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O chapéu do Mago - Italo Marsili Impresso no Brasil.

1a edição, Novembro
de 2020.

Os direitos desta edição pertencem a

WRL Cursos e Eventos LTDA.

Av. Brasil 6141, sl. 2 - Zona 05

CEP: 87.015-280 - Maringá, PR

Telefone: (44) 99129-9578

E-mail: italo@italomarsili.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M372c.

Marsili, Italo.

O chapéu do Mago / Italo Marsili - Maringá, PR: Real Life Books, 2020.

288 p.

ISBN: 978-65-87926-19-3

I. Titulo II. Marsili, Italo

CDD 150 / 155.25 / 158.1

Índices para Catálogo Sistemático:

1. Psicologia - 150

3. Auto-ajuda: Aperfeiçoamento pessoal - 158.1

Direção Geral

Arno Alcântara
Editor
Luíza Monteiro de Castro Dutra Araujo

Revisão

Raíssa Prioste

Matheus Bazzo
Capa
Vicente Pessôa

Diagramação:

Gabriela Haeitmann

Reservados todos os direitos desta obra.

Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou


forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer
outro meio de reprodução, sem permissão expressa da editora.

SUMÁRIO

Introdução ............................................................. 6

O mago .....................................................................24

A papisa .....................................................................92

A imperatriz ......................................................... 136

Mitos gregos e exílio interior ............... 196

Culpa existencial e fracasso .....................232

Posfácio ..................................................................285

INTRODUÇÃO

A quem este livro se dirige

Não escrevi este livro exclusivamente para psicólogos, psiquiatras,


psicanalistas, terapeutas e coaches, mas também para leigos — pois
Psicologia é um assunto tão interessante e necessário, que não deveria ser
propriedade exclusiva dos profissionais da área.

Conhecer Psicologia pode equipar qualquer pessoa mini-mamente


interessada e capaz com um ferramental que lhe permitirá olhar com mais
atenção para suas relações, seu mundo interior, seus projetos, enfim, para sua
instalação no mundo.

Além disso, muitas pessoas fazem terapia sem conhecer mi-nimamente a


linha a que estão sendo submetidas, nem a visão de mundo de seu terapeuta,
nem mesmo o que ele pretende com aquilo que está fazendo no setting
terapêutico. Eu quero que os leigos — façam eles terapia ou não — também
conhe-

çam um pouco sobre as escolas de Psicologia Contemporânea, sobre as


principais linhas terapêuticas.

Mas não só. Ao longo deste livro, farei constantes remissões às tradições
hermética, simbólica e filosófica, de modo a sempre acrescentar referências
que, infelizmente, são desconhecidas pelos homens de nosso tempo.

Não estranhe, portanto, se topar com menções a Platão, Aristóteles e Santo


Tomás de Aquino; sem eles você definitivamente não entenderá nada de
Psicologia.

Uma abordagem simbólica

da Psicologia

Eu poderia começar um curso de Psicologia de várias maneiras; uma delas


seria pela apresentação da História da Psicologia.

Esta seria uma abordagem sem dúvida muito interessante, já que todos os
elementos históricos são bastante envolventes. Quando uma história é bem
contada, os ouvintes ou leitores conseguem entrar no cenário, examinar seus
detalhes e deixar-se encantar pela vida dos homens, por seus feitos e
pensamentos.
Eu poderia, ainda, fazer uma abordagem técnica. De fato, ao longo deste
livro, falarei de técnica várias vezes.

Mas não é minha pretensão começar de nenhuma dessas duas maneiras.


Optei pela via simbólica. Um eixo simbólico lhe permitirá compreender, em
linhas gerais, o que entendo por Psicologia e como ela pode se transformar
em uma ferramenta muito útil para que psicólogos e psiquiatras auxiliem
seus pacientes — e as pessoas em geral auxiliem a si mesmas e aqueles com
quem convivem.

Se vou seguir pela via simbólica, será necessária uma matriz simbólica, e são
inúmeros os edifícios simbólicos aos quais é possível recorrer. Eu poderia
fazer uma Psicologia a partir das Sete Moradas de Santa Teresa D’Ávila (e
não seria difícil); ou a partir das centúrias de Máximo, O Confessor; ou a
partir dos trinta degraus de São João Clímaco; ou ainda a partir da separação
prismática das cores do arco-íris. Se eu usasse, todavia, um dos exemplos
citados, a coisa ficaria muito desconectada da compreensão dos homens de
hoje.

INTRODUÇÃO

Por isso, o fio condutor simbólico que escolhi para este livro é o Tarô.

Por que o Tarô?

Sim, o Tarô.

E você deve estar se perguntando por que, dispondo de tantas outras opções,
eu escolhi justamente o Tarô.

Eu o fiz, porque o Tarô é um fio condutor simbólico maximamente


profundo, que simboliza realidades complexas e difíceis — como veremos
mais adiante — e que, assim como a Astrologia e a Alquimia, foi uma
ferramenta amplamente utilizada pelos psicólogos contemporâneos de maior
renome. Todo o edifício junguiano e uma boa parte do edifício freudiano
(para não dizer todo ele) baseiam-se na simbólica dessas ciências ocultas.
Portanto, se o sujeito que se interessa por Psicologia não conhece nem
entende a base teórica dessas ciências, ele não entenderá a própria técnica da
Psicologia.

Ter um conhecimento mais aprofundado sobre o ocultismo é necessário ao


interessado e ao estudioso de Psicologia, seja ele já profissional ou ainda
acadêmico em formação.

Existem materiais realmente bons sobre a Gramática Astrológica (que não


são necessariamente materiais de formação para que você aprenda a ser um
astrólogo). No entanto, sobre o Tarô há pouquíssimos materiais que se pode
levar a sério, embora tanto ele quanto a Alquimia tenham sido muito usados
por Jung no desenvolvimento de seu edifício teórico.

O Tarô se divide em 78 Arcanos — ou chaves de compreensão —, sendo 22


Arcanos Maiores e 56 Arcanos Menores.

Disso derivam muitas coisas da Psicologia de hoje, como a necessidade da


terapia, a necessidade de um diário, como fazer para conhecer-se a si
mesmo, o que é o eu, o que é o ego...

E por aí vai.

Aqui, importam-nos os 22 Arcanos Maiores, que serão as nossas chaves de


compreensão. É como se houvesse um kit de ferramentas com 22 chaves, e
cada uma delas fosse usada para

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abrir certa realidade do mundo, oferecendo a nós a oportunidade de


compreendê-la.

Os 22 Arcanos Maiores contam a história de qualquer iniciativa humana,


partindo do início, até o final (quando ocorre o domínio dessa iniciativa
humana sobre o mundo). A pretensão do Tarô é apresentar essas chaves para
que você compreenda verdades ocultas ou difíceis de ver.

O maior sofrimento do nosso tempo é a perda de um certo olhar, é uma


dificuldade de ver as coisas fundamentais. Na língua árabe, a expressão “ser
humano” ( insan) significa “aquele que se esquece”; mas se esquece não de
qualquer coisa senão somente daquilo que é fundamental.

Pagar boletos e pegar os filhos no colégio são coisas das quais não nos
esquecemos habitualmente. Elas ficam registradas num lugar muito
periférico do nosso eu; sempre pedem para retornar e, como estamos
constantemente voltando a lhes dar atenção, jamais nos esquecemos delas.
Por outro lado, esquecemo-nos do fundamental, como, por exemplo, de fazer
as perguntas bá-

sicas que vão nos orientar neste mundo: “De onde vim? ”, “Para onde vou?
”, “O que se espera de mim? ”, “Quem sou eu? ”, “De que sou feito? ”.
Dessas coisas a gente se esquece a todo instante.

A primeira coisa que os Arcanos Maiores pretendem é chamar-nos a atenção


para aquilo que é fundamental. Eles existem para nos lembrar daquelas
verdades fundamentais de que, habitualmente, nos esquecemos.

Os Arcanos — e o Tarô como um todo — fazem parte de uma grande


tradição que subsistiu ao longo dos séculos até a contemporaneidade,
sobretudo na França. A Europa ainda é um lugar no qual se faz ciência com
essa sabedoria; lá existe toda uma tradição simbólica, chamada Hermetismo,
que tenta conservar esse olhar profundo para o mundo a partir da ciência do
Tarô. O Hermetismo é fundamental para entendermos tudo o que se faz na
Psicologia Contemporânea: sem ele, não há compreensão possível dela.

No Ocidente, há escolas de sabedoria simbólica que pretendem manter vivos


esses símbolos no imaginário do homem.

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INTRODUÇÃO

Como disse, uma dessas escolas é o Hermetismo, e o Tarô é uma ferramenta


que condensa uma série de saberes herméticos.

Precisamos falar do Tarô, porque toda a Psicologia Contemporânea se baseia


nele.
Você sabia que Sigmund Freud, por doze anos, jogava Tarô todas as quartas-
feiras para seus pacientes? Sua finalidade era responder a uma pergunta:
“Existe liberdade, ou meus pacientes estão condicionados pelo saber dos
Arcanos, pelo saber das lâminas do Tarô? ”

Ele tinha esse olhar simbólico. Também, pudera: é dali que vem boa parte de
seu edifício teórico, conceitual, prático e técnico.

Muita gente também desconhece que Freud estava imerso em uma literatura
de satanismo judaico; ele bebia da tradi-

ção mística judaica. No fantástico livro “Sigmund Freud and the Jewish
Mystical Tradition” (“Freud e a Tradição Mística Judaica”), ainda sem
tradução para o português, David Bakan apresenta a conversa de Freud com
a literatura espiritual satânica e angélica dos judeus.

Freud estava imerso nessa tradição e, se não voltarmos nosso olhar para isso
também, jamais entenderemos a Psicologia Contemporânea.

Um aviso aos religiosos

que se escandalizam com o Tarô

Em nosso tempo, quando se fala em Tarô, a primeira coisa que vem à cabeça
das pessoas é aquela ferramenta prática que as cartomantes utilizam para
fazer previsões, como um oráculo divinatório. Vê-se o tarólogo ou a
cartomante como alguém que se procura para ler o futuro; como se a sorte de
cada um estivesse disposta naquelas cartas e como se, a partir de uma
consulta, você pudesse entender o que vai lhe acontecer.

Esse tipo de prática atenta contra a liberdade humana, é puro determinismo;


e é por isso que várias tradições religiosas condenam que se recorra não só
ao Tarô, como também à Astrologia ou a quaisquer outros meios, se usados
como ferramentas para prever ou adivinhar o futuro.

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Há, por exemplo, uma prescrição no livro bíblico de Deu-teronômio


reprovando práticas como a adivinhação e a comunicação com os mortos:
“Não se ache no meio de ti quem faça passar pelo fogo seu filho ou sua filha
nem quem se dê à adivinhação, à astrologia, aos agouros, ao feiticismo, à
magia ou à invocação dos mortos, porque o Senhor, teu Deus, abomina
aqueles que se dão a essas práticas.” (Dt 18, 10-14). A condenação de
práticas divinatórias repete-se em várias passagens do Antigo Testamento
(Lv 19, 31; Lv 20, 6; 2Rs 17, 17). De fato, não só a tradição judaico-cristã
em que estamos inseridos, como também outras tradições religiosas
condenam tais práticas. Por essa razão, católicos e evangélicos não deveriam
recorrer à cartomancia, ou seja, ao uso de baralhos como o Tarô para fazer
adivinhação.

Contudo, eu lhe pergunto: você sabe realmente o que é o Tarô? Você alguma
vez viu ou fez um curso sério sobre o Tarô?

Você sabe qual é a explicação real das lâminas do Tarô? Aposto que não.

O Tarô é um jogo. E, embora haja quem se utilize dele para adivinhar coisas
(assim como fazem com borra do café ou bú-

zios), o Tarô não se presta a isso — ele definitivamente não é um sistema de


adivinhação.

Portanto, quando uma pessoa usa o Tarô para adivinhar coisas, o problema
está nela, que está buscando uma resposta fechada para um problema real.
Ela está aceitando ser governada pela pretensa resposta oferecida por um
punhado de cartas. A mulher que pergunta à cartomante, por exemplo, se
encontrará um namorado esperando que as cartas respondam, está, afinal,
deixando-se submeter por um poder tirânico. A prescrição

“contra o Tarô” e “contra a Astrologia” (entre mil aspas) é, de certo modo,


como a prescrição para que você não cometa a es-tultice de se submeter a
um poder tirânico deste mundo.

Se você, evangélico ou católico, quer atirar as lâminas do Tarô na fogueira


da Inquisição, atire antes os tiranos que lhe estão mais próximos: seus vícios
e más inclinações. Esses são os primeiros tiranos da nossa vida. Com o
mesmo ódio, raiva e

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INTRODUÇÃO

petulância com que você fala sobre Tarô e Astrologia, levante-se contra os
tiranos do seu interior; depois, contra os tiranos po-líticos e sociais — jamais
apoie, por exemplo, regimes tirânicos, como os comunistas.

Submeter-se a uma tirania implica a perda da individualidade. Fomos feitos


para nos individualizar maximamente, para dizermos “Eu sou”; mas todo
regime tirânico nos tira essa possibilidade. A cosmovisão hegeliano-marxista
consiste justamente em anular essa individualização, como dizendo a todo
ser humano: “Você não tem uma identidade. Ou você é proletário, ou é
burguês. Funda-se a essa visão de mundo bipartida, dual. ”

Não há maior tirania do que essa.

Se, portanto, existem condenações às práticas divinatórias, é porque elas,


como os regimes tirânicos, acabam por anular o indivíduo e impedi-lo de
dizer “Eu sou”, escravizando-o. Veja como, para os cristãos, isso é fatal: é a
anulação da liberdade e da individualidade que o próprio Deus deu aos
homens.

Porém, tenha em mente que condenar a adivinhação não significa


absolutamente condenar as lâminas do Tarô e as realidades simbólicas nelas
implicadas.

De todo modo, neste livro, eu não vou lhe ensinar a jogar Tarô. Nem mesmo
falarei sobre a disposição das lâminas na mesa divinatória, mas apenas sobre
os símbolos inscritos nas lâminas do Tarô. É isso o que nos interessa aqui.

Símbolo e Alegoria

Se você olha para uma lâmina de Tarô, dela deduz um monte de coisas e nela
projeta sua visão de mundo, saiba que isso é impróprio: é o que se faz com
alegorias, não com símbolos.

Mas qual a diferença entre símbolo e alegoria?

Vou dar um exemplo de alegoria: eu, Italo Marsili, ser humano, dotado de
uma certa capacidade intelectual e de uma certa observação, posso, a partir
dessa minha observação e dessa minha capacidade intelectual, projetar numa
tela em branco

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uma série de símbolos. Em regra, as obras de arte são alegóricas: o artista


observa a realidade e, com base nela, faz uma pintura, uma escultura, etc.
Ele registra algo que está em sua cabeça de tal modo que, quando você olha
para a obra, tem a intuição de que o artista tinha certa visão específica da
realidade. Alegorias são geralmente construídas a partir de uma concepção
fragmentada que o artista tem de um evento qualquer.

As grandes pinturas a que temos acesso, em geral, são alegóricas. Dito de


outro modo, se você vai a um museu e observa uma obra, você de fato fica
mais inteligente, porque, em tese, o artista é um sujeito inteligente que
deixou registrada uma impressão memorável. Por ter uma inteligência acima
da média, ele viu uma fração da realidade do mundo sob certo ângulo, que
você sozinho não observaria, e registrou essa impressão.

Ao olhar para aquele quadro, portanto, é como se você, por um instante,


pudesse ver a realidade com os olhos do pintor, sob o mesmo ângulo.

A uma pessoa sensível e calma, o que a apreciação artística faz é deixá-la


mais inteligente. A contemplação de obras de arte maravilhosas, além de lhe
colocar diante da Beleza, trans-mite-lhe algo a mais: uma fração da
inteligência do artista.

Ao assistir a uma peça teatral como “Hamlet”, de Shakespeare, você notará


nas cenas movimentos da vingança e da inveja que foram percebidos pelo
próprio Shakespeare. Isso, por si só, já fará com que você fique um pouco
mais inteligente. Algo entra em você — e entra porque seus olhos viram
alguma coisa.

Só entra no coração aquilo que passa pelos olhos, mas o olhar do homem
tosco, do homem vulgar (que, em regra, é o nosso...) é um olhar pobre. Por
outro lado, o olhar dos grandes artistas, dos grandes filósofos, dos grandes
místicos, dos grandes práticos, é um olhar já polido — e é disso que
trataremos ao falar da Papisa, a segunda lâmina do Tarô.
A arte como um todo é, via de regra, alegórica, mas não pense que a alegoria
é ruim! Ela é algo de maravilhoso, mas você precisa ter consciência de que
ela comunica apenas uma fração da realidade, uma fração capturada pela
inteligência de um homem concreto. O artista registra uma fração daquilo
que ele percebeu.
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INTRODUÇÃO

Se você entrar, por exemplo, na


Basílica de São Pedro, um gran-

de repositório de Artes, perceberá

que sua manifestação artística é,

sobretudo, alegórica. Gian Loren-

zo Bernini é o grande artista da

Basílica de São Pedro; há ali, em

toda a parte, alguma de suas ma-

nifestações artísticas.

Dentro da Basílica, há um mo-

numento funerário específico que

serve de túmulo para o Papa Ale-

xandre VII. Ele é formado por um

lindo batente em mármore rosa,

maravilhosamente esculpido e poli-

do, do qual emerge um esqueleto de

bronze segurando uma ampulheta.

Quem quer que ali entre, pre-

cisa se abaixar (uma vez que o ba-

tente é baixo), como quem faz uma

reverência para algo. Mesmo o


sacerdote, todo paramentado para

celebrar o santo sacrifício da Mis-

sa, é obrigado a fazer essa vênia ao

passar por ali. A vênia é uma ma-

nifestação de respeito natural para

quando se está diante de alguém

ou algo que é grande e majestoso.

Ao abaixar-se naquele lugar, faz-

-se uma vênia — ainda que invo-

luntariamente — para a figura de

um esqueleto de bronze que segura

uma ampulheta na mão (que é uma

alegoria da passagem do tempo).

Ali, Bernini projetou arquiteto-

nicamente sua visão sobre a mor-

te: mesmo o sacerdote tem de se

curvar perante ela.

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A maioria das pessoas que passa por esse monumento funerário, no entanto,
não se dá conta desses detalhes. Em grande parte, isso se dá porque elas
passam por ali apressadas, desatentas e agitadas — e compreender uma
alegoria exige atenção, reflexão e, muitas vezes, uma explicação. Por uma
razão semelhante, entender uma tragédia de Shakespeare, como “Hamlet”

ou “Otelo”, é uma tarefa difícil para a maioria das pessoas.

Jorge Luis Borges, escritor argentino, disse que, para entender um livro, é
preciso ter lido muitos outros. Para você ler e entender um livro, é preciso
que várias pessoas tenham lhe dado explicações sobre o conteúdo dele; caso
contrário, você não o entenderá. Esse é um princípio da alegoria; ela precisa
ser explicada por alguém.

Ninguém precisou me explicar a alegoria do batente de Bernini, mas eu,


ainda assim, consegui captá-la. Isso só aconteceu porque eu já “li muitos
livros”, isto é, eu tenho certos conhecimentos prévios que me permitiram
compreendê-la. Eu conheço o catolicismo, sei a finalidade de um túmulo, sei
o que um esqueleto representa, sei o que a ampulheta na mão do esqueleto
representa... Eu sei, porque estou dentro de uma tradição simbólica e já
analisei um monte de coisas semelhantes; então, por semelhanças e
diferenças, pude chegar ao significado daquela alegoria.

Com um símbolo, a coisa é diferente; o símbolo não é a projeção do intelecto


humano em uma manifestação artística, mas o contrário disso.

A alegoria é uma manifestação projetiva. Um homem concreto (em regra,


um artista) projeta algo (geralmente, uma peça artística) a que chamamos
alegoria. O símbolo, por sua vez, não é uma projeção. Ele tem uma
característica intensiva, sai de si e nos penetra, e, assim fazendo, abre-nos
uma visão mais ampla.

Podemos dizer, com certa segurança, que o Tarô é simbóli-co; mas é dotado
de um simbolismo diferente do Simbolismo Astrológico, que é uma sorte de
simbolismo natural.

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INTRODUÇÃO

Simbolismo natural
e realidades simbólicas simples

Mas o que é um simbolismo natural? Para entendê-lo, pense no mar.

Apenas uma pessoa muito tosca pode achar que o mar está ali só para que
ela se refresque, pegue umas ondas, pratique o surfe. O mar tem esse
componente material também, mas não somente. Ele de fato tem uma
presença aquosa, salgada e fluida. Você entra, se molha, se diverte, pode até
se afogar e morrer... Mas o mar é mais do que isso: ele é a presença de uma
outra coisa, de uma fluidez, de um ir e vir infinito, como na música do Lulu
Santos. Quando ele fala daquele “indo e vindo infinito” das ondas, está
captando a presença simbólica do mar, pois foi capaz de entender que o mar
é, além de sua presença material, símbolo de algo.

O símbolo nos abre uma percepção de presença, abre-nos algo a mais. O


filósofo Heráclito, olhando para um rio, enunciou duas das primeiras frases
registradas na Filosofia: “Tudo flui.” e “Nenhum homem pode banhar-se
duas vezes no mesmo rio.” Ao observar um rio com muita calma, abriu-se
nele uma janela de percepção: o rio pareceu a ele mais do que sua mera
presença física.

Muita gente se alimenta com peixes pescados de um rio; muita gente com
calor se banha em um rio; muita gente lava suas roupas nas águas de um rio;
enfim, muita gente olha para um rio e vê ali somente a fonte do alimento, o
alívio para o calor, a solução para as roupas sujas. Para Heráclito, entretanto,
o rio é também a presença simbólica de uma fluidez que permanece — e é
verdade, porque se você puser sua mão em um rio, depois retirá-la e a
colocar novamente, ela já não será banhada pela mesma água; já não será,
sob certo aspecto, o mesmo rio, ainda que, sob outro aspecto, se trate do
mesmo rio que você tinha diante dos olhos.

Temos o costume de falar do rio Nilo, do Eufrates, do Da-núbio, ou mesmo


do rio Amazonas, como se eles ainda fossem uma coisa única e estática,
embora todas as suas águas

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estejam em constante mudança. Alguma coisa permanece; alguma coisa
muda. Há um princípio de mutação e consistência no calmo observar das
águas. Nesse exercício, você começa a apreender a presença simbólica
daquele ente e deixa de se confundir tanto. Isso é o simbolismo natural.

A lua, por exemplo, é um ente que ilumina as noites há muito tempo; mas
ela não é apenas aquele brilho no céu. É mais do que isso: é presença de uma
certa inconstância que orienta.

Diz-se “inconstância”, porque a lua tem fases, e sua capacidade de iluminar


não é sempre a mesma. Estar numa floresta em noite de lua cheia é melhor
do que estar nessa mesma floresta em noite de lua nova: nesta mal se
consegue ver um palmo do que está à frente, ao passo em que naquela tudo
fica banhado de luz prateada.

Se você for um pouco mais sensível e se puser a observar a lua com calma,
verá que ela lhe abrirá os olhos para uma realidade que está além daquele
círculo branco enfeitando as noites, verá a tal “inconstância que orienta”.
Isso é o símbolo; é uma presença — não uma projeção — de algo que lhe
penetra, abrindo-lhe horizontes de consciência. Essa é a função do símbolo.

Por definição, tudo o que é é simbólico; tudo o que existe é simbólico. E, por
isso mesmo, perder a visão simbólica do mundo é uma das grandes tragédias
do nosso tempo.

Os psicólogos, os psiquiatras e os teóricos de hoje estão olhando para o


homem e perdendo essa dimensão simbólica; eles têm construído seus
edifícios sobre uma fundação predominantemente materialista.

Não nos confundamos: quando olhamos nos olhos de outro ser humano,
quando conversamos com alguém, não é apenas o Fulano ou o Beltrano que
temos diante de nós; eles de fato estão diante de nós, mas também são
presença de uma outra coisa, apontam para uma outra coisa. Não perceber
isso é já ter perdido a visão simbólica.

É claro que, quando falamos de entes materiais únicos, indi-viduais — como


pessoas, rios, oceanos, árvores, coelhos, leões etc.

—, estamos falando de realidades simbólicas muito simples.


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INTRODUÇÃO

Quando falamos de astros, então, estamos falando de realidades simbólicas


simplíssimas; e digo isso, porque podemos desenvolver uma Simbólica
Astrológica com muita precisão, já que os astros (como Lua, Sol, Mercúrio,
Vênus, Marte, Júpiter, Saturno) estão presentes há milênios e em todas as
civilizações.

Todos as povos olharam para cima e viram os astros, ao passo que nem todos
viram coelhos ou leões. Alguns deles nem sequer viram oceanos e jamais
souberam de sua existência. Se uma dessas pessoas tivesse a oportunidade de
ver o mar, ela provavelmente pensaria tratar-se de um rio que se mexe com
mais intensidade e não tem margens (já que, em regra, todas as civilizações
se desenvolvem em torno de cursos d’água, mas não necessariamente de
oceanos). Essa pessoa olharia, num primeiro momento, somente o aspecto
material do mar, porque não estava inserida em uma cultura que tenha
olhado para o mar e percebido sua finalidade.

Com o céu, porém, não é bem assim. Tente imaginar uma civilização que
não tenha visto a terra e o céu. Não há! É por isso que a simbólica terrestre
dos quatro elementos, de que trato no meu livro “Os 4 Temperamentos na
Educação dos Filhos”, foi desenvolvida em todas as civilizações. A
Ayurveda indiana, por exemplo, conecta-se muito com os quatro elementos,
porque mesmo uma civilização de base completamente distinta da nossa,
como a hindu, tem as mesmas referências simbólicas da terra. Ela está
falando de Terra, Ar, Água e Fogo mais ou menos do mesmo modo, porque
estamos olhando para as mesmíssimas realidades.

Selecione uma civilização hindu, uma civilização ocidental européia e uma


nativa indígena das Américas, e verá que todas elas falam do Fogo (e dos
demais elementos) de maneira similar. Elas observaram as realidades
materiais de Fogo, Terra, Ar e Água, e foram por elas preenchidas; seus
horizontes de consciência foram se abrindo a partir daquelas observações.

Com o céu, dá-se o mesmo. A Simbólica Astrológica é bastante simples,


porque os astros não mudam. Você nunca verá um Mercúrio gordo e um
Mercúrio magro; uma lua gor-da e uma lua magra; uma lua doente e uma
saudável; uma lua

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feroz e uma mansa. Até mesmo um coelho é, nesse sentido, mais complexo
do que um planeta — ele é passível de muitas mudanças. Há coelhos gordos
e magros, rápidos e lentos... Os animais têm uma consistência mutável, e por
isso mesmo é mais difícil, para a inteligência, captar a simbólica desses entes
mutáveis — “entes mutáveis” são esses que estão presentes, mas mudam e
são desconhecidos por uma parte das civilizações.

Quando falo em “leão”, o sujeito que acabou de visitar o zo-ológico


Smithsonian, em Washington, pensará num baita leão branco, cheio de
vitalidade; já o sujeito que acabou de voltar do zoológico do Rio de Janeiro
pensará num bicho amarelo raquí-

tico, cheio de fome, sede, berne e sarna. São visões diferentes.

Quando você olha para um leão do zoológico do Rio, não é a noção de


majestade que se abre em sua cabeça, pelo contrário: você sente pena do
bicho. Perceba que você olha para aquele leãozinho e sua inteligência não
capta o primeiro símbolo dele, pois leões são corruptíveis, são bichos, são
seres vivos que mudam de figura.

Por outro lado, ao olhar para a lua, você pode projetar o que quiser, mas,
antes da sua projeção, ela tem uma estabilidade pró-

pria. A Lua está rodando daquele mesmo jeito em torno da Terra desde que o
mundo é mundo. A primeira civilização da história viu a lua do mesmo
modo com que nós a vemos hoje; e viu as estrelas brilhando no céu mais ou
menos do mesmo modo — embora decerto haja projeções diferentes dessas
mesmas realidades, que se devem predominantemente a diferenças culturais.

A Gramática Astrológica é muito fácil de entender justamente porque trata


de algo que está lá desde sempre. Mercúrio é Mercúrio, Sol é Sol, Saturno é
Saturno. Os astros são, enfim, bons exemplos de realidades simbólicas
simples, porque estão sempre do mesmo jeito, sendo presença de algo. É
fácil olhar para um astro e ver de quê ele é símbolo, pois ele está lá do
mesmo jeito desde sempre; muita gente já o viu e falou sobre ele.

Os quatro elementos (Água, Terra, Fogo e Ar), assim como os astros,


também são realidades simbólicas simples e fáceis: simples, porque estão lá
sempre do mesmo modo; fáceis, porque não se degeneram, não se
decompõem.

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INTRODUÇÃO

Já um coelho é uma realidade simbólica simples, porém difícil. “Difícil”,


porque cada coelho é de um jeito. Um leão também é uma realidade
simbólica simples e difícil, porque cada indivíduo da espécie é de um jeito,
como no exemplo que dei do leão pertencente ao zoológico de Washington e
do leão pertencente ao zoológico do Rio de Janeiro.

É simples falar de um astro, de um leão ou de um coelho, porque essas


realidades sozinhas são presenças de si próprias.

Mas... e se quiséssemos fazer simbolismo com realidades mais complexas?

Tarô: simbolismo de realidades

complexas e invisíveis

Não é verdade que tudo o que vemos teve um início? Tudo o que faço teve
um início: minha vida, minha empresa, este livro.

Tudo o que vivemos tem início. E o início é uma presença, assim como a
dificuldade. O início e a dificuldade têm presença; existem, portanto. Ora,
será que o modo de existir do início e o modo de existir da dificuldade são
iguais ao modo de existir da lua ou do coelho? Não.

A lua tem uma presença estável e facilmente observável.

Todas as civilizações a viram. O coelho tem uma presença mais difícil, mas
também estável. Ele está lá, um coelho é um coelho.
E quanto ao início? Como extrair simbolismo dessa realidade chamada
“início”? Como extrair simbolismo da realidade chamada “dificuldade”?
Como extrair simbolismo de realidades como intensidade, energia,
generosidade?

O Tarô é justamente a simbólica dessas realidades. Por isso ele é difícil e


complexo, e por isso muita gente o entende como uma projeção do homem.
Poderiam dizer: “Mas, Italo, essas cartinhas foram um dia inventadas por
alguém. ” A verdade, porém, é que ninguém “inventou” o Tarô, porque ele é
a cristalização simbólica de realidades complexas como essas que
mencionei.

Há, portanto, várias maneiras de falar de inícios. Uma dessas maneiras é já


estando dentro de uma tradição simbólica.

22

Nem todas as civilizações viram coelhos, ou mesmo o mar, mas todas elas
viram inícios, viram dificuldades, viram atos de generosidade, atos de
traição, atos de recomeço. Não é verdade?

Dispondo de uma tradição simbólica, somente um homem de olhar muito


pobre, padecendo da “síndrome do propriomio-lismo”, optaria por abordar
essas realidades com algo tirado de sua própria cabeça. O Tarô já existe para
nos contar a narrativa simbólica de realidades mais complexas. A lâmina do
Mago, por exemplo, simboliza uma realidade específica: a postura diante dos
inícios, a postura daquele que quer começar.

As lâminas do Tarô põem-nos diante da densidade do real.

Mas não seja néscio de pensar que aquelas cartinhas que você comprou na
banca de jornal contêm a realidade em si. Essas lâminas apenas nos
recordam que o real tem presença, e que essas realidades que você chama de
“subjetivas” e de “abstratas” não são, na verdade, tão subjetivas e abstratas
assim. O início não é subjetivo e abstrato, ele tem presença, e uma presença
real — mas como falar dessa presença real que não se vê, diferentemente de
um coelho ou da lua, por exemplo? O Tarô faz justamente isso, por meio da
cristalização de símbolos complexos e “invisíveis”.
Ainda sobre o Tarô...

Cabe ainda um comentário breve sobre o Tarô e sua origem.

Embora muitos apontem os egípcios ou os caldeus como seus

“inventores”, não há como remontar às suas origens. Muitos tarólogos se


apegam àquilo que aprenderam nos cursos que fizeram, mas a verdade é que,
ao estudar profundamente a origem do Tarô, percebe-se que não é possível
afirmar se os Arcanos surgiram antes ou depois dos egípcios, se vieram com
os babilônios... Não há segurança histórica quanto à origem do Tarô. O que
se sabe é que as cartas mais antigas que foram conservadas datam do final do
séc. XIV.

Sabemos ainda que, tanto na tradição Ocidental quanto na tradição Oriental


(sim, o Tarô se desenvolveu também em boa parte da Ásia), os símbolos são
coincidentes. São os mesmos

23

INTRODUÇÃO

símbolos, sempre presentes nas lâminas dos 22 Arcanos Maiores e nas 56


lâminas dos Arcanos Menores.

Além disso, é importante saber que não existe apenas um baralho de Tarô.
Existem, porém, alguns baralhos tradicionais, como o que usaremos para a
nossa explicação. Trata-se de um baralho bastante consolidado, utilizado
pela maior parte das pessoas de estudos e mesmo pelos cartomantes. Ele se
chama Tarô de Marselha, e é muito completo. Ali estão quase todos os
elementos simbólicos que foram usados pela tradição do Tarô.

Para tratar com profundidade os símbolos representados em todas as 22


lâminas dos Arcanos Maiores e relacioná-los à Psicologia, a autores como
Jung e Freud, bem como às suas técnicas e práticas, seria necessário muito
mais do que um livro como este. Por essa razão, aqui você encontrará
análises e explicações fundadas no rico manancial simbólico de três dos 22
Arcanos Maiores: as lâminas do Mago, da Papisa e da Imperatriz.
Os capítulos 5 e 6 parecem dar uma escapada ao fio condutor do livro (as
lâminas do Tarô), embora haja neles constantes remissões às três cartas aqui
apresentadas. Eles bebem, contudo, de outras ricas e importantes fontes,
como a poesia lírica e a mitologia grega — sem a qual boa parte da
Psicologia, e parte alguma da Psicanálise, se teriam desenvolvido.

Em cada capítulo, apresento uma ou mais ferramentas (ou armas). O chapéu


do Mago, a tríplice tiara da Papisa, o cetro e o escudo da Imperatriz e o raio
de Zeus fazem parte dessa panóplia simbólica de que você deverá se munir
caso deseje, de fato, conhecer-se melhor, saber seu lugar no mundo,
melhorar seus relacionamentos e ter uma história verdadeiramente sua para
contar. Aos psicólogos, psiquiatras, terapeutas e coaches, elas servirão
também como instrumentos de trabalho e

“remédios” a serem prescritos.1

1 Quem assistiu às Super Live Series de Psicologia que ministrei no primeiro


semestre de 2020 pelo Youtube, verá aqui organizado muito do que tratei nas
primeiras lives.
O MAGO

25

Oprimeiro Arcano do Tarô é o Mago.

O Mago é um rapaz jovem que traja uma roupa colorida e extravagante,


como o uniforme da Guarda Suíça Pontifícia (responsável pela segurança do
Papa). Ele segura um bastão, que na maioria dos baralhos aparece na mão
esquerda. Na mesa que fica à sua frente, há alguns elementos (discos, uma
faca desembainhada etc.).

Em todos os baralhos, o Mago é representado com algo sobre a cabeça. Em


geral, um grande chapéu. Esse chapéu tem a forma da Lemniscata de
Bernoulli, curva algébrica descrita por Jacob Bernoulli em 1654, como
modificação de uma elipse, e logo depois adotada como símbolo para
representar o infinito.

Você com certeza já viu dezenas de lemniscatas em tatuagens, bijuterias,


roupas e objetos decorativos.
26

O Mago é a primeira lâmina do Tarô porque é a primeira chave de


compreensão. Sem a noção do infinito, não teríamos como compreender as
séries seguintes. Ele usa o chapéu sobre a cabeça para protegê-lo e proteger
seus olhos, assim como um chapéu nos protege da chuva e dos raios solares
que podem nos atrapalhar a visão.

Diferentemente, porém, dos nossos chapéus do dia a dia, o chapéu do Mago


tem a peculiar forma de lemniscata, comu-mente referida como um “oito
deitado”.
Mas qual é, afinal, a origem desse símbolo?

Desenhe uma cruz, com seus dois eixos: um horizontal e um vertical. Feche
as extremidades da cruz, ligando a esquerda à de cima e a de baixo à direita.
O que resulta daí? A lemniscata, símbolo do infinito. A lemniscata não é,
portanto, um oito deitado, mas uma cruz cujas extremidades se fecham,
dando-nos a noção da totalidade do real, de todas as possibilidades do ser.

27

O MAGO

O princípio do tamanho

do mundo

O professor Olavo de Carvalho inicia seu curso de Filosofia da Ciência


ensinando que há algumas coisas que estão sempre em nosso campo de
percepção e das quais não podemos nos esquecer, porque, se delas nos
esquecermos ou se as deixarmos de ver, já não entenderemos mais nada e
ficaremos desorientados no mundo. Essas coisas são os primeiros princípios.

Um desses primeiros princípios essenciais é o princípio do tamanho do


mundo. Essa é a primeira coisa em que precisamos concentrar a atenção.
Para atender um paciente em consultó-

rio, para orientar um filho, para fazer um projeto com o cônjuge, para traçar
as estratégias de uma empresa, para tudo isso é preciso ter uma idéia do
“tamanho” do mundo.

Alguém que jamais tenha refletido sobre isso poderá apressar-se em dizer
que o mundo se limita a este lugar material onde estamos, àquilo que vemos.
Mas será mesmo assim? Ou será que existe um princípio filosófico
indestrutível, que não se pode negar, chamado infinitude? Qual é o tamanho
do mundo? Ele é limitado ou é ilimitado? É finito ou é infinito? Responder a
essas perguntas é fundamental para um bom exercício da Psicologia e para
descobrirmos quem é o homem, qual é o tamanho do homem e qual é o
tamanho do mundo no qual ele está inserido.
Qual é o seu tamanho e qual é o tamanho do seu projeto?

Qual é o tamanho do seu coração, do seu amor? Qual é o tamanho possível


de todas as suas sensações superiores, de sua inteligência, de seu saber? É
preciso descobrir.

Se dizemos, de modo ingênuo e rápido, que as coisas aqui são limitadas e


pequenas, então temos uma certa visão de mundo. Se, ao contrário, dizemos
que o mundo é ilimitado e possui um elemento de infinitude, temos então
uma outra percepção sobre o que é o mundo.

Se existe um limite para as coisas do mundo, o que é que há na fronteira


desse limite? Por definição, o limite já não pode fazer parte da própria coisa,
mas tem de ser uma outra coisa.

28

O limite do meu corpo, por exemplo, não é mais o corpo, é onde ele acaba e
começa uma outra coisa. E, se começa uma outra coisa, isso quer dizer que
obviamente existe uma outra coisa além do meu corpo.

Vou dar outro exemplo, agora do campo da matemática.

Não sei se você se lembra, mas a série dos números inteiros não termina, é
infinita. Z = {...-3, -2, -1, 0, +1, +2, +3...}. Um, dois, três, quatro, cinco, seis,
sete, oito, nove, dez, mil, dois mil, vinte mil, um trilhão, um quintilhão...
Pense no maior número possível: sempre dá para acrescentar mais um.

É sempre possível, portanto, conceber um número inteiro posterior ao último


número em que você pensou. Ao menos nesse universo matemático, a noção
do infinito — de algo que não termina — é clara e óbvia. Isso, por si só, já é
uma ruptura enorme com o pensamento materialista do nosso tempo, embora
se trate apenas de um infinito potencial.

Ora, até um homem vulgar contemporâneo que jamais tenha pensado em


nada metafísico é capaz de reconhecer que realmente existe algo infinito.
Embora não saiba dizer exatamente de que se trata, ele é capaz de entender
que não é mais possível dizer que absolutamente tudo tem um limite e um
fim.
Não. Há alguma coisa que nunca termina.

Partindo de uma análise muito simples da realidade, ele é obrigado a


declarar que há alguma coisa que permanece, há algo que continua, que não
acaba jamais.

Um vislumbre da eternidade:

O que aconteceu aconteceu

e não pode “desacontecer”

Precisamos ter noção de dois tamanhos: do tamanho do homem e do


tamanho do mundo no qual o homem está inscrito. Para isso, observaremos
primeiramente nossos atos. Assim ficará mais fácil, afinal, estamos
constantemente pensando e fazendo coisas; ou seja, estamos agindo a todo o
tempo.

29

O MAGO

Quero que você pense no que está fazendo concretamente neste exato
momento. Agora você está lendo este texto, certo?

Não há como discordar disso. Daqui a pouco você deixará de ler e irá tomar
um copo d’água, dormir, fumar, trabalhar, encontrar um amigo ou fazer
alguma outra coisa. Mas é inegável que, agora, você está lendo.

Amanhã, ao se lembrar do que fez hoje, você se verá obrigado a admitir que,
de fato, passou alguns minutos lendo este texto. “É, eu fiz isso mesmo. Eu li.
Isso realmente aconteceu. ”

Faça o seguinte exercício. Amanhã, sente-se e ponha-se a pensar: “Ontem eu


li um texto por algum tempo. Esse ato de ler o texto, onde é que ele está? ”
Talvez você se veja tentado a responder prontamente: “Na minha memória!
O ato está guardado na minha memória.” Mas já adianto que o que estará na
sua me-mória será apenas a lembrança do ato, não o ato em si.
Busque uma resposta mais profunda. Onde está esse ato?

Ele aconteceu. Onde está isso que aconteceu? Essa é uma pergunta que você
é obrigado a se fazer caso queira levar a vida a sério, porque o que aconteceu
não “desacontece”.

Amanhã, se você tiver um pouco de sinceridade e sensibilidade, terá de


reconhecer que o ato de ler este texto hoje realmente aconteceu e, mesmo
com o passar do tempo, não deixou de acontecer. Por acaso algum dia aquilo
deixará de ter acontecido? Nunca.

Estará registrado em algum “lugar”, isto é, continuará sendo. Eis uma


declaração de suma importância: há coisas que são. Aquilo que aconteceu
aconteceu. Aquilo que é é. A memória guarda apenas um registro do ato,
mas o ato precisa existir em algum “lugar”, pois aquilo que aconteceu não
pode “desacontecer”.

Você, por exemplo, pode não se lembrar do que comeu ontem no almoço,
mas a falha em sua memória não apaga o ato de ter comido algo, que está
registrado em um lugar maior do que a sua própria memória. Em outra
ocasião, aborda-rei a questão da lembrança como ação do ego, mas agora
interessa-nos o conceito de infinito.

Algumas pessoas dirão: “Ora, o que aconteceu está na história”.

É claro, mas a história é também uma espécie de lembrança,

30

é um registro de coisas que aconteceram, que pode ser trans-mitido


oralmente ou por escrito. Não confundamos o registro da coisa com a coisa
em si.

Se todos os registros da guerra napoleônica forem destru-

ídos, se todos os livros sobre ela forem queimados e todas as pessoas


deixarem de se lembrar dela, a derrota em Waterloo deixará de ter
acontecido? Não. Por mais que ninguém mais fale sobre o evento, por mais
que não reste um registro sequer, ele ainda terá acontecido.
Esse é um primeiro vislumbre de um lugar chamado eternidade; e não é
preciso ter uma religião para conseguir percebê-

-lo. As coisas são o que são e seguem sendo, independentemente de você se


lembrar delas, registrá-las, tê-las visto; elas são independentemente do seu
testemunho.

Uma folhinha que balance lá fora terá balançado para sempre; ela não
“desbalançará”, por assim dizer. Um cachorro que late não “deslate”. Um
abraço dado não pode ser “desdado”, ainda que você se arrependa de tê-lo
dado. Você abraçou al-guém, isso aconteceu. Existe uma consistência do
mundo que está além daquilo que vemos, e há também uma série infinita de
coisas, como o revela a série de números inteiros.

Qualquer pretensa abordagem psicológica que esqueça o tamanho verdadeiro


do mundo olha para algo que não é real.

Quando se olha para alguém, inclusive para um paciente, é preciso sempre se


lembrar de que esses atos permanecem — eles podem ser esquecidos, mas
não deixam de ser.

Ato e potência

Tudo o que eu fiz é; tudo o que pensei também é — espero que ninguém
mais duvide disso. Mas e aquilo que não fiz e em que não pensei? Por
incrível que pareça, isso também faz parte da estrutura do mundo. Se agora
estou dando uma aula, não estou jantando com meu amigo, embora pudesse
estar jantando com ele.

31

O MAGO

A estrutura da realidade, portanto, tem de ser entendida tanto por aquilo que
pode ser, que está presente em potência,

quanto por aquilo que é mesmo, que está presente em ato.


Você pode pegar pedaços de madeira e transformá-los em uma cadeira. Essa
matéria-prima bruta não é uma cadeira, mas pode ser uma cadeira. Eles têm
a possibilidade de se converter em uma cadeira se uma fonte externa de
mudança agir sobre eles, ou seja, se você pegá-los, lixá-los e uni-los com
pregos e cola. Nesse caso, pode-se dizer que a potência de se tornar cadeira
daqueles pedaços de madeira foi atualizada — e assim deixou de existir
como mera potência, como mera possibilidade. Pois bem: essa possibilidade
de converter-se em cadeira também faz parte da realidade.

Mas será que as coisas têm possibilidades infinitas? Quando uma coisa não é
algo em ato, será que ela sempre poderá adquirir aquelas formas que
atualmente não tem? Será que a água de um rio poderá um dia ser
transformada em cadeira? Um boi é uma girafa em potência? Eu tenho a
possibilidade de me tornar uma árvore?

A água jamais poderá assumir a forma de uma cadeira, um boi não tem em si
a possibilidade de tornar-se girafa e eu nunca poderei ser uma árvore. Não
podemos pensar que uma coisa é “potencialmente” qualquer coisa. Há
potencialidades enrai-zadas na natureza das coisas tal como existem, e essas
potencialidades são limitadas.

Aristóteles dizia que cada semente tem dentro de si uma potência que a
destina a chegar a uma determinada forma final.

