias utilizadas pelos Estados Unidos com o fim de manter e
expandir sua hegemonia conquistada no pós-guerra fria. Aborda a ideia de guerra
híbrida e discorre acerca do lawfare ou guerra jurídica, práticas estas que imprimem
novas feições aos conflitos geopolíticos globais, consistentes em estratégias de
intervenção nos Estados soberanos, distintas das utilizadas nos embates bélicos
convencionais. A partir desses conceitos, analisa o emprego de tais práticas de guerra no
cenário contemporâneo. Destaca-se a América Latina, em países cujas políticas de
Estado não se alinhavam aos interesses dos externos. Notadamente o Brasil atuou com
protagonismo dos militares, mas também do sistema judiciário, além do alinhamento
com políticas neoliberais e subserviente aos Estados Unidos, a militarização da política,
movimento essencialmente oposto ao fortalecimento do Estado democrático de direito.
O ponto em comum observado no âmbito dessa estratégia de guerra - que se presta a
definir o espectro ideológico dos governantes que assumirão o comando de cada Estado
alvo, suas estratégias também se orientam para as disputas eleitorais – é o combate à

Como citar este artigo: TONIETTO, Marileia; RAMINA, Larissa. Guerras do Século XXI:
Considerações sobre Guerras Híbridas e Lawfare. Revista Brasileira de Pesquisa Jurídica, Avaré, v.2,
n.3. p. 37-55, set./dez. 2021. DOI: 10.51284/rbpj.02.tmrl
1
Mestra em Sociologia pela UFPR - Universidade Federal do Paraná, pesquisadora do Grupo de
Pesquisa INTER – Abordagens Críticas ao Direito Internacional.
2
Professora de Direito Internacional da UFPR – Universidade Federal do Paraná. Pós-Doutorado em
Direito Internacional pela Université de Paris Ouest Nanterre La Défense. Doutora em Direito
Internacional pela USP – Universidade de São Paulo. Coordenadora do Programa de Iniciação
Científica e Iniciação Tecnológica Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFPR.
Attribution-NonCommercial
ShareAlike 4.0 International
(CC BY-NC-SA 4.0)
Mariléia Tonietto e Larissa Ramina

corrupção. Sob tal fundamento, e contando com o aparato do sistema de justiça local,
tornam-se inelegíveis lideranças políticas, vilipendiam-se reputações e corrompem-se
democracias não consolidadas.

PALAVRAS-CHAVE: guerras híbridas, lawfare, geopolítica.

ABSTRACT:
O artigo treats of strategies used by the United States as a goal of maintaining and
expanding its conquered hegemony, not post-cold war. It addresses the idea of hybrid
warfare and disagreements about lawfare or legal warfare, these practices that imprint
new feições in global geopolitical conflicts, consistent with intervention strategies in
sovereign States, different days used in conventional war attacks. Starting from two
conceits, I analyze or undertake such non-contemporary war practices. Latin America
stands out, in countries whose State policies are not aligned with external interests.
Notably, Brazil has two military leaders, but also the judicial system, in addition to
being aligned with neo-liberal policies and subservient to the United States, to the
militarization of politics, a movement essentially opposed to or strengthening the
democratic state of direct rule. Or, as a common point of view, there is no scope for the
war strategy - which lends itself to defining the ideological spectrum of the two rulers
who assume or command each State, their strategies are also geared towards electoral
disputes – or fighting corruption. On this foundation, and counting as an apparatus of
the local justice system, political leaders become inelegible, vilify their reputations and
corrupt unconsolidated democracies.

KEYWORDS: hybrid wars, lawfare, geopolitics.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. As novas feições dos confrontos geopolíticos 3. Guerras


híbridas 4. Lawfare como tática de guerra 5. Considerações finais

1. Introdução

A vigência do Estado democrático de Direito pressupõe a existência de


instituições representativas da democracia. O Brasil, há poucas décadas saído do regime
ditatorial militar, se caracteriza por apresentar uma democracia ainda incipiente, não
consolidada, à semelhança de seus vizinhos da América Latina, que somada a outras
vulnerabilidades, cria o ambiente propício à interferência de Estados estrangeiros e de
atores não estatais na soberania nacional.
Segundo Pedro Serrano (2020), o Estado de Direito é uma concepção abstrata
que não se concretizou plenamente em nenhuma sociedade histórica conhecida e,
enquanto projeto de realização humana, é o resultado de constantes lutas da humanidade
contra o autoritarismo estatal. Verifica-se, na atualidade, o que o jurista chama de

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autoritarismo líquido, fenômeno que se expressa no interior de regimes democráticos


mediante a prática de medidas de exceção, sem, no entanto, instalar-se um típico
governo de exceção. Manifesta-se tanto em países desenvolvidos quanto
subdesenvolvidos, mas apresenta diferenças substanciais no seu modus operandi em
diferentes nações. Nos primeiros, as medidas de exceção geralmente se inserem no
ambiente de um regime jurídico de proteção à segurança nacional, enquanto nos
segundos, particularmente na América Latina, são agenciadas pelo sistema de justiça,
que conta com o imprescindível apoio da mídia com vistas a obter respaldo social.
Nesse estudo, aborda-se, num primeiro momento, a tentativa dos Estados
Unidos de perpetuarem sua hegemonia global, bem como algumas de suas estratégias de
interferência nos Estados soberanos. Em seguida, discorre-se acerca da guerra híbrida,
no âmbito da qual se insere o lawfare ou guerra jurídica e, por fim, a aplicação desta
estratégia de guerra no cenário contemporâneo.

