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O Tribunal Penal Internacional: uma perspetiva de Direito Internacional e de direito

Constitucional

O Estatuto de Roma

Trata-se de uma instituição permanente, que visa a aplicação do Direito Penal Internacional
mais grave, em complemento das jurisdições nacionais.

Foi criado pelo Estatuto de Roma (ERTPI) que é um tratado internacional, negociado sob os
auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU), e aberto à assinatura até 31 de dezembro
de 2000, dele sendo apenas partes os Estados.

Desde que foi concluído em 1998, já obteve o número mínimo de instrumentos de vinculação,
que são 60, tendo entrado em vigor em 1 de julho de 2002 e estando sediado na cidade
neerlandesa da Haia.

ERTPI - Tem a forma de tratado internacional solene contando com 128 artigos.
Remete para 2 outros importantes textos normativos:

 Elementos constitutivos dos crimes, que são a especificação dos tipos de crimes que
ficam abrangidos pela jurisdição do TPI
 Elementos processuais penais

No seu percurso de vinculação, o ERTPI não aceita a formulação de qualquer reserva.


A modificação posterior do ERTPI pode realizar-se segundo três esquemas paralelos, com
alcances distintos:

1. Alteração de disposições de natureza institucional, que pode acontecer em qualquer


momento
2. Alteração do ERTPI, para qualquer matéria, ao fim de sete anos de vigência, por
iniciativa dos Estados
3. Revisão do ERTPI, para qualquer assunto, sob proposta do Secretá-rio-Geral da ONU,
no âmbito de uma conferência de revisão

Embora já se encontre em vigor, a colaboração dos Estados ao ERTPI tem sido polémica, dado
o passo extremamente significativo que implica num domínio que tem sido pertença absoluta
da soberania estadual: o ius puniendi.
São vários os importantes Estados que já manifestaram a vontade de não vir a estar
abrangidos pelo ERTPI.
Exemplo: Estados Unidas da América

Uma das principais dificuldades com que o ERTPI se debate é o facto de poder não vir a ser
uma jurisdição universal.
Evidentemente que sempre poderá restar a via costumeira, já tendo sucedido, até mais do
que uma vez, que um tratado multilateral, durante muito tempo sem vigorar a título
convencional, se tenha tomado eficaz por força da formação de costumes.
Não se crê que essa seja uma hipótese plausível porque assentaria numa ironia.

A dificuldade de se atingir uma jurisdição universal, que seja vinculativa dos Estados, é sempre
um risco que se deve correr, devendo ser sobretudo visto como um caminho que levará
muitos anos a atingir.
Os crimes previstos e as penas aplicáveis

O Tribunal Penal Internacional apenas se dedica aos crimes mais graves.


São considerados crimes graves:

 Crime de genocídio
 Crimes contra a Humanidade
 Crimes de guerra
 Crimes de agressão

Quanto às sanções punitivas a aplicar, é de realçar a primazia que deve ser dada às penas
privativas de liberdade, que podem ser de duas categorias:

1. Pena de prisão, até ao limite máximo de 30 anos ou


2. Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do facto e as condições
pessoais do condenado o justificarem

O ERTPI prevê igualmente, ao lado destas duas penas principais, privativas de liberdade, a
existência de penas acessórias, em duas modalidades:

1. Pena de multa
2. Perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime

A aplicação destas penas à prática dos crimes descritos submete-se ainda a um importante
conjunto de orientações materiais.
Ao nível da Teoria da Lei Penal, é de frisar a afirmação de vários relevantes princípios:

 Princípio da legalidade
 Princípio da determinação
 Princípio da tipicidade
 Princípio da irretroatividade

Ao nível da Teoria da Infração Penal, são também várias as orientações a levar em


consideração:

 Princípio da culpa
 Princípio da relevância das causas de exclusão da ilicitude e da culpa
 Princípio da imprescritibilidade dos crimes

Artigo 80º ERTPI – “Nada no presente capítulo prejudicará a aplicação, pelos Estados, das
penas previstas nos respetivos Direitos internos, ou a aplicação da legislação de Estados que
não preveja as penas referidas neste capítulo”

O âmbito da jurisdição penal e a articulação com as jurisdições nacionais

Na sua organização interna, o TPI, em rigor, não é somente um tribunal: é mais um complexo
de justiça penal internacional, onde se localizam diversas estruturas, formalmente
consideradas como órgãos do Tribunal:

 Presidência
 Secções de recurso, de julgamento e de instrução
 Procurador
 Secretaria
Um outro órgão que deve ser autonomamente considerado é o próprio plenário dos juízes do
TPI, a quem cabem importantes competências regulativas, como a da aprovação de normas
provisórias, enquanto não seja aprovado o Regulamento Processual, ou a elaboração do seu
próprio Regimento, para além da competência de impulsão de outros procedimentos, como
do próprio Regulamento Processual, em relação ao qual tem poder de iniciativa.