Hoje temos um jeito diferente de dizer algo muito similar no que diz respeito
aos seres vivos. Usando o linguajar da ciência moderna, podemos dizer, por
exemplo, que o código genético de uma semente de girassol programa um
crescimento diferente daquele dado pelo código genético de um grão de
feijão. Isso explica por que um girassol nunca será um pé de feijão.

Eu também não posso ser tudo o que eu quiser. Não posso ser um macaco
nem um búfalo, embora possa usar uma fantasia e fingir que sou. Também
não posso voar com minhas

32

próprias forças. Posso, sim, pegar um avião, mas nesse caso o que estaria
voando seria o avião e não eu. Eu mesmo não vôo nem posso voar. Posso
criar dispositivos voadores, mas eu mesmo não posso voar. Essa não é uma
possibilidade minha.

Tenho, por outro lado, várias outras possibilidades — e muito mais


possibilidades do que uns pedaços de madeira. Tenho a possibilidade de ser
nobre, vil, generoso, mesquinho, avaren-to, gordo, magro, forte, fraco... Por
outro lado, há certas coisas que não poderei jamais ser nem desenvolver. E,
ainda, mesmo tendo certas possibilidades, pode ser que eu não venha a
desenvolvê-las efetivamente; por exemplo, mesmo podendo ser magro —
tendo a possibilidade de fazer uma dieta e exercícios físicos —, talvez eu
continue sendo gordo.

Se tomo um charuto nas mãos, posso fumá-lo ou não o fumar. Ambas são
possibilidades do real, ambas as coisas podem acontecer. E sabemos que um
charuto pode ser queimado. Não importa, agora, saber como nós o sabemos.
Basta entender que um charuto pode ser queimado, ainda que não venha a
sê-lo.

Quando você olha para uma pessoa, você sabe que ela pode lhe dar um
abraço, ainda que não o faça. Você sabe que ela pode amá-lo, ainda que não
ame. Essas são possibilidades de um homem.

O real, portanto, é não apenas aquilo que está acontecendo agora em ato,
mas também aquilo que poderia acontecer, ou seja, que está em potência.

Se só pudéssemos nos mover com base naquilo que acontece, naquilo que
chega a ser ato, não teríamos qualquer tipo de orientação neste mundo, e as
pessoas seriam como manequins de loja, estáticos.

Mas uma pessoa real não é assim, pois encerra um conjunto enorme de
possibilidades. Enquanto estou gravando uma de minhas aulas, ao olhar para
minha irmã, que é quem faz a filmagem, sei que ela pode dizer uma série de
coisas: “Italo, essa aula está lenta. ” ou, ao contrário, “Acho que você está
falando rápido demais. ” Ela pode dizer ainda: “Essa aula está óti-ma. ”,
“Não estou entendendo nada. ”, “Ah, agora estou começando a

33

O MAGO
entender. ”, “Estou ansiosa. ”, “Estou com dor de barriga. ”, “Preciso ir ao
banheiro. ”, “Estou com fome. ”, “Preferia estar em outro lugar. ”

e tantas outras coisas.

O que nos orienta, enfim, é o conjunto formado tanto pelas atualidades


quanto pelas virtualidades; noutras palavras, por aquilo que está sendo e por
aquilo que poderia ser. Isso é o real.

E é algo maravilhoso!, que joga por terra todo tipo de pensamento


materialista.

O materialismo é uma visão de mundo impossível. O cara que acorda, abre a


tampa da privada e urina ali, já não pode ser materialista. Em primeiro lugar,
porque esse vaso sanitário, antes de existir fisicamente, existiu
imaterialmente, na mente de seu primeiro inventor. Além disso, chegando ao
banheiro e se deparando com a tampa do vaso sanitário fechada, nem mesmo
o materialista diz: “Puxa vida, a tampa está fechada. Já era. Não posso mais
urinar.” Ele sabe que, embora esteja fechada, ela pode ser aberta. Ele não vê
o vaso aberto, não vê o caminho livre, mas sabe que há a possibilidade de
abri-lo — uma possibilidade que, até então, existe somente na mente dele.
Uma vez aberta a tampa, a possibilidade deixará de ser mera possibilidade e
será convertida em ato.

O conjunto de virtualidades é formado por aquilo que não estou vendo, que
não está acontecendo agora, mas que poderia acontecer. As possibilidades
também estão contidas no conjunto do real. A realidade é tanto esse
elemento material, que se apresenta para nós no imperativo da presença
física, quanto aquilo que não está acontecendo, mas poderia acontecer.

Mas, então, o conjunto das possibilidades universais permanece sempre


desconhecido, oculto, ou precisa ser conhecido para que seja possível? Em
outras palavras, para que as coisas sejam possíveis, é necessário que alguém
conheça essas possibilidades? Essa é uma pergunta central que iremos
responder aos poucos. Não é preciso dar uma resposta agora, você terá de
conviver com essa dúvida.

34
Para melhor entender

o domínio do possível

Um cachorro que você vê parado na rua não é apenas um animal parado,


mas um animal que pode morder, correr, abanar o rabo, latir e atacar. Ele é
tudo isso, do contrário não seria um cachorro de verdade: seria um cachorro
de madeira, um bicho empalhado, um fóssil, qualquer outra coisa que não
um cachorro. Todas essas coisas pertencem ao conjunto do possível.

Vou dar ainda outro exemplo: eu tenho filhos. Talvez eles tenham filhos; e
talvez os filhos dos meus filhos também tenham filhos. Nada disso está
presente agora, pois esses netos e bisnetos não existem. Meu filho mais
velho tem apenas nove anos e não poderia ser pai agora ainda que o quisesse
— mas pode ser que, algum dia, ele se case e tenha filhos, ou que os tenha
mesmo sem se casar.

Pensemos, agora, nos meus bisnetos, que estão ainda mais longe da minha
percepção. É mais fácil pensar nos netos, afinal, se meu filho mais velho
tiver um filho, esse filho será meu neto.

Mas um bisneto é algo mais distante, pois o filho do meu filho ainda nem
existe. No entanto, é perfeitamente possível que eu tenha bisnetos. Não é
nenhum absurdo que eu os venha a ter, pois fui pai cedo, já aos vinte e três
anos. Logo, é perfeitamente

possível que eu viva para ver meus bisnetos. Se o Italo, meu filho mais
velho, for pai cedo, e se o filho dele também o for, verei meus bisnetos e
conversarei com eles. Hoje, porém, meu filho ainda não tem filhos e nem
sequer tem potência fisiológica para tê-los. Não obstante, posso desde já
falar dos filhos dele, e dos filhos dos filhos dele. Por quê? Porque isso é
possível.

O possível, portanto, não se limita à possibilidade no presente. Minha irmã


pode se mexer aqui na minha frente; o mover-se dela é possível agora, já a
existência dos meus bisnetos é uma coisa possível remotamente. Ambas,
porém, são possíveis; logo, estão dentro do quadro do real.
Já conhecemos algumas possibilidades, e há ainda muitas outras, conquanto
não as conheçamos, e conquanto ninguém consiga sequer imaginá-las.

35

O MAGO

Ser em Ato Puro

O lugar daquilo que é possível (tanto daquilo que nosso conhecimento


alcança, quanto daquilo que nem imaginamos ou conseguimos perceber) tem
um nome em Filosofia: chama-se Logos (ou Verbo). O lugar do possível está
contido no Logos. Ele é o tamanho do real.

Religiosos, não se confundam! Falar do Logos não exige um ato de fé.


Estamos apenas usando a razão e a visão (que sozinhas já dão conta do
trabalho), vendo como são as coisas e dando-lhes nome.

Pois bem, a realidade na qual as coisas podem vir a ser, podem ganhar o ser,
em que podem acontecer, chama-se Logos ou Verbo.

Não é à toa que a Filosofia também chama esse ente (que é a totalidade do
real) de Ser em Ato Puro, porque nele tudo é ato.

Ele é um ser totalmente desprovido de matéria ou de potência.

Tudo nele é. E é esse ato puro que dá o ser às coisas. É esse mesmo Ser que
se apresenta a Moisés, dizendo “Eu sou aquele que Sou”, como quem diz
“Eu sou aquele que é. Eu sou o Eu sou.

Em mim, tudo é ato; nada escapa. ” Para entendê-lo, não é preciso ter fé,
somente razão.

De volta ao chapéu do Mago

Voltemos então ao chapéu do Mago que, com sua “forma de infinito”,


protege a visão da cegueira da finitude: ele permite ao Mago enxergar além
daquilo que é finito. Esse é o significado do chapéu em lemniscata na
primeira lâmina do Tarô.

Os mesmos sujeitos que se arrogam grandes professores são os primeiros a


se cegarem pela finitude do método lógico —

ou até pela finitude do método escolástico. Eles se pretendem sábios, magos,


doutores, mas, como não vestiram o chapéu do Mago, não passam de
papagaios, embusteiros, arrogantes.

O chapéu do Mago é nossa entrada na Ciência Psicológica.

Na verdade, ele é a epistemologia de qualquer ciência, pois temos sempre de


nos proteger da finitude, do limitado, das amputações.

36

Quer um exemplo concreto dessas coisas em sua vida? Eu lhe dou: o hábito
de julgar imediatamente os outros. Muitos psicólogos recebem um paciente
no consultório pela primeira vez e, ao bater os olhos nele, já o julgam. Que
loucura!

Faça um exercício de ampliação do olhar: PARE DE

JULGAR OS OUTROS. Essa é uma tremenda experiência!

Ao ver alguém, lembre-se de que esse sujeito é — ele é um ser humano. E


assim como já houve seres humanos valentes, nobres, santos, heróis, o
sujeito à sua frente também pode ser tudo isso! Ele traz em si todas essas
possibilidades, e você não pode tirá-las dele! Só porque alguém está com
determinado traje, possui certo olhar, tem certo gestual ou usa determinadas
palavras, não deduza tratar-se de alguém vil, traidor ou mesquinho. Se você
faz esse tipo de julgamento, no consultório ou fora dele, ainda não pôs na
cabeça o chapéu do infinito. Você definitivamente não está exercendo a
função de mago.

Todos os arcanos do Tarô apontam para alguma coisa, e o primeiro deles


aponta para a disposição inicial do sujeito que pretende se aventurar em uma
ciência superior, em uma ciência da alma, como é a Psicologia. Esse sujeito
precisa vestir o chapéu do Mago imediatamente — do contrário, será cegado
pelos raios da finitude.

O Ser em Ato Puro é pessoa

Antes de falar sobre a segunda coisa a ser observada na lâmina do Mago,


farei um parêntese, que inicio com a seguinte pergunta: qual o ápice da
criação humana?

O ápice não pode ser uma construção, como uma casa, um prédio, uma
pirâmide ou uma catedral. Um prédio é apenas uma coisa. Um arquiteto, um
engenheiro, um pedreiro e um mestre de obras podem construir o edifício
mais maravilhoso do mundo, mas aquilo que construírem não passará de
uma coisa.

Um objeto sem vida não tem tanta dignidade quanto um animal, por
exemplo. Entre um cinzeiro e um cachorro, o cachorro

37

O MAGO

é obviamente mais digno, porque tem vida. O cachorro tem um princípio de


movimento interno; ele tem alma ( anima), é animado, move-se; o cinzeiro e
o prédio não.

Um cachorro pode atualizar as possibilidades que a natureza de sua espécie


lhe permite. Ele é um indivíduo, dotado de vida e alma; contudo não é uma
pessoa. Qualquer pessoa pode muito mais do que um cachorro, porque este,
embora tenha uma individualidade, uma alma, uma interioridade, um afeto,
não é uma pessoa. Um cachorro não pode dizer: “Eu sou um cachorro”.

Ele pode sentir frio, mas não pode dizer: “Estou com frio. ”

O ápice da criação humana, portanto, é obviamente a ge-ração de um outro


ser humano: a geração de um filho. O
homem pode criar uma cidade inteira, com ruas bem pavi-mentadas e
iluminadas, um sistema de saneamento funcional e construções belíssimas,
mas todas essas construções são coisas, ao passo que uma criança é uma
pessoa. Mesmo que na juventude ela venha a se tornar um bruto, um
bandido, um maldito, uma criança sempre será mais digna do que um
edifício. Isso é evidente, afinal a criança tem mais possibilidades, ela pode
mais. Ela pode inclusive, ao crescer, participar da construção de edifícios;
mas um edifício jamais construirá coisa alguma.

O círculo de possibilidades de uma pessoa é maior do que o círculo de


possibilidades de um cinzeiro, de uma mesa ou de um prédio. Um cinzeiro é
apenas um cinzeiro. Ele pode decompor-se, ser estilhaçado, mas não pode
ser um herói, não pode salvar uma vida.

Entramos na existência quando o Ser nos deu o ser. Nós, no entanto, embora
tenhamos mais possibilidades do que as coisas e os animais, não podemos
criar a Deus; não podemos criar um Ser em Ato Puro, porque nós não somos
ato puro; muito pelo contrário, temos um monte de potências. Eu, homem
que sou, posso, no máximo, gerar outro homem. Posso oferecer uma parte de
mim a uma mulher, e ela, recebendo-a, gerará uma pessoa. Além disso,
posso construir coisas inferiores, como uma mesa, uma casa, um prédio etc.

38

Pois bem, aquele que nos deu o ser também é pessoa. Ele é pessoa porque,
tendo criado pessoas, não poderia ser menos do que uma pessoa, somente
mais, pois ninguém pode dar aquilo que não tem.

A Tábua de Esmeralda, artefato antigo que se diz ter sido escrito por Hermes
Trimegisto, traz os seguintes dizeres: Quod est inferius est sicut quod est
superius, et quod est superius est sicut quod est inferius. Traduzindo: “assim
como o que está em cima é o que está embaixo; e assim como o que está
embaixo é o que está em cima.” Assim como o menor, o maior; e assim
como o maior, o menor. Esse é um princípio hermético. Assim como o Ser
em Ato Puro é pessoa, nós também o somos. Assim como somos pessoas, o
Ser em Ato Puro também o é. Mas veja: o que é menor não pode dar o que é
maior. Só o contrário é possível, pois só se pode dar aquilo que se tem.
Relacionamentos e religião

Outro dia saí para jantar com um amigo. Estávamos discutindo onde jantar,
quando ele disse: “Podemos ir ao Shopping Leblon. Lá tem um restaurante
Outback, sei que você gosta”. Como esse amigo é uma pessoa com quem
tenho muita intimidade, eu imediatamente respondi, com toda a simplicidade
de um irmão: “Cara, eu nem gosto mais de Outback. ”

Esse amigo fez uma proposta, porque acreditava que eu ainda gostava do
Outback; e eu realmente gostava, até um ano atrás. Hoje, não gosto mais.
Seres humanos são assim: instá-

veis. A pessoa humana é instável, imprevisível, e nisso residem as


dificuldades dos relacionamentos humanos.

Porque mudamos o tempo todo, é muito difícil chegar a um código


duradouro de conduta que regule o relacionamento entre os homens. Nosso
elemento pessoal não é estável; por isso é que nossos relacionamentos são
dificultosos.

É difícil agradar os seres humanos. Um exemplo: a maioria das pessoas


gosta de chocolate, certo? Mas é possível que uma pessoa que gosta de
chocolate esteja de dieta. Eu mesmo estava

39

O MAGO

de dieta há pouco e meus pacientes me traziam um monte de chocolates; eu


não os comia. Eles me traziam um presente, mas, na verdade, estavam me
atrapalhando, pois eu estava de dieta.

Viu só? É difícil agradar gente. Nós tentamos, mas nem sempre
conseguimos. E é claro que o próprio ato de dar revela uma preocupação
que, de algum modo, já basta por si só. Embora esteja de dieta, quando
alguém me dá um chocolate, eu não olho para o doce, mas para a intenção de
quem presenteia.
Nós somos instáveis, passíveis de mudança, mas o Ser em Ato Puro não tem
potência nenhuma. Ele é puro ato. Ele é, nele nada falta, e por isso ele é
absolutamente estável. Nada nele não é, ao contrário de nós, homens, que
somos instáveis porque temos um conjunto de coisas que não são: falta-nos
muita coisa.

Eu ainda não sou um herói, ainda não sou um vilão completo, ainda não sou
fortíssimo, ainda não sou obeso. Nós mudamos, porque vamos atualizando,
ou seja, vamos transformando em ato aquelas coisas que existiam apenas
como potências.

Não somos fixos nem estáveis, mas o Ser em Ato Puro é. E

uma vez que esse Ser em Ato Puro é estável e é pessoa, ou seja, é pessoa
estável, há um conjunto também estável e previsível de coisas que fazemos
para nos relacionar com ele — porque pessoas pedem relacionamentos, elas
precisam amar.

Essas normas de conduta de relacionamento com a pessoa perfeitíssima que


é o Ser em Ato Puro e que garantem sua relação pessoal com ela é o que
chamamos vulgarmente de religião. Religião é apenas a prática pela qual um
homem se relaciona pessoalmente com o Ser em Ato Puro.

A religião não é um freio nem um acelerador. Ela é uma prática para


desenvolver sua razão, de modo que ela chegue a algo que se chama fé —
que não é credulidade, não é crença idiota e não é coisa de criança. A fé é
um upgrade da razão. Ter fé não significa acreditar em contos da carochinha,
pois a fé se baseia em algo racional; ela é um passo a mais no
relacionamento com a pessoa do Ser em Ato Puro.

Em um texto fantástico chamado Fides et Ratio (“Fé e Razão”), escrito por


um polonês chamado Karol Wojtyla (Papa João
40

Paulo II), há uma imagem perfeita para o que quero dizer.

O texto inicia assim: “A fé e a razão ( fides et ratio) constituem como que as


duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da
verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de
conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que,
conhecendo-O

e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.” Ora,


sem ambas as asas, não há como alçar vôos altos.

Um olhar perfeitamente desatento

Voltemos à lâmina do Mago. Já disse que o chapéu encobre e protege sua


visão, permitindo-lhe enxergar melhor as coisas.

A segunda coisa a se observar nessa lâmina é o olhar. O Mago tem um


bastão na mão esquerda e apoia a direita sobre a mesa.

Ele lança um olhar meio de

lado, encoberto pelo chapéu.

É como se ele tivesse uma atenção

— ou desatenção — perfeita. Ele

não precisa prestar atenção no seu

trabalho, pois seu trabalho é o jogo.

Slackline é um esporte no qual

o praticante prende uma fita de

nylon entre dois pontos fixos (ge-


ralmente, duas árvores), e tenta

se equilibrar sobre ela, andando e

fazendo manobras no ar. Noutro

dia, eu tentei jogar e falhei mi-

seravelmente. Foi muito difícil,

porque não sou equilibrista, não

tenho treino. Assim que subi na

fita, comecei a pensar unicamente

em me equilibrar, e é claro que caí

41

O MAGO

imediatamente, pois estava dando atenção ao meu equilíbrio com a cabeça,


quando na verdade a atenção teria que ser orgânica.

Se um equilibrista pára e pensa em cada movimento que faz, ele cai. O


equilibrista experiente, por outro lado, não pensa constantemente nos
movimentos, mas deixa-se levar pelo corpo e assim consegue seguir em um
ritmo perfeito. Esse ritmo perfeito é simbolizado pela ida e vinda do chapéu
do Mago (∞).

Como o equilibrista experiente, o Mago já não precisa pensar em cada passo


que dará. Ele tem uma atenção perfeita —

ou uma perfeita desatenção —, em que trabalho é jogo. A des-treza absoluta


em seu ofício permite-lhe manter uma atenção perfeitamente desatenta.

É dessa atenção que todas as escolas místicas falam, a aten-


ção de quem lança um olhar perfeito para o mundo. A Yoga, por exemplo,
nada mais é do que o “acalmar” de toda a substância mental dispersa.

É como Goethe disse: “Você quer ter sucesso nos seus atos, nos seus
projetos? Concentre o máximo de força no ponto mínimo”, ou ainda, como
falou o nosso jurista Ives Gandra: “Quer ter sucesso em alguma coisa?
Comece cedo e faça somente aquilo.”

Noutras palavras: concentre toda a sua força em uma única coisa. Dedique-
se a outra só depois que dominar a primeira. Quando dominar a segunda,
passe para a próxima e assim por diante. Quem deseja ter força em todas as
áreas, sempre e logo, não consegue nunca ter força em nada. É um problema
de atenção.

É a mesma coisa da qual fala, por exemplo, a prática da trapa. Os monges


trapistas têm um exercício de silêncio que consiste basicamente em... calar a
boca. O professor Olavo de Carvalho também recomenda a seus alunos dez
anos de jejum em matéria de opinião. E é também o que recomendava a
escola pitagórica: o aluno que entrava tinha de ficar quieto, observando,
durante cinco anos, pois o que é disperso perde a força.

Quem já vivenciou um retiro de silêncio — católico ou protestante — sabe


do que estou falando. Esses retiros têm exercícios maravilhosos que
permitem um aquietar constante da substância difusa psíquica.

42

Para nós, é difícil alcançar a perfeita atenção (ou desaten-

ção) do Mago. Estamos sempre muito agitados, temos um desejo constante


de dar opinião sobre tudo, de julgar os outros.

Cale-se!

Você já me ouviu dizer várias vezes um “Não encha o saco! ” —

parte do lema “Trabalhe, sirva, seja forte e não encha o saco. ”


Esse “Não encha o saco” nada mais é do que uma outra maneira de dizer
“Fique quieto”, “Cale-se”. É “ficando quieto” e

“não enchendo o saco” que se alcança a perfeita desatenção do Mago. O


silêncio interior permite transformar o trabalho em jogo.

Hoje, fala-se bastante em mindflow — e um monte de coaches infelizmente


entendeu a coisa de modo errado. Quando o psicólogo Mihaly
Csikszentmihalyi fala do flow, ele dá exemplos maravilhosos. Imagine um
maestro regendo uma orquestra, com todos os grupos de instrumentos (as
cordas, as madeiras e os metais). Você acha que ele está pensando a todo o
tempo em cada mínimo detalhe da sinfonia? Se ele pensasse, não conseguiria
reger. Quando um regente move os braços, ele não está pensando em mais
nada — está simplesmente regendo. Ele entra em um estado de flow e
adquire uma postura similar à do Mago da primeira lâmina do Tarô.

Quando os tenistas Roger Federer e Rafael Nadal jogam tênis, não ficam
pensando no que estão fazendo; apenas fazem.

O trabalho vira jogo, e isso fica muito claro, porque eles estão mesmo
jogando, o jogo flui. Eles são atletas de alta performance, não charlatães.

Até então, falamos de atividades práticas, como a do maestro e a do tenista.


Pensemos agora em uma atividade espiritual, interior. É nesse campo que se
abre um grande leque de charlatanismo; e eu vi algumas pessoas na Internet
caírem por isso recentemente. Elas não atingiram estado algum de flow,
antes tentaram criar um estado de desconcentração absoluta.

43

O MAGO

Acharam que eram uma espécie de Osho. Tanto eram embusteiros, que esses
sujeitos sumiram, não estão mais por aí.

A atenção/desatenção perfeita é necessária para fazer o trabalho virar jogo, e


então a morada espiritual do seu espírito passará a ser aquele lugar.

Comece então fazendo um exercício muito simples: cale-se.


Cale a boca e fique quieto por dez minutos, contemplando.

Um praticante, no início, conseguirá manter esse estado por um minuto


apenas. Depois de alguma prática, chegará aos dez minutos de
contemplação.

“Mas vou ficar calado contemplando o quê? ” Ora, cale-se! “Mas não estou
entendendo. É para contemplar o quê? ”. Cale-se! Se não ficar quieto, nunca
irá entender.

É óbvio que alguém sem a prática desse silêncio contempla-tivo não


consegue fazer uma análise sobre si nem sobre ninguém. Não consegue ser
psicólogo, pai, instrutor, patrão nem funcionário. O entendimento dos outros
arcanos exige que, primeiro, a pessoa se cale.

Alguns associarão o que estou dizendo ao mantra “é preciso ficar quieto para
ouvir a voz de Deus.”, porém não é disso que estou falando. Você nem sabe
se Deus tem voz! E, supondo que Ele tenha uma, você não conseguiria
distingui-la da voz do seu próprio pensamento. O exercício que proponho é
muito simples: não reclame, fique dez minutos quieto. Não é a “voz de
Deus” que você deve procurar aí, até porque a voz de Deus já é uma
atividade.

É importante que tanto os religiosos quanto os não religiosos se dêem conta


do seguinte: só escutamos a voz daqueles de quem somos íntimos, pois
conversa pressupõe intimidade. E

a intimidade é uma conquista — sobretudo a intimidade com Deus, que é


obtida por meio da prática da religião, que eleva sua razão até o estado de fé.
Por isso é que se fala de Fé como virtude teologal. Em algum momento, a
voz de Deus o alcança, e nem isso você controla, pois pode ser que Ele não
queira falar com você naquele momento.

44

“Ai, Italo, mas é claro que Deus quer falar comigo”. É você quem está
dizendo... Na verdade, você nem sabe qual plano Ele tem para você. Pense
em São João da Cruz, por exemplo. Independentemente de sua religião, você
há de convir que ele foi um sujeito grandioso, excelente. Sabe quanto tempo
Deus ficou sem falar com ele? Quarenta anos. Por quarenta anos ele não
ouviu a voz de Deus. Esse período, ele o chamou de “noite escura”.

Se, por vezes, Deus deixa de falar mesmo com homens desse calibre — e
Ele tem suas razões para isso, ainda que não as compreendamos —, é claro
que essa história de que “Deus quer me ouvir” é coisa da sua cabeça. Talvez
seja algo que você está apenas repetindo, pois ouviu em uma pregaçãozinha
por aí, feita por alguém que também não sabia o que dizia.

No silêncio, você não necessariamente ouvirá a voz de Deus.

O que o silêncio lhe proporcionará certamente é o aquietar da sua


substância difusa.

Quem sou eu, afinal?

Chegamos a um ponto fundamental. Afinal, quem é você? O

que é o seu ego, o seu eu?

Primeiramente, é preciso acabar com essa idéia equivocada de que o ego é


uma coisa ruim. “Meu ego está falando mais alto, tenho de destruí-lo. ”
“Tenho o ego muito elevado, preciso baixar a bola. ” Pare com essa
vulgaridade, com essa mentalidade redu-cionista que não o levará a lugar
algum. O ego tem, pelo menos, três camadas de acepção, e precisamos
conhecer todas elas para começarmos a entendê-lo.

Geralmente, ao falar de ego ou eu, referimo-nos apenas à primeira delas: o


“eu” como na frase “Eu aluguei esta casa. ” Esta é a camada mais
superficial do eu, a que chamamos eu narrativo — é o eu a quem você
consegue se referir, aquele de quem se pode falar. Esse eu é como uma
camada superficial sob a qual subjazem várias outras. Ainda não
chamaremos a isso inconsciente nem subconsciente. Estamos na nomina,
como falou Freud.

45
O MAGO

As outras camadas mais profundas de que o eu é composto, por outro lado,


são tudo aquilo que você de fato é, tudo aquilo que lhe aconteceu, tudo
aquilo que você carrega, todas as suas percepções, embora você não seja
capaz de explicá-las nem mesmo de falar aos outros sobre elas. Esse é o eu
profundo, que também podemos chamar de eu substancial. Esse, sim, é você
mesmo.

Você é, portanto, tudo aquilo que carrega, tudo aquilo que lhe aconteceu, que
percebeu, que sabe — ainda que não consiga se expressar sobre tais coisas
nem dar razões para elas.

Como veremos adiante, a terapia e a escrita de um diário se prestam a ajudar


a pessoa a buscar esse eu profundo.

Se eu questionar minha irmã a respeito do dia em que nosso avô morreu e do


que fizemos após o velório dele (fomos ao Outback e ficamos lá tomando
um chá gelado e conversando), ela provavelmente não se lembrará desses
detalhes, pois eles não estão na superfície do eu dela. Mas, tão logo eu os
mencione, ela se lembrará do acontecido, pois é algo que estava em seu eu
profundo, mas que agora, com a ajuda de algumas palavras, veio novamente
à sua consciência. Ela o trouxe para o eu superficial, para o primeiro

“andar” do eu.

A quantidade das coisas todas que lhe aconteceram é você.

Esse é o seu eu substancial, e ele permanece. Isso é incrível! Não pense que
se trata de um “eu falso” e um “eu verdadeiro”. O eu narrativo e o eu
substancial são, ambos, camadas do eu. Ambos fazem realmente parte do eu.

Você tem um eu superficial, que é o eu narrativo. Ele existe, está presente e,


em geral, quando você diz “eu”, está se referindo a ele, ou seja, a esse andar
mais aparente do eu, porque, nor-malmente, jamais nos referimos ao eu em
toda a sua dimensão e profundidade.

Além do eu narrativo e do eu substancial, há uma terceira acepção da


palavra “eu”: refiro-me ao eu que aparece para o outro, o eu social.
Quando apareço para o outro e o outro aparece para mim, criamos um
conjunto de expectativas. Quando, por exemplo,

46

você discute com sua esposa, com seu marido, com seu (sua) namorado (a),
com seu filho, com seu patrão, em geral, está falando desse eu social, o eu
das expectativas. Esse eu social, de algum modo, é alienante — e é normal
que seja assim. Quando ele entra em cena, nós tiramos do horizonte de
consciência esse eu profundo, que abarca tudo.

A consistência do eu, porém, não pode ser apenas a expectativa que os


outros têm sobre mim, e a que eu tenho sobre os outros. É claro que tenho
uma expectativa sobre você que lê este livro — se não tivesse, nem o
escreveria. Tenho a expectativa de que você aprenda algo do que ensino
sobre Psicologia. Se tivesse outra expectativa sobre você, estaria falando
sobre futebol ou sobre qualquer outra coisa, mas existe afinal um ajuste de
expectativa social, então eu lhe apareço com esse eu social.

Embora seu eu social esteja saliente em muitas situações, é preciso lembrar


que você não se limita a ele. Você é o eu profundo — do qual, aliás,
procedem o eu narrativo e o eu social.

A maior parte das coisas que lhe acontecem, acontecem não por
circunstâncias do ambiente nem porque o outro acha isso ou aquilo de você,
mas porque você é esse eu profundo. Você, na verdade, é muito mais
profundo e complexo do que seu eu social e seu eu superficial podem
aparentar.

Quando nos desligamos do eu profundo (e esse desligamen-to é


generalizado), surge a necessidade de terapia. Na terapia habilmente
conduzida, o terapeuta ajuda uma pessoa a se lembrar daquilo que ela é de
fato — não superficialmente ou conforme as expectativas alheias. A terapia,
sozinha, não dá conta de tudo, mas já é um bom início do processo.

A escrita de um diário é um outro elemento do processo.

Ao escrever um diário, você tenta tanger seu eu profundo. Obviamente não


será possível abrangê-lo em sua totalidade, pois o ser humano é uma criatura
complexa e maravilhosa e o eu profundo é todo um universo do qual
geralmente não falamos.

Agimos, o mais das vezes, a partir do eu narrativo ou a partir do eu social. E


isso é especialmente verdade para as pessoas que

47

O MAGO

ainda não transformaram seu trabalho em jogo, ou seja, que ainda não
adquiriram a capacidade de dar atenção às coisas mais fundamentais.

O olhar do Mago na primeira lâmina do Tarô indica tudo isso que acabei de
descrever. O Mago age a partir daquilo que é, e não a partir da expectativa
alheia ou de uma narrativa.

Ele não lança seu olhar sobre o eu social, não lhe importa o que os outros
vão dizer, não lhe importam os juízos alheios (observe que ele não está
olhando para ninguém). Ele tampouco tem os olhos postos sobre o eu
narrativo — ele nem sequer está olhando para as próprias mãos.

Mas, afinal, o que diabos ele está olhando?

Perceba que o Mago está de lado, com a mão direita posta sobre a mesa,
segurando o bastão com a mão esquerda e mirando outro lugar... Mas não
sabemos exatamente qual. Seu olhar não é propriamente um olhar perdido,
mas está posto no horizonte; nesse horizonte que abarca seu ser, que abarca
aquilo que ele é.

Como vimos, o chapéu do Mago em forma de lemniscata simboliza a


proteção necessária para que mantenhamos o olhar voltado para o infinito,
pois quando os raios de sol batem em nosso rosto, baixamos os olhos e,
assim fazendo, deixamos de contemplar o infinito.

Não confunda esse olhar para o horizonte com uma tentativa de acesso ao
inconsciente. Ainda não falamos sobre ele, ainda não sabemos se se trata de
consciente ou inconsciente.
Trabalharemos essas noções em outro momento. Por ora, con-centremos a
atenção em duas coisas: na disposição a deixar-se proteger pelo chapéu do
Mago e no olhar atentamente desatento, na atenção perfeitíssima àquilo que
realmente se é.

Uma semente grega

Se você investigar as primeiras conferências de Jung, na Suíça, descobrirá


que ele passava de quatro a cinco horas falando sobre

48

mandalas. É sério: muitos tomavam um trem para assisti-lo falar durante


horas sobre mandalas e a formação do universo a partir delas. Essa é uma
das coisas de que a Psicologia é feita.

Só hoje, em uma sociedade e um tempo bastante esquisitos como os nossos,


é que praticamente tudo aquilo que é amplo, profundo, simbólico e
penetrante, fica perdido — e daí é que surgem essas pessoas que acham que
a Psicologia é feita de meia dúzia de técnicas. Não! A Psicologia não é a
maleta de ferramentas com as quais o psicólogo aperta os parafusos soltos da
cabeça do paciente. Ela não é um amontoado de técnicas exaustivamente
descritas em tratados e artigos científicos. Ela lida com algo tão complexo e
profundo, que não poderia esgo-tar-se aí. Exige uma linguagem e uma
percepção simbólicas e filosóficas, e é disso que tratarei aqui.

Certa vez, fui jantar na casa de um amigo de longa data, padrinho de um dos
meus filhos. A esposa dele, exímia cozi-nheira, na época cursava
Gastronomia, e seus jantares eram sempre ótimos (ainda são). Em um deles,
ela me mostrou alguns azeites que havia trazido de uma viagem, e me
convidou a experimentar um azeite grego com pão. Foi então que eu
descobri que azeites gregos são excelentes; na verdade, são uma das
melhores coisas que a Grécia produz há milênios. Lá, eles têm por tradição a
arte do cultivo de azeitonas.

Um tempo depois, assisti a uma aula do Julián Marías na qual ele comenta a
origem da Filosofia na Grécia e, de passagem, observa como é estranho que
a Filosofia tenha surgido em um país de agricultores, pobre e pequeno, onde
não havia mais que quatro gatos pingados pastoreando cabras e cultivan-do
azeitonas. A imagem daquele fruto tradicional grego não saiu mais da minha
cabeça.

A azeitona dá origem ao azeite, que é empregado em nossa cultura com uma


série de finalidades: como tempero culinário, como medicamento, como
combustível para lamparinas... Pelos antigos, ele também era empregado
para besuntar o corpo de atletas e lutadores, diminuindo o atrito durante os
exercí-

cios ou combates. O azeite simboliza esse elemento que, ao mesmo tempo,


conserva e prepara para a batalha.

49

O MAGO

Há um outro fruto tradicional e que também nos chama muito a atenção: o


figo. A pessoa com um mínimo de cultura “escriturística” e de sensibilidade
estética, ao olhar para um figo, haverá de se lembrar daquela passagem
emblemática das Escrituras.

(Se você não tem religião, não seja um implicante quando eu falar do Cristo.
A religião é uma prática e a Sagrada Escritura é um registro simbólico e
histórico dos eventos que iluminam a nossa existência. O próprio Jung fez
uma análise arquetípica de vários elementos escriturísticos. Então, se isso lhe
confortar, entenda as Escrituras como Jung as entendeu, mas saiba que
haverá uma perda.)

Cristo andava à beira da estrada, quando sentiu fome e avistou uma figueira
junto do caminho. Ao aproximar-se dela, porém, percebeu que só havia
folhas e nenhum figo. Ora, uma árvore frutífera deveria dar frutos. Uma
figueira deveria dar figos! Ele então amaldiçoou a figueira, dizendo: “Nunca
mais alguém coma fruto de ti!” A árvore secou imediatamente.

(Mt 21, 18-22; Mc 11, 12-14.)

Alguns podem se perguntar por que é que o Cristo, generoso como era, ao
constatar que a figueira não dava frutos, ao invés de a amaldiçoar, não a
abençoou. Ele poderia mesmo ter abençoado a figueira e feito com que ela
desse frutos.

Na multiplicação dos pães e dos peixes, por exemplo, ele parece ter adotado
uma postura diferente daquela que adotou com a figueira. Havia poucos
peixes e poucos pães, e as pessoas estavam com fome. Sabendo disso, ele
tomou o pouco que havia nas cestas (cinco pães e dois peixes) e abençoou.
Com sua bênção, o alimento foi multiplicado, de modo a saciar a fome de
mais de cinco mil pessoas (Mt 14, 13-21; Mc 6, 34-44; Lc 9, 10-17; Jo 6, 1-
13). Se ele foi tão generoso na multiplicação dos pães e dos peixes, por que
não o foi com a figueira? Por que ele olhou para ela e a amaldiçoou, fazendo
com que secasse?

Ao fazermos uma análise simbólica da figueira e da azeitona, comparando-


as, notaremos uma diferença essencial entre os frutos.

Nas análises hermenêuticas que os grandes homens que se debruçaram sobre


as Escrituras deram sobre essa passagem da figueira, vemos, em regra,
apenas um tipo de explicação

50

tradicional: o Cristo amaldiçoou a figueira, porque ela não dava frutos, e


porque tinha apenas folhas.

As folhas são o elemento aparente, mas a finalidade da árvore frutífera é, em


verdade, produzir frutos. Logo, se a árvore não dá frutos, não está fazendo o
que deveria fazer.

Muitos daqueles que interpretaram as Escrituras viram, na figueira estéril,


em sentido mais amplo, a figura de todos os homens que não dão os frutos
da fé, ou seja, que aderem à religião, mas ficam guardados em si mesmos. A
figueira é a imagem do sujeito que exibe espalhafatosamente coisas sem
sentido algum, enquanto esconde para si o essencial. Na pará-

bola dos talentos (Mt 25, 14-30), de modo similar, Cristo conta sobre um
“servo mau e preguiçoso” que, medroso, escondeu debaixo da terra o único
talento (uma unidade contável que equivalia, mais ou menos, a cinquenta
quilos de prata) recebido do patrão.
Antes de fazer uma viagem, esse patrão havia confiado uma quantia em
dinheiro (em talentos) diferente a cada um de seus três servos. Os dois
servos que receberam mais investiram o dinheiro, e quando o patrão voltou,
recebeu de volta o valor multiplicado. Estes dois foram reconhecidos como
servos bons e fiéis, e o patrão, vendo que haviam sido fiéis no pouco, deu-

-lhes a intendência sobre muito. Já o servo que recebeu apenas um talento,


enterrou-o; o senhor, ao regressar e não ver seu talento sequer corrigido,
chamou-o “servo mau e preguiçoso”

e disse que deveria ser lançado “nas trevas exteriores, onde haverá choro e
ranger de dentes.” Nessa parábola, o “servo mau e preguiçoso” é
tradicionalmente entendido como figura daquele homem estéril, que esconde
o que ganha, que guarda sua vida para si mesmo. É um convite a que
desenterremos nossos talentos, tornemo-nos mais produtivos e coloquemos
nossos dons a serviço dos outros.

De volta à figueira, na explicação mais tradicional da passagem, o Cristo


amaldiçoa aqueles que não revelam o seu interior, que se escondem, ou seja,
que não dão testemunho do Cristo — mas esta é apenas uma das
explicações.

51

O MAGO

O fato é que, se pusermos um figo ao lado de uma azeitona, veremos uma


diferença fundamental entre eles: a azeitona tem uma (e somente uma)
semente, ao passo que as sementes de um figo são incontáveis. Ao comer um
figo, ninguém separa as sementinhas da polpa. Isso nem é possível, e por
isso é que o figo é um fruto que se come inteiro.

Acontece que, hoje em dia, as pessoas não têm qualquer sensibilidade


estética ou pensamento simbólico. Elas são incapazes de entender que ambos
os frutos estão na raiz da possibilidade da filosofia dos gregos e também na
raiz da maldição que o Cristo lança sobre aquela fruta com inúmeras
sementes indistintas; são uma imagem, um espelho da nossa atuação diante
da vida.
Quando fui morar com o professor Olavo de Carvalho, em 2007, eu queria
aprender certas coisas nas quais estava interessado. Se por um lado eu não
tinha ido lá a passeio, por outro eu também era um idiota completo, então
comecei a lançar-lhe várias perguntas, dia após dia, uma atrás da outra, e
uma totalmente diferente da outra.

Eventualmente, com muita tranqüilidade, sem nenhum tipo de ofensa ou


grosseria, o Professor Olavo me colocou em meu lugar, dizendo que um
idiota consegue levantar mais questões que mil sábios são capazes de
responder. Era como se ele dissesse: “Seu figozinho medíocre, você está
amaldiçoado e irá secar. Há tantas sementes dispersas em você! Há tantas
perguntas desconexas em sua cabeça que não irão frutificar, que o melhor é
que você fique quieto. ”

É isso o que simboliza o figo. Ele é um fruto cheio de pequenas sementes


dispersas; e remete a um pensamento disperso, a um modo disperso de viver.

Os camponeses de Atenas cultivavam azeitonas por excelência. Ela é o


símbolo da pergunta perfeita, bem colocada e incisiva, é o símbolo mesmo
da Filosofia. Em um só caroço, está contida toda a possibilidade de brotar
uma nova oliveira, em todo o seu esplendor. É preciso aproveitá-lo.

Infelizmente, essa visão simbólica foi perdida hoje em dia.

A cultura e a filosofia gregas nos dão o alvo a que nosso olhar

52

precisa se dirigir; o centro mesmo das perguntas fundamentais, a partir das


quais brotarão coisas muito importantes. É como Julián Marías certa vez
disse em uma de suas aulas: é estranho, e quase que surpreendente, que uma
nação relativamente pequena, com alguns camponeses e soldadinhos, tenha
formado dois terços da cultura ocidental por milênios. É espantoso.

E é igualmente estranho que as faculdades de Filosofia de hoje não tenham


por foco a formação de seus alunos na cultura grega, ao menos nos primeiros
dois ou três anos de curso.
O que é a Filosofia? O que ela tem para nos indicar? Por que ela pode nos
nutrir? Como ela pode abrir nossos olhos? Como a Filosofia pode
acrescentar algo ao nosso modo de ver as coisas, de forma que possamos
olhar para o ser humano como um todo, em uma perspectiva mais ampla?

Bebemos da cultura grega há 2400 anos. Ainda hoje, pensamos utilizando as


categorias gregas; portanto, se temos a pretensão real de entender a alma
humana, de entender o que é o homem e o que é este lugar em que ele está
inserido, então, necessariamente, teremos que voltar nossa atenção para a
cultura grega em algum momento. Neste livro, nós o faremos mais de uma
vez.

A quebra do paradigma sofista

Entre os gregos famosos, três são famosíssimos. Ainda que você não
conheça nada da cultura grega, ao menos destes três gregos você já ouviu
falar: Sócrates, Platão e Aristóteles.

Não temos nenhum texto escrito por Sócrates, como você deve saber. Ele foi
um soldado, lutou na Guerra do Peloponeso e era um sujeito que
simplesmente andava por aí falando com as pessoas. Ele falou, lecionou e
escreveu algumas coisas, mas não temos registros dele — só o conhecemos
por meio de Platão e Xenofonte, que eram seus discípulos.

Platão armou toda a Filosofia socrática que era, em primeiro lugar, oral,
explicativa — mas não temos registro de toda ela; temos somente alguns
textos que Platão nos deixou redigidos,

53

O MAGO

em forma de diálogos. Na verdade, todos os textos de Platão são diálogos


entre Sócrates e outra(s) pessoa(s), e é essa a nossa maior fonte de
informação sobre o pensamento socrático. E a escrita de Platão não é de
difícil leitura: justamente por serem conversas, não são textos filosóficos
entediantes e secos. É possível ler, por exemplo, um livro como “A
República” com certo nível de compreensão.

Em termos de História da Filosofia, sabemos que muito do que está posto na


boca de Sócrates já é Filosofia do pró-

prio Platão; isto é, muitas das perguntas e respostas socráticas foram


colocadas pelo próprio Platão. Provavelmente, o pensamento de Sócrates
não era exatamente aquele exposto por Platão, mas isso não faz diferença
para nós.

Outro grego famosíssimo e tão importante quanto Sócrates e Platão é


Aristóteles. Do que está na cabeça de um homem ou mulher ocidental, 80%
ou veio das novelas da Globo e dos filmes de Hollywood ou veio de
Aristóteles. As próprias novelas e os filmes de Hollywood, aliás, baseiam-se
em categorias aristotélicas, por mais que isso não ocorra conscientemente
(na maioria das vezes).

E, embora provavelmente não o saiba, você também pensa aristotelicamente.

Eventualmente entraremos em crítica cultural na História da Filosofia. Esta é


uma dessas ocasiões. Acontece com o pensamento aristotélico o mesmo que
acontece com o cristianismo. Darei um exemplo: você pode ser ateu ou não-
cristão, mas, aqui no Ocidente, você só o é em função do cristianismo. Não
existe ateísmo puro e simples. O que existe é uma ciência não desenvolvida
do ateísmo comparado. O ateu cristão é de um jeito; o ateu muçulmano é de
outro; o ateu judeu é de outro; o ateu hindu é de outro; o ateu budista é de
outro ainda. O ateís-mo é sempre ateísmo em relação à religião de base.

Por sua vez, a Filosofia Moderna que nega as categorias aristotélicas está, na
verdade, negando o jeito aristotélico de pensar. Ela não inventou algo a partir
do nada: é sempre uma contraposição ao aristotelismo. O próprio Alfred
Whitehead, grande comenta-rista da Filosofia, diz que a Filosofia Ocidental
inteira não passa de uma coleção de notas de rodapé à obra de Platão.
Nietzsche,

54
Heidegger, Fichte, Hegel, Scheler, a filosofia de todos esses modernos não
passa de nota de rodapé ao que Platão escreveu.

O pensamento grego é olival. Como a oliveira, ele produziu uma semente


una e consistente, que realmente germinou e deu muito fruto. A Filosofia
Contemporânea, por outro lado, é como a figueira. Se produziu algo, foram
centenas de idéias e sacadas sem unidade, como as sementinhas dispersas de
um figo.

