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LIMITE DAS PENAS E SEUS EFEITOS

Damásio E. de Jesus
DAMÁSIO E. DE JESUS

LIMITE DAS PENAS E SEUS EFEITOS

SUMÁRIO
I. Sistemas penitenciários
2. Limite das penas privativas de liberdade
3. Unificação legal das penas
4. Posições doutrinárias
5. Unificação legal e seu limite: nosso entendimento
6. Conclusão

I. Sistemas penitenciários
Há três regimes clássicos de execução da pena privativa de liberdade:
I~) o de Filadélfia;
2~) o de Auburn; e
3?) o inglês ou progressivo.
Nos termos do sistema de Filadélfia, o sentenciado cumpre a pena na cela, sem
sair, salvo em casos excepcionais.
No regime de Auburn, cidade do Estado de Nova Iorque, durante o dia o conde-
nado trabalha em silêncio junto com os outros, recolhendo-se à cela durante a noite
(<<silent system»).
No sistema progressivo ou inglês há um período inicial de isolamento. Depois, o
sentenciado passa a trabalhar junto com os outros reclusos. Na última fase, é posto em
liberdade condicional. Criado por Alexandre Maconochie e Walter Crofton, relaciona a
duração do cumprimento da pena privativa de liberdade ao bom comportamento do
condenado, estabelecendo o sistema de marcas ou pontos (<<mark system»), pelo qual
a sua situação carcerária vai se atenuando de acordo com o seu trabalho e readaptação
social.
O nosso CP adotou um sistema progressivo. Assim, o art. 33, § 2?, afirma que «as
penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o
mérito do condenado», princípio repetido no art. 112 da Lei de Execução Penal. A re-
forma penal de 1984 disciplina três regimes: fechado, semi-aberto e aberto. Inicia-se
com o regime fechado, podendo o condenado, de acordo com o seu mérito, alcançar o
livramento condicional.
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No regime fechado o condenado inicia o cumprimento da pena em penitenciária


(Lei de Execução Penal, art. 86), em estabelecimento de segurança máxima ou média
(CP, art. 33, § I?, a). Considera-se regime semi-aberto a execução da pena em colônia
agrícola ou industrial (b). Por fim, no regime aberto a pena é cumprida em casa de al-
bergado ou similar (c).
O sistema progressivo, como se verá, tendo por fundamento o princípio da indivi-
dualização da pena, não pode ser desvinculado da justa retribuição.
2. Limite das penas privativas de liberdade
Aflige o Direito Penal a correspondência entre a pena abstratamente cominada, a
imposta pelo Juiz e a efetivamente cumprida pelo condenado. Sua cominação legal, ju-
diciária e executória tem se tornado um problema para os sistemas penais. Tratando do
assunto, Gonzalo Rodriguez Mourullo, Presidente da Comissão de Redação do Ante-
projeto de Código Penal espanhol de 1978, que comina o máximo abstrato de vinte
anos de pena privativa de liberdade e excepcionalmente vinte e cinco (arts. 36; 79, § I?;
e 84, § 2?), esclareceu que a idéia central foi partir da premissa segundo a qual a pena
cominada deve ser, em princípio, a pena efetivamente cumprida. O critério estabelecido
no anteprojeto, explicou, visa a eliminar a contradição freqüente em que incide a maio-
ria dos sistemas: o desajuste entre o valor nominal da sanção, isto é, a quantidade apli-
cada na decisão e a quantidade efetiva de cumprimento (<<Directrizes Politicocriminales
dei Anteproyecto dei Código Penal», Buenos Aires, Depalma, DP, 1979, n? 2, pág.
573; cf. René Ariel Dotti, «Bases e alternativas para o sistema de penas», Curitiba,
Editora Lítero-Técnica, 1980, pág. 353).
Daí as legislações estabelecerem limite máximo do efetivo período de cumprimento
das penas detentivas, evitando a sentença indeterminada e a prisão perpétua.
3. Unificação legal das penas
Entre nós, o art. 75, caput, do CP reza que «o tempo de cumprimento das penas
privativas de liberdade não pode ser superior a trinta anos». Significa que não há impe-
dimento a que o sujeito seja condenado a penas cujo total exceda o limite dos trinta
anos. O tempo de cumprimento é que não pode ser superior a esse período.
Prevê o § I? da disposição: «Quando o agente for condenado a penas privativas de
liberdade, cuja soma seja superior a trinta anos, devem elas ser unificadas para atender
ao limite máximo deste artigo». Pergunta-se: a unificação tem validade somente para a
fixação do limite máximo do tempo de execução da pena detentiva ou para todos os
efeitos, como livramento condicional, transferência de regime, etc.? Suponha-se o caso
do réu condenado a quarenta anos de reclusão. Reincidente em crime doloso, para ob-
ter livramento condicional deverá cumprir mais da metade dos trinta ou dos quarenta
anos? E a transferência de regime prevista no art. 112 da Lei de Execução Penal: o
cumprimento de um sexto da pena incide sobre o quantum da pena efetiva ou da unifi-
cada?
4. Posições Doutrinárias
Há duas posições a respeito do tema:
I?) Os requisitos objetivos de certos benefícios, como o indulto, o livramento con-
dicionai, a remição, a transferência de regime, etc., deverão ser apreciados em conside-
ração à pena legal unificada (trinta anos) e não ao total da pena efetiva (cf. Júlio Fab-
brini Mirabete, «Manual de Direito Penal», São Paulo, Atlas, 1985, pág. 312).
Essa orientação traz como fundamento a circunstância de que, recaindo eventual
apreciação de benefício sobre o total da pena, desprezando-se o quantum menor unifi-
cado, de nenhum valor teriam determinados institutos, como, v.g., a remição. Se nesta
a detração em razão dos dias de trabalho vier a recair sobre o total da pena (duzentos
anos, por exemplo) e não sobre os trinta anos, nenhum estímulo terá o condenado. E o
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benefício da unificação, como diz a Exposição de Motivos do Projeto da Lei n~


