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Gaston Pineau
Université de Tours
Resumo
Palavras-chave
Correpondência:
Gaston PINEAU
e-mail: gaston.pineau@univ-tours.fr
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p. 329-343, maio/ago. 2006 329
Life histories in formation: genesis of a movement of
existential action-formation-research*
Gaston Pineau
Université de Tours
Abstract
Keywords
Contact:
Gaston PINEAU
e-mail: gaston.pineau@univ-tours.fr
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Sobrevôo histórico gem autobiográfica para explorar o processo de
contemporâneo (1980-2005) autoformação na vida cotidiana e comum.
A vida leva. Mas onde e como? É na
Tomando como indicadores de cons- exploração desse continente obscuro da
trução histórica as datas da edição de produ- autoformação ao longo da vida que esse livro
ções escritas ou audiovisuais, assim como as de tenta avançar. Ele situa: a autoformação como
fundação de associações, de redes e de diplo- apropriação de seu poder de formação (parte I);
mas de formação, três períodos se destacam na adota um método: o das histórias de vida (par-
história do movimento das histórias de vida de te II); e o aplica a uma vida bem comum: a de
1980 a 2005: um período de eclosão (os anos uma dona de casa (parte III).
de 1980), um período de fundação (os anos de Sem dúvida, esse livro teria permaneci-
1990) e, finalmente, um período de desenvol- do isolado se não tivesse sido acompanhado,
vimento diferenciador (os anos de 2000, cf. no mesmo ano, pela formação de uma rede:
Quadro 1). Aqui fazemos um sobrevôo históri- História de vida e autoformação, na época do
co sobre a emergência das práticas de trabalho primeiro simpósio internacional de pesquisa-
com histórias de vida nesse período1 . formação em educação permanente na Univer-
sidade de Montreal. O primeiro círculo de pio-
Eclosão nos anos de 1980 neiros constituiu-se com Pierre Dominicé e
Christine Josso, da Universidade de Genebra;
Ao considerar os escritos públicos edita- Guy de Villers, da Universidade Nova de
dos como indicadores de acesso à historicidade, a Louvain; Bernadette Courtois e Guy Bonvalot,
obra franco-quebequense Produire sa vie : da Associação de Formação Profissional de
autoformation et autobiographie (Pineau, 1983) Adultos (AFPA) da França; e Gaston Pineau, da
publicada em Montreal e em Paris, em 1983, marca Universidade de Montreal. António Nóvoa da
para o mundo francófono a eclosão da corrente Universidade de Lisboa também estava lá, assim
das histórias de vida em formação. A quarta capa como Matthias Finger. Em 1988, estes publica-
apresenta essa obra, assinada por Marie Michèle, ram O método (auto)biográfico e a formação .
jovem quebequense de 35 anos e Gaston Pineau, Em 1984, a revista francesa Education
44 anos, franco-quebequense, à época, pesquisa- Permanente lançava um número duplo (72-73)
dor na Faculdade de Educação Permanente da Uni- intitulado Les histoires de vie entre la recherche
versidade de Montreal, com a seguinte afirmação: et la formation. Esse número serviu para prepa-
rar em 1986 um colóquio sobre as histórias de
O estudo dos animais em cativeiro elucida muito vida na Universidade de Tours, na França. A
pouco seu comportamento real. O dos ensina- obra de 1989, Histoires de vie, coordenada por
mentos não revelaria mais a aprendizagem fora do Pineau e Jobert (1989), publicou os principais
ensino, na vida, pela experiência, no trabalho? elementos em dois tomos – Tomo I: Utilisation
Aprendizagens que as ciências da educação rele- pour la formation, e Tomo II: Approches
gam à categoria do ‘cabe tudo’, da educação in- multidisciplinaires. O primeiro apresenta umas
formal ou não formal? É necessário então mudar cinqüenta práticas de história de vida de acordo
os modos de abordagem e as lentes conceituais com os seguintes espaços de eclosão:
para esclarecer esse ‘resíduo’ que constitui o con-
tinente quase inexplorado da educação permanen- • Nos diferentes setores profissionais: formação
te em que cada pessoa produz sua vida. de formadores de adultos, formação de educa-
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332 Gaston PINEAU. As histórias de vida em formação: gênese de uma...