Aristóteles ensinou-nos a pensar. Herdamos um mundo absolutamente


óbvio; afinal, nascemos no século XX (ou XXI), em um momento da
História em que tudo está à nossa disposição, pois nos foi dado por alguém
do passado. Temos luz elétrica, utensílios domésticos, Google, iPhone,
MacBook, Teorema de Pitágoras, regras de composição literária, técnicas
medicinais... Tudo isso existe e hoje está à nossa disposição, mas nem
sempre foi assim.

É fácil para o homem atual observar que a lua possui uma continuidade: ela
é nova, crescente, cheia e minguante, nova, crescente, cheia e minguante...
Mas imagine quantas gerações de homens precisaram observar e documentar
esse fenômeno para que você possa se referir a ele hoje! Naturalmente, até
certo momento da história humana, as coisas não eram tão óbvias e
estabilizadas assim. Houve necessidade e esforço para conquistar essa
estabilidade.

O alemão Bruno Snell escreveu um livro fantástico, chamado “A Descoberta


do Espírito” (a edição brasileira apresenta-se com um título diferente).2 A
obra é difícil de ler — e não é uma leitura prazerosa —, mas contém uma
análise muito interessante.

Partindo de textos literários, em especial de textos poéticos, Snell argumenta


que a noção de espírito e de unidade do homem nem sempre estiveram claras
na história da humanidade.

Ele nota que, na “Ilíada” e na “Odisséia”, epopéias atribuídas a Homero, não


há palavras que designem “consciência”, “alma”
2 SNELL, Bruno. A cultura grega e as origens do pensamento europeu. São
Paulo, Perspectiva, 2001 (edição brasileira); SNELL, Bruno. A descoberta
do espírito. Lisboa, Edições 70, 1975 (edição portuguesa).

55

O MAGO

ou “espírito” — o termo psykhé refere-se à alma que se esvai do corpo


morto. Aparecem com freqüência, contudo, termos que se referem a funções,
como thymós (“órgão ou sede das emoções”) e nóos (“mente”, “órgão ou
sede do pensamento”).

Tampouco há uma palavra para o “corpo” de um homem vivo

— soma é empregado para designar um cadáver. Em lugar de um termo


único para o corpo, são empregados nomes de partes ou órgãos do corpo,
como cabeça, olhos, mãos, coxas, fígado.

Isso se daria, segundo Snell, porque na poesia homérica não havia ainda uma
visão integral do corpo nem uma idéia abstrata de sujeito. O despontar da
individualidade teria vindo mais tarde, com os poetas líricos arcaicos, como
Arquíloco, Safo e Anacreonte, que deram a conhecer e exploraram novas
“regi-

ões” da alma. Esse desenvolvimento posterior de uma consci-

ência individual também se veria refletido na vida política, na religião, nos


artistas plásticos e nas primeiras escolas filosóficas que então surgiam.

Eu sou o Italo, você é o fulano, ela é a ciclana. Há mesmo uma unidade nas
coisas, e é maravilhoso que possamos pensar assim. Somos de fato
privilegiados, por assim dizer, pois her-damos um mundo no qual esse
primeiro esforço da inteligência já foi feito por homens notáveis que
viveram antes de nós.

Aristóteles, um desses homens notáveis, entrou na história do pensamento


humano em um momento no qual já havia alguma consciência de que as
coisas têm uma unidade, uma estabilidade precisa; mas algumas noções que
temos como certas hoje em dia, tais como a do homem enquanto unidade, ou
ainda noções mais importantes, como a de Verdade, eram coisas sobre as
quais ainda não havia certezas àquela época.

Sócrates, Platão e Aristóteles surgiram em um momento da história no qual


havia um esforço sincero por alcançar a percep-

ção de algo estável, esforço este que vinha se desenvolvendo há séculos. Em


Atenas, eram bastante comuns os debates e argumentações públicas em
tribunais, assembléias e outros contex-tos. Nesses debates, opiniões
diferentes eram confrontadas; mas não eram opiniões quaisquer, nem meros
achismos. Tratava-se

56

da doxa (“opinião” ou “crença”), mas a doxa grega não corresponde ao que


hoje entendemos geralmente como “opinião”.

Hoje em dia, com as redes sociais, todos se julgam no direito de opinar sobre
tudo, sobre assuntos que nunca estudaram, sobre temas a respeito dos quais
não leram uma mísera página.

Tornou-se comum ver um sujeito que nem sequer é alfabeti-zado, que nunca
leu um livro na vida, ter a ousadia de tentar debater com uma pessoa que
estudou um assunto por décadas,

“opinando” sobre aquele objeto de estudo. E o que é pior: o sujeito ainda


tem o descaramento de achar que sua opinião é gloriosa e que as pessoas têm
obrigação de lhe dar atenção!

Ora, a opinião vulgar de um sujeitinho como esse não é como a doxa grega,
mas, como diz o ditado, é como bunda: cada um tem uma — e ninguém tem
obrigação de dar atenção à de ninguém. Se um paspalhão se julga no direito
de emitir uma opinião ridícula, eu igualmente reclamo o direito de não
prestar-lhe atenção e de não levar a sério o que ele diz; afinal, ele não se
dedicou a estudar o assunto nem por um minuto.

A doxa, segundo Platão, é uma “opinião” a que se chega a partir daquilo que
é captado inicialmente. Ainda não é um conhecimento seguro ( episteme),
nem capta as verdades supremas, mas tampouco se reduz ao achismo que
encontramos atualmente na arena das redes sociais.

Aristóteles diferencia ainda um tipo especial de opinião (en-doxon), que


seria uma opinião ou crença mais estável, dotada de algum “renome”,
“reputação” ou “glória”, por ser a opinião de homens sábios e notáveis ou a
opinião comum à maioria, já tendo passado por vários debates anteriores na
cidade.

Como eu dizia, quando vieram esses três filósofos, já havia um esforço por
alcançar a percepção de algo estável que se vinha desenvolvendo há séculos.
E a escola dos pensadores que desenvolveram honestamente visões estáveis
sobre questões relevantes chamava-se Sofística.

Alguns dirão: “Puxa, sempre pensei que os sofistas fossem sujeitos maus que
querem nos convencer de algo... ” Bem, sim, eles querem nos convencer de
algo; mas não são necessariamente maus.

57

O MAGO

É claro que um sofista hoje não teria lugar no hall da moralidade, pois a
técnica da descoberta da Verdade já foi desenvolvida.

Porém, antes de Sócrates, Platão e Aristóteles — e de uma sé-

rie de pensadores que deram continuidade a seus pensamentos

—, a maneira sofística era a única forma de estabilizar certas coisas, tais


como os princípios da lei, da justiça, do direito natural e das operações da
alma. Os filósofos sofistas tentavam chegar a algo estável com um esforço
honesto e sincero, mas esse “algo estável” ainda não havia sido confrontado
por um outro pensador grande que a tivesse estabilizado.

Até que Aristóteles apareceu.

A grande descoberta de Aristóteles foi a seguinte: é possí-


vel confrontar as opiniões gloriosas em uma técnica chamada Dialética. Isso
nos parece muito óbvio hoje, mas foi o estagirita quem inaugurou essa
possibilidade em nosso pensamento.

Itinerário dos Quatro Discursos:

a estabilização dos símbolos

pela Poética

Em um primeiro momento da história da humanidade, houve um esforço


poético para estabilizar símbolos. A função dos poetas é estabilizar aquilo
que se vê. É necessário um esforço mental para dizer: “A isso que você traz
sempre no peito, darei um nome: inveja”, ou “A isso que você traz sempre no
peito, darei um nome: generosidade”. Existe um esforço poético para
estabilizar, por exemplo, a inveja, a generosidade, o amor, os quais encer-
ram certo mistério e nos são, de certo modo, desconhecidos.

A poesia é necessária para estabilizar aquilo que é perene, que é constante,


que está sempre aí. E é função do poeta —

e do artista em geral — registrar impressões memoráveis, ou seja, registrar


aquelas coisas de que você precisa se lembrar.

Por isso é que podemos chamar de “arte baixa” ou “arte vulgar” os esforços
por estabilizar coisas que não precisam da arte para serem estáveis. Não é
preciso estabilizar, por exemplo, as

58

vontades de transar, de ir ao banheiro ou de espirrar — todo o mundo as tem


e as conhece bem, não há nelas mistério algum.

Uma arte que se proponha a estabilizar esse tipo de movimento pode ser
chamada de arte vulgar, mas nunca de alta cultura. O funk carioca, por
exemplo, não é alta cultura porque registra em sua manifestação movimentos
óbvios, que não necessitam ser registrados pela arte para serem compreendi-
dos. Todos sabem que, se uma mulher rebolar diante de um homem, ele
ficará excitado. Onde está a novidade? Não é preciso que a arte venha nos
mostrar isso.

Com a vingança, contudo, é diferente. É difícil distinguir a vingança de


outras inclinações, como a da raiva, por exemplo.

Até hoje, mesmo depois de os temas aparecerem em tantas obras de arte e


serem discutidos por tantos filósofos, psicólogos e religiosos, ainda existe
muita confusão sobre o assunto.

Você pode estar com raiva de uma pessoa que lhe fez um mal, mas sem
necessariamente querer se vingar. Se dar um soco na cara dela já o aliviaria e
o deixaria feliz, isso quer dizer que você não queria se vingar, afinal, não
desejava a destruição total dessa pessoa.

Você não é como o Hamlet de Shakespeare, por exemplo, que vê sua própria
situação e pensa o seguinte: “Meu tio matou meu pai, está dormindo com
minha mãe e, não fosse suficiente, virou rei da Dinamarca. Que vilania!
Tenho de me vingar desse sujeito deplorável, imoral. Se há algo de podre no
reino da Dinamarca, deve ser meu tio Cláudio. Vou matá-lo! ”

Hamlet então trama a morte do tio, conforme nos relata Shakespeare.


Esconde-se atrás de uma cortina, e espera o rei entrar em seus aposentos para
apunhalá-lo com uma adaga.

Acontece que, ao entrar no quarto, Cláudio imediatamente se ajoelha e, em


um ato de contrição, pede perdão ao bom Deus por seus crimes.

Todas as fibras do Hamlet se retesam. Toda a sua imagina-

ção se direciona para um só lugar: o inferno vazio. Ele pensa:

“Se eu matá-lo agora, o inferno não será a morada habitual e eter-na desse
canalha, desse assassino. Por isso, eu recuarei, esconderei minha adaga e
esperarei o momento oportuno para me vingar. ”

59
O MAGO

Hamlet não confundiu raiva com vingança.

O que faria um sujeito “vingativo” na novela “Malhação” da Rede Globo?


Ele certamente gritaria: “Seu maldito! Seu verme! Vou acabar com você!
Argh! Eu te odeio! ” Isso, porém, não é vingança, mas mera expressão da
raiva. Em manifestações vulgares, é comum a confusão entre uma coisa e
outra. Só um artista de verdade, como Shakespeare, vê nuances como as que
existem entre raiva e vingança e é capaz de estabilizá-las com o discurso
poético. Se você quiser entender e falar sobre a vingança, leia Shakespeare.
Ele estabilizou um símbolo que não estava claro.

O primeiro movimento na história da humanidade, então, é o de estabilizar


símbolos por meio da poesia. A função do discurso poético é abrir à
imaginação o reino do possível.

Só depois de estabilizados os símbolos é que se poderá falar sobre eles:


“Parece que a vingança é isso”, “Parece que a lua tem essas
características”, “Parece que o quadrado tem tais propriedades.

Existe um elemento sempre presente. Se eu fizer quatro linhas retas de


mesmo tamanho, articuladas por ângulos de noventa graus, sempre terei
essa mesma figura. ”

E a arte poética é profundamente simbólica. Esse discurso poético tem um


efeito algo “mágico”, que se dá por meio de uma comunhão de vivências
entre o poeta e seu público. O público firma um pacto com o poeta:
“Enquanto eu estiver ouvindo esta história, enquanto eu estiver lendo esta
obra literária, suspende-rei minha descrença e minhas desconfianças para
de fato mergulhar nela e contemplar o que você quer que eu contemple. Em
troca, você alimentará minha imaginação com imagens, com representações
possíveis. ”

Arte tradicional X

arte contemporânea
O verdadeiro artista preocupa-se em saber o que as coisas são, e não em
imprimir sua marca na obra. Isso fica claríssimo no

60

contraponto entre arte tradicional e arte contemporânea —

esta fala muito mais sobre o autor do que sobre a coisa; aquela fala muito
mais sobre a coisa do que sobre o autor.

Ao ver uma obra de Picasso, você exclama: “Ah, eis a visão de mundo de
Picasso! ”. Está bem, Picasso vê o mundo assim. Mas e daí? Como o mundo
de fato é?

A arte cubista não retrata o mundo, mas sim o modo como os artistas
cubistas vêem o mundo. É em um ato de revolta que Picasso cria o Cubismo,
como quem diz: “Este mundo é mau, porque não me revela todos os seus
lados ao mesmo tempo.

O mundo bom deveria se revelar para mim em todas as suas dimensões


simultaneamente. ” Pegue um cubo, desmonte-o e você verá ao mesmo
tempo todas as seis faces dele — daí o nome

“Cubismo”. O problema é que, no mundo real, ninguém consegue ver todas


as faces de um cubo ao mesmo tempo, mas, no máximo, três.

A arte contemporânea não serve para estabilizar símbolos; ela é antes a


história de uma autoestabilização psíquica do artista. Ela é mais um tratado
de Psicologia do que um registro memorável de como as coisas são.
Estudando Arte, conseguimos captar traços muito importantes do espírito de
cada épo-ca. Nesse sentido, o estudo da arte contemporânea nos ajuda muito
a entender os sintomas dessa nossa geração.

Veja, por exemplo, Jackson Pollock. Ele é o cara dos quadros com rabiscos e
borrões circulares. Nada em linha reta. Os quadros dele se parecem com um
amontoado de novelos de linha desfiados — e são um registro fenomenal do
nosso tempo.
Se você alguma vez já parou para desembolar um novelo de linha, sabe
como é difícil encontrar o fio da meada, o início do novelo. É duro ver uma
unidade naquilo. Ao desembolar fones de ouvido, um colar ou um cadarço,
nosso primeiro impulso é xingar meio mundo. Pensamos: “Onde é que está o
centro, a origem dessa coisa aqui? Que saco! Como vou desembaraçar esse
negócio? ”. Levamos certo tempo até pegar o fio da meada e poder dizer:
“Ah, achei! Aqui está a origem da coisa. Já consigo desembolar. ”

61

O MAGO

Ritmo de outono (Número 30) | Jackson Pollock, 1950 |

Museu Metropolitano de Arte | Nova Iorque, Estados Unidos Jackson


Pollock nos apresenta uma perspectiva muito singu-lar: há pensamentos que
são tão confusos, que parece que o ser humano não encontrou o fio da
meada. Onde é que está o fio da meada da sua vida? Onde é que está o fio da
meada do Ocidente, da religião, da cultura, das ciências políticas ou da arte?

O nosso tempo é como um novelo embaraçado cujo fio da meada perdemos.


Pollock não fez mais que registrar essa imagem. Ao olhar para uma tela dele,
você pensa: “Caramba! Olha eu ali! Não sei o que fazer, pois está tudo
embolado. Minha sogra está ali! Meu paciente está ali! Minha mãe está ali!
O padre está ali! Está todo o mundo ali, todo o mundo embolado. Cadê o fio
da meada? Não sei. ” Isso é arte contemporânea, arte abstrata.

Não nos aprofundaremos mais em arte aqui, mas saiba que, enquanto a
função da arte tradicional é estabilizar o mundo, a função da arte
contemporânea é deixar registrada a visão de mundo subjetiva do artista.

Já recomendei várias vezes a produção de Roger Scruton, Why Beauty


Matters (“Por Que a Beleza Importa”), de 2009.

É um documentário interessantíssimo que, no entanto, apresenta um


desprezo equivocado pela arte contemporânea.

Desprezá-la é um erro, porque também ela tem uma grande

62

função, que é estabilizar os sinais psicológicos da degenera-

ção de um tempo. Obviamente, não é possível olhar para arte contemporânea


apreciando o Belo, porque não há beleza ali —

mas alguma coisa há.

Metafisicamente falando, o mal não tem substância: o câncer é a


degeneração de uma célula sã; a pobreza é a falta de dinheiro; a maldade é a
falta de bondade; a escuridão é a falta de luz. A maldade, a degeneração e a
perversão sempre estão em algo que tem substância, e somente coisas boas
têm substância. Sempre que se fala em “mal”, devemos pensar em uma
carência de bem. É também por isso que as Escrituras dizem que as portas
do inferno não prevalecerão: o mal não subsiste, e não subsiste justamente
porque não tem substância.

Se por um lado é impossível considerar a arte contemporânea como a


substância mesma da Arte, ou ainda, como algo que registra aquilo que a
Arte deveria, em tese, registrar, por outro lado, também não a podemos
desprezar por inteiro.
A arte contemporânea registra um movimento importante do espírito: ela dá
a medida da miséria do nosso tempo. É mesmo necessário um grande artista
como Pollock neste mundo para nos dar essa dimensão.

“Grande artista?! Meu filho de quatro anos faz quadros iguais aos do
Pollock! ” Não, seu filho não pinta como o Pollock, porque seu filho não tem
psicomotricidade alguma (e por isso é que ele desenha daquele jeito). Já o
Pollock, embora tivesse boa co-ordenação motora, deliberadamente quis
expressar a coisa daquele modo; aqueles borrões não surgiram por falta de
técnica.

O sujeito que não tem talento artístico pode até se dizer artista ao copiar um
quadro de Pollock, mas ele será apenas um idiota cuja arte não tem qualquer
valor. Pollock dominava a técnica da pintura, mas quis expressar o que
estava vendo: a perda do fio da meada. Ele não fazia aqueles desenhos
confusos porque não sabia desenhar bem; ele os fazia porque sua visão de
mundo era confusa, no sentido de que apresenta um mundo impossível, de
sonho e fantasia. Era um pesadelo neurótico, no final das contas.

63

O MAGO

Itinerário dos Quatro Discursos:

a Retórica e a Dialética

Primeiro, surge o registro artístico do discurso poético. Com o símbolo


devidamente registrado, passa-se a poder falar sobre ele.

Já vimos que existe um mundo, e que parece haver algo nele que permanece:
a lua e os planetas estão sempre rodando do mesmo jeito. Aparentemente, há
uma estabilidade — mas será que foi assim desde sempre, ou será que houve
um início? Eis aí uma questão que deu origem a grandes discussões
filosóficas.

O momento da história em que se passou a falar das coisas registradas pelo


discurso poético é o momento que deu origem ao discurso retórico, que foi
se tornando dominante com o estabelecimento da polis grega. Ele foi
disseminado pela atividade dos sofistas, que eram espécies de “professores”
de retórica, discurso cujo objetivo é persuadir seu público, levando-o a tomar
uma decisão.

Enquanto o discurso poético tem um efeito como que má-

gico em seu ouvinte ou leitor, levando sua imaginação em um vôo pelo


mundo do possível sem que isso resulte em uma conseqüência prática
imediata (uma determinada ação ou decisão), a influência do discurso
retórico é bastante diferente.

Este é menos profundo, porém vai direto ao ponto. Quando digo: “Trabalhe,
sirva, seja forte e não encha o saco”, a mensagem está clara e é
evidentemente traduzível em ações exteriores. Eu quero que você pare de
reclamar e de encher o saco e que faça o que tem de fazer. A minha intenção
é mexer mais com a sua vontade do que com a sua imaginação: é fazer com
que você queira alguma coisa — ou rejeite alguma coisa. Para isso, eu
preciso fazer você sentir que a minha proposta coincide, pelo menos um
pouco, com uma vontade sua.

“Já não se trata, portanto, somente de uma participação consentida em uma


certa vivência contemplativa, mas na admissão consentida de uma identidade
de vontades, portanto de decisões.”3

3 CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. São Paulo: É


realiza-

ções, 2006, p. 92-94.

64

É claro que um “bom” orador pode fazer seus ouvintes pensarem que
querem uma coisa que, na verdade, não querem — e distraí-los por algum
tempo para que não percebam que foram ludibriados. Mas esse truque nem
sempre dá certo e vai, pouco a pouco, diminuindo a credibilidade do orador.
Se você o fizer três ou quatro vezes, muitos perceberão que foram enganados
e perderão definitivamente a confiança em você. Como bem lembrou
Abraham Lincoln — ele mesmo um tremendo orador: “Você pode enganar
algumas pessoas por muito tempo, ou muitas pessoas por algum tempo; mas
não pode enganar todos o tempo todo.”

Atualmente, quando se fala em retórica, logo se pensa em algo negativo:


“Esse sujeito dá nó em pingo d’água, ele tem retó-

rica, tem lábia, convence as pessoas de qualquer coisa. ” De fato, em um


mundo como o nosso, a retórica pode ser (como aliás tem sido) convertida
em instrumento de enganação e trapaça, sendo empregada freqüentemente
por pessoas inescrupulosas e interesseiras. Na época dos sofistas, porém, ela
era o melhor instrumento de que se dispunha.

Os sofistas desenvolveram a arte de olhar para símbolos es-táveis e declarar:


“Esse símbolo funciona desse jeito, essas coisas funcionam assim”. Como as
coisas nem sempre funcionavam daquela maneira, aparecia sempre um outro
sofista com uma visão diferente sobre uma mesma coisa.

Hoje, retornamos ao mundo dos sofistas. Nos debates pú-

blicos, as pessoas alegam que não há verdade; que o que existe é uma série
de opiniões: cada um tem a sua e todas devem ser respeitadas.

Mas a realidade é que, eventualmente, é, sim, possível ter razão sobre as


coisas. É possível analisar os fatos, fazer o confronto dialético e ver quem
está certo e quem está errado.

Nem sempre, porém. Em algumas situações, absolutamente não dá para ter


razão, porque a natureza da coisa é ser desconhecida — mas não é o que
acontece na maioria dos casos, em que é perfeitamente possível chegar a um
conhecimento verdadeiro.

65

O MAGO

Essa história de “Não quero ter razão, quero ter paz” é coisa do mundo pré-
sofista. Se essa é a sua tese, meus parabéns!
Você regrediu três mil anos na história da humanidade, você não é sequer um
sofista, pois ainda está no mundo da estabilização simbólica. Não há paz na
ignorância.

Obviamente, não há mal em usar essa expressão em tom jocoso, mas, se


levada a sério, ela revela um grande erro: o que traz a paz não é a ignorância,
senão a luta, sobretudo a luta pela Verdade. Si vis pacem para bellum, diz o
adágio latino. “Se queres paz, prepara-te para a guerra.”

A paz é fruto da guerra pela Verdade, da guerra para que se possa conhecer a
substância mesma das coisas. O sujeito que pre-tere a razão em favor de uma
suposta paz até poderá conseguir um pouco de tranqüilidade, mas apenas
enquanto não surgir um tirano para controlar-lhe a vida, já que ela não tem
estrutura nem estabilidade. Muitos regimes tirânicos foram erigidos por
conta de concessões como essa, feitas pelo mundo contemporâneo.

Hoje, não há mais ninguém interessado na Verdade. Minto: alguém está, e


esse alguém o dominará, porque você é só um idiota desinteressado que
acredita em qualquer porcaria. Você é a porta do regime tirânico e não pode
reclamar do nazismo ou do comunismo, porque é quem permite a entrada
deles.

Sempre que fizermos concessões à Verdade, seremos tirani-zados, individual


e socialmente. Esse é o resultado do acúmulo de idiotice e de ignorância. Foi
das perversões filosóficas e metafísicas que nasceu a possibilidade de tiranos
dominarem boa parte do Ocidente.

Só uma Europa enfraquecida poderia ver a ascensão de um regime como o


nazismo, pois uma Europa fortalecida pela Verdade teria um antídoto na
sociedade para que, por exemplo, Hitler jamais fosse eleito — muitos não se
lembram, mas ele foi eleito democraticamente. Lula também foi eleito
democraticamente — aliás, por quatro vezes consecutivas, se contarmos que
a Dilma é uma espécie de Lula; ou ainda, por seis vezes consecutivas, se
considerarmos também que Fernando Henrique Cardoso foi uma espécie de
proto-Lula.

66
Há 3000 anos, a Retórica era o máximo a que o pensamento humano poderia
chegar. Os retores se debruçavam honestamente sobre os assuntos dos quais
falavam; e eles falavam tão excelen-temente, que é como se suas opiniões se
revestissem de glória.

Tais opiniões não eram ainda conhecimento sólido, mas eram verossímeis e
consistentes. Cabia aos ouvintes julgá-las e tomar uma decisão (sobre a
culpa ou inocência de alguém, sobre os méritos ou deméritos de alguém,
sobre a necessidade ou não de algo etc.)

É preciso lembrar que essas “opiniões gloriosas” definitivamente não são


“meras opiniões”. Todos nós temos nossos preconceitos pessoais, coisas em
que acreditamos por mera ligação emocional. Eu tenho o direito de acreditar,
por exemplo, que a cidade em que nasci é a melhor cidade do mundo
simplesmente porque tenho um vínculo emocional com ela; mas não faz
sentido discutir sobre isso com meu amigo que acha que a melhor cidade do
mundo é a cidade em que ele nasceu, baseando-se também em um vínculo
emocional. Passa-se algo muito similar com nossos gostos pessoais para
comidas, cores, roupas etc.

“As diferenças de opinião se tornam discutíveis somente quando as opiniões


sobre as quais temos diferenças não são meras opiniões (...) — somente
quando não são apenas preconceitos pessoais, expressões de gosto, ou de
coisas em que queremos acreditar.”4

Eu posso apresentar bons argumentos para defender a idéia de que,


atualmente, plantar café é melhor para um produtor rural brasileiro do que
plantar feijão. Você, por outro lado, pode apresentar boas razões para
mostrar o contrário. Cada qual de nós pode, aliás, apresentar pesquisas
científicas, estatísticas e exemplos positivos e negativos de outros produtores
rurais para embasar nossas idéias. E, ainda que eu não consiga convencê-lo
nem você convencer-me, fica claro que, em nossa discussão, não estamos
nos embasando em meras opiniões, em gostos pessoais ou simplesmente em
coisas em que acreditamos.

4 ADLER, Mortimer. Aristóteles para todos. São Paulo: É realizações, 2010,


p. 163.
67

O MAGO

Digamos que você tenha estudado mais a fundo sobre as culturas de café e
feijão no Brasil e consultado produtores rurais experientes, e que a maior
parte dessas autoridades defendam a sua idéia, e não a minha. Para
Aristóteles, os seus argumentos seriam mais fortes por representarem a
opinião da maioria das autoridades, ou dos especialistas, ou de uma maioria
de homens que já discutiram essa questão anteriormente.

Agora que você já sabe que um debate só faz sentido quando as partes
trazem opiniões com algum fundamento e não meros “pontos de vista”,
achismos de Facebook, opiniões de boteco ou convicções de estimação,
prossigamos.

Aristóteles desenvolveu uma técnica para o confronto de opiniões. Essa


técnica é a dialética. A partir desse confronto, chega-se, dedutiva, indutiva
ou apofanticamente, a algo que é muito consistente: a noção de que existe
algo que dura e per-siste depois do confronto de opiniões.

Se desbastarmos as opiniões, tirando delas aquilo que não presta, ou seja,


aquilo que se limita ao campo do opinável, sobrará algo que é central, que
subsiste. É possível confrontá-lo dialeticamente de novo, de novo e de novo,
mas esse algo manterá uma consistência, não mudará, estará sempre
presente.

Qual o nome dessa coisa? Os gregos a chamavam de alétheia.

“A” é um prefixo de negação ou privação e “léthe” significa esquecimento.


Na mitologia grega, Léthe designava também o rio do esquecimento, no
mundo inferior. Quem bebesse de suas águas ou nelas se banhasse, se
esqueceria das coisas.

Hoje, nosso rio do esquecimento é o dia-a-dia, no qual todos nós nos


banhamos diariamente ao acordar. Léthe é a água da pia com que lavo meu
rosto pela manhã. Esse é o rio que me faz esquecer — não de tudo, mas
apenas do que é fundamental.
Ao me banhar no rio do esquecimento, deixo de me perguntar o que preciso
fazer diante de Deus, o que preciso fazer diante do próximo, o que preciso
fazer diante da minha própria vida.

Na língua árabe, o homem (não o homem masculi-no, para o qual a palavra é


dhaker, mas sim o ser humano) é chamado “insan”. Insan é uma palavra que
significa o

68

“esquecente”, aquele que se esquece. E nós nos esquecemos porque nos


banhamos no rio diário do esquecimento. Aristó-

teles, porém, descobre uma negação desse rio: alétheia. Existe um antídoto
para que você não se esqueça: a técnica dialética da Filosofia. O confronto
foi feito, e sobrou algo que resiste, que durará para sempre na eternidade,
que não depende mais da opinião de ninguém, nem da sua memória.

Na Dialética, a inteligência humana conseguiu capturar esse grão que surgiu


e brotou; conseguiu capturar essa semente una, tal como uma semente de
azeitona. Se você capturá-la e cultivá-la bem, ela se converterá em uma bela
oliveira e produzirá frutos como as azeitonas. A técnica da dialética, da
Filosofia, foi a descoberta da nossa possibilidade de chegar à alétheia.

Itinerário dos Quatro Discursos:

a articulação dos discursos

na vida concreta

Vimos que existem um discurso poético, um discurso retórico e um discurso


dialético — três maneiras pelas quais o homem pode, por meio da palavra,
exercer uma influência sobre a mente de outro homem (ou sobre a sua
própria). Esses discursos passaram por uma sucessão ao longo dos tempos,
de modo que cada um deles teve uma autoridade maior durante determinado
período da história. O poético (dos poemas homéricos e dos antigos livros
sagrados, como o Antigo Testamento, os Vedas e o Mahabharata) perdeu
sua autoridade por volta do séc. VII a.C. e foi dando lugar ao retórico, o
discurso dos sofistas, dos grandes oradores, dos logógrafos. Depois, foi a vez
do discurso dialético, inaugurado por Sócrates no séc. V a.C., mas que só se
tornou dominante mais tarde, quando foi adotado como “instrumento básico
de unifica-

69

O MAGO

ção da doutrina cristã e de sua defesa contra as heresias”5.

O ponto mais alto de seu prestígio foi o séc. XIII, com os escolásticos.

Perceba como foi uma evolução natural. Não houve confronto entre o poeta,
o sofista e o dialético, mas tão somente um desenvolvimento orgânico, óbvio
e necessário.

Se você está em um consultório, atendendo alguém, precisa saber que


existem vários tipos de discurso, com diferentes ní-

veis de credibilidade. O psicólogo não deve se confundir! Ao atender um


paciente no consultório — ou ao conversar com alguém —, esta é a primeira
grande distinção que deve ser feita: em qual nível de discurso se encaixa
aquilo que essa pessoa está falando? No poético, no retórico ou no dialético?

Seu paciente (ou amigo, ou familiar) pode estar simplesmente se


expressando “poeticamente”. Com isso, não quero dizer que ele compôs uns
versinhos e os declamou para você, mas que o conhecimento que ele tem
daquela coisa de que falou ainda está em um nível bruto, ainda não foi
processado.

Ele ainda não está comunicando aquela alétheia (“Verdade”) de que falei,
que seria como um antídoto para o rio do esquecimento. Não está nem
mesmo expressando uma opinião gloriosa, mas apenas uma “verdadezinha”,
com “v” minúsculo

— uma verdade do registro poético. Ele está contando uma

“historinha”, um “conto de fadas” ou uma “epopéia”, que ainda precisará ser


processada para que dali se extraia um sumo.
Cabe ao psicólogo mostrar ao paciente que chega com esse tipo de discurso
que há um monte de outras coisas acontecendo com ele, das quais ele
provavelmente nem está se dando conta. E que, dentre essas coisas, há
algumas mais salutares, que vale a pena desenvolver retoricamente.

Há, por outro lado, pacientes que já chegam ao consultório e apresentam


uma explicação para tudo que lhes está acontecendo.

Como, porém, poderiam entender a razão pela qual as coisas es-tão


acontecendo se não sabem nem narrar ou descrever o que está 5
CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. São Paulo: É
realizações, 2006, p. 47.

70

acontecendo? Um paciente que faz isso salta etapas importantes para a


compreensão real de seus problemas. Há coisas que precisamos apenas
descrever e narrar. Descrever é a função poética; explicar é função analítica
(da qual ainda não falei).

Na poética, estabiliza-se a linguagem; na retórica, defende-

-se o que se estabilizou; na dialética, aquilo é confrontado com uma


argumentação diferente; na analítica, analisa-se o argumento que venceu e,
por fim, chega-se a uma explicação.

Uma das funções do setting terapêutico é fazer a distinção entre esses


discursos. Não há tratamento possível de um paciente quando você não sabe
sequer em que clave ele está falando.

Isto de que a pessoa está reclamando, será que ela já o processou?

Já plantou a azeitona, viu-a crescer, já a colheu e dela extraiu o azeite com o


qual irá untar-se para ir à guerra? Ou será que você tem diante de si um
protótipo de agricultor, que tem nas mãos uma azeitona e mal a registrou
simbolicamente?

Um psicólogo, um terapeuta, ou qualquer pessoa que não tenha essa visão de


mundo, não saberá o que está fazendo com o outro e tomará um carocinho
de azeitona por um vidro de azeite. Ou seja, escutará aquele primeiro
discurso do paciente

— que, como uma semente de azeitona, ainda precisaria passar por uma
série de etapas para chegar ao azeite da verdade — e logo prescreverá um
tratamento ineficaz, despachando o sujeito para a guerra munido apenas de
uma semente.

O que o psicólogo deve fazer quando lhe chega um paciente com uma
sementinha de azeitona? Simples: ajudá-lo a plantar a semente, a cultivar a
oliveira, a colher as azeitonas, a extrair delas o azeite e, só então, mandá-lo
para o campo de batalha, devidamente untado pelo azeite. Se não seguir esse
itinerário, o terapeuta dará ao paciente uma arma ineficaz.

O psicólogo que ignora a diferença entre esses discursos tem uma visão de
mundo amputada; é um cego tentando guiar outras pessoas que, por vezes,
enxergam até melhor do que ele. Ele se reveste indignamente de uma função
e desorienta mais do que orienta, pois ainda não vestiu o chapéu do Mago
(representado naquela primeira lâmina), que o protegeria dos

71

O MAGO

raios da finitude e abriria sua visão para o infinito. E não há nada mais
desastroso do que um Mago sem chapéu.

Discurso poético, discurso retórico e discurso dialético. Vejo uma semente


de azeitona, planto-a, cultivo a oliveira, colho as azeitonas e extraio o azeite,
para que eu possa me untar dele e ir para a luta.

Há também um quarto discurso, o discurso analítico, que não explorei


melhor porque, agora, ele não é importante para nós. Em suma, estando
diante da Verdade (alétheia), pode-se falar sobre ela — e não mais apenas
sobre as opiniões (doxai).

Conhecendo a Verdade, nós a analisamos e falamos analitica-mente sobre ela


— eis o discurso analítico.6
Introdução às quatro causas

de Aristóteles

Aristóteles nos deixou ainda um outro instrumento do qual eu gostaria de


tratar. Partindo do senso comum, ele buscou responder a quatro questões que
podemos e costumamos fazer com relação às coisas e às mudanças que elas
sofrem.

Ele inicia esses questionamentos em sua “Física” e os desenvolve melhor na


“Metafísica”.7 8

6 A base para o entendimento dos três discursos (poético, retórico e


dialético) está no livro “Aristóteles em nova perspectiva - Introdução à
Teoria dos Quatro Discursos”, de Olavo de Carvalho. Vale a pena lê-lo para
ter uma visão mais aprofundada e completa do assunto. (CARVALHO,
Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva. São Paulo: É realizações, 2006.)

7 Recomendo a edição bilíngue grego-português da “Metafísica” em três


volumes, a cargo de Giovanni Reale. (ARISTÓTELES. Metafísica. 3
volumes. Ensaio introdu-tório, texto grego com comentário de Giovanni
Reale. Tradução de Marcelo Perine.

São Paulo: Loyola, 2002.)

8 Para melhor compreender a “Metafísica” de Aristóteles, recomendo


também o

“Comentário à Metafísica de Aristóteles”, escrito por ninguém mais,


ninguém menos que Santo Tomás de Aquino. (TOMÁS DE AQUINO.
Comentário à Metafísica de Aristóteles. 3 volumes. Campinas: Vide
Editorial, 2016, 2017 e 2020.)

72

As respostas a essas questões do senso comum são as famosas “quatro


causas”. Se você quer dizer, com propriedade, que conhece uma coisa,
Aristóteles diria que você precisaria conhecer sua causa primeira; mas essa
causa primeira pode ser dita de várias formas — mais precisamente, de
quatro maneiras.

Para ilustrá-las, ele usa, dentre outros exemplos, o de uma escultura. Embora
não estejamos estudando Artes Plásticas, mas Psicologia, por ora adotarei o
exemplo da escultura, pois é mais fácil entender como funcionam as quatro
causas em uma produção humana — como uma estátua, uma mesa ou um
lápis — do que partir diretamente para a consideração da operação das
quatro causas em um ser humano. O homem é uma criatura muito mais
complexa!

Mas quais são, afinal, essas causas de que fala Aristóteles?

Para descobri-las, vamos fazer algumas perguntas fundamentais sobre uma


escultura. De que é feita uma escultura? Qual o material empregado em sua
confecção? Uma escultura pode ser de mármore, de bronze, de madeira, de
resina... Pode também ser feita de mais de um material: madeira e resina,
resina e pó de mármore... Isso de que algo é feito, que passa por uma
mudança e então resulta em uma coisa diferente, Aristóteles chama-o de
causa material.

Suponhamos que nossa escultura seja de bronze. O que a faz ser uma
escultura e não uma outra coisa qualquer, como um sino ou uma espada?
Antes de o escultor começar a trabalhar o bronze, ainda não havia uma
escultura, certo? Havia apenas o bronze, a matéria-prima. O bronze foi então
derretido e derramado em um molde para tomar, finalmente, a forma de uma
estátua. Essa forma entra na explicação da produção da escultura como a
causa formal. Mas a causa formal não é o mero formato, senão a essência
mesma da escultura: é a esculturidade, aquilo que faz a escultura ser o que é.
De maneira similar, se se tratasse de uma cadeira, poderíamos chamar sua
essência de “cadeiridade”.

E quem é que fez a escultura? Ora, a escultura foi feita por alguém. Um
escultor, provavelmente. Segundo Aristóteles, esse escultor e a arte de fazer
esculturas de bronze da qual ele se valeu são a causa eficiente.

73
O MAGO

E esse alguém a fez para algo, tinha certa finalidade ao fa-zê-la . Pode tê-la
feito, por exemplo, em honra a um político notável de sua cidade ou em
homenagem a uma divindade, como Hermes ou Atena. Essa é a sua causa
final.

O que é?

Exemplo
CAUSA
De que algo é feito?

O bronze de que
MATERIAL
Qual a sua matéria?

uma escultura é

feita.

Qual a forma ou

A “esculturidade” . O
CAUSAL
essência de algo?

que faz a escultura


FORMAL
(Não confunda com

o mero formato de

ser uma escultura e

uma coisa.)

não outra coisa.

Quem ou o que fez

O escultor (agente

que deu àquele


CAUSA
algo? Qual o agente

bronze a forma de
EFICIENTE
responsável por dar

início ao movimento

escultura) e a arte de

ou à transformação?

produzir esculturas

de bronze.

Para que algo

A escultura
CAUSA
foi feito? Qual

foi criada para


FINAL
o propósito ou

finalidade para o

homenagear uma

qual algo foi criado?

divindade.

74

Agora, vamos ver se você entendeu como funcionam as causas de


Aristóteles quando aplicadas a casos menos complicados, como são os das
produções do homem. Veja se consegue encontrar as quatro causas para as
seguintes coisas: Uma casa

Uma camiseta

Causa material

Causa formal

Causa eficiente
Causa final
Foi fácil? Imagino que não. Mas com o tempo você vai pegando o jeito.

Observe agora a seguinte organização desses quatro elementos, em forma


de cruz:
PARA ALGO
MÁRMORE

“HOMEM”

(matéria)

(forma)

ALGUÉM FEZ

75

O MAGO

Podemos ainda ligar as extremidades da cruz para entender essas quatro


causas não como elementos separados, mas como a totalidade do que se
pode falar sobre algo, sobre um ente. Por que fazer isso? Porque essas
quatro causas são indispensáveis: todas elas têm de estar presentes para que
a produção de algo aconteça. Para construir uma escultura de bronze
necessariamente há de haver (1) o bronze, que é a matéria-prima (causa
material); (2) alguém que pegue esse bronze e, aplicando a arte de produzir
esculturas de bronze, transforme-o em escultura (causa eficiente); (3) uma
finalidade como, por exemplo, colocar a escultura em uma praça pública
para homenagear alguém (causa final) e (4) a forma ou essência da
escultura, a esculturidade (causa formal).

Se fizermos isso, teremos novamente o símbolo do infinito, a lemniscata. É


o chapéu do Mago dando as caras mais uma vez.

Causa final

Causa material

Causa formal
Causa eficiente
Vou repetir o raciocínio para que fique claro como as quatro causas estão
interligadas, mas agora utilizarei uma casa como exemplo — e você pode
verificar se o exemplo bate com as respostas que você deu no último
exercício.

76

O construtor da casa, aquele que a fez, é uma das causas da própria casa. Por
quê? Porque a casa saiu de seu pensamento e de suas mãos. Foi ele quem
deu o pontapé inicial para que a transformação ocorresse. Não fosse por ele
— e pela técnica de construir casas por ele empregada —, não haveria casa.
Ele é a causa eficiente. Porém, ele não conseguiria construí-la a partir do
nada. Teve de usar alguma matéria que já existia antes de existir a casa:
madeira, tijolos, concreto, vidro, aço etc. Essa matéria também é causa da
casa. É sua causa material. E, bem, ele deveria ter um propósito ou
finalidade ao construir a casa: habitar ele mesmo a casa, vendê-la para um
casal que acabou de se casar, tentar ganhar uma renda fixa alugando-a... A
finalidade é também uma causa da casa: a causa final. Por fim, ao construir,
o homem tinha uma forma ou essência em mente.

Ele transformou aqueles materiais de tal modo, que fez com que o produto
final pudesse receber o nome de “casa”. Embora pareça algo um pouco
estranho de dizer, a essência ou forma da casa, a casidade, é também causa
da casa. É sua causa formal.

Podemos, então, responder à pergunta “O que é a casa? ” partindo de quatro


ângulos diferentes; ou desmembrar essa pergunta em outras quatro. Essas
quatro perguntas estão ligadas de tal modo que, se deixarmos uma delas de
lado, perderemos de vista o que é a casa em sua totalidade.

De modo análogo, se não tivermos as quatro causas na ca-beça, interligadas


e articuladas como no símbolo do infinito, não seremos capazes de entender
o que é o homem.
Em Psicologia e no relacionamento entre pessoas isso é fundamental. Ainda
que a aplicação sistemática das quatro causas de Aristóteles em Psicologia
seja pouco usual, essas causas par-tem do senso comum, são simplesmente
respostas a perguntas que todos nós deveríamos fazer antes de dizer que
conhecemos alguma coisa, antes de dizer que conhecemos o homem. É por
isso que, mesmo que você não as tenha aprendido na faculdade, deve estudá-
las e aprender a aplicá-las à realidade.

Você se lembra da lâmina do Mago? Lembra-se do chapéu em forma de


lemniscata e da visão do infinito de que esse

77

O MAGO

chapéu é símbolo? Pois bem, sem essa visão — que passa também pela
habilidade de detectar essas quatro causas que acabo de men-cionar —, você
não conseguirá exercer a “magia”. Não será capaz de entender o mundo —
muito menos de orientar alguém, pois ela é um dos princípios do
entendimento de todas as coisas.

Causa formal e causa material

de um homem

Compreendidas as quatro causas da escultura, sabemos o que é uma


escultura. Se compreendermos as quatro causas de um homem, também
saberemos o que ele é. No entanto, aplicá-las ao ser humano é uma operação
mais complexa.

A causa material de um ser humano (e talvez a mais fácil de se responder) é


toda a matéria de que ele é composto: carne, ossos, músculos, sangue,
hormônios etc.

Imagine que um homem chegue a um consultório psiqui-

átrico com a seguinte queixa: “Estou sofrendo, doutor. Não vejo mais a vida
como antes. Já não gosto mais de fazer as coisas como antes. Não tenho
motivação para trabalhar nem para abraçar minha mulher e meus filhos.
Não tenho vontade nenhuma para acordar de manhã. Parece que uma coisa
ruim está acontecendo comigo. ”

Se o psiquiatra diagnosticar falta de serotonina e prescrever Escitalopram


(um inibidor da captação dessa substância), não estará errado. Mas terá feito
um diagnóstico “amputado”.

“Amputado” porque baseado em um olhar que se limita a mirar a causa


material do homem. Que não vê senão a matéria.

Acredito que, em um caso como esse, de fato falte serotonina ao paciente.


Mas o médico deveria ver seu paciente como um ser humano completo:
olhar para os demais pontos da cruz, não apenas para o pólo da matéria. Se
vestisse o chapéu do Mago, ele veria o paciente em sua totalidade e teria
vergonha de se limitar a despachá-lo com uma receitinha de Escitalopram.

Suponha que aquele mesmo homem, insatisfeito com o diagnóstico do


psiquiatra, vá a um psicólogo excelente, que

78

entende as potências da alma. Imagine que o psicólogo é um desses que não


gosta de remédios (pois existem tipos assim, bem como existem os
psiquiatras que abominam psicoterapia). Suponha que, depois de ouvir
atentamente os mesmos sintomas do paciente, ele diga: “Você não precisa de
remédio, não. Remédios não funcionam. Não temos que atacar a febre, pois
ela é apenas um sintoma. Temos que atacar a causa da febre. Você não está
sofrendo por falta de serotonina, mas sim porque não está agindo segundo a
essência de um homem. O homem foi feito para a virtude, para servir,
trabalhar e ser generoso. ” Pense em um psicólogo moral, na linha de Igor
Caruso, que foi quem criou uma teoria muito interessante.

