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2 O TRABALHO E O EXERCÍCIO DO MÉTIER ARTÍSTICO: ELEMENTOS

PARA SE PENSAR A MÚSICA COMO PROFISSÃO

2.3 MAGOS, SACERDOTES E PROFETAS: SOBRE A ORIGEM (RELIGIOSA)


DAS PROFISSÕES
Para Weber ([19--?] apud DUBAR; TRIPIER, 1998) a ideia de profissão
relaciona-se de modo estreito com a prática religiosa dos magos, sacerdotes e
profetas. Para esse sociólogo alemão o domínio da atividade religiosa é o seio
da existência comunitária, cuja principal função é regular as relações existentes
entre os homens e as divindades, mediadas por um corpo de especialistas
encarregados da gestão dos bens de salvação. É na religião de Yahvéh que
Weber mais enfaticamente observa o essa evolução ético-racional. A religião,
nesse contexto, se encerra num processo de racionalização, com normas,
sendo constituída por pessoas (sacerdotes) especialmente preparadas para o
exercício de funções específicas. A igreja, enquanto empresa de bens de
salvação, é considerada como espaço onde é assegurada a produção, a
reprodução e conservação bem como a difusão desses bens simbólicos. E não
é só, a igreja apresenta inúmeras características de uma burocracia
(delimitação explícita das áreas de competência e hierarquização
regulamentada das funções, com a racionalização correlata das remunerações,
das ‘nomeações’, das ‘promoções’ e das ‘carreiras’, codificação das regras que
regem a atividade profissional e a vida extraprofissional, racionalização dos
instrumentos de trabalho, como o dogma e liturgia, e da formação profissional,
etc.) e opõe- se objetivamente à seita assim como organização ordinária (banal
e banalizante) opõe-se à ação extraordinária de contestação da ordem
ordinária (BOURDIEU, 1974, p. 60).
No âmbito dessa discussão, mais precisamente no que concerne na
racionalização das práticas e crenças religiosas, destacam-se três tipos sociais;
o mago, o profeta e o sacerdote, em certo sentido, detentores do monopólio
da gestão do sagrado.
A importância do mago, nesse contexto, mostra-se fundamental, pois
ele é possuidor de carisma, dom extraordinário, que o capacita a incorporar
outras potestades, autoridade que o profano não possui. Nos termos colocados
por Weber (1994, p. 280): Não parece demonstrável que determinadas
condições econômicas gerais sejam o pressuposto do desenvolvimento da
crença nos espíritos. O que mais a fomenta, bem como toda abstração nesta
área, é o fato de que os carismas ‘mágicos’ inerentes a s seres humanos
limitam-se a pessoas especialmente qualificadas, construindo assim a base da
mais antiga de todas as ‘profissões’ – a do mago profissional. O mago é uma
pessoa carismaticamente qualificada de modo permanente, em oposição a
pessoa comum, o ‘leigo’, no sentido mágico do conceito.

Weber (1994, p. 158, 159) entende por carisma: uma qualidade pessoal
considerada extracotidiana (na origem, magicamente condicionada, no caso
tanto dos profetas quanto dos sábios curandeiros ou jurídicos, chefes de
caçadores e heróis de guerra) e em virtude da qual se a atribuem a uma
pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos,
extracotidianos específicos ou então se a toma como enviada por Deus, como
exemplar e, portanto, como ‘líder’ [sic].

O carisma é uma espécie de dom, que só é passível de ser despertado


e experimentado e nunca aprendido. O mago deve possuir confirmação
carismática, para obter o reconhecimento dos leigos. O mago é uma figura
respeitada na comunidade por encarnar diversas formas a ser cultuada, cada
uma, de acordo com a sua esfera de influência na vida. Essas potências
passam a ser veneradas por grupos domésticos distintos, o que se traduz em
crenças e práticas religiosas diversas, logo em tensões hegemônicas, uma vez
que passam a representar grupos comunitários diversos. Nesse sentido, a
sujeição de grupos políticos a um deus local ganha a dimensão universal. Foi
assim com Yahvéh o deus único, o deus dos escolhidos. Guerrear contra um
grupo nesses termos significaria guerrear contra outro deus. Nessa guerra
entre grupos, logo entre deuses, define-se a ideia de bem e mal (deuses e
demônios) onde, os deuses, causa de culto e sacrifícios, inclinam-se a superar
os demônios, encantados pela magia, dos magos. O mago, espécie de micro-
empresário independente que atua em tempo parcial, é um prestador de
serviços, solicitado por particulares em troca de uma remuneração, “sem que
para isso tenha sido especialmente preparado, além de não contar com
qualquer calção institucional (e operando quase sempre de maneira
clandestina)” (BOURDIEU, 1974, p. 68-69). O mago, como coloca Weber
(1994, p. 303) “é freqüentemente pregador de divinização; às vezes somente
isto”. O mago atua amparado por seu carisma (dom) pessoal, tal qual o
profeta, só que este atua em favor dos deuses (não dos demônios) anunciando
uma doutrina religiosa ou preceitos divinos.
O profeta, ao contrário do mago, presta seus serviços gratuitamente,
não lhe é permitido fazer de sua missão um ofício. O profeta é o portador da
(única) voz divina. O Senhor Yahvéh é quem anuncia (e sentencia) que “o
profeta que tiver a presunção de falar alguma palavra em seu nome, que este
não lhe tenha mandado falar, ou o que falar em nome de outros deuses, esse
profeta morrerá” (PEIXOTO, [19--?i], cap. 18, vers. 20, p. 159). Yahvéh como
deus único, descrendencia não só outros deuses, como também,
encantadores, feiticeiros e adivianhadores, tipos sociais situados a margem da
empresa de salvação:

Quando entrares na terra que o SENHOR teu Deus te der, não aprenderás a
fazer conforme as abominações daquelas nações / Entre ti não se achará
quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem
prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; / Nem encantador, nem quem
consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os
mortos; / Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR; e por
estas abominações o SENHOR teu Deus os lança fora de diante de ti / Perfeito
serás, como o SENHOR teu Deus / Porque estas nações, que hás de possuir,
ouvem os prognosticadores e os adivinhadores; porém a ti o SENHOR teu
Deus não permitiu tal coisa / O SENHOR teu Deus te levantará um profeta do
meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis [...] (PEIXOTO, [19--?h],
cap. 18, vers. 9-15, p. 159).
Desde os tempos do Antigo Testamento e mesmo nos tempos
apostólicos do cristianismo, era exigido ao profeta que exibisse prova da posse
dos seus dons. O profeta é um emissário de Deus, logo, é responsável por
externar a satisfação ou insatisfação divina para com os homens. Foi assim
com o profeta Natã, porta voz de Deus, usado para dar consciência moral ao
Rei Davi da injustiça que havia cometido no seu reino. Davi havia deitado com
uma mulher casada e enviado seu marido pra guerra, colocando-o na linha de
frente da batalha, para que logo fosse ferido e morresse, e assim aconteceu. O
profeta repreende Davi, e em nome de Deus, imputa-lhe uma pena (PEIXOTO,
[19--?j], cap. 11, vers. 12, p. 251).
Já outro tipo social citado por Weber, o sacerdote, atua em virtude da
legitimação do seu cargo. A natureza de sua missão funda-se numa doutrina
ou mandamento, não na magia. Trata-se de um funcionário membro de um
empreendimento de bens religiosos Por que funcionário? Por que. O termo
‘funcionário’ significa, para Weber, que a característica essencial de um
clérigo é a ‘especialização de uma empresa cultural regularmente exercida
por um círculo de pessoas em relação com determinados grupos sociais’.
Esta definição não diferencia somente o sacerdote do mágico. Para melhor
compreender toda a inclinação, faz-se necessário intervir uma terceira figura
essencial: o profeta, ‘portador de revelações metafísicas ou ético-religiosas’,
figura contestatória da ordem clerical. Sem esquecer aqueles que participam
dos cultos sem serem sacerdote e que os profetas procuram influenciar só no
plano ético, os leigos (WEBER, 1971 apud DUBAR, 1998, p. 431)
A legitimação da prática do mago ou feiticeiro dava-se pelo carisma, já
a do sacerdote ganha uma sistematização. Na intenção de extinguir a
influência dos mágicos, o sacerdote deve atender às expectativas dos leigos,
para isso deve ser além de pregador, profeta, um diretor de consciências
exercendo uma educação carismática de maneira a revelar a mensagem
religiosa mediante princípios éticos e culturais, mantendo o monopólio sobre os
acessos legitimados à salvação.
O sacerdote para suplantar os mágicos, precisa atender as
necessidades concretas de sua comunidade, de suas ovelhas, e orientar seus
passos, diante das necessidades práticas de suas vidas. Mas é a vocação
pessoal que diferencia o profeta do sacerdote. Como já colocado, o profeta
tem sua autoridade respaldada no carisma, já a autoridade do sacerdote se
legitima perante os fiéis, em virtude dele, o sacerdote, estar a serviço de uma
sagrada tradição. Weber considera, no entanto, que se apresentam
dificuldades no âmbito do saber sociológico, tal qual ocorre com outros
fenômenos, ao se tentar estabelecer limites conceituais entre os termos; mago
e sacerdote. Os sacerdotes são funcionários, detentores de um saber
específico, possuem uma doutrina já estabelecida, bem como uma
“qualificação profissional”. Os magos possuem carisma, dons que se
converterão em prodígios, ou no caso do profeta, revelações. Mas o sacerdote
nem sempre pode ser definido por ser detentor de um alto grau de saber, uma
vez que, até mesmo em grande parte das religiões, entre elas o cristianismo,
mostram-se presente em seus cultos, aspectos carismáticos. Weber mesmo
coloca que o padre “era um mago que operava o milagre da transubstanciação
e em cujas mãos estava depositado o poder das chaves” (WEBER, 2004, p.
106) e a quem se recorria para expiação dos pecados.
A diferença, entretanto, deve ser buscada a partir de seus respectivos
campo de saberes; o empirismo-técnico do mago versus a disciplina racional
do sacerdote (WEBER, 1996). O mago e o profeta são portadores de um
saber prático, embora sistemático, empírico. O sacerdote pertence a uma
instituição (igreja), reprodutora de bens simbólicos, mediante o que Bourdieu
chama de “uma ação pedagógica expressa” (BOURDIEU, 1974, p. 40). O
sacerdote domina um conjunto de normas e conhecimentos organizados e
sistematizados por especialistas pertencentes ao corpo institucional. Em última
palavra, é assim, que Weber define o que se pode chamar de primeiras
estruturas profissionais, pautadas primeiramente na legitimidade carismática e
na racionalização das crenças e das práticas religiosas.

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