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1a edição, Novembro
de 2020.
E-mail: italo@italomarsili.com.br
Marsili, Italo.
O chapéu do Mago / Italo Marsili - Maringá, PR: Real Life Books, 2020.
288 p.
ISBN: 978-65-87926-19-3
1. Psicologia - 150
Direção Geral
Arno Alcântara
Editor
Luíza Monteiro de Castro Dutra Araujo
Revisão
Raíssa Prioste
Matheus Bazzo
Capa
Vicente Pessôa
Diagramação:
Gabriela Haeitmann
SUMÁRIO
Introdução ............................................................. 6
O mago .....................................................................24
A papisa .....................................................................92
Posfácio ..................................................................285
INTRODUÇÃO
Mas não só. Ao longo deste livro, farei constantes remissões às tradições
hermética, simbólica e filosófica, de modo a sempre acrescentar referências
que, infelizmente, são desconhecidas pelos homens de nosso tempo.
da Psicologia
Esta seria uma abordagem sem dúvida muito interessante, já que todos os
elementos históricos são bastante envolventes. Quando uma história é bem
contada, os ouvintes ou leitores conseguem entrar no cenário, examinar seus
detalhes e deixar-se encantar pela vida dos homens, por seus feitos e
pensamentos.
Eu poderia, ainda, fazer uma abordagem técnica. De fato, ao longo deste
livro, falarei de técnica várias vezes.
Se vou seguir pela via simbólica, será necessária uma matriz simbólica, e são
inúmeros os edifícios simbólicos aos quais é possível recorrer. Eu poderia
fazer uma Psicologia a partir das Sete Moradas de Santa Teresa D’Ávila (e
não seria difícil); ou a partir das centúrias de Máximo, O Confessor; ou a
partir dos trinta degraus de São João Clímaco; ou ainda a partir da separação
prismática das cores do arco-íris. Se eu usasse, todavia, um dos exemplos
citados, a coisa ficaria muito desconectada da compreensão dos homens de
hoje.
INTRODUÇÃO
Por isso, o fio condutor simbólico que escolhi para este livro é o Tarô.
Sim, o Tarô.
E você deve estar se perguntando por que, dispondo de tantas outras opções,
eu escolhi justamente o Tarô.
E por aí vai.
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Pagar boletos e pegar os filhos no colégio são coisas das quais não nos
esquecemos habitualmente. Elas ficam registradas num lugar muito
periférico do nosso eu; sempre pedem para retornar e, como estamos
constantemente voltando a lhes dar atenção, jamais nos esquecemos delas.
Por outro lado, esquecemo-nos do fundamental, como, por exemplo, de fazer
as perguntas bá-
sicas que vão nos orientar neste mundo: “De onde vim? ”, “Para onde vou?
”, “O que se espera de mim? ”, “Quem sou eu? ”, “De que sou feito? ”.
Dessas coisas a gente se esquece a todo instante.
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INTRODUÇÃO
Ele tinha esse olhar simbólico. Também, pudera: é dali que vem boa parte de
seu edifício teórico, conceitual, prático e técnico.
Muita gente também desconhece que Freud estava imerso em uma literatura
de satanismo judaico; ele bebia da tradi-
ção mística judaica. No fantástico livro “Sigmund Freud and the Jewish
Mystical Tradition” (“Freud e a Tradição Mística Judaica”), ainda sem
tradução para o português, David Bakan apresenta a conversa de Freud com
a literatura espiritual satânica e angélica dos judeus.
Freud estava imerso nessa tradição e, se não voltarmos nosso olhar para isso
também, jamais entenderemos a Psicologia Contemporânea.
Em nosso tempo, quando se fala em Tarô, a primeira coisa que vem à cabeça
das pessoas é aquela ferramenta prática que as cartomantes utilizam para
fazer previsões, como um oráculo divinatório. Vê-se o tarólogo ou a
cartomante como alguém que se procura para ler o futuro; como se a sorte de
cada um estivesse disposta naquelas cartas e como se, a partir de uma
consulta, você pudesse entender o que vai lhe acontecer.
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Contudo, eu lhe pergunto: você sabe realmente o que é o Tarô? Você alguma
vez viu ou fez um curso sério sobre o Tarô?
Você sabe qual é a explicação real das lâminas do Tarô? Aposto que não.
O Tarô é um jogo. E, embora haja quem se utilize dele para adivinhar coisas
(assim como fazem com borra do café ou bú-
Portanto, quando uma pessoa usa o Tarô para adivinhar coisas, o problema
está nela, que está buscando uma resposta fechada para um problema real.
Ela está aceitando ser governada pela pretensa resposta oferecida por um
punhado de cartas. A mulher que pergunta à cartomante, por exemplo, se
encontrará um namorado esperando que as cartas respondam, está, afinal,
deixando-se submeter por um poder tirânico. A prescrição
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INTRODUÇÃO
petulância com que você fala sobre Tarô e Astrologia, levante-se contra os
tiranos do seu interior; depois, contra os tiranos po-líticos e sociais — jamais
apoie, por exemplo, regimes tirânicos, como os comunistas.
De todo modo, neste livro, eu não vou lhe ensinar a jogar Tarô. Nem mesmo
falarei sobre a disposição das lâminas na mesa divinatória, mas apenas sobre
os símbolos inscritos nas lâminas do Tarô. É isso o que nos interessa aqui.
Símbolo e Alegoria
Se você olha para uma lâmina de Tarô, dela deduz um monte de coisas e nela
projeta sua visão de mundo, saiba que isso é impróprio: é o que se faz com
alegorias, não com símbolos.
Vou dar um exemplo de alegoria: eu, Italo Marsili, ser humano, dotado de
uma certa capacidade intelectual e de uma certa observação, posso, a partir
dessa minha observação e dessa minha capacidade intelectual, projetar numa
tela em branco
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Só entra no coração aquilo que passa pelos olhos, mas o olhar do homem
tosco, do homem vulgar (que, em regra, é o nosso...) é um olhar pobre. Por
outro lado, o olhar dos grandes artistas, dos grandes filósofos, dos grandes
místicos, dos grandes práticos, é um olhar já polido — e é disso que
trataremos ao falar da Papisa, a segunda lâmina do Tarô.
A arte como um todo é, via de regra, alegórica, mas não pense que a alegoria
é ruim! Ela é algo de maravilhoso, mas você precisa ter consciência de que
ela comunica apenas uma fração da realidade, uma fração capturada pela
inteligência de um homem concreto. O artista registra uma fração daquilo
que ele percebeu.
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INTRODUÇÃO
nifestações artísticas.
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A maioria das pessoas que passa por esse monumento funerário, no entanto,
não se dá conta desses detalhes. Em grande parte, isso se dá porque elas
passam por ali apressadas, desatentas e agitadas — e compreender uma
alegoria exige atenção, reflexão e, muitas vezes, uma explicação. Por uma
razão semelhante, entender uma tragédia de Shakespeare, como “Hamlet”
Jorge Luis Borges, escritor argentino, disse que, para entender um livro, é
preciso ter lido muitos outros. Para você ler e entender um livro, é preciso
que várias pessoas tenham lhe dado explicações sobre o conteúdo dele; caso
contrário, você não o entenderá. Esse é um princípio da alegoria; ela precisa
ser explicada por alguém.
Podemos dizer, com certa segurança, que o Tarô é simbóli-co; mas é dotado
de um simbolismo diferente do Simbolismo Astrológico, que é uma sorte de
simbolismo natural.
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INTRODUÇÃO
Simbolismo natural
e realidades simbólicas simples
Apenas uma pessoa muito tosca pode achar que o mar está ali só para que
ela se refresque, pegue umas ondas, pratique o surfe. O mar tem esse
componente material também, mas não somente. Ele de fato tem uma
presença aquosa, salgada e fluida. Você entra, se molha, se diverte, pode até
se afogar e morrer... Mas o mar é mais do que isso: ele é a presença de uma
outra coisa, de uma fluidez, de um ir e vir infinito, como na música do Lulu
Santos. Quando ele fala daquele “indo e vindo infinito” das ondas, está
captando a presença simbólica do mar, pois foi capaz de entender que o mar
é, além de sua presença material, símbolo de algo.
Muita gente se alimenta com peixes pescados de um rio; muita gente com
calor se banha em um rio; muita gente lava suas roupas nas águas de um rio;
enfim, muita gente olha para um rio e vê ali somente a fonte do alimento, o
alívio para o calor, a solução para as roupas sujas. Para Heráclito, entretanto,
o rio é também a presença simbólica de uma fluidez que permanece — e é
verdade, porque se você puser sua mão em um rio, depois retirá-la e a
colocar novamente, ela já não será banhada pela mesma água; já não será,
sob certo aspecto, o mesmo rio, ainda que, sob outro aspecto, se trate do
mesmo rio que você tinha diante dos olhos.
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estejam em constante mudança. Alguma coisa permanece; alguma coisa
muda. Há um princípio de mutação e consistência no calmo observar das
águas. Nesse exercício, você começa a apreender a presença simbólica
daquele ente e deixa de se confundir tanto. Isso é o simbolismo natural.
A lua, por exemplo, é um ente que ilumina as noites há muito tempo; mas
ela não é apenas aquele brilho no céu. É mais do que isso: é presença de uma
certa inconstância que orienta.
Se você for um pouco mais sensível e se puser a observar a lua com calma,
verá que ela lhe abrirá os olhos para uma realidade que está além daquele
círculo branco enfeitando as noites, verá a tal “inconstância que orienta”.
Isso é o símbolo; é uma presença — não uma projeção — de algo que lhe
penetra, abrindo-lhe horizontes de consciência. Essa é a função do símbolo.
Por definição, tudo o que é é simbólico; tudo o que existe é simbólico. E, por
isso mesmo, perder a visão simbólica do mundo é uma das grandes tragédias
do nosso tempo.
Não nos confundamos: quando olhamos nos olhos de outro ser humano,
quando conversamos com alguém, não é apenas o Fulano ou o Beltrano que
temos diante de nós; eles de fato estão diante de nós, mas também são
presença de uma outra coisa, apontam para uma outra coisa. Não perceber
isso é já ter perdido a visão simbólica.
INTRODUÇÃO
Todos as povos olharam para cima e viram os astros, ao passo que nem todos
viram coelhos ou leões. Alguns deles nem sequer viram oceanos e jamais
souberam de sua existência. Se uma dessas pessoas tivesse a oportunidade de
ver o mar, ela provavelmente pensaria tratar-se de um rio que se mexe com
mais intensidade e não tem margens (já que, em regra, todas as civilizações
se desenvolvem em torno de cursos d’água, mas não necessariamente de
oceanos). Essa pessoa olharia, num primeiro momento, somente o aspecto
material do mar, porque não estava inserida em uma cultura que tenha
olhado para o mar e percebido sua finalidade.
Com o céu, porém, não é bem assim. Tente imaginar uma civilização que
não tenha visto a terra e o céu. Não há! É por isso que a simbólica terrestre
dos quatro elementos, de que trato no meu livro “Os 4 Temperamentos na
Educação dos Filhos”, foi desenvolvida em todas as civilizações. A
Ayurveda indiana, por exemplo, conecta-se muito com os quatro elementos,
porque mesmo uma civilização de base completamente distinta da nossa,
como a hindu, tem as mesmas referências simbólicas da terra. Ela está
falando de Terra, Ar, Água e Fogo mais ou menos do mesmo modo, porque
estamos olhando para as mesmíssimas realidades.
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feroz e uma mansa. Até mesmo um coelho é, nesse sentido, mais complexo
do que um planeta — ele é passível de muitas mudanças. Há coelhos gordos
e magros, rápidos e lentos... Os animais têm uma consistência mutável, e por
isso mesmo é mais difícil, para a inteligência, captar a simbólica desses entes
mutáveis — “entes mutáveis” são esses que estão presentes, mas mudam e
são desconhecidos por uma parte das civilizações.
Por outro lado, ao olhar para a lua, você pode projetar o que quiser, mas,
antes da sua projeção, ela tem uma estabilidade pró-
pria. A Lua está rodando daquele mesmo jeito em torno da Terra desde que o
mundo é mundo. A primeira civilização da história viu a lua do mesmo
modo com que nós a vemos hoje; e viu as estrelas brilhando no céu mais ou
menos do mesmo modo — embora decerto haja projeções diferentes dessas
mesmas realidades, que se devem predominantemente a diferenças culturais.
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INTRODUÇÃO
complexas e invisíveis
Não é verdade que tudo o que vemos teve um início? Tudo o que faço teve
um início: minha vida, minha empresa, este livro.
Tudo o que vivemos tem início. E o início é uma presença, assim como a
dificuldade. O início e a dificuldade têm presença; existem, portanto. Ora,
será que o modo de existir do início e o modo de existir da dificuldade são
iguais ao modo de existir da lua ou do coelho? Não.
Todas as civilizações a viram. O coelho tem uma presença mais difícil, mas
também estável. Ele está lá, um coelho é um coelho.
E quanto ao início? Como extrair simbolismo dessa realidade chamada
“início”? Como extrair simbolismo da realidade chamada “dificuldade”?
Como extrair simbolismo de realidades como intensidade, energia,
generosidade?
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Nem todas as civilizações viram coelhos, ou mesmo o mar, mas todas elas
viram inícios, viram dificuldades, viram atos de generosidade, atos de
traição, atos de recomeço. Não é verdade?
Mas não seja néscio de pensar que aquelas cartinhas que você comprou na
banca de jornal contêm a realidade em si. Essas lâminas apenas nos
recordam que o real tem presença, e que essas realidades que você chama de
“subjetivas” e de “abstratas” não são, na verdade, tão subjetivas e abstratas
assim. O início não é subjetivo e abstrato, ele tem presença, e uma presença
real — mas como falar dessa presença real que não se vê, diferentemente de
um coelho ou da lua, por exemplo? O Tarô faz justamente isso, por meio da
cristalização de símbolos complexos e “invisíveis”.
Ainda sobre o Tarô...
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INTRODUÇÃO
Além disso, é importante saber que não existe apenas um baralho de Tarô.
Existem, porém, alguns baralhos tradicionais, como o que usaremos para a
nossa explicação. Trata-se de um baralho bastante consolidado, utilizado
pela maior parte das pessoas de estudos e mesmo pelos cartomantes. Ele se
chama Tarô de Marselha, e é muito completo. Ali estão quase todos os
elementos simbólicos que foram usados pela tradição do Tarô.
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Desenhe uma cruz, com seus dois eixos: um horizontal e um vertical. Feche
as extremidades da cruz, ligando a esquerda à de cima e a de baixo à direita.
O que resulta daí? A lemniscata, símbolo do infinito. A lemniscata não é,
portanto, um oito deitado, mas uma cruz cujas extremidades se fecham,
dando-nos a noção da totalidade do real, de todas as possibilidades do ser.
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O MAGO
O princípio do tamanho
do mundo
rio, para orientar um filho, para fazer um projeto com o cônjuge, para traçar
as estratégias de uma empresa, para tudo isso é preciso ter uma idéia do
“tamanho” do mundo.
Alguém que jamais tenha refletido sobre isso poderá apressar-se em dizer
que o mundo se limita a este lugar material onde estamos, àquilo que vemos.
Mas será mesmo assim? Ou será que existe um princípio filosófico
indestrutível, que não se pode negar, chamado infinitude? Qual é o tamanho
do mundo? Ele é limitado ou é ilimitado? É finito ou é infinito? Responder a
essas perguntas é fundamental para um bom exercício da Psicologia e para
descobrirmos quem é o homem, qual é o tamanho do homem e qual é o
tamanho do mundo no qual ele está inserido.
Qual é o seu tamanho e qual é o tamanho do seu projeto?
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O limite do meu corpo, por exemplo, não é mais o corpo, é onde ele acaba e
começa uma outra coisa. E, se começa uma outra coisa, isso quer dizer que
obviamente existe uma outra coisa além do meu corpo.
Não sei se você se lembra, mas a série dos números inteiros não termina, é
infinita. Z = {...-3, -2, -1, 0, +1, +2, +3...}. Um, dois, três, quatro, cinco, seis,
sete, oito, nove, dez, mil, dois mil, vinte mil, um trilhão, um quintilhão...
Pense no maior número possível: sempre dá para acrescentar mais um.
Um vislumbre da eternidade:
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O MAGO
Quero que você pense no que está fazendo concretamente neste exato
momento. Agora você está lendo este texto, certo?
Não há como discordar disso. Daqui a pouco você deixará de ler e irá tomar
um copo d’água, dormir, fumar, trabalhar, encontrar um amigo ou fazer
alguma outra coisa. Mas é inegável que, agora, você está lendo.
Amanhã, ao se lembrar do que fez hoje, você se verá obrigado a admitir que,
de fato, passou alguns minutos lendo este texto. “É, eu fiz isso mesmo. Eu li.
Isso realmente aconteceu. ”
Ele aconteceu. Onde está isso que aconteceu? Essa é uma pergunta que você
é obrigado a se fazer caso queira levar a vida a sério, porque o que aconteceu
não “desacontece”.
Você, por exemplo, pode não se lembrar do que comeu ontem no almoço,
mas a falha em sua memória não apaga o ato de ter comido algo, que está
registrado em um lugar maior do que a sua própria memória. Em outra
ocasião, aborda-rei a questão da lembrança como ação do ego, mas agora
interessa-nos o conceito de infinito.
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Uma folhinha que balance lá fora terá balançado para sempre; ela não
“desbalançará”, por assim dizer. Um cachorro que late não “deslate”. Um
abraço dado não pode ser “desdado”, ainda que você se arrependa de tê-lo
dado. Você abraçou al-guém, isso aconteceu. Existe uma consistência do
mundo que está além daquilo que vemos, e há também uma série infinita de
coisas, como o revela a série de números inteiros.
Ato e potência
Tudo o que eu fiz é; tudo o que pensei também é — espero que ninguém
mais duvide disso. Mas e aquilo que não fiz e em que não pensei? Por
incrível que pareça, isso também faz parte da estrutura do mundo. Se agora
estou dando uma aula, não estou jantando com meu amigo, embora pudesse
estar jantando com ele.
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O MAGO
A estrutura da realidade, portanto, tem de ser entendida tanto por aquilo que
pode ser, que está presente em potência,
Mas será que as coisas têm possibilidades infinitas? Quando uma coisa não é
algo em ato, será que ela sempre poderá adquirir aquelas formas que
atualmente não tem? Será que a água de um rio poderá um dia ser
transformada em cadeira? Um boi é uma girafa em potência? Eu tenho a
possibilidade de me tornar uma árvore?
A água jamais poderá assumir a forma de uma cadeira, um boi não tem em si
a possibilidade de tornar-se girafa e eu nunca poderei ser uma árvore. Não
podemos pensar que uma coisa é “potencialmente” qualquer coisa. Há
potencialidades enrai-zadas na natureza das coisas tal como existem, e essas
potencialidades são limitadas.
Aristóteles dizia que cada semente tem dentro de si uma potência que a
destina a chegar a uma determinada forma final.
Hoje temos um jeito diferente de dizer algo muito similar no que diz respeito
aos seres vivos. Usando o linguajar da ciência moderna, podemos dizer, por
exemplo, que o código genético de uma semente de girassol programa um
crescimento diferente daquele dado pelo código genético de um grão de
feijão. Isso explica por que um girassol nunca será um pé de feijão.
Eu também não posso ser tudo o que eu quiser. Não posso ser um macaco
nem um búfalo, embora possa usar uma fantasia e fingir que sou. Também
não posso voar com minhas
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próprias forças. Posso, sim, pegar um avião, mas nesse caso o que estaria
voando seria o avião e não eu. Eu mesmo não vôo nem posso voar. Posso
criar dispositivos voadores, mas eu mesmo não posso voar. Essa não é uma
possibilidade minha.
Se tomo um charuto nas mãos, posso fumá-lo ou não o fumar. Ambas são
possibilidades do real, ambas as coisas podem acontecer. E sabemos que um
charuto pode ser queimado. Não importa, agora, saber como nós o sabemos.
Basta entender que um charuto pode ser queimado, ainda que não venha a
sê-lo.
Quando você olha para uma pessoa, você sabe que ela pode lhe dar um
abraço, ainda que não o faça. Você sabe que ela pode amá-lo, ainda que não
ame. Essas são possibilidades de um homem.
O real, portanto, é não apenas aquilo que está acontecendo agora em ato,
mas também aquilo que poderia acontecer, ou seja, que está em potência.
Se só pudéssemos nos mover com base naquilo que acontece, naquilo que
chega a ser ato, não teríamos qualquer tipo de orientação neste mundo, e as
pessoas seriam como manequins de loja, estáticos.
Mas uma pessoa real não é assim, pois encerra um conjunto enorme de
possibilidades. Enquanto estou gravando uma de minhas aulas, ao olhar para
minha irmã, que é quem faz a filmagem, sei que ela pode dizer uma série de
coisas: “Italo, essa aula está lenta. ” ou, ao contrário, “Acho que você está
falando rápido demais. ” Ela pode dizer ainda: “Essa aula está óti-ma. ”,
“Não estou entendendo nada. ”, “Ah, agora estou começando a
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O MAGO
entender. ”, “Estou ansiosa. ”, “Estou com dor de barriga. ”, “Preciso ir ao
banheiro. ”, “Estou com fome. ”, “Preferia estar em outro lugar. ”
O conjunto de virtualidades é formado por aquilo que não estou vendo, que
não está acontecendo agora, mas que poderia acontecer. As possibilidades
também estão contidas no conjunto do real. A realidade é tanto esse
elemento material, que se apresenta para nós no imperativo da presença
física, quanto aquilo que não está acontecendo, mas poderia acontecer.
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Para melhor entender
o domínio do possível
Vou dar ainda outro exemplo: eu tenho filhos. Talvez eles tenham filhos; e
talvez os filhos dos meus filhos também tenham filhos. Nada disso está
presente agora, pois esses netos e bisnetos não existem. Meu filho mais
velho tem apenas nove anos e não poderia ser pai agora ainda que o quisesse
— mas pode ser que, algum dia, ele se case e tenha filhos, ou que os tenha
mesmo sem se casar.
Pensemos, agora, nos meus bisnetos, que estão ainda mais longe da minha
percepção. É mais fácil pensar nos netos, afinal, se meu filho mais velho
tiver um filho, esse filho será meu neto.
Mas um bisneto é algo mais distante, pois o filho do meu filho ainda nem
existe. No entanto, é perfeitamente possível que eu tenha bisnetos. Não é
nenhum absurdo que eu os venha a ter, pois fui pai cedo, já aos vinte e três
anos. Logo, é perfeitamente
possível que eu viva para ver meus bisnetos. Se o Italo, meu filho mais
velho, for pai cedo, e se o filho dele também o for, verei meus bisnetos e
conversarei com eles. Hoje, porém, meu filho ainda não tem filhos e nem
sequer tem potência fisiológica para tê-los. Não obstante, posso desde já
falar dos filhos dele, e dos filhos dos filhos dele. Por quê? Porque isso é
possível.
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O MAGO
Pois bem, a realidade na qual as coisas podem vir a ser, podem ganhar o ser,
em que podem acontecer, chama-se Logos ou Verbo.
Não é à toa que a Filosofia também chama esse ente (que é a totalidade do
real) de Ser em Ato Puro, porque nele tudo é ato.
Tudo nele é. E é esse ato puro que dá o ser às coisas. É esse mesmo Ser que
se apresenta a Moisés, dizendo “Eu sou aquele que Sou”, como quem diz
“Eu sou aquele que é. Eu sou o Eu sou.
Em mim, tudo é ato; nada escapa. ” Para entendê-lo, não é preciso ter fé,
somente razão.
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Quer um exemplo concreto dessas coisas em sua vida? Eu lhe dou: o hábito
de julgar imediatamente os outros. Muitos psicólogos recebem um paciente
no consultório pela primeira vez e, ao bater os olhos nele, já o julgam. Que
loucura!
O ápice não pode ser uma construção, como uma casa, um prédio, uma
pirâmide ou uma catedral. Um prédio é apenas uma coisa. Um arquiteto, um
engenheiro, um pedreiro e um mestre de obras podem construir o edifício
mais maravilhoso do mundo, mas aquilo que construírem não passará de
uma coisa.
Um objeto sem vida não tem tanta dignidade quanto um animal, por
exemplo. Entre um cinzeiro e um cachorro, o cachorro
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O MAGO
Ele pode sentir frio, mas não pode dizer: “Estou com frio. ”
Entramos na existência quando o Ser nos deu o ser. Nós, no entanto, embora
tenhamos mais possibilidades do que as coisas e os animais, não podemos
criar a Deus; não podemos criar um Ser em Ato Puro, porque nós não somos
ato puro; muito pelo contrário, temos um monte de potências. Eu, homem
que sou, posso, no máximo, gerar outro homem. Posso oferecer uma parte de
mim a uma mulher, e ela, recebendo-a, gerará uma pessoa. Além disso,
posso construir coisas inferiores, como uma mesa, uma casa, um prédio etc.
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Pois bem, aquele que nos deu o ser também é pessoa. Ele é pessoa porque,
tendo criado pessoas, não poderia ser menos do que uma pessoa, somente
mais, pois ninguém pode dar aquilo que não tem.
A Tábua de Esmeralda, artefato antigo que se diz ter sido escrito por Hermes
Trimegisto, traz os seguintes dizeres: Quod est inferius est sicut quod est
superius, et quod est superius est sicut quod est inferius. Traduzindo: “assim
como o que está em cima é o que está embaixo; e assim como o que está
embaixo é o que está em cima.” Assim como o menor, o maior; e assim
como o maior, o menor. Esse é um princípio hermético. Assim como o Ser
em Ato Puro é pessoa, nós também o somos. Assim como somos pessoas, o
Ser em Ato Puro também o é. Mas veja: o que é menor não pode dar o que é
maior. Só o contrário é possível, pois só se pode dar aquilo que se tem.
Relacionamentos e religião
Outro dia saí para jantar com um amigo. Estávamos discutindo onde jantar,
quando ele disse: “Podemos ir ao Shopping Leblon. Lá tem um restaurante
Outback, sei que você gosta”. Como esse amigo é uma pessoa com quem
tenho muita intimidade, eu imediatamente respondi, com toda a simplicidade
de um irmão: “Cara, eu nem gosto mais de Outback. ”
Esse amigo fez uma proposta, porque acreditava que eu ainda gostava do
Outback; e eu realmente gostava, até um ano atrás. Hoje, não gosto mais.
Seres humanos são assim: instá-
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O MAGO
Viu só? É difícil agradar gente. Nós tentamos, mas nem sempre
conseguimos. E é claro que o próprio ato de dar revela uma preocupação
que, de algum modo, já basta por si só. Embora esteja de dieta, quando
alguém me dá um chocolate, eu não olho para o doce, mas para a intenção de
quem presenteia.
Nós somos instáveis, passíveis de mudança, mas o Ser em Ato Puro não tem
potência nenhuma. Ele é puro ato. Ele é, nele nada falta, e por isso ele é
absolutamente estável. Nada nele não é, ao contrário de nós, homens, que
somos instáveis porque temos um conjunto de coisas que não são: falta-nos
muita coisa.
Eu ainda não sou um herói, ainda não sou um vilão completo, ainda não sou
fortíssimo, ainda não sou obeso. Nós mudamos, porque vamos atualizando,
ou seja, vamos transformando em ato aquelas coisas que existiam apenas
como potências.
uma vez que esse Ser em Ato Puro é estável e é pessoa, ou seja, é pessoa
estável, há um conjunto também estável e previsível de coisas que fazemos
para nos relacionar com ele — porque pessoas pedem relacionamentos, elas
precisam amar.
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O MAGO
É como Goethe disse: “Você quer ter sucesso nos seus atos, nos seus
projetos? Concentre o máximo de força no ponto mínimo”, ou ainda, como
falou o nosso jurista Ives Gandra: “Quer ter sucesso em alguma coisa?
Comece cedo e faça somente aquilo.”
Noutras palavras: concentre toda a sua força em uma única coisa. Dedique-
se a outra só depois que dominar a primeira. Quando dominar a segunda,
passe para a próxima e assim por diante. Quem deseja ter força em todas as
áreas, sempre e logo, não consegue nunca ter força em nada. É um problema
de atenção.
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Cale-se!
Quando os tenistas Roger Federer e Rafael Nadal jogam tênis, não ficam
pensando no que estão fazendo; apenas fazem.
O trabalho vira jogo, e isso fica muito claro, porque eles estão mesmo
jogando, o jogo flui. Eles são atletas de alta performance, não charlatães.
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O MAGO
Acharam que eram uma espécie de Osho. Tanto eram embusteiros, que esses
sujeitos sumiram, não estão mais por aí.
“Mas vou ficar calado contemplando o quê? ” Ora, cale-se! “Mas não estou
entendendo. É para contemplar o quê? ”. Cale-se! Se não ficar quieto, nunca
irá entender.