Caruso ensinava que todo sintoma aparece não a partir das pulsões
inconscientes — não do inconsciente individual (como diria Freud), não do
inconsciente coletivo (como diria Jung), nem a partir do inconsciente
familiar (como diria Szondi), mas a partir da repressão da consciência moral:
quando você sabe o que é o certo e ainda assim age contra isso, surge o
sintoma.
Suponha, então, um psicólogo excelente, de formação ca-rusiana, dizendo
àquele homem o seguinte: “De fato, vejo uma manifestação sintomática a
partir da repressão da consciência moral. Quando faz aquilo que é
contrário à forma do homem de fazer as coisas, você sofre. ” Esse psicólogo
tem uma senhora razão de ser — mas também está deixando algo escapar.
Está, no mí-

nimo, deixando a questão material de lado, pois em um caso como esse, é


comum que realmente falte serotonina e haja uma necessidade real de tomar
o remédio além de fazer terapia. Ora, será necessário tomar o remédio e
fazer terapia, uma vez que um homem tem uma causa material e uma causa
formal.

Essas duas causas são o máximo a que se chega hoje.

Há sete faculdades humanas: Senso Comum, Razão, Apetite Concupiscível,


Vontade, Apetite Irascível, Intelecto Ativo e Intelecto Passivo. E essas sete
faculdades constituem somente a causa formal do homem, a sua forma.

Ao olhar para um homem, nós de imediato percebemos que ele é um homem,


e não uma samambaia ou um cinzeiro. Essa distinção imediata não ocorre
porque o homem é feito de carne

79

O MAGO

e osso. Carne e osso, no limite, são carbono (e mais umas coisinhas


agrupadas), e de carbono as samambaias e os cinzeiros também são feitos.

Um cachorro é, em termos de matéria, muito similar ao homem; eles se


distinguem muito pouco. O cachorro também tem fígado, rins, pelos, dentes,
pupilas, íris, ligamentos...

É considerando apenas uma parte da realidade que a turma da genética arrota


afirmações como esta: “O macaco e o homem são 99% iguais”. Não! Eles só
serão praticamente iguais se os considerarmos apenas sob o ângulo da
matéria. Em termos de causa material, um pássaro e um homem também não
são muito diferentes. O pássaro tem um pouco de queratina a mais no bico,
mas há muitas similaridades entre eles.

Ortega y Gasset tinha razão quando disse que, no século XX, a Filosofia teve
um pequeno ataque de modéstia e se contentou em ser só mais uma Ciência.
Se a Filosofia estivesse em seu devido lugar, se se revestisse de sua devida
dignidade, ela olharia para a Ciência Contemporânea e diria: “Oh, que legal!
Mas agora fique quietinha que os adultos vão fumar um pouquinho e
conversar.

Pegue seu Danoninho e vá para a sala assistir ao novo episódio da Peppa


Pig”. É isso o que se deveria dizer para um cientista contemporâneo, para
toda a produção da Ciência Contemporânea, para Stanford, para Harvard,
para todas essas universidades.

Quando a Ciência Contemporânea chega ao ponto de dizer que um homem e


um macaco são 99% iguais, a única resposta possível é: “Meu Deus do Céu!
Que idiotice! ” É simplesmente impossível concebê-lo. Eu, pelo menos,
nunca tive notícia de um tatu-bola que tivesse escrito um parágrafo de texto.
Também nunca tive notícia de um gorila que tivesse lido a “Ilíada”, a
“Odisséia” ou “Os Lusíadas”. Nem um textinho jornalístico vagabundo um
macaco é capaz de ler ou escrever!

Que o homem e o macaco têm algo de semelhante, isso é óbvio. Têm


praticamente a mesma causa material. Lagostas têm serotonina. Aves têm
serotonina. O frango à parmegiana que você comeu no domingo passado
tinha serotonina — frita, mas tinha. É claro, portanto, que existe uma mesma
causa material.

80

Há, porém, um outro elemento, frequentemente ignorado, que é a causa


formal. A inteligência contemporânea, quando muito, consegue chegar até
este ponto, até a compreensão da realidade básica de que, embora homens e
macacos sejam compostos quase exclusivamente das mesmas matérias, o
homem tem forma de homem e o macaco tem forma de macaco.
Com forma, não me refiro à figura externa, ao formato ou à aparência de
algo. Há macacos de certas espécies que lembram muito um homem. Se
você cruzasse com um desses macacos à noite, de costas, talvez chegasse a
confundi-lo com um homem. Já viu canguru lutando boxe? Também é
igualzinho a um homem.

O homem, porém, tem uma fórmula de funcionamento — e somente o


homem funciona daquele jeito, assim como somente o macaco funciona na
sua fórmula de funcionamento própria.

A fórmula de funcionamento, a forma do homem é composta por aquelas


sete faculdades que mencionei há pouco.

Para começar, o homem tem Senso Comum e Razão, das quais o macaco
também é dotado. Mas o homem tem Apetite Concupiscível, Vontade e
Apetite Irascível — e essas coisas o macaco não tem. Intelecto Ativo e
Intelecto Passivo, então, são faculdades que nem a doutíssima gorila de
estimação de uma ilustre pesquisadora de Stanford tem.

Nós sabemos que um homem é um homem porque ele faz certas coisas, tem
certas habilidades, tem certas faculdades: elas compõem a forma do homem.
O homem opera a partir de certas possibilidades de funcionamento que o
identificam.

Profissional, lembre-se disso quando chegar ao seu consultório um sujeito


que está sofrendo e você for tomado pelo impulso de despachá-lo
rapidamente com uma receita de Escitalopram. Sim, é falta de serotonina,
mesmo, mas existem ainda outras questões. Você tem de olhar para esse
homem e pensar que ele não está funcionando como um homem, que algo
nele está atrofiado, oculto, escamoteado, amputado ou lesado. Que algo é
esse? Caberá a você descobrir. Será o Senso Comum? Será a Razão? Será a
Vontade? Serão os Apetites? Ou os Intelectos?

81

O MAGO

Isso já é muito. Um psicólogo, uma mãe, um pai, um patrão, um amante, um


marido, uma esposa, um noivo, uma noiva, um filho, uma amiga, qualquer
um que consiga ao menos fechar aquela linha horizontal da cruz (que liga a
causa material à causa formal) já terá uma visão bastante ampla da questão.

O problema é que, hoje, só se fala ou somente da causa material (do bronze,


do mármore, da carne e do osso) ou somente da causa formal, reduzida por
todas as escolas de Psicologia.

Tome, por exemplo, a Psicanálise de Freud. Faça-lhe uma pergunta simples:


“Freud e freudianos: às vezes eu estudo, entendo uma coisa e fico mais
inteligente. Onde é que isso entra na sua teoria? ” Ora, esse não é um
movimento genuíno, legítimo, que todos nós já experimentamos? Sim —
mas ele não é contem-plado na teoria freudiana.

Pegue agora uma teoria como o Behaviorismo de Skinner e faça-lhe alguns


questionamentos. “Eu realmente noto em mim um monte de coisas, que
realmente são reflexos condicionados; mas também noto um monte de outras
coisas que não o são. A mãe com mastite que acorda de madrugada para
dar de mamar a um filho.

Por que diabos ela o faz? Dê-me uma justificativa dentro dos sistemas de
reflexos condicionados que sustente uma operação dessa por um ano, dentro
da teoria behaviorista, sem nenhum apelo externo. ”

Simplesmente não há resposta.

Pense em Pavlov e seus cães. Se você, por várias vezes, tocar uma sirene e,
na seqüência, botar um prato de ração para o cachorro comer, na vigésima
vez em que a sirene disparar, de fato o cachorro começará a salivar — ainda
que não haja ração por perto. É um reflexo condicionado. Isso acontece
mesmo.

Acontece comigo, com você, com todo o mundo. Mas é assim que você
escolhe explicar um ser humano? É claro que não; não obstante, a teoria
behaviorista se sustenta inteiramente com base nisso, essa é sua razão de ser.

Não nego a existência dos reflexos condicionados, pois eles realmente


existem — existem e precisam ser recondicionados.
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) baseia-se nesse
recondicionamento, e ela realmente consegue readequar certos

82

mecanismos (e por isso é tão eficaz). Há uma técnica para isso.

Com a TCC, você consegue fazer o cachorro parar de salivar com o toque de
sirene, assim como consegue fazer com que seu filho pare de ter dispnéia
(falta de ar) quando está perto de um elevador. São reflexos passíveis de
“descondicionamento”.

No entanto, o sistema de mecanismo dos reflexos condicionados não


consegue explicar como é que uma mãe com mastite não mata seu filho ao
cabo de duas ou três semanas de uma amamentação sofrida e dolorida, mas,
ao contrário, é ainda capaz de acordar todas as noites de madrugada para dar
de mamar ao bebê, trocar suas fraldas e, como se não bastasse, ainda o cobrir
de carinhos e beijos.

Logo se vê que falta algo a essa teoria. Ela não vê o homem como um todo,
mas detém-se somente sobre duas de suas faculdades: o Senso Comum e a
Razão. Os Intelectos, os Apetites e a Vontade, por outro lado, escapam
totalmente ao beha-viorismo de Skinner e à teoria psicanalítica freudiana.

Se você está estudando Psicanálise, saiba que, na teoria psicanalítica, só se


falará de Apetite Concupiscível — e um pouquinho de Razão. Freud
simplesmente reduz o homem a esses dois princípios de funcionamento.

Porém, a causa formal do homem não se limita a esses dois princípios, mas é
composta de sete. O homem possui uma matriz de funcionamento e é pela
utilização dessas sete faculdades que o homem é um homem.

Em 1910, Alfred Adler assumiu a presidência da Sociedade Psicanalítica de


Viena, a primeira do mundo. No ano seguinte, rompeu com a Sociedade e
fundou sua própria escola psicanalítica, a segunda de Viena, chamada
Sociedade de Psicologia Individual. A crítica de Adler à psicanálise
freudiana era justamente a de que esta carecia de uma visão do homem.
Estudando a psicanálise freudiana, não se vê um homem por inteiro,
tampouco uma mulher. Para Freud, o analisando ideal é um homem de trinta
anos, ao passo que uma mulher, aos trinta, já seria como uma pedra: não
haveria mais nada que se pudesse fazer por ela. Não estou colocando
palavras na boca

83

O MAGO

de Freud. Foi ele mesmo quem o escreveu em sua conferência

“A feminilidade”, publicada nas “Novas conferências introdu-tórias à


psicanálise” (1933): “Não é raro uma mulher da mesma idade [trinta anos]
nos assustar com a sua fixidez e imutabili-dade psíquica. Sua libido tomou
posições definitivas, e parece incapaz de abandoná-las por outras. Não há
trilhas para mais desenvolvimento: é como se todo o processo já tivesse
decorri-do, permanecendo ininfluenciável a partir de então; de fato, é como
se a difícil evolução até a feminilidade tivesse esgotado as possibilidades da
pessoa. ” 9

À visão freudiana de ser humano falta uma série de coisas.

“Não há trilhas para mais desenvolvimento”? Não se pode dizer isso de


ninguém! Todos podem mudar, evoluir, prosperar, continuar, converter-se,
arrepender-se. Isso é facultado ao ser humano.

Freud certamente não formulou essa conclusão como um disparate sem


fundamento. Ele falava de algo real, com base na experiência. De fato, há
algo na mulher com mais de trinta anos que parece estar consolidado. Quem
vê uma balzaquiana já pensa: “Ih, ela passou dos trinta. Alguma coisa já
não dá mais. ”

Mas é apenas uma coisa, uma coisa pequenininha. Existe, por outro lado,
uma porção de outras coisas que ainda podem ser mudadas.

Paul-Laurent Assoun, estudioso de Freud e Nietzsche, em seu livro


“Introdução à Epistemologia Freudiana”10, faz essa análise de modo
profundo e conclui que faltam muitos elementos à teoria psicanalítica
freudiana. E esse não é um mal de que apenas Freud padece.

Afirmo categoricamente que nenhum psicólogo contemporâneo tem uma


visão total do homem — nem o celebrado e aclamado Viktor Frankl (um
gênio, o lumiar do nosso tempo), nem mesmo Rudolf Allers.

9 FREUD, Sigmund. Obras completas. Volume 18: O mal-estar na


civilização e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

10 ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à Epistemologia Freudiana. Rio de


Janeiro: Imago, 1983.

84

Allers rompeu com a segunda escola psicanalítica de Viena (dirigida por


Adler) e fundou a sua própria, a terceira escola psicanalítica de Viena. Com
Allers temos mais um upgrade. Primeiro, tínhamos Freud olhando para o
homem e seus desejos. Depois, veio Adler com sua crítica: “Não!
Precisamos analisar o homem na sociedade”. Em seguida, Allers
acrescentou:

“Não é apenas a sociedade o que devemos considerar. Há muitos elementos,


muitos princípios transcendentais, e ainda não estamos analisando o homem
diante disso” . Ele se perguntou: como é que o homem se relaciona com
esses princípios superiores, que não têm necessariamente a ver com a
sociedade? É o que veremos mais à frente.

Causa eficiente e causa final

de um homem

Passemos aos dois pólos do outro eixo da cruz: a causa eficiente e a causa
final do homem. Dessas causas não se fala absolutamente; elas são, hoje,
completamente negligenciadas.

A tradição do idealismo alemão fez uma descoberta fundamental (que depois


se degenerou), sintetizada no seguinte questionamento: não sabemos se
existe isso a que chamam

“mundo”; o que sabemos é que existe algo muito consistente chamado “eu”.
Eu sou. Há em mim um eu — mas o que é o mundo diante dessa coisa
chamada “eu”? Esse questionamento tem raízes no cogito de Descartes, mas
só se manifesta de fato no idealismo alemão, sobretudo com Johann Gottlieb
Fichte.

Um cinzeiro tem matéria de cinzeiro. Tem também forma de cinzeiro, uma ”


cinzeiridade” — que não é, repito, sua figura externa, sua aparência (cor,
formato, tamanho, peso, etc.), mas aquela essência comum aos cinzeiros
todos, independente de tamanho, formato, cor ou peso.

Entretanto, um cinzeiro não tem um eu. Nem mesmo um cachorro tem um


eu. O cachorro, ainda que tenha individualidade,

85

O MAGO

jamais poderá dizer “Eu sinto frio”, “Eu quero comer”, “Eu acho que vou
morrer”, “Eu estou apaixonado pela cadela da casa ao lado”

ou “Eu sinto falta do meu dono”. Um cachorro reage. Ele sente frio, mas não
sabe que está sentindo frio. Ele sente falta do dono, mas é incapaz de
declará-lo.

Já ouvi de alguns donos de gatos a seguinte constatação:

“Eu não consigo mais ser apegado a esse gato como já fui uma vez. ”

É como se compreendessem que aquele afeto que seus felinos parecem


manifestar na verdade são reações ao afeto que lhes é dado pelos donos.

Se você é pai ou mãe de pet, não fique com raiva de mim.

Você pode, sim, derramar seu afeto e seu amor por seu bichinho, porque
essas criaturinhas são de fato amáveis. Um filhote de husky siberiano é
quase tão fofo quanto o Ângelo, meu filho mais novo — talvez seja até mais
fofo do que ele. Ao olhar para um filhotinho de husky, você imediatamente
deseja ter vários deles, brota uma vontade repentina de lhe fazer carinhos, de
pegá-lo no colo... Um filhote de cachorro nos amolece o co-ração — mas é
ele quem recebe o nosso afeto. O que ele nos dá não é afeto nem amor, senão
apenas uma reação da espécie.

Quando se trata de seres humanos, porém, não se pode mais falar meramente
em “reação da espécie humana”.

Todo agente age segundo o que é. O cachorro sempre age como cachorro.
Ele é estereotipado, padronizado. Um labrador, no Brasil, no ano de 2019, é
igual a um labrador, em Portugal, no ano de 1384. Eles não são o mesmo
indivíduo, mas sempre reagem conforme está prescrito no “código” de sua
espécie. Os seres não-racionais, como os animais, tendem a um fim
determinado apenas “por causa da ordenação inscrita em sua natureza. É
essa ordenação que determina os meios a empregar para realizar o fim da
natureza, e eles lhe obedecem passivamente, de forma espontânea — e não
mecanicamente, como um autômato.”11 Quando seu cachorrinho rola uma
bolinha para você, ele é o agente, a causa eficiente desse movimento, certo?

11 JOLIVET, Régis, Tratado de filosofia. Tomo III: Metafísica. Rio de


Janeiro: Agir, 1972, p. 312.

86

Mas ele só rola a bolinha para você, porque a natureza dele o impele a fazê-
lo, e ele obedece. Isso acontece porque ele não tem um eu.

Já os seres inteligentes, como nós, humanos, somos capazes de conhecer


formalmente a finalidade de nossas ações e escolher os meios próprios para
garantir sua realização. Nós temos vontade livre e inteligência que nos
permitem escolher fazer uma coisa com uma determinada finalidade.
Quando agimos, não o fazemos por mera obediência a uma ordenação
inscrita em nossa natureza.

Por isso, não se pode esperar que um homem em 1384 em Portugal aja da
mesma forma que um homem no Brasil em 2019.
Nem mesmo dois homens do mesmo tempo agem da mesma maneira. Eu e
meu amigo Dario, ambos homens da mesma idade, vivendo no mesmo país à
mesma época, não agimos do mesmo modo. A razão para isso é muito
simples: nem eu nem ele somos bichos reativos; nem eu nem ele falamos em
nome da nossa es-pécie humana, nós não temos uma “resposta padrão” da
espécie.

Eu falo em primeira pessoa, eu tenho um eu — assim como meu amigo


também tem um eu e fala em seu próprio nome.

Quando Fichte toma consciência disso, ele pensa: “Puxa, existem vários ‘
eus’ andando por aí. E cada eu é um universo. ” Um cachorro, porém, não é
um universo. A espécie cachorro é um universo, mas não o são os indivíduos
dessa espécie. Um cachorro não tem um ego. Somente uma pessoa pode
dizer: “Eu sou um universo. Eu falo em primeira pessoa. ”

Estamos, agora, conectando os pontos de cima e de baixo de nossa cruz.


Você se lembra da cruz? Nela, causa final e causa eficiente fazem parte de
um mesmo eixo vertical. Voltando ao esquema da escultura, veja como as
duas coisas estão conectadas: quando o artesão esculpe a estátua, ele é sua
causa eficiente. E é a causa final o que leva o artesão a agir. Antes de
colocar a mão na massa, ele tinha uma finalidade que o moveu a construí-la.

Assim como as duas causas do eixo horizontal (matéria e forma) só existem


em conexão, também as duas causas do eixo vertical (final e eficiente) só
existem juntas.

87

O MAGO

Para construir uma escultura de bronze, eu preciso de bronze, a matéria, mas


também preciso ter uma idéia do que seja uma escultura de bronze, preciso
ter em mente a forma da escultura de bronze. Caso contrário, não
conseguirei fazer nada, ou então farei outra coisa.

Agora pense em um cachorro. Se não houvesse cachorros de carne e osso —


e, portanto, você nunca houvesse visto um —, você não seria capaz de
imaginar um cachorro, de conceber a sua forma. Por outro lado, os cachorros
de carne e osso só existem porque existe uma cachorridade, uma forma de
cachorro.

Como dizia Aristóteles, a forma se realiza na matéria.

Essa é a solução aristotélico-tomista para uma grande disputa chamada


“Querela dos Universais”, um enorme problema na Filosofia, que levou
2000 anos para ser resolvido.

“Universais” são “coisas aptas a serem predicadas de muitas”, são termos


que designam os indivíduos de uma determinada espécie. O termo
“cachorro” designa todos os indivíduos da es-pécie “cachorro”, seja qual for
sua raça, seu tamanho, a cor de seu pêlo, o lugar em que nasceu e a época em
que viveu. O termo “homem” é um universal para Sócrates, Platão, José,
Pedro, etc. A questão é saber se os universais existem ou não, e onde é que
eles estão.

Platão achava que os universais realmente existiam no mundo das idéias. Em


um mundo ideal, existiriam formas completamente desvinculadas da
matéria. Seriam formas puras, Formas com “F” maiúsculo. Ali estariam o
cachorro ideal, o homem ideal, a escultura ideal, o cinzeiro ideal... Essa é a
posição chamada de realismo. A partir do séc. XI, apareceram os
nominalistas, que afirmaram o contrário. O universal não passaria de um
nome: não existiria em lugar nenhum. Essa posição ganhou força no séc.
XIV com Guilherme de Ockham.

Aristóteles questionou o realismo de Platão no livro Z de sua “Metafísica”: “


Então deve-se admitir que existe uma Esfera além das sensíveis, ou uma
Casa além das de tijolos? Não, porque, se fosse assim, essas Formas nunca
se teriam tornado algo determinado. Elas indicam, sobretudo, a espécie de
algo e não são algo particular e determinado .” Ele conclui, por fim,

88

que o que acontece é que uma forma de determinada espécie se realiza na


matéria. Eu e meu amigo Dario somos diferentes pela matéria (ela é diversa
nos diversos indivíduos), mas somos idênticos pela forma. Como essa forma
se realiza na matéria de cada indivíduo já é outra história, que não contarei
agora.

Mas, afinal, as formas existem independentemente ou não?

E se existem, onde é que existem? Foi Santo Tomás de Aquino, com base
aristotélica, quem matou a charada: os universais, enquanto tais, são
produtos da mente. E não existem na mente “do nada”, mas têm um
fundamento in re, na coisa. Os universais existem, mas não são res (uma
coisa separada) —

como pensavam os realistas como Platão —, nem são apenas uma palavra
— como pensavam os nominalistas como Guilherme de Ockham. Essa é a
solução para o “Problema dos Universais”.

Continuando, causa eficiente e causa final estão ligadas.

Qual a causa final de um cachorro? Para que serve um cachorro? Aposto que
você só consegue responder a essa pergunta quando relaciona o cachorro a
você. “O cachorro existe para me alegrar”, “O cachorro existe para
proteger a minha casa”.

Bizarro, não é? Mas será que é isso mesmo?

Fichte descobriu que existe um eu e parece que tudo se refere, de algum


modo, a ele. Não é que seja de fato assim, mas essa era a visão dele — e foi
mesmo uma baita descoberta. Meu eu engloba tudo — e isso não é auto-
referência.

O problema na descoberta de Fichte é que, além do meu eu, existem também


o eu da minha irmã, o eu do meu amigo, o eu do Fernando, o eu da
Andressa, o eu do Leonardo... Não há como ser auto-referente, pois existem
outros eus. Resu-mindo: o seu eu de fato engloba tudo, mas o mundo não
gira em torno do seu umbigo. A finalidade de todas as coisas não depende de
você. Você não é causa eficiente (agente) de todas as coisas que existem e
acontecem. Elas existem e acontecem independentemente de você; o
cachorro existe independentemente de você, outras pessoas existem
independentemente de você.
89

O MAGO

Qual é a causa final do homem? Seguindo nosso raciocínio, a finalidade do


homem é ser um tipo de universo. O homem tem um eu, ele fala em primeira
pessoa. Um gato não fala “Eu sou”.

Qual é a causa eficiente do homem? Quem é o artífice do homem? O


princípio de criação, o artífice do homem, é um tipo de “Eu sou” universal,
porque a finalidade do homem é se distinguir maximamente, é dar uma
resposta em primeira pessoa para as coisas do mundo.

A estátua guarda em si um princípio do artífice. Se eu fosse o escultor de


uma estátua, ela teria algo de Italo. Eu seria a causa eficiente dela.

Eis a sutileza da coisa: uma estátua não é dinâmica, ela já está feita. A causa
eficiente do seu artífice já está nela. Com o cachorro não ocorre o mesmo,
porque o cachorro é vivo; mas ele também não fala em primeira pessoa. A
causa eficiente vive no cachorro de modo impessoal, pois ele não é uma
pessoa. O

homem, por sua vez, tem um eu, é dinâmico e pessoal.

Há algo vivo e dinâmico na causa eficiente do homem, que faz com que ele
sempre possa dizer “Eu sou” e chegue a cumprir a finalidade de ser um
universo. É isso o que as religiões costumam chamar de graça.

A graça a que as religiões costumam se referir é o princípio de causa


eficiente daquele que lhe criou e que é um “Eu sou”

maior do que você. Vou repetir: o princípio de eficiência no homem (quem


criou?), que faz com ele possa cumprir a sua finalidade (para quê foi
criado?), e isso é o que a religião chama de graça. Logo, o homem só
conseguirá chegar à sua finalidade se articular a graça em sua composição
pessoal. O exercício da plenitude humana é a docilidade a esse princípio
eficiente chamado graça.

Uma Psicologia que não fale sobre isso é charlatanismo.


Não é Psicologia definitivamente, porque não tem a visão do todo nem sabe
o que é o homem. E uma visão do todo não pode desconsiderar nem a causa
material, nem as sete faculdades de que é composta a causa formal do
homem, nem a causa eficiente, nem a causa final.

90

Um homem será tão mais homem quanto mais ele reconhecer e acolher sua
causa eficiente em si. Um psicólogo, um terapeuta, uma mãe, um pai, um
chefe, um amigo, quem quer que não reconheça essa causa eficiente na
operação humana, não estimule o outro a acolhê-la e não consiga distingui-la
na operação diária do homem, não poderá ajudar esse outro a cumprir a sua
finalidade.

E aquele que não chega a ser aquilo que foi feito para ser permanece na
infelicidade. Pois de que serve uma estátua ornamental que não ornamenta?
De que serve uma oliveira que não dá azeitonas? De que serve uma figueira
que não dá figos?

Uma Psicologia que se pretenda ampla, total e eficaz, precisará olhar para
esses quatro pontos articulados de maneira integral.

Essa articulação é o chapéu do Mago, que nos protege da maldição da


finitude. O número quatro é símbolo de totalidade, então não é à toa que
falamos em quatro causas. Se, ao olhar para o homem, você não observar
essa quaternidade, você não estará olhando de fato para o homem, mas sim
para uma coisa que você inventou. Ao desconhecerem a causa final e a causa
eficiente do homem, é exatamente isso o que fazem as Psicologias
Contemporâneas.
A PAPISA

93

A segunda lâmina do Tarô é a Papisa, uma espécie de versão feminina do


papa. Ela é geralmente representada sentada, segurando um livro aberto,
apoiado em seus joelhos, e inclinando levemente a cabeça na direção dele.

Traja uma túnica azul e uma capa pluvial de cor vermelha, como o mantum
papal. Uma fina faixa com cruzes bordadas atravessa seu tronco: é um pálio,
vestimenta eclesiástica que até o séc. VI era usada exclusivamente pelo
papa, como símbolo da plenitude do ofício pontifical. Um véu cobre seus
cabelos. Por trás da cabeça e dos ombros, um outro véu parece velar ou
separar a Papisa do plano de fundo. Na cabeça, ela traz uma imponente tiara
com três coroas.
94

Você se lembra do chapéu do Mago, que o protege dos raios da finitude? Se


o Mago usa um chapéu leve, de abas largas, em forma de lemniscata, a
Papisa, por sua vez, tem na cabeça um adereço mais pesado, com três
círculos paralelos, que vão se estreitando à medida que se distanciam da
cabeça, até chegar a um vértice, que aponta para o alto.

O que ela traz sobre a cabeça não é bem um chapéu, mas algo que
chamamos de tiara. Não uma tiara como aqueles enfeites delicados que as
meninas hoje usam, mas algo mais pró-

ximo de uma coroa.

Se você tiver alguma sensibilidade estética e conhecimento de história,


reconhecerá essa tiara. A última vez em que foi utilizada no Ocidente foi na
década de 1960, e quem por último a utilizou foi o papa Paulo VI.

O uso da tiara papal de três coroas ( triregnum) era tradição na Igreja desde o
séc. XIII — e antes disso foram utilizadas tiaras com uma e duas coroas, que
aparecem representadas nos brasões papais desde Celestino III, papa de 1191
a 1198. Desde então, todos os papas usaram tiaras papais, ao menos em suas
cerimônias de coroação, quando ouviam do mais velho dos cardeais palavras
como estas: “Recebei a tiara adornada com três coroas e sabei que vós sois o
Pai dos Príncipes e Reis, Governador do Mundo e Vigário de Nosso
Salvador na terra.”

Enquanto os reis eram coroados apenas em um domínio —


o domínio do poder temporal — e por isso usavam uma coroa simples, os
papas portavam uma tríplice coroa, que representa

95

A PAPISA

sua soberania em três domínios distintos12 e que, além disso, como a torre
de uma catedral gótica, aponta para cima, como para algo superior e mais
excelso do que as coisas terrenas.

Essa tríplice tiara tem, na Igreja, uma simbologia própria, mas nós a veremos
aqui especialmente como símbolo de três domínios dos quais temos de nos
aproximar: os domínios místico, gnóstico e mágico.

De volta à tiara papal, vejamos o que aconteceu com ela.

Em 1964, o papa Paulo VI rompeu com a tradição ao depor a sua tiara


durante uma cerimônia na Basílica de São Pedro.

Seus sucessores também deixaram de usá-la, com uma única exceção: o papa
Bento XVI, que, embora não a tenha usado em uma cerimônia de coroação
(como era costume), usou-a em outra ocasião — mas renunciou ao seu posto
de papa.

Para onde a Igreja Católica foi desde a deposição da tiara?

O que aconteceu a ela? Bem, desde então, ela mergulhou em abismo atrás de
abismo. Quem, hoje, escuta um católico, falando enquanto tal, e o leva a
sério? Ninguém.

Quando o papa Paulo VI depôs a tríplice coroa, ele saiu dos domínios
místico, gnóstico e mágico, levando consigo a Igreja, e desceu ao domínio
do livro, no qual os protestantes já estavam há vários séculos.

A velha tensão entre casta

sacerdotal e casta aristocrática


Quer saber como é que os protestantes caíram no domínio do livro?
Voltemos, então, a 1517, ano que se costuma apontar como início da
Reforma Protestante.

Naquele ano, Martinho Lutero pendurou suas noventa e cinco teses na porta
da igreja do povoado de Wittenberg, na 12 Além da simbologia sugerida nas
palavras do cerimonial de coroação, há ainda outras que costumam ser
associadas à tríplice coroa papal: os três poderes do papa (magistério,
jurisdição e ordem), as três dignidades de Cristo (sacerdote, profeta e rei)
etc.

96

Alemanha. Esse foi apenas o início de uma grande reação contra o papado e
o poder espiritual que ele representa — e contra o clero em geral, que
desfrutava de privilégios e riquezas cobi-

çados por muitos membros da nobreza.

Lutero fez cair a primeira pedrinha, mas, depois dela, cho-veram pedras e
pedregulhos cada vez maiores, em uma avalan-che tremenda que tinha como
alvo a casta sacerdotal, aquela constituída pelos homens que se encarregam
das operações do espírito, das coisas mais elevadas.

Seja você religioso ou não, há de convir que estamos inseridos em um ciclo


cultural que, como vários outros, formou-se com base em uma certa visão de
mundo, em uma cosmovisão fundamentada sobre uma idéia religiosa. O
nosso ciclo cultural é cristão e tem como base uma visão de mundo cristã —
que pode ter sido desvirtuada, esquecida ou enfraquecida ao longo dos
séculos, mas continua ali. Essa visão de mundo remonta a Cristo, em torno
de quem brotou uma série de homens hierá-

ticos, espirituais, que levaram adiante seus ensinamentos.

Nos mundos hindu, egípcio, chinês e muçulmano foi assim também: houve,
no início, uma visão de mundo ligada à crença em uma divindade, e foi ao
redor disso que esses ciclos culturais se desenvolveram. No Egito, por
exemplo, houve um Thot para dar a nova lei e a nova ordem que
configuraram a nova sociedade. Estruturou-se então uma ordem de homens
sacerdotais que faziam cumprir essa lei.

Mas nem só de homens sacerdotais vive uma sociedade.

Ela precisa também dos tipos aristocrático (ou nobreza), empresarial (ou
burguesia) e servidor (ou prestador de serviços).

É preciso gente para fazer o trabalho pesado e prestar serviços básicos, gente
para lidar com a economia e vender, e gente para guerrear e defender.13

13 Essa divisão das sociedades em quatro estratos se faz sem prejuízo da


enorme e maravilhosa heterogeneidade humana e sem ignorância dos fatos
de que cada indiví-

duo é único e cada cultura tem suas peculiaridades. A esses estratos sociais
correspon-dem certos temperamentos e tipos caracterológicos, o que quer
dizer que as pessoas têm certas propensões ou tendências a participar de um
desses estratos.

97

A PAPISA

Em uma sociedade sem castas formais, para um sujeito chegar a desenvolver


uma atividade espiritual, ou seja, para chegar à casta sacerdotal, ele precisa
apenas cultivar os dois olhos. Assim ele desenvolverá o órgão específico que
o permitirá apreender realidades de um domínio superior. O tipo sacerdotal é
aquele que tende para o místico, que enxerga além e que tem uma inclinação
à virtude e ao ascetismo muito maior que a dos outros. É aquele sujeito que
pode até ter dinheiro, título de nobreza, uma casa bacana e mulheres aos seus
pés, mas ele não liga muito para essas coisas e abriria mão delas facilmente,
como fizeram um São Francisco ou um São Bernardo.

Bem, pelo menos, é isso o que o tipo sacerdotal deveria ser, mas nada
impede que alguém que ocupe uma função como a de sacerdote, monge,
cardeal, ou mesmo papa, fuja à sua tendência principal e seja motivo de
vergonha para toda a casta.
“ Na formação de um ciclo cultural o primeiro período é de domínio dos
sacerdotes, que participam deste poder em proporção maior que a
nobreza.”14 Veja o caso dos hindus. São os brâmanes que fundam suas
civilizações; e, assim fazendo, ganham status.

No entanto, os membros da casta sacerdotal precisam ser protegidos por


alguém, já que a atividade deles volta-se para o espírito. Os clérigos, em
geral, não se dedicam às armas. Quem se encarrega dessa defesa é a nobreza
de espada, que compõe a casta aristocrática.

Ao contrário do que muita gente pensa, o nobre não é um sujeito gordo que
fica sentado no castelo comendo asinha de frango e cortejando as duquesas.
Ele defende. Eventualmente, se não estiver batalhando, ele se divertirá com
as duquesas e as asinhas de frango; mas, quando explodir uma guerra, ele
será um dos primeiros a colocar sua vida em risco. Esse nobre é o tipo que
valoriza muito a honra e o renome, empreende façanhas, tem tendências
agressivas e bélicas e se orgulha de sua força e bravura.

14 SANTOS, Mário Ferreira dos. A Crise no Mundo Moderno. Palestra no


Centro Convivium (transcrição), 1964.

98

Como o nobre é o sujeito que morre por todos em uma civilização em guerra
permanente, é natural que ele ganhe certa superioridade hierárquica. É o que
vemos em epopéias como a

“Ilíada ” , a “Odisséia ” e a “Eneida ” , em que valorosos guerreiros são


louvados e premiados por seus feitos grandiosos e por se arriscarem na
defesa de suas famílias e de sua comunidade. É

também o que vemos quando um tipo como o Macbeth, de Shakespeare,


retorna da guerra como grande herói, e é premiado com um novo título de
nobreza, os louvores de seus pares e os mais altos elogios do rei. O
raciocínio das pessoas é geralmente este: “Esse é o cara que nos defende.
Aquele outro celebra a missa que frequento aos domingos e é até boa gente,
mas, quando o bicho pega realmente, é o nobre quem nos garante. Se não
fosse por ele, estaríamos todos mortos ou seríamos escravos de um povo
estrangeiro, e nossas mulheres seriam estupradas ou levadas daqui. ”

Mas o que é que aconteceu quando o valente Macbeth regressou da batalha?


Desejou ardentemente se tornar rei. E saiu matando quem se pusesse em seu
caminho. É verdade que o Macbeth de Shakespeare é um homem muito
peculiar, mas representa também um tipo comum na história: o do aristocrata
corrompido que cobiça o poder político (ou deseja ampliar o poder que já
tem).

Porém, quando o poder que está acima do nobre é exercido não por um rei,
mas por um sacerdote, um papa ou um grupo inteiro de homens sacerdotais,
é contra a casta sacerdotal que a nobreza tenderá a se voltar. Seu grande
desejo será subordinar o sacerdócio para servir a seus interesses, ou até
mesmo elimi-nar essa casta que lhe parece um obstáculo.15 Quantas vezes
isso aconteceu na história da humanidade? Várias!

Nos séculos XI e XII, há o famoso caso das investiduras: nobres se viram no


direito de nomear bispos e até papas, e de pilhar os bens do clero.

15 Para uma visão aprofundada da aplicação das quatro castas à história e à


dinâmica dos ciclos culturais, ver SANTOS, Mário Ferreira dos, As fases
cráticas na História.

In: Filosofia da crise. São Paulo: É Realizações, 2017 (apresentação


resumida da tese) e SANTOS, Mário Ferreira dos, Filosofia e História da
Cultura. Volume III. São Paulo: Logos, 1962 (apresentação detalhada da
tese).

99

A PAPISA

Mais tarde, em 1302, o papa Bonifácio VIII, conhecido por suas constantes
interferências nos governos temporais, emitiu a bula Unam sanctam, porque
percebeu — sobretudo na figura do então rei da França, Filipe, o Belo — a
grave ameaça de reis que não queriam se submeter à autoridade da Igreja.
É necessário, de fato, que uma espada esteja sob a outra espada e que a
autoridade temporal esteja sujeita ao poder espiritual. (...) Com tanta maior
clareza quanto as coisas espirituais sobressaem às temporais, devemos
afirmar que o poder espiritual supera, em dignidade e nobreza, qualquer
poder terreno. (...) Se o poder terreno se desviar do reto caminho, será
julgado pelo poder espiritual; se um poder espiritual menor se desviar, será
julgado pelo que lhe é superior; se, porém, o poder supremo se desviar,
poderá ser julgado só por Deus, não pelo homem, como atesta o Apóstolo:
‘O homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por
ninguém.’ (1Cor 2,15) 16

O papa tentou colocar os reis em seus devidos lugares, mas, pouco depois de
emitida a bula, Filipe, o Belo mandou seu ministro-

-chefe ir atrás de Bonifácio, quando este se encontrava em retiro em um


lugarejo do Lácio. O papa foi espancado e preso, mas acabou finalmente
solto alguns dias depois, por pressão da população local.

Quando Lutero olhou para a situação da Igreja em sua épo-ca, para toda a
seqüência de papas dos séculos XV e XVI e suas condutas nada exemplares,
e disse: “Tirem-lhes a tiara”, também havia ali por trás uma nobreza
insatisfeita que queria tomar parte na hierarquia sacerdotal.

Lutero: uma crítica razoável,

uma solução quimérica

A crítica de Lutero ocorreu em um momento de grande instabilidade e


despertou uma reação violenta contra a autoridade 16 DENZINGER, H.
Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral.

São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007, pág. 307.

100

de Roma por parte de grandes nobres e príncipes locais, que viram uma
oportunidade de se livrarem do jugo da Igreja e de seus impostos e leis, e de
saquearem suas riquezas. Sim: não pense que aqueles que se voltaram contra
o papa e a Igreja eram uma massa de santarrões incomodados com
problemas doutrinais e revoltados com a imoralidade dos papas.

Havia muita gente cheia de interesses econômicos e polí-

ticos e disposta a matar quem quer que fosse para conseguir o que queria,
como se viu, mais tarde, na Guerra dos Trinta Anos, nos diversos saques a
mosteiros e a terras da Igreja em toda a Europa, e no genocídio de católicos
irlandeses promovido por Oliver Cromwell.

Na Inglaterra, o rei Henrique VIII chegou ao extremo de não só negar a


autoridade do papa, como também de tomar para si a autoridade espiritual
suprema, fundando uma igreja nacional cuja cabeça era o rei — e ainda
coroou seu projeto fazendo rolar a cabeça de um homem que ousou não o
apoiar: São Thomas More.

Por outro lado, temos de convir que a crítica de Lutero não era infundada. À
sua época, havia muitos abusos no alcance das indulgências e confusão
quanto à sua finalidade. A hierarquia eclesiástica deixava as pessoas
pensarem que podiam comprar o perdão de seus pecados, e foram feitas
verdadeiras campa-nhas de arrecadação de fundos, com outorga de
indulgências, para custear obras da Igreja.

O nepotismo era prática comum entre os papas de 1447

a 1517. O papa Paulo II era sobrinho de Eugênio IV; Alexandre VI era


sobrinho de Calisto II; e Júlio II era sobrinho de Sisto IV. Todos eles papas.
Vários papas deram a parentes uma quantidade vergonhosa de cargos
eclesiásticos. Por muito tempo, para chegar a ser cardeal, ter um vínculo de
sangue com um papa era condição quase que necessária; e ser membro da
nobreza era obrigatório — o que era francamente um absurdo, pois a
dignidade sacerdotal, especialmente do sacramento da ordem em seus níveis
mais elevados, não está vinculada ao sangue, mas ao espírito.

101

A PAPISA
Os próprios papas acumulavam rendas de diferentes sés e os mais diversos
benefícios, provocando a cobiça de muitos e a indignação geral. Nesse
intervalo de tempo, houve ainda três papas que tiveram filhos ilegítimos
antes de se tornarem papas (Pio II, Inocêncio VIII e Alexandre VI) e os
favoreceram de muitas maneiras.

Havia um abismo entre o que a Igreja oficial deveria ser e o que realmente
era. Isso deixou, com razão, muita gente chocada.

Lutero foi um desses que, olhando para essa realidade, ex-clamou: “O


papado está degenerado. Esses sujeitos não cultivam o espírito. Esses papas
não podem portar as sabedorias mística, gnóstica e mágica”. Ele viu na
tiara papal um símbolo que, em uma cabeça indigna, parecia não ter razão de
ser.

O poder temporal e o poder espiritual estavam mesmo bagunçados, tudo


estava degenerado. A crítica de Lutero tinha fundamento. Sua terapêutica,
porém, foi um desastre, porque, quando se retira a tiara, corta-se aquilo que
há de mais próprio ao ser humano: a conexão com sua causa eficiente.

Veja que nenhum protestante reclamou para si o exercício do poder espiritual


implicado no uso da tiara papal. Henrique VIII, embora tenha se
autoproclamado autoridade espiritual, cabeça da novíssima Igreja da
Inglaterra, não se proclamou papa. Ele estava, na verdade, interessado no
status e nas vantagens que a supremacia em questões espirituais e temporais
lhe dariam. Os protestantes, enfim, descartaram a tríplice coroa e foram, por
isso, lançados no domínio do livro. Abraçaram a sola scriptura.

As atividades mística, gnóstica e mágica de que a tríplice coroa é símbolo


são próprias do ser humano; mas um protestante, hoje, está incapacitado de
exercê-las — assim como os católicos “pós-queda-da-tiara” de maneira
geral. Nenhum deles sabe realmente o que são as atividades do espírito,
porque estão no domínio do livro, em um plano inferior.

No que crê um protestante? “Na Bíblia! ”, dirão. Sim, no Livro — mas o


católico também crê no que está escrito no Livro. Então, o que diferencia
protestantes de católicos? Em quê crêem eles?
102

Um protestante se apressará em dizer: “Não sou católico, porque não creio


nos santos, não creio na Virgem Maria, não creio nos sacramentos”. Sim,
mas estou perguntando em quê você crê, e não em quê você não crê. Qual é
a sua crença fundamental, e em que ela se baseia? “É que os católicos são
idólatras!” Eu sei que é isso o que pensam dos católicos muitos protestantes,
mas isso não responde a minha pergunta.

Na verdade, a crença fundamental do protestante é: “Não podemos usar uma


tiara, somos todos indignos. Somente Cristo é digno da coroa de Cristo. ”
Com base nisso, lançaram fora a tiara, que é um domínio do espírito vertical,
e é por essa razão que não existe a figura do papa no protestantismo.

A crença fundamental do protestante — e isso quem diz não sou eu, mas a
própria teologia protestante — é a de que a razão do homem está lesada
desde o pecado original. Dito de outro modo, as atividades mágica, gnóstica
e mística são inacessíveis ao homem e, portanto, não se consegue chegar ao
conhecimento de Deus por meio da observação e da contemplação da
realidade. O protestante não crê, filosoficamente falando, em uma coisa
chamada analogia entis, na analogia entre os entes. Ele não crê que
possamos limpar nossos olhos para torná-los espelhos, para torná-los como
que superfícies perfeitamente polidas, que refletem a Palavra.

Mas foi o próprio Cristo quem disse que é preciso limpar os olhos, pois, se
eles não estão limpos, nada dentro de si está limpo. Foi o próprio Senhor
quem deu a técnica da ascensão da tiara. Você deve polir e limpar seus olhos,
para que eles reflitam a presença que vem do Alto, para onde a tiara aponta.

É nisso que o protestante não crê. Ele crê que o conhecimento só pode ser
adquirido por meio da Palavra de Deus, e que a atividade da razão ou da
contemplação está lesada. Ora, senhor protestante, eu lhe pergunto: com que
razão você crê nisso? Se sua razão está lesada, com que razão você pôde
conhecer isso?

“Ah, foi Deus quem disse. ” Tudo bem, mas quem disse que foi Deus quem
disse? Ou você concluiu que Ele disse por meio de sua razão, aquela mesma
razão lesada?
103

A PAPISA

“Está na Bíblia, foi Deus quem disse. ” Sim, mas como é que você sabe, se
não crê que o conhecimento é possível a partir da analogia dos entes?

“Ora, Italo, eu percebo as coisas e chego lá. ” Bem, se você percebe as


coisas e chega lá, então você não é protestante de verdade.

Um protestante crê que sua capacidade de refletir a majestade divina está


lesada, e que ele, portanto, só pode receber o conhecimento das coisas pela
Palavra. Volto a perguntar: com que razão você crê nisso?

O protestantismo é uma manifestação religiosa impossível, é um edifício


filosófico rompido na base. É óbvio que existem, entre os protestantes,
pessoas maravilhosas, muito boas, fazendo o bem, se ajudando, querendo até
descobrir a religião e a fé — mas as que de fato são assim não estão dentro
do protestantismo, mas fora dele. Estão no domínio da tiara, embora o
neguem com a boca. Sem sabê-lo, são católicos implicantes; e digo isso com
todo o amor do mundo. Estou dando a razão de ser da religião protestante.