2. As novas feições dos confrontos geopolíticos

No contexto mundial, a queda do muro de Berlim simbolizou o fim da guerra


fria e evidenciou a unipolaridade estadunidense no sistema internacional.
Particularmente na América Latina, a atuação dos Estados Unidos impôs a adoção do
Consenso de Washington3 pelos demais países do continente, mediante assinatura de
tratados multilaterais de comércio, a exemplo do Acordo de Livre Comércio da América
do Norte (NAFTA) e do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) de 1994, este
último no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC). Já a Área de Livre
Comércio das Américas (ALCA) e o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), este
negociado no âmbito da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) com vistas a refletir em esfera global, nunca se efetivaram, restando
infrutíferas as reiteradas tentativas de implementação. Os governos democráticos
instalados na região ao final da década de 1990 impediram o êxito da estratégia de
expansão do quadro liberalizante a todos os países do continente americano. Para

3
Estratégias traçadas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial destinadas a
implementar políticas neoliberais em países subdesenvolvidos. Na América Latina, se consolidaram no
final da década de 1980 e na década de 1990.

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Rodrigues (2020), o surgimento de diferentes atores na região, tanto internos quanto


externos, pode ser atribuído a variados fatores, como a ação internacional da
administração George W. Bush, que não priorizou a América Latina, pois seu foco
principal era o combate ao terrorismo, tanto que sob seu governo foi implementado o
Projeto para o Novo Século Americano (PNAC) como forma de concretizar sua retórica
de unilateralismo, e cuja pretensão era ampliar e consolidar a hegemonia estadunidense
como única superpotência no cenário mundial. A isso, somam-se a falta de políticas para
a região, a dificuldade em concretizar parcerias bilaterais e, ainda, a crise financeira de
2008. Por sua vez, Barack Obama fortaleceu as ações de seu antecessor na tentativa de
implantar o totalitarismo dos Estados Unidos de forma a obter a consecução de seus
objetivos centrais, quais sejam, a conquista de posições estratégicas e a promoção de
guerras com vistas a buscar mercados e assegurar acesso a recursos naturais, ainda que
às custas de intervenções diretas na soberania de Estados soberanos. O autor enumera os
mecanismos adotados pelos Estados Unidos para demover seus potenciais competidores
da pretensão de líderes regionais/globais:

Especificamente para a América do Sul, os objetivos da estratégia


hemisférica dos EUA buscam manter sua supremacia e presença militar,
reduzindo as forças militares dos países da região; difundir a agenda de
liberalização econômica ampla, através de acordos bilaterais ou regionais;
dominar os recursos e mercados do hemisfério; contrapor a expansão chinesa
e a ascensão do Brasil na região, minando seus projetos regionais
(MERCOSUL, UNASUL e BRICS). No caso específico da América do Sul,
consiste em brecar o protagonismo regional e internacional do Brasil, através
da inviabilização dos projetos de integração regional, destruição de
complexos econômicos por vias diretas e indiretas (como as empreiteiras
brasileiras e empresas relacionadas ao pré-sal), e submissão da política
externa brasileira aos interesses imediatos dos Estados Unidos
(RODRIGUES, 2020, p. 143).

Simultaneamente, outras ingerências internacionais são postas em curso na


América Latina. Na área do direito internacional, a potência hegemônica, por meio do
uso da extraterritorialidade sem elementos de conexão suficientes e de mecanismos
transnacionais de persecução como veículos de combate a crimes de tráfico de drogas,
terrorismo e corrupção – todos estes elevados a categoria de crimes transnacionais –
logrou êxito em aplicar sua legislação nacional em território estrangeiro.

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Rubens Casara (2019), ao analisar as arbitrariedades perpetradas por sistemas