Alguns associarão o que estou dizendo ao mantra “é preciso ficar quieto para
ouvir a voz de Deus.”, porém não é disso que estou falando. Você nem sabe
se Deus tem voz! E, supondo que Ele tenha uma, você não conseguiria
distingui-la da voz do seu próprio pensamento. O exercício que proponho é
muito simples: não reclame, fique dez minutos quieto. Não é a “voz de
Deus” que você deve procurar aí, até porque a voz de Deus já é uma
atividade.
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“Ai, Italo, mas é claro que Deus quer falar comigo”. É você quem está
dizendo... Na verdade, você nem sabe qual plano Ele tem para você. Pense
em São João da Cruz, por exemplo. Independentemente de sua religião, você
há de convir que ele foi um sujeito grandioso, excelente. Sabe quanto tempo
Deus ficou sem falar com ele? Quarenta anos. Por quarenta anos ele não
ouviu a voz de Deus. Esse período, ele o chamou de “noite escura”.
Se, por vezes, Deus deixa de falar mesmo com homens desse calibre — e
Ele tem suas razões para isso, ainda que não as compreendamos —, é claro
que essa história de que “Deus quer me ouvir” é coisa da sua cabeça. Talvez
seja algo que você está apenas repetindo, pois ouviu em uma pregaçãozinha
por aí, feita por alguém que também não sabia o que dizia.
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O MAGO
Você é, portanto, tudo aquilo que carrega, tudo aquilo que lhe aconteceu, que
percebeu, que sabe — ainda que não consiga se expressar sobre tais coisas
nem dar razões para elas.
“andar” do eu.
Esse é o seu eu substancial, e ele permanece. Isso é incrível! Não pense que
se trata de um “eu falso” e um “eu verdadeiro”. O eu narrativo e o eu
substancial são, ambos, camadas do eu. Ambos fazem realmente parte do eu.
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você discute com sua esposa, com seu marido, com seu (sua) namorado (a),
com seu filho, com seu patrão, em geral, está falando desse eu social, o eu
das expectativas. Esse eu social, de algum modo, é alienante — e é normal
que seja assim. Quando ele entra em cena, nós tiramos do horizonte de
consciência esse eu profundo, que abarca tudo.
A maior parte das coisas que lhe acontecem, acontecem não por
circunstâncias do ambiente nem porque o outro acha isso ou aquilo de você,
mas porque você é esse eu profundo. Você, na verdade, é muito mais
profundo e complexo do que seu eu social e seu eu superficial podem
aparentar.
47
O MAGO
ainda não transformaram seu trabalho em jogo, ou seja, que ainda não
adquiriram a capacidade de dar atenção às coisas mais fundamentais.
O olhar do Mago na primeira lâmina do Tarô indica tudo isso que acabei de
descrever. O Mago age a partir daquilo que é, e não a partir da expectativa
alheia ou de uma narrativa.
Ele não lança seu olhar sobre o eu social, não lhe importa o que os outros
vão dizer, não lhe importam os juízos alheios (observe que ele não está
olhando para ninguém). Ele tampouco tem os olhos postos sobre o eu
narrativo — ele nem sequer está olhando para as próprias mãos.
Perceba que o Mago está de lado, com a mão direita posta sobre a mesa,
segurando o bastão com a mão esquerda e mirando outro lugar... Mas não
sabemos exatamente qual. Seu olhar não é propriamente um olhar perdido,
mas está posto no horizonte; nesse horizonte que abarca seu ser, que abarca
aquilo que ele é.
Não confunda esse olhar para o horizonte com uma tentativa de acesso ao
inconsciente. Ainda não falamos sobre ele, ainda não sabemos se se trata de
consciente ou inconsciente.
Trabalharemos essas noções em outro momento. Por ora, con-centremos a
atenção em duas coisas: na disposição a deixar-se proteger pelo chapéu do
Mago e no olhar atentamente desatento, na atenção perfeitíssima àquilo que
realmente se é.
48
Certa vez, fui jantar na casa de um amigo de longa data, padrinho de um dos
meus filhos. A esposa dele, exímia cozi-nheira, na época cursava
Gastronomia, e seus jantares eram sempre ótimos (ainda são). Em um deles,
ela me mostrou alguns azeites que havia trazido de uma viagem, e me
convidou a experimentar um azeite grego com pão. Foi então que eu
descobri que azeites gregos são excelentes; na verdade, são uma das
melhores coisas que a Grécia produz há milênios. Lá, eles têm por tradição a
arte do cultivo de azeitonas.
Um tempo depois, assisti a uma aula do Julián Marías na qual ele comenta a
origem da Filosofia na Grécia e, de passagem, observa como é estranho que
a Filosofia tenha surgido em um país de agricultores, pobre e pequeno, onde
não havia mais que quatro gatos pingados pastoreando cabras e cultivan-do
azeitonas. A imagem daquele fruto tradicional grego não saiu mais da minha
cabeça.
49
O MAGO
(Se você não tem religião, não seja um implicante quando eu falar do Cristo.
A religião é uma prática e a Sagrada Escritura é um registro simbólico e
histórico dos eventos que iluminam a nossa existência. O próprio Jung fez
uma análise arquetípica de vários elementos escriturísticos. Então, se isso lhe
confortar, entenda as Escrituras como Jung as entendeu, mas saiba que
haverá uma perda.)
Cristo andava à beira da estrada, quando sentiu fome e avistou uma figueira
junto do caminho. Ao aproximar-se dela, porém, percebeu que só havia
folhas e nenhum figo. Ora, uma árvore frutífera deveria dar frutos. Uma
figueira deveria dar figos! Ele então amaldiçoou a figueira, dizendo: “Nunca
mais alguém coma fruto de ti!” A árvore secou imediatamente.
Alguns podem se perguntar por que é que o Cristo, generoso como era, ao
constatar que a figueira não dava frutos, ao invés de a amaldiçoar, não a
abençoou. Ele poderia mesmo ter abençoado a figueira e feito com que ela
desse frutos.
Na multiplicação dos pães e dos peixes, por exemplo, ele parece ter adotado
uma postura diferente daquela que adotou com a figueira. Havia poucos
peixes e poucos pães, e as pessoas estavam com fome. Sabendo disso, ele
tomou o pouco que havia nas cestas (cinco pães e dois peixes) e abençoou.
Com sua bênção, o alimento foi multiplicado, de modo a saciar a fome de
mais de cinco mil pessoas (Mt 14, 13-21; Mc 6, 34-44; Lc 9, 10-17; Jo 6, 1-
13). Se ele foi tão generoso na multiplicação dos pães e dos peixes, por que
não o foi com a figueira? Por que ele olhou para ela e a amaldiçoou, fazendo
com que secasse?
50
bola dos talentos (Mt 25, 14-30), de modo similar, Cristo conta sobre um
“servo mau e preguiçoso” que, medroso, escondeu debaixo da terra o único
talento (uma unidade contável que equivalia, mais ou menos, a cinquenta
quilos de prata) recebido do patrão.
Antes de fazer uma viagem, esse patrão havia confiado uma quantia em
dinheiro (em talentos) diferente a cada um de seus três servos. Os dois
servos que receberam mais investiram o dinheiro, e quando o patrão voltou,
recebeu de volta o valor multiplicado. Estes dois foram reconhecidos como
servos bons e fiéis, e o patrão, vendo que haviam sido fiéis no pouco, deu-
e disse que deveria ser lançado “nas trevas exteriores, onde haverá choro e
ranger de dentes.” Nessa parábola, o “servo mau e preguiçoso” é
tradicionalmente entendido como figura daquele homem estéril, que esconde
o que ganha, que guarda sua vida para si mesmo. É um convite a que
desenterremos nossos talentos, tornemo-nos mais produtivos e coloquemos
nossos dons a serviço dos outros.
51
O MAGO
52
Entre os gregos famosos, três são famosíssimos. Ainda que você não
conheça nada da cultura grega, ao menos destes três gregos você já ouviu
falar: Sócrates, Platão e Aristóteles.
Não temos nenhum texto escrito por Sócrates, como você deve saber. Ele foi
um soldado, lutou na Guerra do Peloponeso e era um sujeito que
simplesmente andava por aí falando com as pessoas. Ele falou, lecionou e
escreveu algumas coisas, mas não temos registros dele — só o conhecemos
por meio de Platão e Xenofonte, que eram seus discípulos.
Platão armou toda a Filosofia socrática que era, em primeiro lugar, oral,
explicativa — mas não temos registro de toda ela; temos somente alguns
textos que Platão nos deixou redigidos,
53
O MAGO
Por sua vez, a Filosofia Moderna que nega as categorias aristotélicas está, na
verdade, negando o jeito aristotélico de pensar. Ela não inventou algo a partir
do nada: é sempre uma contraposição ao aristotelismo. O próprio Alfred
Whitehead, grande comenta-rista da Filosofia, diz que a Filosofia Ocidental
inteira não passa de uma coleção de notas de rodapé à obra de Platão.
Nietzsche,
54
Heidegger, Fichte, Hegel, Scheler, a filosofia de todos esses modernos não
passa de nota de rodapé ao que Platão escreveu.
É fácil para o homem atual observar que a lua possui uma continuidade: ela
é nova, crescente, cheia e minguante, nova, crescente, cheia e minguante...
Mas imagine quantas gerações de homens precisaram observar e documentar
esse fenômeno para que você possa se referir a ele hoje! Naturalmente, até
certo momento da história humana, as coisas não eram tão óbvias e
estabilizadas assim. Houve necessidade e esforço para conquistar essa
estabilidade.
55
O MAGO
Isso se daria, segundo Snell, porque na poesia homérica não havia ainda uma
visão integral do corpo nem uma idéia abstrata de sujeito. O despontar da
individualidade teria vindo mais tarde, com os poetas líricos arcaicos, como
Arquíloco, Safo e Anacreonte, que deram a conhecer e exploraram novas
“regi-
Eu sou o Italo, você é o fulano, ela é a ciclana. Há mesmo uma unidade nas
coisas, e é maravilhoso que possamos pensar assim. Somos de fato
privilegiados, por assim dizer, pois her-damos um mundo no qual esse
primeiro esforço da inteligência já foi feito por homens notáveis que
viveram antes de nós.
56
Hoje em dia, com as redes sociais, todos se julgam no direito de opinar sobre
tudo, sobre assuntos que nunca estudaram, sobre temas a respeito dos quais
não leram uma mísera página.
Tornou-se comum ver um sujeito que nem sequer é alfabeti-zado, que nunca
leu um livro na vida, ter a ousadia de tentar debater com uma pessoa que
estudou um assunto por décadas,
Ora, a opinião vulgar de um sujeitinho como esse não é como a doxa grega,
mas, como diz o ditado, é como bunda: cada um tem uma — e ninguém tem
obrigação de dar atenção à de ninguém. Se um paspalhão se julga no direito
de emitir uma opinião ridícula, eu igualmente reclamo o direito de não
prestar-lhe atenção e de não levar a sério o que ele diz; afinal, ele não se
dedicou a estudar o assunto nem por um minuto.
A doxa, segundo Platão, é uma “opinião” a que se chega a partir daquilo que
é captado inicialmente. Ainda não é um conhecimento seguro ( episteme),
nem capta as verdades supremas, mas tampouco se reduz ao achismo que
encontramos atualmente na arena das redes sociais.
Como eu dizia, quando vieram esses três filósofos, já havia um esforço por
alcançar a percepção de algo estável que se vinha desenvolvendo há séculos.
E a escola dos pensadores que desenvolveram honestamente visões estáveis
sobre questões relevantes chamava-se Sofística.
Alguns dirão: “Puxa, sempre pensei que os sofistas fossem sujeitos maus que
querem nos convencer de algo... ” Bem, sim, eles querem nos convencer de
algo; mas não são necessariamente maus.
57
O MAGO
É claro que um sofista hoje não teria lugar no hall da moralidade, pois a
técnica da descoberta da Verdade já foi desenvolvida.
pela Poética
Por isso é que podemos chamar de “arte baixa” ou “arte vulgar” os esforços
por estabilizar coisas que não precisam da arte para serem estáveis. Não é
preciso estabilizar, por exemplo, as
58
Uma arte que se proponha a estabilizar esse tipo de movimento pode ser
chamada de arte vulgar, mas nunca de alta cultura. O funk carioca, por
exemplo, não é alta cultura porque registra em sua manifestação movimentos
óbvios, que não necessitam ser registrados pela arte para serem compreendi-
dos. Todos sabem que, se uma mulher rebolar diante de um homem, ele
ficará excitado. Onde está a novidade? Não é preciso que a arte venha nos
mostrar isso.
Você pode estar com raiva de uma pessoa que lhe fez um mal, mas sem
necessariamente querer se vingar. Se dar um soco na cara dela já o aliviaria e
o deixaria feliz, isso quer dizer que você não queria se vingar, afinal, não
desejava a destruição total dessa pessoa.
Você não é como o Hamlet de Shakespeare, por exemplo, que vê sua própria
situação e pensa o seguinte: “Meu tio matou meu pai, está dormindo com
minha mãe e, não fosse suficiente, virou rei da Dinamarca. Que vilania!
Tenho de me vingar desse sujeito deplorável, imoral. Se há algo de podre no
reino da Dinamarca, deve ser meu tio Cláudio. Vou matá-lo! ”
“Se eu matá-lo agora, o inferno não será a morada habitual e eter-na desse
canalha, desse assassino. Por isso, eu recuarei, esconderei minha adaga e
esperarei o momento oportuno para me vingar. ”
59
O MAGO
Arte tradicional X
arte contemporânea
O verdadeiro artista preocupa-se em saber o que as coisas são, e não em
imprimir sua marca na obra. Isso fica claríssimo no
60
esta fala muito mais sobre o autor do que sobre a coisa; aquela fala muito
mais sobre a coisa do que sobre o autor.
Ao ver uma obra de Picasso, você exclama: “Ah, eis a visão de mundo de
Picasso! ”. Está bem, Picasso vê o mundo assim. Mas e daí? Como o mundo
de fato é?
A arte cubista não retrata o mundo, mas sim o modo como os artistas
cubistas vêem o mundo. É em um ato de revolta que Picasso cria o Cubismo,
como quem diz: “Este mundo é mau, porque não me revela todos os seus
lados ao mesmo tempo.
Veja, por exemplo, Jackson Pollock. Ele é o cara dos quadros com rabiscos e
borrões circulares. Nada em linha reta. Os quadros dele se parecem com um
amontoado de novelos de linha desfiados — e são um registro fenomenal do
nosso tempo.
Se você alguma vez já parou para desembolar um novelo de linha, sabe
como é difícil encontrar o fio da meada, o início do novelo. É duro ver uma
unidade naquilo. Ao desembolar fones de ouvido, um colar ou um cadarço,
nosso primeiro impulso é xingar meio mundo. Pensamos: “Onde é que está o
centro, a origem dessa coisa aqui? Que saco! Como vou desembaraçar esse
negócio? ”. Levamos certo tempo até pegar o fio da meada e poder dizer:
“Ah, achei! Aqui está a origem da coisa. Já consigo desembolar. ”
61
O MAGO
Não nos aprofundaremos mais em arte aqui, mas saiba que, enquanto a
função da arte tradicional é estabilizar o mundo, a função da arte
contemporânea é deixar registrada a visão de mundo subjetiva do artista.
62
“Grande artista?! Meu filho de quatro anos faz quadros iguais aos do
Pollock! ” Não, seu filho não pinta como o Pollock, porque seu filho não tem
psicomotricidade alguma (e por isso é que ele desenha daquele jeito). Já o
Pollock, embora tivesse boa co-ordenação motora, deliberadamente quis
expressar a coisa daquele modo; aqueles borrões não surgiram por falta de
técnica.
O sujeito que não tem talento artístico pode até se dizer artista ao copiar um
quadro de Pollock, mas ele será apenas um idiota cuja arte não tem qualquer
valor. Pollock dominava a técnica da pintura, mas quis expressar o que
estava vendo: a perda do fio da meada. Ele não fazia aqueles desenhos
confusos porque não sabia desenhar bem; ele os fazia porque sua visão de
mundo era confusa, no sentido de que apresenta um mundo impossível, de
sonho e fantasia. Era um pesadelo neurótico, no final das contas.
63
O MAGO
a Retórica e a Dialética
Já vimos que existe um mundo, e que parece haver algo nele que permanece:
a lua e os planetas estão sempre rodando do mesmo jeito. Aparentemente, há
uma estabilidade — mas será que foi assim desde sempre, ou será que houve
um início? Eis aí uma questão que deu origem a grandes discussões
filosóficas.
Este é menos profundo, porém vai direto ao ponto. Quando digo: “Trabalhe,
sirva, seja forte e não encha o saco”, a mensagem está clara e é
evidentemente traduzível em ações exteriores. Eu quero que você pare de
reclamar e de encher o saco e que faça o que tem de fazer. A minha intenção
é mexer mais com a sua vontade do que com a sua imaginação: é fazer com
que você queira alguma coisa — ou rejeite alguma coisa. Para isso, eu
preciso fazer você sentir que a minha proposta coincide, pelo menos um
pouco, com uma vontade sua.
64
É claro que um “bom” orador pode fazer seus ouvintes pensarem que
querem uma coisa que, na verdade, não querem — e distraí-los por algum
tempo para que não percebam que foram ludibriados. Mas esse truque nem
sempre dá certo e vai, pouco a pouco, diminuindo a credibilidade do orador.
Se você o fizer três ou quatro vezes, muitos perceberão que foram enganados
e perderão definitivamente a confiança em você. Como bem lembrou
Abraham Lincoln — ele mesmo um tremendo orador: “Você pode enganar
algumas pessoas por muito tempo, ou muitas pessoas por algum tempo; mas
não pode enganar todos o tempo todo.”
blicos, as pessoas alegam que não há verdade; que o que existe é uma série
de opiniões: cada um tem a sua e todas devem ser respeitadas.
65
O MAGO
Essa história de “Não quero ter razão, quero ter paz” é coisa do mundo pré-
sofista. Se essa é a sua tese, meus parabéns!
Você regrediu três mil anos na história da humanidade, você não é sequer um
sofista, pois ainda está no mundo da estabilização simbólica. Não há paz na
ignorância.
A paz é fruto da guerra pela Verdade, da guerra para que se possa conhecer a
substância mesma das coisas. O sujeito que pre-tere a razão em favor de uma
suposta paz até poderá conseguir um pouco de tranqüilidade, mas apenas
enquanto não surgir um tirano para controlar-lhe a vida, já que ela não tem
estrutura nem estabilidade. Muitos regimes tirânicos foram erigidos por
conta de concessões como essa, feitas pelo mundo contemporâneo.
66
Há 3000 anos, a Retórica era o máximo a que o pensamento humano poderia
chegar. Os retores se debruçavam honestamente sobre os assuntos dos quais
falavam; e eles falavam tão excelen-temente, que é como se suas opiniões se
revestissem de glória.
Tais opiniões não eram ainda conhecimento sólido, mas eram verossímeis e
consistentes. Cabia aos ouvintes julgá-las e tomar uma decisão (sobre a
culpa ou inocência de alguém, sobre os méritos ou deméritos de alguém,
sobre a necessidade ou não de algo etc.)
O MAGO
Digamos que você tenha estudado mais a fundo sobre as culturas de café e
feijão no Brasil e consultado produtores rurais experientes, e que a maior
parte dessas autoridades defendam a sua idéia, e não a minha. Para
Aristóteles, os seus argumentos seriam mais fortes por representarem a
opinião da maioria das autoridades, ou dos especialistas, ou de uma maioria
de homens que já discutiram essa questão anteriormente.
Agora que você já sabe que um debate só faz sentido quando as partes
trazem opiniões com algum fundamento e não meros “pontos de vista”,
achismos de Facebook, opiniões de boteco ou convicções de estimação,
prossigamos.
68
teles, porém, descobre uma negação desse rio: alétheia. Existe um antídoto
para que você não se esqueça: a técnica dialética da Filosofia. O confronto
foi feito, e sobrou algo que resiste, que durará para sempre na eternidade,
que não depende mais da opinião de ninguém, nem da sua memória.
na vida concreta
69
O MAGO
O ponto mais alto de seu prestígio foi o séc. XIII, com os escolásticos.
Perceba como foi uma evolução natural. Não houve confronto entre o poeta,
o sofista e o dialético, mas tão somente um desenvolvimento orgânico, óbvio
e necessário.
Ele ainda não está comunicando aquela alétheia (“Verdade”) de que falei,
que seria como um antídoto para o rio do esquecimento. Não está nem
mesmo expressando uma opinião gloriosa, mas apenas uma “verdadezinha”,
com “v” minúsculo
70
— que, como uma semente de azeitona, ainda precisaria passar por uma
série de etapas para chegar ao azeite da verdade — e logo prescreverá um
tratamento ineficaz, despachando o sujeito para a guerra munido apenas de
uma semente.
O que o psicólogo deve fazer quando lhe chega um paciente com uma
sementinha de azeitona? Simples: ajudá-lo a plantar a semente, a cultivar a
oliveira, a colher as azeitonas, a extrair delas o azeite e, só então, mandá-lo
para o campo de batalha, devidamente untado pelo azeite. Se não seguir esse
itinerário, o terapeuta dará ao paciente uma arma ineficaz.
O psicólogo que ignora a diferença entre esses discursos tem uma visão de
mundo amputada; é um cego tentando guiar outras pessoas que, por vezes,
enxergam até melhor do que ele. Ele se reveste indignamente de uma função
e desorienta mais do que orienta, pois ainda não vestiu o chapéu do Mago
(representado naquela primeira lâmina), que o protegeria dos
71
O MAGO
raios da finitude e abriria sua visão para o infinito. E não há nada mais
desastroso do que um Mago sem chapéu.
de Aristóteles
72
Para ilustrá-las, ele usa, dentre outros exemplos, o de uma escultura. Embora
não estejamos estudando Artes Plásticas, mas Psicologia, por ora adotarei o
exemplo da escultura, pois é mais fácil entender como funcionam as quatro
causas em uma produção humana — como uma estátua, uma mesa ou um
lápis — do que partir diretamente para a consideração da operação das
quatro causas em um ser humano. O homem é uma criatura muito mais
complexa!
Suponhamos que nossa escultura seja de bronze. O que a faz ser uma
escultura e não uma outra coisa qualquer, como um sino ou uma espada?
Antes de o escultor começar a trabalhar o bronze, ainda não havia uma
escultura, certo? Havia apenas o bronze, a matéria-prima. O bronze foi então
derretido e derramado em um molde para tomar, finalmente, a forma de uma
estátua. Essa forma entra na explicação da produção da escultura como a
causa formal. Mas a causa formal não é o mero formato, senão a essência
mesma da escultura: é a esculturidade, aquilo que faz a escultura ser o que é.
De maneira similar, se se tratasse de uma cadeira, poderíamos chamar sua
essência de “cadeiridade”.
E quem é que fez a escultura? Ora, a escultura foi feita por alguém. Um
escultor, provavelmente. Segundo Aristóteles, esse escultor e a arte de fazer
esculturas de bronze da qual ele se valeu são a causa eficiente.
73
O MAGO
E esse alguém a fez para algo, tinha certa finalidade ao fa-zê-la . Pode tê-la
feito, por exemplo, em honra a um político notável de sua cidade ou em
homenagem a uma divindade, como Hermes ou Atena. Essa é a sua causa
final.
O que é?
Exemplo
CAUSA
De que algo é feito?
O bronze de que
MATERIAL
Qual a sua matéria?
uma escultura é
feita.
Qual a forma ou
A “esculturidade” . O
CAUSAL
essência de algo?
o mero formato de
uma coisa.)
O escultor (agente
bronze a forma de
EFICIENTE
responsável por dar
início ao movimento
escultura) e a arte de
ou à transformação?
produzir esculturas
de bronze.
A escultura
CAUSA
foi feito? Qual
finalidade para o
homenagear uma
divindade.
74
Uma camiseta
Causa material
Causa formal
Causa eficiente
Causa final
Foi fácil? Imagino que não. Mas com o tempo você vai pegando o jeito.
“HOMEM”
(matéria)
(forma)
ALGUÉM FEZ
75
O MAGO
Causa final
Causa material
Causa formal
Causa eficiente
Vou repetir o raciocínio para que fique claro como as quatro causas estão
interligadas, mas agora utilizarei uma casa como exemplo — e você pode
verificar se o exemplo bate com as respostas que você deu no último
exercício.
76
O construtor da casa, aquele que a fez, é uma das causas da própria casa. Por
quê? Porque a casa saiu de seu pensamento e de suas mãos. Foi ele quem
deu o pontapé inicial para que a transformação ocorresse. Não fosse por ele
— e pela técnica de construir casas por ele empregada —, não haveria casa.
Ele é a causa eficiente. Porém, ele não conseguiria construí-la a partir do
nada. Teve de usar alguma matéria que já existia antes de existir a casa:
madeira, tijolos, concreto, vidro, aço etc. Essa matéria também é causa da
casa. É sua causa material. E, bem, ele deveria ter um propósito ou
finalidade ao construir a casa: habitar ele mesmo a casa, vendê-la para um
casal que acabou de se casar, tentar ganhar uma renda fixa alugando-a... A
finalidade é também uma causa da casa: a causa final. Por fim, ao construir,
o homem tinha uma forma ou essência em mente.
Ele transformou aqueles materiais de tal modo, que fez com que o produto
final pudesse receber o nome de “casa”. Embora pareça algo um pouco
estranho de dizer, a essência ou forma da casa, a casidade, é também causa
da casa. É sua causa formal.
77
O MAGO
chapéu é símbolo? Pois bem, sem essa visão — que passa também pela
habilidade de detectar essas quatro causas que acabo de men-cionar —, você
não conseguirá exercer a “magia”. Não será capaz de entender o mundo —
muito menos de orientar alguém, pois ela é um dos princípios do
entendimento de todas as coisas.
de um homem
átrico com a seguinte queixa: “Estou sofrendo, doutor. Não vejo mais a vida
como antes. Já não gosto mais de fazer as coisas como antes. Não tenho
motivação para trabalhar nem para abraçar minha mulher e meus filhos.
Não tenho vontade nenhuma para acordar de manhã. Parece que uma coisa
ruim está acontecendo comigo. ”
78
Caruso ensinava que todo sintoma aparece não a partir das pulsões
inconscientes — não do inconsciente individual (como diria Freud), não do
inconsciente coletivo (como diria Jung), nem a partir do inconsciente
familiar (como diria Szondi), mas a partir da repressão da consciência moral:
quando você sabe o que é o certo e ainda assim age contra isso, surge o
sintoma.
Suponha, então, um psicólogo excelente, de formação ca-rusiana, dizendo
àquele homem o seguinte: “De fato, vejo uma manifestação sintomática a
partir da repressão da consciência moral. Quando faz aquilo que é
contrário à forma do homem de fazer as coisas, você sofre. ” Esse psicólogo
tem uma senhora razão de ser — mas também está deixando algo escapar.
Está, no mí-
79
O MAGO
Ortega y Gasset tinha razão quando disse que, no século XX, a Filosofia teve
um pequeno ataque de modéstia e se contentou em ser só mais uma Ciência.
Se a Filosofia estivesse em seu devido lugar, se se revestisse de sua devida
dignidade, ela olharia para a Ciência Contemporânea e diria: “Oh, que legal!
Mas agora fique quietinha que os adultos vão fumar um pouquinho e
conversar.
80
Para começar, o homem tem Senso Comum e Razão, das quais o macaco
também é dotado. Mas o homem tem Apetite Concupiscível, Vontade e
Apetite Irascível — e essas coisas o macaco não tem. Intelecto Ativo e
Intelecto Passivo, então, são faculdades que nem a doutíssima gorila de
estimação de uma ilustre pesquisadora de Stanford tem.
Nós sabemos que um homem é um homem porque ele faz certas coisas, tem
certas habilidades, tem certas faculdades: elas compõem a forma do homem.
O homem opera a partir de certas possibilidades de funcionamento que o
identificam.
81
O MAGO
Por que diabos ela o faz? Dê-me uma justificativa dentro dos sistemas de
reflexos condicionados que sustente uma operação dessa por um ano, dentro
da teoria behaviorista, sem nenhum apelo externo. ”
Pense em Pavlov e seus cães. Se você, por várias vezes, tocar uma sirene e,
na seqüência, botar um prato de ração para o cachorro comer, na vigésima
vez em que a sirene disparar, de fato o cachorro começará a salivar — ainda
que não haja ração por perto. É um reflexo condicionado. Isso acontece
mesmo.
Acontece comigo, com você, com todo o mundo. Mas é assim que você
escolhe explicar um ser humano? É claro que não; não obstante, a teoria
behaviorista se sustenta inteiramente com base nisso, essa é sua razão de ser.
82
Com a TCC, você consegue fazer o cachorro parar de salivar com o toque de
sirene, assim como consegue fazer com que seu filho pare de ter dispnéia
(falta de ar) quando está perto de um elevador. São reflexos passíveis de
“descondicionamento”.
Logo se vê que falta algo a essa teoria. Ela não vê o homem como um todo,
mas detém-se somente sobre duas de suas faculdades: o Senso Comum e a
Razão. Os Intelectos, os Apetites e a Vontade, por outro lado, escapam
totalmente ao beha-viorismo de Skinner e à teoria psicanalítica freudiana.