Protestantes não acreditam que é possível, através do polimento dos olhos,


refletir a presença do ente superior; e disso deriva todo o seu conjunto de
crenças. Toda a noção de hierarquia se perde, porque a hierarquia é a
organização progressiva do que está acima até o que está abaixo. É daí que
vem, por exemplo, a idéia protestante de que não existem santos.

Somente a razão dá conta de hierarquizar as coisas. Como não há hierarquia


no protestantismo, eles dizem: “Ou todo o mundo é santo, ou ninguém é
santo” (a depender da denominação, é exatamente isso). É como se
dissessem: “Ou somos todos iguais à Virgem Maria, ou a Virgem Maria é
igual a todo o mundo. ” Para eles, não há hierarquia na intimidade com Deus
— mas buscar a santidade é exatamente buscar ascender na hierarquia da
intimidade com Deus.

Assim como existem os mais ágeis, os mais inteligentes, os mais belos e os


mais fortes — e isso ninguém nega —, existem também os mais “místicos”,
isto é, os mais íntimos de Deus.
O protestantismo, portanto, não tem razão de ser, ao menos não fora do
domínio da crítica social, porque, apesar de tudo,

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sua crítica política é rigorosamente perfeita. “Arranquem a tiara da cabeça


daquele homem, porque ele não é digno”, dizem. Certo, muitos papas de fato
não o foram. O problema é que, quando você arranca a tiara da cabeça de um
papa, você a arranca da cabeça do mundo inteiro.

A tiara papal é uma coroa hierarquizada. Como se vê pela lâmina da Papisa,


ela é composta de três círculos sobrepostos que apontam para o alto. A tiara
está acima de seus olhos; o livro, porém, está bem abaixo deles.

Os olhos são a faculdade que nos permite enxergar. O olhar do homem tem
uma característica dupla — não é à toa que, simbolicamente, temos dois
olhos, e não apenas um. Assim como temos apenas uma boca, poderíamos
ter apenas um olho, como um Ciclope, mas temos dois, porque tudo é
presença. Seus olhos são presença, sua boca e nariz são presença, até mesmo
sua pele é presença, e presença de uma realidade que está para além.

A articulação dos dois olhos

Os olhos estão presentes em toda manifestação mitológica, em toda


manifestação artística. As coisas entram pelos olhos.

Narciso pretendia olhar-se no reflexo da água. Quem contem-plasse a


Medusa com os olhos viraria pedra. A mulher de Ló olhou para trás e se
transformou em estátua de sal.

Os olhos têm uma presença simbólica importantíssima.

Como dizem por aí, eles são “as janelas da alma.” E são mesmo.

Se as suas janelas estiverem sujas, sua alma estará suja e você não verá com
clareza o que há lá fora. Cristo disse que “o olho é a lâmpada do corpo. Se o
teu olho for são, todo o teu corpo terá luz.” (Mt 6, 22-23)
O homem tem dois olhos, não um; portanto, deveria cultivar dois tipos de
olhar. Esse duplo olhar está bem representado em uma imagem do séc. VI,
conhecida como Pantocrator, uma das mais antigas do Cristo, na qual Ele
aparece com dois olhos bastante diferentes um do outro. É uma imagem
pertur-badora. À primeira vista, o ícone parece defeituoso, mal feito.
105

A PAPISA

Um dos olhos sugere calma, mansidão,

delicadeza e bondade; no outro, a íris está envolta em um halo escuro e a


sobrancelha

está erguida e arqueada, sugerindo agres-

sividade, dureza, gravidade. Se não fosse

uma imagem do Cristo, você diria que se

trata de um olhar maligno ou diabólico,

pois parece que ele o está julgando.

Porém, o que essa imagem sugere é a

necessidade de ter olhar de pomba e olhar

de serpente — dois animais-símbolo sem-

pre presentes nos textos sagrados. É como

se o Cristo nos dissesse: “Filho, seu olhar não pode ser apenas manso e
inocente. ” É preciso cultivar essa dupla natureza para as-

cender ao domínio da tiara, e quem tem

apenas o olhar de pomba não chegará lá.

Quando eu era criança, ganhei uma

espingarda de chumbinho e passei a trei-

nar atirando em latas. Como latas não se


movem, eventualmente a coisa ficou fácil

demais, de modo que resolvi trocá-las por

pombos. Nisso, descobri um fato inte-

ressante: quando você dá um tiro em um

pombo, ele desvia, mas depois volta para o

mesmo lugar, e assim indefinidamente, até

que você o acerte. Basta oferecer um grão-

zinho de milho para ele regressar.

Se você atira em um lobo, porém, ele o

ataca. Se a matilha estiver por perto, ela o cerca e o come vivo. Lobos são
astutos; não são inocentes como as pombas.

A maioria dos cristãos de hoje acha

que todo o mundo tem de agir sempre

como pomba — esse animalzinho tão dó-

cil e tão tonto. De fato, é preciso cultivar a inocência para contemplar a


realidade.
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107

A PAPISA

O mundo não é mau, sombrio e cruel o tempo todo. Nem todas as pessoas
são perversas, canalhas e medíocres. E mesmo um canalha tem em si coisas
boas que somente um olhar de pomba é capaz de captar. É preciso nutrir esse
olhar inocente, passivo e doce, sobretudo na relação com as pessoas que se
ama. O

olhar do lado direito do Pantocrator, o olhar da contemplação amorosa, o


olhar da mansidão é realmente fundamental.

Mas existe um outro olhar também fundamental: ele é agudo, penetrante,


esperto, astuto, dotado de certo ardil. É o olhar da serpente.

Sem a articulação desses dois olhares, não é possível enxergar com


profundidade.

Farei uma analogia com uma disfunção oftálmica. Quando uma pessoa tem
um glaucoma ou tumor em um dos olhos, pode perder a visão nesse olho. O
que acontece depois disso é que ela passa a ter uma visão monocular: seu
campo de visão é reduzido e sua noção de profundidade fica comprometida.

Isso se dá, porque cada olho vê desde um ponto de vista um pouco diferente
e, em nosso cérebro, aquilo que é captado por cada olho passa por uma
“fusão”, que garante a sensação tri-dimensional, a percepção de
profundidade e distância. É a vi-são binocular que garante uma apreensão
visual mais ampla e completa, com sentido de profundidade e distância.

Há também casos em que a pessoa, embora enxergue com os dois olhos, tem
o olhar desalinhado, em níveis diferentes: ou porque um olho tem um grau
de miopia muito maior do que o outro, ou porque é estrábica. É o que
popularmente se conhece como “olho preguiçoso”, mas que na medicina
chamamos de ambliopia. Nesses casos, os dois olhos não conseguem
trabalhar muito bem juntos, e surgem dificuldades para distinguir distâncias,
ler, escrever, praticar esportes e fazer algumas tarefas básicas do dia-a-dia.

De modo análogo, se não houver, em nós, um olhar de pomba e um olhar de


serpente, e se não houver alinhamento entre esses dois olhares, teremos um
campo de visão mais limitado e perderemos a capacidade de “enxergar” a
realidade com profundidade.

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O número da lâmina da Papisa é o 2, que representa o que é binário. O
binário pode tanto ser legítimo quanto ilegítimo.

O dois é símbolo da divisão. Imagine que você tem uma unidade e a divide
em duas partes, em duas metades separadas, sem ligação uma com a outra.
Nessa divisão, o que temos é um prejuízo, uma espécie de “redução” da
unidade.

Pense, por exemplo, na crença maniqueísta de que existem dois princípios,


um bom e outro mau, espírito e matéria, que se opõem e lutam entre si. Há
muita gente que pensa desse jeito hoje em dia, mas essa mentalidade já
existia antes do séc. IV d.C., e foi combatida por Santo Agostinho, ele
mesmo um ex-adepto do maniqueísmo. Para o maniqueu, a matéria é
perversa e só serve para puxar o espírito para baixo, para prendê-lo, para
impedí-lo de subir. Ou seja, o maniqueísmo divide a pessoa nesses dois
princípios, reduzindo sua unidade a um dualismo, a uma briga entre matéria
e espírito.

Mas o dois nem sempre é um problema: ele é símbolo da divisão, o ofício do


diabo, mas também é símbolo do biná-

rio legítimo. No binário legítimo, duas substâncias separadas unem-se em


uma só essência. É como um matrimônio, em que duas pessoas, embora
conservando sua individualidade, unem-

-se, por livre e espontânea vontade, e se tornam una caro, “uma só carne”.
Elas se atam por força do amor, e é ele quem dá legitimidade àquela união
de dois. Se só existisse o um, não poderia haver amor, pois amar é sair de si,
é servir, é entregar-se.

E, para haver amor, é preciso que haja, pelo menos, um amante e um amado.
Não há amor sem o dois.

Toda a realidade se nos apresenta em tensões, em polari-dades. As quatro


causas aristotélicas, que mencionamos no capítulo anterior, também são a
articulação de duas tensões.

Temos, por isso, que desenvolver esse olhar binocular para perceber a tensão
da realidade.
Uma pessoa pode chorar tanto por ceder à tensão do olhar de pomba, quanto
por ceder ao olhar de serpente. Se o sujeito olha para o mundo somente
como pomba, termina caindo em um choro inconsolável quando é passado
para trás. Em sua

109

A PAPISA

ingenuidade, ele não imaginava que alguém seria capaz de fazer-lhe algo
mau. “Nunca pensei que meu melhor amigo fosse capaz de fazer isso
comigo…” ou “Meu mundo caiu quando descobri a traição da minha
mulher. ” são frases que se costuma escutar com certa freqüência.

Por outro lado, quando se olha o mundo apenas como serpente, o resultado é
um choro de raiva ou de inveja — o choro da pessoa que percebe que há no
mundo gente muito melhor do que ela.

O pranto está no olhar, afinal, é pelos olhos que vertemos lágrimas. A maior
parte do sofrimento das pessoas que chegam chorando a um consultório, em
regra, tem causa nesta cisão do olhar. Elas não articularam as tensões dentro
de si, não foram como o Pantocrator. Se uma pessoa chega ao seu
consultório aos prantos, saiba que, provavelmente, ela está com um
problema de articulação dos olhos. Um de seus olhos (ou o olho de serpente
ou o olho de pomba) está “preguiçoso”, ou mesmo cego.

Mas será que isso quer dizer que esse olho é, sempre e em tudo, preguiçoso
ou cego? Não! Essa “disfunção” não se dá necessariamente em todos os
campos da vida da pessoa.

Lembre-se: as lâminas do Tarô são símbolos de realidades complexas, como


o início, os desdobramentos, as dificuldades.

Uma pessoa pode chegar ao seu consultório aos prantos porque está com um
problema em um domínio específico da vida: ou no trabalho, ou no
casamento… Sabendo, portanto, que o pranto teve origem em um domínio
específico, procure ali e você encontrará: ela ainda não soube articular os
dois olhares, ela não poliu seus olhos naquele campo específico da sua vida.
Ou olhou apenas como pomba, ou apenas como serpente. A prática do
consultório constitui-se em fazer desenvolver no paciente o olhar que lhe
falta e buscar alinhar os dois olhos, os dois centros de contemplação, naquele
campo específico de sua vida.

Se você, psicólogo, notou que seu paciente está chorando por inveja, por
raiva, por ódio, então ele tem um olhar de serpente melhor desenvolvido e
faltou-lhe o olhar de pomba, o olhar de inocência, de passividade, de
bondade, de docilidade. Isso é o

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que precisará ser desenvolvido (e há técnicas para isso). Se, po-rém, ele
chora porque está sendo feito de bobo, terá de desenvolver o olhar de
serpente, de proteção, de esperteza, de agudeza.

A serpente é um bicho que rasteja, que está com a boca colada ao chão. Não
é incomum que os contos de nossa tradição que começam com uma serpente
mostrem, no último capítulo, um dragão. Volte ao conto simbólico que você
mais conhece dentro da tradição mítica semítica: o livro de Gênesis, do
Antigo Testamento. O primeiro animal que aparece é uma cobra que fala, é a
serpente que dá a Eva a “brilhante” idéia de comer do fruto proibido. “Sereis
como deuses”, diz à mulher.

Agora, vá ao último livro da Bíblia, o Apocalipse do Novo Testamento.


Varrendo as estrelas do céu com seu rabo, desa-fiando aquela que era a
guardiã das estrelas, está um dragão, subjugado por essa mesma guardiã. O
dragão é uma evolução da serpente; é uma cobra com asas que cospe fogo
pela boca.

Simbolicamente, ambos são o mesmo bicho. O dragão é uma serpente


madura em sua maldade e astúcia, uma serpente que comeu muita terra e
cresceu.

“Comer terra” é estar bem “colado” a este mundo, vendo como as coisas
nele funcionam e tentando mexer com elas. Desenvolver esse olhar de
serpente é uma necessidade do ser humano.

Nós nos limpamos da terra que ingerimos, mas do olhar da serpente não
podemos nos limpar — pelo contrário, devemos antes poli-lo, articulando
perfeitamente a pomba e a serpente dentro de nós. Quando não faz isso, você
chora — ou porque está com a barriga cheia de terra (ou seja, você é uma
serpente dura e pesada, que não consegue se mover), ou porque é uma
pombinha tonta que toma um tiro de chumbinho e volta ao mesmo lugar para
tomar mais tiros.

O choro é a imagem perfeita do elemento que lhe servirá para polir. Ele é um
tipo de água, e só colocamos água para fora em dois momentos: quando nos
esforçamos, por meio do suor, ou quando choramos, por meio das lágrimas.
Em ambos, a água é símbolo de limpeza, de purificação.

Quando você se esforça e serve, você fica suado e, assim, expurga seu
egoísmo. O suor é símbolo de esforço e entrega.

111

A PAPISA

A atividade física nos deve ser um símbolo de esforço: “Estou levantando


algo mais pesado do que aquilo que pensei que pudesse levantar”. Nós
suamos quando ultrapassamos o limite do que achávamos que poderíamos
fazer.

Quando Adão caiu e foi expulso do Éden, foi-lhe dito: “Do suor do teu rosto
comerás o teu pão”. Pense um pouco nesse símbolo. Quando você sua, não
sua apenas no rosto, certo?

Esse suor do rosto não simboliza exatamente a mesma coisa que o suor do
corpo: aquele é composto também das lágrimas que vertemos pelos olhos, e
que representam um outro tipo de purificação. Quando “suamos a camisa”
(nos esforçamos, servimos, trabalhamos), nós nos purificamos. Quando
choramos (sofremos, padecemos, nos condoemos), também.

Não pense que o livro de Gênesis falava apenas de um “suar a testa”, de um


suor como mero símbolo do esforço — falava também disso, mas não só. O
suor do rosto que nos permite comer o pão é o pranto.

No Éden, o homem tinha tudo à mão, em perfeita ordem.


Não havia razão para choro, não era preciso trabalhar para conseguir pão,
não era necessário sequer ter olhar de serpente ou de pombo: bastava um
olhar de gente. Deus passava como uma brisa e Adão O ouvia... Mas ele teve
de sair de lá.

Agora que estamos fora do Éden, precisamos trabalhar para ganhar o pão e
para articular os dois olhos — de serpente e de pomba —, pois o próprio
mundo tem natureza dupla, de pomba e de serpente, angélica e demoníaca.
Se não cultivarmos o duplo olhar dentro de nós, ficaremos completamente
desorientados aqui.

Estou usando uma linguagem simbólica — e, ao longo deste livro, voltarei


repetidas vezes a lembrar o meu leitor disso.

Ainda que você não acredite em anjos e demônios, olhe para o mundo e verá
duas disposições: uma hierárquica, bela, dis-ciplinada, harmônica, e outra
degenerada, carente, dissonan-te. Como, então, você pretende se orientar
neste mundo sem cultivar o duplo olhar e sem polir seus olhos? Como
pretende se orientar neste mundo sem alinhar e polir as janelas da sua alma,
seus dois centros de contemplação?

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Ainda sobre a gramática simbólica

Antes de continuar falando sobre a Papisa, gostaria de fazer algumas


observações. Os versículos das Sagradas Escrituras, o Vedanta dos hindus e
o Hadiz dos muçulmanos (este em menor grau) são como que lâminas do
Tarô.

Não fique escandalizado.

Repito: uma passagem do Vedanta é como uma lâmina do Tarô, e um


versículo da Bíblia também o é. Pense em um versículo como, por exemplo,
este: “O espírito sopra onde quer” ( Jo 3, 8). Você pode lê-lo e simplesmente
pensar: “Ah, é mesmo, o espírito de fato sopra onde quer. ”, mas isso seria
extremamente raso. Na verdade, muitos hermeneutas fazem algo parecido,
debruçando-se sobre um versículo e vomi-tando uma infinidade de
irrelevâncias: “Onde isso aconteceu?
O Cristo estava falando da mesma água que havia lá? Havia mesmo um
poço em Sicar? Qual era a altura do Monte Hore-be? ”, isso quando não
dizem: “Serpentes não falam, portanto é óbvio que serpente alguma
conversou com Eva. ” Muitos religiosos de fato pensam assim — chega a ser
uma profanação do texto sagrado.

Não quero com isso dizer que a Bíblia é simbólica como o Tarô. Não! Ela é
muito superior, pois as coisas que ali estão ditas, além de poderem ser lidas
simbolicamente, também aconteceram realmente. Nunca houve uma Papisa
com uma tríplice coroa, ao passo que Moisés viu realmente a sarça ardente e
realmente cruzou o deserto do Sinai com o povo hebreu. A Bíblia é a
realidade simbólica vertida em palavra. A Escritura tem essa natureza: é ao
mesmo tempo o que poderia acontecer e o que de fato aconteceu (e, nesse
sentido, é muito diferente do Tarô).

Se comparado às Escrituras, o Tarô é coisinha simples. O

astro é mais simples que o coelho, que é mais simples que o Tarô, que é mais
simples que o texto escriturístico. O problema é quando alguém incapaz de
entender os símbolos mais simples se acha no direito de interpretar o texto
escriturístico à luz da Ciência Contemporânea, e ainda pregá-lo do púlpito.

113

A PAPISA

Pastores e padres sem conhecimento simbólico algum sobem em seus


palanques para pregar — e que tragédia são seus sermões! Profanam a
atividade simbólica e a atividade espiritual com seus olhares cientificistas.

A maioria dos religiosos de hoje não pode ouvir a palavra

“gnose” que já fica escandalizada. Abdicaram da tiara, mas insistem em


ocupar os púlpitos.

Ora, um dos círculos da tiara representa justamente a gnose, de modo que


não se pode ter medo dessa palavra. Ela só é um problema quando isolada
dos demais símbolos, porque ocupa a posição do meio, entre a mística e a
prática. A gnose pode, sim, constituir uma heresia e uma lesão para o
espírito quando isolada das demais coroas da tiara; sem a coroa do meio,
contudo, não há coroação da majestade.

Pedro e Caifás

Queria ainda falar sobre um outro símbolo que a dupla natureza do olhar tem
para nós, símbolo este preservado na tradição simbólica da Escritura
Ocidental.

Refiro-me a dois olhares rigorosamente distintos dirigidos a uma mesma


realidade, a dois olhares de duas personagens que aparecem ao mesmo
tempo, em uma mesma cena. São os olhares de Pedro e de Caifás no
momento da condenação de Jesus.

Cristo estava morrendo. Fora amarrado, maniatado e flage-lado. A Verdade


aparecia ali, rasgada, trucidada, dando indí-

cios de que morreria — como de fato veio a morrer, mas para ressuscitar
depois de três dias, pois a Verdade é indestrutível e sempre vem à tona,
mesmo quando nos parece absolutamente morta.

Quando, então, a Verdade estava sendo trucidada, rasgada, destruída, quando


estava pronta para morrer, dois olhares di-rigiram-se a ela: um olhar de
pomba e um olhar de serpente.

O olhar de pomba era o de Pedro, o discípulo que herdou o poder temporal


da atividade do Cristo.

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Pouquíssimos dias antes de sua paixão, Cristo disse a Pedro que iria morrer,
ao que ele respondeu algo como: “Não vai, não.

Não deixarei ninguém matá-lo. Estarei contigo até o fim. ” Pedro foi esse
sujeito. Ali, com um olhar de pomba, ele não estimou que a realidade era
também cruel; afinal, pouco antes de a Verdade ser trucidada, rasgada,
cravejada, escorraçada, chicotea-da e pregada, ela entrou lépida e fagueira
em uma Jerusalém triunfante. Montada em um jumentinho, ela foi recebida
com louvores e aclamações. Folhas de palmeiras eram agitadas no ar.
Mantos foram colocados no chão para que ela pisasse por cima deles.

Pedro tinha essa cena muito bem guardada na memória, e alegrava-lhe a


idéia maravilhosa de ser discípulo daquele homem tão querido e adorado.
Com seu olhar inocente de pomba, ele julgava que estar junto do Cristo seria
um contentamento constante, que significaria apenas partilhar de momentos
in-críveis como aquele dia em que, no alto de um monte, apareceram-lhes
Moisés e Elias, e Pedro, eufórico, disse a Jesus:

“Senhor, que bom é nós estarmos aqui! Se queres, farei aqui três tendas: uma
para Ti, uma para Moisés e outra para Elias”

(Mt 17,4). Naquele mesmo dia, pouco depois da Transfigura-

ção, Jesus revelou aos apóstolos que, assim como Elias tinha vindo e sofrido
perseguições e ataques, também o Filho do Homem haveria de padecer nas
mãos dos homens. Mas Pedro

— tal qual os demais discípulos que ali estavam — pensou que Cristo
estivesse falando não de si mesmo, mas de João Batista.

Em outro momento, quando Jesus disse que iria a Jerusalém e lá padeceria


muitas coisas nas mãos dos príncipes dos sacerdotes, Pedro ficou indignado
e não quis acreditar que fariam isso com seu mestre: “Não Te sucederá isso!”
(Mt 16,22) Seu olhar inocente não lhe deixava enxergar o outro lado da
moeda: Cristo haveria de padecer; e estar junto de Cristo era também
partilhar de seus sofrimentos, perseguições e ataques. Pedro estava cego,
inclusive, para a realidade nada oculta de que havia muitos poderosos que
não gostavam nada de Jesus.

115

A PAPISA

Olhar completamente diferente era o do Sumo Sacerdote Caifás que, do alto


de sua posição, via todas as movimenta-
ções que aconteciam em torno do Cristo e, preocupado com a ameaça que
Ele representava, decidiu acabar com a brincadeira. Pensou, porém, em
esperar o momento mais oportuno.

Quando Cristo chegasse enfim em suas mãos, ele o haveria de condenar e


matar. Com seu olhar de serpente, Caifás também olhava somente para um
dos lados da Verdade, pois estava acostumado a uma vida pregada ao chão,
enchendo o bucho de terra. Haveria de se tornar um dragão que subju-garia
todos os que estavam ali. A ele também poderiam se aplicar as palavras de
Jesus aos fariseus: “Serpentes! Raça de víboras!” (Mt 23, 33)

Quando a Verdade se manifesta, ela não traz apenas vida, mas também
morte: ela mata o egoísmo, mata o desejo de poder desenfreado, mata a
sensualidade, mata o fechamento em si.

Puxa-nos para fora de nós mesmos. Quando a Verdade aparece, portanto, ela
atinge ambos, tanto a pomba quanto a serpente.

No momento em que Jesus foi levado à casa de Caifás, onde os príncipes dos
sacerdotes e o Sinédrio procuraram arranjar uma desculpa qualquer para
incriminá-lo e condená-lo à morte, estavam ali Pedro e Caifás. Nessa cena,
presenciamos os dois tipos de choro: o da pomba e o da serpente.

Quando Caifás, Sumo Sacerdote, perguntou ao Cristo se Ele era o filho do


Deus vivo, Jesus disse: “Tu o disseste.

Digo-vos mais, que haveis de ver o Filho do Homem sentado à direita do


poder de Deus, e vir sobre as nuvens do céu.”

(Mt 26,64; Mc 14,62; Lc 22,69). Isso despertou o ódio e a inveja de Caifás,


que, em um acesso de raiva, rasgou as próprias vestes e se pôs a gritar: “Ele
blasfemou! Ele blasfemou!” (Mt 26,65, Mc 14,63-64). Nesse gesto de Caifás
está seu “pranto”: um choro seco e carregado de ódio.

Pedro, por sua vez, estava sentado lá fora, no átrio, quando foi abordado por
uma criada, que lhe perguntou se ele não era um dos seguidores de Jesus.
Acovardado, ele disse que não, mas logo se arrependeu e chorou
amargamente.
116

Depois que Caifás disse que o Cristo blasfemou, imediatamente os que ali
estavam passaram a humilhar Jesus e a tratá-lo com todo tipo de violência.
Daí em diante, Jesus sofreu uma série de humilhações e agressões.
“Cuspiram-Lhe no rosto e feriram-n’O a punhadas.” (Mt 26, 67)

Ali a Verdade foi rasgada, trucidada, estava prestes a ser crucificada. Diante
disso, o que Pedro fez? Ele se espantou, se surpreendeu, recuou e chorou
amargamente. Chorou de arrependimento e de culpa, porque não teve
coragem de revelar que era amigo de Jesus; mas chorou também porque não
podia acreditar que algo tão terrível pudesse acontecer. Isso não estava em
seu horizonte de consciência. A seu turno, o que é que Caifás fez? Rasgou
suas vestes e “chorou” um choro falso, seco como a terra árida.

Repare que o choro de serpente das pessoas que entram no seu consultório
— ou daquele seu amigo que vai desabafar com você — é sempre um choro
com o qual é difícil de lidar.

O choro de raiva, de ódio, de inveja, é o choro da serpente que, tendo a


cabeça tão colada ao chão, turva os olhos com aquela terra, de modo que as
lágrimas que lhe saem dos olhos logo se ressecam e não são o bastante para
poli-los.

O “choro” seco de Caifás não serve para grande coisa; o choro de Pedro,
porém, tem uma propriedade purificadora.

Sabemos disso porque, depois de chorar copiosamente, o apóstolo voltou


arrependido. Ele negou a Cristo por três vezes, mas se arrependeu — e então
aconteceram muitas outras coisas.

Na seqüência, a Verdade reapareceu viva. O texto sagrado diz que ela


ressuscitou; reapareceu e andou por aqui. Quando surgiu a notícia de que a
Verdade voltara, dois pássaros saí-

ram disparados à sua procura: a águia e a pomba. A águia é o Apóstolo João


(ele é assim representado na mística); a pomba é o apóstolo Pedro, mas este
mas não a encontrou de imediato.
Como uma pomba, sua corrida foi inútil, porque ele não era uma ave ágil,
mas lenta.

Toda a Tradição representa a visão de João sobre a Verdade como a visão da


águia, porque ela é a ave que consegue ver a

117

A PAPISA

Verdade de frente. O sol é símbolo da Verdade, e a águia é o único animal


que consegue voar em direção a ele olhando-o diretamente; a todas as outras
aves, o Sol é cegante.

O texto joanino fala sobre a natureza resplandecente dessa Verdade, que


requer também um olhar específico, do contrário você poderá ficar cego.

Duas aves voaram para procurar a Verdade, mas uma delas chegou antes:
João. “Partiu Pedro com o outro discípulo e foram ao sepulcro. Corriam
ambos juntos, mas o outro discípulo corria mais do que Pedro e chegou
primeiro ao sepulcro” ( Jo 20, 3). João correu rápido e, obviamente, chegou
antes de Pedro, porque era uma águia, enquanto Pedro era apenas uma
pombinha que não podia se locomover em alta velocidade.

Há um outro momento no qual a Verdade reaparece, desta vez, à beira da


praia. Os apóstolos estavam dentro de um barco, pescando, e quando a
Verdade reapareceu, a pomba inocente, que é Pedro, jogou-se na água para
nadar até ela.

O relato é muito interessante. Pedro estava em um barco.

Bastava-lhe remar para chegar aonde queria. Mas ele se atirou; era ainda
uma pomba inocente. Chegando à margem, ele encontrou a Verdade e ali
aconteceu o diálogo central de toda a narrativa. Ali é que Pedro, pela
primeira vez, ganhou o olhar da serpente, perfeitamente ajustado ao da
pomba. Ali encontrou a Verdade já não mais como um caolho que vê o
mundo sem profundidade.

A Verdade perguntou três vezes à pomba: “Tu me amas?”


A primeira pergunta foi feita, mas a resposta que saiu, a princípio, ainda não
era adequada, pelo que havia necessidade de lan-

çar a questão uma segunda vez. Aliás, não é que a resposta não fosse
adequada — a pomba, na verdade, ainda estava ajustando seu olhar,
vasculhando a maldade em seu espírito e a realidade do mundo, buscando a
articulação perfeita daquele olhar para encontrar a Verdade e não se deixar
cegar por ela nem a trair.

É tolice pensar que a Verdade dirigiu a pergunta à pomba três vezes porque a
pomba lhe havia negado três vezes...

Mas essa é a explicação que em geral se dá para a passagem:

118

“Pedro nega o Cristo três vezes antes que o galo cante, logo o Cristo
pergunta três vezes para zerar a conta. ”

Essa é uma interpretação amputada, que carece de entendimento dos


símbolos e que não compreende a grandiosidade do que estava acontecendo
ali. Deus não calcula! Você acha mesmo que Ele ficaria com continhas a essa
altura do campe-onato? Ele sabia que Pedro estava machucado, Ele sabia
que Pedro chegara a pensar que tudo estava acabado.

Estavam os dois discípulos andando no caminho de Emaús, desiludidos,


dizendo ao “forasteiro”: “Não sabes o que aconteceu por aqui nestes dias? A
razão da nossa esperança e do nosso amor foi-se embora, morreu. Não
acreditamos mais em nada. ” Você acha mesmo que Deus não sabia o que
tinha acontecido? Não tenha uma visão amputada do que aconteceu ali,
naquela cena à margem do lago! Deus não calcula. Basta um único
movimento de arrependimento para que Ele nos cubra com seu manto de
amor.

Na parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32), o filho que retorna à casa do pai
pensava em voltar na condição de mero servo, mas é recebido
calorosamente: recebe uma túnica e um anel no dedo, põem-lhe sandálias
nos pés e fazem para ele um banquete com direito a um vitelo gordo. O amor
de Deus ao longo de toda a Escritura é sempre desproporcional, então não
me venha com essa de “foi para zerar a conta”.

Com Pedro também a recepção foi calorosa como aquela da parábola do


filho pródigo. Por que, então, Cristo fez a pergunta três vezes ao reencontrar
o discípulo?

Nesse momento, Cristo estava fazendo a alquimia perfeita, como quem diz:
“Vamos fazer um último ajuste, vamos terminar de polir seus olhos para que
você possa ascender. ” O símbolo é perfeito; tanto o é que, depois disso,
Pedro recebeu uma tiara e foi promovido a papa.

Como as coroas da tiara da Papisa, também três são as perguntas que Cristo
dirigiu a Pedro. Na primeira pergunta, o original grego traz a pergunta
Agapas me? (“Tu me amas?”). Cristo usou o verbo agapao. O amor agape é
um amor superior, transcendente e divino. Portanto, na primeira pergunta, o
que Cristo questionava

119

A PAPISA

era se Pedro O amava com esse amor agape, divino, como o amor de Deus
por nós. Mas Pedro respondeu meio sem jeito...

Então o Cristo perguntou mais uma vez: “Pedro, agapas me?” , como se
perguntasse: “Pedro, tens certeza de que és capaz de me amar com um amor
divino? Ora essa, ainda és um inocente…” E Pedro uma vez mais não
respondeu satisfatoriamente.

Ainda restava dúvida.

Por fim, o Cristo lhe perguntou: “Pedro, phileis me?” — e essa é uma das
perguntas mais bonitas de todo o simbolismo dos versículos. Lembre-se de
que um versículo é a condensa-

ção simbólica de uma realidade. Cristo empregou o verbo phi-leo, que


sugere um amor humano: “Tu, então, me amas com esse amor humano, que
é aquilo que me podes dar? ” Ali, Cristo estava perguntando a Pedro se ele
tinha o olhar polido, pois somente assim poderia receber a tiara.

Naquele momento, Pedro poderia ter se tornado uma serpente como Caifás,
poderia ter respondido “Não. Tu me aban-donaste. Agora, não deixarei que
ninguém mais faça isso comigo!

Abominarei a pomba que havia em mim e me converterei em serpente! ”


Sabemos que, quando nos sentimos traídos ou abandonados, as dores podem
nos transformar de pombas em serpentes. Podemos ir da inocência à
degeneração total, se não articularmos as coisas no meio do caminho.

Isso poderia ter acontecido com Pedro. Naquele momento, poderia ter
ocorrido a perda total de sua inocência; ele poderia ter saído do pólo da
inocência e passado ao pólo de desesperança, poderia ter se transformado em
um outro Caifás.

Mas Pedro respondeu: “Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que Te amo.”


Naquele momento, houve um alinhamento: os dois olhares polidos, de
pomba e de serpente, foram perfeitamente ajustados na alma daquele que
virou o espelho do Cristo na terra.

A Verdade, em seguida, lhe disse: “Então vai e apascenta minhas ovelhas”.


O Pastor transfere sua autoridade para aquele que, a partir de então, passa a
deter o olhar capaz de enxergar e distinguir as ovelhas dos lobos. Se o Pastor
deixasse um sujeito com olhar de pomba cuidar de suas ovelhas, correria um
sério

120

risco, pois a inocência não permitiria ao encarregado perceber a maldade dos


lobos.

Ora, o mundo é composto de ovelhas e de lobos. Se você, portanto, não tem


ajustados os dois olhares (de pomba e de serpente), das duas uma: ou comerá
todas as ovelhas de que deveria cuidar, ou deixará as ovelhas serem comidas
pelo lobo que deveria enxotar. Essa é a operação alquímica que temos de
fazer dentro de nós; é uma fusão perfeita dos dois olhares.
Se não tenho o olhar duplo, então não vejo a realidade como ela é; se não
posso vê-la como ela é, não posso refleti-la e, se não a reflito, tampouco a
imagem do ser está em mim.

Ajustar é a chave

Ajustar os dois olhos e poli-los é a primeiríssima etapa, mas não se anime


tanto ao conseguir fazê-lo, pois esse é apenas o passo inicial sem o qual não
se pode começar a refletir as realidades superiores.

Uma vez de olhos alinhados e polidos, será possível dar iní-

cio ao processo de percepção dessas realidades superiores, representadas


pelos círculos da tiara: as realidades mística, gnóstica e mágica. Antes de
ajustar a visão, não há como enxergar a realidade com profundidade e
clareza; antes de polir os olhos, não há como refletir essa realidade, fazendo-
se espelho dela.

Quando, porém, você adquire um olhar polido e começa a ver o mundo,


surge uma primeira chance de alcançar esse patamar.

A realidade não é somente apreendida por seus olhos, mas também refletida
por eles — e uma reflexão especular só pode ocorrer em superfícies lisas e
polidas.Toda a atividade reflexiva só começa a acontecer a partir daí. Até
então, você está em um domínio inferior, da confusão, da matéria, onde
ainda não há reflexão.

Perceba que o olhar da Papisa fica entre o livro e a tiara. Ela quer ver o que
faz, como quem pega aquelas realidades da tiara e as lança para o livro. O
olhar dela está quase no livro, mas não se fixou nele ainda. Está no meio do
caminho, em movimento.

121

A PAPISA

Experiência mística,

a primeira coroa da tríplice tiara


O círculo superior da tiara da Papisa representa a experiência mística, mas
não se pode ter experiência mística lendo um livro e tentando olhar para
dentro de si. Para começar, livros não são a realidade, são apenas registros
de palavras que podem refletir a realidade — isso se você tiver a experiência
mística.

Se você não tem o duplo olhar, se não é uma superfície lisa, se não articulou
em si a pomba e a serpente, você olha para o mundo, mas não o enxerga. O
que você vê é uma outra coisa.

O mundo não é feito nem só de ovelhas nem só de lobos; mas de ambos.

Se você olha para o mundo sem esse duplo olhar, aquilo que você acha que
vê é apenas fruto da sua mente. Sem uma superfície polida, o mundo não
reflete em você; e, assim sendo, você não capta o ser das coisas.

Imagine uma xícara. Alguém (causa eficiente) a fez, e a fez de porcelana


(causa material), com forma de xícara (causa formal) e com a finalidade de
acolher líquidos para que os bebamos (causa final). Ela não existia, até que,
em um dado momento, foi criada.

Uma vez que ganhou o ser, ela é, e nunca deixará de ser.

Você pode achar tudo isso muito lindo e interessante, mas só será capaz de
captar o ser da xícara se tiver os olhos alinhados e polidos.

Sem o olhar ajustado e polido, ainda que você contemple uma montanha por
semanas, não terá a experiência mística dela —

o ser da montanha não ficará impresso em você. A experiência mística é um


dos sentidos; ela é o impacto do ser em você.

Estamos acostumados a ouvir “sentidos” e já pensar em visão, olfato,


paladar, tato e audição, que são nossos sentidos externos; mas agora vamos
falar de “sentidos” em uma outra acepção. As coisas são conhecidas por
quatro vias, por quatro sentidos. O primeiro deles é o místico.

A experiência mística é o primeiro sentido do conhecimento, e é a mais alta


das coroas da tiara; é o reflexo do Ser.
122

Veja bem: você não é o Ser, você é reflexo do ser daquilo que está
apreendendo. Não existe uma fusão do Ser em você, ao contrário do que
prega o panteísmo. A cosmologia panteísta sintetiza-se na afirmação de que
o Ser está fundido em tudo; de que existiria apenas um Ser, e de que tudo
teria esse Ser.

O panteísmo é uma visão cosmológica interessante, mas que fica estagnada


na primeira etapa da percepção das coisas; não vai além disso. É
insuficiente, pois não explica tudo — e por isso dizem que ela está errada,
mas não precisamos invalidá-la por inteiro.

“Tudo tem Deus”, afirmam os panteístas, e nisso estão certos.

Tudo tem Deus, mas tudo não é Deus, como eles dizem que é. O problema
do panteísmo é que não há uma passagem do conhecimento para a prática e
depois para a Filosofia (que é o livro da Papisa).

Se você tiver a superfície polida, se tiver os dois olhos polidos, conseguirá


refletir o Ser dentro de si. Isso é experiência mística — mas ela só acontece
no silêncio. Este é outro motivo pelo qual praticamente ninguém tem
experiência mística hoje em dia: ninguém fica em silêncio.

Você não abarcará as três etapas da coroa assistindo a uma aula ou lendo um
livro. Hoje em dia, toda experiência que o pessoal pretende mística ou
superior consiste na leitura de livros. Mas enquanto você não tiver um olhar
polido, a leitura de livros não lhe dará tanto fruto.

No caso do exercício da Medicina, por exemplo, é necessário ler alguns


livros, como esses manuais de Fisiologia e Patologia, mas, muitas vezes, os
estudantes os lêem apenas para passar em uma matéria. Um livro pode lhe
passar um conhecimento imediato de como prescrever um remédio, mas
somente um professor lhe ensinará a prescrever o remédio certo na hora
certa.

Outras coisas, você só aprenderá no exercício da Medicina —


durante a residência, por exemplo —, no contato direto com os pacientes, ao
se deparar com a complexidade da realidade.

Não se aprende a consertar um motor de carro por meio da leitura, aprende-


se consertando-o. Medicina, nutrição e enfer-magem são coisas aprendidas
com a prática — e a prática já é

123

A PAPISA

a mágica da tríade mística-gnose-magia. Até mesmo algo simples como dar


uma injeção requer aprendizado prático, e nem qualquer um sabe fazê-lo.
Pois bem: se algo tão fácil quanto dar uma injeção não se aprende pela
leitura, o que dizer de coisas mais complexas e importantes?

“Ora, mas desde quando injeções não são importantes? ”, alguém poderia
questionar. Dou graças a Deus por existirem as inje-

ções, mas o fato é que nossa civilização viveu sem elas durante dois mil
anos. A seringa foi inventada apenas no séc. XIX. Civilizações subsistiram,
sobreviveram e produziram maravilhas em um mundo sem injeções.
Shakespeare escreveu tudo que escreveu sem nunca ter tomado uma injeção
na vida. Todas as catedrais foram construídas por pessoas que não tomaram
injeções. As pirâmides do Egito foram erigidas por pessoas que não tinham
notícia de que era possível tomar uma injeção.

Nesse sentido, a injeção não é essencial — e mesmo ela consegue ser meio
mágica.

Muita gente acha que pode aprender qualquer coisa lendo um livro. O
maluco que se converteu ontem ao catolicismo já sai bradando: “Vou ler São
Tomás de Aquino, porque afastar-se dele é perigoso. ”

Bem, ele não está de todo errado, pois é mesmo meio perigoso afastar-se de
São Tomás; mas, na melhor das hipóteses, esse sujeito se tornará como o
meu filho José, de dois aninhos: uma criança, que ninguém respeita ou leva a
sério, porque é fraco, é o típico sujeito da religião que anda com o peito para
dentro e o crucifixo para fora. Religião de verdade é o oposto: peito para
fora e crucifixo para dentro.

Pense no seguinte: quantas pessoas há que leram a Bíblia e não refletiram o


que leram, porque não eram superfícies polidas?

A Teologia da Libertação é toda bíblica; contudo, não reflete nada. É


possível até mesmo basear todo um regime tirânico na Bíblia. Por isso,
repito que a primeira etapa é a mística, a reflexão, o reflexo do Ser em você;
e essa etapa não deve ser pulada.

Quando eu peço a meu filho José, de dois anos, para buscar um copo, ele
consegue fazê-lo. Ele sabe mais ou menos como é um copo e sabe também
para que serve um. O José já viu e

124

tocou vários copos, já nos viu bebendo líquidos em copos, e já bebeu ele
mesmo de alguns copos diferentes, portanto tem um certo conhecimento do
que seja um copo, um conhecimento prático que adquiriu por meio de
sentidos externos, como a visão e o tato. Ele distingue um copo de outros
objetos que não são copos (de uma mesa, um poste, uma cama, um prato ou
um livro). Ele consegue também pensar em um copo sem estar vendo ou
tocando um; e pode até, com sua imaginação, pensar em um copo com asas
ou com pernas — sem jamais ter visto essas aberrações nem em desenho
animado. Ele diferencia o copo de vidro do copo de alumínio; o copo
vermelho do copo azul. E, associando a própria palavra “copo” àquela
imagem guardada em sua cabeça, ele é capaz de buscar um copo quando lhe
pedem.

E mesmo conseguindo fazer todas essas operações que acabo de descrever, o


José ainda não é capaz de me dizer qual a

“essência” do copo. Se eu lhe perguntasse: “José, o que é um copo? ”, ele


travaria. Você já fez essa experiência com alguma criança? Elas ficam
absolutamente perdidas.

Repare se você e a maioria das pessoas que você conhece não são todas
como o meu José, principalmente no modo de lidar com a religião. O pessoal
que lê São Tomás de Aquino como se estivesse consultando um manual de
máquina de lavar é assim. Alguns até conhecem realmente umas teses
tomistas, mas são uns loucos que não têm vida. Outros — a maioria —

apenas fingem saber, quando, na verdade, fazem uma confusão danada e não
conseguem diferenciar uma caneca de um copo.

Atualmente, a religião e a Psicologia estão repletas de pessoas que leram


muitas coisas, mas não fizeram o trabalho místico de deixá-las refletirem em
si.

A experiência mística e o silêncio

A experiência mística precisa ser feita em silêncio. E a quebra do silêncio se


dá pelo barulho — que pode vir de fora ou de dentro (isto é, de sua própria
mente).

125

A PAPISA

A coisa é mais simples do que parece. Em primeiro lugar, não entenda


“silêncio” figurativamente. Pense em silêncio mesmo. Uma pessoa que não
dedica diariamente um pouquinho de tempo ao silêncio e que não se recolhe,
ao menos uma vez ao ano, por 4 ou 5 dias, somente para ficar em silêncio,
ainda nem começou a viver; a vida, para ela, é barulho e confusão.

Para conseguir um pouco de silêncio no seu cotidiano, busque um refúgio.


Pode ser o seu quarto, o seu escritório, uma poltrona na sala de casa, uma
capela, o banco de uma praça deserta, um canto tranqüilo em um parque ou
algum outro lugar em que você não será perturbado. Desligue o celular. A
princípio, cinco minutos de silêncio bastam, mas não vale ficar

“silenciosamente olhando o Instagram” por cinco minutos.

Não há mistério no silêncio: é calar a boca e a cabeça. Calar a boca é fácil,


basta tapá-la com silver tape. Mais difícil é calar os pensamentos
desgovernados, a imaginação, as lembranças...

O silêncio mental é, afinal, uma atividade a ser conquis-tada. Só se adquire


experiência mística ficando quieto, e ficar quieto é adotar a posição da
Papisa, que está sentada. Sente-se, portanto. E só olhe de vez em quando
para o “livro” (e com “livro” me refiro a qualquer coisa que lhe aconteça,
qualquer experiência vivenciada), como que se deixando impactar por algo,
por alguma experiência que você teve na vida ou naquele dia mesmo. E vale
qualquer experiência — qualquer uma mesmo.

Suponha que você tenha tirado um tempinho durante a noite para se recolher
e fazer silêncio e, neste tempinho, venha à sua mente o seguinte fato
ocorrido naquela semana: você deixou a cozinha uma zona, ou a toalha
molhada em cima da cama, e seu cônjuge reclamou disso.

O que geralmente acontece é que, ou você deixa aquele episódio se


acomodar em algum canto desconhecido da sua mente, ou você acaba
rebatendo a crítica e brigando com o seu cônjuge. Não é assim?

Mas eu peço que, nesse momento de silêncio, tente apenas se lembrar do


ocorrido: “Meu marido disse que sou bagun-ceira. ” Antes de julgar se ele
tem ou não razão e sair ensaiando as verdades que você gostaria de jogar na
cara dele ou, pelo

126

contrário, de começar a se condenar por ser a pior pessoa do mundo,


suspenda o raciocínio lógico e os monólogos interiores por um tempinho.
Experimente um silêncio interior e exterior por cinco minutos.

Se você já trabalhou e poliu o seu duplo olhar de pomba e serpente, então já


tem uma superfície — mas será que ela é capaz de refletir o ser das coisas?
Para isso é que serve o silêncio.

O primeiro movimento, então, é a experiência mística, o ápice da tiara, que


só se adquire na quietude.

Quando falo “silêncio”, falo em calar a boca e a mente e resvalar o olhar no


livro (ou seja, pensar em alguma coisa que lhe tenha acontecido), como o faz
a Papisa.

