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Escrito de um padre e psicólogo preto, na "segunda-feira de cinzas", às Escolas de Samba do Rio de Janeiro e São

Paulo: por uma leitura religiosa e psicológica do Danado do Samba

(2022, um desfile dos deuses - obra do inconsciente ancestral)

Como sacerdote católico inclino minha alma preta à ancestralidade e divindades africanas e diaspóricas que, no
Carnaval de 2022 decidiram, sem reservas, atravessar a passarela sagrada do Samba. Puxando um diálogo possível
entre religiosidade e psicologia profunda, posso dizer que 2022 foi, de modo singular, um desfile dos deuses, fatores
psicológicos por excelência, segundo olhar junguiano. Dizendo de outro modo, simbolicamente, 2022 foi o Carnaval
da incorporação, o desfile do transe: os deuses africanos passaram pela Avenida para compensar o caos produzido
pela pandemia. Da pandemia à Passarela! O inconsciente coletivo, na acepção junguiana, opera por compensação.
Nessa perspectiva, o inconsciente ancestral brasileiro ("com seus mitos e seres de luz", nas palavras de Arlindo Cruz)
foi constelado na cadência bonita do Samba. Se o mitólogo Joseph Campbell escreveu profundamente sobre o poder
do mito, podemos dizer que o carnaval 2022 exibiu o poder do Samba.

A propósito, certa feita, o psicólogo Carl Gustav Jung, pai da psicologia analítica ou junguiana, disse à psiquiatra
rebelde, Nise da Silveira, que se ela não entendesse os mitos de seus pacientes não seria capaz de acessar o
inconsciente profundo dos mesmos. Nesse mesmo horizonte analítico, sem compreender os mitos africanos e
diaspóricos é impossível acessar o Brasil profundo - o inconsciente ancestral. E é nele que jaz a potência da raça. Se o
poder colonial nos obrigou a saber de Hermes, por exemplo, o poder do Samba nos convida a saber de Exu. Cantou
Elza Soares que Exu deve ser aprendido nas escolas. E por que não empretecer o conhecimento (Beija-flor,2022)?
Que flecha certeira nos oferece Oxossi (Mocidade, 2022) capaz de fazer cair por terra o mostro da colonialidade
racista do saber, do poder e do ser?

Mais do que quaisquer arcenais bélicos, o povo preto, em diaspóra forçada, encontrou na religiosidade suas armas
mais poderosas.

Para Jung, os deuses, fatores psicológicos, como já disse, são os que mais trabalham, são os que mais lutam no
invisível da vida. Carnavalescamente falando, os deuses são, pois, os que mais desfilam! E isso é uma ocorrência
religiosa de real grandeza!

Então, puxando um diálogo possível entre religiosidade preta, psicologia profunda e pandemia, independente da
escolha dos jurados (RJ/SP), se pode dizer, sem vacilar, que a grande campeã do Carnaval 2022 é a ancestralidade
preta - o poder do sagrado, dos antepassados, da religiosidade insurgente, dos mitos e símbolos vivos do povo, dos
deuses que, abusada e festivamente, montando em corpos pretos, desde as Áfricas, são capazes, com a ciência, de
transformar a travessia de uma pandemia inclemente e avassaladora em passarela do Samba, em passarela da Vida,
em caminho aberto para um novo tempo com mais brilho, mais sorriso, mais potência e mais arte.

O Carnaval 2022, no seu conjunto, não foi obra meramente humana. A propósito, em chave ancestral, não há
humano separado do divino. Não há divórcio entre o céu e a terra, ou entre o aiyê e o orum. Os mundos se
comunicam. São interdependentes!

Concebo, pois, o danado do Samba como Jung compreendeu a vida: "planta que extraiu sua vitalidade do rizoma. O
que aparece é breve floração e logo desaparece. Mas o rizoma persiste".

O Carnaval 2022, de modo exemplar, reverberou de onde o Samba (e a gente preta) extrai sua vitalidade e potência.

Na obra "O segredo da flor de ouro", Jung afirma que os deuses são o verdadeiros atores no palco da vida; ou na
passarela da existência humana, pessoal e coletiva - os arquétipos! Como esquecer os antepassados (mangueira,
2022)? Donde vem a força da resistência (Salgueiro, 2022)?

Os que mais trabalham desceram para dizer Sim à vida, para realizar curas nas psiques feridas pelo horror da
pandemia. Enunciam os tambores: não basta sobreviver! Eis porque passarela em transe... Vida incorporada!
O invisível fez-se visível e palpável... O Baobá (Portela, 2022) me contou: foram eles, em "memórias ancoradas em
corpos negros", os que mais sambaram. Foi o desfile dos deuses - obra do inconsciente ancestral!