dores, orientação profissional, empresa, gerência des tipos de problemas, constituindo essa crise de
e desenvolvimento de espaços coletivos, pesqui- transição paradigmática entre os modelos herda-
sa sobre a evolução dos saberes profissionais. dos esgotados e os novos em construção dispersa:
• Com diferentes atores sociais: jovens... e ve-
lhos, excluídos da história (analfabetos, pro- • Problemas metodológicos de tratamento
letários, emigrados, prisioneiros). (Clapier-Valladon), de pesquisa-formação
• Para diferentes finalidades: reconhecer (Dominicé), de análise sociológica (Chevalier).
aquisições, construir projetos, explorar pro- • Problemas socioinstitucionais de individua-
cessos de formação. lismo (Catani), de ética (Bourgeault), de inser-
ção organizacional (Bonvalot, Courtois).
Essas eclosões multiformes e multitópicas, • Problemas de linguagem: preâmbulo e contra-
tanto nos setores profissionais e faixas etárias como to (Chaufrault-Duchet), análise do relato de for-
nas ciências humanas e sociais, foram realizadas mação (Chéné), estudos lingüísticos (N. Guenier).
por contrabando, apesar do diktat2 dos feudos • Problemas de temporalidades: história e pro-
científicos que, à época, as taxavam de ilusão bio- jeto (Boutinet), dimensão temporal da pessoa
gráfica. Na realidade, essas práticas projetaram não (Ferrasse), ciclos de vida (Riverin-Simard).
apenas os ‘objetos sociais’ que ousaram tomar a • E finalmente problemas epistemológicos:
palavra como sujeitos. Além disso, esses sujeitos categorias cognitivas da prática e historicidade
falavam deles e queriam escrever suas vidas para (Pharo), sistema pessoal de produção de saber
buscar sentido nisso. Como se essa vida pudesse (J. Legroux), discursos psicanalíticos (Villers),
ter um e como se eles — sujeitos — pudessem hermenêutica (Arouca) e implicações socio-
conhecê-lo! Inadmissível e ilusória pretensão para epistemológicas do método (Finger).
os doutores em ciências humanas e sociais daquela
época, que pretendiam construir um saber objeti- Essa diferenciação de problemas no foco
vo sem sujeito. da crise paradigmática não deve deixar esquecer
Entretanto, além das ilusões e desilusões que seu tratamento invoca, freqüentemente, uma
possíveis e mais do que uma evolução sociobio- abordagem sistêmica complexa. Na maior parte do
gráfica, essas práticas parecem trazidas por uma tempo, esse tratamento não pode ser feito apenas
revolução bioética de vagas amplas e profundas. de forma analítica e interna. Ele se choca com as
O Tomo 2, Approches pluridisciplinaires, analisa interdependências entre problemas, que determi-
essas práticas como indicadoras de uma crise nam em grande parte sua dificuldade. Essas liga-
paradigmática histórica: emergência de novas ções essenciais, imprecisas e fluidas constituem a
práxis socioformadoras projetando, nas frontei- característica específica dos problemas ligados a
ras das instituições, novos interlocutores em crises paradigmáticas, multiformes e em múltiplos
busca de novas situações de interlocução e de níveis. O tratamento delas leva ao que Kuhn cha-
escritura, para tratar seus problemas vitais pós- ma de pesquisas não ordinárias, extraordinárias,
modernos de orientação e de formação profissi- alterando elementos instituídos de pesquisa ordi-
onal e também existencial. nária: sujeitos, objetos, objetivos, meios.
Três atores-autores apresentam suas Essa dinâmica de pesquisa não ordinária
práxis socioformadoras, então emergentes, na impulsionou esse período de eclosão das históri-
primeira parte do Tomo II: René Barbier (1989) — as de vida em formação, como práticas multiformes
“La recherche-formation existentielle “ —; Vincent de ensaio de construção de sentido por meio de
de Gaulejac (1989), — “La socioclinique“ —; e fatos temporais vividos pessoalmente. Práticas
Henri Desroches (1989), — “L’autobiographie
raisonnée comme maïeutique de projet”. As par- 2. Diktat: palavra alemã cuja tradução literal é ditado. Expressão usual-
tes seguintes isolam e desenvolvem cinco gran- mente utilizada para exprimir ditame, regra, instrução. N.R.