Do ponto de vista das suas competências, o Tribunal Penal Internacional exerce o respetivo
poder em três circunstâncias, tendo um total de 18 juízes:

1. Competência de instrução, no âmbito da investigação dos processos


2. Competência de julgamento, quando decide se alguém deve ser condenado ou
absolvido
3. Competência de revisão, quando aprecia, em recurso, uma decisão anterior

Fases processuais:

 Inquérito – engloba um conjunto de atividades e iniciativas destinadas à investigação


preliminar da existência de crimes, das suas circunstâncias e da respetiva autoria,
podendo terminar de duas maneiras:

- Com o arquivamento
- Com a acusação

 Instrução - ao juiz desta fase incumbe uma apreciação preliminar relativamente aos
factos de que alguém é imputado na acusação, podendo decidir declará-la procedente
ou não

 Julgamento – o acusado submete-se a um juízo final, perante um grupo de juízes de


outra secção. Momento da produção de prova definitiva, no sentido de permitir ao
Tribunal uma decisão relativamente ao facto de o arguido dever ser condenado ou
absolvido

 Execução – só faz sentido se tiver havido condenação. Destina-se a concretizar a


aplicação da pena de prisão, quer do ponto de vista do local, quer do ponto de vista da
respetiva duração e regime de reclusão

 Recurso - tem o objetivo de permitir um reexame de uma primeira sentença definitiva,


vivenciando-se o duplo grau de jurisdição em matéria penal.
Recurso ≠ revisão da sentença

O exercício desta jurisdição por parte do TPI está sujeito a certos princípios:

 Princípio do juiz legal – artigo 12º


 Princípio do ne bis in idem – artigo 20º “nenhuma pessoa poderá ser julgada por atos
constitutivos de crimes pelos quais o Tribunal já a tenha condenado ou absolvido”
 Princípio da irrelevância das imunidades constitucionais dos arguidos – artigo 27º
 Princípio da presunção de inocência do arguido – artigo 66º
 Princípio da cooperação com o tribunal – artigo 86º
 Princípio da jurisdição complementar relativamente às jurisdições internas

As decisões do Tribunal Penal Internacional têm força de caso julgado material.


Apreciação crítica do tribunal penal internacional

As principais críticas que têm sido submetidas ao Tribunal Penal Internacional respeitam aos
seguintes três tópicos:

1. Vontade de estabelecer uma jurisdição uniforme


2. Preocupação com a consagração de uma justiça imparcial
3. Abrangência da moldura das penas apresentadas e a sua regulação – a amplitude das
penas previstas causa sérias apreensões por ser excessiva do ponto de vista de um
critério de justiça material

A constituição portuguesa e o Tribunal Penal Internacional

Logo que o ERTPI foi concluído, o Estado Português manifestou o interesse em ficar vinculado
ao mesmo.
Este tratado internacional viria a incorporar-se no Direito Português, sendo publicado no
Diário da República de 18 de janeiro de 2002, não sem que antes tivesse motivado uma
pontual revisão constitucional.

A vinculação de Portugal ao ERTPI continua a levantar graves dificuldades por algumas das
soluções nele vertidas se apresentarem problemáticas diante do património português do
Direito Penal e do Direito Processual Penal.

Com o objetivo de adequar o texto do ERTPI à Constituição da República Portuguesa, o


legislador constitucional sentiu então necessidade de proceder a uma revisão extraordinária
do texto constitucional.
As opções que foram abstratamente colocadas relacionaram-se com o modo de as eventuais
objeções de inconstitucionalidade que surgiam quanto a varias questões, tais como:

 Pena de prisão perpétua como uma das penas possíveis a aplicar por crimes
abrangidos pela jurisdição do TPI
 Extradição de pessoas do território português com vista à hipotética aplicação da pena
de prisão perpétua
 Elevada indeterminação da moldura da pena de prisão, podendo ir até 30 anos
 Carácter indeterminado e atípico de muitas prescrições penais, colocando em crise os
princípios penais sagrados da tipicidade e da determinação da respetiva lei
 Possibilidade de outras fontes serem igualmente admitidas para a punição de crimes a
julgar pelo TPI
 Irrelevância das imunidades constitucionais, ao contrário do que se afirma na CRP

