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01 DE NOVEMBRO DE 2016 Nº 1 CIVITAS SOLIS PUBLICAÇÕES

NOSSO MANIFESTO O POVO GUARANI ALMA COLIBRI


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ECOS DA ALMA BRASILEIRA


REVISTA

Introdução "O Bhagavad Gita é


um diálogo entre
O Bhagavad Gita faz referência a três princípios fundamentais da Krishna, Deus
existência cósmica: o princípio da inércia (tamas), o princípio do encarnado, e seu
dinamismo (rajas) e o princípio da lucidez e da paz (sattva). discípulo, o príncipe
Arjuna, diálogo esse
Arjuna corporifica a interação entre esses princípios. No início, ele ocorrido no campo
procura fugir da luta, porque ansiava por uma paz irrealizável neste da batalha dos Kuru
(kuru-kshetra) situado
mundo. No entanto, Krishna orientou-o para o combate:
na planície do Ganges
próxima à moderna
“Tendo como iguais o prazer e a dor, o lucro e a perda, a vitória e a
Delhi”
derrota, cinge-te para a batalha! Assim não incorrerás em pecado. (FEUERSTEIN, 1998)
(...) Sê livre das qualidades primárias do universo manifestado, ó Arjuna,

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sê livre dos pares de opostos e repousa sempre


na lucidez da nova alma, sem esforçar-se para
adquirir ou manter coisa alguma. Sê senhor de
ti!”

É possível perceber como esses princípios se


ligam à formação da alma brasileira, da nação
brasileira, que é um processo dinâmico, que
ainda não se consolidou nem se cristalizou.

Ainda não sendo propriamente uma nação, ou


seja, não tendo consolidado uma identidade
própria, a sociedade brasileira procura sublimar
a sua falta de “ser” no culto da posse, do “ter”,
e da aparência do “ter” e “ser”, o que esconde
uma ferida profunda, um sentimento de
inferioridade cultural.

Um pesquisador do povo brasileiro tentou


defini-lo através de suas características: “o
servilismo, a humildade, a rigidez, o espírito de
ordem, o sentido do dever, o gosto pela rotina, a
gravidade, a sisudez”, mas também “a
criatividade do aventureiro; a adaptabilidade de
quem não é rígido, mas flexível; a vitalidade de
quem enfrenta (ousado) azares e formas; a
originalidade dos indisciplinados”.

Esse conflito entre tamas e rajas também é perceptível na oposição entre feminino e masculino.
Por um lado, o imaginário brasileiro é essencialmente feminino, identificando-se com a
fecundidade da terra, a fartura, a imensidão de suas florestas e rios, o que surpreendeu já os
primeiros portugueses.

Ainda em 1500, Pero Vaz de Caminha escreveria ao rei dom Manuel seu relato da viagem ao
Brasil: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-
se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. Essas águas também se conectam com o culto da
Virgem, que iria desenvolver-se com muita força no Brasil.
"No seu domínio, o senhor
de engenho era o amo Por outro lado, a sociedade colonial brasileira já era
e o pai, de cuja vontade e fisiologicamente patriarcal, não dando espaço ao aspecto
benevolência dependiam feminino da alma humana; um sistema marcado pelo poder
todos, já que nenhuma econômico, pela ordem oligárquica, pela distância entre pobres
autoridade política ou e ricos e pela discriminação racial.
religiosa existia que não
A figura do senhor de engenho, símbolo da virilidade e do
fosse influenciada por
paternalismo, se mantém em nossa sociedade até a atualidade,
ele.” ainda que transmutada em novas formas. Isso se traduz
também numa percepção do cristianismo (católico ou
(RIBEIRO, 1995)
protestante) a respeito da divindade, uma figura masculina e

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castradora, a quem se deve temer continuamente.

Alma Brasileira Apesar de tudo isso, a colonização no Brasil sempre


envolveu a mestiçagem, em primeiro lugar do português
com o índio, o que se distingue claramente da colonização
americana e outras do tipo.

Muitos pensadores afirmam que isso se relaciona a algo


essencial da civilização indígena guarani, o hábito de
acolher no seu círculo pessoas de fora da sua cultura. Há
inclusive rituais, como o nimonkaraí, em que qualquer
pessoa pode receber um nome espiritual guarani após a
iniciação.

Mas, qual é a vocação do Brasil? O que está escondido na


semente dessa nação e que pode vir a germinar?
Te n t a re m o s d a r u m a re s p o s t a p a rc i a l a e s s e s
questionamentos trazendo elementos de um mito do povo
guarani.