de justiça em diferentes países em nome do combate à corrupção, as quais envolvem
desde personalidades políticas até jornalistas, considera haver uma mutação no
paradigma da corrupção real decorrente da aproximação entre poderes político e
econômico. Como resultado, os detentores de poder econômico transfiguram interesses
privados em públicos, cenário no qual o sistema de justiça torna-se importante palco de
lutas políticas, no sentido de que o Direito, os tribunais e os operadores jurídicos têm se
prestado a servir de armas contra adversários políticos.
Essas estratégias de intervenção nos Estados nacionais, cujos contornos fogem
do embate bélico convencional, evidenciam a busca por assegurar e expandir os
interesses da potência hegemônica no pós-guerra fria. Em que pese a democracia dos
Estados Unidos apresentar sintomas de declínio, perdura sua prática de buscar exportá-
la mundo afora, ainda que mediante o uso da guerra. Essa é a análise do historiador Luiz
Alberto Moniz Bandeira (2016), que em sua obra intitulada “A desordem mundial: o
espectro da total dominação”, discorre acerca das relações internacionais e dos
problemas internos vividos pela grande potência mundial. Dentre os motivos elencados
pelo historiador que justificam o processo de decadência da democracia naquele país
inclui-se a redução das garantias assecuratórias dos direitos fundamentais, a exemplo de
prisões arbitrárias e assassinatos, sob a justificativa de combate ao terrorismo, motivo
este que escamoteia suas reais causas, quais sejam, interesse em ocupar o mercado
interno de outros Estados e irresignação quanto ao surgimento de grandes potências não
submissas a sua influência.
À luz desta perspectiva, Moniz Bandeira (2016) considera que os interesses
geopolíticos e econômicos da Rússia e da China obstaculizam a hegemonia
estadunidense e pavimentam o caminho para um mundo multipolar. No entanto, o
pesquisador adverte que a ameaça representada por uma grande potência, mesmo
tecnologicamente superior, mas acometida por alguma carência ou desvantagem,
especialmente no campo energético, pode ser ainda maior quando há perda de sua
supremacia, se comparado a simples busca por perpetuar sua hegemonia. Essa análise
remete a um evento recente havido no Brasil, que redefiniu sua posição geopolítica
alterando substancialmente seu poder de influência na política internacional: a
descoberta do pré-sal. A partir de então, uma cadeia de acontecimentos desencadeou

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crises políticas e institucionais que comprometeram seus projetos futuros de nação.


Conforme observa o historiador, não existe casualidade, mas causalidade. Os fatos se
sucedem por razões muitas vezes desconhecidas.

3. Guerras híbridas

Em artigo publicado por Dourado, Leite e Nobre (2020), considerando o fato


de não haver Estado capaz de afrontar o domínio dos Estados Unidos, os autores
discorrem acerca das chamadas guerras assimétricas e irregulares, que se caracterizam
pela desigualdade das relações de poder existentes entre os Estados contendores ou no
âmbito de um Estado nacional, e cujo foco principal é obter apoio da opinião pública,
interna e estrangeira. Por tal razão, consideram necessário alargar a tipologia dos
conflitos em curso na atualidade, os quais compreendem os conceitos de guerra de
quarta geração, guerra irregular, guerra assimétrica e guerra composta. Segundo os
autores, estas espécies de guerra interferem no conceito da chamada guerra híbrida, a
qual consiste num conjunto de estratégias regulares e irregulares aplicadas
simultaneamente para atingir um objetivo político comum.
A guerra híbrida seria, portanto, um fenômeno que representa as guerras de
quarta geração. Conta com atores estatais e não estatais que lançam mão de distintas
tecnologias numa combinação de estratégias e abordagens inovadoras, forjando uma
fusão de diferentes modos e meios de guerra (RODRIGUES, 2020, p. 145-146).

Dentre suas características, os protagonistas estatais e não estatais atuam num


contexto histórico pós-industrial de guerra irrestrita, que objetiva auferir
resultados psicológicos e afetar a opinião pública. Logo, possíveis
indicadores mensuráveis da vitória não seriam territórios conquistados ou
quilômetros percorridos por dia dentro do território inimigo, e sim o espaço
na mídia e a aceitação popular, atuando, portanto, no campo psicossocial. (…)
Comparando-se com as guerras do passado, este tipo seria mais fluído,
descentralizado e assimétrico. Uma vez confirmada a existência de atividades
de atores desvinculados diretamente do Estado, ratifica-se a dificuldade de
distinção entre o civil e o militar. Outra característica fundamental para a
compreensão da Guerra Híbrida é a denominação de 'liderança velada'
(RODRIGUES, 2020, p. 148).

Para o antropólogo Piero Leirner (2020), guerra híbrida, chamada pelo


historiador Moniz Bandeira (2016) de guerra por procuração (proxy war), pressupõe
uma imbricada relação entre guerra e política, cujas estratégias objetivam causar

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dissonâncias cognitivas capazes de provocar nas pessoas alterações comportamentais a


ponto de induzirem-nas a trabalhar a favor de quem ataca. O pesquisador defende em
sua obra que o Brasil se constitui num laboratório onde tal prática foi empregada, e que
resultou na chamada “cismogênese4”, originando acirradas divisões sociais que obstam
à construção de qualquer pacto social. Mas aponta uma novidade para o caso brasileiro:
a guerra híbrida teve início no núcleo militar, a partir do qual se espalhou, ao contrário
do que se observa em outros países incursos nessa mesma estratégia de guerra, nos
quais as Forças Armadas representaram a etapa final a ser atingida, somente anterior às
lideranças do núcleo administrativo.

(…) os militares produziram uma 'operação psicológica interna', e depois


encontraram um terreno aberto para agir em uma espécie de modo invasivo
em relação a outros setores do Estado. De certa maneira, foi sintomático que
os militares tivessem encontrado eco nas operações da Justiça contra o PT,
uma “música para seus ouvidos”, confirmando teses que eles vinham
construindo há anos. Acoplar a guerra híbrida a isso foi uma questão de
tempo (...) (LEINER, 2020, p. 27).

