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A queda do céu – a natureza mítica das coisas - BRASILIÁRIOS.

COM 27/03/22 06:42

A queda do céu – a natureza mítica


das coisas
Criado: 20 Junho 2020

Zuleica Porto –

Em A máquina do mundo Carlos Drummond de Andrade faz referência,


com as palavras do subtítulo acima, ao lado transcendente da realidade.
Desse poema Eduardo Viveiros de Castro retirou a epígrafe do Prefácio –
O recado da mata, que escreveu para A queda do céu: “Mas, como eu
relutasse em responder / a tal apelo assim maravilhoso, / (…) a máquina do
mundo, repelida se foi miudamente recompondo, / enquanto eu, avaliando
o que perdera, / seguia vagaroso, de mãos pensas”.

Assim como o poeta, perdemos, os “civilizados”, a ligação com essa


natureza mítica, em que tudo está permeado pelo sagrado – humanos,
animais, montanhas, árvores, pedras.

A queda do céu, resultado da parceria entre o pensador e ativista


yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, nos
oferece uma oportunidade de perceber, e quem sabe reconquistar, o que
perdemos. Nas palavras de Viveiros de Castro: “Davi explica a origem
mítica e a dinâmica invisível do mundo, além de descrever as
características monstruosas da civilização ocidental como um todo e de
prever um futuro funesto para o planeta”. O livro, de 729 páginas, foi
publicado em francês pela Editora Terre Humaine em 2010 e em 2015
ganhou a primeira edição brasileira, pela Companhia das Letras, na
tradução de Beatriz Perrone-Moisés.

Para o povo Yanomami, a “máquina do mundo” é um ser vivo, e tudo que


nela existe é protegido pelos xapiri, guardiões invisíveis e imagens
espirituais de todos os seres: montanhas, rios, todas as árvores, todos os

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animais além de nós, das onças às abelhas e todos os demais insetos. A


um tipo de abelha o xamã Davi deve seu nome: “meu último nome,
Kopenawa, veio a mim quando me tornei um verdadeiro homem. Esse é
um verdadeiro nome yanomami. Foi um nome que ganhei por conta
própria”. Foi dado pelos xapiri, quando pela primeira vez viu dançar os
espíritos da vespa kopena, seu animal ancestral. Mereceu o nome pela
fúria com que enfrentou garimpeiros que invadiam as terras yanomami,
derrubavam a mata e matavam seus parentes.

Viveiros de Castro destaca a complexidade do livro, que em sua estrutura


envolve diversos enunciados: a do narrador Davi; a de seu sogro indígena
e um grande xamã, o responsável por sua iniciação; a dos xapiri, de quem
fala o narrador e que também falam por sua boca; e a do intérprete
branco Bruce Albert, que navega entre a língua yanomami, o português
que perpassa a narrativa, e o francês para o qual traduziu o relato.
Resumindo, o antropólogo brasileiro considera o livro “uma performance
cósmico-diplomática”, que envolve uma sessão xamânica, um tratado
(nos dois sentidos, ressalta ele) político e um compêndio de filosofia
yanomami, em que a imagem tem toda a força do conceito e no qual “a
viagem alucinatória ultracorpórea ocupa o lugar da introspecção ascética
e meditabunda”. Nada fácil para nós, educados na filosofia conceitual; de
minha parte, três longos meses de leitura e anotações intermitentes
decorreram até que me aventurasse na redação deste texto.

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A estrutura do livro

O antropólogo Bruce Albert organizou o relato de Kopenawa em três


partes:

“Devir outro” relata a sua iniciação xamânica, sob a orientação do


sogro, sua concepção da cosmologia e do trabalho xamãnico
yanomami;
“A fumaça do metal” descreve o contato de seu povo com os
brancos;
“A queda do céu”, que começa com Davi contando de seu ativismo
pelo mundo afora, denunciando o extermínio de seu povo e a
devastação da floresta, e termina com “uma profecia cosmoecológica
sobre a morte dos xamãs e o fim da humanidade”, resume Albert.

Além de tudo isso e do precioso Prefácio de Viveiros de Castro, o livro é


enriquecido por uma coleção de mapas, um vasto material iconográfico e
ilustrações de autoria do próprio xamã. E ainda, nos anexos, o leitor
encontra informações sobre o etnômino, a língua e a ortografia
yanomamis, sua situação no Brasil e glossários etnobiológico e
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geográfico, sem falar das abundantes notas e a vasta bibliografia. Biscoito


finíssimo para longa e introspectiva degustação.

Diante de tão vasto material, o que faço aqui, dadas as minhas limitações,
além das de tempo e de espaço, é um pequeno resumo do que me parece
mais relevante para um primeiro contato com toda esta sabedoria.