O mito fala a respeito do primeiro ancestral, do primeiro


homem, que tem uma contraparte feminina, a primeira
mulher. Essa contraparte é chamada de Cunhantaí. A
primeira mulher nasce das águas; ela nasce como um
espelho do homem. O primeiro ancestral estava
caminhando em direção a uma cachoeira, olha então nas
águas e vê sua própria imagem invertida espelhada,
ficando maravilhado e exclamando: “Cunhantaí!” - o que
significa “que maravilha!” A mulher, portanto, é
reconhecida ou nasce de um espasmo de maravilhamento,
"O supremo mistério de ser e os “dois” criam juntos o mundo. A humanidade nasce
está além de todas as quando Cunhantaí colhe sementes das mais diversas
categorias de pensamento. árvores da floresta e as coloca numa cabaça (o maraca ou
Como Kant disse, a coisa em maracá), que é um instrumento, um chocalho.
si é não coisa. (...) O mito é
aquele campo de referência Um canto acompanha o ritmo enquanto essas sementes
àquilo que é absolutamente vão sendo chacoalhadas no maraca, e delas nascem as
transcendente (...) A suprema primeiras crianças. Em determinado momento, essas
palavra, em nossa língua, sementes “pipocam” (“pipoca” é exatamente a palavra
para o transcendente é Deus. tupi-guarani utilizada), estouram, e assim nascem as raças
Mas aí você tem um vermelha, branca, amarela e negra, que se espalham pelo
conceito, percebe? Você mundo.
pensa em Deus como o pai.
Agora, nas religiões em que O mito se encerra com duas profecias: a primeira diz que
o deus ou o criador é a mãe, haverá muitos conflitos e guerras, porque os seres
o mundo inteiro é o corpo humanos se esqueceriam, com o passar do tempo, de sua
dela”. origem única.

(CAMPBELL, 1988) Mas uma segunda profecia diz que haverá o momento em

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que os descendentes dessas sementes branca, negra


amarela e vermelha voltarão para seu lugar de origem, e
seus filhos gerarão a quinta semente, a semente dourada,
conduzindo à unidade das raças, das culturas e das
consciências. E é assim que nascerá o “novo tempo”, que
às vezes é denominado pelos guaranis de “primavera
humana”, quando se constituirá o povo dourado ou
celestial, que é a união de todos os povos.

Porém, sabemos que, em nosso mundo globalizado, há


Nosso Manifesto ainda uma grande dificuldade em assimilar e conviver com
o diferente, fazendo com que cada indivíduo, povo ou
nação se mantenha dentro dos limites supostamente
O centro de toda a vida está no
coração de cada ser. seguros da ego-centralização, mesmo que ampliada para
O círculo é o microcosmo, o toda uma nação ou para uma determinada concepção de
cosmo e o macrocosmo. mundo.
A vida está em todas as partes
em constante movimento,
um campo de possibilidades que Os conflitos são, portanto, inevitáveis, por mais que
conecta tudo e todos. continuemos ouvindo os brados por paz. Como nos
Nada no universo existe por si esclarece no Bhagavad Gita, uma solução nunca virá da
mesmo, tudo é interdependente. fuga do problema, mas sim de dentro do problema.
A essência do homem e do
cosmo só pode ser alcançada
pelo verdadeiro
Conhecendo-nos profundamente, como indivíduos e
autoconhecimento. como coletividade, poderemos consolidar a nação
brasileira como uma civilização de síntese, em que o
Essa descoberta começa por
diferente é assimilado e transmutado, mas de acordo com
trilhar um caminho que se
expande, ultrapassa os atuais sua própria essência e em absoluta liberdade.
estados conhecidos e atravessa
nossas fronteiras, um caminho Poderíamos também expressá-lo com a ideia do “povo
que revela a única verdade.
dourado” dos guaranis, ou como o faz esse trecho do
Buscamos a expressão desse manifesto do Instituto Civitas Solis:
real conhecimento,
desde o coração da alma dos
povos, suas culturas, seu saber e “Nada no universo existe por si mesmo, tudo é
experiência, do histórico e do interdependente.
espiritual, que transforme a nós A essência do homem é a essência do cosmo e do
mesmos e o outro.
macrocosmo e só pode ser alcançada pelo verdadeiro
O caminho para essa autoconhecimento.
transformação respeita a
autonomia e o ritmo de cada um
(…) O caminho para essa transformação
para tocar e despertar a
consciência de si e do todo. respeita a autonomia e o ritmo de cada um
para tocar e despertar a consciência de si e do todo.
O universo, a vida e o real
conhecimento já se encontram
dentro de você e o impulsionam O universo, a vida e o real conhecimento
a trilhar seu próprio caminho. já se encontram dentro de cada ser humano,
e o impulsionam a trilhar seu próprio caminho”.
Instituto Civitas Solis
Consciência que transforma A palavra africana “Ubuntu” também traduz essa mesma
ideia de unidade. Nesse conceito, a existência só é
definida pela existência de outros.