O novo preceito que foi introduzido, para afeiçoar o texto constitucional ao texto do ERTPI,
passou a dizer:

Artigo 7º/nº7 CRP - "Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional
que promova o respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do
Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos
estabelecidos no Estatuto de Roma”

O legislador da revisão constitucional acabou por perfilhar a solução da cláusula geral de


aceitação da jurisdição do TPI.
Passou a constar do texto constitucional uma cláusula de receção interna do TPI, que se pode
apreciar de acordo com alguns parâmetros.
A observação dos termos da aceitação da jurisdição do TPI realça uma remissão que vale a
título material, na medida em que a CRP se refere a um tratado específico, o ERTPI, e não a
qualquer outro regime.

A partir de agora foi o texto constitucional que se harmonizou ao ERTPI, ainda que o tivesse
proclamado em nome do respeito pelos direitos fundamentais das pessoas.

Aspetos que determinam a inadmissibilidade constitucional do ERTPI, ao contrário do que


pretendeu o artigo 7º/nº7 CRP:

 Pena de prisão perpétua – os artigos 30º/nº1 e 33º/nº4 determinam a proscrição da


prisão perpetua

Na tentativa de contornar a proibição de pena de prisão perpétua, a Constituição passou a


admitir, a contrario sensu, a possibilidade de entrega judicial fora dos casos em que se dá a
proibição da extradição havendo prisão perpétua ou pena corporal que provoque lesão
irreversíveis na integridade física.
Cria-se, deste modo, uma relação de incompatibilidade.

 Princípio da legalidade criminal – outro domínio extremamente relevante diz respeito


ao modo como o texto constitucional limita a formulação, pelo legislador ordinário ou
internacional, das normas penais incriminadoras.

São corolários do princípio da legalidade criminal:

 Exclusividade da fonte legal


 Princípio da não retroatividade
 Princípio da tipicidade
 Princípio da determinação

A verdade é que a vinculação ao ERTPI não evita que muitas dessas garantias sejam
atropeladas.
Basta analisar o ERTPI e deparar com disposições que são normas penais em branco ou normas
penais de incidência que contêm conceitos indeterminados, cláusulas gerais e tipologias
exemplificativas.

 Imunidades constitucionais dos políticos – nesta matéria o ERTPI estabelece a


irrelevância geral dessas imunidades internas, dizendo:

“As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma


pessoa, nos termos do direito interno ou do Direito Internacional, não deverão obstar a que o
Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa”.

 Complementaridade jurisdicional do TPI – a complementaridade do TPI assenta no


facto de os crimes internacionais, em que é competente, não serem julgados no plano
do Direito Interno, ou sendo-o, o resultado não ser considerado devidamente justo.

Suscita-se a maior das reservas ao princípio da independência do poder judicial, e mais


especificamente, o princípio do caso julgado.

Se aceitássemos a complementaridade, deveríamos suportar o resultado de os acórdãos


proferidos pelos nossos tribunais poderem ser desconsiderados pelo TPI com base na alegação
de que a justiça portuguesa não tinha sido boa ou eficiente.
Este é um resultado impossível de aceitar.
Detetadas estas diversas e graves situações de incompatibilidade material entre disposições
constitucionais e disposições internacionais, alguns dirão que foi precisamente para as superar
que se realizou a aceitação constitucional da jurisdição do Tribunal Penal Internacional.
Tal entendimento parece ser procedente no tocante às exigências de harmonização técnica
que sempre decorem de esquemas de judicialização das relações internacionais.
Só que neste caso, foi-se longe de mais e colocou-se em xeque a coerência material do Direito
Constitucional Português.
Do que verdadeiramente se tratou nesta revisão constitucional (alteração dos artigos 7º e 33º)
foi a ocorrência de uma gravíssima quebra valorativa ou de uma auto-rutura material da
ordem constitucional.
Para Jorge Bacelar Gouveia, algumas das alterações constitucionais efetuadas são
inconstitucionais, abalando não só normas e princípios constitucionais originários como
essencialmente ofendendo valores transcendentes, em relação aos quais os textos
constitucionais são unicamente declarativos e não constitutivos.
Só resta proceder à sua eliminação na nossa ordem constitucional, na esperança de que uma
futura e corajosa intervenção do Tribunal Constitucional Português resolva definitivamente o
problema.

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