7.209/84, visa a alimentar no condenado a esperança da liberdade e a aceitação da dis-
ciplina, pressupostos essenciais da eficácia do tratamento penal (n~ 61).
2~) A consideração de determinados benefícios, como a comutação, a remição, o
livramento condicional,etc., deve ser feita em face do total da pena efetiva e não sobre
o quantum unificado do art. 75 do CP.
É a posição que defendemos.

5. Unificação legal e seu limite: nosso entendimento


Note-se que o § I ~ do art. 75 diz que as penas «devem ser unificadas para atender
ao limite máximo deste artigo» (grifo nosso). E a disposição cuida do «limite das pe-
nas» (indicação marginal) para efeito do tempo de seu cumprimento, restringindo, se-
gundo cremos, o âmbito de eficácia ~o benefício.
A disposição contempla um benefício sujeito à condição. Esta consiste no cumpri-
mento dos trinta anos de pena privativa de liberdade. Quando isso ocorre, o Estado,
satisfeito com o exercício do direito de punir, tem por realizada a pretensão executória,
abrindo mão do tempo excedente. Para que esse benefício se concretize, entretanto,
exige-se a realidade de um fato: o cumprimento dos trinta anos. Antes que isso aconte-
ça não é possível extrair-se, de uma condição inexistente, múltiplos efeitos. Assim, não
é correto, antes que o condenado satisfaça o requisito legal, beneficiá-lo com uma série
de privilégios.
Além disso, a interpretaçã~ liberal equipara a situação do condenado a trinta anos
a outro que sofreu imposição de pena de quantidade superior. Não podemos nos esque-
cer do princípio da proporcionalidade da resposta penal. Como ensinava Battaglini, se
a pena encontra seu fundamento em um princípio ético de justiça, nele deve conter seus
limites. O condenado precisa sentir que existe um equilíbrio entre o dano que produziu
e o castigo que a sociedade lhe inflinge, pois de outra forma o culpado se transforma-
ria em vítima e o credor em devedor (<<Direito Penal», São Paulo, Saraiva, 1973, trad.
de Paulo José da Costa Júnior e Armida Bergamini Miotto, 1I/608). Daí afirmar José
Frederico Marques que «o princípio da retribuição equaciona o bem jurídico lesado pe-
lo delinqüente com o bem jurídico cuja diminuição este vai sofrer, olhando ainda a for-
ma pela qual ambos são atingidos. Essa proporcíonalidade, estabelecida em abastrato
na cominação legal, alcança maior precisão no momento de ser imposta, pela sentença,
a medida sancionadora» (<<Curso de Direito Penal», São Paulo, Saraiva, 1956, 11I/118,
n~ 3). E, como se trata de proporcionalidade entre o dano produzido e a resposta pe-
nai, deve ser guardada também na fase de execução. Caso contrário, estaríamos, em
determinados casos e a partir de certa faixa, impondo a mesma quantidade da resposta
penal a autores de danos de gravidade diversa, em prejuízo do princípio ético de justiça
que informa a regra da proporção. Suponha-se o caso de o sujeito ter sido condenado,
em processos diversos, a novecentos anos de reclusão. Se considerarmos somente a uni-
ficação legal de trinta anos, poderá ser transferido para o regime semi-aberto (execução
da pena em colônia agrícola, art. 33, § I'?, b, do CP) após o cumprimento de um sexto
da pena, isto é, após cinco anos, com bom comportamento carcerário (Lei de Execução
Penal, art. 112). E se ele trabalhar, aplicada a remição, bastarão três anos e nove me-
ses ... Tal equiparação é injusta diante daquele condenado a trinta anos de pena detenti-
va. Se o limite máximo da disposição incidir sobre todos os institutos penais, o conde-
nado, a partir da imposição de tal pena, obtém um bill total de impunidade no tocante
ao excesso. Significaria a intervenção do Direito Penal, com sua finalidade repressiva e
preventiva, até o limite da imposição da pena de trinta anos de privação da liberdade.
A partir daí, nenhuma conseqüência teriam outras condenações por crimes diversos e
contemporâneos. Seria um estímulo à delinqüência múltipla. Para o criminoso, pouca
diferença faria cometer dez ou quinhentos assaltos. Ora, se o § 2~ do dispositivo, que
cuida da pena superveniente, procura evitar seja o condenado legalmente induzido a
novas práticas delituosas, não poderia o § I~ encorajar o delinqüente a cometer, con-
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temporaneamente, uma infinidade de crimes, na certeza da impunidade parcial. E no