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A concepção do “ubuntu” sobre o outro nunca é fixa ou fechada, mas ajustável. Ele permite que
o outro se agregue ao grupo como é: liberdade e unidade, a um só tempo, o que só é possível
através do amor, que une o múltiplo sem forçá-lo a mudar.

Se o Instituto Civitas Solis puder ser um arauto e um pioneiro dessa nova consciência, que tudo
unifica, abriremos espaço para a manifestação da harmonia e da beleza de uma vida construída
com arte.Aprofundando o conhecimento da tarefa colocada no manifesto que dá base ao seu
trabalho, e cumprindo-a integralmente, auxiliaremos também a nação brasileira a se conhecer e
realizar seu destino superior, sua vocação, que é a geração da semente de ouro e a
manifestação do “povo dourado”.

Tradições espirituais pré-colombianas


e o povo guarani

Na América pré-colombiana, ainda que desconhecida da História “Nosso Pai Primeiro


exterior, em uma linguagem mitológica inacessível ao europeu, se criou-se de si mesmo
escondia uma profunda sabedoria nas tradições espirituais dos na Vazia Noite iniciada”
mais diferentes povos que habitaram as vastas extensões desse (JECUPÉ, 2001)
continente.

O mesmo pode ser dito de um povo que habita o território


brasileiro há milhares de anos, o povo Guarani, que guardou com
zelo sua tradição, que concorda inteiramente com a sabedoria dos
grandes iniciados conhecidos pelo Ocidente.

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A Sabedoria Guarani
Apesar de todas as dificuldades vividas nos últimos séculos,
os guaranis ainda preservam o conhecimento de uma Terra Sem Mal
sabedoria muito antiga, expressa em mitos. Eles falam a
respeito de grandes pajés ou profetas, também conhecidos
como Caraís ou Caraíbas. Segundo Hélène Castres 1,
diferente do pajé comum ou do chefe da tribo, o caraí não
ficava ligado a nenhuma aldeia. Era um homem conhecido
por sua vida solitária, sua sabedoria, seu poder e seu
silêncio. Era venerado por onde passava, indo de aldeia em
aldeia. Dizia não possuir pai, estando diretamente ligado aos
poderes celestiais.

A mensagem central que os grandes pajés ou Caraís


levavam por onde passassem era o tema da Terra sem
Males: de que o ser humano vive na segunda terra,
condenada à destruição; por isso, deve dirigir-se à Terra sem
Males, que no entanto não se situa na vida após a morte,
mas pode ser atingida em vida.

Em alguns momentos, essa Terra sem Males foi vista como


um local geográfico para o qual se devia dirigir (no centro da
terra; a oeste; a leste, além do mar), conduzindo assim a
migrações. Mas essa Terra sem Males não se reduz à
concepção espacial, a um local paradisíaco, mas é
principalmente um estado de ser. Por isso, também se diz
que é possível atingi-la tornando o corpo mais leve, sutil. Da
mesma forma que um caraí, era possível a qualquer índio se
tornar semelhante aos deuses, um homem divino, superando
as limitações culturais e atingindo uma condição
transcendente.

Os cânticos sagrados guaranis, entremeados de frases não


cantadas, descreviam as narrativas míticas, a ordem do Os Guaranis buscavam a
mundo e a promessa da Nova Terra. Através desses cânticos Terra Sem Mal, um lugar
e das narrativas, essa sabedoria foi preservada ao longo dos acessível aos vivos, aonde
séculos, mantendo a tradição e mantendo vivo o anseio pela seria possível ir de corpo e
vida espiritual. alma, sem passar pela morte.
Nela estão os ancestrais que
Os Mbiás morreram, mas a morte não
seria condição necessária
Entre os subgrupos guaranis atuais, os Mbiás são os que
para atingi-la. A Terra Sem
procuram com mais intensidade preservar sua identidade
Mal é esse lugar privilegiado,
cultural. Os Mbiás ou Embiás são um subgrupo do povo
indestrutível, em que a terra
guarani que habita a região meridional da América do Sul,
produz por si mesma os seus
em um amplo território em que se sobrepõem os Estados
frutos e não há morte.
nacionais paraguaio, brasileiro, argentino e uruguaio.
(CLASTES, 1978)

1 CASTRES, HÉLÈNE. A Terra sem Mal: O Profetismo Tupi-Guarani.


São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.