Eis, pois, sagrada e potente mensagem, religiosa e psíquica, do Carnaval 2022 para o pós-pandemia: as divindades
africanas não abrem mão das humanas criaturas (e vice-versa). Os negros e negras crêem em divindades que sabem
dançar... Sambamos; logo, existimos!

Por essas e outras, escreveu o intelectual Alberto da Costa e Silva ser o Brasil "um país extraordinariamente
africanizado".

Como descrevem Antônio Simas e Rufino, em "epistemologias das macumbas", o povo preto é como Exu - boca
coletiva - come de um jeito (come o mundo) pra cuspir de outro: reinventamos a vida!

O caminho está aberto... Eles estão no meio de nós! Por isso, apesar dos pesares pandêmicos, a noite ficou mais
calma e mais bela. Nossos ouvidos cansados da batalha da vida ouviram da ancestralidade:

"BOA NOITE, MOÇA, BOA NOITE, MOÇO!".

"Aqui na terra é nosso templo de fé. Fala, Majeté!" (Grande Rio, 2022).

Pe. Gegê Natalino

Padre Gegê e a denúncia do racismo numa Igreja branca: é tempo de escolher a que
serve sua fé.

Sou católica desde criança, fui levada para Igreja por minha avó materna após ela ter visto sua filha ser
assassinada a mando do ex-marido. Na fé minha avó foi encontrando formas de seguir, e eu, crescendo
ao lado de adolescentes e jovens que me ajudaram em momentos bem difíceis da minha vida.

A paróquia que frequentei não tinha posicionamentos críticos e questionadores. O padre, um ex-capelão,
era inclusive conhecido por suas broncas. Lá eu não tive acesso ao que era a Pastoral da Juventude e tão
pouco a Teologia da Libertação, ações que somente fui conhecer após minha entrada na faculdade e
circulação em outros espaços. No entanto, foi nesse espaço da Igreja que aprendi sobre respeito ao
próximo, solidariedade, amor, fraternidade.

O tempo passou, fiz faculdade de História, me afastei, senti falta, voltei. Nesse meu retorno pude enfim
conhecer pessoas que praticam uma Igreja Católica que acredito. Que vivenciam uma fé que não se cala
frente as injustiças, mártires históricos e cotidianos. Nesse caminhar conheci o Padre Gegê, um padre
preto que em suas pregações e estudos acadêmicos defende o respeito a todas as religiões, valorizando
nossa matriz afro-brasileira e falando abertamente sobre o racismo.
Recentemente, em seu processo de recuperação do COVID 19, padre Gegê denunciou o racismo na
Igreja Católica num importante texto em suas redes sociais, que posteriormente foi publicado em alguns
portais . Usando frases como: “Quando um padre negro não consegue respirar” e “quando o chicote
estala na batina”, Gegê escancara o que define como “racismo eclesiástico, isto é, o racismo que é
gestado e estruturado na ambiência hierárquica da Igreja Católica”.
Ao levantar-se contra uma estrutura secular de poder, Gegê não ficou impune. Recebeu calúnias de
outros clérigos e foi chamado a explicar-se nas instâncias cabíveis. Nada disso o impediu de seguir em
sua luta por uma Igreja antirracista. Utopia? Talvez! Mas compartilho desta utopia com ele,
principalmente quando lembro de tantas ações pelo Brasil desenvolvidas pela Pastoral Afro, ou mesmo
pela Pastoral Carcerária que lida com uma população majoritariamente negra.

Como uma mulher, católica e negra eu também sinto este chicote, eu também tenho dificuldades para
respirar. Padre Gegê não está só! Retomando a fé em Nossa Senhora Aparecida que me foi ensinada por
minha avó, entoo a música criada pela Pastoral Afro “Negra Mariama chama pra cantar, Que Deus uniu os
fracos pra se libertar, E derrubou dos tronos os latifundiários, Que escravizavam pra se regalar”. Que
possamos derrubar esses tronos, que possamos enegrecer o Cristo para aqueles que professam a fé em
Cristo. Que possamos praticar uma fé antirracista.

Num país onde a população preta é pobre é executada, uma fé que silencia é uma fé que tem sangue nas
mãos. Gegê em seu texto chama a Igreja e seus fiéis a reflexão: a que serve sua fé?

Autora: Pâmella Passos, enviado para o Portal Geledés

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