tocante às infrações sucessivas, o condenado a trinta anos de pena detentiva poderia,
no início de seu cumprimento, cometer quantos delitos quisesse, na certeza absoluta de
que a resposta penal consistiria numa reação insignificante, não comprometendo seria-
mente os benefícios advindos da sanção legal unificada. Dada a sua situação, seria, co-
mo tem acontecido, transformado em carrasco de execuções sumárias em nossas peni-
tenciárias, pois a ele pouca importância teriam as condenações supervenientes. Note-se
o
que art. 59, caput, do CP, ao tratar das circunstâncias diretivas da aplicação da pe-
na, determina que ela seja fixada «conforme seja necessário e suficiente para reprova-
ção e prevenção do crime». Adotou-se o princípio retributivo-preventivo. De modo que
sua imposição não deixa de ser aflitiva e proporcional ao dano causado pelo delito.
A retribuição, conforme ensinava Bettiol, é a idéia central do Direito Penal. «A re-
tribuição», dizia, «é uma das idéias-força de nossa civilização. Pode até dizer-se que a
idéia da retribuição é própria de qualquer tipo de civilização que não renegue os valo-
res supremos e se conforme com as exigências espirituais da natureza humana ... São os
valores comunitários que fornecem um conteúdo, um sentido, uma justificação ao Di-
reito Penal: assim, a pena retira a sua força moral e a sua justificação do fato de ser
expressão daquela exigência natural, viva no coração de todo homem, operante em to-
dos os setores da vida moral, pela qual ao bem deve seguir-se o bem e ao mal deve
seguir-se o mal» (<<Diritto Penalle», Padua, 1976, págs. 691/693). O sentido retributi-
vo, diz René Ariel Dotti, «é uma exigência jurídica que para cumprir os objetivos pro-
postos pelo Direito Penal deve tender a compensar adequadamente a ofensa» (<<Bases e
alternativas para o sistema de penas», Curitiba, Editora Lítero-Técnica, 1980, pág.
157). Essa compensação adequada entre o crime e a sanção penal prevista abstrata-
mente no preceito secundário da norma penal incriminadora deve tornar-se concreta
quando de sua execução, observados os princípios de humanismo e de prevenção espe-
cial.
Como dizia Heleno Cláudio Fragoso, «no caso de condenação a várias penas, que
excedam de 30 anos, fato, aliás, comum, o limite máximo fixado pela lei é aplicado de
modo a impedir o livramento condicional, unificando-se as penas tão-somente para que
seja observado o limite de 30 anos. Não há estímulo algum para os condenados a penas
altas». E conclui: «É uma pena que a reforma da Parte Geral do nosso CP não tenha
aproveitado as sugestões feitas (RDP 26/155), no sentido da unificação das penas dos
condenados a mais de 30 anos, para que se observasse o limite máximo fixado, de tal
modo que os conqenados a penas muito altas pudessem ter o livramento condicional se
cumprissem 15 anos em condições satisfatórias» (<<Líções de Direito Penal», Rio, Fo-
rense, 1985, 8:' ed., Parte Geral, págs. 306/7).
Realmente, comissão composta pelos profs. Heleno Cláudio Fragoso, Nilo Batista,
Freitas Santos e Vicente da Costa Júnior apresentou proposta de alteração do primitivo