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Apesar de se reconhecer cotidianamente como


Mbiás, sua autodenominação ritual é “Jeguakava
Tenondé Porangue’í” (“os primeiros escolhidos para
levar o adorno sagrado de plumas” ou “os
primeiros adornados”).

Os Mbiás são vistos muitas vezes como “fechados,


desconfiados e pouco hospitaleiros”, tendo-se
recusado a receber missionários. Talvez por isso,
suas narrativas míticas tenham sido preservadas e
finalmente transmitidas apenas em meados do
século XX a Léon Cádogan, um pesquisador
paraguaio, mas só após uma convivência de muitos
anos com eles – e só após ser iniciado em seus
mistérios através da cerimônia do Nimongarai e
receber o nome índio de Tupã Kuchuvi Veve.

Alguns anos depois, o cacique Pablo Werá diria a


Tupã Kuchuvi e ao professor Egon Schaden, da
Universidade de São Paulo, que era chegado o
momento de transmitir esse ensinamento a todos2:

“Os últimos grandes pajés estão indo embora para


a morada dos nossos ‘Pais Primeiros’. Existe o
perigo de que, ao desaparecerem por um tempo
desta morada terrena, as palavras sagradas fiquem esquecidas na fala guarani, e sem elas a
verdadeira cultura ancestral degenera. Um dos nossos grandes pajés disse que mais adiante,
quando o espaço abraçar um novo círculo de tempo, Tupã renascerá no coração do estrangeiro.
De modo que eu gostaria que registrassem nossas palavras mais formosas, para que, quando
nós formos, elas possam acordar os futuros corações”. A profecia dos Mbiás dizia o seguinte:

“Depois de fundir-se o espaço e amanhecer


um novo tempo, “É possível
Eu hei de fazer que circule a palavra-alma
novamente.
passar da terra
Pelos ossos de quem se põe de pé má para a terra
E que voltem a encarnar-se as almas,
Disse nosso Pai Primeiro. sem mal sem
Quando isso acontecer
Tupã renascerá no coração do estrangeiro.
passar pela
E os primeiro adornados novamente prova da morte.”
Se erguerão na morada terrena por toda a
(CLASTRES, 1978)
sua extensão.”

As “palavras formosas” são as palavras sagradas que só os Caraís ou profetas sabiam proferir,
a linguagem comum a homens e deuses: palavras que os profetas dizem aos deuses ou que, ao
mesmo tempo, os deuses dirigem a quem sabe ouvi-los. “Ayvu porä”, a linguagem formosa, é a
linguagem dos deuses, dos homens divinos, e a única que apreciam ouvir. Tem um vocabulário

2JECUPÉ, KAKÁ WERÁ. Tupã Tenondé: A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral
Guarani - São Paulo: Peirópolis, 2001.

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próprio, distinto da linguagem corrente, traduzindo noções