Algumas pessoas, porém, têm a memória péssima e só conseguem levar para


seu momento de silêncio episódios que ocorreram há pouco, acontecimentos
das últimas duas ou três horas. Se estiver indo para seu momento de silêncio
e der uma topada com o dedinho no criado mudo, há quem leve para o
silêncio aquele caso e gaste seu tempo com algo irrelevante.

Se você for uma dessas pessoas, talvez seja o caso de recorrer a um livro
para ajuda; mas um livro real, de verdade, com pontos para meditação.
Como você vai se tornando aquilo que reflete, se quiser ser reflexo de
generosidade, ou de humildade, ou ainda de temperança, busque uma leitura
rápida sobre esses temas.

Imagine que sua vida esteja uma bagunça e você não tenha horário para
nada. Existem livros excelentes sobre a ordem como virtude a ser cultivada.
Procure-os e leve-os consigo em seus momentos de silêncio.

Outras pessoas têm dificuldade para se lembrar das coisas que lêem. Nesses
casos, sugiro que o silêncio seja dividido em dois momentos: um de leitura e
um de reflexão daquilo que foi lido.

Para essas pessoas, cinco minutos não bastam, então que façam seis minutos
e meio. Não estou brincando, é isso mesmo: cerca de um minuto e meio de
leitura e cinco minutos de reflexão.

Veja bem: quando falo em “refletir”, não falo de atividade mental, mas de
deixar aquilo fermentar, crescer. O espelho é símbolo desse aumento. Ao pôr
um espelho em uma das

127

A PAPISA

paredes de uma sala, tem-se a impressão de que ela ficou maior.

Os arquitetos adoram esse truque; quando querem ampliar o ambiente, põem


espelhos por toda parte. Isso é justamente trazer mais presença para o lugar a
partir de reflexos. Com o espelho interior acontece algo similar: ele amplia o
espaço interior e faz com que ali caibam mais coisas.

Todo o mundo que trabalha no agronegócio sabe que não basta ter uma
fazenda, é preciso também um espaço livre para acomodar os frutos da
plantação. Esse lugar no qual guarda-mos os grãos se chama celeiro.

Com a alma, passa-se o mesmo. Você possui um espaço em sua vida onde
está crescendo trigo. Mas é preciso um “celeiro”, um espaço vazio para
armazenar as coisas que você colhe com o passar dos anos. Quando pára e
silencia, você está preparan-do seu celeiro, onde o ser das coisas e a
experiência mística do mundo ficam armazenados.

Há quem pense que experiência mística é algo como ver anjos, ouvir a voz
de Deus, operar milagres físicos; mas esse tipo de coisa só se consegue no
ápice da experiência mística. Se você mal consegue perceber as coisas mais
óbvias, que estão ao alcance dos seus olhos, que dirá ver anjos! Não queira
algo que você não pode ter. Se você ainda é um sujeito sem prática e não
sabe distinguir o que é bom do que é ruim, comece fazendo a experiência
mística que está à sua altura, com base nas coisas mais palpáveis do seu dia:
seu marido reclamando da cozinha suja, as dificuldades do trabalho, o tapa
que você deu injustamente em seu filho... Com mil anos de prática disso,
talvez você consiga ter a experiência mística de ver um anjo — se isso lhe
for dado.

As demais coroas da tríplice tiara:

gnose e magia

Eu disse há pouco que o mundo é composto de ovelhas e lobos, significando


coisas boas e coisas ruins, mas há ainda um outro símbolo famoso para as
coisas boas e ruins: o joio e o trigo.

128

Joio e trigo são plantas parecidas que costumam crescer juntas, mas,
enquanto a semente do trigo é usada na fabricação do pão, a semente do joio
não serve para nada, é imprestável.

O problema é que, enquanto estão jovens e crescendo juntos, não dá para


saber o que é joio e o que é trigo, pois ambos são muito parecidos. Somente
quando amadurecem é que algumas diferenças começam a ser percebidas: a
espiga do trigo adquire uma coloração amarelada como a da palha, ao passo
que o joio se mantém verde, com espiga preta e mais fina que a do trigo.

O grão do joio também é diferente, tem uma coloração violeta.

Portanto, quem tenta arrancar o joio antes da hora, acaba arrancando muito
trigo junto e pode acabar com o celeiro vazio.

A primeira tentação do agricultor é arrancar logo o joio, porque, além de não


servir para nada, ele é uma erva daninha que compete com o trigo por
nutrientes. No entanto, arrancar o joio antes da formação das espigas
significa perder muito trigo.

Também na experiência mística, é preciso deixar que cres-

çam juntos joio e trigo, o que presta e o que não presta, o que é justo e o que
é injusto, o que é bom e o que é ruim. Enquanto joio e trigo estão jovens,
você não será capaz de distingui-los; por isso, deixe que cresçam juntos;
separe-os depois. Do contrário, você jogará o trigo fora junto com o joio e,
mais tarde, não terá matéria-prima para fazer pão.

Se agora você está tentando fazer atividade mística, não fique com medo do
que é mau, porque só aquilo que for bom ficará registrado em você. Nada de
mau pode vir da atividade mística porque, metafisicamente falando, o mal
não existe, ele é ausência de bem, não tem substância em si, de modo que,
no final das contas, o que é mau não ficará guardado no seu celeiro; só
restará aquilo que é, e o que é, é bom.

Depois de crescidos joio e trigo, é possível distingui-los. E o sentido


gnóstico é o que opera essa distinção entre joio e trigo, entre bem e mal.

“Italo, isso é gnose! A gnose leva ao inferno. O conhecimento do bem e do


mal tirou Adão e Eva do Paraíso” .
129

A PAPISA

Há pessoas que não podem ouvir a palavra “gnose” que já ficam arrepiadas,
porque logo se lembram da árvore da ciência do bem e do mal, no livro de
Gênesis, a única árvore do jardim do Éden cujo fruto Adão não poderia
comer. “No dia em que dele comeres, morrerás”, disse Deus ao primeiro
homem (Gn 2, 17). No entanto, Eva foi seduzida e enganada pela serpente,
que lhe disse que, ao comerem do fruto, eles seriam como deuses e seus
olhos se abririam para o conhecimento. Adão e Eva acabaram, portanto,
desobedecendo a Deus e comendo do tal fruto. E foram expulsos do Éden.

Essas pessoas que se assustam com a palavra “gnose” têm pânico dessa
árvore e desse fruto. E têm certa razão, porque foi depois de comer dele que
Adão e Eva perderam a chance de continuar fruindo do estado perfeito de
justiça original.

Porém, se Deus proibiu Adão de comer do fruto dessa árvore, não o fez
porque ele

fosse mau em si, mas para que o homem, ao menos, nesta pequena coisa,
obedecesse a uma ordem tão-somente por ser dada por Deus. Assim é que
comer do fruto da mencionada árvore tornou-se um mal. Aquela árvore (...)
foi chamada de árvore da ciência do bem e do mal, não porque possuísse
uma força causadora de ciência, mas devido ao que aconteceu após ter sido
comido o seu fruto. Tendo-o comido, o homem aprendeu por própria
experiência a diferença que existe entre o bem da obediência e o mal da
desobediência. 17

Sabe quem disse isso? São Tomás de Aquino. Espero que ninguém o tache
de gnóstico.

Se você busca conhecer o bem e o mal do jeito que a serpente sugeriu a Eva,
o que você quer não é distinguir o que é bom do que é mau. Na verdade,
você é um soberbo que não sabe seu tamanho, que quer ser como Deus e ter
um conhecimento muito além da sua capacidade. Isso é realmente uma
desgraça!
17 AQUINO, São Tomás de. Compêndio de Teologia. Tradução de Dom
Odilão Moura. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1977, p. 111.

130

Mas não seja tonto de acreditar que buscar discernir bem e mal é errado, pois
isso é exatamente o que se faz na gnose.

A gnose é a tentativa de conhecer, de discernir o que é bom e o que é mau,


de separar o joio do trigo. Sem gnose, você não conseguirá fazê-lo.

Simbolicamente, o dois serve a dois senhores: a quem está acima e a quem


está abaixo. A gnose é a segunda coroa da tiara e, como tal, serve àquela que
está acima de si (a mística) e àquela que lhe está abaixo (a mágica).

Embora a gnose seja essa tentativa de conhecer, é na prática que se distingue


o que é bom e o que é mau. E é operando com esse conhecimento no mundo
que você conseguirá fazer tal distinção. E isso se retroalimenta, porque você
poderá levar as conclusões a que chegou, na prática, para sua atividade me-
ditativa, em silêncio (mística). Veja, pois, como as três coroas estão
interligadas.

Na mística, você prepara o celeiro (faz silêncio) para guar-dar os grãos (para
apreender o ser das coisas), enquanto deixa que cresçam juntos o trigo e o
joio. Quando trigo e joio estão maduros, você se torna capaz de ver as
diferenças entre eles e de separá-los (por meio da gnose, você aprende a
distinguir o que é bom e o que é mau). Por fim, você debulha o trigo, faz a
farinha e, com a farinha, o pão (você faz sua mágica: passa a agir com base
naquilo que aprendeu sobre o que é bom e o que é mau). A magia é a
depuração prática que se faz com o conhecimento que se adquiriu. Você tem
a experiência mística, você conhece, e você pratica.

“Mas eu tomei uma decisão, vi que não era a melhor coisa a fazer e, agora,
não posso mais voltar atrás”. Claro! Você tem uma vida, e não há como
“voltar atrás” na vida.

“Poxa, eu não sabia dessas coisas... Eu me separei da minha mulher há anos


e já tenho uma outra família. Mas agora vejo que não deveria ter me
separado”. Tudo bem, mas agora você já tem outra família. Seu primeiro
casamento é apenas uma história passada. Vai ficar se martirizando por isso
pelo resto da vida?

Encare o que vier daqui para a frente, sem repetir esse erro

131

A PAPISA

que, no final das contas, se tornou algo com o que você pôde aprender e
refletir.

Trigo e joio cresceram juntos, você não soube diferenciá-los e acabou


fazendo uma farinha de joio com trigo, que ficou super amarga (porque o
joio é mesmo muito amargo). Ao inge-rir um pão feito daquela farinha
horrível, você vomitou, botou tudo para fora, e obviamente ficou com um
gosto horrível na boca, pois todas as ações irrefletidas deixam um gosto
amargo.

Quando você vomita, precisa comer alguma coisa para tirar o gosto do
vômito, o gosto da ação irrefletida. Essa outra coisa, material e
simbolicamente, é o pão. É o pão que irá nutri-lo e limpá-lo ao mesmo
tempo. Se você finalmente aprendeu a separar joio de trigo, precisa agora
pensar em como colocar em prática esse aprendizado e conseguir, enfim,
fazer um bom pão.

Espelhos quebrados,

sepulcros caiados

Um grande problema surge quando alguém abdica da tiara e resolve se


orientar somente — e prematuramente — pelo livro.

Sem o olhar ajustado, sem os olhos polidos, sem um celeiro preparado, sem
a mínima noção da diferença entre trigo e joio, sem prática, de que servirão
as palavras do livro?

Começar direto pelo livro é receita para uma jornada fracas-sada. Se não
percorrermos a mística, a gnose e a magia, as verdades contidas no livro
escaparão à nossa percepção. Sem esse processo, nós nos cristalizaremos e
haveremos de nos tornar como que sepulcros caiados, apegados à letra da lei.
Verdadeiros livros ambulantes, mas completamente desconectados da
Verdade e incapazes de bem interpretar situações concretas e reais. Como
espelhos quebrados, nada será visto refletido em nós senão uns fragmentos
desconexos da realidade.

Imagine um sujeito que leu alguns livros sobre Teologia Moral. Ele entende
tudo sobre o assunto: sabe o que é pecado, o que são erros, o que são
virtudes morais... Ele é perfeitamente capaz

132

de fazer uma prova sobre o assunto e tirar uma boa nota; talvez consiga até
ser professor de Filosofia ou reitor de um Seminá-

rio. Ele entende dessas coisas, e por isso consegue escrever uns textos
bonitinhos na internet. Quando, porém, uma situação concreta se lhe
apresenta, ele apenas faz matar a Verdade no coração das pessoas, porque
está apegado à letra de uma lei morta, tal como um fariseu hipócrita, e assim
faz justamente porque está descolado da mística, da gnose e da magia.

O sujeito que somente lê livros não quer saber sobre a realidade, não se
interessa por ela. Tem, ao contrário, receio de sujar suas puras e limpas
mãozinhas e seu livro caso dela se aproxime demasiado.

Ora, o símbolo das mãos limpas já nos foi dado há dois mil anos. Houve um
sujeito na história cuja única intenção de vida era lavar as próprias mãos:
Pôncio Pilatos. Tendo a Verdade à sua frente — uma Verdade chagada,
aberta e pulsante, uma Verdade viva que era, ela própria, o caminho e a vida
—, Pilatos não a quis defender nem condenar: lavou as mãos.

No entanto, aquele era o sangue da Verdade, e quem limpa suas mãos do


sangue da Verdade realiza uma limpeza abominável, caricatural e cética, a
limpeza daqueles que se trancam em laboratórios e nada querem com a
realidade da vida.

A segunda lâmina do Tarô mostra-nos, assim, o crime dos sujeitos cujas


principais preocupações são não contaminar as próprias mãozinhas com o
sangue da verdade e manter uma distância segura da realidade, tomando-a
por um corpo pestilento.

Se você não suja as mãos com o sangue da verdade — e ele se nos apresenta
na vida —, você está preso à letra da lei: é um fariseu hipócrita. Nenhum dos
que forem lhe procurar sairão vivificados. Sairão, antes, oprimidos por
aquela assepsia de um Pilatos que lava suas mãos.

Há muitas pessoas assim por aí, cujo único ofício é manter as mãos
limpinhas. Não caia nesse erro.

Repito para que você não se esqueça: dedicar-se ao “livro”

sem passar antes pelos três domínios da tiara (o místico, o gnós-

133

A PAPISA

tico e o mágico) é uma tremenda tolice. Só depois de todo esse processo


representado pelas coroas da tiara é que você poderá chegar ao livro e
começar a falar sobre o que esteve fazendo. Só depois da mística, da gnose e
da magia é que suas palavras terão força e consistência. Portanto, se você
não preparou o celeiro e não sabe a diferença entre uma espiga de trigo e
uma espiga de joio, seja honesto consigo mesmo e admita que ainda está no
início do processo.

Os santos, livros vivos

São quatro os sentidos que só podem se alimentar pelo pranto que limpa o
espelho, que ajusta o olhar: o sentido místico, o sentido gnóstico, o sentido
mágico e o sentido filosófico ou teorético — mas não se preocupe com este
último agora. Vá, antes, de sentido místico, gnóstico e mágico; ou seja, de
reflexão, de aprendizado e de prática. Só depois você conseguirá, talvez,
explicar suas reflexões para alguém e para si próprio. Só então você passará
ao domínio do livro, ao domínio filosófico.

A vida dos santos vira tradição também, vira livro, e isso é uma sabedoria
muito grande da tradição mística católica. As vidas dos santos são como
livros em que está reunida uma sabedoria enorme. Os santos são como
aquelas “cartas de Cristo” de que São Paulo falou aos Coríntios. Ele os
exortou que fossem como cartas reconhecidas e lidas por todos os homens e
escritas “não com tinta, mas com o Espírito de Deus vivo, não em tábuas de
pedra, mas em tábuas de carne, nos cora-

ções” (2 Cor 3, 1-3). Quando você contempla a vida de um santo, logo


entende o que é um celeiro, o que é trigo, entende como é que se faz pão,
como é que se limpa os olhos, como é que se cresce, como é que se
amadurece... Você simplesmente entende!

A presença de um santo é a presença de alguém que fez as operações


mística, gnóstica e mágica. O santo é alguém que

134

está em tudo polido, em tudo alimentado, alguém que tem reserva de trigo.
Ele tem a lei impressa em suas entranhas e inscrita em seu coração. Portanto,
se você quer saber como polir os olhos, como preparar o celeiro, como ter
sua reserva de trigo, como sair do domínio do livro, aprenda com os santos.
A IMPERATRIZ
137

A terceira lâmina do Tarô é a Imperatriz. Com as duas primeiras, ela forma


um ternário, resumido na seguinte fórmula (que você provavelmente já
ouviu em algum lugar): o caminho, a verdade e a vida.

138

A primeira delas, a lâmina do Mago, simboliza o início de um caminho a


percorrer, assim como a postura existencial necessária para captar as coisas
superiores. Para percorrer esse caminho, temos que nos munir do olhar
perfeitamente desatento do Mago e proteger-nos sob seu chapéu em forma
de lemniscata.

A segunda lâmina, a da Papisa, simboliza a verdade à qual aspiramos chegar.


No entanto, vimos que, para chegar à verdade, começar direto pelo livro é
tolice. É preciso, antes, passar pelas três esferas representadas pelas coroas
da tiara (mística, gnose e magia). Sem esse processo, as verdades contidas
no livro escaparão à nossa percepção.

A lâmina da Imperatriz, por sua vez, simboliza a vida tal como ela se nos
apresenta — não como mera operação mental, desvinculada da realidade.

O número da lâmina é o três, segundo o qual a tríade mística-gnose-magia


não pode ser separada, assim como as três pessoas da Santíssima Trindade
(Pai, Filho e Espírito Santo) são um só Deus.

A Imperatriz está sentada em um trono e tem uma coroa sobre a cabeça. Em


geral, ela aparece com um cetro em uma mão e um escudo na outra. O cetro
costuma figurar com uma esfera no topo, tendo acima de si uma cruz.

A esfera é dividida em duas metades por uma linha, como a linha do


Equador divide o globo terrestre. Formam-se aí como que dois copos,
ligados pelas bordas: um cuja borda está voltada para cima, tendo sob si o
bastão, e outro virado de cabeça para baixo, tendo a cruz como base.

O conteúdo do copo de cima (o da cruz) escorre para o copo de baixo. Esses


dois copos unidos pelas bordas simbolizam aquilo que vem de cima e é
vertido embaixo, tornado ação humana.
Já o escudo que ela segura com a mão direita é adorna-do por um brasão de
águia, ave de rapina que alça altos vôos.

A águia é também o arquétipo do líder, pois é o único animal que consegue


encarar o sol de frente. Ela simboliza a coragem e a agudeza com que
devemos encarar a vida. Por outro lado,

139

A IMPERATRIZ

essa águia — embora seja um animal incisivo, agudo — está representada


em um escudo, não em uma espada ou lança. Esse escudo é, a um só tempo,
arma e instrumento de defesa. Como a articulação do olhar de pomba e de
serpente, o escudo de águia articula defesa e ataque, proteção e coragem para
enfrentar o que quer que nos apareça à frente.

Somos livres!

Quando a criança ainda é muito nova, ela tem por operação básica rejeitar o
que lhe incomoda e aderir àquilo que não lhe incomoda. Até os dois anos, a
criança vive entre prazer e des-prazer; tudo nela se baseia nisso. Esse par é a
chave para entender tudo o que ela quer e faz. Se há muito barulho, o bebê se
incomoda e chora; se tem fome, ele se incomoda e chora; se a água do banho
está muito fria ou muito quente, ele se incomoda e chora; se nasce um dente
novo, ele se incomoda e chora. Quando cessam a dor e o incômodo, é
comum que cesse também o choro. A vida infantil opera, enfim, no binômio
incômodo-prazer.

O sujeito freudiano não é muito diferente disso. Ele é um homem


“deformado”, que é puro afeto, que está sempre fugindo da dor e buscando o
prazer. Para Freud, tudo se explica por pulsões (uma pulsão sexual, uma
pulsão de desejo, uma pulsão de prazer). Contudo, meras pulsões não
explicam como “funciona” um adulto — ao menos, não um adulto maduro.
Um adulto maduro tem muitas outras motivações que transcendem a vontade
de transar, a vontade de ter muito dinheiro ou a vontade de comer duas
barras de chocolate de uma só vez.
Muita gente pensa que o homem é movido por pulsões ou por instintos, mas,
em geral, há grande imprecisão quando se fala em “instintos humanos”.
Enquanto nos animais o instinto é forte e imperativo, no homem, as
tendências instintivas são muito fracas e raramente se manifestam em estado
“puro”

depois de passada a primeira infância.

140

Certa vez, eu estava nos Estados Unidos, em uma festa de virada do ano.
Havia ali um cachorro que observava atentamente a movimentação da
criançada que estava ali pela sala. Em um dado momento, ele começou a
circular o recinto, em círculos concêntricos cada vez menores, de tal modo
que, depois de alguns minutos, as crianças estavam todas agrupadas no
centro da sala. Era um cão pastor.

Eu estava ali, comendo um cachorro-quente, conversando com amigos e


observando a cena, enquanto o cachorro fazia a única coisa que poderia
fazer: pastorear, ou seja, ser um cão pastor. Ao receber um estímulo do
ambiente, não lhe resta outra opção senão agir — ele não tem liberdade de
escolha. Isso é o que nós chamamos de instinto, que é o sistema de
orientação dos animais no mundo.

A realidade se apresenta para o bicho como se entre eles houvesse um


contínuo, como se a realidade convocasse o cachorro a agir de um único
modo — ou até de dois, mas nunca de quatro, cinco ou dez modos.
Possibilidades incontáveis não se abrem para os cães.

Diante de um chamado claro da realidade, o cachorro pode apenas agir ou


não agir. Um cachorro doente ou bem adestrado talvez não reaja, mas um
cachorro são e não adestrado necessariamente exercerá plenamente sua
“cachorridade”; ele fará aquilo para que foi feito: ser cachorro.

A realidade apresentou àquele cachorro umas criancinhas.

Um cão pastor pastoreia ovelhas e, bem, para ele, crianças e ovelhas são
mais ou menos a mesma coisa. Por isso, o cão se viu impelido pela realidade
a pastorear aquelas criancinhas. Ele não tinha liberdade, mas somente agiu
diante da realidade porque foi chamado a isso por uma faculdade sua, a que
damos o nome de instinto.

O ser humano, pelo contrário, não tem instintos como um animal, porque
não existe algo na realidade que nos chame e que nos leve a agir
necessariamente de certo modo.

Fala-se muito em instinto de sobrevivência. No ser humano, po-rém, o


instinto de sobrevivência é algo muito difícil de definir e

141

A IMPERATRIZ

localizar; e ele não determina nossas ações. Se o instinto humano de


sobrevivência fosse de fato forte, ninguém faria jejum, por exemplo; mas
várias pessoas deixam de se alimentar orientadas por um princípio religioso,
moral, estético ou de outra ordem. Um animal inferior jamais faria algo
parecido. Isso acontece porque a liberdade humana é superior aos instintos,
ela é o elemento que “costura” a nossa substância.

Se você pensar somente em pulsões, estará frito, pois a pulsão da qual fala
Freud aposta que o instinto está na dianteira das nossas ações, quando, na
realidade, não é isso o que ocorre.

Vejamos um caso bastante corriqueiro: se chego esfomeado à casa da minha


sogra para um almoço de domingo, mas a comida atrasa, por que não meto
logo a mão na comida crua para me alimentar de imediato?

Essa espera é um elemento puramente humano. O homem, como já disse um


filósofo, é o homo gastronomicus. Nós prepa-ramos a comida para comer;
não comemos qualquer coisa, nem comemos de qualquer jeito. Noutras
palavras, o instinto de se alimentar cede a alguma outra coisa (que tampouco
é um outro instinto). Nunca vi um cachorro fazer um molho bechamel ou
fritar um bife.

Outro exemplo. As companhias aéreas precisam avisar uma coisa que, para
bichos, jamais seria necessária: antes de ajudar o viajante ao lado, primeiro
ponha você sua máscara de oxigênio.
Isso não chama muito a atenção? Se houver uma pessoa amada ao seu lado,
seu primeiro “impulso” será o de colocar a máscara nela primeiro! A
liberdade que o amor nos confere leva-nos a fazer exatamente o contrário
daquilo que um instinto de sobrevivência nos levaria a fazer.

É claro: embora haja quem pense em colocar a máscara primeiro em si


próprio, deixando que os outros se ferrem, a maioria não pensa assim — e é
por isso que as companhias aéreas precisam dar o aviso. Sem ele, a maior
parte das pessoas colo-caria primeiro a máscara no viajante do lado. Veja,
portanto, como o instinto não está na dianteira: não é ele que “costura”

nossas ações.

142

Se você ainda não está convencido disso, pense então no fe-nômeno dos
mártires religiosos, que morreram por sua fé. Que instinto de sobrevivência é
esse, que permite que um garotinho de catorze anos, como São José Sánchez
del Río, mexicano martirizado em 1928, prefira a morte a negar sua fé em
Cristo? Ele não aceitou barganha alguma para que lhe poupas-sem a vida;
padeceu várias humilhações e sofrimentos físicos: bateram-lhe, cortaram-lhe
as solas dos pés, e obrigaram-no a caminhar descalço sobre o sal, tendo já os
pés em carne viva. O

tempo todo, ele se manteve firme, entoando hinos em louvor a Deus.


Morreu, por fim, com um tiro na cabeça, pouco depois de ter dado seu
último grito: “Viva Cristo Rei! Viva Santa Maria de Guadalupe!”

Exemplos como esse bastam para que o “instinto de sobrevivência humano”


caia por terra. O homem é livre mesmo em situações extremas, mesmo
diante do martírio, mesmo diante da morte, para dizer: “Eu quero isso”, ou
então: “Eu não quero isso”. Ele escolhe livremente.

Outro instinto que se costuma atribuir ao homem é o instinto sexual, ou


instinto de reprodução, mas qualquer pessoa que olhe para sua própria vida
com sinceridade saberá que ter re-lações sexuais não é assim tão fácil —
mesmo hoje, quando parecem não haver tantos impedimentos.
O fato é que não somos coelhos nem cachorros. Se houver no mesmo recinto
um cão e uma cadela no cio, eles cruzarão. Não há flerte, não é preciso
“perder tempo” com a conquista, a cadela não alegará estar com “dor de
cabeça”... Diante de uma realidade sexual, ou seja, de uma fêmea fértil e um
macho viável, não há complicações para os animais: eles se reproduzem e
pronto — a não ser que algum problema de saúde os impeça de fazê-lo. Isto
é propriamente o instinto: algo imperativo, necessário.

Basta, contudo, uma preocupaçãozinha (com os filhos, com a casa, com o


trabalho, com uma dívida), uma enxaqueca ou o cansaço ao final de um dia
cheio para que um ser humano, embora em seu período fértil, perca
completamente a vontade de fazer sexo. Ora, se o instinto sexual fosse lá tão
forte entre

143

A IMPERATRIZ

os homens, todos estariam transando o tempo todo, mas não é bem isso o
que acontece; pelo contrário, o problema de muitos casamentos é exatamente
a falta de sexo, o fato de um querer e o outro não, de um estar pronto e o
outro não.

Veja, portanto, como, mesmo diante daquelas motivações que parecem


instintivas, não estamos no império da necessidade absoluta. O homem
sempre tem escolha.

Quando alguém lhe aparecer dizendo: “A minha vida acabou. Não tenho
escolha. Não há mais o que fazer”, não acredite.

Ser humano é poder escolher; e poder escolher é poder melhorar, sair de um


estado de miséria, de tristeza, de depressão ou de agonia. E um sujeito com
personalidade é plenamente capaz de livrar outra pessoa de um estado como
esses.

É a isso que Viktor Frankl se referia quando disse que a única coisa que trata
é o terapeuta com personalidade.
O terapeuta com personalidade não dá exemplo de nada: ele vive de tal
modo a deixar claro, para aqueles que estão à sua volta, que é possível ser
humano. Diante de um desesperado, o sujeito com personalidade será aquele
responsável por dizer:

“Não! Você está completamente errado! O mundo não é isso, a vida humana
não é isso. ” E então aquele indivíduo padecente, que estava cristalizado
como um chihuahua, percebe que é possível ser humano. E não há tesão
maior no mundo do que ser gente.

Isso é fantástico! Nós precisamos amadurecer, por nós mesmos e pelos


outros.

Não amadurecer é levar a vida como um chihuahua; e ainda que você queira
muito viver assim, ao fim e ao cabo, não conseguirá, pois é impossível matar
esse senso chamado liberdade. O

ser humano é ontologicamente livre. Ontologicamente — a liberdade está na


sua essência, na sua constituição. O ser humano é livre, seja em um campo
de concentração, seja sob um regime tirânico, seja em um restaurante
badalado, seja no ambiente familiar. Ele sempre terá a possibilidade de dizer
sim ou não.

O que vemos, contudo, é uma grande parte dos seres humanos que parece
viver como chihuahua, mas nenhum deles o é de fato. Em algum momento,
todos são confrontados com certas

144

perguntas, são impelidos a amadurecer. Do contrário, jamais serão felizes.

A tristeza surge precisamente do não-amadurecimento, do mau uso da


liberdade, da própria abdicação do uso da liberdade, da idéia tremendamente
equivocada de que um homem pode viver como um cachorro.

Você quer ser feliz? Então faça bom uso daquilo que está no centro da sua
humanidade: sua liberdade. Mas veja bem: para nós, a liberdade não é um
conceito abstrato; ela é uma escolha que fazemos a cada instante, entre
prestar e não prestar aten-
ção, entre amar e não amar, entre servir e não servir, entre estar e não estar.
Essa é a liberdade que nos é possível.

A humanidade, hoje, anda extremamente infeliz. Há um desespero, uma


desorientação, um não-saber-o-que-fazer generalizado, porque o homem
atual não está sendo fiel à sua própria natureza. Ele quer abrir mão da
liberdade, sem a qual não pode dizer que é mesmo um homem.

A lâmina da Imperatriz nos sugere uma solução para esse problema:


envergar o escudo e o cetro que são, afinal, símbolos da instalação na vida.
Desenvolvamos nossa vida neste mundo, avancemos em nossos projetos. E
não o façamos como criancinhas que vivem de buscar o que é agradável e
prazeroso e evitar sempre o sofrimento e a dor, senão como adultos que
somos, livres e responsáveis.

A substância da vida humana

Porém, antes de sair por aí empunhando cetro e escudo, é preciso entender


uma coisa. A substância da vida humana é a narrativa, pois a vida humana é
uma história. Ela tem começo, meio e fim, tem personagens principais e
secundários, tem um eixo narrativo, cenários, antagonistas, clímax, desafios
a serem enfrentados etc. Ela contém tudo o que as boas histórias contêm,
mas isso não nos torna automaticamente nem bons vive-dores nem bons
contadores de nossas próprias histórias.

145

A IMPERATRIZ

Se não pararmos para pensar nesses elementos, e se não tomarmos posse


desta que é a substância da nossa vida (isto é, se não aprendermos a contar
bem nossa própria história), continuaremos perdidos e sem ver sentido na
vida. Seremos perpetuamente jangadas à deriva, navegando para onde sopra
o vento, incapazes de escolher nossos próprios rumos.

É imediata a necessidade de encontrar seu argumento vital, de modelar os


elementos que compõem sua própria história, levando em conta sua estrutura
natural. Ao fazê-lo, você abre para si a possibilidade de um “final feliz”, de
um final à altura da responsabilidade de escrever uma história, não com
papel e caneta, mas com ações concretas em um mundo real.

Você se lembra do que falei sobre as vidas dos santos, que são como que
“livros vivos”? Pense também na sua vida como um livro vivo.

Contando a história dos outros, ou

Por que a grama do vizinho

é sempre mais verde

Muitas pessoas têm a impressão de que a grama do vizinho é sempre mais


verde, de que a vida dos outros é sempre mais interessante. Isso acontece
porque, olhando para a vida do outro, essas pessoas contam a história dele
segundo uma certa chave.

Elas escolhem um eixo narrativo, assim como as criancinhas fazem quando


estão brincando.

Quando você olha para a vida do vizinho e fala que a grama dele é mais
verde do que a sua, você só o diz porque está contando a vida dele sob a
forma de uma história, e assim ela parece fazer mais sentido do que a sua.

Pense, por exemplo, na história de Pablo Escobar. Ao ver aquela vida


contada no seriado Narcos, mesmo sabendo que o sujeito foi um imoral, um
bandido, um narcotraficante, um assassino, você se vê tentado a pensar que,
às vezes, a vida dele parece ter sido melhor do que a sua. Você se vê,
inclusive, tentado a querer ser como o Pablo Escobar foi. É verdade ou não
é?

146

Nunca lhe aconteceu de olhar para um vilão do cinema e pensar: “Que baita
vida”? Ao fazê-lo, você não está simplesmente sendo atraído pela maldade
do personagem, mas está se deixando encantar por uma grande história. É
como se você exclamasse: “Caramba! Isso é que é uma história de vida, que
vale a pena ser vivida. Eu também queria viver uma baita história! ”
Quando não sabemos contar nossa própria história, até uma história
horrorosa como a do Pablo Escobar — um sujeito que explodia carros e
matava gente inocente, que morreu em cima de um telhado, como um rato
— pode parecer mais interessante do que a nossa. Na verdade, como dizia
Georges Gusdorf, qualquer história humana é interessante, desde que bem
contada.

A vida do protagonista do filme O Lobo de Wall Street, um viciado em


cocaína, também parecerá melhor e muito mais atraente do que a vidinha
mixuruca de um sujeito que resume a própria história a um “Nunca matei
nem roubei, logo, sou um homem bom”. Quando esse sujeito se depara com
uma história como a do Pablo Escobar, que roubou e matou, seu primeiro
impulso será pensar: “Isso sim é que é vida! A minha é apenas uma vidinha.
” Depois, no entanto, ele retoma um nível de consci-

ência de moralidade e pensa: “Não! Minha vida é melhor. Pelo menos eu


nunca fiz mal a ninguém”.

O problema é que essas pessoas nunca se convencem inteiramente disso.


Fica-lhes na boca um gosto amargo.

Quando você pensa que o seu vizinho ou o Pablo Escobar têm uma vida
melhor do que a sua, o que acontece é que, sendo essas pessoas externas a
você, ao tentar entendê-las ou falar sobre elas, das duas uma: ou você fala
sobre um aspecto externo físico claro e muito marcado (“Meu vizinho é
muito feio”, “Essa atriz é muito bonita”, “Aquele influenciador digital tem
uma voz irritante”), ou você faz uma projeção narrativa.

Como o aspecto físico não consegue enganar por muito tempo, você acaba
criando alguma história mais ou menos elaborada sobre aquela pessoa. É o
que fazem comigo a todo o tempo. Como apareço diariamente no Instagram
para um grande número de pessoas, sempre há gente tentando contar

147

A IMPERATRIZ

alguma história sobre mim, histórias essas que, no mais das vezes, resumem-
se a rótulos: “O coach católico”, “O charlatão”,
“O gênio salvador de almas”, “O guru”.

É um exercício imaginativo: elas tentam imaginar uma vida muito diferente


das suas próprias. Apegam-se àqueles símbolos e os projetam na vida dos
outros — e está certo; o problema é que a coisa pode ser feita de forma
honesta ou desonesta; motivada pela inveja, ou pela admiração; por uma
curiosidade sadia, ou por um desejo de destruir o outro. Se vou de um
possível-futuro-santo até o crápula mais charlatanesco da face da terra; de
médico excelente a falsificador de diploma, há algo de estranho nisso, e esse
algo é a motivação das pessoas que estão contando uma história sobre mim.

Quando falam muito sobre você, é preciso ter o cuidado de não se deixar
afetar demasiado por isso. A pessoa que se entris-tece muito quando falam
mal dela, em geral também se alegra muito quando a elogiam. Quando ela se
deixa levar por uma ou outra coisa, ela permite que outros escolham o eixo
narrativo da sua própria vida. Não se lhe aplica a famosa frase do Dom
Quixote de Cervantes: “Yo sé quién soy” (“Eu sei quem sou”).

Enquanto você não souber declarar quem é, sua vida, de fato, será uma
caravela sem leme e você irá para onde o vento soprar.

Para evitar que sua vida se converta nesse barco desgovernado, tenha bem
claro quem você é; e para isso, você precisa dominar a arte de narrar a
própria vida.

A arte de bem narrar a própria vida

Vou lançar uma pergunta agora, e quero que você reflita de verdade sobre a
resposta:

Qual é a sua história?

Pare de ler por um tempinho e tente contá-la.

Eu fiz essa pergunta porque, atendendo por tantos anos em consultório,


ouvindo tantas vidas, percebi que, ao contar sua história, você escolhe um
jeito específico de fazê-lo.

148
Veja bem: não é para repassar um filme dos seus tantos anos de vida, com
tudo o que lhe aconteceu, porque isso também não seria a história da sua
vida, senão apenas as coisas que lhe aconteceram. É preciso saber selecionar
o que incorporar ou não ao seu eixo narrativo.

Em que medida seu almoço de hoje serve para contar quem você é? Em que
medida a dor de cabeça que você teve há três horas entra na seleção da sua
história? E quanto àquele moto-boy que passou rápido pelo seu carro e
arrancou seu retrovisor, fazendo-o perder quatro horas do seu dia pensando
só naquilo? Em que medida esse evento tem a ver com quem você é?

Alguns responderão: “Italo, isso tem tudo a ver com quem eu sou. ” Outros,
um pouco mais sensíveis, dirão: “Não sei se eu deveria escolher essas coisas
para integrarem meu eixo narrativo, porque, afinal, não sei se elas
importam ou não. ”

Quem, então, é você? Conte-me sua história, conte-me quem você é. Se você
não for capaz de fazê-lo em poucas frases, então você ainda não tem eixo
narrativo.

Pense bem. Aposto que você é capaz de narrar a vida de outras pessoas em
poucas frases. “Meu vizinho estava ferrado na vida, entrou na Hinode e hoje
tem um Land Rover. ” Eis uma história curta, com começo, meio e fim, com
personagens, clímax e desafio: o sujeito estava ferrado, conheceu as
testemunhas do marketing multinível e ganhou uma Land Rover porque
virou

“triplo diamante”. Isso de fato acontece.

Agora, se eu lhe pedisse para me contar a sua história, mais ou menos como
você contaria a desse vizinho, você provavelmente logo no início
confessaria: “Desse jeito, eu não consigo. Soa falso, artificial. ” Aí é que
está o ponto.

Você tem de achar a verdade da sua história e contá-la bem.

Não estou falando de achar o seu propósito, mas de tentar responder a


perguntas como estas: quem você é? Quem são as pessoas ao seu redor? O
que você está fazendo? Aonde você quer chegar? De onde você veio? O que
está acontecendo com você? Na sua vida, quais são as tramas principais e
quais são as periféricas? Quem são os personagens secundários?

149

A IMPERATRIZ

Não me venha, portanto, com peripécias do tipo “Sou um filho de Deus! ”.


Isso não diz nada sobre você, pois há filhos bonzinhos, filhos doentes, filhos
que ajudam os pais, filhos que jogam videogame o dia inteiro, filhos que
espoliam todos os bens familiares... Resumir sua narrativa de vida a um “sou
filho de Deus” é uma peripécia, é um enquadramento externo. Você pode
pensar que ser filho de Deus é a coisa mais central da vida de um ser
humano — e eu entendo o que você quer dizer — , mas esse não é um
argumento vital.

Serei duro agora, pois preciso me fazer compreender: se o argumento da sua


vida é “Quero me casar e ter quantos filhos Deus me der”, minha única
resposta possível é “Entendi, Senhor(a) Urso(a). ”

Se o seu argumento não serve para distingui-lo de um urso, de um tatu-bola


ou de uma samambaia, você terá uma vida infeliz, porque ela não terá uma
história. Ter filhos é o que um casal de ursos ou de cachorros faz. Até uma
samambaia se reproduz — na verdade, o único “desejo” dela é se perpetuar,
não há outro. A samambaia não possui nada além disso. Tudo o que uma
planta faz é perpetuar sua espécie.

“Sou imagem e semelhança do Criador. ” Sim, é verdade. Mas isso também


não é um eixo narrativo. Do mesmo modo, dizer algo como “Quero ser
bom” é uma peripécia.

Veja, com todos esses exemplos, como o sujeito religioso tem dificuldade na
hora de forjar um eixo narrativo. Eu entendo que ele quer ser uma pessoa
boa, mas, quando leio algo assim, a única coisa em que consigo pensar é que
ele quer ser uma pessoa boa dentro da religião. O problema é que, como não
sabe contar a própria história, logo ele verá as vidas de outras pessoas como
mais intensas, mais interessantes, mais gostosas — até aquelas que, segundo
seu entendimento, são imorais. Daí surgem as neuroses.
Por isso é que devemos parar de julgar os outros. Não conhecemos a história
das pessoas, sabemos pouquíssimo sobre elas; não obstante, hoje, as pessoas
religiosas, em sua maioria, se entregam ao exercício diário de julgar os
outros. Uma

150

senhora olha para a moça que usa decotes e roupas sensuais e, internamente,
narra a história dela com base nas poucas informações de que dispõe. Depois
de contada a história, aquela vida passa a exercer certo fascínio sobre a
senhora, mesmo que esta se considere “a religiosa” e veja na outra “a
imoral”.

É preciso matar esse julgamento interior, porque ele cria um tipo de neurose,
deixa as pessoas invejosas, secas, frustradas, sem esperanças de que isto que
pensam ser religião seja realmente caminho de salvação. É o que acontece
com 99% dos religiosos hoje. Como não sabem o que é a história de uma
vida humana, de uma alma, eles se apegam a símbolos externos — que,
embora não sejam ruins, também não são história. E quanta desesperança
brota da incapacidade de contar a própria história!

Largando as fraldas

Nossa vida cognitiva ativa tem duração muito curta. Ela não começa aos
dois ou três aninhos, quando começamos a contar as primeiras historinhas,
mas sim por volta dos treze anos, quando, pela primeira vez, pensamos:
“Caramba! Eu tenho uma função no mundo. O que será que eu deveria estar
fazendo? ”.

Há um momento na puberdade em que o sujeito olha para si e vê que tem


uma história própria, que já não é mais a história do bandido, do mocinho,
do astronauta, ou do jogador de futebol das brincadeiras fantasiosas da
infância.

O próprio “brincar de casinha” das menininhas nada mais é do que inventar


uma vida que não é a delas. Isso é muito importante para as crianças — na
verdade, é só o que importa em termos de educação infantil. A criança
brinca de casinha, de polícia e ladrão, de boneca, de super-herói, de
mocinha, de médico, de bruxa, de professora, até que chega um momento em
que ela começa a notar que as brincadeiras já não lhe preenchem mais, que
ela já não consegue (nem quer) brincar como antes — e então ela cai em
uma espécie de limbo, em um grande vazio.

151

A IMPERATRIZ

Por que nós, adultos, não brincamos mais? Quando éramos crianças,
adorávamos brincar, mas em certo momento da vida deixamos as
brincadeiras de lado e passamos a considerar que servimos para alguma
coisa, e que deveríamos contar uma história própria, escrever o nosso livro.

A questão é que crianças e adolescentes já não são mais ensinados a contar


histórias. Como, então, serão capazes de narrar suas próprias vidas? Cobra-
se de um adolescente que protagonize a própria vida, sem contudo dar-lhe os
instrumentos necessários para tanto. O adolescente não sabe sequer quais os
eixos narrativos possíveis, e por isso então começa a querer

“inventar moda”, ou a seguir imitando os trejeitos e compor-tamentos dos


outros — agora não mais dos pais, professores e personagens dos contos de
fada, mas das celebridades, dos falsos heróis do mundo moderno, dos anti-
heróis e demais personalidades especialmente atraentes para os jovens.

É bem nessa fase, dos quatorze aos dezesseis anos, quando tateia em meio a
seus pequenos conflitos, que chega ao jovem uma questão mortal,
castradora: “Marque um X no curso para o qual você pretende prestar
vestibular. Você será contador, advogado, administrador, bioquímico,
geógrafo, psicopedagogo, jornalista, designer industrial ou técnico em
eletrotécnica? ”

As profissões do nosso tempo não são cristalinas, não têm em si um


argumento vital. Nossa sociedade pós-industrial “inventou” tantas profissões
desconectadas do pólo de possibilidades de realização do espírito e de
realização da biografia, que aderir a uma carreira em nada tem a ver com o
desenvolvimento argumental da sua vida.

O que, então, acontece ao jovem?


Lá pelas tantas, ele escolhe uma carreira. E não importa o que o leva à
escolha: ou ele escolhe um curso porque passou em uma prova específica, ou
escolhe outro porque não passou, ou faz um curso técnico porque a mãe o
inscreveu.

De qualquer modo, esse jovem um dia se pergunta pela primeira vez: “O que
eu deveria ser? O que eu deveria fazer? Só sei que não brinco mais de
casinha. ”

152

O jovem então nota que não tem mais uma vida ficcional e infantil, e que
precisa contar uma história real. Mas ele se frustra no primeiro dia, porque
não sabe se fez ou não o que tinha que fazer. Frustra-se também no segundo.
Até que, no terceiro, ele não completa mais essas micro-vidas chamadas
dias, não perfaz a vida cotidiana, porque não sabe que história é essa que
está contando.

Mesmo o jovem mais ou menos bem educado, que escolhe ser bom, que tem
religião e que deseja viver eticamente, acaba se apegando a símbolos
externos, a peripécias, e vai pautando sua vida em alcançar essas coisas
externas, pois tudo assume um sem-sentido monstruoso e interminável. Não
basta querer ter virtudes de maneira genérica; virtudes, em si e tomadas
genericamente, não são nada. Há virtudes que, para uns, serão mais fáceis de
cultivar, para outros, mais difíceis; no caso concreto do nosso rapazinho,
será preciso dedicar mais atenção a certas virtudes que a outras. E há alguns
vícios e defeitos contra os quais ele terá de lutar por toda a vida, porque, do
contrário, eles poderão destruí-lo.

Ele poderá, afinal, chegar ao final de um dia e dizer: “Eu fui muito pontual
hoje. Estou de parabéns. ” Beleza, mas o que isso tem a ver com tudo o
mais? Em tese, ser pontual é melhor do que não ser, mas, dependendo do
caso, apegar-se demasiado à pontualidade é péssimo, porque significa matar
vários elementos de caridade, de atenção ao outro, de relaxamento, de

“presença” em dado lugar. Na maioria dos casos, cinco ou dez minutos para
cá ou para lá não fazem qualquer diferença. Lutar para “ser pontual” pode
significar lutar por algo que, talvez, não tenha nada a ver com a pessoa.
E para saber quais dessas coisas têm maior ou menor relevância em sua
história, a primeira pergunta que você deve se fazer é: “Qual é o meu eixo
narrativo? ”

Uma vez que a substância da vida humana é a narrativa (a história que se


conta a respeito de si próprio), o sujeito que não tiver um eixo narrativo
claro nunca será bom, mas, no máximo, bonzinho. Quer dizer, dentro da
normalidade humana, ele não será bizarro, não será um monstro. Mas “não
ser bizarro” não preenche ninguém, e todos sabem disso.