art. 55 do CP, acrescentando-lhe o seguinte parágrafo:
«Se houver condenação a diversas penas privativas de liberdade, devem elas ser
unificadas, observando-se os limites fixados, para todos os efeitos legais» (grifo nosso)
(<<Revista de Direito Penal», Rio de Janeiro, 26/155).
Como se nota, a reforma penal não inseriu no texto a cláusula final genérica de
extensão do princípio da unificação legal das penas «para todos os efeitos».
O art. 75 do CP não cria uma causa de extinção da pretensão executória no to-
cante ao tempo excedente a trinta anos. Em atenção ao dogma constitucional da proibi-
ção da prisão perpétua (Carta Magna, art. 153, § li), estabelece um limite máximo de
execução efetiva da pena privativa de liberdade. De modo que o resíduo não pode ser
considerado extinto e estéril.
O Ministro Moreira Alves, apreciando a espécie, disse que o antigo art. 55 do Có-
digo Penal «não estabelece uma causa de extinção da punibilidade parcial (ou seja, do
que, em face das condenações, excede a trinta anos), mas, apenas, um limite máximo
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de duração das penas privativas de liberdade, para que não se confundam, afinal, com
prisão perpétua. E, por causa desse limite, cumpridos os trinta anos de prisão, tem-se
como exaurida a pretensão punitiva do Estado, e não como extinta quanto ao tempo
que excede a essa limitação» (<<Revista Trimestral de Jurisprudência» 91/464). Assim
vencidos os trinta anos, vê-se o Estado satisfeito com o exercício da pretensão executó-
ria, que se exaure. Mas não se extingue o excesso residual, de maneira que permanece
produzindo efeitos. Em face disso, eventuais benefícios legais devem ser considerados
em função do total da pena, uma vez que ela não sofre, na lição do Ministro Moreira
Alves, extinção parcíal.
É certo que, nos termos do art. 11I da Lei de Execução Penal, «quando houver
condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos diversos, a de-
terminação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da soma ou unificação
das penas». A «unificação das penas», segundo cremos, não diz respeito à legal do art.
75, § I ~, do CP, mas à unificação judicial do art. 66, III, a, da Lei de Execução Penal.
Na reiteração criminal, vg, dá-se o resultado pela «soma das penas». No crime conti-
nuado, em outro exemplo, ocorrendo condenações em processos diversos, resulta a «u-
nificação das penas».
Ao argumento de que a tese restritiva anima a desesperança da liberdade
contrapõe-se a idéia de que o criminoso contumaz, autor de uma multiplicidade de cri-
mes contemporâneos, deve aceitar de antemão os riscos resultantes de sua eficácia deli-
tiva, a tornar mais severa a resposta penal e mais difícil a expiação de sua culpa.

6. Conclusão
No concurso de penas privativas de liberdade, cuja soma seja superior a trinta
anos, a consideração dos requisitos objetivos de certos institutos, como o indulto, a re-
mição, o livramento condicional, etc., deve ser feita em face do total da pena efetiva-
mente imposta e não sobre o quantum unificado do art. 75 do CP.

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