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existenciais de pesquisa-ação-formação, nas fron- ris, Genebra, Louvain, Tours permitiram elabo-
teiras das organizações, disciplinas científicas, di- rar não apenas os regulamentos internos e pro-
visões sociais e técnicas do trabalho. Elas tentam cedimentos de adesão, mas especialmente uma
articular o que está dividido, juntar e dar sentido carta ética que define o objeto/objetivo da As-
a elementos e eventos interníveis de trajetos sociação e as relações do formador, pesquisa-
erráticos, caóticos. dor, daqueles que intervêm com aqueles que
Essa dinâmica de fundo utópico, porém desejam fazer sua história de vida. Essa
vital, tomou inicialmente a forma de redes, de- redefinição das relações entre profissionais e
pois de associações que, combinando encon- atores sociais parece ser o desafio nevrálgico
tros e produções, abriram os anos de 1990 da passagem para os relatos de vida em forma-
como período de fundação. ção do paradigma clássico da ciência aplicada
para o do ator reflexivo.
Fundações e associações dos Essa carta foi elaborada felizmente ao
anos de 1990 vivo, em confrontação com os outros campos
operacionais trabalhados mais ou menos cole-
Os anos de 1990, além de uma série de tivamente pelos membros da associação. Esses
produções que diversificam a expressão do mo- campos podem ser reagrupados em quatro
vimento, suscitaram a criação de associações grandes conjuntos:
variadas que visaram definir, catalisar e provo-
car sinergia dos elementos emergentes nas re- • A análise de práticas e grupos de formação:
des regionais, nacionais e internacionais, tal presentes nos cinco primeiros anos, eclipsa-
como abaixo descritas. dos nos cinco anos seguintes para reaparece-
rem de maneira nova, desde 2003, com vistas
L’Association Internationale des à análise de práticas. Retomar os grupos de
Histoires de Vie en Formation formação, entre outros motivos, para dar su-
(ASIHVIF) porte à comunicação intergeracional sempre
delicada parece prioritário.
A primeira criação, em 1990-1991, é a • A questão ‘do quem’ das histórias de vida,
da Association Internationale des Histoires de de si, de um indivíduo, de um coletivo, de
Vie en Formation – ASIHVIF. Essa formalização um grupo específico — mulheres, por exem-
associativa foi longamente debatida. Ela não plo, ou migrantes. As produções coletivas
correria o risco de matar ou refrear a força cri- marcaram esse projeto: Histoires de vie
ativa informal das redes? collective et éducation populaire (Coulon, Le
Por fim, ela foi julgada preferível para Grand, 2000); Souci et soin de soi. Liens et
sair de uma cultural convivial e fechada do frontières entre histoires de vie, psycho-
núcleo inicial e abrir-se para uma comunicação thérapie et psychanalyse (Niewiandomski;
intergeracional. Esse trabalho coletivo e coope- Villers, 2002); Histoires de vie au féminin.
rativo de formação e de formalização dos im- Onze québécoises se racontent (2002).
plícitos alimentou esses dez primeiros anos, ten- • A questão de qual vida? Sensível? Inter-
do se baseado tanto sobre o continente – a geracional? Passagens interetárias? Da infân-
construção identitária da associação – quanto cia? Dos finais de vida? A abertura das apren-
sobre o conteúdo – análise das práticas, his- dizagens para todas as idades e em todos os
tórias de qual vida? De quem? Como? setores da vida mostra que esse projeto está
A construção identitária da associação apenas esboçado. Desde 2003, um grupo
foi, forçosamente, o projeto dos cinco primei- bastante ativo trabalha nesse projeto intere-
ros anos. Encontros de muito trabalho em Pa- tário e intergeracional.