O autor considera que as manifestações populares desencadeadas em 2013 sob


o fundamento da reivindicação pela redução da tarifa do transporte público na cidade de
São Paulo, as chamadas “Jornadas de Junho”, embora evidenciem elementos
caracterizadores de uma típica revolução colorida, não se constituem no marco que
desencadeou a guerra híbrida no Brasil. Analisa os diversos eventos que concorreram
para o seu advento, bem como os setores do próprio Estado envolvidos na sua
preparação, com destaque para a série de movimentos militares geradores de mensagens
subliminares destinadas à sociedade, as quais efetivamente instalaram os elementos da
guerra híbrida (LEINER, 2020, p. 26). Considera como sendo o “front” desse cenário a
emergência de determinados indivíduos que atuaram como elementos de
desestabilização do establishment estatal, a exemplo da figura de Olavo de Carvalho5,
cujas concepções foram acolhidas nos quarteis. O enredo que se engendrava há anos

4
Leiner (2020, p. 188) define cismogênese “como um processo de diferenciação nas normas de
comportamento individual resultante da interação cumulativa dos indivíduos. (...) Temos não apenas de
considerar as reações de A ao comportamento de B, mas ir adiante e considerar como estas afetam o
comportamento posterior de B e o efeito disso sobre A.”
5
Para entender a relação de Olavo com o bolsonarismo, ver: GORTÁZAR, Naiara Galagarra. EL PAÍS.
Olavo de Carvalho, o onipresente oráculo do bolsonarismo. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/14/politica/1555201232_670246.html Acesso em: 20 de maio de
2021.

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acerca do anticomunismo dos anos 1930-1970 se desdobrou em antipetismo (p. 30).


Destaca, ainda, o papel desempenhado pelo Poder Judiciário, evidenciado a partir do
emblemático julgamento conhecido como mensalão, que produziu a “teoria do domínio
de fato” e culminou na chamada “Operação Lava Jato”. O autor, referindo-se à obra de
Andrew Korybko (2018), ressalta que a teoria da guerra híbrida consiste em adotar
estratégias de abordagem indireta, deixando a cargo dos diversos atores sociais operar
em seu favor, mediante uso de redes de comunicação descentralizadas que se prestam a
desestabilizar nações. (p. 299)
Estudioso da etnografia dos militares, Leiner (2020) considera serem diversos os
fatores que resultaram no cenário político reacionário que se instalou no País a partir de
2018, dentre os quais destaca o protagonismo dos militares para a retomada do poder,
agora de maneira diversa, e suas estratégias de atuação no contexto de uma guerra
híbrida. Em sua obra, discorre acerca dos elementos interligados que caracterizam “o
avanço da guerra híbrida entre e pelos militares”, sinteticamente descritos a seguir:

1: a camuflagem. Ninguém percebeu que havia militares agindo no sentido de


provocar um conjunto de dissonâncias. Primeiramente esta ação ocorreu no
interior das próprias Forças Armadas, depois foi sincronizada com outros
poderes, especialmente o Judiciário; finalmente adentrou a população,
camuflada no interior da campanha eleitoral.
2: a abordagem indireta. Tal qual a estratégia da abordagem indireta, os
militares “operaram” através de outros agentes na sociedade, que vão desde
movimentos populares até o chamado mercado, mas também, e
principalmente, a Justiça. É preciso ter este ponto bem ressaltado: a partir do
momento em que uma guerra híbrida começa, uma série de agentes atua sem
que se tenha uma ligação direta com o centro decisório. A guerra híbrida
funciona como um dispositivo que aciona comportamentos, como a
cismogênese. Esta, em sua forma simétrica aciona uma escalada horizontal
do conflito: aumenta seu espectro, envolve cada vez mais pessoas e grupos.
Assim, toda estratégia se baseou na ideia de que as fraturas eram produzidas
pelo “outro lado” e por “inversões” de papéis, o que em denominação militar
são as operações de false flag, e este padrão se disseminou por vários agentes
sociais.
3: a criptografia. Foram disparadas tantas bombas semióticas que se
perderam duas noções muito importantes no processo político: a percepção
de quem é aliado e quem é inimigo; e as noções de tempo e espaço: não se
tem a ideia de quando os processos foram disparados, eles não coincidem
com os eventos; não se sabe o que é o front e o que é a retaguarda, todo o
conflito está descentralizado (LEINER, 2020, p. 277-278).

Para o pesquisador, eventos como a deposição da presidente Dilma Rousseff


pelo Congresso Nacional e a realização das 'eleições dentro das regras do jogo em 2018'