Porém, a causa formal do homem não se limita a esses dois princípios, mas é
composta de sete. O homem possui uma matriz de funcionamento e é pela
utilização dessas sete faculdades que o homem é um homem.
83
O MAGO
Mas é apenas uma coisa, uma coisa pequenininha. Existe, por outro lado,
uma porção de outras coisas que ainda podem ser mudadas.
84
de um homem
Passemos aos dois pólos do outro eixo da cruz: a causa eficiente e a causa
final do homem. Dessas causas não se fala absolutamente; elas são, hoje,
completamente negligenciadas.
“mundo”; o que sabemos é que existe algo muito consistente chamado “eu”.
Eu sou. Há em mim um eu — mas o que é o mundo diante dessa coisa
chamada “eu”? Esse questionamento tem raízes no cogito de Descartes, mas
só se manifesta de fato no idealismo alemão, sobretudo com Johann Gottlieb
Fichte.
85
O MAGO
jamais poderá dizer “Eu sinto frio”, “Eu quero comer”, “Eu acho que vou
morrer”, “Eu estou apaixonado pela cadela da casa ao lado”
ou “Eu sinto falta do meu dono”. Um cachorro reage. Ele sente frio, mas não
sabe que está sentindo frio. Ele sente falta do dono, mas é incapaz de
declará-lo.
“Eu não consigo mais ser apegado a esse gato como já fui uma vez. ”
Você pode, sim, derramar seu afeto e seu amor por seu bichinho, porque
essas criaturinhas são de fato amáveis. Um filhote de husky siberiano é
quase tão fofo quanto o Ângelo, meu filho mais novo — talvez seja até mais
fofo do que ele. Ao olhar para um filhotinho de husky, você imediatamente
deseja ter vários deles, brota uma vontade repentina de lhe fazer carinhos, de
pegá-lo no colo... Um filhote de cachorro nos amolece o co-ração — mas é
ele quem recebe o nosso afeto. O que ele nos dá não é afeto nem amor, senão
apenas uma reação da espécie.
Quando se trata de seres humanos, porém, não se pode mais falar meramente
em “reação da espécie humana”.
Todo agente age segundo o que é. O cachorro sempre age como cachorro.
Ele é estereotipado, padronizado. Um labrador, no Brasil, no ano de 2019, é
igual a um labrador, em Portugal, no ano de 1384. Eles não são o mesmo
indivíduo, mas sempre reagem conforme está prescrito no “código” de sua
espécie. Os seres não-racionais, como os animais, tendem a um fim
determinado apenas “por causa da ordenação inscrita em sua natureza. É
essa ordenação que determina os meios a empregar para realizar o fim da
natureza, e eles lhe obedecem passivamente, de forma espontânea — e não
mecanicamente, como um autômato.”11 Quando seu cachorrinho rola uma
bolinha para você, ele é o agente, a causa eficiente desse movimento, certo?
86
Mas ele só rola a bolinha para você, porque a natureza dele o impele a fazê-
lo, e ele obedece. Isso acontece porque ele não tem um eu.
Por isso, não se pode esperar que um homem em 1384 em Portugal aja da
mesma forma que um homem no Brasil em 2019.
Nem mesmo dois homens do mesmo tempo agem da mesma maneira. Eu e
meu amigo Dario, ambos homens da mesma idade, vivendo no mesmo país à
mesma época, não agimos do mesmo modo. A razão para isso é muito
simples: nem eu nem ele somos bichos reativos; nem eu nem ele falamos em
nome da nossa es-pécie humana, nós não temos uma “resposta padrão” da
espécie.
Quando Fichte toma consciência disso, ele pensa: “Puxa, existem vários ‘
eus’ andando por aí. E cada eu é um universo. ” Um cachorro, porém, não é
um universo. A espécie cachorro é um universo, mas não o são os indivíduos
dessa espécie. Um cachorro não tem um ego. Somente uma pessoa pode
dizer: “Eu sou um universo. Eu falo em primeira pessoa. ”
87
O MAGO
88
E se existem, onde é que existem? Foi Santo Tomás de Aquino, com base
aristotélica, quem matou a charada: os universais, enquanto tais, são
produtos da mente. E não existem na mente “do nada”, mas têm um
fundamento in re, na coisa. Os universais existem, mas não são res (uma
coisa separada) —
como pensavam os realistas como Platão —, nem são apenas uma palavra
— como pensavam os nominalistas como Guilherme de Ockham. Essa é a
solução para o “Problema dos Universais”.
Qual a causa final de um cachorro? Para que serve um cachorro? Aposto que
você só consegue responder a essa pergunta quando relaciona o cachorro a
você. “O cachorro existe para me alegrar”, “O cachorro existe para
proteger a minha casa”.
O MAGO
Eis a sutileza da coisa: uma estátua não é dinâmica, ela já está feita. A causa
eficiente do seu artífice já está nela. Com o cachorro não ocorre o mesmo,
porque o cachorro é vivo; mas ele também não fala em primeira pessoa. A
causa eficiente vive no cachorro de modo impessoal, pois ele não é uma
pessoa. O
Há algo vivo e dinâmico na causa eficiente do homem, que faz com que ele
sempre possa dizer “Eu sou” e chegue a cumprir a finalidade de ser um
universo. É isso o que as religiões costumam chamar de graça.
90
Um homem será tão mais homem quanto mais ele reconhecer e acolher sua
causa eficiente em si. Um psicólogo, um terapeuta, uma mãe, um pai, um
chefe, um amigo, quem quer que não reconheça essa causa eficiente na
operação humana, não estimule o outro a acolhê-la e não consiga distingui-la
na operação diária do homem, não poderá ajudar esse outro a cumprir a sua
finalidade.
E aquele que não chega a ser aquilo que foi feito para ser permanece na
infelicidade. Pois de que serve uma estátua ornamental que não ornamenta?
De que serve uma oliveira que não dá azeitonas? De que serve uma figueira
que não dá figos?
Uma Psicologia que se pretenda ampla, total e eficaz, precisará olhar para
esses quatro pontos articulados de maneira integral.
93
Traja uma túnica azul e uma capa pluvial de cor vermelha, como o mantum
papal. Uma fina faixa com cruzes bordadas atravessa seu tronco: é um pálio,
vestimenta eclesiástica que até o séc. VI era usada exclusivamente pelo
papa, como símbolo da plenitude do ofício pontifical. Um véu cobre seus
cabelos. Por trás da cabeça e dos ombros, um outro véu parece velar ou
separar a Papisa do plano de fundo. Na cabeça, ela traz uma imponente tiara
com três coroas.
94
O que ela traz sobre a cabeça não é bem um chapéu, mas algo que
chamamos de tiara. Não uma tiara como aqueles enfeites delicados que as
meninas hoje usam, mas algo mais pró-
O uso da tiara papal de três coroas ( triregnum) era tradição na Igreja desde o
séc. XIII — e antes disso foram utilizadas tiaras com uma e duas coroas, que
aparecem representadas nos brasões papais desde Celestino III, papa de 1191
a 1198. Desde então, todos os papas usaram tiaras papais, ao menos em suas
cerimônias de coroação, quando ouviam do mais velho dos cardeais palavras
como estas: “Recebei a tiara adornada com três coroas e sabei que vós sois o
Pai dos Príncipes e Reis, Governador do Mundo e Vigário de Nosso
Salvador na terra.”
95
A PAPISA
sua soberania em três domínios distintos12 e que, além disso, como a torre
de uma catedral gótica, aponta para cima, como para algo superior e mais
excelso do que as coisas terrenas.
Essa tríplice tiara tem, na Igreja, uma simbologia própria, mas nós a veremos
aqui especialmente como símbolo de três domínios dos quais temos de nos
aproximar: os domínios místico, gnóstico e mágico.
Seus sucessores também deixaram de usá-la, com uma única exceção: o papa
Bento XVI, que, embora não a tenha usado em uma cerimônia de coroação
(como era costume), usou-a em outra ocasião — mas renunciou ao seu posto
de papa.
O que aconteceu a ela? Bem, desde então, ela mergulhou em abismo atrás de
abismo. Quem, hoje, escuta um católico, falando enquanto tal, e o leva a
sério? Ninguém.
Quando o papa Paulo VI depôs a tríplice coroa, ele saiu dos domínios
místico, gnóstico e mágico, levando consigo a Igreja, e desceu ao domínio
do livro, no qual os protestantes já estavam há vários séculos.
Naquele ano, Martinho Lutero pendurou suas noventa e cinco teses na porta
da igreja do povoado de Wittenberg, na 12 Além da simbologia sugerida nas
palavras do cerimonial de coroação, há ainda outras que costumam ser
associadas à tríplice coroa papal: os três poderes do papa (magistério,
jurisdição e ordem), as três dignidades de Cristo (sacerdote, profeta e rei)
etc.
96
Alemanha. Esse foi apenas o início de uma grande reação contra o papado e
o poder espiritual que ele representa — e contra o clero em geral, que
desfrutava de privilégios e riquezas cobi-
Lutero fez cair a primeira pedrinha, mas, depois dela, cho-veram pedras e
pedregulhos cada vez maiores, em uma avalan-che tremenda que tinha como
alvo a casta sacerdotal, aquela constituída pelos homens que se encarregam
das operações do espírito, das coisas mais elevadas.
Nos mundos hindu, egípcio, chinês e muçulmano foi assim também: houve,
no início, uma visão de mundo ligada à crença em uma divindade, e foi ao
redor disso que esses ciclos culturais se desenvolveram. No Egito, por
exemplo, houve um Thot para dar a nova lei e a nova ordem que
configuraram a nova sociedade. Estruturou-se então uma ordem de homens
sacerdotais que faziam cumprir essa lei.
Ela precisa também dos tipos aristocrático (ou nobreza), empresarial (ou
burguesia) e servidor (ou prestador de serviços).
É preciso gente para fazer o trabalho pesado e prestar serviços básicos, gente
para lidar com a economia e vender, e gente para guerrear e defender.13
duo é único e cada cultura tem suas peculiaridades. A esses estratos sociais
correspon-dem certos temperamentos e tipos caracterológicos, o que quer
dizer que as pessoas têm certas propensões ou tendências a participar de um
desses estratos.
97
A PAPISA
Bem, pelo menos, é isso o que o tipo sacerdotal deveria ser, mas nada
impede que alguém que ocupe uma função como a de sacerdote, monge,
cardeal, ou mesmo papa, fuja à sua tendência principal e seja motivo de
vergonha para toda a casta.
“ Na formação de um ciclo cultural o primeiro período é de domínio dos
sacerdotes, que participam deste poder em proporção maior que a
nobreza.”14 Veja o caso dos hindus. São os brâmanes que fundam suas
civilizações; e, assim fazendo, ganham status.
Ao contrário do que muita gente pensa, o nobre não é um sujeito gordo que
fica sentado no castelo comendo asinha de frango e cortejando as duquesas.
Ele defende. Eventualmente, se não estiver batalhando, ele se divertirá com
as duquesas e as asinhas de frango; mas, quando explodir uma guerra, ele
será um dos primeiros a colocar sua vida em risco. Esse nobre é o tipo que
valoriza muito a honra e o renome, empreende façanhas, tem tendências
agressivas e bélicas e se orgulha de sua força e bravura.
98
Como o nobre é o sujeito que morre por todos em uma civilização em guerra
permanente, é natural que ele ganhe certa superioridade hierárquica. É o que
vemos em epopéias como a
Porém, quando o poder que está acima do nobre é exercido não por um rei,
mas por um sacerdote, um papa ou um grupo inteiro de homens sacerdotais,
é contra a casta sacerdotal que a nobreza tenderá a se voltar. Seu grande
desejo será subordinar o sacerdócio para servir a seus interesses, ou até
mesmo elimi-nar essa casta que lhe parece um obstáculo.15 Quantas vezes
isso aconteceu na história da humanidade? Várias!
99
A PAPISA
Mais tarde, em 1302, o papa Bonifácio VIII, conhecido por suas constantes
interferências nos governos temporais, emitiu a bula Unam sanctam, porque
percebeu — sobretudo na figura do então rei da França, Filipe, o Belo — a
grave ameaça de reis que não queriam se submeter à autoridade da Igreja.
É necessário, de fato, que uma espada esteja sob a outra espada e que a
autoridade temporal esteja sujeita ao poder espiritual. (...) Com tanta maior
clareza quanto as coisas espirituais sobressaem às temporais, devemos
afirmar que o poder espiritual supera, em dignidade e nobreza, qualquer
poder terreno. (...) Se o poder terreno se desviar do reto caminho, será
julgado pelo poder espiritual; se um poder espiritual menor se desviar, será
julgado pelo que lhe é superior; se, porém, o poder supremo se desviar,
poderá ser julgado só por Deus, não pelo homem, como atesta o Apóstolo:
‘O homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por
ninguém.’ (1Cor 2,15) 16
O papa tentou colocar os reis em seus devidos lugares, mas, pouco depois de
emitida a bula, Filipe, o Belo mandou seu ministro-
Quando Lutero olhou para a situação da Igreja em sua épo-ca, para toda a
seqüência de papas dos séculos XV e XVI e suas condutas nada exemplares,
e disse: “Tirem-lhes a tiara”, também havia ali por trás uma nobreza
insatisfeita que queria tomar parte na hierarquia sacerdotal.
100
de Roma por parte de grandes nobres e príncipes locais, que viram uma
oportunidade de se livrarem do jugo da Igreja e de seus impostos e leis, e de
saquearem suas riquezas. Sim: não pense que aqueles que se voltaram contra
o papa e a Igreja eram uma massa de santarrões incomodados com
problemas doutrinais e revoltados com a imoralidade dos papas.
ticos e disposta a matar quem quer que fosse para conseguir o que queria,
como se viu, mais tarde, na Guerra dos Trinta Anos, nos diversos saques a
mosteiros e a terras da Igreja em toda a Europa, e no genocídio de católicos
irlandeses promovido por Oliver Cromwell.
Por outro lado, temos de convir que a crítica de Lutero não era infundada. À
sua época, havia muitos abusos no alcance das indulgências e confusão
quanto à sua finalidade. A hierarquia eclesiástica deixava as pessoas
pensarem que podiam comprar o perdão de seus pecados, e foram feitas
verdadeiras campa-nhas de arrecadação de fundos, com outorga de
indulgências, para custear obras da Igreja.
101
A PAPISA
Os próprios papas acumulavam rendas de diferentes sés e os mais diversos
benefícios, provocando a cobiça de muitos e a indignação geral. Nesse
intervalo de tempo, houve ainda três papas que tiveram filhos ilegítimos
antes de se tornarem papas (Pio II, Inocêncio VIII e Alexandre VI) e os
favoreceram de muitas maneiras.
Havia um abismo entre o que a Igreja oficial deveria ser e o que realmente
era. Isso deixou, com razão, muita gente chocada.
A crença fundamental do protestante — e isso quem diz não sou eu, mas a
própria teologia protestante — é a de que a razão do homem está lesada
desde o pecado original. Dito de outro modo, as atividades mágica, gnóstica
e mística são inacessíveis ao homem e, portanto, não se consegue chegar ao
conhecimento de Deus por meio da observação e da contemplação da
realidade. O protestante não crê, filosoficamente falando, em uma coisa
chamada analogia entis, na analogia entre os entes. Ele não crê que
possamos limpar nossos olhos para torná-los espelhos, para torná-los como
que superfícies perfeitamente polidas, que refletem a Palavra.
Mas foi o próprio Cristo quem disse que é preciso limpar os olhos, pois, se
eles não estão limpos, nada dentro de si está limpo. Foi o próprio Senhor
quem deu a técnica da ascensão da tiara. Você deve polir e limpar seus olhos,
para que eles reflitam a presença que vem do Alto, para onde a tiara aponta.
É nisso que o protestante não crê. Ele crê que o conhecimento só pode ser
adquirido por meio da Palavra de Deus, e que a atividade da razão ou da
contemplação está lesada. Ora, senhor protestante, eu lhe pergunto: com que
razão você crê nisso? Se sua razão está lesada, com que razão você pôde
conhecer isso?
“Ah, foi Deus quem disse. ” Tudo bem, mas quem disse que foi Deus quem
disse? Ou você concluiu que Ele disse por meio de sua razão, aquela mesma
razão lesada?
103
A PAPISA
“Está na Bíblia, foi Deus quem disse. ” Sim, mas como é que você sabe, se
não crê que o conhecimento é possível a partir da analogia dos entes?
104
Os olhos são a faculdade que nos permite enxergar. O olhar do homem tem
uma característica dupla — não é à toa que, simbolicamente, temos dois
olhos, e não apenas um. Assim como temos apenas uma boca, poderíamos
ter apenas um olho, como um Ciclope, mas temos dois, porque tudo é
presença. Seus olhos são presença, sua boca e nariz são presença, até mesmo
sua pele é presença, e presença de uma realidade que está para além.
Como dizem por aí, eles são “as janelas da alma.” E são mesmo.
Se as suas janelas estiverem sujas, sua alma estará suja e você não verá com
clareza o que há lá fora. Cristo disse que “o olho é a lâmpada do corpo. Se o
teu olho for são, todo o teu corpo terá luz.” (Mt 6, 22-23)
O homem tem dois olhos, não um; portanto, deveria cultivar dois tipos de
olhar. Esse duplo olhar está bem representado em uma imagem do séc. VI,
conhecida como Pantocrator, uma das mais antigas do Cristo, na qual Ele
aparece com dois olhos bastante diferentes um do outro. É uma imagem
pertur-badora. À primeira vista, o ícone parece defeituoso, mal feito.
105
A PAPISA
se o Cristo nos dissesse: “Filho, seu olhar não pode ser apenas manso e
inocente. ” É preciso cultivar essa dupla natureza para as-
ataca. Se a matilha estiver por perto, ela o cerca e o come vivo. Lobos são
astutos; não são inocentes como as pombas.
107
A PAPISA
O mundo não é mau, sombrio e cruel o tempo todo. Nem todas as pessoas
são perversas, canalhas e medíocres. E mesmo um canalha tem em si coisas
boas que somente um olhar de pomba é capaz de captar. É preciso nutrir esse
olhar inocente, passivo e doce, sobretudo na relação com as pessoas que se
ama. O
Farei uma analogia com uma disfunção oftálmica. Quando uma pessoa tem
um glaucoma ou tumor em um dos olhos, pode perder a visão nesse olho. O
que acontece depois disso é que ela passa a ter uma visão monocular: seu
campo de visão é reduzido e sua noção de profundidade fica comprometida.
Isso se dá, porque cada olho vê desde um ponto de vista um pouco diferente
e, em nosso cérebro, aquilo que é captado por cada olho passa por uma
“fusão”, que garante a sensação tri-dimensional, a percepção de
profundidade e distância. É a vi-são binocular que garante uma apreensão
visual mais ampla e completa, com sentido de profundidade e distância.
Há também casos em que a pessoa, embora enxergue com os dois olhos, tem
o olhar desalinhado, em níveis diferentes: ou porque um olho tem um grau
de miopia muito maior do que o outro, ou porque é estrábica. É o que
popularmente se conhece como “olho preguiçoso”, mas que na medicina
chamamos de ambliopia. Nesses casos, os dois olhos não conseguem
trabalhar muito bem juntos, e surgem dificuldades para distinguir distâncias,
ler, escrever, praticar esportes e fazer algumas tarefas básicas do dia-a-dia.
108
O número da lâmina da Papisa é o 2, que representa o que é binário. O
binário pode tanto ser legítimo quanto ilegítimo.
O dois é símbolo da divisão. Imagine que você tem uma unidade e a divide
em duas partes, em duas metades separadas, sem ligação uma com a outra.
Nessa divisão, o que temos é um prejuízo, uma espécie de “redução” da
unidade.
-se, por livre e espontânea vontade, e se tornam una caro, “uma só carne”.
Elas se atam por força do amor, e é ele quem dá legitimidade àquela união
de dois. Se só existisse o um, não poderia haver amor, pois amar é sair de si,
é servir, é entregar-se.
E, para haver amor, é preciso que haja, pelo menos, um amante e um amado.
Não há amor sem o dois.
Temos, por isso, que desenvolver esse olhar binocular para perceber a tensão
da realidade.
Uma pessoa pode chorar tanto por ceder à tensão do olhar de pomba, quanto
por ceder ao olhar de serpente. Se o sujeito olha para o mundo somente
como pomba, termina caindo em um choro inconsolável quando é passado
para trás. Em sua
109
A PAPISA
ingenuidade, ele não imaginava que alguém seria capaz de fazer-lhe algo
mau. “Nunca pensei que meu melhor amigo fosse capaz de fazer isso
comigo…” ou “Meu mundo caiu quando descobri a traição da minha
mulher. ” são frases que se costuma escutar com certa freqüência.
Por outro lado, quando se olha o mundo apenas como serpente, o resultado é
um choro de raiva ou de inveja — o choro da pessoa que percebe que há no
mundo gente muito melhor do que ela.
O pranto está no olhar, afinal, é pelos olhos que vertemos lágrimas. A maior
parte do sofrimento das pessoas que chegam chorando a um consultório, em
regra, tem causa nesta cisão do olhar. Elas não articularam as tensões dentro
de si, não foram como o Pantocrator. Se uma pessoa chega ao seu
consultório aos prantos, saiba que, provavelmente, ela está com um
problema de articulação dos olhos. Um de seus olhos (ou o olho de serpente
ou o olho de pomba) está “preguiçoso”, ou mesmo cego.
Mas será que isso quer dizer que esse olho é, sempre e em tudo, preguiçoso
ou cego? Não! Essa “disfunção” não se dá necessariamente em todos os
campos da vida da pessoa.
Uma pessoa pode chegar ao seu consultório aos prantos porque está com um
problema em um domínio específico da vida: ou no trabalho, ou no
casamento… Sabendo, portanto, que o pranto teve origem em um domínio
específico, procure ali e você encontrará: ela ainda não soube articular os
dois olhares, ela não poliu seus olhos naquele campo específico da sua vida.
Ou olhou apenas como pomba, ou apenas como serpente. A prática do
consultório constitui-se em fazer desenvolver no paciente o olhar que lhe
falta e buscar alinhar os dois olhos, os dois centros de contemplação, naquele
campo específico de sua vida.
Se você, psicólogo, notou que seu paciente está chorando por inveja, por
raiva, por ódio, então ele tem um olhar de serpente melhor desenvolvido e
faltou-lhe o olhar de pomba, o olhar de inocência, de passividade, de
bondade, de docilidade. Isso é o
110
que precisará ser desenvolvido (e há técnicas para isso). Se, po-rém, ele
chora porque está sendo feito de bobo, terá de desenvolver o olhar de
serpente, de proteção, de esperteza, de agudeza.
A serpente é um bicho que rasteja, que está com a boca colada ao chão. Não
é incomum que os contos de nossa tradição que começam com uma serpente
mostrem, no último capítulo, um dragão. Volte ao conto simbólico que você
mais conhece dentro da tradição mítica semítica: o livro de Gênesis, do
Antigo Testamento. O primeiro animal que aparece é uma cobra que fala, é a
serpente que dá a Eva a “brilhante” idéia de comer do fruto proibido. “Sereis
como deuses”, diz à mulher.
“Comer terra” é estar bem “colado” a este mundo, vendo como as coisas
nele funcionam e tentando mexer com elas. Desenvolver esse olhar de
serpente é uma necessidade do ser humano.
Nós nos limpamos da terra que ingerimos, mas do olhar da serpente não
podemos nos limpar — pelo contrário, devemos antes poli-lo, articulando
perfeitamente a pomba e a serpente dentro de nós. Quando não faz isso, você
chora — ou porque está com a barriga cheia de terra (ou seja, você é uma
serpente dura e pesada, que não consegue se mover), ou porque é uma
pombinha tonta que toma um tiro de chumbinho e volta ao mesmo lugar para
tomar mais tiros.
O choro é a imagem perfeita do elemento que lhe servirá para polir. Ele é um
tipo de água, e só colocamos água para fora em dois momentos: quando nos
esforçamos, por meio do suor, ou quando choramos, por meio das lágrimas.
Em ambos, a água é símbolo de limpeza, de purificação.
Quando você se esforça e serve, você fica suado e, assim, expurga seu
egoísmo. O suor é símbolo de esforço e entrega.
111
A PAPISA
Quando Adão caiu e foi expulso do Éden, foi-lhe dito: “Do suor do teu rosto
comerás o teu pão”. Pense um pouco nesse símbolo. Quando você sua, não
sua apenas no rosto, certo?
Esse suor do rosto não simboliza exatamente a mesma coisa que o suor do
corpo: aquele é composto também das lágrimas que vertemos pelos olhos, e
que representam um outro tipo de purificação. Quando “suamos a camisa”
(nos esforçamos, servimos, trabalhamos), nós nos purificamos. Quando
choramos (sofremos, padecemos, nos condoemos), também.
Agora que estamos fora do Éden, precisamos trabalhar para ganhar o pão e
para articular os dois olhos — de serpente e de pomba —, pois o próprio
mundo tem natureza dupla, de pomba e de serpente, angélica e demoníaca.
Se não cultivarmos o duplo olhar dentro de nós, ficaremos completamente
desorientados aqui.
Ainda que você não acredite em anjos e demônios, olhe para o mundo e verá
duas disposições: uma hierárquica, bela, dis-ciplinada, harmônica, e outra
degenerada, carente, dissonan-te. Como, então, você pretende se orientar
neste mundo sem cultivar o duplo olhar e sem polir seus olhos? Como
pretende se orientar neste mundo sem alinhar e polir as janelas da sua alma,
seus dois centros de contemplação?
112
Não quero com isso dizer que a Bíblia é simbólica como o Tarô. Não! Ela é
muito superior, pois as coisas que ali estão ditas, além de poderem ser lidas
simbolicamente, também aconteceram realmente. Nunca houve uma Papisa
com uma tríplice coroa, ao passo que Moisés viu realmente a sarça ardente e
realmente cruzou o deserto do Sinai com o povo hebreu. A Bíblia é a
realidade simbólica vertida em palavra. A Escritura tem essa natureza: é ao
mesmo tempo o que poderia acontecer e o que de fato aconteceu (e, nesse
sentido, é muito diferente do Tarô).
astro é mais simples que o coelho, que é mais simples que o Tarô, que é mais
simples que o texto escriturístico. O problema é quando alguém incapaz de
entender os símbolos mais simples se acha no direito de interpretar o texto
escriturístico à luz da Ciência Contemporânea, e ainda pregá-lo do púlpito.
113
A PAPISA
Pedro e Caifás
Queria ainda falar sobre um outro símbolo que a dupla natureza do olhar tem
para nós, símbolo este preservado na tradição simbólica da Escritura
Ocidental.
cios de que morreria — como de fato veio a morrer, mas para ressuscitar
depois de três dias, pois a Verdade é indestrutível e sempre vem à tona,
mesmo quando nos parece absolutamente morta.
114
Pouquíssimos dias antes de sua paixão, Cristo disse a Pedro que iria morrer,
ao que ele respondeu algo como: “Não vai, não.
Não deixarei ninguém matá-lo. Estarei contigo até o fim. ” Pedro foi esse
sujeito. Ali, com um olhar de pomba, ele não estimou que a realidade era
também cruel; afinal, pouco antes de a Verdade ser trucidada, rasgada,
cravejada, escorraçada, chicotea-da e pregada, ela entrou lépida e fagueira
em uma Jerusalém triunfante. Montada em um jumentinho, ela foi recebida
com louvores e aclamações. Folhas de palmeiras eram agitadas no ar.
Mantos foram colocados no chão para que ela pisasse por cima deles.
“Senhor, que bom é nós estarmos aqui! Se queres, farei aqui três tendas: uma
para Ti, uma para Moisés e outra para Elias”
ção, Jesus revelou aos apóstolos que, assim como Elias tinha vindo e sofrido
perseguições e ataques, também o Filho do Homem haveria de padecer nas
mãos dos homens. Mas Pedro
— tal qual os demais discípulos que ali estavam — pensou que Cristo
estivesse falando não de si mesmo, mas de João Batista.
115
A PAPISA
Quando a Verdade se manifesta, ela não traz apenas vida, mas também
morte: ela mata o egoísmo, mata o desejo de poder desenfreado, mata a
sensualidade, mata o fechamento em si.
Puxa-nos para fora de nós mesmos. Quando a Verdade aparece, portanto, ela
atinge ambos, tanto a pomba quanto a serpente.
No momento em que Jesus foi levado à casa de Caifás, onde os príncipes dos
sacerdotes e o Sinédrio procuraram arranjar uma desculpa qualquer para
incriminá-lo e condená-lo à morte, estavam ali Pedro e Caifás. Nessa cena,
presenciamos os dois tipos de choro: o da pomba e o da serpente.
Pedro, por sua vez, estava sentado lá fora, no átrio, quando foi abordado por
uma criada, que lhe perguntou se ele não era um dos seguidores de Jesus.