153

A IMPERATRIZ

Ao chegar aos vinte e poucos anos, o jovem — aí incluído também o


bonzinho com o nobre desejo de ser virtuoso — já terá experimentado uma
década de frustrações diárias e de um pensamento constante de não saber o
que veio fazer neste mundo. Aos vinte e cinco, ele empurra a vida com a
barriga:

“É... Dá para viver. Não vou me matar, mas já sei o que sobrou para mim:
evitar a dor.” Com essa atitude, ele regressa aos dois anos de idade! Embora
tenha vinte e cinco, ele não acredita mais em uma coisa chamada
“narrativa”; ele perdeu sua capacidade de narrativa ficcional, porque não é
mais o Batman, o mocinho, o bandido, o arquiteto ou o médico de que
brinca-va quando criança. Assim é que ele recua para aquela vidinha de
bebê, orientada pelos pólos de prazer e dor. Volta a chorar quando a
barriguinha está vazia, quando está frio, quando está calor, quando o
brinquedo quebra...

E essa tragédia se dá justamente dos vinte e cinco aos trinta e cinco anos, a
década na qual tudo acontece: a consolidação da carreira (ou a mudança de
profissão), o casamento, a vinda do primeiro filho, uma separação, a vinda
dos outros filhos, a descoberta de uma doença.

Uma vidinha gourmetizada

Precisamente nessa fase em que deveriam amadurecer, nossos jovens


insistem em se comportar como crianças. O grande fe-nômeno da
“gourmetização” é uma boa ilustração disso. Diante de uma falência
narrativa, resta-lhes apenas gourmetizar tudo, para tentar fazer com que a
história não doa tanto; porque, se doer, todo o mundo quebra, se deprime,
fica ansioso e desiste.

Se o sujeito entra na vida adulta com algum dinheirinho e não experimenta


esse tipo de gourmetização, ele sente como se a vida tivesse acabado, porque
está há dez anos tentando contar uma história e não consegue — e, nesse
sentido, o sofrimento não ajuda em nada.

Alguns dirão: “Esse pessoal tem a vida muito fácil. Queria ver se sofressem
mesmo. ” Que nada! Pense em muitos dos jovens da

154

favela. Materialmente falando, não há muitas coisas boas em suas vidas.


Suas casas não têm espaço, a água que bebem não é muito boa, têm de pegar
quatro ônibus todos os dias e, ainda assim, quantos deles não se esforçam
por mostrar que têm roupas boas? Mas o resultado é todo meio
desconjuntado, e eles sabem disso. Ostentam tênis caros e o boné da moda,
enquanto pegam um ônibus lotado. A pobreza não leva ninguém
automaticamente ao amadurecimento.

A doença tampouco é uma cura milagrosa para a pessoa imatura e que não
vê sentido na vida. Quantos doentes só fazem reclamar e reclamar!
Sofrimento não é cura milagrosa.

Uma doença pode levar alguém a ver sentido na vida, mas também pode
torná-lo mais amargo.

Mas voltemos ao sujeito que, tendo passado dez anos questionando-se sobre
sua história, chega aos vinte e cinco anos em uma desesperança brutal. Não a
declara, contudo, porque os prazeres do mundo gourmetizado servem-lhe de
anestesia. “Este mundo não é tão ruim. Dá para aproveitar. As meninas
estão todas querendo dar, há muitas comidas gostosas, boas bebidas e posso
sempre tomar um banho quente para relaxar à noite. Quando estiver muito
calor, posso ir ao shopping curtir um ar-condicionado. Juntando algum
dinheiro, posso fazer algumas viagens, conhecer o mundo… Não tenho
razão para reclamar.

A vida não deve ser tão ruim, eu é que não devo estar sabendo fazer as
coisas direito. ”

Ele fica constrangido em declarar sua desesperança, porque olha para o


mundo externo e vê que nele está tudo orga-nizadinho, e que o mundo é
muito mais generoso do que ele poderia pedir. A Segunda Guerra Mundial
ocorreu há menos de setenta anos. O mundo ruiu, foram cinquenta milhões
de mortos e barbárie para tudo que é lado; tudo destruído, a esperança em
um saco... Mas está tudo de pé de novo.

Ao olhar o mundo e dizer que ele não é tão ruim, cria-se outra dissonância:
este mundo não parece ser tão ruim, mas, ainda assim, as pessoas não sabem
o que estão fazendo aqui.

155

A IMPERATRIZ

Caindo na real

Mas a anestesia de um mundo gourmetizado não dura muito tempo. Uma


pessoa que vive de buscar prazer e conforto e de repelir dor e sofrimento é
presa fácil para as frustrações. Eis que o rapaz — que já não é mais tão
jovem assim —, conquistando seu dinheirinho, decide curtir as férias de
verão nas praias da Indonésia. Se a sua narrativa vital for encontrar prazer e
repelir incômodos, ele será acometido pelo fenômeno que atinge a classe
média em geral, qual seja: suas viagens serão um porre.

Mesmo que ele se hospede em um hotel 5 estrelas, não terá ali o aconchego
de um lar. E o hotel provavelmente estará em manutenção (porque eles
sempre estão). A água do chuveiro não estará suficientemente quente, a
bagagem será extraviada, a carne não virá no ponto desejado, a comida não
agradará muito, ele brigará com a namorada por causa de uma boba-gem…

Suas férias asiáticas serão um porre, seu dia-a-dia lá será um inferno e, no


entanto, ele precisará voltar ao Brasil fingindo que tudo foi uma maravilha,
porque gastou um dinheirão e esteve em um lugar paradisíaco que muitos
sonham em conhecer.

Ele pode, então, desejar ardentemente ter um carrão, e pode até acabar
arranjando um. Ao cabo de uns meses, porém, já não gostará mais tanto do
veículo. O possante não será tão bom quanto ele pensava que seria, o seguro
será mais caro do que ele imaginava e a franquia, então, será um absurdo.
Ele logo se arrependerá de ter gastado tanto dinheiro.

Isso acontece, porque essa forma de viver e contar a própria história não é
decente, não é digna, e é incapaz de dotar uma vida de sentido, porque é
simplesmente impossível. Viver a vida na base do comer, beber, trepar e
repetir tudo de novo é uma grande enganação que não preenche a vida de
ninguém.

Sempre haverá água gelada no chuveiro, um criado mudo para dar uma
topada com o dedo, um sinal vermelho quando se está atrasado, um extravio
de bagagem com todas as suas

156

compras, uma carne nada barata fora do ponto, uma briga de namorados, um
funcionário de má vontade, uma infecção in-testinal, uma tempestade, uma
multa de trânsito…

Este mundo, por definição, não oferece elementos para que se articule uma
história nessa base simplória. Se o argumento de sua vida for “aproveitar o
que é gostoso”, sua história se frustrará dia após dia. Por essa e outras
razões, não me canso de repetir a máxima: “trabalhe, sirva, seja forte e não
encha o saco”.

Aqueles que são ou tentam ficar fortes fisicamente, por exemplo, sabem que
o processo não é nada gostoso. Não é gostoso ir para a academia, não é
gostoso fazer dieta, não é gostoso gastar dinheiro com suplementação...

Servir também não é gostoso. Servir exige abrir mão da pró-

pria vontade, sofrer um pouquinho (ou muito), gastar tempo, doar-se…


Noutro dia, cheguei à casa da minha irmã e ela tinha acabado de fazer uma
sopinha. Eu estava com fome e ainda passaria algumas horas sem comer por
conta de gravações, en-tão ela me ofereceu o prato. É óbvio que ela também
queria comer a sopa que ela mesma tinha preparado, mas não havia o
suficiente para nós dois. Ainda assim, ela generosamente me cedeu a sopa e
procurou outra coisa para comer. Essa atitude tão simples aponta para outros
valores mais altos do que a mera busca por prazer.

A maior parte dos conflitos domésticos acontece por causa de coisas tão
pequenas como uma maldita sopa da qual não se quer abrir mão. É o marido
que quer o ar-condicionado a 21°C

enquanto a mulher o quer a 24°C, mas só um dos dois terá a temperatura


desejada; são os irmãos que discutem porque cada um quer assistir a um
programa diferente e só há uma T.V.

disponível; é o homem que quer dormir enquanto a mulher quer conversar...

Quase todas as brigas familiares e conflitos domésticos surgem pela escolha


de um eixo narrativo impossível de se viver.

Todo o mundo quer o prazer e o conforto para si e não está disposto a abrir
mão de nada, mas é impossível conseguir uma vida absolutamente privada
de dor, sofrimento e frustração.

157

A IMPERATRIZ

É por isso que hoje existem uns estabelecimentos malucos que servem, ao
mesmo tempo, pizza, comida japonesa e churrasco.

Esses locais foram pensados para evitar conflitos familiares, porque as


pessoas já não conseguem abrir mão de suas vontades. E, se abrem, o fazem
pensando em cobrar “seus direitos”

na próxima oportunidade: “Podemos comer a pizza que você quer hoje, mas,
na próxima, comeremos o churrasco que quero.”
Ora, minha irmã não me deu a sopa para ter um direito na próxima. Não
haverá próxima, porque eu não cozinho sopa.

Ela deu porque quis; não por educação, mas por generosidade.

Diários, memórias, auto-retratos,

crônicas e autobiografias

Acredito que, agora, você tenha consciência da importância de saber narrar


bem a própria vida. Todo o mundo deveria saber contar sua história, e não há
vaidade ou egocentrismo nisso.

Trata-se, antes, do domínio da autodescrição. Espero que você também já


saiba que não deve escolher como eixo narrativo a busca de prazeres e a fuga
dos sofrimentos.

Mas, afinal, como é que se conta a própria história?

Quando pensa em narrar sua história, aposto que a primeira coisa que vem à
sua cabeça é escrever um diário, mas essa não é a única forma possível. Há
também outras ferramentas que podem ser utilizadas: os auto-retratos, as
memórias, as crônicas e as autobiografias. Todas elas têm em comum o
seguinte: são escritas em primeira pessoa.

Não sei se você alguma vez já prestou alguma prova para ingresso em curso
superior (vestibular ou ENEM), mas, se já, então você sabe que havia uma
regra de ouro para fazer uma redação: jamais deixar escapar um “eu”, um
“eu acho”, um “eu penso” nos textos. A impessoalidade era obrigató-

ria: “pensa-se”, “especula-se”, “convencionou-se”. Qualquer tese, história ou


idéia deveria sair da boca de uma “terceira pessoa”.

158

Seu professor de redação, o sujeito que deveria ter lhe ensinado a contar uma
história, a descrever pessoas, animais, paisagens e cenas, a comunicar-se por
meio de uma carta, provavelmente não lhe ensinou a escrever fábulas,
contos, crônicas, relatos ou diários, mas apenas a escrever em uma única
moda-lidade: o texto dissertativo-argumentativo.

Sinto-lhe informar, porém, que, se você não sabe escrever em primeira


pessoa, você não sabe escrever definitivamente.

Hoje em dia, em tempos de e-mail e WhatsApp, escrever uma carta para


alguém é absolutamente anacrônico. Nem di-

ário se escreve mais, porque este foi substituído pelos pseudo-

-registros no Instagram e no Facebook.

O desejo de manter uma memória (de contar uma história) permanece,


contudo, de modo forte e fecundo, pois é um instinto humano. As redes
sociais, além de se prestarem a outros fins, são registros da história das
pessoas, mas registros fragmentados, muitas vezes desconexos e sem
qualquer fio narrativo. O Facebook permitia textos maiores, mas foi
desbancado pelo Instagram, que tem como foco fotos e vídeos. O Instagram
por vezes permite que os usuários façam ali uma espécie de crônica, onde
contam as coisas que estão acontecendo à medida que elas acontecem; mas
contar como se está vendo as coisas não é contar a sua história.

Há uma série de autores que contam suas próprias histórias sob a forma de
memórias. Já adianto: isso pode ajudar a dar alguma clareza, mas não
funciona com tanta eficácia. Há, além disso, coisas a respeito da memória
que podem ser grandes vilãs em nossa tentativa de instalação em um eixo
narrativo, como, por exemplo, os esquecimentos e as obsessões.

Conforme progredimos na arte de narrar memórias, nos aliviamos um pouco


do peso do esquecimento, porque estamos fazendo um registro, um esforço
de lembrança. Quanto às obsessões, muitas pessoas vivem assim, obcecadas;
seja com algum trauma, seja com alguém que falou alguma coisa ruim a
respeito delas. A vida contada na base de um trauma é a vida de um sujeito
sem memória. Ele não se lembra de que outras coisas também lhe
aconteceram, pois fixou sua memória em um único evento passado: “Fui
abandonado”, “Fui abusada” etc.

159
A IMPERATRIZ

A memória, se isolada, não serve para nada, é quase um troféu. Algumas


pessoas se acham superiores por se lembrarem de coisas de quando eram
bem pequenininhas. Francamente, que diferença faz você se lembrar da cor
da parede da casa da sua avó, de quando você tinha três anos? Só em vidas
vazias, desprovidas de sentido, é que isso parece muita coisa.

É importante fazer um registro de memórias em algum momento da vida,


porque elas serão combustível para nos integrar-mos ao nosso eixo narrativo
— mas só para isso. Isoladamente, memórias servem de muito pouco (isso
para não dizer que não servem de nada).

O auto-retrato é um outro jeito de contar a própria história.

É como que uma foto sua, tirada no dia de hoje. Ele pode ser cômico e/ou
real. Vou lhe dar um exemplo: Graciliano Ramos fez um auto-retrato, a que
chamou “Auto-retrato aos 56 anos”.

Começa-o com informações básicas, como ano e local de nascimento, sua


altura, número do sapato, número do colarinho.

Segue elencando gostos e preferências pessoais: “Não gosta de vizinhos.


Detesta rádio, telefone e campainhas. (...) Odeia a burguesia. Adora crianças.
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida,
Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.”
Acrescenta a isso outras informações e fatos. Finaliza dizendo que espera
morrer com 57 anos.

É cômico, porque, tendo-o escrito aos 56 anos, ele diz esperar “morrer com
57”. E apresenta detalhes completamente desnecessários: colarinho 39,
sapato 41, altura 1,75m... Tudo isso seria muito útil, se lhe quiséssemos dar
um presente, mas dados tais não dizem muito sobre quem é ele. Eu rio toda
vez que leio esse texto, porque é de uma tremenda sutileza cômica.

Nesse auto-retrato, ou ele fala sobre coisas externas (“altura 1,75”, “sapato
n.º 41”, “colarinho n.º 39”, “usa óculos”, “meio calvo”, “só tem cinco ternos
de roupa, estragados”) ou faz peripécias. Diz que, “quando [foi] prefeito”,
“soltava os presos para construírem estradas”. Beleza, mas onde isso se
encaixa? Antes ainda, ele fala: “Sua leitura predileta: a Bíblia”, mas logo em
seguida manda um “É ateu”. As idéias não se concatenam.

160

Seria como dizer: “Sou filho de Deus, mas me masturbo nas horas vagas”,
ou então “Sou filho de Deus e quero servir a boa Igreja, mas gosto de fazer
umas fofoquinhas, afinal ninguém é de ferro”.

Ora, Graciliano, então você soltava presos, mas tentemos ser um pouquinho
mais precisos. Por que raios você os soltava?

Quais pontos de sua história estão integrados, e quais estão desconexos? Não
é à toa que você, aos 56, escreveu que queria morrer aos 57. Até eu desejaria
morrer logo se, a essa idade, não soubesse contar minha história, se tivesse
um auto-retrato fragmentado e sem argumento como esse.

Mas esse é o ponto mais alto a que as pessoas chegam hoje quando se
dispõem a contar sua própria história: a tentativa de um auto-retrato.
Provavelmente é como você começará, e então verá que sua história ainda
está muito fragmentada. Por isso é que eu recomendo, em meus cursos, o
diário de situação

— um diário de auto-retrato, que tende, contudo, a uma certa integração.

Outro modo de contar uma história, não raro escolhido por pessoas
obsessivas, é a crônica, uma narrativa curta, cujos temas são situações e
fatos do cotidiano, muitos dos quais corriqueiros. Há uma crônica genial de
Machado de Assis, na qual ele noticia a morte do sineiro João, que repicava
os sinos da Glória. Faz então, uma breve nota biográfica do falecido: 04 de
novembro de 1897

Ouvi muita vez repicarem, ouvi dobrarem os sinos da Glória, mas estava
longe absolutamente de saber quem era o autor de ambas as falas. Um dia
cheguei a crer que andasse nisso eletri-cidade. Esta força misteriosa há de
acabar por entrar na igreja e já entrou, creio eu, em forma de luz. O gás
também já ali se estabeleceu. A igreja é que vai abrindo a porta às
novidades, desde que a abriu a cantora de sociedade ou de teatro, para dar
aos solos a voz de soprano, quando nós a tínhamos trazida por D. João VI,
sem despir-lhe as calças. Conheci uma dessas vozes, pessoa velha, pálida e
desbarbada; cantando, parecia moça.

161

A IMPERATRIZ

O sineiro da Glória é que não era moço. Era um escravo, doado em 1853
aquela igreja, com a condição de a servir dois anos. Os dois anos acabaram
em 1855, e o escravo ficou livre, mas continuou o ofício. Contem bem os
anos, quarenta e cinco, quase meio século, durante os quais este homem
governou uma torre. A torre era dele, dali regia a paróquia e contemplava o
mundo.

Em vão passavam as gerações, ele não passava. Chamava-se João: Noivos


casavam, ele repicava as bodas; crianças nasciam, ele repicava ao batizado;
pais e mães morriam, ele dobrava aos funerais. Acompanhou a história da
cidade. Veio a febre amarela, o cólera-mórbus, e João dobrando. Os partidos
subiam ou caíam, João dobrava ou repicava, sem saber deles.

Um dia começou a guerra do Paraguai, e durou cinco anos; João repicava e


dobrava, dobrava e repicava pelos mortos e pelas vitórias. Quando se
decretou o ventre livre das escravas, João é que repicou. Quando se fez a
abolição completa, quem repicou foi João. Um dia proclamou-se a
República, João repicou por ela, e repicaria pelo Império, se o Império
tornasse.

Não lhe atribuas inconsistência de opiniões; era o ofício.

João não sabia de mortos nem de vivos; a sua obrigação de 1853 era servir a
Glória, tocando os sinos, e tocar os sinos, para servir a Glória, alegremente
ou tristemente, conforme a ordem. Pode ser até que, na maioria dos casos, só
viesse saber do acontecimento depois do dobre ou do repique.

Pois foi esse homem que morreu esta semana, com oitenta anos de idade. O
menos que lhe podiam dar era um dobre de finados, mas deram-lhe mais; a
Irmandade do Sacramento foi buscá-lo a casa do vigário Molina para a
igreja, rezou-se-lhe um responso e levaram-no para o cemitério, onde nunca
jamais tocará sino de nenhuma espécie; ao menos, que se ouça deste
mundo.18

Machado de Assis conta uma história, e não é qualquer história, mas a de


João, o sineiro da Glória, personagem com quem convivia em seu dia-a-dia.
Morador do Cosme Velho, Machado estava sempre andando pelo Largo do
Machado e ouvindo os sinos da Glória repicarem nas bodas, nos batizados e
nos funerais.

18 ASSIS, Machado de. Crônicas Escolhidas. Seleção, introdução e notas de


John Gledson. São Paulo: Penguim, 2013.

162

Esse é o segundo modo de contar uma história, análogo ao que se vê hoje no


Instagram. Essa rede social serve, para a maior parte das pessoas, como um
caderno onde elas escrevem pequenas memórias e crônicas do dia-a-dia,
com óbvia preponderância de registros fotográficos e em vídeo. Ali, elas
também retratam seu sineiro João: ele é a academia, os livros lidos, a comida
fit, a sobremesa elaborada, o passeio com os amigos, o look do dia, o
penteado... “Estou comendo uma comidinha fit excelente. Vocês deveriam
experimentar, pois é fácil de fazer, não custa muito caro e tem nutrientes. ”
Como os escritores de Instagram não são o Machado, obviamente não se
expressam tão bem como ele; e, além disso, esses breves textos ainda não
chegam a ser um argumento vital: são recortes, impressões, fragmentos.

Não tenho nada contra o Instagram. Ele serve como um exercício, como um
treinamento para o instinto narrativo. Ao escrever posts para o Instagram,
você tenta contar uma história — e as pessoas desorientadas desejam, em
algum grau, conhecê-la.

Já vimos, então, que as memórias, os auto-retratos e as crô-

nicas não são as formas mais adequadas para que você construa seu
argumento vital. Vimos também que um diário ajuda bastante. Mas a melhor
maneira de narrar sua própria história é por meio da autobiografia.

Há, obviamente, autobiografias boas e ruins — muitas delas, aliás, embora


recebam esse nome, não são de fato autobiografias, senão memórias ou
crônicas. O que define uma boa e legítima autobiografia é sua capacidade de
captar o argumento vital do biografado. Ao final da leitura, o leitor terá de
ser capaz de responder às perguntas: “Quem era essa pessoa? Para que
viveu? Em torno de que essa vida se articulou? ”.

Se Napoleão Bonaparte tivesse escrito uma autobiografia e apresentado


como argumento vital sua pretensão de subjugar a Europa e tornar-se
imperador do mundo, teríamos ali uma legítima autobiografia. Todos os atos
dele giraram, de fato, em torno desse argumento. E, bem, ele teve um
argumento de vida.

Quem dirá o contrário?

Se você apresentar como seu argumento vital algo como:

“Serei um sujeito honesto e só falarei a verdade diante do observa-

163

A IMPERATRIZ

dor oniscient e”, eu não poderei pensar senão que você é Santo Agostinho,
pois essa é a autobiografia dele.

Quem já leu as Confissões, há de lembrar que, nesse livro, o bispo de Hipona


conta seus crimes praticados desde o berço.

Sem mentiras, falseamentos ou lavagem de mãos, ele apresenta uma história


estranha, cheia de podres e falhas, mas maravilhosamente articulada. Uma
pessoa que não sabe o que é uma vida poderá julgar que alguns elementos
não cabem ali, mas ela estará errada. A vida dele é realmente aquela, aquele
é seu argumento vital.

São quatro os argumentos possíveis ao homem, e apenas três os decentes que


lhe permitem concluir um dia e ver nele algum sentido. Após viver alguns
anos com um desses três argumentos, você será capaz de dar início a uma
autobiografia.
No início, porém, o máximo que você conseguirá escrever será um diário,
pois verá sentido apenas em um ou outro dia.

Uma autobiografia, por outro lado, só se pode iniciar depois de mil dias
vividos com sentido, quando se tem uma personalidade madura e viva, que
torna possível contar uma história coerente, de quem encontrou seu
argumento vital, de quem atrai, convence, muda a vida dos outros.

Vitimismo: a postura que ferra

com qualquer narrativa

Todo ser humano tem um desejo profundo de dizer “eu”, de viver e contar a
própria história — e não a do vizinho, a da mãe, a do personagem da novela.
Esse desejo não deve ser entendido como uma forma de egoísmo, pois é
legítimo e necessário ao amadurecimento.

Quando uma pessoa não sabe qual seu argumento vital, ela não consegue
dizer “eu”, não vive a própria vida e segue sendo personagem secundário da
vida dos outros. Ela se coloca na periferia de si e da sua existência, quando
deveria estar no centro. E a primeira e óbvia conseqüência disso é passar a
achar que todo o mundo lhe deve tudo.

164

Eis o diagnóstico da nossa geração: ela se sente injustiçada e vitimizada.


Vivemos em um mundo no qual impera o discurso vitimista. Vá a uma
universidade, seja ela pública ou particular: todos ali acham que o mundo
inteiro lhes deve tudo. O grande movimento das minorias, inclusive, também
se baseia na cren-

ça de que o Estado e a sociedade lhes devem tudo. Que tipo de loucura é


essa?

Sempre que transferimos a culpa para o outro — para os pais, para o


professor, para o Estado, para a sociedade, para Deus, para o mau tempo,
para o calor — comportamo-nos praticamente como a criança que chuta a
porta e exclama:
“Porta boba! ”. E, o que é pior, abrimos mão da única potência que temos
neste mundo, que é a personalidade.

Sei que é muito mais confortável colocar a culpa no outro, dizendo coisas
como “não nasci em berço esplêndido”, “meus pais não me davam atenção”,
“estudei em escola pública”, “meu professor é um carrasco”, “os cuidados
da casa e com os filhos não me permitem cuidar de mim mesma”, mas essa
maneira de ver as coisas dá-

-nos somente um breve conforto psicológico. Para amadurecer, é preciso


abandonar o vitimismo, assumir as próprias culpas e fracassos e tomar as
rédeas da própria vida.

Olhe para sua história. Se você reclama o tempo todo, se sente que o mundo
lhe deve tudo o tempo todo, se acha que as coisas que lhe acontecem são
injustiças, se espera que o Estado, a Prefeitura, seu pai ou seu patrão lhe
resolvam todos os problemas, então você não tem um argumento vital.

Muitas das pessoas que procuram psicólogos, psiquiatras, con-selheiros,


sacerdotes e pastores, chegam até eles com a mesma reclamação: “Não sei o
que fiz da minha vida. Perdi o controle, não sei mais o que estou fazendo.
Não vejo sentido em nada. ” Quando per-guntada sobre o que está
acontecendo concretamente, a maioria responde com uma narrativa
predominantemente vitimista — e o faz exatamente porque não tem um
argumento vital.

É preciso, portanto, abandonar essa narrativa de vítima. De que adianta


reclamar e culpar os outros?

165

A IMPERATRIZ

Se não tivermos a responsabilidade com a nossa história, se não refletirmos


profundamente sobre a maneira como estamos contando as coisas que nos
acontecem, e se não tratarmos de encontrar nosso eixo narrativo em primeira
pessoa, abando-naremos a nossa história. E assim fazendo, seremos sempre
infelizes e fracos. Ninguém poderá contar conosco, pois não se pode contar
com alguém que tem pena de si o tempo todo.
Enquanto continuarmos contando a nossa história de modo vitimista,
continuaremos a nos sentir à margem da ação humana, à margem da
conversa dos adultos. Em suma, seremos uns verdadeiros fracotes. É isso o
que você quer para si? É isso o que você quer para seus pacientes e seus
entes queridos?

As quatro narrativas

possíveis ao ser humano

Novamente o tamanho do mundo

Para entendermos o enquadramento das quatro narrativas possíveis,


voltaremos a um assunto do qual já tratei anteriormente: o tamanho deste
mundo no qual vivemos.

Muita gente entende este mundo como sendo meramente material. Talvez
você seja uma dessas pessoas — ou conheça algumas dezenas delas. Elas
pensam nas situações comuns de seu cotidiano e enxergam ali apenas a
materialidade das coisas.

“Quando vou almoçar, coloco comida no prato, pego os talheres, corto a


carne e como. Aquilo é comida, é matéria. ” Tudo bem. Isso é uma parte da
realidade. Mas será que a realidade se limita a isso?

Não podemos ser triviais e vulgares quanto ao tamanho do mundo, porque


estamos diante de vidas. Atendemos pessoas em consultório, lidamos com
nossos amigos, com nossos filhos, com nossos cônjuges, com nossos pares,
com a nossa própria vida.

Imagine que tenho um charuto em minhas mãos agora. E

que estou prestes a acendê-lo com um isqueiro, mas isso ainda

166

não aconteceu. O charuto ainda não está queimado e o isqueiro nem sequer
está com a chama acesa.
Analisemos com calma essa operação.

Ao olhar para o isqueiro, capto, pelo sentido externo da vi-são, a sua


materialidade: seu tamanho, o material de que é feito, sua cor etc., mas,
como este não é o primeiro isqueiro que vejo e utilizo, eu já sei como
isqueiros funcionam, sei que eles têm determinada função. É por conhecer
essa função que, quase automaticamente, pego qualquer isqueiro, aciono-o e
acendo o charuto, sem precisar ficar pensando em cada etapa do processo.
Mesmo que eu veja um isqueiro sem a chama acesa, sei que, se o acionar, a
chama se acenderá. Ora, a presença do isqueiro não é somente sua
materialidade, mas também a função que ele exerce.

Quando quero entrar em algum cômodo, minha mão vai direto à maçaneta
para abrir a porta. A maçaneta não está gi-rando ainda, mas há algo em mim
que me permite olhar para as coisas materiais e captar a essência, a natureza
delas. Como vimos anteriormente, ao tratar da lâmina do Mago, além de sua
“causa material”, uma maçaneta tem também uma “causa final” (serve para
abrir portas), uma “causa eficiente” (quem fez a maçaneta) e uma “causa
formal” (uma essência, algo que a faz ser uma maçaneta e não outra coisa
qualquer).

Um texto genial começa com a seguinte afirmação: o ente e a essência são


aquilo que o intelecto do homem concebe em primeiro lugar19. Não
captamos a materialidade das coisas em primeiro lugar, porque a
materialidade é somente uma informação de que elas estão ali presentes e de
que são algo.

Em outro lugar, São Tomás explica melhor como isso se dá:

“O intelecto humano não adquire imediatamente na primeira apreensão um


conhecimento perfeito da coisa, mas primeiro apreende algo dela, por
exemplo, a quididade (ou essência) da própria coisa, que é o objeto primeiro
e próprio do intelecto; 19 AQUINO, Santo Tomás de. O ente e a essência.
Tradução de Mário Santiago de Carvalho. Covilhã: LusoSofia, 2008.
(Segundo o doutor angélico, Avicena teria dito o mesmo no início da
Metafísica.)

167
A IMPERATRIZ

depois intelige as propriedades, os acidentes e as referências que


acompanham a essência da coisa.”20

Pense em qualquer coisa material — um livro, um copo, um celular, um


isqueiro, uma mesa, uma parede. O que primeiro captamos dessas coisas é
sua essência, quer tenhamos consci-

ência disso ou não.21

O professor Olavo de Carvalho explica isso magistralmente quando fala de


um conceito seu chamado “círculo de latência”.

Círculo de latência é o conjunto de possibilidades de um ente.

Um pássaro não é apenas um bichinho alado dotado de bico e coberto de


penas. Um pássaro é também as suas possibilidades: ele pode voar, pode se
reproduzir, pode cantar, pode pousar em um galho de árvore, pode se banhar
nas águas de um riacho; mas não pode latir, parir um esquilo ou escrever um
livro.

Se você está andando no meio do mato e vê uma cobra-coral logo à frente,


seu primeiro movimento é afastar-se, não é mesmo? Se a cobra fosse apenas
um pedaço de carne coberto de escamas, não haveria razão para você se
afastar. A coral é, portanto, aquele animal colorido rastejando no meio do
mato; mas é também a possibilidade de lhe picar e inocular uma 20
AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica, Questão 85, Artigo 5.

21 Então quer dizer que quando vejo, por exemplo, um poste na rua, eu
imediatamente reconheço sua essência (ou quididade) e guardo esse conceito
geral e abstrato em uma realidade paralela, em um mundo das idéias? Não!
Quando reconhecemos a essência (ou quididade) de uma coisa material, o
que apreendemos não é um conceito geral que não tem correspondência
alguma na realidade sensível. Se assim fosse, nós teríamos uma dificuldade
tremenda para abstrair o universal da matéria individual, para reconhecer
que aquela longa coluna de concreto é um poste e compartilha com outros
postes algumas características e possibilidades. Na realidade, não existe uma
essência separada das circunstâncias concretas.
Ao ver um cachorro na rua, não abstraio dali uma mera idéia geral de
cachorro, separada da realidade concreta e individual; o que acontece é que
eu percebo uma “es-sência” (nesse caso, uma cachorridade) naquele ente
concreto e particular. Posso apontar para o animalzinho e dizer a meu filho:
“Veja, filho, isto é um cachorro. ” Ao fazê-lo, estarei dizendo que esse
cachorrinho em particular compartilha com todos os outros cachorros uma
série de possibilidades; que ele tem uma “essência” que não é apenas uma
fórmula lógica, mas uma fórmula que faz parte da própria existência daquele
cão em particular — e de todos os outros cães; e que ele é o que é, e não é
uma outra coisa (ou seja, não é um elefante, nem uma espada, nem um bicho
de pelúcia).

168

peçonha neurotóxica que poderá levá-lo à morte em poucas horas. Se não


fosse isso, não seria uma cobra-coral.

Em suma, tudo quanto é, é aquela presença material imediata somada a tudo


aquilo que lhe é possível. Aquilo que é material é mais do que material. Um
copo, além de sua presença física, é também a presença de sua função — e é
por isso que podemos utilizá-lo para beber. Se o copo não tivesse essa fun-

ção, então ele não seria um copo, mas outra coisa.

A realidade não pode ser apenas material; ela é tudo quanto você está vendo
que é, e tudo quanto poderia ser.

Como não contar a sua história:

a narrativa súdrica

Mas voltemos à sua história. Se você pretende contá-la, precisa pensar no


cenário no qual se desenvolverá a narrativa. Se não conhecer os cenários
possíveis, perderá de vista as várias vidas que lhe são possíveis.

Para descobrir qual seu argumento vital, qual sua vocação neste mundo, é
fundamental conhecer os cenários possíveis para a sua história. De que
cenários estou falando? Você logo verá.
Seu argumento vital será escrito em algum lugar, que é onde sua história se
desenrolará. Você quer que ela aconteça no mundo material ou no mundo de
significados espirituais?

Pensemos em quatro cenários possíveis. No esquema abaixo, cada cenário é


representado por um dos quadrantes separados entre si por dois eixos
perpendiculares, em forma de cruz.

O eixo vertical representa o mundo (material ou espiritual) e o eixo


horizontal, o tipo de olhar que a ele lançamos (objetivo ou subjetivo).

Uma vida que tem como cenário o quadrante inferior esquerdo, ou seja, o
quadrante do mundo material e do olhar subjetivo, é a vida daquele primeiro
eixo narrativo imoral e indigno de que já falei. Para a pessoa que nele vive, o
mundo não

169

A IMPERATRIZ

tem um valor objetivo, só importa como o mundo lhe afeta.

Todos os desejos que surgem quando você escolhe viver nesse quadrante
resumem-se a evitar o sofrimento e procurar o prazer.

Isso acontece porque, para esse sujeito, a consciência do mundo material, em


si, não é nada; é algo sempre em referência a ele, é como aquilo o está
afetando. E o mundo material não tem solidez nem estabilidade, então tudo
sempre vai afetá-lo de modo diferente, a depender de um monte de fatores,
de modo que construir um ambiente estável para desenvolver sua história se
torna impossível.

Farei uma analogia com as castas hindus que, embora re-presentem uma
organização da sociedade indiana, podem ser também compreendidas como
possibilidades humanas, que variam conforme as motivações centrais da
vida de cada um.

Se as motivações centrais de um sujeito são o prazer, a diversão e a auto


satisfação, podemos dizer que ele é um sudra. Os sudras são massa de
manobra, estão sempre acuados, com medo e infelizes, deixando-se afetar
pelo mundo.

Função

Presença

Fundo Espiritual

Olhar

Olhar

objetivo

subjetivo
Mundo material
170

Mas não façamos confusão: não é que os prazeres e a satisfação pessoal


sejam coisas execráveis e o mundo material seja ruim em si mesmo. O
problema surge quando eles se tornam a razão da vida de alguém, e o que
vemos hoje é uma maioria de pessoas cujas motivações principais são essas.
Uma maioria de sudras, entre ricos e pobres, letrados e iletrados, jovens e
velhos.

O eixo narrativo súdrico é o único indigno, pois o argumento da vida de um


sudra é evitar a dor e encontrar o prazer neste mundo. E com “prazer” me
refiro a uma série de coisas, dentre as quais: querer que as pessoas falem
bem de si, querer comer coisas gostosas, querer dormir em boas camas,
querer ter sempre uma pessoa cheirosa ao seu lado... Como já vimos, os
prazeres não nos dão senão satisfações momentâneas —

eles não trazem felicidade —, e não há vida que escape completamente à


dor e ao sofrimento. Logo, a aspiração do sudra é irrealizável e ele jamais
alcançará a felicidade.

Se você se identificou como um sudra, não se desespere.

Não é difícil sair desse quadrante, e o ajuste pode ser feito em um dia. Basta
reconhecer que seus objetivos principais são indignos de um homem e
decidir contar uma história diferente.

Você é um ser humano, dotado de intelecto, e portanto plenamente capaz de


deixar para trás a vida súdrica. Dar um pouco de atenção a isso que expus
aqui pode ser o suficiente para entender que a “vida” centrada nos prazeres
não é de fato uma vida, mas um conjunto de reações orgânicas.

A narrativa dos vaixás

É possível, porém, que uma pessoa goste dos prazeres deste mundo, da boa
comida, de uma casa bacana, de carrões, e que veja isso a que chamei de
“mundo espiritual” como uma coisa muito distante, tudo isso sem, contudo,
levar uma vida indigna. É o caso daqueles que têm como cenário para suas
narrativas de vida o quadrante inferior esquerdo, o do

171

A IMPERATRIZ

mundo material sob um olhar objetivo. Nesse caso, trata-se de uma vida
decente e digna, uma vez que o indivíduo olha para as coisas deste mundo
objetivamente, com consciência de que elas têm valor em si mesmas e não
na medida em que o afetam.

O desejo do sujeito que vive essa narrativa é o de prosperidade. Ele deseja


ter sucesso, riquezas, poder, ser eficiente, adquirir muitas das coisas
possíveis deste mundo, mas não para mera satisfação pessoal. Seu objetivo
é colocá-las também à disposição dos outros, sua finalidade é servir.

Este segundo eixo narrativo é o eixo dos serviçais, dos vaixás. Com
serviçais não me refiro a profissões específicas como garçom, doméstica,
engraxate ou camareira. E com vaixás não me refiro à casta dos
comerciantes — lembre-se de que estou fazendo uma analogia com as
castas hindus.

Refiro-me, antes, a quem quer que tenha como motivação principal de vida
a prosperidade e dedique-se a servir os outros e ser-lhes útil de alguma
forma.

Se você olha para o mundo material objetivamente, se está neste que é o


eixo narrativo vaixá, só há um tipo de coisa a ser feita. Comece por
aprender a ser útil. Se você é um arquiteto, organize a disposição
arquitetônica dos projetos que faz; se é um médico, cuide de seus pacientes;
se é mãe de família, cuide da casa e sirva sua família.

Se você está “colado” a este mundo, precisa aprender a fazer alguma coisa
direito. E não algo que lhe sirva apenas para satisfação pessoal, mas que
faça bem para outras pessoas. Só então é que a estabilidade deste mundo
começará a aparecer diante de seus olhos, e só então será possível
completar um dia — pois o serviço tem um valor em si mesmo.

Todo vaixá deve se perguntar constantemente: “Como vou servir as pessoas


neste mundo? ” Ao final de cada dia, se tiver conseguido servir alguém com
o seu trabalho, com o seu amor, com o seu olhar, com o seu ouvido, com o
seu ofício ou com o seu engenho, ele poderá dizer (e dirá): “Tive um dia
completo. Meu dia fez sentido. ”

172

Função

Presença

Fundo Espiritual

Olhar

Olhar

objetivo
subjetivo
VAIXÁS

SUDRAS
Mundo material
Se, ao final do dia, ele não tiver conseguido servir ninguém, ainda assim
aquele dia terá feito sentido, porque o vaixá sabe que está vivendo uma
história possível. Ao final do dia, ele ao menos terá sobre o que falar, seja
de um sucesso, seja de uma tragédia. Refletindo sobre as experiências bem
ou mal sucedi-das, terá meios para operar melhor no dia seguinte.

O problema de viver uma vida apegada ao mundo material é que você pode
confundi-la com a vida de um bicho. Pode pensar: “Vou expandir território,
fazer um ninho e cuidar dos filhotes. ”

Isso é o que ursos e cães fazem.

“O sentido da minha vida é cuidar da minha família”, dizem alguns. Certo,


mas uma abelha também cuida da sua família.

Ao final da sua vida, você poderá fazer a terrível constatação de que viveu
como uma abelha, embora seja um ser humano.

(E, ainda assim, esse apetite meio animalesco já é melhor do que o do


sudra.)

Se, portanto, você vive no quadrante do olhar objetivo e do mundo material,


poderá tender a buscar as mesmas coisas que um animal (expandir
território, proteger a família e conseguir alimento para si e para os seus, ou
seja, a prosperidade de seu

173

A IMPERATRIZ

clã ou família). Mas é possível acrescentar algo de propriamente humano ao


seu serviço: orientá-lo ao desenvolvimento da pessoalidade dos outros. Para
tanto, é preciso ter sempre em conta que você é um eu e que está lidando
com outras pessoas que, por sua vez, também têm seus eus.
A mãe que acha que está servindo muito bem um filho mi-mando-o, está, na
verdade, prestando-lhe um serviço animalesco. Está transformando-o em
um gatinho. Se sua ação ao servir o filho não é orientada para que ele
consiga falar “eu”, ela não está fazendo um serviço humano, mas um
serviço animal.

Animais também servem uns aos outros, mas com um serviço que não
orienta o outro a dizer “eu”.

Quando, por exemplo, recebi a sopa de minha irmã, eu me senti amado e


cuidado. Ela prestou um serviço orientado a um tipo de pessoalização — fui
conquistado com amor. Eis um ato de serviço claramente humano.

As narrativas xátria e brâmane

Há, também, um outro cenário, no qual o serviço já é fronteiro entre este


mundo e o outro. Os olhos estão postos não só na realidade deste mundo,
mas na finalidade dele. Vê-se valor nas coisas que se faz, e esse valor é
subjetivo; ou seja, há um desejo de ser justo, nobre, leal, honrado. Trata-se
de uma subjetivida-de espiritual e, por isso, estável, não volúvel como a
subjetivi-dade do materialista sudra.

Certa vez, quando eu era adolescente, em um dia alegre, entrei em um


ônibus lotado, com muita gente em pé, e senti um delicioso cheiro de tutti-
frutti. Lembro-me de ter pensado: “Nossa, que cheiro bom de tutti-frutti! ”
Como ainda avistei um assento vazio, pensei: “Este dia está tão bom, que
achei um lugar vazio em um ônibus cheio cheirando a tutti-

-frutti! ”. Quando fui me sentar na cadeira, vi que ela estava toda vomitada.
Imediatamente aquele aroma de tutti-frutti foi se convertendo em um odor
azedo de vômito, e percebi

174

que esse era o cheiro que eu estava sentindo desde o início.

Então tive ânsia.


O que eu quis dizer com essa história é que, no seu mundo afetivo, as coisas
todas mudam. Nem sempre o cheiro de tutti-

-frutti é realmente de tutti-frutti.

O mundo material parece mudar conforme a nossa sensibilidade. Era


bonito, fica feio; era cheiroso, fica fedido; era confortável, fica
desconfortável. Já reparou que, na hora de escolher seu sofá na loja, eles
são todos excelentes? É porque, tomado pela euforia de montar uma casa
nova, você acaba confundindo o bonito com o confortável; mas, depois de
chegar em casa e ter gastado dinheiro, percebe que o modelo escolhido não
era tão gostoso assim.

Já no mundo espiritual, as coisas são estáveis. Estamos falando de valores


mais duradouros e menos suscetíveis a os-cilações, tais como lealdade,
honestidade, nobreza e justiça.

Há quem deseje articular sua vida em torno de valores tais

— esse também é um argumento. A vida de um sujeito que está nesse


quadrante se baseia em desenvolver seu argumento dentro da dignidade. O
sujeito é digno, pois encontrou um princípio que o move. É o quadrante no
qual, nas civilizações tradicionais, se desenvolvia a nobreza.

Um rapaz do medievo poderia pensar: “Não me basta ter bens aqui. Isso
não faz sentido. Quero ser um cavaleiro, um nobre.” Ele então se
inscreveria na escola de cavalaria, onde seria testado e treinado por cerca de
dez anos, carregando armaduras e espadas para um cavaleiro. Ao cabo
desse período, se tornaria ele próprio um cavaleiro e iria para a guerra,
sacrificando-se pelos demais. Depois de dez anos desenvolvendo seu
argumento vital, ele teria uma autobiografia: “O objetivo da minha vida é
ser leal, nobre, justo e digno. ”

Como o vaixá, o homem que vive no quadrante subjetivo imaterial também


presta um serviço, mas não somente por sua família, senão por uma família
maior: a sua comunidade, a sua pátria. E o serviço que presta é diferente.
Neste quadrante, não importa o que aconteça, pode-se dizer: “Yo sé quién
soy”. Em tese, seria esse o argumento vital dos bombeiros e policiais:
oferecer a própria vida em prol dos outros (na maioria das ve-

175

A IMPERATRIZ

zes, completos desconhecidos). Contudo, hoje podemos nos deparar com


muitos policiais e bombeiros sudras ou xátrias, pois nas sociedades atuais
tudo anda misturado.

A realidade dos vaixás está muito distante daquela dos sudras. Se passar de
sudra a vaixá não exige muito mais do que um movimento da vontade,
passar de sudra ou vaixá a xátria é um salto tremendo — é saltar de um
quadrante material para um imaterial, transcendente. Está pensando em dar
a vida por alguém agora? Bem, se quiser tentar, mande brasa, mas se você
não estiver, por exemplo, na Academia das Agulhas Negras ou no Corpo de
Bombeiros, não tente fazê-lo. (Estou falando sério. Essa é uma
recomendação clínica.)

Um xátria faz o que faz mesmo que isso lhe traga muitos prejuízos. Ele leva
uma facada, perde o sossego, aceita que todos falem mal de si, mas
continua cumprindo seu dever transcendente, vivendo por um ideal elevado.

Quem não consegue dar esmola ou fazer jejum, por exemplo, jamais poderá
estar nesse quadrante. O xátria faz jejum e dá esmola tranqüilamente,
porque entende que essa é a pauta de sua vida. Um sudra, porém, vê nessas
práticas somente sofrimento e dor (deixar de comer e esvaziar o bolso são,
para ele, coisas repulsivas). O serviço, a doação, a abstinência e o jejum
doem, e é por isso que o sudra os evita.