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foram tão somente efeitos colaterais da guerra híbrida, uma “guerra que, enfim, depende
de conceitos, ideias e processos mentais para se efetivar” (LEINER, 2020, p. 192).
Na obra intitulada “Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes”,
Andrew Korybko (2018) desvela as estratégias utilizadas na implementação desse novo
modelo de guerra desenvolvido pelos Estados Unidos. Para tanto, debruça-se sobre os
eventos estruturais havidos na Síria e na Ucrânia. Chamada pelo autor de 'caos
estruturado', a guerra híbrida apresenta-se como um pacote híbrido excepcional de
dominação intangível e tangível das variáveis do campo de batalha, constituindo-se
tanto numa estratégia quanto numa arma de guerra. Em seu âmbito, e consideradas um
de seus pilares, são operadas as chamadas revoluções coloridas, eventos fabricados, no
sentido de inexistir espontaneidade em seu processo de formação. Tal como campanhas
de publicidade, as revoluções coloridas são produzidas de antemão à sua implementação
mediante disseminação de informações que veiculam ideias contrárias a determinado
governo de forma a produzir consenso de parcela da população a ponto de desencadeá-
las. A massa de indivíduos envolvida em tais eventos não tem consciência do papel que
desempenha, sendo meramente usada para imprimir legitimidade ao golpe posto em
curso.
Ainda segundo o autor, as revoluções coloridas devem seus fundamentos
básicos às técnicas de psicologia das massas e sofreram influência decisiva da obra
intitulada “Propaganda”, publicada por Edward Bernays em 1928, cujo entendimento é
de que as relações públicas resultam da associação dos princípios da publicidade e da
projeção à população em massa, não por acaso, ambos presentes na comunicação da
mensagem das revoluções coloridas. Para Bernays, um pequeno número de pessoas é
capaz de orientar a forma de pensar das massas, conclusão advinda do estudo
sistemático da psicologia das massas que evidenciou a potencialidade do controle
intangível da sociedade por manipulação dos motivos que mobilizam o indivíduo em
grupo, mas que diferem dos que estimulam o indivíduo isoladamente. Nesse contexto,
as redes, a tecnologia da informação e os meios de comunicação figuram como
elementos centrais (KORYBKO, 2018).
Korybko (2018) discorre pormenorizadamente acerca das estruturas que
sustentam as revoluções coloridas e dos métodos de interferência estrangeira para
infiltrar-se nas redes sociais com o fim de criar a chamada “mente colmeia” e

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disseminar determinada mensagem, contrária ao governo, para amplo público. A


combinação exitosa dos elementos envolvidos permite a propagação da ideia da mesma
forma como se comporta um vírus ao disseminar sua infecção num sistema biológico ou
tecnológico. Tal é a base, em apertada síntese, das revoluções coloridas.
A interferência estrangeira se concretiza mediante atuação nas redes sociais de
forma a mobilizar em torno de um alvo comum diferentes pessoas como uma espécie de
consciência coletiva. Nesse contexto, a atuação da mídia tradicional tem papel decisivo,
já que reproduz as mensagens e os comandos emitidos pelos diversos centros emissores
das convocações dos atos, proporcionando o estabelecimento de uma verdadeira teia de
comunicação virtual. Assim, de forma deliberada, e não aleatória como se poderia supor,
a intencionalidade do movimento se dá no sentido de atingir o centro administrativo do
poder e a consequente troca de regime.
Ainda conforme o autor, o segundo pilar de sustentação das guerras híbridas
são as chamadas guerras não convencionais. Korybko (2018) as conceitua como sendo a
continuação de um conflito já existente numa sociedade. Seu papel consiste, portanto,
em secundar o movimento já em curso para derrocada do governo. Não por acaso os
conflitos que as antecedem são as revoluções coloridas. Desenvolvendo-se sobre as
bases da rede de indivíduos por esta tecida, as guerras não convencionais evoluem
organicamente daquelas, e cumprem o mesmo objetivo de provocar a troca de regime de
determinado Estado nacional. Se constituem num segundo estágio da guerra híbrida,
mais letal. O autor menciona os casos concretos da Síria e da Ucrânia, países que
sofreram o mesmo padrão de abordagem, o que evidencia que tal estratégia pode ser
empregada em diferentes contextos.
Ambos os pilares da guerra híbrida – revoluções coloridas e guerras não
convencionais – têm relação com a geopolítica e visam a aniquilar governos
desfavoráveis ou insubmissos aos Estados Unidos e a sua política internacional: as
primeiras se constituem em golpes brandos, enquanto as segundas se constituem em
golpes rígidos. Ainda, ambas lançam mão de atores por procuração: respectivamente,
procuradores políticos e sociais para esgarçar o tecido social do Estado e procuradores
armados para romper concretamente as conexões entre os elementos sociais.
O autor conclui que o monopólio do emprego da guerra híbrida é exercido,
atualmente, pelos Estados Unidos, que manterá tal condição ainda pelos próximos anos.

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No seu entendimento, para se tornarem menos suscetíveis a esse tipo de investida,