Acovardado, ele disse que não, mas logo se arrependeu e chorou
amargamente.
116
Depois que Caifás disse que o Cristo blasfemou, imediatamente os que ali
estavam passaram a humilhar Jesus e a tratá-lo com todo tipo de violência.
Daí em diante, Jesus sofreu uma série de humilhações e agressões.
“Cuspiram-Lhe no rosto e feriram-n’O a punhadas.” (Mt 26, 67)
Ali a Verdade foi rasgada, trucidada, estava prestes a ser crucificada. Diante
disso, o que Pedro fez? Ele se espantou, se surpreendeu, recuou e chorou
amargamente. Chorou de arrependimento e de culpa, porque não teve
coragem de revelar que era amigo de Jesus; mas chorou também porque não
podia acreditar que algo tão terrível pudesse acontecer. Isso não estava em
seu horizonte de consciência. A seu turno, o que é que Caifás fez? Rasgou
suas vestes e “chorou” um choro falso, seco como a terra árida.
Repare que o choro de serpente das pessoas que entram no seu consultório
— ou daquele seu amigo que vai desabafar com você — é sempre um choro
com o qual é difícil de lidar.
O “choro” seco de Caifás não serve para grande coisa; o choro de Pedro,
porém, tem uma propriedade purificadora.
117
A PAPISA
Duas aves voaram para procurar a Verdade, mas uma delas chegou antes:
João. “Partiu Pedro com o outro discípulo e foram ao sepulcro. Corriam
ambos juntos, mas o outro discípulo corria mais do que Pedro e chegou
primeiro ao sepulcro” ( Jo 20, 3). João correu rápido e, obviamente, chegou
antes de Pedro, porque era uma águia, enquanto Pedro era apenas uma
pombinha que não podia se locomover em alta velocidade.
Bastava-lhe remar para chegar aonde queria. Mas ele se atirou; era ainda
uma pomba inocente. Chegando à margem, ele encontrou a Verdade e ali
aconteceu o diálogo central de toda a narrativa. Ali é que Pedro, pela
primeira vez, ganhou o olhar da serpente, perfeitamente ajustado ao da
pomba. Ali encontrou a Verdade já não mais como um caolho que vê o
mundo sem profundidade.
çar a questão uma segunda vez. Aliás, não é que a resposta não fosse
adequada — a pomba, na verdade, ainda estava ajustando seu olhar,
vasculhando a maldade em seu espírito e a realidade do mundo, buscando a
articulação perfeita daquele olhar para encontrar a Verdade e não se deixar
cegar por ela nem a trair.
É tolice pensar que a Verdade dirigiu a pergunta à pomba três vezes porque a
pomba lhe havia negado três vezes...
118
“Pedro nega o Cristo três vezes antes que o galo cante, logo o Cristo
pergunta três vezes para zerar a conta. ”
Na parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32), o filho que retorna à casa do pai
pensava em voltar na condição de mero servo, mas é recebido
calorosamente: recebe uma túnica e um anel no dedo, põem-lhe sandálias
nos pés e fazem para ele um banquete com direito a um vitelo gordo. O amor
de Deus ao longo de toda a Escritura é sempre desproporcional, então não
me venha com essa de “foi para zerar a conta”.
Nesse momento, Cristo estava fazendo a alquimia perfeita, como quem diz:
“Vamos fazer um último ajuste, vamos terminar de polir seus olhos para que
você possa ascender. ” O símbolo é perfeito; tanto o é que, depois disso,
Pedro recebeu uma tiara e foi promovido a papa.
Como as coroas da tiara da Papisa, também três são as perguntas que Cristo
dirigiu a Pedro. Na primeira pergunta, o original grego traz a pergunta
Agapas me? (“Tu me amas?”). Cristo usou o verbo agapao. O amor agape é
um amor superior, transcendente e divino. Portanto, na primeira pergunta, o
que Cristo questionava
119
A PAPISA
era se Pedro O amava com esse amor agape, divino, como o amor de Deus
por nós. Mas Pedro respondeu meio sem jeito...
Então o Cristo perguntou mais uma vez: “Pedro, agapas me?” , como se
perguntasse: “Pedro, tens certeza de que és capaz de me amar com um amor
divino? Ora essa, ainda és um inocente…” E Pedro uma vez mais não
respondeu satisfatoriamente.
Por fim, o Cristo lhe perguntou: “Pedro, phileis me?” — e essa é uma das
perguntas mais bonitas de todo o simbolismo dos versículos. Lembre-se de
que um versículo é a condensa-
Naquele momento, Pedro poderia ter se tornado uma serpente como Caifás,
poderia ter respondido “Não. Tu me aban-donaste. Agora, não deixarei que
ninguém mais faça isso comigo!
Isso poderia ter acontecido com Pedro. Naquele momento, poderia ter
ocorrido a perda total de sua inocência; ele poderia ter saído do pólo da
inocência e passado ao pólo de desesperança, poderia ter se transformado em
um outro Caifás.
120
Ajustar é a chave
A realidade não é somente apreendida por seus olhos, mas também refletida
por eles — e uma reflexão especular só pode ocorrer em superfícies lisas e
polidas.Toda a atividade reflexiva só começa a acontecer a partir daí. Até
então, você está em um domínio inferior, da confusão, da matéria, onde
ainda não há reflexão.
Perceba que o olhar da Papisa fica entre o livro e a tiara. Ela quer ver o que
faz, como quem pega aquelas realidades da tiara e as lança para o livro. O
olhar dela está quase no livro, mas não se fixou nele ainda. Está no meio do
caminho, em movimento.
121
A PAPISA
Experiência mística,
Se você não tem o duplo olhar, se não é uma superfície lisa, se não articulou
em si a pomba e a serpente, você olha para o mundo, mas não o enxerga. O
que você vê é uma outra coisa.
Se você olha para o mundo sem esse duplo olhar, aquilo que você acha que
vê é apenas fruto da sua mente. Sem uma superfície polida, o mundo não
reflete em você; e, assim sendo, você não capta o ser das coisas.
Você pode achar tudo isso muito lindo e interessante, mas só será capaz de
captar o ser da xícara se tiver os olhos alinhados e polidos.
Sem o olhar ajustado e polido, ainda que você contemple uma montanha por
semanas, não terá a experiência mística dela —
Veja bem: você não é o Ser, você é reflexo do ser daquilo que está
apreendendo. Não existe uma fusão do Ser em você, ao contrário do que
prega o panteísmo. A cosmologia panteísta sintetiza-se na afirmação de que
o Ser está fundido em tudo; de que existiria apenas um Ser, e de que tudo
teria esse Ser.
Tudo tem Deus, mas tudo não é Deus, como eles dizem que é. O problema
do panteísmo é que não há uma passagem do conhecimento para a prática e
depois para a Filosofia (que é o livro da Papisa).
Você não abarcará as três etapas da coroa assistindo a uma aula ou lendo um
livro. Hoje em dia, toda experiência que o pessoal pretende mística ou
superior consiste na leitura de livros. Mas enquanto você não tiver um olhar
polido, a leitura de livros não lhe dará tanto fruto.
123
A PAPISA
“Ora, mas desde quando injeções não são importantes? ”, alguém poderia
questionar. Dou graças a Deus por existirem as inje-
ções, mas o fato é que nossa civilização viveu sem elas durante dois mil
anos. A seringa foi inventada apenas no séc. XIX. Civilizações subsistiram,
sobreviveram e produziram maravilhas em um mundo sem injeções.
Shakespeare escreveu tudo que escreveu sem nunca ter tomado uma injeção
na vida. Todas as catedrais foram construídas por pessoas que não tomaram
injeções. As pirâmides do Egito foram erigidas por pessoas que não tinham
notícia de que era possível tomar uma injeção.
Nesse sentido, a injeção não é essencial — e mesmo ela consegue ser meio
mágica.
Muita gente acha que pode aprender qualquer coisa lendo um livro. O
maluco que se converteu ontem ao catolicismo já sai bradando: “Vou ler São
Tomás de Aquino, porque afastar-se dele é perigoso. ”
Bem, ele não está de todo errado, pois é mesmo meio perigoso afastar-se de
São Tomás; mas, na melhor das hipóteses, esse sujeito se tornará como o
meu filho José, de dois aninhos: uma criança, que ninguém respeita ou leva a
sério, porque é fraco, é o típico sujeito da religião que anda com o peito para
dentro e o crucifixo para fora. Religião de verdade é o oposto: peito para
fora e crucifixo para dentro.
Quando eu peço a meu filho José, de dois anos, para buscar um copo, ele
consegue fazê-lo. Ele sabe mais ou menos como é um copo e sabe também
para que serve um. O José já viu e
124
tocou vários copos, já nos viu bebendo líquidos em copos, e já bebeu ele
mesmo de alguns copos diferentes, portanto tem um certo conhecimento do
que seja um copo, um conhecimento prático que adquiriu por meio de
sentidos externos, como a visão e o tato. Ele distingue um copo de outros
objetos que não são copos (de uma mesa, um poste, uma cama, um prato ou
um livro). Ele consegue também pensar em um copo sem estar vendo ou
tocando um; e pode até, com sua imaginação, pensar em um copo com asas
ou com pernas — sem jamais ter visto essas aberrações nem em desenho
animado. Ele diferencia o copo de vidro do copo de alumínio; o copo
vermelho do copo azul. E, associando a própria palavra “copo” àquela
imagem guardada em sua cabeça, ele é capaz de buscar um copo quando lhe
pedem.
Repare se você e a maioria das pessoas que você conhece não são todas
como o meu José, principalmente no modo de lidar com a religião. O pessoal
que lê São Tomás de Aquino como se estivesse consultando um manual de
máquina de lavar é assim. Alguns até conhecem realmente umas teses
tomistas, mas são uns loucos que não têm vida. Outros — a maioria —
apenas fingem saber, quando, na verdade, fazem uma confusão danada e não
conseguem diferenciar uma caneca de um copo.
125
A PAPISA
Suponha que você tenha tirado um tempinho durante a noite para se recolher
e fazer silêncio e, neste tempinho, venha à sua mente o seguinte fato
ocorrido naquela semana: você deixou a cozinha uma zona, ou a toalha
molhada em cima da cama, e seu cônjuge reclamou disso.
126
Se você for uma dessas pessoas, talvez seja o caso de recorrer a um livro
para ajuda; mas um livro real, de verdade, com pontos para meditação.
Como você vai se tornando aquilo que reflete, se quiser ser reflexo de
generosidade, ou de humildade, ou ainda de temperança, busque uma leitura
rápida sobre esses temas.
Imagine que sua vida esteja uma bagunça e você não tenha horário para
nada. Existem livros excelentes sobre a ordem como virtude a ser cultivada.
Procure-os e leve-os consigo em seus momentos de silêncio.
Outras pessoas têm dificuldade para se lembrar das coisas que lêem. Nesses
casos, sugiro que o silêncio seja dividido em dois momentos: um de leitura e
um de reflexão daquilo que foi lido.
Para essas pessoas, cinco minutos não bastam, então que façam seis minutos
e meio. Não estou brincando, é isso mesmo: cerca de um minuto e meio de
leitura e cinco minutos de reflexão.
Veja bem: quando falo em “refletir”, não falo de atividade mental, mas de
deixar aquilo fermentar, crescer. O espelho é símbolo desse aumento. Ao pôr
um espelho em uma das
127
A PAPISA
Todo o mundo que trabalha no agronegócio sabe que não basta ter uma
fazenda, é preciso também um espaço livre para acomodar os frutos da
plantação. Esse lugar no qual guarda-mos os grãos se chama celeiro.
Com a alma, passa-se o mesmo. Você possui um espaço em sua vida onde
está crescendo trigo. Mas é preciso um “celeiro”, um espaço vazio para
armazenar as coisas que você colhe com o passar dos anos. Quando pára e
silencia, você está preparan-do seu celeiro, onde o ser das coisas e a
experiência mística do mundo ficam armazenados.
Há quem pense que experiência mística é algo como ver anjos, ouvir a voz
de Deus, operar milagres físicos; mas esse tipo de coisa só se consegue no
ápice da experiência mística. Se você mal consegue perceber as coisas mais
óbvias, que estão ao alcance dos seus olhos, que dirá ver anjos! Não queira
algo que você não pode ter. Se você ainda é um sujeito sem prática e não
sabe distinguir o que é bom do que é ruim, comece fazendo a experiência
mística que está à sua altura, com base nas coisas mais palpáveis do seu dia:
seu marido reclamando da cozinha suja, as dificuldades do trabalho, o tapa
que você deu injustamente em seu filho... Com mil anos de prática disso,
talvez você consiga ter a experiência mística de ver um anjo — se isso lhe
for dado.
gnose e magia
128
Joio e trigo são plantas parecidas que costumam crescer juntas, mas,
enquanto a semente do trigo é usada na fabricação do pão, a semente do joio
não serve para nada, é imprestável.
Portanto, quem tenta arrancar o joio antes da hora, acaba arrancando muito
trigo junto e pode acabar com o celeiro vazio.
çam juntos joio e trigo, o que presta e o que não presta, o que é justo e o que
é injusto, o que é bom e o que é ruim. Enquanto joio e trigo estão jovens,
você não será capaz de distingui-los; por isso, deixe que cresçam juntos;
separe-os depois. Do contrário, você jogará o trigo fora junto com o joio e,
mais tarde, não terá matéria-prima para fazer pão.
Se agora você está tentando fazer atividade mística, não fique com medo do
que é mau, porque só aquilo que for bom ficará registrado em você. Nada de
mau pode vir da atividade mística porque, metafisicamente falando, o mal
não existe, ele é ausência de bem, não tem substância em si, de modo que,
no final das contas, o que é mau não ficará guardado no seu celeiro; só
restará aquilo que é, e o que é, é bom.
A PAPISA
Há pessoas que não podem ouvir a palavra “gnose” que já ficam arrepiadas,
porque logo se lembram da árvore da ciência do bem e do mal, no livro de
Gênesis, a única árvore do jardim do Éden cujo fruto Adão não poderia
comer. “No dia em que dele comeres, morrerás”, disse Deus ao primeiro
homem (Gn 2, 17). No entanto, Eva foi seduzida e enganada pela serpente,
que lhe disse que, ao comerem do fruto, eles seriam como deuses e seus
olhos se abririam para o conhecimento. Adão e Eva acabaram, portanto,
desobedecendo a Deus e comendo do tal fruto. E foram expulsos do Éden.
Essas pessoas que se assustam com a palavra “gnose” têm pânico dessa
árvore e desse fruto. E têm certa razão, porque foi depois de comer dele que
Adão e Eva perderam a chance de continuar fruindo do estado perfeito de
justiça original.
Porém, se Deus proibiu Adão de comer do fruto dessa árvore, não o fez
porque ele
fosse mau em si, mas para que o homem, ao menos, nesta pequena coisa,
obedecesse a uma ordem tão-somente por ser dada por Deus. Assim é que
comer do fruto da mencionada árvore tornou-se um mal. Aquela árvore (...)
foi chamada de árvore da ciência do bem e do mal, não porque possuísse
uma força causadora de ciência, mas devido ao que aconteceu após ter sido
comido o seu fruto. Tendo-o comido, o homem aprendeu por própria
experiência a diferença que existe entre o bem da obediência e o mal da
desobediência. 17
Sabe quem disse isso? São Tomás de Aquino. Espero que ninguém o tache
de gnóstico.
Se você busca conhecer o bem e o mal do jeito que a serpente sugeriu a Eva,
o que você quer não é distinguir o que é bom do que é mau. Na verdade,
você é um soberbo que não sabe seu tamanho, que quer ser como Deus e ter
um conhecimento muito além da sua capacidade. Isso é realmente uma
desgraça!
17 AQUINO, São Tomás de. Compêndio de Teologia. Tradução de Dom
Odilão Moura. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1977, p. 111.
130
Mas não seja tonto de acreditar que buscar discernir bem e mal é errado, pois
isso é exatamente o que se faz na gnose.
Na mística, você prepara o celeiro (faz silêncio) para guar-dar os grãos (para
apreender o ser das coisas), enquanto deixa que cresçam juntos o trigo e o
joio. Quando trigo e joio estão maduros, você se torna capaz de ver as
diferenças entre eles e de separá-los (por meio da gnose, você aprende a
distinguir o que é bom e o que é mau). Por fim, você debulha o trigo, faz a
farinha e, com a farinha, o pão (você faz sua mágica: passa a agir com base
naquilo que aprendeu sobre o que é bom e o que é mau). A magia é a
depuração prática que se faz com o conhecimento que se adquiriu. Você tem
a experiência mística, você conhece, e você pratica.
“Mas eu tomei uma decisão, vi que não era a melhor coisa a fazer e, agora,
não posso mais voltar atrás”. Claro! Você tem uma vida, e não há como
“voltar atrás” na vida.
Encare o que vier daqui para a frente, sem repetir esse erro
131
A PAPISA
que, no final das contas, se tornou algo com o que você pôde aprender e
refletir.
Quando você vomita, precisa comer alguma coisa para tirar o gosto do
vômito, o gosto da ação irrefletida. Essa outra coisa, material e
simbolicamente, é o pão. É o pão que irá nutri-lo e limpá-lo ao mesmo
tempo. Se você finalmente aprendeu a separar joio de trigo, precisa agora
pensar em como colocar em prática esse aprendizado e conseguir, enfim,
fazer um bom pão.
Espelhos quebrados,
sepulcros caiados
Sem o olhar ajustado, sem os olhos polidos, sem um celeiro preparado, sem
a mínima noção da diferença entre trigo e joio, sem prática, de que servirão
as palavras do livro?
Começar direto pelo livro é receita para uma jornada fracas-sada. Se não
percorrermos a mística, a gnose e a magia, as verdades contidas no livro
escaparão à nossa percepção. Sem esse processo, nós nos cristalizaremos e
haveremos de nos tornar como que sepulcros caiados, apegados à letra da lei.
Verdadeiros livros ambulantes, mas completamente desconectados da
Verdade e incapazes de bem interpretar situações concretas e reais. Como
espelhos quebrados, nada será visto refletido em nós senão uns fragmentos
desconexos da realidade.
Imagine um sujeito que leu alguns livros sobre Teologia Moral. Ele entende
tudo sobre o assunto: sabe o que é pecado, o que são erros, o que são
virtudes morais... Ele é perfeitamente capaz
132
de fazer uma prova sobre o assunto e tirar uma boa nota; talvez consiga até
ser professor de Filosofia ou reitor de um Seminá-
rio. Ele entende dessas coisas, e por isso consegue escrever uns textos
bonitinhos na internet. Quando, porém, uma situação concreta se lhe
apresenta, ele apenas faz matar a Verdade no coração das pessoas, porque
está apegado à letra de uma lei morta, tal como um fariseu hipócrita, e assim
faz justamente porque está descolado da mística, da gnose e da magia.
O sujeito que somente lê livros não quer saber sobre a realidade, não se
interessa por ela. Tem, ao contrário, receio de sujar suas puras e limpas
mãozinhas e seu livro caso dela se aproxime demasiado.
Ora, o símbolo das mãos limpas já nos foi dado há dois mil anos. Houve um
sujeito na história cuja única intenção de vida era lavar as próprias mãos:
Pôncio Pilatos. Tendo a Verdade à sua frente — uma Verdade chagada,
aberta e pulsante, uma Verdade viva que era, ela própria, o caminho e a vida
—, Pilatos não a quis defender nem condenar: lavou as mãos.
Se você não suja as mãos com o sangue da verdade — e ele se nos apresenta
na vida —, você está preso à letra da lei: é um fariseu hipócrita. Nenhum dos
que forem lhe procurar sairão vivificados. Sairão, antes, oprimidos por
aquela assepsia de um Pilatos que lava suas mãos.
Há muitas pessoas assim por aí, cujo único ofício é manter as mãos
limpinhas. Não caia nesse erro.
133
A PAPISA
São quatro os sentidos que só podem se alimentar pelo pranto que limpa o
espelho, que ajusta o olhar: o sentido místico, o sentido gnóstico, o sentido
mágico e o sentido filosófico ou teorético — mas não se preocupe com este
último agora. Vá, antes, de sentido místico, gnóstico e mágico; ou seja, de
reflexão, de aprendizado e de prática. Só depois você conseguirá, talvez,
explicar suas reflexões para alguém e para si próprio. Só então você passará
ao domínio do livro, ao domínio filosófico.
A vida dos santos vira tradição também, vira livro, e isso é uma sabedoria
muito grande da tradição mística católica. As vidas dos santos são como
livros em que está reunida uma sabedoria enorme. Os santos são como
aquelas “cartas de Cristo” de que São Paulo falou aos Coríntios. Ele os
exortou que fossem como cartas reconhecidas e lidas por todos os homens e
escritas “não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de
pedra, mas em tábuas de carne, nos cora-
134
está em tudo polido, em tudo alimentado, alguém que tem reserva de trigo.
Ele tem a lei impressa em suas entranhas e inscrita em seu coração. Portanto,
se você quer saber como polir os olhos, como preparar o celeiro, como ter
sua reserva de trigo, como sair do domínio do livro, aprenda com os santos.
A IMPERATRIZ
137
138
A lâmina da Imperatriz, por sua vez, simboliza a vida tal como ela se nos
apresenta — não como mera operação mental, desvinculada da realidade.
139
A IMPERATRIZ
Somos livres!
Quando a criança ainda é muito nova, ela tem por operação básica rejeitar o
que lhe incomoda e aderir àquilo que não lhe incomoda. Até os dois anos, a
criança vive entre prazer e des-prazer; tudo nela se baseia nisso. Esse par é a
chave para entender tudo o que ela quer e faz. Se há muito barulho, o bebê se
incomoda e chora; se tem fome, ele se incomoda e chora; se a água do banho
está muito fria ou muito quente, ele se incomoda e chora; se nasce um dente
novo, ele se incomoda e chora. Quando cessam a dor e o incômodo, é
comum que cesse também o choro. A vida infantil opera, enfim, no binômio
incômodo-prazer.
140
Certa vez, eu estava nos Estados Unidos, em uma festa de virada do ano.
Havia ali um cachorro que observava atentamente a movimentação da
criançada que estava ali pela sala. Em um dado momento, ele começou a
circular o recinto, em círculos concêntricos cada vez menores, de tal modo
que, depois de alguns minutos, as crianças estavam todas agrupadas no
centro da sala. Era um cão pastor.
Um cão pastor pastoreia ovelhas e, bem, para ele, crianças e ovelhas são
mais ou menos a mesma coisa. Por isso, o cão se viu impelido pela realidade
a pastorear aquelas criancinhas. Ele não tinha liberdade, mas somente agiu
diante da realidade porque foi chamado a isso por uma faculdade sua, a que
damos o nome de instinto.
O ser humano, pelo contrário, não tem instintos como um animal, porque
não existe algo na realidade que nos chame e que nos leve a agir
necessariamente de certo modo.
141
A IMPERATRIZ
Se você pensar somente em pulsões, estará frito, pois a pulsão da qual fala
Freud aposta que o instinto está na dianteira das nossas ações, quando, na
realidade, não é isso o que ocorre.
Outro exemplo. As companhias aéreas precisam avisar uma coisa que, para
bichos, jamais seria necessária: antes de ajudar o viajante ao lado, primeiro
ponha você sua máscara de oxigênio.
Isso não chama muito a atenção? Se houver uma pessoa amada ao seu lado,
seu primeiro “impulso” será o de colocar a máscara nela primeiro! A
liberdade que o amor nos confere leva-nos a fazer exatamente o contrário
daquilo que um instinto de sobrevivência nos levaria a fazer.
nossas ações.
142
Se você ainda não está convencido disso, pense então no fe-nômeno dos
mártires religiosos, que morreram por sua fé. Que instinto de sobrevivência é
esse, que permite que um garotinho de catorze anos, como São José Sánchez
del Río, mexicano martirizado em 1928, prefira a morte a negar sua fé em
Cristo? Ele não aceitou barganha alguma para que lhe poupas-sem a vida;
padeceu várias humilhações e sofrimentos físicos: bateram-lhe, cortaram-lhe
as solas dos pés, e obrigaram-no a caminhar descalço sobre o sal, tendo já os
pés em carne viva. O
143
A IMPERATRIZ
os homens, todos estariam transando o tempo todo, mas não é bem isso o
que acontece; pelo contrário, o problema de muitos casamentos é exatamente
a falta de sexo, o fato de um querer e o outro não, de um estar pronto e o
outro não.
Quando alguém lhe aparecer dizendo: “A minha vida acabou. Não tenho
escolha. Não há mais o que fazer”, não acredite.
É a isso que Viktor Frankl se referia quando disse que a única coisa que trata
é o terapeuta com personalidade.
O terapeuta com personalidade não dá exemplo de nada: ele vive de tal
modo a deixar claro, para aqueles que estão à sua volta, que é possível ser
humano. Diante de um desesperado, o sujeito com personalidade será aquele
responsável por dizer:
“Não! Você está completamente errado! O mundo não é isso, a vida humana
não é isso. ” E então aquele indivíduo padecente, que estava cristalizado
como um chihuahua, percebe que é possível ser humano. E não há tesão
maior no mundo do que ser gente.
Não amadurecer é levar a vida como um chihuahua; e ainda que você queira
muito viver assim, ao fim e ao cabo, não conseguirá, pois é impossível matar
esse senso chamado liberdade. O
O que vemos, contudo, é uma grande parte dos seres humanos que parece
viver como chihuahua, mas nenhum deles o é de fato. Em algum momento,
todos são confrontados com certas
144
Você quer ser feliz? Então faça bom uso daquilo que está no centro da sua
humanidade: sua liberdade. Mas veja bem: para nós, a liberdade não é um
conceito abstrato; ela é uma escolha que fazemos a cada instante, entre
prestar e não prestar aten-
ção, entre amar e não amar, entre servir e não servir, entre estar e não estar.
Essa é a liberdade que nos é possível.
145
A IMPERATRIZ
Você se lembra do que falei sobre as vidas dos santos, que são como que
“livros vivos”? Pense também na sua vida como um livro vivo.
Quando você olha para a vida do vizinho e fala que a grama dele é mais
verde do que a sua, você só o diz porque está contando a vida dele sob a
forma de uma história, e assim ela parece fazer mais sentido do que a sua.
146
Nunca lhe aconteceu de olhar para um vilão do cinema e pensar: “Que baita
vida”? Ao fazê-lo, você não está simplesmente sendo atraído pela maldade
do personagem, mas está se deixando encantar por uma grande história. É
como se você exclamasse: “Caramba! Isso é que é uma história de vida, que
vale a pena ser vivida. Eu também queria viver uma baita história! ”
Quando não sabemos contar nossa própria história, até uma história
horrorosa como a do Pablo Escobar — um sujeito que explodia carros e
matava gente inocente, que morreu em cima de um telhado, como um rato
— pode parecer mais interessante do que a nossa. Na verdade, como dizia
Georges Gusdorf, qualquer história humana é interessante, desde que bem
contada.
Quando você pensa que o seu vizinho ou o Pablo Escobar têm uma vida
melhor do que a sua, o que acontece é que, sendo essas pessoas externas a
você, ao tentar entendê-las ou falar sobre elas, das duas uma: ou você fala
sobre um aspecto externo físico claro e muito marcado (“Meu vizinho é
muito feio”, “Essa atriz é muito bonita”, “Aquele influenciador digital tem
uma voz irritante”), ou você faz uma projeção narrativa.
Como o aspecto físico não consegue enganar por muito tempo, você acaba
criando alguma história mais ou menos elaborada sobre aquela pessoa. É o
que fazem comigo a todo o tempo. Como apareço diariamente no Instagram
para um grande número de pessoas, sempre há gente tentando contar
147
A IMPERATRIZ
alguma história sobre mim, histórias essas que, no mais das vezes, resumem-
se a rótulos: “O coach católico”, “O charlatão”,
“O gênio salvador de almas”, “O guru”.
Quando falam muito sobre você, é preciso ter o cuidado de não se deixar
afetar demasiado por isso. A pessoa que se entris-tece muito quando falam
mal dela, em geral também se alegra muito quando a elogiam. Quando ela se
deixa levar por uma ou outra coisa, ela permite que outros escolham o eixo
narrativo da sua própria vida. Não se lhe aplica a famosa frase do Dom
Quixote de Cervantes: “Yo sé quién soy” (“Eu sei quem sou”).
Enquanto você não souber declarar quem é, sua vida, de fato, será uma
caravela sem leme e você irá para onde o vento soprar.
Para evitar que sua vida se converta nesse barco desgovernado, tenha bem
claro quem você é; e para isso, você precisa dominar a arte de narrar a
própria vida.
Vou lançar uma pergunta agora, e quero que você reflita de verdade sobre a
resposta:
148
Veja bem: não é para repassar um filme dos seus tantos anos de vida, com
tudo o que lhe aconteceu, porque isso também não seria a história da sua
vida, senão apenas as coisas que lhe aconteceram. É preciso saber selecionar
o que incorporar ou não ao seu eixo narrativo.