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dificultar fortemente o movimento se não fosse Gênese de uma corrente de
tratado de forma criativa e se não existissem os pesquisa-ação-formação ou de
dois outros círculos de inovação. uma simples técnica de
• O segundo círculo, o mais externo, é chama- formação, de informação ou de
do de nebulosa dos contribuidores. No nosso intervenção?
caso, são as inúmeras pessoas e os inúmeros
grupos que, fora da associação, contribuem Esse sobrevôo contemporâneo de pro-
para a utilização das histórias de vida em for- duções e criações institucionais, representando
mação, pesquisa ou intervenção, para sua difu- as histórias de vida em formação, pleiteia, por
são e também para o seu desenvolvimento sua interpretação como indicadoras da gênese
metodológico, ético e epistemológico. Dessa de uma corrente de pesquisa-ação-formação
nebulosa de contribuidores, sobressaem-se existencial, mais do que a de uma simples téc-
particularmente os autores de memórias, teses nica pedagógica nova. Novas técnicas e aborda-
e obras. Esses atores que se tornam autores gens metodológicas, biográficas e autobiográ-
contribuem muito para o desenvolvimento ficas aparecem, mas trabalhadas por questões
quantitativo e qualitativo da corrente. No final de fundo axiológicas, epistemológicas e éticas.
de seu livro, La formation au coeur des récits Quem faz a história de vida de quem? Por quê?
de vie: expériences et savoirs univer-sitaires, Para quê? Com o quê? Quando? Até onde? Em
Christine Josso (2000) levanta uma bibliogra- função de que regras e de quais saberes?
fia de envergadura de 300 títulos de histórias Essas questões entrelaçam-se de modo
de vida em formação e 400 para as ciências insolúvel e definitivo do ponto de vista lógico.
humanas — em francês, inglês, alemão, italia- Porém, elas impeliram e impelem há 25 anos,
no, espanhol e português. no curso dos anos e dos eventos, um movi-
mento socioeducativo de pesquisa-ação-forma-
Enfim, entre os dois círculos de inova- ção que parece inscrever-se na difícil passagem
dores — os iniciadores e os contribuidores —, do paradigma da ciência aplicada ao do ator
estão os criadores afinando e instituindo a intui- reflexivo. E nessa passagem, esse movimento
ção dos iniciadores à luz de suas próprias e do pode pesar muito. Sua aposta biopolítica é a da
aporte dos contribuidores. A dinâmica associativa reapropriação, pelos sujeitos sociais, da legitimi-
pode entrar em sinergia com esses inovadores- dade de seu poder de refletir sobre a construção
criadores, com a condição de favorecer a auto- de sua vida. Essa vida não é completamente pré-
nomia e a criação de cada um por meio de liga- construída. E ela é muito complexa para ser
ções flexíveis de inter e trans-ações. construída unicamente pelos outros. Novas artes
No início dos anos de 2000, viu-se o formadoras da existência são inventadas. Foucault
aparecimento do primeiro diploma universitário as denomina de as artes da existência:
com as histórias de vida, o DUHIVIF (Nantes,
2000) e as primeiras revistas — Chemins de Por elas, é preciso entender práticas refletidas e volun-
formation au fil du temps (Nantes, 2000) e tárias pelas quais os homens não somente se fixam
Histoires de vie (Rennes, 2001). Uma nova co- regras de conduta, mas buscam transformar a si pró-
leção apareceu em Paris: L’ecriture de la vie prios, a se modificar em seu ser singular e a fazer de
(2004). As conexões com associações européias sua vida uma obra que traz certos valores estéticos e
se reforçam: Life History and Biographical respondem a certos critérios de estilo. (1984, p. 12)
Research Network, de la Société Européenne
pour la Recherche en Formation des Adultes Pelo que sabemos, Foucault não fala de
(ESREA). Laços com a América do Sul se mul- história de vida, salvo por si próprio, para jus-
tiplicam e pesquisas internacionais surgem. tificar seu arriscado empreendimento:
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Em 1998, o livro Accompagnements et estão hoje na encruzilhada da pesquisa, da
histoire de vie, coordenado por Pineau (1998), nas- formação e da intervenção onde se entrecruzam
ceu de um colóquio comemorativo, organizado em outras correntes tentando refletir e exprimir o
1996 na Universidade de Tours, para marcar os 10 mundo vivido para dele extrair e construir um
anos decorridos desde um precedente que, em sentido. Essas correntes trazem outros nomes:
1986, havia operado um primeiro agrupamento dos biografia, autobiografia, relato de vida, para
principais interessados. O último capítulo, de Marie- citar apenas aqueles que estampam a vida em
Christine Josso (1998), relata em particular esses 10 seu próprio título.