caberia aos Estados nacionais, entre outras estratégicas, estabelecerem salvaguardas
civilizatórias de forma a incluir as mais diversas demografias sociais, étnicas e
econômicas que culminem na criação da “mente colmeia” em favor do governo alvo da
ingerência estrangeira (KORYBKO, 2018).
Na concepção de Andrew Korybko, os fenômenos fabricados descritos
anteriormente têm por objetivo, particularmente no hemisfério oriental, dificultar a
viabilização de projetos da China de implantação da chamada nova rota da seda. Em
entrevista concedida em 2018, Korybko (apud LUCENA; LUCENA, 2018) relatou os
principais motivos pelos quais considera que o Brasil tenha se tornado alvo da guerra
híbrida: inicialmente, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva e seu movimento em
direção à multipolaridade – contexto no qual a China ocupa posição de destaque - e,
posteriormente, a descoberta do pré-sal. A posição de independência adotada por Lula e
por sua sucessora, Dilma Rousseff, acerca dos depósitos do pré-sal e de outras questões
geopolíticas relevantes os tornaram alvos legítimos dos Estados Unidos, que temiam
que a forma como os dois governantes conduziam a nação anteciparia seu declínio
hegemônico no hemisfério, caso não fossem rapidamente detidos.
Nas “Jornadas de Junho” a internet teve papel fundamental, uma vez que as
convocações para os atos se deram por intermédio das mídias sociais. A manipulação da
“mente colmeia” culminou com a destituição de Dilma Rousseff da Presidência da
República, cujos sucessores adotaram políticas de governo subservientes frente aos
interesses dos Estados Unidos. Desde então, o País reassumiu seu limitado papel de
produtor de commodities, reduzindo-se a uma fazenda agroexportadora de extensões
continentais. O desmonte nacional se deu mediante a implementação de reformas,
notadamente a trabalhista e a previdenciária, da retomada da agenda de privatizações, da
desindustrialização, do agravamento das disparidades sociais, do desemprego e do
consequente aprofundamento do projeto neocolonial. As estratégias adotadas no âmbito
das mobilizações de 2013 no Brasil, e que culminaram na mudança de regime, parecem
refletir aquelas adotadas nas revoluções coloridas descritas por Korybko (apud
LUCENA; LUCENA, 2018), como o próprio autor revela em entrevista citada
anteriormente. No entanto, a estratégia não foi implementada somente no Brasil. Países
vizinhos, e não por mera coincidência aqueles não alinhados com a política dos Estados

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Unidos, foram palco das estratégias da guerra híbrida.

4. Lawfare como tática de guerra

No âmbito da guerra híbrida se insere o chamado lawfare, expressão cunhada a


partir da associação das palavras law e warfare, significando o uso do direito (da lei)
como arma de guerra. Romano (2020) conceitua lawfare ou guerra jurídica como sendo
o uso indevido de ferramentas jurídicas para a perseguição política; a aplicação da lei
como arma para destruir o adversário político pela via judicial, de forma a sobrepor o
Poder Judiciário ao Legislativo e ao Executivo. Segundo Casara (2019), lawfare designa
a instrumentalização da justiça com o fim político e ideológico. Tal fenômeno se utiliza
do sistema de justiça como espaço de guerra contra pessoas tidas como 'inimigas', e
cujas armas consistem em interpretações deturpadas de leis, institutos, procedimentos e
categorias jurídicas. Pode-se considerar, portanto, que lawfare é espécie do gênero
guerra híbrida, no sentido de constituir-se num de seus elementos ou métodos de
abordagem com objetivos geopolíticos, econômicos e de perseguição política, uma vez
que o arcabouço legal se presta a substituir a força bélica tradicional, com menor
dispêndio de recursos financeiros.
O lawfare, todavia, não é só empregado contra personalidades inimigas, mas
também contra empresas e corporações com a finalidade de eliminar concorrentes,
expandir mercados, mas em nome do pretenso combate à corrupção. Segundo Proner
(2020), ele se expressa mediante práticas elaboradas e corroboradas pela
extraterritorialidade, em especial aquela imposta pelos Estados Unidos, que se constitui
num dos componentes das guerras híbridas implementadas por meio do direito. Trata-se
de organizada teia de legislações que interfere diretamente na soberania de Estados
nacionais que com aquele país estabeleçam transações econômicas. Em sua análise, a
jurista discorre acerca do aprimoramento das leis no âmbito da evolução da
extraterritorialidade dos EUA: I. Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), de 1977,
criada para combater o suborno de funcionários norte-americanos no exterior; II. Patriot
Act, que trata da ampliação da FCPA de forma a possibilitar a combinação entre
legislação e instituições com o fim de prevenir ataques terroristas dos chamados Estados
'párias'; III. Dodd-Frank Act, que regulamenta em minúcias o mercado financeiro norte-

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americano com o objetivo de obter declaração de culpa e fazer incidir a