Em que medida seu almoço de hoje serve para contar quem você é? Em que
medida a dor de cabeça que você teve há três horas entra na seleção da sua
história? E quanto àquele moto-boy que passou rápido pelo seu carro e
arrancou seu retrovisor, fazendo-o perder quatro horas do seu dia pensando
só naquilo? Em que medida esse evento tem a ver com quem você é?
Alguns responderão: “Italo, isso tem tudo a ver com quem eu sou. ” Outros,
um pouco mais sensíveis, dirão: “Não sei se eu deveria escolher essas coisas
para integrarem meu eixo narrativo, porque, afinal, não sei se elas
importam ou não. ”
Quem, então, é você? Conte-me sua história, conte-me quem você é. Se você
não for capaz de fazê-lo em poucas frases, então você ainda não tem eixo
narrativo.
Pense bem. Aposto que você é capaz de narrar a vida de outras pessoas em
poucas frases. “Meu vizinho estava ferrado na vida, entrou na Hinode e hoje
tem um Land Rover. ” Eis uma história curta, com começo, meio e fim, com
personagens, clímax e desafio: o sujeito estava ferrado, conheceu as
testemunhas do marketing multinível e ganhou uma Land Rover porque
virou
Agora, se eu lhe pedisse para me contar a sua história, mais ou menos como
você contaria a desse vizinho, você provavelmente logo no início
confessaria: “Desse jeito, eu não consigo. Soa falso, artificial. ” Aí é que
está o ponto.
149
A IMPERATRIZ
Veja, com todos esses exemplos, como o sujeito religioso tem dificuldade na
hora de forjar um eixo narrativo. Eu entendo que ele quer ser uma pessoa
boa, mas, quando leio algo assim, a única coisa em que consigo pensar é que
ele quer ser uma pessoa boa dentro da religião. O problema é que, como não
sabe contar a própria história, logo ele verá as vidas de outras pessoas como
mais intensas, mais interessantes, mais gostosas — até aquelas que, segundo
seu entendimento, são imorais. Daí surgem as neuroses.
Por isso é que devemos parar de julgar os outros. Não conhecemos a história
das pessoas, sabemos pouquíssimo sobre elas; não obstante, hoje, as pessoas
religiosas, em sua maioria, se entregam ao exercício diário de julgar os
outros. Uma
150
senhora olha para a moça que usa decotes e roupas sensuais e, internamente,
narra a história dela com base nas poucas informações de que dispõe. Depois
de contada a história, aquela vida passa a exercer certo fascínio sobre a
senhora, mesmo que esta se considere “a religiosa” e veja na outra “a
imoral”.
É preciso matar esse julgamento interior, porque ele cria um tipo de neurose,
deixa as pessoas invejosas, secas, frustradas, sem esperanças de que isto que
pensam ser religião seja realmente caminho de salvação. É o que acontece
com 99% dos religiosos hoje. Como não sabem o que é a história de uma
vida humana, de uma alma, eles se apegam a símbolos externos — que,
embora não sejam ruins, também não são história. E quanta desesperança
brota da incapacidade de contar a própria história!
Largando as fraldas
Nossa vida cognitiva ativa tem duração muito curta. Ela não começa aos
dois ou três aninhos, quando começamos a contar as primeiras historinhas,
mas sim por volta dos treze anos, quando, pela primeira vez, pensamos:
“Caramba! Eu tenho uma função no mundo. O que será que eu deveria estar
fazendo? ”.
151
A IMPERATRIZ
Por que nós, adultos, não brincamos mais? Quando éramos crianças,
adorávamos brincar, mas em certo momento da vida deixamos as
brincadeiras de lado e passamos a considerar que servimos para alguma
coisa, e que deveríamos contar uma história própria, escrever o nosso livro.
É bem nessa fase, dos quatorze aos dezesseis anos, quando tateia em meio a
seus pequenos conflitos, que chega ao jovem uma questão mortal,
castradora: “Marque um X no curso para o qual você pretende prestar
vestibular. Você será contador, advogado, administrador, bioquímico,
geógrafo, psicopedagogo, jornalista, designer industrial ou técnico em
eletrotécnica? ”
De qualquer modo, esse jovem um dia se pergunta pela primeira vez: “O que
eu deveria ser? O que eu deveria fazer? Só sei que não brinco mais de
casinha. ”
152
O jovem então nota que não tem mais uma vida ficcional e infantil, e que
precisa contar uma história real. Mas ele se frustra no primeiro dia, porque
não sabe se fez ou não o que tinha que fazer. Frustra-se também no segundo.
Até que, no terceiro, ele não completa mais essas micro-vidas chamadas
dias, não perfaz a vida cotidiana, porque não sabe que história é essa que
está contando.
Mesmo o jovem mais ou menos bem educado, que escolhe ser bom, que tem
religião e que deseja viver eticamente, acaba se apegando a símbolos
externos, a peripécias, e vai pautando sua vida em alcançar essas coisas
externas, pois tudo assume um sem-sentido monstruoso e interminável. Não
basta querer ter virtudes de maneira genérica; virtudes, em si e tomadas
genericamente, não são nada. Há virtudes que, para uns, serão mais fáceis de
cultivar, para outros, mais difíceis; no caso concreto do nosso rapazinho,
será preciso dedicar mais atenção a certas virtudes que a outras. E há alguns
vícios e defeitos contra os quais ele terá de lutar por toda a vida, porque, do
contrário, eles poderão destruí-lo.
Ele poderá, afinal, chegar ao final de um dia e dizer: “Eu fui muito pontual
hoje. Estou de parabéns. ” Beleza, mas o que isso tem a ver com tudo o
mais? Em tese, ser pontual é melhor do que não ser, mas, dependendo do
caso, apegar-se demasiado à pontualidade é péssimo, porque significa matar
vários elementos de caridade, de atenção ao outro, de relaxamento, de
“presença” em dado lugar. Na maioria dos casos, cinco ou dez minutos para
cá ou para lá não fazem qualquer diferença. Lutar para “ser pontual” pode
significar lutar por algo que, talvez, não tenha nada a ver com a pessoa.
E para saber quais dessas coisas têm maior ou menor relevância em sua
história, a primeira pergunta que você deve se fazer é: “Qual é o meu eixo
narrativo? ”
153
A IMPERATRIZ
“É... Dá para viver. Não vou me matar, mas já sei o que sobrou para mim:
evitar a dor.” Com essa atitude, ele regressa aos dois anos de idade! Embora
tenha vinte e cinco, ele não acredita mais em uma coisa chamada
“narrativa”; ele perdeu sua capacidade de narrativa ficcional, porque não é
mais o Batman, o mocinho, o bandido, o arquiteto ou o médico de que
brinca-va quando criança. Assim é que ele recua para aquela vidinha de
bebê, orientada pelos pólos de prazer e dor. Volta a chorar quando a
barriguinha está vazia, quando está frio, quando está calor, quando o
brinquedo quebra...
E essa tragédia se dá justamente dos vinte e cinco aos trinta e cinco anos, a
década na qual tudo acontece: a consolidação da carreira (ou a mudança de
profissão), o casamento, a vinda do primeiro filho, uma separação, a vinda
dos outros filhos, a descoberta de uma doença.
Alguns dirão: “Esse pessoal tem a vida muito fácil. Queria ver se sofressem
mesmo. ” Que nada! Pense em muitos dos jovens da
154
A doença tampouco é uma cura milagrosa para a pessoa imatura e que não
vê sentido na vida. Quantos doentes só fazem reclamar e reclamar!
Sofrimento não é cura milagrosa.
Uma doença pode levar alguém a ver sentido na vida, mas também pode
torná-lo mais amargo.
Mas voltemos ao sujeito que, tendo passado dez anos questionando-se sobre
sua história, chega aos vinte e cinco anos em uma desesperança brutal. Não a
declara, contudo, porque os prazeres do mundo gourmetizado servem-lhe de
anestesia. “Este mundo não é tão ruim. Dá para aproveitar. As meninas
estão todas querendo dar, há muitas comidas gostosas, boas bebidas e posso
sempre tomar um banho quente para relaxar à noite. Quando estiver muito
calor, posso ir ao shopping curtir um ar-condicionado. Juntando algum
dinheiro, posso fazer algumas viagens, conhecer o mundo… Não tenho
razão para reclamar.
A vida não deve ser tão ruim, eu é que não devo estar sabendo fazer as
coisas direito. ”
Ao olhar o mundo e dizer que ele não é tão ruim, cria-se outra dissonância:
este mundo não parece ser tão ruim, mas, ainda assim, as pessoas não sabem
o que estão fazendo aqui.
155
A IMPERATRIZ
Caindo na real
Mesmo que ele se hospede em um hotel 5 estrelas, não terá ali o aconchego
de um lar. E o hotel provavelmente estará em manutenção (porque eles
sempre estão). A água do chuveiro não estará suficientemente quente, a
bagagem será extraviada, a carne não virá no ponto desejado, a comida não
agradará muito, ele brigará com a namorada por causa de uma boba-gem…
Ele pode, então, desejar ardentemente ter um carrão, e pode até acabar
arranjando um. Ao cabo de uns meses, porém, já não gostará mais tanto do
veículo. O possante não será tão bom quanto ele pensava que seria, o seguro
será mais caro do que ele imaginava e a franquia, então, será um absurdo.
Ele logo se arrependerá de ter gastado tanto dinheiro.
Isso acontece, porque essa forma de viver e contar a própria história não é
decente, não é digna, e é incapaz de dotar uma vida de sentido, porque é
simplesmente impossível. Viver a vida na base do comer, beber, trepar e
repetir tudo de novo é uma grande enganação que não preenche a vida de
ninguém.
Sempre haverá água gelada no chuveiro, um criado mudo para dar uma
topada com o dedo, um sinal vermelho quando se está atrasado, um extravio
de bagagem com todas as suas
156
compras, uma carne nada barata fora do ponto, uma briga de namorados, um
funcionário de má vontade, uma infecção in-testinal, uma tempestade, uma
multa de trânsito…
Este mundo, por definição, não oferece elementos para que se articule uma
história nessa base simplória. Se o argumento de sua vida for “aproveitar o
que é gostoso”, sua história se frustrará dia após dia. Por essa e outras
razões, não me canso de repetir a máxima: “trabalhe, sirva, seja forte e não
encha o saco”.
Aqueles que são ou tentam ficar fortes fisicamente, por exemplo, sabem que
o processo não é nada gostoso. Não é gostoso ir para a academia, não é
gostoso fazer dieta, não é gostoso gastar dinheiro com suplementação...
A maior parte dos conflitos domésticos acontece por causa de coisas tão
pequenas como uma maldita sopa da qual não se quer abrir mão. É o marido
que quer o ar-condicionado a 21°C
Todo o mundo quer o prazer e o conforto para si e não está disposto a abrir
mão de nada, mas é impossível conseguir uma vida absolutamente privada
de dor, sofrimento e frustração.
157
A IMPERATRIZ
É por isso que hoje existem uns estabelecimentos malucos que servem, ao
mesmo tempo, pizza, comida japonesa e churrasco.
na próxima oportunidade: “Podemos comer a pizza que você quer hoje, mas,
na próxima, comeremos o churrasco que quero.”
Ora, minha irmã não me deu a sopa para ter um direito na próxima. Não
haverá próxima, porque eu não cozinho sopa.
Ela deu porque quis; não por educação, mas por generosidade.
crônicas e autobiografias
Quando pensa em narrar sua história, aposto que a primeira coisa que vem à
sua cabeça é escrever um diário, mas essa não é a única forma possível. Há
também outras ferramentas que podem ser utilizadas: os auto-retratos, as
memórias, as crônicas e as autobiografias. Todas elas têm em comum o
seguinte: são escritas em primeira pessoa.
Não sei se você alguma vez já prestou alguma prova para ingresso em curso
superior (vestibular ou ENEM), mas, se já, então você sabe que havia uma
regra de ouro para fazer uma redação: jamais deixar escapar um “eu”, um
“eu acho”, um “eu penso” nos textos. A impessoalidade era obrigató-
158
Seu professor de redação, o sujeito que deveria ter lhe ensinado a contar uma
história, a descrever pessoas, animais, paisagens e cenas, a comunicar-se por
meio de uma carta, provavelmente não lhe ensinou a escrever fábulas,
contos, crônicas, relatos ou diários, mas apenas a escrever em uma única
moda-lidade: o texto dissertativo-argumentativo.
Há uma série de autores que contam suas próprias histórias sob a forma de
memórias. Já adianto: isso pode ajudar a dar alguma clareza, mas não
funciona com tanta eficácia. Há, além disso, coisas a respeito da memória
que podem ser grandes vilãs em nossa tentativa de instalação em um eixo
narrativo, como, por exemplo, os esquecimentos e as obsessões.
159
A IMPERATRIZ
É como que uma foto sua, tirada no dia de hoje. Ele pode ser cômico e/ou
real. Vou lhe dar um exemplo: Graciliano Ramos fez um auto-retrato, a que
chamou “Auto-retrato aos 56 anos”.
É cômico, porque, tendo-o escrito aos 56 anos, ele diz esperar “morrer com
57”. E apresenta detalhes completamente desnecessários: colarinho 39,
sapato 41, altura 1,75m... Tudo isso seria muito útil, se lhe quiséssemos dar
um presente, mas dados tais não dizem muito sobre quem é ele. Eu rio toda
vez que leio esse texto, porque é de uma tremenda sutileza cômica.
Nesse auto-retrato, ou ele fala sobre coisas externas (“altura 1,75”, “sapato
n.º 41”, “colarinho n.º 39”, “usa óculos”, “meio calvo”, “só tem cinco ternos
de roupa, estragados”) ou faz peripécias. Diz que, “quando [foi] prefeito”,
“soltava os presos para construírem estradas”. Beleza, mas onde isso se
encaixa? Antes ainda, ele fala: “Sua leitura predileta: a Bíblia”, mas logo em
seguida manda um “É ateu”. As idéias não se concatenam.
160
Seria como dizer: “Sou filho de Deus, mas me masturbo nas horas vagas”,
ou então “Sou filho de Deus e quero servir a boa Igreja, mas gosto de fazer
umas fofoquinhas, afinal ninguém é de ferro”.
Ora, Graciliano, então você soltava presos, mas tentemos ser um pouquinho
mais precisos. Por que raios você os soltava?
Quais pontos de sua história estão integrados, e quais estão desconexos? Não
é à toa que você, aos 56, escreveu que queria morrer aos 57. Até eu desejaria
morrer logo se, a essa idade, não soubesse contar minha história, se tivesse
um auto-retrato fragmentado e sem argumento como esse.
Mas esse é o ponto mais alto a que as pessoas chegam hoje quando se
dispõem a contar sua própria história: a tentativa de um auto-retrato.
Provavelmente é como você começará, e então verá que sua história ainda
está muito fragmentada. Por isso é que eu recomendo, em meus cursos, o
diário de situação
Outro modo de contar uma história, não raro escolhido por pessoas
obsessivas, é a crônica, uma narrativa curta, cujos temas são situações e
fatos do cotidiano, muitos dos quais corriqueiros. Há uma crônica genial de
Machado de Assis, na qual ele noticia a morte do sineiro João, que repicava
os sinos da Glória. Faz então, uma breve nota biográfica do falecido: 04 de
novembro de 1897
Ouvi muita vez repicarem, ouvi dobrarem os sinos da Glória, mas estava
longe absolutamente de saber quem era o autor de ambas as falas. Um dia
cheguei a crer que andasse nisso eletri-cidade. Esta força misteriosa há de
acabar por entrar na igreja e já entrou, creio eu, em forma de luz. O gás
também já ali se estabeleceu. A igreja é que vai abrindo a porta às
novidades, desde que a abriu a cantora de sociedade ou de teatro, para dar
aos solos a voz de soprano, quando nós a tínhamos trazida por D. João VI,
sem despir-lhe as calças. Conheci uma dessas vozes, pessoa velha, pálida e
desbarbada; cantando, parecia moça.
161
A IMPERATRIZ
O sineiro da Glória é que não era moço. Era um escravo, doado em 1853
aquela igreja, com a condição de a servir dois anos. Os dois anos acabaram
em 1855, e o escravo ficou livre, mas continuou o ofício. Contem bem os
anos, quarenta e cinco, quase meio século, durante os quais este homem
governou uma torre. A torre era dele, dali regia a paróquia e contemplava o
mundo.
João não sabia de mortos nem de vivos; a sua obrigação de 1853 era servir a
Glória, tocando os sinos, e tocar os sinos, para servir a Glória, alegremente
ou tristemente, conforme a ordem. Pode ser até que, na maioria dos casos, só
viesse saber do acontecimento depois do dobre ou do repique.
Pois foi esse homem que morreu esta semana, com oitenta anos de idade. O
menos que lhe podiam dar era um dobre de finados, mas deram-lhe mais; a
Irmandade do Sacramento foi buscá-lo a casa do vigário Molina para a
igreja, rezou-se-lhe um responso e levaram-no para o cemitério, onde nunca
jamais tocará sino de nenhuma espécie; ao menos, que se ouça deste
mundo.18
162
Não tenho nada contra o Instagram. Ele serve como um exercício, como um
treinamento para o instinto narrativo. Ao escrever posts para o Instagram,
você tenta contar uma história — e as pessoas desorientadas desejam, em
algum grau, conhecê-la.
nicas não são as formas mais adequadas para que você construa seu
argumento vital. Vimos também que um diário ajuda bastante. Mas a melhor
maneira de narrar sua própria história é por meio da autobiografia.
163
A IMPERATRIZ
dor oniscient e”, eu não poderei pensar senão que você é Santo Agostinho,
pois essa é a autobiografia dele.
Uma autobiografia, por outro lado, só se pode iniciar depois de mil dias
vividos com sentido, quando se tem uma personalidade madura e viva, que
torna possível contar uma história coerente, de quem encontrou seu
argumento vital, de quem atrai, convence, muda a vida dos outros.
Todo ser humano tem um desejo profundo de dizer “eu”, de viver e contar a
própria história — e não a do vizinho, a da mãe, a do personagem da novela.
Esse desejo não deve ser entendido como uma forma de egoísmo, pois é
legítimo e necessário ao amadurecimento.
Quando uma pessoa não sabe qual seu argumento vital, ela não consegue
dizer “eu”, não vive a própria vida e segue sendo personagem secundário da
vida dos outros. Ela se coloca na periferia de si e da sua existência, quando
deveria estar no centro. E a primeira e óbvia conseqüência disso é passar a
achar que todo o mundo lhe deve tudo.
164
Sei que é muito mais confortável colocar a culpa no outro, dizendo coisas
como “não nasci em berço esplêndido”, “meus pais não me davam atenção”,
“estudei em escola pública”, “meu professor é um carrasco”, “os cuidados
da casa e com os filhos não me permitem cuidar de mim mesma”, mas essa
maneira de ver as coisas dá-
Olhe para sua história. Se você reclama o tempo todo, se sente que o mundo
lhe deve tudo o tempo todo, se acha que as coisas que lhe acontecem são
injustiças, se espera que o Estado, a Prefeitura, seu pai ou seu patrão lhe
resolvam todos os problemas, então você não tem um argumento vital.
165
A IMPERATRIZ
As quatro narrativas
Muita gente entende este mundo como sendo meramente material. Talvez
você seja uma dessas pessoas — ou conheça algumas dezenas delas. Elas
pensam nas situações comuns de seu cotidiano e enxergam ali apenas a
materialidade das coisas.
166
não aconteceu. O charuto ainda não está queimado e o isqueiro nem sequer
está com a chama acesa.
Analisemos com calma essa operação.
Quando quero entrar em algum cômodo, minha mão vai direto à maçaneta
para abrir a porta. A maçaneta não está gi-rando ainda, mas há algo em mim
que me permite olhar para as coisas materiais e captar a essência, a natureza
delas. Como vimos anteriormente, ao tratar da lâmina do Mago, além de sua
“causa material”, uma maçaneta tem também uma “causa final” (serve para
abrir portas), uma “causa eficiente” (quem fez a maçaneta) e uma “causa
formal” (uma essência, algo que a faz ser uma maçaneta e não outra coisa
qualquer).
167
A IMPERATRIZ
21 Então quer dizer que quando vejo, por exemplo, um poste na rua, eu
imediatamente reconheço sua essência (ou quididade) e guardo esse conceito
geral e abstrato em uma realidade paralela, em um mundo das idéias? Não!
Quando reconhecemos a essência (ou quididade) de uma coisa material, o
que apreendemos não é um conceito geral que não tem correspondência
alguma na realidade sensível. Se assim fosse, nós teríamos uma dificuldade
tremenda para abstrair o universal da matéria individual, para reconhecer
que aquela longa coluna de concreto é um poste e compartilha com outros
postes algumas características e possibilidades. Na realidade, não existe uma
essência separada das circunstâncias concretas.
Ao ver um cachorro na rua, não abstraio dali uma mera idéia geral de
cachorro, separada da realidade concreta e individual; o que acontece é que
eu percebo uma “es-sência” (nesse caso, uma cachorridade) naquele ente
concreto e particular. Posso apontar para o animalzinho e dizer a meu filho:
“Veja, filho, isto é um cachorro. ” Ao fazê-lo, estarei dizendo que esse
cachorrinho em particular compartilha com todos os outros cachorros uma
série de possibilidades; que ele tem uma “essência” que não é apenas uma
fórmula lógica, mas uma fórmula que faz parte da própria existência daquele
cão em particular — e de todos os outros cães; e que ele é o que é, e não é
uma outra coisa (ou seja, não é um elefante, nem uma espada, nem um bicho
de pelúcia).
168
A realidade não pode ser apenas material; ela é tudo quanto você está vendo
que é, e tudo quanto poderia ser.
a narrativa súdrica
Para descobrir qual seu argumento vital, qual sua vocação neste mundo, é
fundamental conhecer os cenários possíveis para a sua história. De que
cenários estou falando? Você logo verá.
Seu argumento vital será escrito em algum lugar, que é onde sua história se
desenrolará. Você quer que ela aconteça no mundo material ou no mundo de
significados espirituais?
Uma vida que tem como cenário o quadrante inferior esquerdo, ou seja, o
quadrante do mundo material e do olhar subjetivo, é a vida daquele primeiro
eixo narrativo imoral e indigno de que já falei. Para a pessoa que nele vive, o
mundo não
169
A IMPERATRIZ
Todos os desejos que surgem quando você escolhe viver nesse quadrante
resumem-se a evitar o sofrimento e procurar o prazer.
Farei uma analogia com as castas hindus que, embora re-presentem uma
organização da sociedade indiana, podem ser também compreendidas como
possibilidades humanas, que variam conforme as motivações centrais da
vida de cada um.
Função
Presença
Fundo Espiritual
Olhar
Olhar
objetivo
subjetivo
Mundo material
170
Não é difícil sair desse quadrante, e o ajuste pode ser feito em um dia. Basta
reconhecer que seus objetivos principais são indignos de um homem e
decidir contar uma história diferente.
É possível, porém, que uma pessoa goste dos prazeres deste mundo, da boa
comida, de uma casa bacana, de carrões, e que veja isso a que chamei de
“mundo espiritual” como uma coisa muito distante, tudo isso sem, contudo,
levar uma vida indigna. É o caso daqueles que têm como cenário para suas
narrativas de vida o quadrante inferior esquerdo, o do
171
A IMPERATRIZ
mundo material sob um olhar objetivo. Nesse caso, trata-se de uma vida
decente e digna, uma vez que o indivíduo olha para as coisas deste mundo
objetivamente, com consciência de que elas têm valor em si mesmas e não
na medida em que o afetam.
Este segundo eixo narrativo é o eixo dos serviçais, dos vaixás. Com
serviçais não me refiro a profissões específicas como garçom, doméstica,
engraxate ou camareira. E com vaixás não me refiro à casta dos
comerciantes — lembre-se de que estou fazendo uma analogia com as
castas hindus.
Refiro-me, antes, a quem quer que tenha como motivação principal de vida
a prosperidade e dedique-se a servir os outros e ser-lhes útil de alguma
forma.
Se você está “colado” a este mundo, precisa aprender a fazer alguma coisa
direito. E não algo que lhe sirva apenas para satisfação pessoal, mas que
faça bem para outras pessoas. Só então é que a estabilidade deste mundo
começará a aparecer diante de seus olhos, e só então será possível
completar um dia — pois o serviço tem um valor em si mesmo.
172
Função
Presença
Fundo Espiritual
Olhar
Olhar
objetivo
subjetivo
VAIXÁS
SUDRAS
Mundo material
Se, ao final do dia, ele não tiver conseguido servir ninguém, ainda assim
aquele dia terá feito sentido, porque o vaixá sabe que está vivendo uma
história possível. Ao final do dia, ele ao menos terá sobre o que falar, seja
de um sucesso, seja de uma tragédia. Refletindo sobre as experiências bem
ou mal sucedi-das, terá meios para operar melhor no dia seguinte.
O problema de viver uma vida apegada ao mundo material é que você pode
confundi-la com a vida de um bicho. Pode pensar: “Vou expandir território,
fazer um ninho e cuidar dos filhotes. ”
Ao final da sua vida, você poderá fazer a terrível constatação de que viveu
como uma abelha, embora seja um ser humano.
173
A IMPERATRIZ
Animais também servem uns aos outros, mas com um serviço que não
orienta o outro a dizer “eu”.
-frutti! ”. Quando fui me sentar na cadeira, vi que ela estava toda vomitada.
Imediatamente aquele aroma de tutti-frutti foi se convertendo em um odor
azedo de vômito, e percebi
174
Um rapaz do medievo poderia pensar: “Não me basta ter bens aqui. Isso
não faz sentido. Quero ser um cavaleiro, um nobre.” Ele então se
inscreveria na escola de cavalaria, onde seria testado e treinado por cerca de
dez anos, carregando armaduras e espadas para um cavaleiro. Ao cabo
desse período, se tornaria ele próprio um cavaleiro e iria para a guerra,
sacrificando-se pelos demais. Depois de dez anos desenvolvendo seu
argumento vital, ele teria uma autobiografia: “O objetivo da minha vida é
ser leal, nobre, justo e digno. ”
175
A IMPERATRIZ
A realidade dos vaixás está muito distante daquela dos sudras. Se passar de
sudra a vaixá não exige muito mais do que um movimento da vontade,
passar de sudra ou vaixá a xátria é um salto tremendo — é saltar de um
quadrante material para um imaterial, transcendente. Está pensando em dar
a vida por alguém agora? Bem, se quiser tentar, mande brasa, mas se você
não estiver, por exemplo, na Academia das Agulhas Negras ou no Corpo de
Bombeiros, não tente fazê-lo. (Estou falando sério. Essa é uma
recomendação clínica.)
Um xátria faz o que faz mesmo que isso lhe traga muitos prejuízos. Ele leva
uma facada, perde o sossego, aceita que todos falem mal de si, mas
continua cumprindo seu dever transcendente, vivendo por um ideal elevado.
Quem não consegue dar esmola ou fazer jejum, por exemplo, jamais poderá
estar nesse quadrante. O xátria faz jejum e dá esmola tranqüilamente,
porque entende que essa é a pauta de sua vida. Um sudra, porém, vê nessas
práticas somente sofrimento e dor (deixar de comer e esvaziar o bolso são,
para ele, coisas repulsivas). O serviço, a doação, a abstinência e o jejum
doem, e é por isso que o sudra os evita.
176
Cabe lembrar que, embora aqueles que não praticam a esmola e o jejum
com certeza não podem estar nos quadrantes superiores, nem todos os que
dão esmola e fazem jejum estão nesses quadrantes. Ser um xátria também
não significa abrir mão de quaisquer prazeres e confortos deste mundo ou
deixar absolutamente de buscar o bem da própria família ou clã. O
que diferencia o xátria dos demais é ter como motivação principal, como
argumento vital, esses ideais elevados que mencionei.
Se você quer saber o que é ser um xátria, leia uma obra como a “Ilíada” de
Homero, que está repleta deles: Diomedes, Ulisses, Aquiles, Ájax, Heitor e
tantos outros heróis homéricos são xátrias.
A “Ilíada” nos mostra ainda como um xátria pode estar cer-cado de bens
materiais, privilégios e regalias, embora não seja isso o que o define. Os
lícios Glauco e Sarpédon, por exemplo, têm clara consciência de que, se
têm os privilégios que têm, devem se empenhar com valentia e dignidade
no cumprimento de sua obrigação: “Por que somos ambos honrados na
Lícia com os primeiros lugares nas festas, assados e vinho sempre
abundante, e os do povo nos vêem como a deuses eternos? (...) Por isso
tudo nos cumpre ocupar na vanguarda dos Lícios o posto de honra e estar
sempre onde a luta exigir mais esforço, para que possa dizer qualquer Lício
de forte armadura: ‘(...) É bem grande o vigor que demonstram, quando na
frente dos nossos guerreiros o imigo acometem.’”22
Em outro momento da epopéia, quando alguns soldados gregos, antes
mesmo de o combate ter terminado, começam a pilhar os cadáveres dos
adversários derrotados, o sábio ancião Nestor brada que parem de o fazer,
pois, para o guerreiro, o dever deve vir em primeiro lugar: “Que ninguém se
retarde pilhando os espólios para levar às naus o quanto possa. Vamos,
primeiro, liquidar o inimigo. Depois, com calma, despiremos, no plaino, os
cadáveres jacentes.”23
177
A IMPERATRIZ
Função
Presença
Fundo Espiritual
BRÂMANES
XÁTRIAS
Olhar
Olhar
objetivo
subjetivo
VAIXÁS
SUDRAS
Mundo material
No quadrante superior esquerdo encontram-se aquelas pessoas que
entendem que existem a nobreza, a verdade, a lealdade e a justiça em si
mesmas, embora não as tomem como motiva-
178
Existe, ainda, uma quinta possibilidade. É a dos coitadinhos, a dos que não
têm sequer um eixo narrativo; são aqueles a quem chamamos párias. Eles
não são os narradores de suas vidas, nem sabem de onde vem a própria
história.