anos de interacompanhamento: “Cheminer avec Uma pesquisa terminológica sobre a de-
interrogations et défis posés par la recherche d’un nominação de diferentes correntes que desde a
art de la convivance en histoire de vie”. bios grega tentam construir sentido, a partir das
Logo depois, o livro de Alex Lainé (2000), experiências pessoalmente vividas, recenseou mais
Faire de sa vie une histoire, confronta a gênese da de uma vintena de termos (Pineau, 2002). Elas
corrente de formação de adultos com a da socio- podem ser reagrupadas em três subconjuntos de
logia clínica. O aguardado livro de Christine Delory- acordo com o que seu título sugere: uma entra-
Momberger (2000) Histoires de vie. De l’invention da pessoal, temporal ou pela vida.
de soi au projet de formation (Anthropos) enraíza
as histórias de vida, de modo mais global e remo- • A entrada pelo pessoal constitui o que é
to, nas escolas filosóficas de descoberta de si, chamado de literatura íntima ou aquela “do
desde a Grécia antiga até os desdobramentos im- Eu”: confissões, diários íntimos, cartas, cor-
portantes da Lebensphilosophie4 na Alemanha, respondências, livros de pensamentos, livros
onde constitui uma disciplina. de família, relações...
Enfim, em 2001, foi efetuada a transmis- • A entrada temporal é também rica de denomina-
são da responsabilidade pela ASIHVIF a uma equipe ções: genealogia, memórias, lembranças, diários
da nova geração, após uma longa e frutífera ope- de viagem, efeméride, anais, crônica, história.
ração coletiva de retrospectiva/prospectiva. Essa • Enfim, a entrada pela própria vida, com ou
operação permitiu mobilizar novamente as forças sem sua raiz grega, bios. Na língua francesa, as
em torno de uma dimensão antropológica das denominações desse último subconjunto são
histórias de vida a desenvolver. as últimas a aparecer: no século XVII, para as
Na primavera de 2007, eu irei sediar em biografias; nos séculos XVIII e XIX, para as
Tours, França, um colóquio internacional que visa auto e hagiografias; na última metade do sé-
operar um balanço retrospectivo e prospectivo culo XX, para os relatos e as histórias de vida.
dessa corrente socioeducativa com outras corren-
tes de pesquisa que trabalham o biográfico. Essas A aparição dessas formas biográficas nos
correntes de pesquisa-ação-formação não se ins- séculos XVII e XVIII está se aproximando da libe-
crevem em um movimento de construção de um ração, nessa época, do que Foucault chama “um
novo espaço/tempo de pesquisa nas ciências hu- limiar de modernidade biológica, isto é, um mo-
manas, que poderia ser denominado de biográfi- mento em que a espécie entra como desafio em
co (Delory-Momberger, 2005)? suas próprias estratégias políticas” (1976, p. 188).
Essa aproximação nos faz pensar que a aparição
Sobrevôo sobre as correntes contemporânea dos relatos e das histórias de vida
do movimento biográfico possa ser interpretada como indicadora da libe-
ração de um segundo limiar da modernidade
Tendo entrado de ‘contrabando’ no biológica, de uma revolução bioética e biopolítica,
campo das ciências humanas e da formação no
início dos anos de 1980, as histórias de vida 4. Lebensphilosophie: filosofia da vida.
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as biografias profissionais: “ Biographie tura e um investimento pessoal, que pode ser
professionnelle et formation” (2001). O termo exclusivo, fez-me abandoná-lo pelo conceito
biografia da linguagem intitula um número es- mais recente de história de vida, apontando para
pecial de docentes-pesquisadores em ensino de construção de um sentido temporal, sem privi-
línguas, de textos e de culturas: legiar o meio social e material da construção. No
entanto, para além da terminologia, a autobio-
A biografia da linguagem repousa sobre a ca- grafia representa um meio pessoal maior, e tal-
pacidade do indivíduo de relatar os elementos vez incontornável, do exercício em um círculo
constitutivos de sua experiência nos domínios diferente do ‘curvar-se (fechar) reflexivo e do
lingüístico e cultural. A hipótese [...] é que esse desdobrar-se (abrir) narrativo’. Sublinhar ‘o inte-
trabalho biográfico permite desenvolver no es- resse e a dignidade do ato autobiográfico’ é um
tudante de línguas a consciência segundo a contrapeso necessário às pulsões totalitárias de
qual essas aprendizagens lingüísticas ganham apropriação cognitiva da vida pelos profissionais
ao ser colocadas em relação umas com as ou- do sentido.