responsabilidade extraterritorial; IV. Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA),
Justice Against Sponsors for Terrorism Act (JASTA) e Society for Worldwide Interbank
Financial Telecommunication (SWIFT), que em apertada síntese pode-se dizer que
regulam o sistema bancário com foco no serviço de prevenção ao terrorismo. Para além
dessa trama legislativa, Carol Proner (2020) inclui os órgãos de Estado estadunidenses,
que, por meio de suas agências e agentes, possibilitam a imposição da
“extraterritorialidade coercitiva unilateral”6, além da participação não menos importante
de grandes escritórios de advocacia, responsáveis pela elaboração de contratos de
leniência. O objetivo não é outro senão a desestabilização econômica, empresarial e
política que resulta em ganhos para os Estados Unidos.
No mesmo sentido, José Carlos Moreira da Silva Filho (2019), ao discorrer
acerca do lawfare, se refere à instrumentalização e ao protagonismo da esfera judicial,
incluindo instituições como Ministério Público e forças de segurança, cuja estratégia é
“fazer largo e amplo uso dos procedimentos institucionais, demarcados legalmente, para
contorcer e superar os limites legais ao exercício do poder, tudo em nome do controle e
do combate à corrupção, permitindo a um só golpe que o alvo inimigo seja
bombardeado por operações, denúncias e processos e que também seja criada para a
opinião pública em geral a aparência de normalidade e legalidade.” Estratégia, portanto,
para a qual o direito se presta a imprimir o verniz da legitimidade.
Ainda, Silva Filho (FACHIN, 2019) observa que mediante tais práticas são
criadas falsas justificativas para corromper barreiras de princípios e de fundamentos
jurídicos que se constituem em antídotos contra arbitrariedades de regimes autoritários.
A esse respeito, menciona a emblemática polêmica acerca da prisão antes do trânsito em
julgado de sentença penal condenatória, que contraria o próprio texto constitucional
promulgado em 1988. O jurista alerta que 41% das pessoas presas no Brasil sequer
foram julgadas. Sob o fundamento científico da criminologia positivista, os
encarceramentos decorrem de decisões que se sustentam em preconceitos e
discriminações quanto à origem social, econômica e étnica do detento.
Voltando a análise para a América Latina, a última década do século XX

6
Nomenclatura proposta no trabalho citado.

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Mariléia Tonietto e Larissa Ramina

testemunhou a generalização dos governos neoliberais que sucederam às ditaduras


militares na região. Ao mesmo tempo, ocorreram graves crises nas principais economias
da América Latina - México, Brasil e Argentina - que, por sua vez, levaram ao
surgimento de governos progressistas cujo principal projeto consistia em se opor à
agenda neoliberal. Foi o caso de Hugo Chávez na Venezuela em 1998, Luiz Inácio Lula
da Silva no Brasil em 2002, Tabaré Vázquez no Uruguai em 2005, Nestor Kirchner na
Argentina em 2003, Evo Morales na Bolívia em 2005, Rafael Correa no Equador em
2006 e Maurício Funes em El Salvador em 2009.
Contra os governos neoliberais, os governos progressistas enfatizam
novamente as políticas sociais e diferem em suas decisões sobre como entrar no
mercado internacional. Eles rejeitam as políticas de livre comércio com países
hegemônicos e priorizam iniciativas de integração regional e sub-regional. No caso
específico do Brasil, após a rejeição da Área de Livre Comércio das Américas - ALCA,
proposta pelos Estados Unidos, o acento foi deslocado para a diversificação da agenda
comercial brasileira com a inclusão do comércio intrarregional e o fortalecimento do
MERCOSUL, especialmente as relações com a Argentina. A criação da União de
Nações Sul-Americanas - UNASUL, criada em 2008 com o impulso brasileiro, é um
reflexo dessa tentativa de estreitar os laços sul-americanos. Composta pela Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e
Venezuela, seus objetivos, baseados na história da solidariedade e unidade sul-
americana, são principalmente políticos, mas contemplam também questões sociais e
econômicas. O foco na construção de uma identidade sul-americana abriu espaço para a
consolidação das negociações que vinham sendo conduzidas desde 2001, inicialmente
entre Brasil e Chile, para a criação de um órgão sub-regional ou de cooperação em
matéria de defesa.
Sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua política
ativa e altiva, a América do Sul iniciou o século XXI com um explícito projeto de
integração subcontinental, determinada a possibilitar uma inserção favorável no
comércio internacional globalizado. O crescimento econômico global contribuiu para
isso, acompanhado da resistência dos países em desenvolvimento em se submeterem a
um novo ciclo de exploração comercial pelos países desenvolvidos, o que levou ao
colapso da Rodada de Doha. Os maiores entraves no caminho da integração surgiram,

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não só com a crise de 2008, com seu epicentro nos Estados Unidos, na hegemonia do
capital financeiro, mas também com o acordo militar entre Colômbia e Estados Unidos
em meados de 2009 para usar sete bases militares colombianas. O acordo resultou de
uma estratégia dos Estados Unidos de aumentar sua presença militar na região, de
enfrentar a União Européia, China e Rússia através do controle da América Latina, além
de proteger dutos para garantir o futuro abastecimento de Petróleo (RAMINA et al,
2020).
Acerca de um caso concreto, Oliveira (2020) aborda a aplicabilidade do
conceito de lawfare como modelo de análise de investigação do Acordo de
Salvaguardas Tecnológicas (AST) Brasil/Estados Unidos com relação ao Centro de
Lançamento de Alcântara (CLA), firmado em 2019. Define esse neologismo como
sendo a expressão do uso instrumental de instituições e de normas jurídicas com o
propósito de obtenção de vantagem de caráter militar sem que se lance mão de qualquer
meio bélico tradicional. Afirma que o direito tem sido largamente utilizado nos conflitos
contemporâneos para planejar e executar operações militares nos mais diversos âmbitos,
de forma a legitimar e legalizar hostilidades em instâncias nacionais ou internacionais e,
ainda, interferir na opinião pública.
O autor considera, ainda, que a dinâmica de atuação do lawfare é abrangente,
por ser capaz de movimentar diversas áreas jurídicas e ser aplicável em variados tipos
de instituições, ultrapassando os limites do direito internacional e especificamente do
direito internacional humanitário. Outro aspecto de destaque diz respeito ao menor custo
relativamente a recursos humanos, materiais e políticos que o uso desse mecanismo
jurídico movimenta. Mostra-se estratégico e instrumental, aplicável, portanto, no âmbito
do Direito Internacional em fóruns internacionais bem como nos respectivos direitos
internos em fóruns nacionais.
A partir dos estudos desenvolvidos, o autor, embora aponte a ressalva da
necessidade de aprofundamento teórico e metodológico relativos aos estudos sobre
lawfare, conclui haver evidências da prática de lawfare no AST entre Brasil e Estados
Unidos relativamente ao uso do CLA. Por meio de mecanismos jurídicos, os Estados
Unidos teriam praticado cerceamento tecnológico com o fim de restringir o poder
militar brasileiro, ao negar acesso à tecnologia de foguetes, que são potenciais vetores
de armas de destruição em massa.