abstratas. Esse vocabulário expressa conceitos como
“saber-poder criador”, “completude”, “força espiritual” e
outros nunca utilizados fora de seu contexto sagrado.
Nomeia de forma poética os objetos também, dizendo,
por exemplo,“florzinha do arco” e não flecha; “o que
vossos dedos afloram” e não “plantação”. Para o Mbiá, a
linguagem cotidiana apenas designa as coisas, só a
linguagem formosa as nomeia. A linguagem utilizada
destina-se ao canto que traz o conhecimento sagrado e O Paraíso Terreal
por isso é formosa.
“Havia (…) figuras misteriosas
O centro da vida espiritual dos Mbiás é o “opy”, onde que viviam às margens de
todas as tribos. Os índios
todas as atividades religiosas são executadas. O opy é
denominavam-nos Caraís e
uma casa central de uma aldeia mbiá, ao redor da qual as a c re d i t a v a m q u e h a v i a m
outras casas são dispostas em círculo ou semicírculo. nascido somente de mãe, sem
intervenção paterna. Segundo
Ainda segundo Hélène Castres3, o opy é “uma construção a teoria de concepção
mais comprida, retangular, sempre orientada de leste para patrilinear tupi-guarani, o
oeste: a porta está a oeste, uma janelinha dá para o sol homem é quem definia a
nascente. O mobiliário é muito simples: dois bancos ao linhagem e o parentesco.
Sendo assim, os Caraís não
longo das paredes sem janela ou porta, a rede do xamã pertenciam à linhagem
disposta num certo ângulo, flechas apoiadas contra as alguma, considerados como
paredes; às vezes, três bastões (utilizados nas danças) homens-deuses. Este estatuto
cravados no chão e enfeitados com um buquê de penas. marginal permitia que, ao
É nessa casa que se cumprem todas as atividades contrário da gente comum,
eles pudessem transitar
religiosas: danças, cantos, relatos e comentários das
livremente entre aldeias e
tradições sagradas (...) É ali que, ao alvorecer, são territórios inimigos. Viviam
proferidas as ñe ‘ë porä, as palavras formosas, diante do afastados, diferindo assim dos
sol nascente”. xamãs que tinham atribuições
referenciadas a determinado
grupo ou aldeia. Os caraÍs
O Ensinamento Sagrado Guarani possuíam uma vida errante,
circulando constantemente
Também podemos ler no livro “Tupã Tenondé”4: ‘Ñande Ru
e n t re a s t r i b o s . N ã o s e
Tenondé’ é uma expressão que significa ‘Nosso Pai misturavam com os comuns
Primeiro’, é um dos vários nomes que se atribuem à nem participavam dos
Suprema Consciência, cujo corpo é o espaço trabalhos coletivos e
imanifestado e cuja essência manifestada é o ritmo, o recusavam alimentos que lhes
eram oferecidos. Acreditavam
Espírito-Música, ou Grande Som Primeiro, (...) também
os índios que estes homens-
chamado Tupã Tenondé. (...) Tupã Tenondé apresenta-se deuses tinham poderes de
como colibri, a grande expressão do sagrado para o povo transformar aos outros e a si
Guarani, pois é uma das suas primeiras formas de mesmos (...). Ao que tudo
manifestação – o que vê a totalidade a partir dos mundos indica, os Caraís viviam como
ascetas, jejuando ou
sutis do espírito. (...) O colibri traz em seu enredo o
a l i m e n t a n d o - s e
significado de ser a própria essência divina primeva, e, de exclusivamente de vegetais”.
acordo com o pensamento Guarani, cada ser humano tem (LECVOVITZ, 1998)

3 CASTRES, HÉLÈNE. A Terra sem Mal: O Profetismo Tupi-Guarani. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.

4JECUPÉ, KAKÁ WERÁ. Tupã Tenondé: A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral
Guarani - São Paulo: Peirópolis, 2001.

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sua alma-colibri que habita na morada do coração, território


de Tupã. Quando a alma-colibri eleva-se ao apyte, a flor
sagrada que reside um palmo acima da cabeça humana (...)
Alma-Colibri inspira e transmite sabedoria profunda”.

‘Ñe ‘ë’, significa palavra ou voz, mas também ‘alma’, o que dá


o ânimo, mas é ao mesmo tempo o que é divino e imortal no
homem. A palavra, a alma, é justamente o que mantém o
homem em pé, ereto, distinguindo-o dos animais, como
expresso na ideia de que a palavra circula no esqueleto
humano.

É somente quando a criança consegue ficar em pé e andar


que lhe é atribuído um nome. A morte é a perda da palavra; a
alma, o princípio vital, é “e”, o “falar”. Essa alma-palavra é
também o que faz o homem participar da divindade, e por
isso, segundo as palavras formosas, é dito a cada uma que
vai encarnar-se numa criança5:

“Irás bem, filhinho do Grande Espírito,


considera com fortaleza a morada terrena
e, mesmo que todas as coisas, em sua
diversidade,
apresentem-se por vezes horrorosas,
deves enfrentá-los com coragem.
(...) Irás a terra.
Recordarás de mim em teu coração.
Assim eu farei que circule minha Palavra
por haveres acordado a mim.
Assim eu farei que pronunciem
palavras aos inumeráveis
e excelsos filhos que abarco.
O colibri traz em seu enredo o
significado de ser a própria Falar será vosso valor, calar será o mais alto.
essência divina primeva e, de (...) Por isso tu, enquanto habitares a terra,
acordo com o pensamento de minha morada formosa haverás de
guarani, cada ser humano tem recordar-te.
sua alma-colibri que habita na Eu inspiro palavras formosas em teu coração,
morada do coração, território de de modo que não podes igualar-te
Tupã. Quando a alma-colibri às imperfeições da morada terrena.”
eleva-se ao apyte, a flor sagrada
que reside um palmo acima da
caberça humana – espaço de É a “reminiscência da estada entre os deuses”6 que é mantida
Jakaira Ru Ete – inspira e através da palavra sagrada, pois ela tem o poder de recuperar
transmite sabedoria profunda. essa comunicação privilegiada com o mundo divino,
(JECUPÉ, 2001) animando o homem e conduzindo-o à saudade dos deuses.