tras. (Molinié, 2006, p. 6) O relato de vida aponta para a impor-
tância da expressão do vivido pelo ‘desdobrar
Esses títulos, com o termo biográfico, narrativo’, quer essa enunciação seja oral ou
seguramente a ser completados, são alguns in- escrita. A aparição e o aumento da expressão no
dicadores da construção de um espaço de pes- século XX acompanha a revolução técnica das
quisa-formação cujos limites e biodiversidade multimídias: o cinema e o vídeo liberam a pa-
ainda estão pouco vislumbrados. lavra do (texto) escrito e ampliam os modos de
A autobiografia — escrita de sua própria coleta e de tratamento da informação.
vida — tem seu pesquisador: Philippe Lejeune, Um pioneiro do desenvolvimento do
promotor da Associação pelo Patrimônio Auto- relato de vida na França, Daniel Bertaux, enun-
biográfico. Em oposição à biografia, ela consti- cia que “há relato de vida desde que haja des-
tui um modelo no qual, no limite, ator e autor crição na forma de narrativa de um fragmento
se superpõem sem um terceiro mediador explí- de experiência vivida” (1997, p. 9). Na forma-
cito. O prefixo ‘auto’ a aproxima dos outros ção de professores, Nicole Bliez-Sullerot e
processos, que utilizam esse prefixo, em relação Yannick Mevel (2004) sintetizam seus 15 anos
ao problema do lugar do outro, nessa utiliza- de pesquisa-formação no livro intitulado Récit
ção. Lejeune acaba de publicar um livro sínte- de vie en formation. Jean-Yves Robin explora,
se de 30 anos de pesquisa sobre a autobiogra- juntamente com uma vintena de autores, Le
fia: Signes de vie. Le pacte autobiographique II. récit biographique em dois tomos: Fondements
Ele oberva que anthropologiques et débats épistémologiques
(tomo I) e De la recherche à la formation.
[...] nós podemos esperar nos próximos decênios, Expériences et questionnements (tomo II).
uma mudança de mentalidades, maior tolerância, Em todo um outro setor, aquele da ges-
um reconhecimento do interesse e da dignidade tão de empresas, um número recente da Revue
do ato autobiográfico. (2005, p. 249) Française de Gestion — intitulado: Récits de vie
et management (vol. 31, n° 159, 2005) — de-
Eu utilizei esse termo no título de mi- senvolve o interesse de colocar em forma de re-
nha primeira pesquisa sobre autoformação – lato ‘fragmentos de experiência vivida’ para a
Produire sa via: autobiographie et autoformation formação de competências e sua transmissão,
(Pineau, 1983). Desroche (1989) nomeou de au- para a cultura da empresa e, finalmente, para
tobiografia refletida a sua aplicação à formação. dar sentido à ação coletiva. Os autores tradu-
Seu peso etimológico, que faz privilegiar a escri- zem por ‘narração’ o termo norte-americano
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membros, a corrente das histórias de vida em so entre o paradigma do comando e do con-
formação pode fazer dessas práticas uma arte trole e aquele da autonomização. Ele é incerto
poderosa de autonomização ou, ao contrário, de e não resolvido. Porém nessas lutas de poder
submissão dessas pessoas. pelo acesso aos saberes sobre a vida, seu do-
mínio representa um meio vital estratégico
O futuro das histórias de vida se inscreve as- para construir sentido e produzir sua vida.
sim nas oscilações de um desafio bioético ten- (Pineau; Le Grand, 2002, p. 122)
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Recebido em 08.03.06
Aprovado em 22.05.06
Gaston Pineau é professor de Ciências da Educação na Universidade François Rabelais de Tours. Ele é co-fundador da
ASIHVIF e autor de várias obras, entre elas, Temporalidades na formação (São Paulo: Triom, 2004) e Les histoires de vie
(Paris: PUF, 2002, em colaboração com Jean-Louis Le Grand).
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