Os xapiri

Davi diz que nós os chamaríamos de “espíritos”, mas são as imagens dos
ancestrais animais, que vieram à existência no primeiro tempo, quando a
floresta era bem jovem. Este primeiro tempo, é necessário esclarecer, foi
antes da primeira queda do céu. Pois ele já caiu uma vez, conta o xamã, e
hoje vivemos sobre as costas deste céu, ele é o chão onde pisamos,
sustentado por varas colocadas por Omama, o ser criador na cosmologia
yanomami. O céu que temos agora, alerta Kopenawa, se move e é
instável. As beiradas estão bastante gastas, e os xapiri trabalham sem
descanso para evitar o caos. Entre eles, destaca o macaco-aranha, que
não é um macaco da floresta, mas um espírito celeste, antigo e muito
poderoso. É, portanto, graças ao trabalho dos espíritos xapiri que o céu
ainda não caiu. E para que eles continuem existindo e fazendo suas
danças de apresentação, é necessário o trabalho dos xamãs.

São os xamãs, que fazem os xapiri dançar. Nas palavras de Davi: “Quando
o sol se levanta no peito do céu, os xapiri dormem. Quando volta a descer,
à tarde, para eles o alvorecer se anuncia e eles acordam. Nossa noite é
seu dia. De modo que, quando dormimos, os espíritos, despertos,
brincam e dançam na floresta. São muitos, mesmo, pois não morrem
nunca”. Para eles, nós somos fantasmas, porque somos fracos e
morremos com facilidade. São minúsculos como poeiras de luz, mas se
parecem com os humanos. Dançam sobre espelhos imensos, e seus
cantos são “magníficos e potentes”. Eles só podem ser vistos pelos
xamãs, que aspiram o pó de yãcoana, fabricado a partir da resina da
árvore Yãkoana hi (Virola elongata ou ucuuba vermelha). Chegam por
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meio de trilhas “brilhantes, finas e transparentes como fios de aranha ou


linhas de pesca”, que se prendem aos braços e pernas dos xamãs,
descem por elas e então, diz Davi, “rasgam nosso peito, para abrir nele
uma grande clareira onde farão sua dança de apresentação”. Essa dança é
descrita em vários momentos do relato, pois o xamã retoma os mesmos
temas em uma forma narrativa que não é a linear a que estamos
habituados, seria circular, em espiral ou elíptica, confesso que não sei
definir. Reproduzo um trecho de uma dessas descrições:

“A força e a violência de sua marcha fazem nosso ventre cair de pavor.


Porém, apesar desse tumulto, começa-se a perceber a aproximação de
suas vozes (…) distinguir os cantos magníficos dos espíritos dos sabiás
yôrixiama, dos japins ayokara e dos pássaros sitipari si. Então os xapiri
acabam se revelando a nossos olhos aterrorizados. Brandem imensos
sabres, projetando raios de luz em todas as direções, como se agitassem
espelhos à sua volta. (…) entoam sem parar, um depois do outro, cantos
muito bonitos. Sopram com energia suas finas flautas de bambu e soltam
gritos de alegria. (…). No tumulto e na luz cintilante, sua pintura de urucum
exala um perfume inebriante. Depois, de repente, tudo para e volta ao
silêncio”.

Além de trabalhar para evitar a segunda queda do céu, os xapiri


combatem os seres maléficos e as epidemias (xawara) que ameaçam o
povo da floresta. Limpam os úteros das mulheres estéreis, fazem crescer
as plantas das roças, as árvores frutificarem e as caças engordarem.
Como diz sempre Davi, “assim é”.

O povo das mercadorias

Omama é o demiurgo do povo Yanomami, o criador de tudo que há. Ele


criou os yanomami (humanos, em sua língua) quando pescou a filha de
Tëpërërisiki (o ser do fundo das águas) e com ela copulou. Depois criou
os ancestrais dos brancos, moldando com as mãos a espuma vermelha
de um rio, de uma terra distante “que vocês chamam de Europa”. Eram
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chamados napë kraiwa pë, de pele tão branca como o papel. Moldou
depois, com uma espuma de um vermelho mais escuro, os napë pe wai,
ou “verdadeiros forasteiros”, os Makuxi, os Tukano, os Kaiapó e outros
povos, “gente que se parece conosco”, conta Davi Kopenawa.

Foi o irmão mau de Omama, Yoasi, o “criador da morte”, quem conduziu


os filhos dos antigos brancos, “que vocês chamam de portugueses”, para
o Brasil. Eles seriam filhos de Yoasi (identificado pelos yanomami com
Teosi, o deus cristão), e logo que chegaram, mentiram aos habitantes,
dizendo que eram generosos, amigos, e que juntos ocupariam todos estas
terras. Depois, começaram a construir casas cada vez maiores, a plantar
capim para o gado, passaram a maltratar a gente da floresta, apossaram-
se de suas terras, envenenaram sua comida, contaminaram-nas com suas
epidemias. Davi esclarece que os xamãs já sabiam da existência da gente
branca, pois viam dançar seus xapiri muito antes de seus filhos chegarem
aqui. “Esta terra nunca foi vazia no passado (…). Muito antes dos brancos
chegarem, nossos ancestrais e os de todos os habitantes da floresta já
viviam aqui. Antes de serem dizimados pela fumaça da epidemia, os
nossos eram muito numerosos. Naqueles tempos antigos, não havia
motores, nem aviões, nem carros. Não havia óleo nem gasolina. Os
homens, a floresta e o céu ainda não estavam doentes de todas as
coisas”, esclarece o xamã.