Aonde quer que chegue um pária, ele queimará tudo; é um lumpen. Mal
podemos dizer que são loucos — embora os loucos graves, que têm uma
lesão na citoarquitetura cerebral, sejam todos párias.
O pária é aquele sujeito de quem você precisa cuidar. Não dá para levar em
consideração o que ele diz e tudo o que ele faz é uma bagunça sem fim,
porque não tem nada na cabeça. Sequer se pode dizer que ele faz as coisas
por prazer ou conforto.
vel. Não são como os sudras, cuja vida pode até ser narrada com base na
busca pelo prazer (encontrar a felicidade sendo sudra é que é impossível).
O pária de fato não tem narrativa, não entende o que está acontecendo, a
vida dele é uma loucura.
179
A IMPERATRIZ
Quantos deputados e senadores não há que, tendo sido eleitos por uma base,
ao tomar posse do cargo, começam a fazer tudo ao contrário do que haviam
prometido, porque em realidade não têm a mínima idéia do que estão
fazendo? Ao olhar para a história de sujeitos como esses, vemos que nunca
deram certo em nada, destruíram tudo. Párias têm uma inconsistência
biográfica do início ao fim. Uma sociedade organizada tradicional daria a
essa gente os cuidados de que precisam, mas, como nossa sociedade é uma
loucura, pessoas como Alexandre Frota ocupam cadeiras no parlamento.
tulo como “Os párias ilustres” — porque temos vários deles hoje. É uma
loucura, uma brutal falta de eixo central. Está tudo desorganizado. As
pessoas de boa vontade, os pais de família, os professores, aqueles que
levam uma vida normal, como não têm esse conceito claro em mente, não
entendem que a maioria dos sujeitos que aparecem na T.V. não deveriam
nem ser ouvidos, porque suas biografias não têm pé nem cabeça. Eles não
têm de ser levados a sério, têm de ser cuidados.
Certa vez uma pessoa me disse que queria ter o dinheiro do Michael
Jackson. Então eu lhe perguntei se ela queria ser o Michael Jackson. Veja
bem, não estou dizendo que o Michael Jackson era um pária, mas a vida
dele foi uma vida de solidão, de abandono, de exploração, uma tristeza do
início ao fim.
Eu sei que ele tem fama, que todo o mundo o conhece — talvez tenha sido
o artista mais famoso do mundo —, que ele foi um sucesso do início ao fim
da vida, que dançava e cantava incrivelmente bem e que lançou vários hits
de sucesso.
Porém, não se pode olhar para um aspecto isoladamente e dizer “Eu queria
somente ter o dinheiro do Michael Jackson. ”
180
Não devemos querer ter o dinheiro dele, porque não podemos querer ser
como ele.
Ainda assim, eles estão expostos o tempo todo, e são modelos para a maior
parte da população.
181
A IMPERATRIZ
ele tem. Ninguém consegue dinheiro pela força de sua inveja, então você
terá de trabalhar, porque ele não lhe dará o que é dele. Transforma-se,
então, o amador na coisa amada — mas só na parte ruim da coisa amada.
Você não será milionário como um jogador de futebol por admirar um, nem
ficará famoso como um artista por gostar dele. Você não terá os glúteos da
Anitta só porque os ficou admirando. Já o conjunto de desejos e ideais da
Anitta e de um jogador de futebol, estes, sim, você acabará tendo. Mas é
isso mesmo o que você quer?
Parece clichê o que vou dizer, mas é um bom clichê: quando você deseja ter
o que a pessoa tem (materialmente falando), você se transforma naquilo que
ela é (sem ter o que ela tem!), de modo que, idealmente, você deveria olhar
para pessoas que são o que você quer ser, e não que têm o que você quer
ter.
É possível ter
Há quem, não tendo ainda clareza quanto ao próprio argumento vital, sinta
que tem dois ou três argumentos dentro de si. Há quem se sinta, por
exemplo, simultaneamente brâmane e xátria. Isso é de fato possível.
Entretanto, é um problema.
182
Pode ser que seu argumento vital seja conhecer a Beleza e a Verdade e, ao
mesmo tempo, expandir território para fazer ninho e ganhar fama e
notoriedade. Nesse caso, você é um provável artista. Artistas são, de certo
modo, desequilibrados, porque têm em si duas motivações centrais.
O artista é alguém que tenta articular a vida em dois quadrantes. Não tenho
a mínima idéia de como ele consegue fazer isso. O que sei é que, para ter
algum equilíbrio, é preciso escolher um dos argumentos. Ou ele tira da
cabeça essa loucura de
Já falei algumas vezes que é preciso escolher seu argumento vital. E muitos
devem estar se perguntando se é de fato possível escolhê-lo, ou se seriam as
circunstâncias ou algo muito maior
183
A IMPERATRIZ
do que nós mesmos o que nos daria esse argumento. Na verdade, não há
como ter certeza absoluta. Descobrir a própria vocação e o próprio
argumento é um processo complexo. Há tanta confusão nesse campo, que
você terá de escolher o que lhe parece fazer mais sentido e tentar viver certo
tempo nele.
Talvez sua primeira escolha seja ter sucesso, expandir território e ter um
ninho. Ser a abelha inferior já é melhor do que ser um sudra: há bastante
dignidade em cuidar da família, do território e servir aos seus — ainda que
com um serviço que não é tão distintamente humano.
Eu acredito que este é o caminho mais seguro. Pois um sudra que julga ter
vocação intelectual não conseguirá nada se começar por buscar as coisas
mais altas. O sujeito que acha que tem vocação intelectual e ainda não é
capaz de comprar as próprias cuecas, de pagar as próprias contas, de
sacrificar seu tempo e gastar seu dinheiro em favor de outra pessoa, não tem
vocação intelectual coisa nenhuma, pois ela está atrelada ao serviço.
Com dez anos de diário, você entenderá quais são os sucessos e as tragédias
do seu argumento. Você poderá ter, por exemplo, uma autobiografia com
uma vocação intelectual frustrada, mas estará alegre dentro da sua
frustração, porque você tem um argumento vital e tem uma noção de qual
ele é.
Comece com perguntas como: “Quem sou eu? Qual é a minha vida? ”
Sem esse conhecimento, uma pessoa com um pouco de talento fará de si, no
máximo, um auto-retrato como o de Graciliano Ramos, repleto de
peripécias e elementos desarticulados.
Por isso, minha recomendação é que você comece escolhen-do um dos três
argumentos dignos e desenvolvendo sua vida dentro dele, pacientemente,
durante cinco anos. Não se afobe para que tudo “dê certo” logo, pois só
quem obtém resultados rápidos são as abelhas e os sudras.
Saiba que, para o ser humano, ”dar certo” é ter a substância da vida
desenvolvida — e a substância da vida humana é a narrativa, que, por sua
vez, precisa de um argumento. E quando você tem um argumento
desenvolvido, você já deu certo, porque articulou tudo dentro de si.
Os cinco
tipos humanos
185
A IMPERATRIZ
Um filme tem uma história, e essa história é encenada por personagens com
características intrínsecas. Assim como os personagens estão em algum dos
quatro eixos narrativos, eles próprios também podem ser de tipos
intrinsicamente diferentes.
Se você, por exemplo, é alguém que quer servir, esse é o seu argumento, a
estrada que você deve percorrer — mas quem será você percorrendo essa
estrada?
O tipo irônico
186
Preciso, agora, que você reflita sobre a sua posição. A par de sua narrativa
vital, pense nos ambientes que você frequenta (a igreja, o clube, o trabalho,
as casas de seus familiares) e pergunte-se sinceramente: “Estou entendendo
o que está acontecendo com a minha família? Estou à altura das coisas que
estão acontecendo na minha igreja? Estou mesmo habilitado a fazer o que
faço no meu trabalho? ”
Você, que tem uma religião, em que espera se transformar ao cabo de dez
anos?
cil saber, porque os modelos exemplares (fortes, magros, ágeis etc.) estão
por ali mesmo, transitando pela própria academia.
187
A IMPERATRIZ
Uma primeira dificuldade está em que não temos modelos exemplares nas
igrejas, porque o modelo exemplar de uma religião é um santo — e
dificilmente vemos santos andando por aí. Há sim um santo ou outro, mas
não estão presentes na maioria das igrejas — e muitos deles não são sequer
pessoas de destaque.
O que fazer para abandonar o tipo irônico e passar a um tipo mais elevado?
Em primeiro lugar, é preciso deixar de ser um idiota. Uma boa receita é ler
sobre algum assunto e acom-panhar alguém que o domine. Pronto! Basta
uma fagulha de luz para iluminar o intelecto e fazer um tipo irônico passar
ao tipo seguinte, o imitativo baixo.
188
Acontece, porém, que muitas dessas pessoas de tipo imitativo baixo, pelo
simples fato de terem feito uma faculdade e de serem as digníssimas
portadoras de um diproma, julgam estar no mesmo patamar daqueles que,
de fato, têm o domínio de certa arte ou técnica. É assim que o moleque que
leu uns dois ou três livros e assistiu a 60 horas/aula se mete a discutir com o
profissional experiente como se estivesse dialogando com um coleguinha.
Essas pessoas não raro são as que mais desprezam e censuram os outros: o
fracasso lhes sobe à cabeça.
189
A IMPERATRIZ
Vou dar um exemplo que o professor Luiz Gonzaga de Carvalho Neto deu
em uma de suas aulas. Imagine a seguinte situação: você é a pessoa mais
religiosa e mais cristã do mundo e não mente jamais, porque sabe que
mentir é pecado. E você também mora na Alemanha nazista e tem vizinhos
judeus, com quem cresceu, brincou etc., são seus amigos, então você os
escondeu em um quartinho no sótão da sua casa. Eis que um policial nazista
lhe bate à porta e pergunta: “Há judeus nesta residência?”
Você, como um cristão exemplar, como uma pessoa moral, que não mente
nunca porque mentir é pecado e pecado leva ao inferno, o que faria nessa
situação? O policial lhe fez uma pergunta objetiva: você esconde judeus na
sua casa? Sim ou não?
Essa questão não está aberta a discussão e você obviamente falaria: “Não.
Não há judeu nenhum na minha casa. Pode olhar! Você está louco, acha
que vou esconder judeus aqui? Eu sou alemão! ”, e poderia inclusive fazer
um teatro, uma reverência nazista para o policial.
Não o seria, porque o policial nazista não está realmente lhe perguntando se
você esconde judeus na sua casa. A pergunta do policial nazista é: “Você vai
me ajudar a cooperar com a prisão e o assassinato de judeus inocentes? ”.
Essa é a pergunta que ele de fato lhe fez, então você pode responder “Não.”
sem risco para sua alma.
para o policial. Ele lhe diria: “Você deveria ter dito a verdade e contado
onde estavam os judeus que escondeu. Assim você poderia ir para o céu. ”
É por essa razão que sacerdotes de tipo imitativo baixo te-rão muita
dificuldade em exercer seu sacerdócio. Como é que orientarão seus fiéis,
suas ovelhas, sendo imitativos baixos? Eles
190
O irônico não entende nada do que está acontecendo, porque está abaixo da
situação; o imitativo baixo leu ou ouviu alguma coisa sobre o assunto e sabe
do que se trata, mas não sabe fazer e julga todo o mundo que faz, porque
não consegue entender que a realidade prática nunca é perfeitamente igual
ao que está no livro.
Dominando sua vida prática, você sai do imitativo baixo e vai para o
imitativo elevado. Mas comece por baixo: não parta do princípio de que
você já é um imitativo elevado, porque, ainda que o seja, achar que é o
imitativo baixo é melhor para você no início.
Instale-se, portanto, no seu negócio por cinco anos, seja você fotógrafo,
contador, mãe de família, engenheiro ou funcionário público. Domine o seu
negócio, transforme aquilo que o seu intelecto um dia aprendeu na
faculdade em operação prática da sua vontade, do seu engenho, da sua arte.
Fique por cinco
191
A IMPERATRIZ
anos trabalhando naquilo, sem reclamar, sem querer mudar de lugar. Sua
vontade será progressivamente dominada por tudo aquilo que você viu,
porque você sabe fazer coisas, então você quer fazê-las.
Suponhamos que você seja um contador. Escolha um argumento vital
qualquer, como o do serviço, por exemplo. O argumento é serviço, o
ambiente é o escritório de contabilidade, o personagem é imitativo baixo
querendo se tornar imitativo elevado.
ça-se no seu lugar anterior, pratique seu ofício e vá cuidar do seu negócio,
que é o primeiro lugar de que falavam os romanos.
O ócio é o que determina aquilo que você é. Se o seu ócio é descansar, você
não se tornará um imitativo elevado, mas apenas uma pessoa descansada.
Fazer uma outra coisa que não aquela que você faz quando está no seu
negócio já é descansar.
Não estou dizendo que você nunca precisa descansar, mas você já descansa
de seis a oito horas por dia quando vai dormir. Você quer descansar
acordado também, é isso?
“Italo, mas eu fico muito cansado”. Ora, então durma dez horas por noite,
pare de ficar olhando o Instagram e vá dormir. No tempo em que está
ocioso, você não está descansan-do, está moldando a sua vida para um
certo lugar.
Certa vez, quando perguntei a alguns alunos qual era seu eixo vital, um
deles respondeu: “Sou um filho de Deus”.
(e o arranjo de tudo)
Até então, vimos os tipos irônico, imitativo baixo e imitativo elevado, mas
existe também o tipo romanesco, ou lendário. É o cara tão, mas tão bizarro,
que parece ter uma assistência divina.
O intelecto desse sujeito já viu, sua vontade já foi con-formada e ele tem
tanto domínio do que faz que mal precisa olhar o próprio trabalho. Ele tem
a posição e o olhar do Mago da primeira lâmina do Tarô, aquela atenção
quase desatenta, em que trabalho e jogo se identificam.
193
A IMPERATRIZ
Hoje, nos acostumamos a ligar paixão a amor romântico. Sob certo aspecto,
é um empréstimo de significado muito preciso, porque dizer que está
apaixonado por alguém é dizer que tudo em você se ordena a esse alguém:
sua cabeça, sua vontade, seu corpo. Você está todo dominado por aquele
alguém.
Se por anos você for um imitativo elevado, cuidar do seu ócio e do seu
negócio, você poderá se tornar um tipo romanesco, de tal modo que os seres
humanos normais o olharão e dirão “Deve ser um E.T, parece que veio de
outra galáxia”. Esse é um tipo humano possível, mas não é “pra já”, não. A
grande maldade do nosso tempo é que a maior parte das pessoas são
imitativas baixas e querem passar imediatamente a romanescas; ou pior, são
irônicas e querem passar imediatamente a romanescas, pulando o imitativo
elevado.
Irônico
Romanesco
baixo
elevado
Paixão
Desordenada
Desordenada
Desordenada
Ordenada
Vontade
Desordenada
Desordenada
Ordenada
Ordenada
Intelecto Desordenado
Ordenado
Ordenado
Ordenado
194
Eis a nossa história: argumento (um dos quatro possíveis), lugar (onde você
está) e progressão dos personagens. Se você está aqui lendo este livro já não
é do tipo irônico, porque recebeu uma luz e entendeu que há mais coisas
entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. Mas provavelmente é
do tipo imitativo baixo, de modo que recomendo que estude, leia
atentamente e procure pessoas que tenham conhecimento e experiência no
assunto que você estuda.
Entenda ainda que sua vida se dá em dois lugares interiores, negócio e ócio,
que terão ambos de ser cuidados. Não adianta trabalhar bem e não fazer
nada no ócio. Existe já um momento em que não fazemos nada mesmo, e
ele chama-se sono. Mas não confunda ócio com descanso: não viva uma
vida de so-nâmbulo, de quem mal nota a vida acontecendo.
“sonhos”, sem substância real. Já quando você trata do seu ócio e do seu
negócio por anos, você evolui do imitativo baixo para o imitativo elevado.
E depois de passar anos operando no imitativo elevado, você se torna o tipo
romanesco: converte-se no Mago da primeira lâmina do Tarô, para quem o
trabalho flui como um jogo.
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
197
A mentira cientificista
198
Isso faz com que ditas questões aparentem ser mais confiáveis, sólidas,
quando tratadas pelo método científico contemporâ-
199
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
E ela responderá o mais rápido possível . Se você busca somente isso, não
há problema algum. No entanto, ela jamais conseguirá lhe responder a
perguntas como estas: Por que existem aranhas? Qual é a relação de um
sujeito com as aranhas? Por que o medo de aranhas deixa a vida
disfuncional? O que se perde ou ganha com o medo de aranhas?
Esse exemplo do medo de aranhas pode ainda estar muito distante, mas
basta substituí-lo por um mais próximo, como o medo de aviões
(ptesiofobia). Para quem costuma viajar a trabalho, a ptesiofobia é um
grande empecilho, e a Terapia Cognitivo-Comportamental possui métodos
eficazes e validados cientificamente para tratar o problema.
Há mesmo questões que devem ser abordadas assim, sem qualquer pergunta
de fundo. Isso, porque são algo secundário na vida das pessoas. Para quem
não viaja tanto assim de avião, tampouco vive em ambientes em que há
muitas aranhas, essas fobias são disfuncionais, mas apenas sob certo
aspecto.
Os métodos científicos contemporâneos, sobretudo em Psicologia, são
perfeitamente capazes de abordar questões perifé-
rio(s) é feita, qual o seu peso, qual o seu volume. A Ciência Contemporânea
dá respostas muito precisas sobre tais realidades. Afinal, é para isso que
serve: recortar a realidade, isolar um aspecto — em regra, limitado ao
material — e dar respostas precisas sobre ele.
200
A pedra — como qualquer coisa que é e nunca deixará de ser — não nos
aparece apenas em sua materialidade. Ela não se limita a sua causa material.
Ela é também a presença de algo.
Enquanto a realidade não lhe obrigar a declarar isso, você não entrará na
vida real, mas estará limitado às aparências. O lugar onde você está neste
mundo é lugar de presença — entenda isso de modo poético.
Adélia Prado nos ajuda muito quando faz poesia sobre a crise da percepção.
Naqueles versos do poema Paixão, é como se ela olhasse para as coisas e
dissesse: “Às vezes Deus me tira a poesia. Eu olho para uma pedra e não
vejo mais o verbo. Eu a olho e vejo bauxita, ametista, pirita... Meu olhar é
incapaz de descobrir o véu da matéria. ” O pensamento cientificista faz
algo semelhante conosco: impede-nos de ver as coisas que se escondem sob
o véu da matéria.
Você pode estar se perguntando: mas precisamos ter poesia na vida para
quê?
Não falo da poesia dos poetas, mas da poesia do coração do homem vulgar,
que somos eu e você. Não somos Shakespeare, nem Dante, nem Camões,
nem Baudelaire, nem Yeats; somos homens da máquina, do campo, do
computador, da cozinha, somos homens que se acham entre coisas e outras
coisas, e nada mais.
201
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
O simbolismo mitológico
fundo psicológico
Quando olho para uma pedra, penso em algo estático, presente, estável. A
pedra não tem uma narrativa, não tem um drama.
Essa foi a grande sacada de Ortega y Gasset. Foi ele quem disse que a
grande virada de chave acontece quando descobri-mos que nossa vida não é
um verbo estático, mas uma narrativa, um faciendum, algo que está
acontecendo. “A vida é um ge-rúndio e não um particípio: um faciendum e
não um factum.”25
202
Ciência Psicológica por excelência. Quando você olha para um mito grego,
ele ilumina os seus movimentos e você se entende melhor. Ele não o livrará
da sua aracnofobia ou da sua ptesiofobia, porque não é essa a função deles.
Se, porém, você quiser entender certos movimentos da sua alma, o mito é a
ferramenta para isso.
203
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Não estamos mais com fome, nossa barriga já não dói, enfim, já comemos...
Mas ainda queremos comer. É a tal “vontade de comer”.
Assim sendo, é claro que deve existir um outro princípio, que rege essas
outras vontades imateriais; um princípio espiritual. Não entenda “espiritual”
no sentido religioso. Não estou falando de Deus, estou falando de você.
Existe, em você, um movimento que não é bem da matéria, mas vem de
outro lugar.
Esta, desejando ter alguém que a cobrisse totalmente, gerou Urano (Céu),
princípio espiritual, de Pai e de Espírito.
Urano então passou a cobrir Gaia com sua chuva torrencial. E Gaia não o
aceitou senão passivamente. Como veremos melhor adiante, trata-se de uma
união, mas também de uma oposição. Gaia (princípio material) desejava ser
coberta ou
204
Se você está achando tudo isso irrelevante, eu lhe digo que não o saber é
justamente o motivo pelo qual sua vida está do jeito que está; sem rédeas,
sem sentido, sem norte. Tenho certeza de que, se eu lhe perguntasse o que
ocorreu no seu dia de hoje, você não saberia me responder, exceto se tivesse
sido assaltado, ou demitido, ou traído, ou qualquer uma dessas coisas
“marcan-tes” (de que você só se lembra por dois dias, na verdade).
ser humano carrega dois princípios que o jogam para baixo: o nervosismo e
a banalidade. São duas tentações do homem, que está sempre tateando as
coisas, nervoso, porque está cego e nada parece ter sentido — e não falo do
sentido último (para que fomos criados, de onde viemos, para onde vamos
etc.), mas de um sentido muito mais baixo. O que aconteceu no seu dia
entre as oito horas da manhã e as dez horas da noite? Quais princípios
foram os regentes dessa parte da sua história?
Eu já sei a resposta: 90% dessas quatorze horas úteis da sua vida foram
regidas por dois princípios: nervosismo e banalidade. Não estou dando uma
de profeta, de guru ou de adivinho. É
que esses são os princípios que regem o homem cego, que não reconhece os
princípios simbólicos (ou, em nosso caso aqui, mitológicos) dentro da
própria história. Ele olha para a pedra e não vê nada além de pedra. Ele olha
para a própria vida e não vê nada além de nervosismo e banalidade.
Eu lhe digo: você está lendo este livro exatamente para que esses princípios
de nervosismo e banalização, que regem todo
205
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
No dia em que você se irar e olhar para a sua cólera com esses outros olhos
— notando que dentro de si está acontecendo algo similar ao que foi
descrito na teogonia grega —, sua vida ganhará poesia. Veja bem: não
quero que você se torne um cara chato e pedante e saia por aí dizendo que
está nervoso porque o princípio de Gaia está agindo em você. Pelo amor de
Deus!
206
grego é mais completo, uma vez que, da união entre Urano e Gaia, surgem
diversos desdobramentos.
Fecundada e devastada a Terra, numa violenta união com o Céu, pariu ela
os doze titãs (Crono, Oceano, Céos, Crio, Hipé-
rion, Jápeto, Réia, Memória, Tétis, Têmis, Febe e Téia). Dessa união
surgiram ainda os ciclopes (monstros de um olho só) e os hecatônquiros
(gigantes de cem braços). Esses filhos de Urano e Gaia personificam as
forças selvagens da natureza que nascia. São uma primeira e turbulenta
etapa na preparação da terra para a expansão da vida.26
Na seqüência, como Urano viu que lhe nasciam filhos “os mais temíveis”,
que tenderiam a revoltar-se contra ele e que o poderiam destronar no futuro,
“detestou-os desde o começo”.
Logo que um filho nascia, ele o lançava na cova da Terra. Mas a Terra
gemia e se doía. Ela conclamou, assim, os filhos a se voltarem contra o pai.
Quem se apresentou para investir contra o pai foi o ousado Crono, “o mais
temível”. A própria Gaia escondeu o filho e disse a ele tudo o que deveria
fazer. Quando Urano surgiu na noite à procura de Gaia, “da tocaia o filho
alcançou com a mão esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice longa
e denta-da. E do pai o pênis ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo para
trás.” (Hesíodo , Teogonia, v. 178-182) Uma das etimologias do nome
“Crono” remete a um termo grego que designa o tempo (o prefixo crono-,
em língua portuguesa, aparece em palavras como “cronômetro” ou “crono-
logia”). O tempo é, pois, o que marca a sucessão da matéria.
207
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Na Teogonia, como vimos, Urano soube que poderia ser destronado por um
dos filhos. E isso de fato aconteceu: Crono o destronou. Ou seja, aquele
princípio de espiritualiza-
ria bruta (Gaia), em algum momento veio a perder seu império para o
tempo (Crono).
Nossa vida está acontecendo, temos uma história para contar. Precisamos
comer, tomar banho, ganhar dinheiro, amar
Veja bem: Crono pega uma foice e corta os órgãos genitais de seu pai.
Urano continua vivo, mas agora está castrado. O
princípio fecundante de Urano foi tirado. Ele segue vivo, mas é um rei
impotente. O princípio da espiritualidade está aí, mas sua possibilidade
fecundante foi perdida pelo tempo.
Urano então pega os órgãos genitais de seu pai, sacode-os e os joga ao mar
(aliás, é da espuma da inseminação dos órgãos castrados com o mar, que
nasce Afrodite, a deusa do amor).
Crono tem uma esposa, uma das filhas de Urano e Gaia, sua irmã Réia. Réia
simboliza uma terra cheia de vida, não mais aquela terra turbulenta do
início, mas um princípio de matéria organizada, em que se consegue
observar a passagem do tempo: uma árvore que cresce, um cachorro que
nasce e morre...
Ora, nós também temos dois princípios materiais. Um deles é muito bruto,
muito desorganizado, como o de Gaia; o outro não foge tanto do controle,
tem certa uma organização, como o de Réia. Há movimentos brutos da
nossa matéria, como quando você está com olhos pesados de tanto sono, ou
quando sente uma fome dos infernos, mas também há movimentos a
208
que você cede apenas se quiser, porque eles estão de certa forma
organizados, como a vontade de dormir com a mulher do próximo, ou de
tomar um sorvete fora de hora. Há quem ceda logo a movimentos como
estes, mas eles não são tão urgentes, fortes e “primordiais” como os
primeiros. Dito de outro modo: há níveis de materialidade.
De volta à Teogonia, temos uma história que se repete: todos os frutos da
união entre Crono e Réia são devorados por Crono. Pois, como Urano, ele
também temia ser destronado pelos filhos. E não é assim? Podemos mesmo
dizer que o tempo devora seus filhos, que aquilo que é gerado no tempo
eventualmente acabará, será comido, irá se decompor. Tudo o que está no
tempo se decompõe. Achar que o que fazemos nesta terra perdurará é uma
esperança vã. Não permanecerá; será devorado. Mas que isso não nos
arranque a esperança — a razão para não perder as esperanças, eu a dou
evocando novamente o exemplo da pedra.
Ora, se você perde seu tempo, arrancando as pedras sob seus pés — que são
aquilo que o faz ficar de pé — para atirá-las ao outro, perderá o chão. Se
você perde o tempo que deveria usar para construir solidamente seu
caminho biográfico neste mundo, julgando os outros, você será o primeiro a
cair.
Nasce um novo bebê, mas ela diz: “Este não.” Pega uma
209
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
210
Naquele mundo caótico, no qual Réia tentava dar à luz seus filhos e Crono
os devorava, não havia ordem propriamente; não havia uma forma final,
inteligível, porque ele não permitia que houvesse. Então Zeus, filho de
Crono, com sua arma forjada no reinado de Urano e Gaia, ou seja, forjada
no mundo do princípio de tudo, tocando naquilo que é imutável, destrona
seu pai, subjuga Crono — e por isso se torna o rei do Olimpo.
Zeus é o maior dos deuses, embora não seja o primeiro na origem. Ele é rei
porque foi aquele que venceu Crono: ele venceu o império do tempo e da
matéria.
Não interessa de que a pedra é feita. Ela pode ser diamante ou basalto. O
que interessa é que ela é também algo a mais: um
211
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Não era o pai dos infernos? ” Bem, pode-se entender assim, mas tente
imaginar o inferno como um mundo espelhado: a ordem do mundo superior
espelhada na ordem do mundo inferior.
Tal como Zeus rege o mundo superior, Hades rege o mundo inferior; logo,
ele também é um princípio de ordem. Poseidon, por sua vez, é o elemento
selvagem desse ternário. A água está entre o céu e o inferno, e Poseidon é o
deus que a rege. Há ainda outros princípios, representados pelas irmãs de
Zeus.