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Mariléia Tonietto e Larissa Ramina

Além do Brasil, diversos países latino-americanos foram palco da guerra


jurídica, de forma que se assiste, ao longo da última década, o protagonismo político
dos tribunais em vários desses países. Principalmente em períodos eleitorais, são
implementados processos anticorrupção em face de importantes lideranças. Os casos
mais emblemáticos são a operação Lava Jato no Brasil, ligada ao golpe contra Dilma
Rousseff e a prisão de Lula da Silva; a prisão de Jorge Glas e os processos abertos
contra Rafael Correa no Equador; os processos abertos contra Cristina Fernández de
Kirchner e a prisão de vários ex-funcionários de sua administração. Trata-se da guerra
travada pelos tribunais, que instrumentaliza o uso da lei como arma de guerra
(ROMANO, 2020).
Segundo análise realizada por Martins e Martins (2018), referindo-se aos
ensinamentos de John Comaroff, afirmam que lawfare é uma prática com objetivos
militares, políticos, comerciais e geopolíticos. Se desenvolve a partir de três dimensões,
quais sejam, escolha da lei, escolha da jurisdição, e externalidades, estas vinculadas ao
papel da mídia, responsável por viabilizar o emprego do lawfare perante a opinião
pública. Seu alcance abrange estratégias consideradas simples, mediante iniciativas
jurídicas adotadas por empresas contra seus concorrentes, mas também complexas, com
finalidade comercial e geopolítica utilizando mecanismos transnacionais de persecução,
a exemplo do Foreign Corrupt Act (FCPA). Ainda conforme os autores, a forma de se
contrapor à prática de lawfare requer sua identificação, o uso de técnicas específicas de
combate, que associem conhecimento da legislação aplicada e comportamento a ser
adotado pelas vítimas, além de ferramentas de comunicação e de investigação.

5. Considerações finais

As análises evidenciam a ocorrência de guerras não declaradas perpetradas


pelos Estados Unidos com o fim de expandir mercados, assegurar acesso a recursos
naturais e impor a unipolaridade global mediante emprego de mecanismos de
constrangimento da soberania nacional dos países e ou de suas instituições, públicas ou
privadas. O meio de consecução utilizado tem sido o emprego da chamada guerra
híbrida que, mediante a adoção de estratégias de abordagem indireta, combina de forma
exitosa uma multiplicidade de elementos capaz de mudar regimes utilizando como

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ferramentas centrais as redes, a tecnologia da informação e os meios de comunicação, e


reservando aos bastidores os reais protagonistas do conflito. Em seu âmbito insere-se o
lawfare, que se serve de leis para emprestar o verniz da legitimidade a processos que
têm por finalidade destruir adversários políticos pela via judicial, caracterizando a
sobreposição do Poder Judiciário sobre os demais Poderes. Tais métodos são aplicáveis
em diferentes cenários, cujos contornos se amoldam aos diversos contextos, a depender
das características dos poderes constituídos em cada realidade histórica alvo das
abordagens.
Foi o que se verificou na América Latina, em países cujas políticas de Estado
não se alinhavam aos interesses dos Estados Unidos, a exemplo da Argentina, do
Equador, da Bolívia e do Brasil. O ponto em comum observado no âmbito dessa
estratégia de guerra - que se presta a definir o espectro ideológico dos governantes que
assumirão o comando de cada Estado alvo, pois suas estratégias também se orientam
para as disputas eleitorais - é o combate à corrupção. Sob tal fundamento, e contando
com o aparato do sistema de justiça local, tornam-se inelegíveis lideranças políticas,
vilipendiam-se reputações e corrompem-se democracias não consolidadas.
A particularidade verificada no Brasil, conforme descrito por Leiner (2020), foi
o protagonismo dos militares, mas também do sistema judiciário. Verifica-se, a partir
das eleições de 2018, além da implementação de políticas neoliberais e do
realinhamento subserviente perante os Estados Unidos, a militarização da política,
movimento essencialmente oposto ao fortalecimento do Estado democrático de direito.

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