A relação do homem branco com as mercadorias lhe causa grande


estranhamento, pois para o seu povo os verdadeiros bens são as coisas
da floresta: as águas, os peixes, a caça, as árvores e seus frutos. Quanto
aos objetos, não há sentido em acumular ou passar de geração em
geração. O que sobra é doado, e os caminhos que levam às casas dos
doadores são chamados de “caminhos de pessoas generosas”. Quando
alguém generoso morre, a cremação é feita com muito cuidado, e suas
cinzas são comidas pelos parentes e convidados; principalmente os ossos
das mãos são considerados preciosos, pois com elas eram distribuídos
alimentos e bens. Os objetos do morto devem ser destruídos e

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queimados, mesmo que seus familiares precisem deles. “Nunca


guardamos objetos que trazem a marca dos dedos de uma pessoa morta
que os possuía. Assim é”, informa Davi.

Quanto aos sovinas, os caminhos de suas casas são “caminhos de


inimizade”, e sua morte, solitária.

Não há luto, pois ninguém sente saudade de quem ignorou o sofrimento


dos necessitados.

Sendo assim, o xamã confessa que ficou confuso ao ver “aquele


amontoados de mercadorias empoeiradas” quando, ainda jovem, visitou
pela primeira vez a cidade de Manaus. Depois, entendeu que os brancos
tratam as mercadorias como se fossem mulheres por quem estão
apaixonados, e por isso empilham seus bens e trancam tudo, “por isso,
sempre levam muitas chaves”.

O ouro canibal

“O que fazem os brancos com todo esse ouro? Por acaso eles o
comem?” - perguntou Kopenawa ao Tribunal permanente dos povos
sobre a Amazônia Brasileira, em Paris, em 13 de outubro de 1990.
Considera os garimpeiros outra gente, “comedores de terra, seres
maléficos”, de pensamento vazio e impregnados de epidemia. É urgente
expulsá-los da floresta, e todos sabemos disso.

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A pandemia, essa devastadora xawara, já levou preciosas vidas


yanomami. Segundo dados da Rede Pró-Yanomami e Ye'kwana, em 14 de
junho eram 4 mortes por covid-19 e outras 4 suspeitas de terem a mesma
causa. Há 98 casos confirmados e mais 6 suspeitos. Parece pouco?
Numa população de cerca de 26 mil indivíduos? Seguramente não. São
dados estarrecedores, e que podem piorar muito. Diante não só da inação
do atual governo, mas de sua explícita hostilidade aos direitos indígenas,
estamos diante da proximidade de um genocídio, não só dos povos
yanomami, mas de toda a população dos que primeiro habitaram, e
continuam habitando nossas florestas. É o que diz o fotógrafo brasileiro
Sebastião Salgado, que, ao lado de Lélia Salgado, vem desenvolvendo
uma vigorosa campanha em defesa dos povos originários do Brasil, com a
adesão de intelectuais, artistas e ativistas de diversas nacionalidades.

Dário Vitório Kopenawa Yanomami, o filho mais velho de Davi e também


líder de seu povo, declarou, em videoconferência durante a 3a. Reunião
Extraordinária do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, realizada em
15 e 16 de junho, que há hoje cerca de 20 mil garimpeiros nas terras
Yanomami. Os ataques a seu povo vão muito além do contágio pela
pandemia, e não são de hoje. Desde as décadas de 70/80, quando Davi
Kopenawa começou seu ativismo, os Yanomami são dizimados “como
animais”, diz Dário Vitório, e a população foi reduzida em 22%. Diante da
inação, ou mesmo da ação perniciosa do governo do Brasil, o povo
Yanomami elaborou um plano de gestão territorial, com o objetivo de
informar o mundo sobre os problemas da Terra Indígena Yanomami. Os
lemas são “Fora Garimpo” e “Fora Covid”.

É bom lembrar que a vida dos Yanomami é fundamental para a


preservação da floresta. E a floresta amazônica é essencial para a vida na
Terra. Voltando ao universo mítico do povo Yanomami, termino citando as
palavras de Davi:

“Se continuarem se mostrando tão hostis para conosco, os brancos vão

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acabar matando o que resta dos nossos xamãs mais antigos. E no entanto
esses homens que sabem se tornar espíritos têm um valor muito alto.
Bebem o pó de yãkoana para nos curar e proteger. Repelem os espíritos
maléficos, impedem a floresta de se desfazer e reforçam o céu quando
ele ameaça desabar. (…) Então, quase todos os nossos grandes xamãs
morreram. Isso é muito assustador, porque, se desaparecerem todos, a
terra e o céu vão despencar no caos. É por isso que eu gostaria que os
brancos escutassem nossas palavras e pudessem sonhar eles mesmos
com tudo isso, porque, se os cantos dos xamãs deixarem de ser ouvidos
na floresta, eles não serão mais poupados do que nós”.

Tais palavras foram ditas bem antes que a Grande Xawara Covid-19
assolasse o planeta.

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