Foi ele quem organizou tudo, fazendo Crono regurgitar seus irmãos e
distribuindo a regência do mundo entre eles: um para cuidar do mar, outro
da guerra, outro da beleza, outro das estações do ano… Ele aprisionou os
titãs no Tártaro e destronou Crono. Foi somente com Zeus que, finalmente,
o mundo ficou organizado.
Aqui, ainda estamos no domínio da terceira carta do Tarô, falando da vida
humana, que é esse conjunto narrativo. Se não tivermos intelecção sobre
nossa narrativa pessoal de cada dia, seremos regidos por aqueles dois
princípios que dominam o homem desatento: o nervosismo e banalização.
212
Midas,
um homem banal
Refiro-me ao rei Midas, famoso por seu toque de ouro. Há várias versões do
mito, mas uma das mais conhecidas está no livro XI das Metamorfoses do
poeta romano Ovídio.
A narração do mito tem início quando Dionísio (ou Baco, para os latinos) e
seu cortejo seguem para os vinhedos, mas ele se dá conta da falta de Sileno,
sátiro que fora seu preceptor.
Em dado momento, ele se deu conta de que havia sido víti-ma de uma
galhofa de Dionísio, pois absolutamente tudo que tocava se tornava ouro.
Tocava um pão e ele se convertia em ouro. Mas de que serve um pão de
ouro, quando se está com fome? Comida é o que sacia a fome, não o
dinheiro. Tampouco se dorme com dinheiro, mas com um outro ser
humano. O
Quando, pois, viu seu palácio, sua comida e sua própria filha transmutados
em ouro, Midas clamou por Dionísio. Nesse
213
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Um sapo tem um verbo próprio, uma pedra tem um verbo próprio, sua
mulher tem um verbo próprio. Quando você banaliza tudo com ouro, o sapo
perde seu verbo e assume o verbo do ouro, a mulher perde seu verbo e
assume o verbo do ouro, o pão perde seu verbo e assume o verbo do ouro.
O dinheiro banaliza tudo.
Midas poderia ter entendido isso, tivesse ele olhos para ver.
Já se vendo desesperado, prestes a morrer de fome, ele deveria ter dito a
Dionísio: “Eu perdi o verbo do mundo. O mundo não conversa mais
comigo, eu não o escuto mais. Perdi toda a poesia da vida, só porque quis
ouro. O que faço para converter essa minha vida banal em algo melhor? ”
Mas não foi isso o que aconteceu.
Dionísio então pediu que Midas julgasse qual o melhor músico. Midas fitou
Apolo e pensou: “Essa música não seduzirá ninguém, não conseguirei levar
ninguém para a cama com isso.
Fico com Pã. ” Mais uma vez, o rei se deixou levar pela estupi-dez: à vida
sublime ele preferiu a perversa.
Dionísio olhou novamente para Midas com desprezo absolu-to, pois viu que
ele não conseguia extrair o verbo das coisas, pois estava demasiado preso à
materialidade. Midas é o sujeito mais imbecil e banal do mundo: não
aprendeu nada com a lição
214
Indigno até mesmo da ira de um deus, o que Midas recebeu foi um castigo
zombeteiro de Apolo, que lhe pôs na cabeça duas enormes orelhas de asno.
O rei, além de precisar usar luvas, passou a ter duas orelhas de animal.
Imagine a figura desprezível em que se transformou. E era de fato um asno,
um homem banal, entregue à luxúria e à avareza, alguém que não sabe fazer
escolhas.
Acontece que Midas certo dia foi cortar os cabelos. E o escravo que lhe
cortava os cabelos viu as orelhas que ele escondia de todos. O capuz não foi
capaz de esconder a vergonha de Midas por muito tempo… Isso acontece
com todos nós. Tentamos esconder a vergonha, mas uma hora ela aparece.
Tentamos ocul-tar os vícios que nos envergonham, mas uma hora eles
surgem.
O junco é uma árvore flexível, que vai para onde o vento sopra. Aquele
junco específico ecoou, desde o fundo da terra, excitado pelo vento, a
banalização de uma vida que não tinha um centro, a qual, como ele próprio,
vai para o lado que o vento sopra. Essa é a vida do homem banal, que não
confessa as orelhas de asno que tem, mas tenta escondê-las a todo custo.
215
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
entre mulher e mulher de ouro; depois, não viu a diferença entre a lira
sublime de Apolo e a flauta perversa de Pã. E, ainda por cima, não foi
homem o suficiente para confessar que era um asno.
Midas poderia ter dito: “Dionísio, sou um asno. Não sei escolher. Envie, por
favor, alguém com quem eu possa conversar, contar-lhe minhas misérias,
para que me ajude a enxergar e corrigir meus erros. ” Ele poderia ter
buscado o conselho de um homem sábio, a quem confessaria seus erros.
Poderia até mesmo ter confessado seus erros a um homem não tão sábio,
mas de sua confiança. Mas o fato é que ele nunca se confessou. E não se
confessou porque jamais se arrependeu verdadeiramente: jamais se
converteu em um homem novo. O que teve foi somente vergonha de suas
orelhas e de seus vícios. Mas não adianta envergonhar-se de seus vícios, de
seus pecados, de seus crimes.
O mito de Midas vem nos mostrar que aquele que esconde suas misérias
viverá para vê-las todas reveladas. O sujeito que não se confessa para
alguém nunca melhora, nunca escapa à banalização. Somente quem pede
ajuda é capaz de ascender.
O vaidoso, que não conversa com os outros, que não pede ajuda quando
necessário, que não elogia o bem que o próximo faz, que não tem relação
humana, que esconde todas as suas mazelas sob um capuz frígio, ele se
torna um homem banal. O
Um sapo de ouro e um pingente de ouro não têm muita diferença entre si,
porque ambos têm o verbo do ouro. Faça esse exercício meditativo. Já um
sapo vivo em nada se parece com um sapo de ouro: eles têm verbos
completamente distintos.
216
Na Teogonia de Hesíodo, vemos que, logo que Zeus expul-sou os titãs dos
céus, Gaia gerou de Tártaro um monstro terrível, de nome Tifeu. Foi uma
espécie de vingança ou revolta de Gaia contra o espírito. Tifeu tinha cem
cabeças de serpente e dos olhos de cada víbora saltava fogo. As cabeças ora
falavam com voz de touro, ora com voz de leão, ora como cadelas, ora
emitiam assobios altos que ecoavam pelas montanhas. Não houve quem não
tivesse medo de o enfrentar: somente Zeus, pois tinha o trovão, o
relâmpago, o raio flamante e a luz da inteligência.
28 Idem, ibidem.
217
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Édipo, o nervoso
Um dos frutos da união de Tifeu e Équidna foi a Esfinge, figura de que você
deve se lembrar por conta da história de Édipo, 29 MACHADO, António.
Proverbios y cantares XXIX.
218
219
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
A alma ferida, ele tentou compensar com uma busca constante e agressiva
pelo domínio.
Nessa viagem, acabou topando com Laio, seu verdadeiro pai, e um grupo de
viajantes. Quando alguém empurra um homem vaidoso e agressivo, esse
homem, em geral, revida com socos e pontapés. Foi o que aconteceu ali.
Empurraram Édipo na estrada e ele, que não levava desaforo para casa,
revidou violentamente. No fim da briga, com o cajado que usava para se
apoiar, matou Laio e quase toda a comitiva.
Ele não sabia que Laio era seu pai.Também não sabia que o homem que
matara era o rei de Tebas. Mas o fato é que usou como arma mortal aquela
“muleta”, que corrigia apenas par-cialmente a doença dos pés que seus pais
haviam provocado. A muleta de um homem nervoso como Édipo é a
vaidade. Ele só fica “de pé” psicologicamente falando se se apoiar na sua
vaidade. E ela é também sua expressão de agressividade e violência: com
ela, mata o pai.
220
A recompensa que recebeu pelo ato de aparente heroísmo foi o título de rei
de Tebas e a união marital com Jocasta, sua mãe. Esse é o centro da
Psicanálise. Sem o simbolismo do mito de Édipo na cabeça, é impossível
entender bem essa corrente da Psicologia.
Mas veja, essa recompensa que parece ser seu grande sucesso, é também a
sua derrota, a sua ruína. E é também a ruína da cidade: enquanto Édipo
reinava, Tebas foi tomada por uma grande peste, da qual só haveria de se
livrar se dali fosse banido o ser impuro que matou Laio.
Quando começam a aparecer os indícios de sua culpa, ele vai sofrendo cada
vez mais. Sofre e fica desesperado principalmente porque percebe que fez,
por vontade própria, exatamente aquilo de que tinha mais horror: matou o
pai e desposou a mãe.
pria culpa, Édipo arranca os olhos. Essa resolução pode significar duas
coisas: ou ele continuou sendo um vaidoso e preferiu arrancar os olhos para
não ver a própria culpa; ou ele realmente se arrependeu do que fez e se
cegou para evitar ser seduzido pelas coisas mundanas e, assim, conseguir
exilar-se dentro de
221
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Quem dá essa luz é o raio de Zeus, que nos permite ir até as coisas e extrair
delas — não projetar nelas — o que elas são.
ção. Como fazer isso é a grande questão da vida, cuja resposta está dada no
próprio mito de Zeus.
222
Você não emagrece, não permanece em um emprego, não fica muito tempo
em um relacionamento, não é chamado para as festas de família, não
consegue conviver direito com seu ir-mão, porque seus bons propósitos,
seus bons afetos, suas boas inspirações, foram devorados pelo tempo banal.
Você não consegue manter a luz dessas coisas viva em você. Isso é
princípio da vida, e nos dá uma intelecção maior sobre nossos movimentos
diários.
Zeus é símbolo da alma humana, de uma alma que não se esquece. Lembre-
se de que somos o “ser esquecente”, por definição. Esquecemo-nos de tudo
— ou melhor, não de tudo, mas apenas do essencial.
ção, Zeus ficou em silêncio, nas terras de Urano e Gaia, que são uma terra
de exílio. Se você nunca marchou voluntária e conscientemente até lá,
talvez não reconheça isso em si; não agora.
Cristo no exílio
Essa terra de exílio foi frequentada por todos os sujeitos arquetípicos que
são exemplos para nós. O próprio Cristo ficou em uma terra de exílio até os
doze anos; depois, ficou em outra
223
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
terra de exílio até os trinta; por fim, teve um terceiro exílio de quarenta dias
no deserto.
Ele nasceu, e em sonho seu pai foi avisado de que deveria exilar-se com a
família. Ele então levou a esposa e o bebê até o Egito, onde ficaram por
quase doze anos, até serem chamados novamente. No exílio, o Cristo estava
numa terra como aquela que Zeus frequentou.
O Cristo de fato teve sua primeira aparição aos doze anos, no templo, dando
lições para os sábios, que se surpreendiam com a sabedoria de alguém tão
novo, quando aquilo nada tinha de surpreendente — era o Cristo, mas
mesmo que não fosse, ainda seria alguém que passou doze anos no exílio,
ao passo em que aqueles fariseus estiveram esse tempo todo no meio da
banalização.
Depois, o Cristo voltou para o exílio, e sumiu por mais dezoito anos. Seu
segundo exílio foi na Palestina; não em uma terra estrangeira, não mais no
Egito, mas ainda assim, tratava-
Esse silêncio é muito eloquente na vida do Cristo. Ele reapareceu aos trinta
anos, na vida pública, e dos trinta aos trinta e três pregou e fez milagres.
São três anos, e já vimos que o três é símbolo de totalidade. Mesmo em
meio a essa vida pública, ele se exilou novamente, nos quarenta dias que
passou no deserto.
O nosso exílio
não funcionará. Fazê-lo seria afetação, pois você não sabe o tamanho da sua
vida, não sabe qual é a sua história. E se ela durar só mais seis meses?
Então, por definição, você não conseguirá completar esse seu ano sabático,
esse seu exílio de um ano.
O exílio não é algo que faremos em bloco, porque não temos uma
autobiografia. Se você não souber contar sua história em duas linhas, não
souber qual é o seu argumento vital, então sua vida não tem uma unidade, é
tudo uma confusão.
Uma coisa, porém, você tem: um dia. Você tem hoje, e tem amanhã. Sem
esse papo de “Não sei se tenho amanhã, só Deus sabe.” É óbvio que você
terá, sim, amanhã, até o dia em que estiver errado, mas até lá você terá
acertado todos os outros dias em que disse “Eu tenho amanhã.” Na média
das apostas, se você tem menos de noventa anos, a chance de acertar é
grande.
Um dia ao menos você tem, então vá para o exílio, para a terra de Urano e
Gaia, para o deserto do Cristo, para os anos ocultos Dele, cada um desses
dias. Do contrário, você não forjará a arma de Zeus, não terá o raio, e
acabará por cair no mundo de Midas, da banalização.
Midas é um rei, e um rei nunca vai para o exílio, a não ser que seja
destronado. Essa é a nossa vaidade; nós achamos que somos reis: das nossas
idéias, das nossas opiniões, dos nossos relacionamentos, das nossas
empresas, da nossa família; quando a verdade é que ninguém nos presta
ouvidos, porque somos como Midas.
Dionísio, sendo um deus, olha para aquele rei com desprezo, tal como
olharia para qualquer rei da terra: “Você é rei de quê?
Dessa meia dúzia de hectares aí? Dessas pessoas que não servem para
nada? Desse gado que vai morrer? Você é rei disso? Banal. ”
Midas somos eu e você, que nos pensamos reis das coisinhas que temos. No
seu reinado, você tem domínio de tudo.
Todo o mundo tem seu controlezinho sobre alguma coisinha, ainda que
somente sobre os próprios pensamentos. Se não
225
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
Para evitar isso, você terá de marchar para um território quase que
inconsciente de sua alma (com inconsciente, refiro-me a um território do
qual você não tem domínio). Isso é estar em exílio.
“Vê, é pão. Come. Vou transformar estas pedras em pão”, o que era uma
mentira, porque o diabo não tem poder sobre a matéria, não pode
transformar o verbo da pedra em verbo de pão. Ele pode somente, e tão
somente, banalizar a percepção do homem sobre o verbo — e isso é algo
que acontece conosco o tempo todo. Em vez de enxergarmos o verbo da
coisa, enxergamos o verbo da nossa cabeça. Fazemos uma projeção: “Se
estou com fome, então aquilo é pão”, “Se quero me satisfazer, ela vai
topar”,
“Se quero dinheiro, posso roubar”. São operações banais, porque deturpam
o verbo da coisa, tal como fez Midas. Banalizar a visão é transformar uma
coisa em algo que ela não é, segundo aquilo que você deseja ver.
No deserto, Cristo não estava em seu domínio, em seu território. Isso fica
claro no segundo movimento, quando o de-mônio leva o Cristo para o alto
de uma montanha e fala: “Vê.
É tudo meu”, como que dizendo: “Tu realmente não estás no teu reino.
Estás em exílio e, se de joelho me adorares, dar-te-ei todos os reinados
desta terra”.
O Cristo estava forjando suas armas (não que precisasse delas, afinal era o
Cristo, mas estava nos dando exemplo), e é por isso
226
que, ao olhar para a pedra, ele diz que aquilo não é pão, senão pedra. E que
não o comerá, pois quem come pedras é o tempo.
Foi Crono quem comeu uma pedra pensando ser seu filho.
O tempo não distingue o que é metal, o que é pão, o que é pedra — ele tudo
consome. Se for para o império do tempo, você será saciado com pedras,
que encherão seu estômago.
Se adorar esse sujeito e ele me der este domínio, eu me tornarei rei deste
terreno; logo, sairei do exíli o.” O Cristo compreendeu as palavras do
demônio e percebeu que ele, na verdade, queria dizer que faria com que
Cristo reinasse sobre um reino que era seu convertendo-o a um rei medíocre
como Midas. O ato da meditação só pode acontecer no exílio. Ele não pode
ser feito em um reino próprio; por isso, tornar-se “rei do exílio” foi a
segunda das três tentações do Cristo.
Nada disso aconteceu com o Cristo, porque ele estava em um ato meditativo
no exílio, então pôde resistir.
Para nós, esse exílio deve acontecer não durante um ano, não durante a
quaresma, não durante dezoito anos, não durante um final de semana de
retiro. Você não sabe o tamanho da sua história; o que você por certeza tem
é um dia. Em um dia, portanto, você marchará para o deserto e extrairá da
pedra aquilo que ela é: pedra.
Para fazer isso na prática, você deve separar dez minutos do seu dia para ir
ao exílio. Não é um exílio radical, é um exílio diário, porque não sabemos o
tamanho da nossa vida. Nesse exí-
227
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
e meditando sobre elas, num terreno onde você não está acres-centando
nada, porque não tem domínio sobre ele. Simplesmente fique quieto, feito
Zeus. Quem fez a arma do deus olímpico não foi ele próprio, mas outros,
que estavam lá há mais tempo. Zeus deixou que a sabedoria deles o
iluminasse.
Precisamos nós também forjar as armas de Zeus para fugir do domínio de
Crono. Pegue uma idéia, um parágrafo sobre um assunto excelente, leia-o
por dois ou três minutos, e fique sete minutos em exílio, fermentando,
fazendo nada, deixando que aquele “princípio de lava” o ilumine sozinho.
De início, por ser matéria bruta, você não distinguirá nada, apenas se
queimará. Não fará nada com aquilo e o ato será cansativo. Porém, com o
tempo e a prática, a lava irá lhe dando luz e as coisas irão se esclarecendo.
Faça isso dez minutos por dia, todos os dias. Se ficar com sono, não tem
problema; o sono pode ser sua terra de exílio, o sonho é que não. Basta não
dormir. Meditar com sono funciona do mesmo jeito, porque assim você não
tem perfeito controle sobre seus pensamentos — lembre-se de que você é
rei de seus pensamentos, que ou são ridículos, ou se voltam para alguma
utilidade. Nesse caso, as duas coisas são ruins.
Utilidade serve para fazer café, para ganhar dinheiro e para um monte de
outras coisas, mas não para acessar um certo lugar de iluminação do seu
espírito, onde você vira uma espécie de Zeus. O reino da utilidade é o reino
do dinheiro, é o reino de Midas.
Os textos excelentes, que serão suas pedras, são os que ex-traem a luz das
coisas, que não deixam você se confundir na matéria. Busque textos sobre
Justiça, sobre Caridade, sobre Lealdade, sobre Fortaleza, sobre Trabalho,
sobre Honra, sobre Família etc., que são as operações básicas, a substância
mesma da nossa vida.
228
Eu sou eu
e minhas circunstâncias
A vida de muita gente acaba não dando certo por conta disso; ou, mesmo
quando dá certo, ainda é possível melhorar em algum ponto importante.
Isso ocorre porque, quando as pessoas pretendem um autoconhecimento,
elas ficam muito focadas na parte “Eu” da equação “Eu e minhas
circunstâncias”, ou seja, estão muito interessadas em saber sobre si mesmas
e pouco interessadas em saber sobre suas circunstâncias.
229
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
que você precisará articular com a sua vida. Nobreza, Lealdade, Justiça,
Traição e Vilania também são circunstâncias da nossa vida. Se não conhecer
essas coisas com a luz de Zeus, com a luz indestrutível, você se tornará
pedra e será devorado pelo tempo, por ter articulado em si somente a parte
material da realidade.
As armas da Imperatriz
230
Não poderíamos percorrer o caminho que percorremos hoje com base em
um artigo científico. Ele não serve para isso; serve para um monte de outras
coisas boas, mas muito pequenas em comparação. Sob certo aspecto, até
mesmo inúteis.
Até cem anos atrás, a civilização não conhecia artigos científicos, nem
injeção, nem micro-ondas, nem foguetes para a lua. É bom que a Ciência
Contemporânea exista, mas, do ponto de vista da evolução do espírito, ela
de nada serve.
Veja que curioso: a Imperatriz tem um escudo, mas não uma espada; e nesse
escudo está a imagem de uma águia. A águia é o arquétipo do líder, porque
é o único animal que consegue encarar o sol de frente — e não estamos
indo ao exílio para contemplar a luz? Pois bem. O escudo da Imperatriz
carrega esse olhar de águia, simbolizando o animal que consegue olhar a luz
de frente. Nós temos dois olhos, um de pomba e um de serpente, um de luz
e um de trevas. Nosso olhar funciona por contraste. O dois é símbolo de
divisão, de oposição, que sempre lutaremos por articular.
Nossos olhos são preparados para luz e para trevas; são pomba e serpente,
boi e jumento. O ciclope tem apenas um olho, e é por isso que ele só vê luz
e consegue ficar perto da lava sem se cegar, para extrair dali a luz.
Como nós não somos ciclopes, precisamos nos armar com o escudo da
Imperatriz, que nos protege da cegueira. Nesse sentido, ele é uma arma. A
águia é um animal incisivo, agudo
— e, no entanto, ela está retida em um escudo, que não é nada incisivo, mas
sim obtuso, como um pombo.
A águia voa em direção ao sol; ela tem natureza de espada, mas está
inserida num escudo. É a articulação perfeita. Para nós, esse escudo é o
silêncio. Marchemos até a forja dos ciclopes armados daquela que é a
postura existencial do exílio:
231
MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR
o silêncio. Deixe que a luz o ilumine. Enquanto o ciclope forja a arma, você
assiste, quieto, portando o escudo que lhe permite enxergar, o escudo que é,
ao mesmo tempo, defesa e arma para o exílio.
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
233
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Não gostaria de começar conceituando “culpa”, uma vez que a culpa é uma
percepção interna muito difícil de definir universalmente. Dito isso,
iniciarei abordando a culpa a partir de um lugar que você reconhece como
próprio. Mais adiante, tratarei sobre um lugar da culpa que, embora você até
possa reconhecer, não o consegue nomear (e, geralmente, os fracassos
biográficos vêm desse segundo lugar).
Percebemos também que o motivo pelo qual não conseguimos levar a cabo
nossas pretensões biográficas é justamente a falta de força interior.
235
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
236
“Idade Média”.
Por que você acha que a Idade Média é uma época sombria?
Seja honesto consigo mesmo. Você já leu algum livro sobre esse período
histórico, ou você só sabe aquilo que aprendeu com seu professor de
História no Ensino Médio? O que você realmente conhece sobre o poderio
da Igreja Católica naquela época, ou sobre a Inquisição? Quando pensamos
em Inquisição, vem-
Se for honesto, você admitirá que não conhece sequer um escritor da Idade
Média. Nunca ouviu falar em Duns Scott, Guilherme de Ockham, Bernardo
de Claraval — e, se ouviu, não os leu. Você não tem idéia da literatura que
tem em mãos, mal conhece um livro escrito naquela época. Qual era o expe-
diente no tribunal de ofício da Inquisição da Igreja Católica?
Havia inquérito, ou era uma coisa mais sumária? Você sabe se há conexão
entre as práticas de inquérito do FBI e as práticas de inquérito da
Inquisição? Sabe se havia diferença entre uma inquisição civil e uma
inquisição religiosa? Provavelmente não, certo? Pois bem.
237
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Não há razão para torcer o nariz quando lhe disserem que a Filosofia
Escolástica é uma filosofia medieval. A primeira quebra a ser feita é na
idéia de que “medieval” é sinônimo de algo ruim.
238
239
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
era muito mais perigoso sair de carro na madrugada e na chuva do que ficar
ali.
e culpa existencial
240
Por uma repressão da sua consciência moral, você talvez já não saiba mais a
origem do problema, não consiga mais investigar onde ele está. Isso se
atinge com anos de prática repri-mindo o que se acha certo e fazendo o
errado (sabendo que é errado). A culpa, então, já não tem mais aquela face,
aquele sinal positivo de alerta; ela é algo que mira para baixo. Quando
chega a esse ponto, você não vê mais nada do que está acima, você
simplesmente segue agindo como já vinha agindo, cerca-do por sintomas de
desvio biográfico.
Essa é, em linhas gerais, a idéia de Igor Caruso. Como, en-tão, agir diante
disso?
Bem, se ainda há uma clara culpa em sua cabeça, você não precisa fazer um
inventário de consciência, de conduta. Se ainda tem noção do que é certo e
do que é errado, esse é um ótimo sinal, quer dizer que você só não está
conseguindo agir
241
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
de acordo. O problema maior surge quando você agiu errado por tanto
tempo que já não sabe mais o que é agir certo. Nesse caso, Caruso propõe
que se faça uma formação da consciência; é realmente voltar ao bê-á-bá
para formar a consciência novamente — que é parte do que estamos
fazendo aqui.
biográfico inalcançável
242
Carroll diz que há todas essas culpas que comentamos e que, em geral,
confessamos. São as culpas morais, das quais também fala Caruso; mas
Carroll alega que há também, no fundo de toda vida, uma culpa mais
fundamental, que ele não chega a descrever ou nomear exatamente, mas que
parece ser geradora dos sintomas de desvios biográficos profundos. É a
culpa do fracasso.
Quando você está se desculpando por uma culpa moral, em regra, você está
revoltado porque fracassou. Quando pede desculpas por ter roubado, por ter
mentido, esse pedido brota de uma culpa que você teve por fracassar em
algo específico: você tinha um modelo na sua cabeça, mas fugiu dele.
Veja que coisa terrível: você não está se culpando por um mal que fez; está
se culpando porque projetou algo sobre sua vida e falhou — não porque
errou moralmente, mas porque você é ruim e fraco. É uma culpa insidiosa,
sem esperança, egoísta.
Carroll diz que a formação dessa culpa específica ocorre a partir da escolha
de modelos impossíveis de serem concreti-zados. Existe uma culpa que
advém do fato de que você quer ter sucesso — portanto, quando faz alguma
coisa errada no trabalho, você é tão canalha, que não sente um
arrependimento moral. Você está frustrado consigo mesmo, porque é
egoísta e porque tinha na cabeça um modelo de sucesso irrealizável.
243
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
quando criança, mas isso não tem nada a ver comigo; além do mais, é
muito difícil chegar a ser astronauta. E, pensando bem, a vida de um
astronauta deve ser muito triste. O que quero mesmo é ser médico (ou
arquiteto, ou cineasta, ou engenheiro, ou contador).”
-se pelo “mérito”: se você trabalhar duro, chegará lá, ficará rico e
prosperará. Isso é coisa de gente que nunca percebeu como a vida funciona.
Há muitas pessoas obstinadas, que trabalham duro a vida inteira e jamais
ficam ricas. Não é assim que se fica rico, e, sinceramente, “ficar rico” não é
algo ensinável ou que tenha um método certo. Existem tantas variáveis
sobre as quais não se tem controle, que enriquecer é um processo irreprodu-
zível — e qualquer rico com um mínimo de honestidade vai lhe dizer isso.
“Italo, isso não é verdade. Eu sei como ficar rico definitivamente.
Basta fazer o que fiz: estudar tudo sobre a bolsa de valores, sobre de-
rivativos, renda fixa, opções de venda, opções de compra etc., e aplicar
seguindo o método. ” Certo, mas você, que enriqueceu assim,
provavelmente tomou conhecimento sobre a bolsa a partir de um princípio
que não controla: alguém por acaso lhe contou, e você por acaso estava com
disposição para ouvir naquele dia, e assim pôde pesquisar mais a fundo
depois. Calhou ainda de ter alguma sorte, pois você poderia ter perdido todo
seu dinheiro ou, pior ainda, ficado devendo muito dinheiro. Sei que pode
parecer frustrante, mas a verdade é que ninguém sabe como ficar rico.
244
são muito mais capazes, muito mais comprometidas e, ainda assim, não
ficaram nem ficarão ricas.
O sujeito que chegou lá no topo dirá: “Você precisa ter mérito, trabalhar
dia e noite, se esforçar, servir, não encher o saco”. Certo, mas será que esse
sujeito já se deu conta de que existe muita gente pobre ou na classe média
que faz exatamente isso, e ainda muito melhor do que ele — gente com
talento — mas que não enriqueceu? Ora, “ficar rico” não depende só da
pessoa. Há um imenso número de variáveis incontroláveis.
Vou dar exemplos mais concretos, que podem parecer cho-cantes. Pense
num rapaz que quer apenas ser médico, sem pretensão de ficar rico. Se esse
rapaz estiver em Cuba, talvez seu sonho não se realize, pois uma regulação
estatal sobre a profissão só permite a titulação de médicos se o país estiver
precisando de médicos. E mesmo no Brasil o rapaz poderia se frustrar com
facilidade. Suponhamos que ele tenha estudado horrores, mas não tenha
conseguido uma nota no vestibular que lhe permitisse ingressar numa
universidade pública. Se a família dele não tiver dinheiro para pagar a
faculdade, ele não será médico, simples assim.
Mesmo o rapaz que quer ser contador poderá encontrar dificuldades que o
impedirão de chegar a seu objetivo. Suponhamos que ele tenha estudado
bastante para se tornar contador, mas seu pai morreu, e eis que ele, do nada,
vira arrimo de famí-
E o rapaz que quer ser comerciante e já tem uma loja pronta? Parece que
tudo está a seu favor. Mas pode ser que a loja pegue fogo e ele não tenha
seguro. Ou que aconteça como aconteceu atualmente a tantos lojistas que
haviam acabado de montar seus empreendimentos: surja uma pandemia e o
prefeito da cidade mande fechar todos os estabelecimentos por tempo
indeterminado, ele não consiga transformar sua loja física em e-commerce e
acabe falindo.