5 CADOGAN, LÉON. Antología de literatura guaraní. México: Editorial Joaquín Mortiz, 1965.

6 CASTRES, HÉLÈNE. A Terra sem Mal: O Profetismo Tupi-Guarani. São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.

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As palavras formosas, portanto, mantém a recordação do mundo


divino, lembrando ao homem de que ele vive sob o olhar dos "As primeiras
seres divinos e que não devem esquecer seus preceitos. É palavras formosas
através delas que os homens se lembram que estão destinados à
dos nossos irmãos
Terra eterna, a Terra sem Males, e à imortalidade.
guaranis falam à
A busca da Terra sem Males é, portanto, a busca fundamental. alma brasileira como
Mas, para o guarani, não há ruptura entre a existência finita na
uma luz que emerge
‘yyy mba’emegua’ (a terra má), imperfeita e condenada à
destruição, e a ‘yyy mara ey’ (a Terra sem Males). Para se atingir
das sombras.
a Terra sem Males sem passar pela prova da morte, para Podem nos mostrar
alcançar o kandire, a imortalidade, é necessário atingir o aguyje: um caminho de
a perfeição, a completude. É possível ser homem e contudo retorno aos
tornar-se deus, ser mortal e imortal, concepção que une os fundamentos dos
extremos numa unidade.
quais tanto carece
Mas como superar esses aparentes paradoxos? Como atingir a nosso povo no
completude e a Terra sem Males? Isso é possível através de um mundo atual".
processo quíntuplo:
(BOECHAT, 2014)
Mbaraete:força espiritual, nascida de uma compreensão clara da
absoluta limitação e da natureza ilusória do eu
comum (autoconhecimento), que por sua vez é
consequência direta do amadurecimento através
das experiências na vida.

Py’aguachu (Py’a = peito, coração; guachu: grande):


o anseio pela vida espiritual, o fogo da busca, que
pouco a pouco purifica o coração.

Mburu: perseverança obstinada; uma vontade


totalmente dirigida à meta espiritual, disposta a se
render completamente ao objetivo supremo. Na
linguagem cristã, a rendição à vontade divina
(Senhor, que se faça a Tua vontade).

Mborarayu: reciprocidade, uma atitude renovada,


“se abster de fazer múltiplas coisas”, dedicando-se
ao essencial; também traduzindo-se como amor,
solicitude e amizade, pois exterioriza-se em atos de
auto-doação, em amor ao próximo.

Como consequência, se manifesta o Aguyje: o


estado de completude, de união com o divino em si.
Em outras palavras, o ensinamento guarani nos
instrui que o colibri divino habita o coração de todo
ser humano, mas na maioria dos homens como ovo,
não-nascido. É necessário, portanto, em primeiro lugar, que o ovo se abra e a alma-colibri
nasça (ou, na linguagem Rosacruz, que a rosa se abra).

A partir daí, o ser humano será conduzido às questões fundamentais: quem eu sou? De onde
vim? Para onde vou? Uma nova alma nasce, a alma-colibri ou alma-palavra, transmitindo a

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saudade dos deuses e levando à busca espiritual. À medida que se


abre espaço para essa voz da alma, à medida que se comece a
compreender a sabedoria do coração e se deixe conduzir por ela, o
colibri cresce, se desenvolve, se eleva do coração à cabeça.

A falsa consciência-eu pouco a pouco cede espaço à consciência


divina, ao colibri, à rosa. O homem passa gradativamente a viver uma
nova vida, mesmo sem passar pela morte do corpo físico: a vida
imortal da nova alma, da Terra sem Males. Ele é homem, mas,
segundo sua essência divina, é também Deus, ele caminha com os
deuses, o divino habita seu coração, sua cabeça, todo o seu ser. Esse
homem “está no mundo, mas já não é do mundo.”

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