245
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
E o rapaz que quer ser bailarino, tem dinheiro e estuda na melhor escola de
balé do país? Não há chances de dar errado, certo? Ora, ele pode sofrer um
acidente de carro e perder as duas pernas.
Mesmo que tenha ficado rico, será que você ficou rico tanto quanto queria?
Mesmo que tenha se formado médico, será que você está na clínica que
queria? Mesmo que tenha se tornado mãe, será que teve a quantidade de
filhos que gostaria, ou será que seus filhos se tornaram o que você
desejava? Quando a resposta é “não” (e a resposta sempre é essa), surge um
pensamento que sintetiza essa conexão entre Igor Caruso e John Carroll:
“As coisas estão dando errado na minha vida porque sou imoral. Foi um
erro que cometi lá atrás, foi minha preguiça que me levou ao fracasso; foi a
mentira que contei no aniversário de três anos da minha sobrinha e acabou
repercutindo mal na família que fez com que eu fracassasse”.
Não estou dizendo que você deva ser imoral; sustente por um momento a
idéia de Igor Caruso, porque ela não será der-rubada, mas precisa estar
profundamente articulada. Se estiver isolada, você pensará que tem de ser
bom e fazer a coisa certa; mas isso não basta. Não basta ser bom e agir
moralmente. Se seu modelo biográfico for inadequado, você estará
projetando a
246
realização da sua vida em algo que não depende de si, de modo que ainda
haverá culpa.
Além disso, você não sabe de onde vem essa culpa. Sua vida será vazia,
pesada e dramática, sob certo aspecto, e eventualmente você poderá pensar
que, apesar de ser bom, de ter uma vida de oração, de buscar agir sempre
moralmente, de ter lutado contra suas más inclinações, há algo que não está
andando.
Essa é a culpa de que John Carroll falou. É uma culpa de formação, quase
que estruturante, que surge a partir da escolha de um modelo biográfico
inalcançável.
Essas idéias são discutíveis, afinal, nem todo o mundo é comunista, mas ao
tentar discutir com alguém que aderiu a esse tipo de eixo biográfico, na
tentativa de convencê-lo de que o eixo é ruim, só haverá uma reação
possível. A pessoa não entenderá que você está falando do comunismo,
criticando a coisa, mas achará que você está falando dela, criticando-a.
Isso vale para o veganismo, mas também para o tomismo. Pois certas
operações fogem à pretensão de escolas filosóficas ou teológicas, bem
como de determinadas ideologias.
247
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Como pagar uma conta no banco ao modo tomista? Como fazer uma oração
a Deus ao modo vegano? Não dá. Logo, veganismo e tomismo não podem
ser eixos biográficos.
248
comendo. Em todo o resto da vida, você não poderá ser fitness.
Sua vida se tornará uma coleção de fracassos acumulados que não têm a ver
com a moralidade de certo ou errado. Você pode ser um sujeito fitness,
vegano ou tomista, do modo “certo” (do ponto de vista de Igor Caruso).
Você pode não cometer crimes, não roubar, não mentir. O problema é que o
certo e o errado estão na base. Não é que seja melhor ser um sujeito
relaxado e displicente do que ser fitness, ter saúde e força. O ponto é que
estamos falando de certo e errado, e da impossibilidade de ter uma biografia
completa e ampla, porque o modelo é insuficiente.
É como a escolha do “ser rico”. Não dá para objetivar uma biografia com
esse modelo, porque a realização dele não depende de você. Deixar de
comer carne e estudar São Tomás de Aquino são coisas que até dependem
você; o que não depende, nesses casos, é a realidade da vida, que é mil
vezes mais ampla do que uma academia e até mesmo do que a obra inteira
de São Tomás.
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Para ter uma vida com sentido, livre de culpa, não basta ser bom; mas isso
não quer dizer que devamos ser maus. Essa culpa estruturante não exclui as
necessidades conceitualmente elencadas por Igor Caruso — o problema é
quando só elas aparecem na sua história.
250
ência para tê-la. A única intenção do feto no ventre da mãe é ser, existir, não
se desintegrar. Não é uma intenção consciente, uma vez que o feto não tem
consciência, mas uma tendência. Na primeira camada temos, portanto, não
uma psique do modo como a entendemos, mas aquele ente já tem o desejo
de permanecer.
A motivação da Segunda Camada, por sua vez, é ser, mas ser na história.
Lembre-se do inconsciente familiar de Szondi.
251
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
que está entrando em você é compartilhado com muita gente; não existe um
eu interior ainda.
Nenhum adulto deveria ficar aprisionado na quarta camada, pois ela não é
senão uma etapa de transição. Mas há hoje muita gente que insiste em não
amadurecer, em não abandonar a quarta camada. No consultório, faço uma
progressão congruente para tirar o sujeito da quarta e jogá-lo na quinta ou
na sexta camadas.
252
Todos esses modelos biográficos (ser médico, ser mãe, ser rico...) acabam
caindo em alguma camada. Ganhar dinheiro e ter sucesso é uma motivação
característica da Sexta Camada, mas ainda é uma motivação pouco
personalizada. Acima dela, existe uma série de outras necessidades do eu, e
o sujeito que ganha
253
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Ainda faltam coisas, mas Adler já conseguiu ver mais longe do que seus
colegas. Não adianta autodeterminar o seu eu interiormente, como Freud
propõe, ou projetá-lo no mundo, diante dos arquétipos, como Jung pretende.
Adler é quem diz que, acima de todos esses eus, existe um eu mais
poderoso (mais personalizado, portanto), que é o eu que aparece no
confronto de serviço para a comunidade.
Pelo contrário, se estiver na sétima camada, o papel social faz com que você
seja mais você. Chega uma hora em que você percebe que sua motivação é
entregar e servir. Você é mais quando entrega para o outro aquilo que
corresponde à expectativa dele.
Todo ser humano normal deveria chegar à sétima camada, de algum modo.
Ao longo da vida, se você aprende a fazer muitas coisas úteis, alguma
comunidade terá uma expectativa sobre você, e o que você tem de fazer é
cumprir esse dever.
254
Por fim, na Oitava Camada (só comentarei até ela), aparece um eu que fica.
É uma força que independe até mesmo da comunidade; é um eu que
apareceu na linha metafísica (Primeira Camada), que se concretizou com
sangue de seus antepassados (Segunda Camada), que aprendeu a se instalar
no mundo (Terceira Camada), que contornou seus afetos no mundo interior
(Quarta Camada), e que, por ter uma unidade interior, pôde testar forças no
mundo (Quinta Camada). Essas forças passaram a ser úteis e a trazer
recursos de sucesso (Sexta Camada), e ele agora as põe a serviço da
comunidade (Sétima Camada) e transcende a conquista material (Oitava
Camada). É o itinerário de personalização do eu; a cada vez que você fala
eu perpassando as camadas, esse eu se torna mais seu e mais indestrutível.
Assim não dá para ser, e, se tentar, você carregará uma frustração de base
que o levará para uma culpa existencial e, por conseguinte, para uma
tristeza.
Metafísica e esterilidade:
o eu diante da morte
As Doze Camadas da Personalidade são uma tecnologia muito profunda.
Subindo, de camada em camada, vamos aos poucos
255
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Mas por que diabos você precisa se preocupar com essa pessoalidade, com
dizer eu? Ora, porque absolutamente tudo o que fazemos, fazemos diante de
um eu: eu acordo, eu preparo meu café da manhã, eu sirvo minha empresa,
eu ganho dinheiro, eu sonho meus sonhos, eu enterro meus entes queridos,
eu gero vida no meu ventre, eu gero vida intelectual.
256
O ato humano sem esperança vem de um lugar que nos amarra ao Ser,
dentro do qual vivemos. Esta é a síntese de toda a filosofia de Louis
Lavelle, segundo a qual, no fundo de tudo, domando tudo, penetrando tudo,
existe um Ser, e não o nada. Isso deveria ser bastante óbvio: basta respirar,
basta um abraço, basta ver uma criança, basta dar uma esmola, basta ver
uma flor germinando, basta contemplar o sol que nasce e se põe
diariamente. Tudo isso é presença de algo, e não presença de nada. Não se
pode ter presença de nada; nem mesmo a mentalidade mais tacanha pode
negar essa verdade. O que existe é o Ser, e não o nada, e isso se constata
pela própria autoridade da realidade, que é profundamente presente.
O ato humano se distingue dos demais atos. Um objeto também “age”, mas
chamamos seu agir de padecer. Quando você segura uma pedra com as
mãos, ela fará peso, afinal, tem volume, matéria, dimensões. Ela age,
portanto — mas é uma ação passiva. A ação de um cachorro, pelo contrário,
é ativa (como uma ação pretende ser), mas ainda não é pessoal.
257
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
sem metafísica
258
vida metafísica. Ele diz que não é nada, nunca será nada e não pode querer
ser nada; no entanto, tem em si “todos os sonhos do mundo”. Em sonho, em
hipótese, em segredo, ele fez mais que Napoleão, apertou ao peito mais
humanidades que Cristo e fez mais filosofias que Kant. Mas na realidade o
que é que fez?
Falhou em tudo, pois que “o mundo é para quem nasce para o conquistar e
não para quem sonha que pode conquistá-lo”.
Revela, assim, suas tristezas e demônios interiores num queixume sem fim,
que lhe serve de resposta diante da morte: Estou hoje vencido, como se
soubesse a verdade Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer E não
tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se
esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma
partida apitada De dentro da minha cabeça,
259
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da
rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como
coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
(...)
(...)
0 mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que
pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha
qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
uma parede sem porta.
(v. 25-60)
260
É a triste confissão de um homem que não crê em si mesmo, não sabe o que
é e não vê sentido na própria vida. Como resultado, olha também para o
mundo exterior, para as ruas da cidade, para o campo, para onde quer que
seja, e não vê senão coisas banais, indistintas e desprovidas de sentido:
árvores, ervas, pessoas iguais a todas as outras. Não vê graça alguma no
mundo, quando poderia ter percebido o alegre canto dos pássaros, o sopro
gostoso da brisa, o precioso dom do sol que não deixa de nos dar luz e calor
um só dia ou a sinceridade do sorriso desdentado de uma menina de rua.
Esse homem esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem
porta. Esperou e esperou... Mas o que é que ele fez?
E ele segue:
Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e
o Indefinido.
(v. 63-72)
261
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
O que um homem como esse não consegue entender é que a metafísica não
está distante, nas estrelas, mas sim num olhar de amor, no serviço ao outro,
no cumprimento de um dever, na re-tificação de um erro, no pedido de
perdão para quem magoamos e traímos, para quem esteve ao nosso lado nos
suportando em nossas falhas e misérias.
Aqui está o delírio de quem não entende que esta vida se dá neste mundo.
Parece que o céu e a terra se tocam lá longe, no horizonte, na Via Láctea, no
Indefinido, mas não é assim: o céu e a terra se fundem no coração de cada
ser vivente, e é a partir desse lugar que um ato criador emerge.
(v. 73-76)
Pouco depois, no verso 83, o eu lírico diz o seguinte: “ao menos consagro a
mim mesmo um desprezo sem lágrimas ”. Mas um homem que não chora
não é verdadeiramente homem e uma mulher que não chora não é
verdadeiramente mulher. Chorar é profundamente humano. Chorar diante
de uma realidade
262
de perda, de uma alegria, da beleza das coisas simples do mundo, que está
aí para nós gratuitamente, é profundamente humano. As lágrimas servem-
nos de polimento para os olhos. E, como vimos no capítulo dedicado à
lâmina da Papisa, quem não tem os olhos polidos, não tem neles refletido o
mundo.
Apesar dessa incapacidade, ele diz “ver a rua com uma nitidez absoluta” (v.
98). Sim, vê lojas, passeios, carros, “entes vivos que se cruzam” e “cães que
também existem”: mas não capta o ser de nada disso, pois não tem os olhos
polidos. Apenas constata que aquelas coisas existem, pois seus olhos não
podem estar lhe enganando.
tudo isto é estrangeiro, como tudo.” Para o homem que não chora e não se
emociona diante da realidade da beleza da vida, tudo
No verso 111, deparamo-nos com um grande drama: Fiz de mim o que não
soube
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
(v. 111-121)
263
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Ele tentou contar uma história que não era a dele, vestiu o traje errado,
deixou que a máscara se colasse em sua cara.
“Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.” O
dominó é um tipo de roupa. Veja o drama: ele não o sabia mais vestir, mas
tampouco o tirou. Ele queria ter vestido esse dominó, mas alguém o vestiu
nele, de modo que agora já não sabe mais como desfazer a situação, porque
foi privado de uma vida de atos.
Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me
como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de
defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um
tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram
e não valia nada.
(v. 122-131)
Veja, pelos versos acima, como eu lírico trata de temas da Oitava Camada.
Ele faz um inventário de sua vida diante da morte; é disso que trata o poema
“Tabacaria”. De início, o tema da morte não aparece senão de passagem.
Mas agora é chegada a hora da constatação fundamental, da lembrança de
uma verdade a que ninguém pode se esquivar:
264
(v. 132-138)
Diante da morte, o poeta busca entender o sentido daquilo que ele faz —
escrever versos. Pois hoje o que ele produz são versos, e versos como uma
pretensão sublime, mas um dia o mundo há de acabar, e com ele perecerão
o poeta, seus versos e a própria língua em que foram escritos. Sua obra
morrerá.
265
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Deus sabe quantas oportunidades não teve este poeta de dar sentido a esta
vida sem sentido. Sabe o que quebraria a maldição desse escravo cardíaco
das estrelas? Olhar para aquela pessoa que entrou na tabacaria, sorrir-lhe e
oferecer-lhe um cigarro — e quem sabe convidá-la a se sentar, perguntar de
que tabaco mais gosta etc. Mas ele preferiu desperdiçar mais uma chance de
fazer algo para continuar fumando e divagando.
(v. 159-164)
Por que você imagina que, para o poeta, esse tal Esteves não tem
metafísica? Em primeiro lugar, porque o poeta não tem os olhos polidos e
não consegue captar o ser das coisas.
Na verdade, todo ser humano tem “metafísica”, pois todo ser humano tem
um sentido que não está limitado à realidade material. Toda vida humana
tem sentido e é interessante se for bem contada.
Se o poeta diz que Esteves não tem metafísica, é porque ele próprio está
contando sua vida sem metafísica, como já vimos nos versos anteriores.
266
Drummond
e a máquina do mundo
vel povo português (que rasgou oceanos, cruzou mares, enfren-tou dragões
dos horizontes, inflou velas com a esperança de seu coração e de sua fé e
desbravou o mundo, levando o Cristo e a cruz para além-mar) e ser nada
(ser aquele homem da mansarda, aquele gênio que se concebe gênio para si
mesmo, mas cuja genialidade talvez jamais encontre a luz do dia).
Nós não somos assim. Somos apenas “mineirinhos”, como nos retrata
Drummond em “A máquina do mundo”, um de seus ápices poéticos. No
poema, ele canta uma das nossas maiores tragédias, a saber, a do homem
que olha para as doze camadas e quer nelas ascender, que entende que
precisa se pessoalizar, que conhece as quatro narrativas possíveis e, embora
sabendo de tudo isso, tem trespassada em seu espírito uma espada negra,
envenenada, a qual mina sua energia e arranca a esperança mesma que o
habita.
de Dante. Gostaria de comentar alguns de seus versos. Mas peço que você o
leia integralmente três ou quatro vezes antes de passar aos meus
comentários.
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Que convite!
Mas não se abre só uma vez na vida, quando já estamos cansados e sem
esperança na estrada pedregosa da vida. Ela está aberta para nós,
gratuitamente, todos os dias. Como uma flor perenemente aberta, ela
perfuma nosso ser, alegra nossos dias, exibindo toda a sua vivacidade e cor.
Temos nós, homens, uma irmandade com um Ser que não se abre e fecha
malignamente e se fecha como em uma comé-
268
Esses versos são meus e seus; são nossos. Não são aquela cena distante de
“Tabacaria”, pois, no fundo, todos temos alguma metafísica — ninguém há
como o Esteves. O que acontece no poema de Drummond é a história de
muitos de nós: de sujeitos que olham para baixo e enxergam um chão
pedregoso e infértil, que nos dificulta a caminhada e donde vida alguma
poderá brotar; de sujeitos que, em certos momentos da vida, perdem a
capacidade fecundante.
Esse é um poema que retrata alguém na Oitava Camada, al-guém que está
se vendo diante de um destino último e buscando responder à pergunta: “O
que sou eu, neste mundo, diante do Ser, diante da morte?”.
Isso significa que a realidade se oferta ao nosso engenho todo santo dia,
desejando ser fecundada por nossos atos, e um ato fecundo é um ato sem
esperança.
269
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
No dia de amanhã, aja sem esperar, e você verá que toda a realidade brota
num manancial sereno. O ato sem esperança não é o ato de um homem
covarde, de alguém que abdicou de ser humano; pelo contrário, é o ato
daquele sujeito que se agar-rou à única realidade que vai permanecer: a
caridade, o amor.
Se você age, se beija um filho, se vai ao trabalho, se faz as pazes com quem
está de mal, você o faz para servir, por amor. Se, um dia, todos na face da
terra agissem profundamente, intensamente, sem esperar nada, só movidos
pela caridade, imagine a qualidade desse dia! Como seria perfeito esse dia,
não? Isso porque ele seria o reflexo do ato do Ser em Ato Puro, daquele que
é a fonte mesma da nossa existência.
até porque, se esperasse, não nos criaria, porque sabe que iremos frustrá-lo.
O ato fundacional de todo o cosmos, e mais, da nossa vida, é um ato de
amor, não um ato de esperança.
A pergunta que se abre na Oitava Camada é precisamente essa; é olhar para
o poema “A máquina do mundo” e dar-lhe uma resposta pessoal: “Vou
aderir a essa desesperança? Verei o mundo tal como o eu lírico o está
vendo, desdenhando colher a coisa oferta que se abre gratuitamente para
mim? ”
Esse poema é uma versão terrível daquilo que pode acontecer ao sujeito de
Oitava Camada. Desdenhar do fato de estar vivo, de acordar ao lado de
alguém que abre os olhos e o procura, desdenhar do fato de que você é
responsável pela vida de tantas pessoas, desdenhar do fato de que tem essa
vida, esse lugar, esse emprego (por mais imanente que ele lhe pareça), é dar
um tapa na cara do Cristo, na cara da Verdade, na cara do Ser em Ato Puro.
Cada vez que você reclama da realidade, você está dando um tapa na cara
do Cristo, porque ele é o Logos, e a realidade
270
é o Logos. É claro, portanto, que você perde força e não conseguirá dar uma
resposta à pergunta da Oitava Camada: diante da morte, o que você faz?
Diante da morte, essa sua vida continua tendo sentido?
Metafísica possível
271
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Será que abaixo minha cabeça, olhando as pedras pelo caminho do chão
pedregoso de Minas, de céu escuro e aves negras?”
272
Retrato
Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla, y un huerto claro donde
madura el limonero; mi juventud, veinte años en tierras de Castilla; mi
historia, algunos casos que recordar no quiero.
Desdeño las romanzas de los tenores huecos y el coro de los grillos que
cantan a la luna.
A distinguir me paro las voces de los ecos, y escucho solamente, entre las
voces, una.
273
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Y cuando llegue el día del último vïaje, y esté al partir la nave que nunca
ha de tornar, me encontraréis a bordo ligero de equipaje, casi desnudo,
como los hijos de la mar. 30
Esse pátio provavelmente era um lugar onde brincou com seus irmãos, e do
qual deve ter lembranças gostosas. Mas é só isso.
-me quanto escrevi. / A meu trabalho recorro, com meu dinheiro pago / o
traje que me cobre e a casa em que habito, / o pão que me alimenta e o leito
em que durmo. //
274
Nos versos seguintes ele passa à mocidade, dizendo que sua juventude
foram vinte anos nas terras de Castilha, e sua histó-
ria, alguns casos que não quer recordar — afinal, para que dar voltas com
as faltas de atos? Disso, ele não quer se lembrar, e é justamente assim que a
vida deve ser levada. De que serve ficar relembrando aqueles cinco reais
que sua irmã lhe deve desde quando você tinha doze anos de idade? É a
Oitava Camada, afinal. Lembre-se de que estamos falando da história diante
da morte, daquilo que vale e daquilo que não vale.
O poeta continua sua história, narrando que não foi nenhum “Don Juán”,
embora estivesse inserido nessa tradição.
Não viveu muitos amores, mas tampouco foi um bobo. Ele amou. E amou
porque é gente.
Segue, então, revelando que, embora tenha no sangue traços de ira jacobina,
de revolta, é um homem equilibrado e tranqüilo, porque sabe o que importa.
Não lhe importa, por exemplo, ser reconhecido como clássico ou romântico.
Só deseja que seu verso seja como a espada do capitão: famosa pelo braço
viril que a empunha, não pelo ofício de quem a forjou. Essa é sua pretensão
enquanto poeta, essa é a marca que deixará no mundo.
Veja como ele não tem afetações de religião. Não diz conhecer tudo sobre a
Trindade nem se jacta de que Deus lhe fale intimamente em orações
demoradas e profundas. O que diz é que conversa com o homem que segue
sempre com ele. Ele sabe que, em seu peito, existe essa conexão entre ele e
o Ser em Ato Puro, mas não se exibe como quem já chegou aos píncaros da
glória.
275
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Esse solilóquio, esse falar sozinho, essa tentativa de oração (se quisermos
falar desse modo), é uma busca de intimidade com o bom amigo que vai lhe
ensinando os segredos do amor.
Repare a diferença entre as aspirações dessa última estrofe e as aspirações
abstratas presentes nos citados poemas de Pessoa e Drummond, os quais
conceberam idéias que jamais verão a luz do dia. Machado fala de uma vida
concreta, ele conta uma história, como eu e você deveríamos fazer também.
Ao fim e ao cabo, aquele amigo que lhe ensinou o segredo do amor foi
quem o conduziu para essa vida pegada ao chão.
Como já disse, parece ser no horizonte que o céu e a terra se unem, mas não
é; isso acontece no coração do homem que trabalha. O ofício de Machado é
ser escritor; portanto, diz que nada deve; é seu leitor quem lhe deve pagar
pelos escritos. Com esse trabalho, ele compra suas roupas ( “el traje que me
cubre” ), paga o aluguel da casa em que mora ( “la mansión que habito” ),
compra a comida que come ( “el pan que me alimenta” ) e compra a cama
em que dorme ( “el lecho en donde yago” ). É aí que se dá a vida humana.
276
O segredo de Machado, por outro lado, é deslocar sua vida para o trabalho,
para coisas concretíssimas como o traje que o cobre, a casa em que habita, o
pão que o alimenta e a cama em que dorme. São coisas que parecem
maximamente imanentes, e lhe parecem imanentes porque são. Ao mesmo
tempo, pratica um solilóquio, esperando um dia falar com Deus.
277
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
que ele ainda não sabe quem é, e que bem pode ser ele próprio (embora
espere falar a Deus um dia). E termina com seu último dia.
Um dia será certamente o seu último dia. Pode ser que seu último dia seja
amanhã; pode ser que seja hoje mesmo. E se Antonio Machado fosse
tomado de assalto por esse último dia, veja como ele seria encontrado: “ao
chegar ao último dia de viagem, me encontrareis a bordo do navio que
nunca há de regressar, com uma bagagem leve, quase nu, como os filhos do
mar.” Quando o último dia chegar (e ele chega para todos, sem exceção),
Machado será encontrado como aquele sujeito que agiu.
Você acaso já se fez essa pergunta? Quando seu último dia chegar, como
você será encontrado? E você, psicólogo, já fez essa pergunta a seus
pacientes?
O ato humano é o ato de quem não fica esperando: não entu-lha sua
mochila de quinquilharias, ou seja, de esperanças malfa-dadas. E não
nutrimos muitas vezes esperanças que se frustram a todo o tempo? “Vou
agir assim, e espero que... ” “Espero que me reconheçam...”, “Espero que
batam palmas...”, “Espero que minha poesia seja sublime e alcance leitores
e ouvintes atentos...”, “Espero que meu filho não seja um drogado...”,
“Espero ficar rico... ” Esse “espero que”, é justamente o inverso do “ligero
de equipaje”. “Ligero de equipaje” significa “com bagagem leve”. Para a
última viagem, não devemos levar malas pesadas. Tudo quanto levamos
está dentro do nosso peito, em nossa biografia. Você pode e deve ser
encontrado de peito aberto, como os filhos do mar.
278
Confissão
John Carroll é muito preciso quando fala de culpa existencial, aquela que
você sente ainda quando faz tudo de modo “correto”. Em “A máquina do
mundo”, o eu lírico não fala nada acer-ca de seus erros; ele pode muito bem
ter vivido “bem”, como um rapazinho muito bem comportado.
No poema “Retrato”, por outro lado, Machado confessa seus erros: “mi
historia, algunos casos que recordar no quiero”. Ele assume que, embora
não tenha sido nenhum Don Juán, o Cupido lhe deu algumas flechadas e,
aquelas que podiam recebê-lo em suas casas, estas ele amou.
Por isso é que aquela moral kantiana, do certo e do errado, é uma primeira
coisa a ser quebrada. Francamente falando, todo o mundo sabe diferenciar o
que está certo do que está errado.
Machado diz que tem sangue jacobino, o que quer dizer que poderia ter
“tocado o terror”. Mas seu verso brota de um manancial sereno, porque
sabe o que quer da vida, e ele não irá se trair.
Mas o caminhante da “Máquina do mundo” não aponta nada que tenha feito
de errado: ele falseia a própria história.
Mesmo diante de sua própria morte, ele não consegue elaborar uma
confissão clara, concreta e concisa, como fez Machado nas duas primeiras
estrofes do “Retrato” — observe como Machado confessa rapidamente, sem
dar voltas ou tentar justificar más condutas do passado.
279
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Não andemos por aí deitando fora a vida como aquela pequena suja que
deita ao chão as folhas de estanho do chocolate que come. Saibamos
perceber que não é verdade que exista mais metafísica na confeitaria do que
na religião; há muito mais metafísica em uma vida entregue ao serviço do
outro.
Que “pupilas gastas” são essas? Que deserto é esse, Drummond? Quanta
diferença de força, de instalação vital, para o poema de Machado! De um
lado, a força de vida bem vivida; de outro, a traição biográfica.
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281
CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO
Ele diz que vai pelos caminhos, e é como se outro ser (não mais aquele
habitante de si há tantos anos) passasse a comandar sua vontade. Noutras
palavras, ele abdicou de ser gente, abdicou do ato. Puxa vida! Se não eu,
quem? Se não agora, quando? Se não se escreve a própria história, quem a
haverá de escrever?
Gusdorf diz que a história humana é escrita a três mãos: um terço é escrito
por Deus, um terço é escrito pelo diabo e o outro terço nós é quem o
escrevemos. Com o seu terço, o caminhante do poema fez o que quase
100% das pessoas fazem no nosso tempo: entregou-o deliberadamente para
que o escrevessem as aves negras — seriam elas demônios? Daí vem a
percepção de que alguém tomou o controle de sua vontade.
282
Mas, mesmo para quem já está adiantado na estrada e vê a treva mais estrita
pousando sobre si, não é tarde demais. Não foi tarde demais para Édipo,
não é tarde demais para a mulher de trinta anos — ao contrário do que
Freud disse —, não é tarde demais para o caminhante desenganado.
Enquanto o navio não vier lhe buscar para a última viagem, ainda não é
tarde.
É por isso que, para nós, no dia de hoje, entrar na vida é agir; agir diante de
quem amamos, cumprir o nosso dever.
POSFÁCIO
285
s lâminas do Tarô e a mitologia têm ainda a nos oferecer muito mais do que
apresentei aqui. Porém, o esco-Apo deste livro não me permitiu avançar
mais na análise de outros mitos e de outras lâminas do Tarô além daquelas
do Mago, da Papisa e da Imperatriz. Desejo futuramente dar continuidade a
este trabalho, bebendo do riquíssimo simbolismo presente nos demais
arcanos do Tarô (e em outros mitos de civilizações antigas), chaves de
compreensão para outras realidades complexas e difíceis, com as quais nos
deparamos constantemente na prática clínica e na vida cotidiana.
Espero ao menos que, ao final desta leitura, tenha ficado claro para você
que a Psicologia não é uma caixa de ferramentas que se procura no
almoxarifado da clínica ou na despensa de casa, em busca de uma chave
com que apertar meia dúzia de parafusos soltos na cabeça de alguém. Em
primeiro lugar, porque as cabeças das pessoas não têm parafusos;
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287
POSFÁCIO
Mas, com o tempo e a prática, você verá que seu trabalho vira jogo, e já não
será mais preciso pensar em cada passo que dá.