Se você olha para o pedinte na rua e pensa imediatamente

“Não dou esmola nem se me obrigarem”, então você é necessariamente um


sudra, alguém desprovido de argumento vital. Não importam as desculpas
que arranje para se justificar (“O sujeito vai fumar maconha com o dinheiro
que eu lhe der”, “Ele está contando uma mentira para conseguir o que
quer”, “Ele vai gastar tudo em cachaça”). Meu amigo ou amiga, não é por
isso que você não dá esmola! Você não o faz simplesmente porque é
mesquinho(a).

E a mesquinhez será sempre um espinho que o(a) impedirá de sentir-se em


paz e de ter boas relações com os outros.

Para o vaixá, a esmola também pode representar um problema, pois


significa dar a um estranho um dinheiro que poderia servir para alimentar
seus filhos ou proporcionar mais conforto, prazer ou segurança para os seus.

176

Cabe lembrar que, embora aqueles que não praticam a esmola e o jejum
com certeza não podem estar nos quadrantes superiores, nem todos os que
dão esmola e fazem jejum estão nesses quadrantes. Ser um xátria também
não significa abrir mão de quaisquer prazeres e confortos deste mundo ou
deixar absolutamente de buscar o bem da própria família ou clã. O

que diferencia o xátria dos demais é ter como motivação principal, como
argumento vital, esses ideais elevados que mencionei.

Se você quer saber o que é ser um xátria, leia uma obra como a “Ilíada” de
Homero, que está repleta deles: Diomedes, Ulisses, Aquiles, Ájax, Heitor e
tantos outros heróis homéricos são xátrias.

A “Ilíada” nos mostra ainda como um xátria pode estar cer-cado de bens
materiais, privilégios e regalias, embora não seja isso o que o define. Os
lícios Glauco e Sarpédon, por exemplo, têm clara consciência de que, se
têm os privilégios que têm, devem se empenhar com valentia e dignidade
no cumprimento de sua obrigação: “Por que somos ambos honrados na
Lícia com os primeiros lugares nas festas, assados e vinho sempre
abundante, e os do povo nos vêem como a deuses eternos? (...) Por isso
tudo nos cumpre ocupar na vanguarda dos Lícios o posto de honra e estar
sempre onde a luta exigir mais esforço, para que possa dizer qualquer Lício
de forte armadura: ‘(...) É bem grande o vigor que demonstram, quando na
frente dos nossos guerreiros o imigo acometem.’”22
Em outro momento da epopéia, quando alguns soldados gregos, antes
mesmo de o combate ter terminado, começam a pilhar os cadáveres dos
adversários derrotados, o sábio ancião Nestor brada que parem de o fazer,
pois, para o guerreiro, o dever deve vir em primeiro lugar: “Que ninguém se
retarde pilhando os espólios para levar às naus o quanto possa. Vamos,
primeiro, liquidar o inimigo. Depois, com calma, despiremos, no plaino, os
cadáveres jacentes.”23

22 HOMERO, Ilíada, XII, 310-321, tradução de Carlos Alberto Nunes.

23 HOMERO, Ilíada, VI, 66-71, tradução de Carlos Alberto Nunes.

177

A IMPERATRIZ

Este tipo de homem, regido por valores como a nobreza, a dignidade, a


justiça e a bravura, é o mais raro nos dias de hoje, uma vez que a cultura, a
educação e até mesmo as pregações espirituais tiraram tais valores do alto
da hierarquia, rebaixando-os e colocando outros em seu lugar. Os xátrias
são hoje, por incrível que pareça, um tipo ainda mais incomum e
desconhecido do que aquele do quadrante superior esquerdo, o objetivo
imaterial.

Função

Presença
Fundo Espiritual
BRÂMANES

XÁTRIAS

Olhar

Olhar

objetivo
subjetivo
VAIXÁS

SUDRAS
Mundo material
No quadrante superior esquerdo encontram-se aquelas pessoas que
entendem que existem a nobreza, a verdade, a lealdade e a justiça em si
mesmas, embora não as tomem como motiva-

ções centrais de suas vidas. O argumento da vida desses sujeitos é entender


as coisas. Eles desejam conhecer objetivamente a Beleza, a Verdade e a
Bondade. Eles têm vocação intelectual ou sacerdotal. Dedicam-se, pois, a
lançar um olhar objetivo para o mundo espiritual. Na analogia com as castas
hindus, seria este o eixo narrativo dos brâmanes.

178

O argumento vital do brâmane é entender e explicar. Se não for possível


explicar, ao menos ele terá de entender, pois tem uma inquietação que o
leva a buscar sempre o que é belo, bom e verdadeiro e a não ficar satisfeito
enquanto não o conhece.

A não-narrativa dos párias

Existe, ainda, uma quinta possibilidade. É a dos coitadinhos, a dos que não
têm sequer um eixo narrativo; são aqueles a quem chamamos párias. Eles
não são os narradores de suas vidas, nem sabem de onde vem a própria
história.

Aonde quer que chegue um pária, ele queimará tudo; é um lumpen. Mal
podemos dizer que são loucos — embora os loucos graves, que têm uma
lesão na citoarquitetura cerebral, sejam todos párias.

O pária é aquele sujeito de quem você precisa cuidar. Não dá para levar em
consideração o que ele diz e tudo o que ele faz é uma bagunça sem fim,
porque não tem nada na cabeça. Sequer se pode dizer que ele faz as coisas
por prazer ou conforto.

O Brasil é um lugar onde o número de párias está muito alto. A taxa de


pessoas que vivem de benefícios da previdência social, afastadas por laudos
de doença mental, é muito alta. São brasileiros que não conseguem tomar
conta da própria vida, que vivem de pensão e precisam de alguém que lhes
preste cuidado, pois onde chegam, viram tudo do avesso.

Em uma sociedade normal, organizada, os párias estão na periferia, sendo


cuidados ou pelo Estado, ou pelas igrejas, ou pelos homens e mulheres
caridosos e de boa vontade. Mendigos, em geral, são párias, já que estão à
margem da narrativa vital possí-

vel. Não são como os sudras, cuja vida pode até ser narrada com base na
busca pelo prazer (encontrar a felicidade sendo sudra é que é impossível).
O pária de fato não tem narrativa, não entende o que está acontecendo, a
vida dele é uma loucura.

No nosso tempo, porém, há muitos párias que, curiosamente, são tomados


como modelos e que ocupam cadeiras no parlamento.

179

A IMPERATRIZ

Quantos deputados e senadores não há que, tendo sido eleitos por uma base,
ao tomar posse do cargo, começam a fazer tudo ao contrário do que haviam
prometido, porque em realidade não têm a mínima idéia do que estão
fazendo? Ao olhar para a história de sujeitos como esses, vemos que nunca
deram certo em nada, destruíram tudo. Párias têm uma inconsistência
biográfica do início ao fim. Uma sociedade organizada tradicional daria a
essa gente os cuidados de que precisam, mas, como nossa sociedade é uma
loucura, pessoas como Alexandre Frota ocupam cadeiras no parlamento.

Um dia descreverão a história do nosso tempo com um tí-

tulo como “Os párias ilustres” — porque temos vários deles hoje. É uma
loucura, uma brutal falta de eixo central. Está tudo desorganizado. As
pessoas de boa vontade, os pais de família, os professores, aqueles que
levam uma vida normal, como não têm esse conceito claro em mente, não
entendem que a maioria dos sujeitos que aparecem na T.V. não deveriam
nem ser ouvidos, porque suas biografias não têm pé nem cabeça. Eles não
têm de ser levados a sério, têm de ser cuidados.

Hoje temos párias dentro de casa, no Senado, na Câmara, nas empresas...


Isso é a total inversão da normalidade, de modo que nossa visão começa a
enlouquecer. Passamos a tomar por normais certos tipos humanos (que
existem e sempre existirão) que só deveríamos conhecer por contraste e
jamais deveríamos querer imitá-los.

Certa vez uma pessoa me disse que queria ter o dinheiro do Michael
Jackson. Então eu lhe perguntei se ela queria ser o Michael Jackson. Veja
bem, não estou dizendo que o Michael Jackson era um pária, mas a vida
dele foi uma vida de solidão, de abandono, de exploração, uma tristeza do
início ao fim.

Eu sei que ele tem fama, que todo o mundo o conhece — talvez tenha sido
o artista mais famoso do mundo —, que ele foi um sucesso do início ao fim
da vida, que dançava e cantava incrivelmente bem e que lançou vários hits
de sucesso.

Porém, não se pode olhar para um aspecto isoladamente e dizer “Eu queria
somente ter o dinheiro do Michael Jackson. ”

180

Não devemos querer ter o dinheiro dele, porque não podemos querer ser
como ele.

Não se confunda: nada na vida de um pária é desejável. Ele pode ter


dinheiro e ser mais bonito que você, mas — pelo amor de Deus! — pare de
admirar a biografia de um pária — do contrário, por desejar o que é
periférico nele, você acabará se

“transformando” nele. Lembre-se daquele que é um dos versos mais altos


de toda a poética mundial: “Transforma-se o amador na cousa amada”, de
Luís de Camões. Aquele que ama se transforma naquilo que ama. Se você
ama a roupa, a posição social, a aparência de um pária, você se
“transformará”, de certa forma, nesse pária.
A biografia desses atores hollywoodianos, ou mesmo brasileiros, é uma das
coisas mais tristes do mundo. Abandono, traição, abusos, tentativas de
suicídio, overdose, tristezas sem fim. Isso não é um estereótipo, é o que é —
e é muito grave.

Ainda assim, eles estão expostos o tempo todo, e são modelos para a maior
parte da população.

Outro exemplo é o de jogadores de futebol. Não conheço tantos assim, mas


sei que muitos deles têm uma vida triste e solitária. Formam uma família
atrás da outra, não pagam pensão para os filhos que têm... Isso é muito
comum nesse meio.

Imagine: o menino pobre tinha uma vida normal e, de repente, mergulha em


rios de dinheiro, tem milhares de mulheres a seus pés, viaja para Tóquio,
para Paris, sua imagem está nos co-merciais de T.V., nas revistas, nos
outdoors... Parece tudo muito legal, mas ele acaba perdendo o centro, seus
valores e ideais; afinal, uma bela mulher, um bom prato de comida, a fama e
os aplausos estão bem ao alcance dos olhos, ao passo que os valores e os
ideais estão mais longe, mais acima. Abandonar estes por aqueles é muito
fácil.

Jogadores têm dinheiro e fama, e você de fato se “transforma” um pouco


neles ao desejar suas vidas, mas se transforma apenas na parte ruim. É
possível fazer algumas das coisas que um jogador faz, porque basta fazer; é
possível querer o que ele quer, porque basta querer; mas isso não acontece
com o que

181

A IMPERATRIZ

ele tem. Ninguém consegue dinheiro pela força de sua inveja, então você
terá de trabalhar, porque ele não lhe dará o que é dele. Transforma-se,
então, o amador na coisa amada — mas só na parte ruim da coisa amada.

Você não será milionário como um jogador de futebol por admirar um, nem
ficará famoso como um artista por gostar dele. Você não terá os glúteos da
Anitta só porque os ficou admirando. Já o conjunto de desejos e ideais da
Anitta e de um jogador de futebol, estes, sim, você acabará tendo. Mas é
isso mesmo o que você quer?

Se você é desses que fica acompanhando o Instagram da fulana famosinha o


dia todo, porque quer ser como ela, ter o corpo dela, comprar as roupas
dela, você se transformará naquilo que ela é, mas somente na parte ruim,
sem os bônus que ela tem. Se, por outro lado, você olha para uma pessoa
ideal, excelente, e quer se transformar naquilo que ela é — e não ter aquilo
que ela tem —, então você quer ser, e não ter, e esse é um desejo genuíno e
benéfico.

Parece clichê o que vou dizer, mas é um bom clichê: quando você deseja ter
o que a pessoa tem (materialmente falando), você se transforma naquilo que
ela é (sem ter o que ela tem!), de modo que, idealmente, você deveria olhar
para pessoas que são o que você quer ser, e não que têm o que você quer
ter.

Não é pelo olhar que se conquista o que se quer.

É possível ter

mais de um argumento vital?

Há quem, não tendo ainda clareza quanto ao próprio argumento vital, sinta
que tem dois ou três argumentos dentro de si. Há quem se sinta, por
exemplo, simultaneamente brâmane e xátria. Isso é de fato possível.
Entretanto, é um problema.

Se você tem em si todos os argumentos, provavelmente os tem


desarticulados e, portanto, terá uma vida desequilibrada e inclinada ao
fracasso.

182

Pode ser que seu argumento vital seja conhecer a Beleza e a Verdade e, ao
mesmo tempo, expandir território para fazer ninho e ganhar fama e
notoriedade. Nesse caso, você é um provável artista. Artistas são, de certo
modo, desequilibrados, porque têm em si duas motivações centrais.

O artista é alguém que tenta articular a vida em dois quadrantes. Não tenho
a mínima idéia de como ele consegue fazer isso. O que sei é que, para ter
algum equilíbrio, é preciso escolher um dos argumentos. Ou ele tira da
cabeça essa loucura de

“a minha arte” e vai expandir território, ou esquece o território e vai


encontrar a Verdade das coisas.

O artista tem um segundo problema: ninguém o valoriza, porque,


provavelmente, ele não tem o talento e a genialidade de um Shakespeare ou
de um Villa Lobos, não irá descobrir a verdade de muitas coisas e não será
um grande intelectual nem um gênio da humanidade. Muitos artistas
acreditam que serão os novos gênios da humanidade, que descobrirão tudo
e ainda ficarão ricos e famosos com isso. Mas, na maioria das vezes, não é
o que acontece. Pode até ser que sejam muito bons em suas artes, mas o
reconhecimento e o dinheiro não são conseqüências necessárias.

Raros são aqueles que conseguem desenvolver dois argumentos — e


raríssimos os que desenvolvem três. Buscar fama, dinheiro, conhecimento e
ainda ter disposição para a dignidade e a nobreza é para pouquíssimos
homens, como o rei Salomão. Mas não recomendo a ninguém que comece
pensando na possibilidade de ser um novo rei Salomão. Recomendo, ao
invés, a escolha de um único argumento.

Como saber qual

o meu argumento vital?

Já falei algumas vezes que é preciso escolher seu argumento vital. E muitos
devem estar se perguntando se é de fato possível escolhê-lo, ou se seriam as
circunstâncias ou algo muito maior

183

A IMPERATRIZ
do que nós mesmos o que nos daria esse argumento. Na verdade, não há
como ter certeza absoluta. Descobrir a própria vocação e o próprio
argumento é um processo complexo. Há tanta confusão nesse campo, que
você terá de escolher o que lhe parece fazer mais sentido e tentar viver certo
tempo nele.

Talvez sua primeira escolha seja ter sucesso, expandir território e ter um
ninho. Ser a abelha inferior já é melhor do que ser um sudra: há bastante
dignidade em cuidar da família, do território e servir aos seus — ainda que
com um serviço que não é tão distintamente humano.

Se você escolher esse argumento e desenvolvê-lo por cerca de cinco anos,


terá aprendido a servir. E aprender a servir bem é a base para ascender às
castas superiores, a xátria e a brâmane (a abraçar a vocação nobre ou a
intelectual), pois elas têm um elemento de serviço muito preponderante.
Caso você tenha realmente uma vocação intelectual ou à nobreza, já terá
cumprido os requisitos mais básicos.

Eu acredito que este é o caminho mais seguro. Pois um sudra que julga ter
vocação intelectual não conseguirá nada se começar por buscar as coisas
mais altas. O sujeito que acha que tem vocação intelectual e ainda não é
capaz de comprar as próprias cuecas, de pagar as próprias contas, de
sacrificar seu tempo e gastar seu dinheiro em favor de outra pessoa, não tem
vocação intelectual coisa nenhuma, pois ela está atrelada ao serviço.

Escolha, portanto, um argumento vital que não seja o de um sudra. Uma


vez escolhido, desenvolva uma técnica para saber se você está dentro dele,
desempenhando-o ou não. Faça um diário e, depois de dez anos, arrisque
uma autobiografia.

Com dez anos de diário, você entenderá quais são os sucessos e as tragédias
do seu argumento. Você poderá ter, por exemplo, uma autobiografia com
uma vocação intelectual frustrada, mas estará alegre dentro da sua
frustração, porque você tem um argumento vital e tem uma noção de qual
ele é.

Recapitulando: o mundo não é só esta materialidade. Existe o mundo da


função, e sua história se desenvolve nele. Parta,
184

portanto, do princípio de que você não sabe contar sua história.

Comece com perguntas como: “Quem sou eu? Qual é a minha vida? ”

Fiz questão de dividir os eixos narrativos em quatro quadrantes e mostrar as


diferenças entre eles, porque é muito di-fícil contar a própria vida sem ter
uma noção dos possíveis argumentos vitais. Eu sinceramente me pergunto
como é que psiquiatras, psicólogos, coaches, sacerdotes, diretores
espirituais etc., atendem gente sem ter esses conceitos na cabeça clara e
cristalinamente. Se não há eixo, não há núcleo no atendimento, e a terapia
tende a tornar-se um enxugar de gelo, um tapar de buraco com peneira.

Sem esse conhecimento, uma pessoa com um pouco de talento fará de si, no
máximo, um auto-retrato como o de Graciliano Ramos, repleto de
peripécias e elementos desarticulados.

Uma autobiografia integrada é o ponto em que você deverá chegar no


devido tempo. Se você ainda não tem uma história integrada não é possível
escrevê-la agora.

Por isso, minha recomendação é que você comece escolhen-do um dos três
argumentos dignos e desenvolvendo sua vida dentro dele, pacientemente,
durante cinco anos. Não se afobe para que tudo “dê certo” logo, pois só
quem obtém resultados rápidos são as abelhas e os sudras.

Saiba que, para o ser humano, ”dar certo” é ter a substância da vida
desenvolvida — e a substância da vida humana é a narrativa, que, por sua
vez, precisa de um argumento. E quando você tem um argumento
desenvolvido, você já deu certo, porque articulou tudo dentro de si.

Os cinco

tipos humanos

Vimos anteriormente que há vários argumentos vitais possí-


veis e que cada um se identifica por uma busca distinta: o eixo brâmane
busca sabedoria e conhecimento, o eixo xátria busca honra e glória, o eixo
vaixá busca prosperidade e o eixo sudra

185

A IMPERATRIZ

busca prazer e conforto. Agora introduziremos um novo elemento na


construção da narrativa da própria vida.

Um filme tem uma história, e essa história é encenada por personagens com
características intrínsecas. Assim como os personagens estão em algum dos
quatro eixos narrativos, eles próprios também podem ser de tipos
intrinsicamente diferentes.

Se você, por exemplo, é alguém que quer servir, esse é o seu argumento, a
estrada que você deve percorrer — mas quem será você percorrendo essa
estrada?

Na “Ética a Nicômaco”, Aristóteles nos fornece alguns tipos de qualidades


possíveis, as quais devemos desejar adquirir para progredir.

O crítico literário canadense Northrop Frye escreveu um livro chamado


“Anatomia da Crítica”24, no qual transforma em tipos humanos possíveis
aquilo que Aristóteles fala ao descrever o homem (e como ele pode ser
feliz, o que se deve querer, o que não se deve querer etc.). Abordaremos
cada personagem-

-tipo, e descobriremos como nos converter de um em outro.

O tipo irônico

(e uma pergunta necessária)

O primeiro personagem possível é o tipo irônico. Ele está sempre abaixo da


situação. Ele não é um pária, até porque o pária é uma das narrativas
possíveis (e não um dos personagens possí-
veis, não confundam as duas coisas). O irônico é sempre o mais burro da
roda, aquele que não está entendendo nada.

É um tipo muito presente nos romances de Franz Kafka, por exemplo. O


personagem K., protagonista de “O Processo”, é um tipo irônico: chegam a
sua casa e o prendem, mas ele não sabe por que está sendo preso, não sabe
o que está acontecendo, é um perdido.

24 FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução de Marcus de Martini.

São Paulo: É Realizações, 2014.

186

Preciso, agora, que você reflita sobre a sua posição. A par de sua narrativa
vital, pense nos ambientes que você frequenta (a igreja, o clube, o trabalho,
as casas de seus familiares) e pergunte-se sinceramente: “Estou entendendo
o que está acontecendo com a minha família? Estou à altura das coisas que
estão acontecendo na minha igreja? Estou mesmo habilitado a fazer o que
faço no meu trabalho? ”

As igrejas são alguns dos lugares onde personagens irônicos abundam. A


maior parte dos sujeitos que têm religião não entende nada do que está
acontecendo ali: não sabe o que é religião, não está interessado em saber
quem é Deus, não percebe qual é a autoridade real de seu pastor ou
sacerdote, não se pergunta o porquê de suas práticas religiosas...

Você, que tem uma religião, em que espera se transformar ao cabo de dez
anos?

Se você nunca se fez essa pergunta honestamente, e se não consegue dar


uma resposta honesta a ela, então não sabe o que você está fazendo na sua
religião. Se não sabe o resultado, o efeito, o que esperar, a quem tem de
obedecer, a quem tem de agradecer, não faz idéia do que está fazendo.
Constatá-lo é desesperador, mas necessário.

“Sou bem frequente na minha igreja, inclusive inscrevi meus filhos na


escola bíblica dominical. Vou à igreja todo domingo e toda quarta-feira
para ouvir a Palavra e pregar o evangelho com a minha própria vida. ” O
que deveria acontecer com alguém que se submete a essa rotina ao longo de
dez anos? Você tem isso claro em si? Em que você se transformará com
essa prática? Muitas pessoas simplesmente não sabem responder, porque
não têm noção do que estão fazendo — pertencem ao tipo irônico.

Por outro lado, dificilmente um tipo irônico estará na academia fazendo


musculação. Lá, são mais comuns os personagens dos tipos imitativo baixo
e imitativo elevado. Não há personagens irônicos na academia, porque
todos (quase) sempre sabem o que fazer por lá, sabem no que se
transformarão — e é fá-

cil saber, porque os modelos exemplares (fortes, magros, ágeis etc.) estão
por ali mesmo, transitando pela própria academia.

187

A IMPERATRIZ

Na academia, você geralmente sabe aonde quer chegar, e sabe claramente o


que precisa fazer para chegar lá. Sabendo como desejar seu objetivo, você
pode ordenar sua ação para o conquistar.

Já em outros ambientes, como uma igreja, será preciso um pouco mais de


honestidade. “Italo, vou à Missa todo domingo e participo da Pastoral da
Acolhida na minha paróquia. ” Legal, mas em quem você se transformará
depois de dez anos frequentan-do a igreja?

Uma primeira dificuldade está em que não temos modelos exemplares nas
igrejas, porque o modelo exemplar de uma religião é um santo — e
dificilmente vemos santos andando por aí. Há sim um santo ou outro, mas
não estão presentes na maioria das igrejas — e muitos deles não são sequer
pessoas de destaque.

Acaba, então, que um sem número de pessoas freqüenta as igrejas sem


saber que resultados alcançar nem como alcançá-
-los. Elas pertencem ao tipo irônico e, mais do que fracas, são pessoas
impotentes.

O que fazer para abandonar o tipo irônico e passar a um tipo mais elevado?
Em primeiro lugar, é preciso deixar de ser um idiota. Uma boa receita é ler
sobre algum assunto e acom-panhar alguém que o domine. Pronto! Basta
uma fagulha de luz para iluminar o intelecto e fazer um tipo irônico passar
ao tipo seguinte, o imitativo baixo.

O tipo imitativo baixo

O segundo tipo de personagem possível dentro de uma narrativa é o


imitativo baixo. Ele já compreendeu mais ou menos a situação em que está;
não é, portanto, um completo impotente

— e não o é justamente porque entendeu a situação. Ele só não entende


direito como fazer e como agir, então segue por tentativa e erro. Chama-se
imitativo baixo, porque está abaixo da situa-

ção, embora já entenda como ela funciona.

188

Ainda no nosso exemplo da religião, o tipo imitativo baixo já sabe o que


quer se tornar na religião: um santo. Ele já sabe aonde quer chegar, só não
sabe bem o que fazer para chegar lá.

Em geral, nos ambientes que frequentamos, somos do tipo imitativo baixo.


Suponha que você tenha se casado recentemente. Você se casou porque tem
um ideal na cabeça, um modelo daquilo que quer ser como pai, marido etc.,
Mas como você fará isso acontecer? Ou melhor: como você tem feito i sso
acontecer? Aposto que está indo por tentativa e erro.

No trabalho, não é diferente. A maioria das pessoas reclama do chefe,


quando deveria reclamar de si, porque o fato de saber o que precisa ser feito
não quer dizer que saiba fazê-lo.
A única coisa que faculdade faz por você, genericamente falando, é o elevar
do tipo irônico ao imitativo baixo. Se antes de você entrar no curso de
Engenharia lhe jogassem em um pátio de obras, você não teria idéia do que
fazer, porque não saberia sequer o que é, por exemplo, uma laje protendida
(e, se soubesse, então não saberia como a fazer).

Todo recém-formado sai da faculdade um tanto inseguro, pensando: “Sei do


que se trata, mas não sei muito bem como fazer isso”. Eis um perfeito
exemplo do tipo imitativo baixo, daquele que já tem uma intelecção da
coisa, sabe como ela deveria ser, mas não tem idéia de como fazê-lo na
prática. O recém-formado, portanto, segue tentando (ora errando, ora
acertando) com muito esforço, pois ainda não domina a técnica. Precisa
estar sempre muito concentrado em tudo o que faz, pensando e calculando
cada passo; do contrário, só cometerá erros.

Acontece, porém, que muitas dessas pessoas de tipo imitativo baixo, pelo
simples fato de terem feito uma faculdade e de serem as digníssimas
portadoras de um diproma, julgam estar no mesmo patamar daqueles que,
de fato, têm o domínio de certa arte ou técnica. É assim que o moleque que
leu uns dois ou três livros e assistiu a 60 horas/aula se mete a discutir com o
profissional experiente como se estivesse dialogando com um coleguinha.
Essas pessoas não raro são as que mais desprezam e censuram os outros: o
fracasso lhes sobe à cabeça.

189

A IMPERATRIZ

Vou dar um exemplo que o professor Luiz Gonzaga de Carvalho Neto deu
em uma de suas aulas. Imagine a seguinte situação: você é a pessoa mais
religiosa e mais cristã do mundo e não mente jamais, porque sabe que
mentir é pecado. E você também mora na Alemanha nazista e tem vizinhos
judeus, com quem cresceu, brincou etc., são seus amigos, então você os
escondeu em um quartinho no sótão da sua casa. Eis que um policial nazista
lhe bate à porta e pergunta: “Há judeus nesta residência?”

Você, como um cristão exemplar, como uma pessoa moral, que não mente
nunca porque mentir é pecado e pecado leva ao inferno, o que faria nessa
situação? O policial lhe fez uma pergunta objetiva: você esconde judeus na
sua casa? Sim ou não?

Essa questão não está aberta a discussão e você obviamente falaria: “Não.
Não há judeu nenhum na minha casa. Pode olhar! Você está louco, acha
que vou esconder judeus aqui? Eu sou alemão! ”, e poderia inclusive fazer
um teatro, uma reverência nazista para o policial.

Isso não seria uma mentira, um tipo de relativismo moral.

Não o seria, porque o policial nazista não está realmente lhe perguntando se
você esconde judeus na sua casa. A pergunta do policial nazista é: “Você vai
me ajudar a cooperar com a prisão e o assassinato de judeus inocentes? ”.
Essa é a pergunta que ele de fato lhe fez, então você pode responder “Não.”
sem risco para sua alma.

Isso é o caso concreto, é entender o que de fato está acontecendo, é o que dá


vida àquela realidade bidimensional e chapada do livro que você leu na
faculdade. Mas um imitativo baixo, que se prende à letra da lei e não sabe
aplicá-la aos casos concretos, facilmente censuraria aquele que “mentiu”

para o policial. Ele lhe diria: “Você deveria ter dito a verdade e contado
onde estavam os judeus que escondeu. Assim você poderia ir para o céu. ”

É por essa razão que sacerdotes de tipo imitativo baixo te-rão muita
dificuldade em exercer seu sacerdócio. Como é que orientarão seus fiéis,
suas ovelhas, sendo imitativos baixos? Eles

190

retiraram a tríplice-tiara, estão presos ao livro, portanto não têm nenhuma


capacidade de conexão com a transcendência.

O tipo imitativo elevado

(e ainda o ócio e o negócio)

Existe, ainda, o tipo imitativo elevado, que é outro personagem possível. O


imitativo elevado não apenas conhece algo pelos livros, como também tem
um domínio da sua vontade. Ele sabe pegar o que leu e, com sua vontade,
reunir ferramentas para atuar de modo a dominar as situações nas quais está
situado.

O irônico não entende nada do que está acontecendo, porque está abaixo da
situação; o imitativo baixo leu ou ouviu alguma coisa sobre o assunto e sabe
do que se trata, mas não sabe fazer e julga todo o mundo que faz, porque
não consegue entender que a realidade prática nunca é perfeitamente igual
ao que está no livro.

O imitativo elevado, por outro lado, entendeu a dinâmica da vida, entendeu


que existem dois lugares nos quais sua vida se desenvolve, e que ambos
precisam ser cuidados.

O primeiro desses lugares se chama negócio (negotium) e representa as


coisas que você faz para se sustentar e as ferramentas que você reúne dia
após dia para trabalhar bem. “Negócio”, nesse sentido, não é uma franquia
da Cacau Show, mas o que você faz na sua vida prática.

Dominando sua vida prática, você sai do imitativo baixo e vai para o
imitativo elevado. Mas comece por baixo: não parta do princípio de que
você já é um imitativo elevado, porque, ainda que o seja, achar que é o
imitativo baixo é melhor para você no início.

Instale-se, portanto, no seu negócio por cinco anos, seja você fotógrafo,
contador, mãe de família, engenheiro ou funcionário público. Domine o seu
negócio, transforme aquilo que o seu intelecto um dia aprendeu na
faculdade em operação prática da sua vontade, do seu engenho, da sua arte.
Fique por cinco

191

A IMPERATRIZ

anos trabalhando naquilo, sem reclamar, sem querer mudar de lugar. Sua
vontade será progressivamente dominada por tudo aquilo que você viu,
porque você sabe fazer coisas, então você quer fazê-las.
Suponhamos que você seja um contador. Escolha um argumento vital
qualquer, como o do serviço, por exemplo. O argumento é serviço, o
ambiente é o escritório de contabilidade, o personagem é imitativo baixo
querendo se tornar imitativo elevado.

Para ascender na escala, você deverá servir (argumento), dentro do seu


escritório de contabilidade (lugar), por cinco anos, transformando-se assim
em uma pessoa excelente (imitativo elevado).

Assim você vai transformando sua incontinência em continência. Você


contém aquele ofício, e aquele ofício o contém.

É assim que se sai de um imitativo baixo para o imitativo elevado, não há


outro jeito. Não é com operação mental, não é o

“basta querer” de alguns coaches. É trabalhando, dia após dia, durante


cinco anos, sem mudar de lugar.

Acontece que, ao se tornar adulta, a pessoa perde a capacidade de fazer


coisas iguais por muito tempo. Durante a vida toda você foi ao colégio
todos os dias, até que, do nada, você vira adulto e não faz mais isso, então
perde-se mesmo um pouco da capacidade de perseverança. Se isso
acontecer, volte, restabele-

ça-se no seu lugar anterior, pratique seu ofício e vá cuidar do seu negócio,
que é o primeiro lugar de que falavam os romanos.

O segundo lugar, igualmente necessário para se tornar um imitativo


elevado, é o ócio.

Existem dois lugares na vida de todo o mundo: um de ócio e um de


negócio. Você tem de cuidar dos dois igualmente, por cinco anos, muito
bem cuidados, do contrário você nunca se tornará o imitativo elevado.

Já sabemos que o negócio é o domínio da técnica do seu ofício. E quanto ao


ócio? “Italo, esse eu domino que é uma beleza, deito na rede com os pés
para cima e fico só no ócio”. Bem, esse é mesmo um tipo de ócio.
192

O ócio é o que determina aquilo que você é. Se o seu ócio é descansar, você
não se tornará um imitativo elevado, mas apenas uma pessoa descansada.
Fazer uma outra coisa que não aquela que você faz quando está no seu
negócio já é descansar.

Não estou dizendo que você nunca precisa descansar, mas você já descansa
de seis a oito horas por dia quando vai dormir. Você quer descansar
acordado também, é isso?

“Italo, mas eu fico muito cansado”. Ora, então durma dez horas por noite,
pare de ficar olhando o Instagram e vá dormir. No tempo em que está
ocioso, você não está descansan-do, está moldando a sua vida para um
certo lugar.

Pegue um dos quatro argumentos vitais válidos, de que falei anteriormente e


descubra qual é o seu lugar, qual é a sua ambiência no trabalho, na família
etc., e desenvolva seu personagem imitativo baixo ou imitativo elevado.

Certa vez, quando perguntei a alguns alunos qual era seu eixo vital, um
deles respondeu: “Sou um filho de Deus”.

Legal, mas isso não é argumento. E se você gosta da sua religião e


realmente ama a Deus, então aproveite seu ócio para rezar, fazer jejuns, dar
esmolas, ir à igreja com maior freqüência, ler os textos sagrados e estudar
coisas relacionadas a sua religião. Se o seu ócio se resume a fazer nada e ir
à Missa aos domingos, então você não quer realmente ser religioso.

Os tipos romanesco e mítico

(e o arranjo de tudo)

Até então, vimos os tipos irônico, imitativo baixo e imitativo elevado, mas
existe também o tipo romanesco, ou lendário. É o cara tão, mas tão bizarro,
que parece ter uma assistência divina.
O intelecto desse sujeito já viu, sua vontade já foi con-formada e ele tem
tanto domínio do que faz que mal precisa olhar o próprio trabalho. Ele tem
a posição e o olhar do Mago da primeira lâmina do Tarô, aquela atenção
quase desatenta, em que trabalho e jogo se identificam.

193

A IMPERATRIZ

Na vida do tipo romanesco, o ócio e o negócio existem de modo tão


ordenado e bem cuidado, que ele domina aquilo que, no linguajar técnico-
filosófico grego, chamamos “paixões”.

Hoje, nos acostumamos a ligar paixão a amor romântico. Sob certo aspecto,
é um empréstimo de significado muito preciso, porque dizer que está
apaixonado por alguém é dizer que tudo em você se ordena a esse alguém:
sua cabeça, sua vontade, seu corpo. Você está todo dominado por aquele
alguém.

No relacionamento entre pessoas, a paixão não necessariamente está


ordenada pelo intelecto e pela vontade. É possível estar apaixonado apenas
com o seu corpo, com a sua “vontade inferior”, sua paixão. No tipo
romanesco, é outro caminho: o intelecto viu, a vontade quis e fez, e a
paixão foi englobada.

Jogo e trabalho, ócio e negócio, estão perfeitamente fundidos.

Se por anos você for um imitativo elevado, cuidar do seu ócio e do seu
negócio, você poderá se tornar um tipo romanesco, de tal modo que os seres
humanos normais o olharão e dirão “Deve ser um E.T, parece que veio de
outra galáxia”. Esse é um tipo humano possível, mas não é “pra já”, não. A
grande maldade do nosso tempo é que a maior parte das pessoas são
imitativas baixas e querem passar imediatamente a romanescas; ou pior, são
irônicas e querem passar imediatamente a romanescas, pulando o imitativo
elevado.

Veja o seguinte esquema:


Imitativo
Imitativo

Irônico

Romanesco

baixo
elevado
Paixão

Desordenada

Desordenada

Desordenada

Ordenada
Vontade
Desordenada

Desordenada

Ordenada

Ordenada

Intelecto Desordenado

Ordenado

Ordenado

Ordenado

194

No tipo irônico, a paixão, a vontade e o intelecto estão desordenados; ele


não sabe seus ideais. No tipo imitativo baixo, paixão e vontade estão
desordenados, mas o intelecto está ordenado. No imitativo elevado, a
paixão está desordenada, o sujeito ainda não é um só com aquilo, mas a
vontade e o intelecto estão ordenados.

Apenas para completar a explicação, existe um último tipo de personagem,


que é o mítico. Ele não nos importa muito.

O mítico é aquele que já “veio pronto”, como uma espécie de semi-deus.


Ele vence tudo, entende tudo, acerta tudo desde sempre. É alguém como o
Padre Pio, por exemplo, muito fora da nossa realidade.

Eis a nossa história: argumento (um dos quatro possíveis), lugar (onde você
está) e progressão dos personagens. Se você está aqui lendo este livro já não
é do tipo irônico, porque recebeu uma luz e entendeu que há mais coisas
entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. Mas provavelmente é
do tipo imitativo baixo, de modo que recomendo que estude, leia
atentamente e procure pessoas que tenham conhecimento e experiência no
assunto que você estuda.

Entenda ainda que sua vida se dá em dois lugares interiores, negócio e ócio,
que terão ambos de ser cuidados. Não adianta trabalhar bem e não fazer
nada no ócio. Existe já um momento em que não fazemos nada mesmo, e
ele chama-se sono. Mas não confunda ócio com descanso: não viva uma
vida de so-nâmbulo, de quem mal nota a vida acontecendo.

Quando você resume seu ócio a dormir, tem uma vida de

“sonhos”, sem substância real. Já quando você trata do seu ócio e do seu
negócio por anos, você evolui do imitativo baixo para o imitativo elevado.
E depois de passar anos operando no imitativo elevado, você se torna o tipo
romanesco: converte-se no Mago da primeira lâmina do Tarô, para quem o
trabalho flui como um jogo.

Ora, a primeira lâmina do Tarô é o caminho, a segunda é a verdade e a


terceira é a vida. Quando o ternário da paixão, inteligência e vontade estão
ordenados em você, fecha-se então essa primeira trinca do Tarô.

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

197

A mentira cientificista

Muitos esperam de mim, como médico que se dispôs a ensinar Psicologia,


uma abordagem majoritaria-mente cientificista. Esperam que eu trate de
temas da neurociência, que fale de neurotransmissores, que recomende
artigos científicos de publicações internacionais e aborde linhas terapêuticas
validadas por estudos científicos contemporâneos. Na cabeça dessas
pessoas está o seguinte juízo: só há validade naquilo que tem comprovação
científica. Ao que não tem comprovação científica dariam um rótulo como
macumba, magia, esoterismo ou pseudociência.
Eu poderia perfeitamente encher as notas de rodapé deste livro de
indicações de artigos científicos. Porém, não o fiz e o porquê disso precisa
ser esclarecido.

Qualquer pessoa que trabalhe em laboratório, ou que tenha passado por um


mestrado ou doutorado, sabe que existe

198

certo rigor acadêmico para o tratamento de algumas questões.

Isso faz com que ditas questões aparentem ser mais confiáveis, sólidas,
quando tratadas pelo método científico contemporâ-

neo. Darei um exemplo.

Se alguém pretende, suponhamos, tratar pessoas com fobia, então esse


alguém deve verificar os métodos disponíveis, escolher um deles (e
provavelmente será um antigo, da década de 50, oriundo da Terapia
Cognitivo-Comportamental, como o da dessensibilização sistemática) e
aplicá-lo a certo número de pacientes relevantes, dando um tratamento
estatístico para aquele experimento, de modo que ele tenha uma validade
científica e, a depender do resultado, possa-se dizer que o método tem
condições de ser replicado e que tem um intervalo de confiança ideal,
sendo, portanto, eficaz (ou ineficaz).

É mais ou menos assim que as coisas funcionam na Ciência Contemporânea


— e é exatamente assim que elas devem funcionar. A Ciência
Contemporânea é muito útil e não a podemos desprezar.

O problema surge quando o cientista contemporâneo ou o clínico — como


também a mãe, o pai, o esposo ou mesmo a pessoa que está lidando com a
própria vida — tem apenas e tão somente os recursos da Ciência
Contemporânea na cabeça.

Atualmente, o cientista contemporâneo elabora uma pergunta dentro de um


recorte da realidade e a submete a respostas que, em geral, são validadas em
experimentos — tudo isso sem investigar a fundo a origem da pergunta,
sem investigar de onde vêm os métodos, sem investigar aonde se quer
chegar com aquilo tudo.

Voltemos ao exemplo da fobia. Imagine um paciente com aracnofobia, ou


seja, com medo de aranhas. Esse paciente será submetido a um processo de
dessensibilização sistemática para deixar de ter tal medo — e há vários
outros métodos excelentes da Terapia Cognitivo-Comportamental que
podem ser utilizados num setting terapêutico para essa finalidade, mas é só
isso.

A Ciência Contemporânea quer saber apenas qual é o melhor e mais rápido


método para que um sujeito perca seu medo, seja ele de aranhas, de
agulhas, de aviões ou de palhaços.

199

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

E ela responderá o mais rápido possível . Se você busca somente isso, não
há problema algum. No entanto, ela jamais conseguirá lhe responder a
perguntas como estas: Por que existem aranhas? Qual é a relação de um
sujeito com as aranhas? Por que o medo de aranhas deixa a vida
disfuncional? O que se perde ou ganha com o medo de aranhas?

Esse exemplo do medo de aranhas pode ainda estar muito distante, mas
basta substituí-lo por um mais próximo, como o medo de aviões
(ptesiofobia). Para quem costuma viajar a trabalho, a ptesiofobia é um
grande empecilho, e a Terapia Cognitivo-Comportamental possui métodos
eficazes e validados cientificamente para tratar o problema.

Há mesmo questões que devem ser abordadas assim, sem qualquer pergunta
de fundo. Isso, porque são algo secundário na vida das pessoas. Para quem
não viaja tanto assim de avião, tampouco vive em ambientes em que há
muitas aranhas, essas fobias são disfuncionais, mas apenas sob certo
aspecto.
Os métodos científicos contemporâneos, sobretudo em Psicologia, são
perfeitamente capazes de abordar questões perifé-

ricas da vida, como uma aracnofobia ou uma ptesiofobia. No entanto, são


insuficientes quando se trata de questões centrais.

A primeira dessas questões centrais não abordadas pelos métodos


científicos contemporâneos é o seu olhar para o mundo, e aqui recorro
àqueles versos do poema Paixão, de Adélia Prado, os quais não me canso
de repetir:

De vez em quando Deus me tira a poesia.

Olho pedra, vejo pedra mesmo.

Faço um empréstimo desses versos para descrever a Ciência


Contemporânea, que tira toda a poesia da vida e pretende olhar a pedra e
investigá-la sob certos aspectos : de que miné-

rio(s) é feita, qual o seu peso, qual o seu volume. A Ciência Contemporânea
dá respostas muito precisas sobre tais realidades. Afinal, é para isso que
serve: recortar a realidade, isolar um aspecto — em regra, limitado ao
material — e dar respostas precisas sobre ele.

200

A Ciência Contemporânea jamais perguntará à pedra, conosco e com a


Adélia Prado: Você é presença de quê? Por que você aparece mil vezes na
mitologia grega, na constituição do mundo, nos versos dos poetas? Por que
nós a evocamos a todo tempo, pedra? Você é símbolo de quê? É presença de
quê?

A pedra — como qualquer coisa que é e nunca deixará de ser — não nos
aparece apenas em sua materialidade. Ela não se limita a sua causa material.
Ela é também a presença de algo.

Enquanto a realidade não lhe obrigar a declarar isso, você não entrará na
vida real, mas estará limitado às aparências. O lugar onde você está neste
mundo é lugar de presença — entenda isso de modo poético.

Adélia Prado nos ajuda muito quando faz poesia sobre a crise da percepção.
Naqueles versos do poema Paixão, é como se ela olhasse para as coisas e
dissesse: “Às vezes Deus me tira a poesia. Eu olho para uma pedra e não
vejo mais o verbo. Eu a olho e vejo bauxita, ametista, pirita... Meu olhar é
incapaz de descobrir o véu da matéria. ” O pensamento cientificista faz
algo semelhante conosco: impede-nos de ver as coisas que se escondem sob
o véu da matéria.

Se eu fizesse aqui uma revisão bibliográfica, comentando os mais recentes


artigos científicos do PubMed, as metanálises, os estudos duplos-cegos,
randomizados, eu estaria cumprindo a profecia da Adélia Prado e, com isso,
tiraria o último fio de esperança da poesia que existe no coração de cada
um. Eu não estaria cumprindo a minha função, que é, de certo modo,
proporcionar uma abertura poética.

Você pode estar se perguntando: mas precisamos ter poesia na vida para
quê?

Não falo da poesia dos poetas, mas da poesia do coração do homem vulgar,
que somos eu e você. Não somos Shakespeare, nem Dante, nem Camões,
nem Baudelaire, nem Yeats; somos homens da máquina, do campo, do
computador, da cozinha, somos homens que se acham entre coisas e outras
coisas, e nada mais.

201

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

Para entender a Psicologia Contemporânea, é preciso entender — além das


lâminas do Tarô, como já vimos anteriormente — também um pouco de
mitologia grega. Seus pais fundadores não se basearam em artigos
científicos, mas em mitos. A Psicanálise freudiana é desenvolvida com base
no mito fundacional de Édipo, e a Psicologia junguiana tem como
fundamento os arquétipos, que evocam muitos mitos (inclusive de
diferentes civilizações). E os mitos são uma narrativa poética da vida, assim
como o Tarô. Por essa razão, dedico este capítulo aos mitos gregos.

O simbolismo mitológico

na teogonia grega e seu

fundo psicológico

Quando olho para uma pedra, penso em algo estático, presente, estável. A
pedra não tem uma narrativa, não tem um drama.

É um factum, não um faciendum.

O mito grego, ao contrário, é um faciendum, é um gerúndio.

O mito conta uma história, e essa história é um verbo no ge-rúndio, pois


expressa algo que corre, como a minha vida e a sua.

Essa foi a grande sacada de Ortega y Gasset. Foi ele quem disse que a
grande virada de chave acontece quando descobri-mos que nossa vida não é
um verbo estático, mas uma narrativa, um faciendum, algo que está
acontecendo. “A vida é um ge-rúndio e não um particípio: um faciendum e
não um factum.”25

E os mitos servem justamente para entendermos melhor nossa vida


acontecendo.

Toda Psicologia que se preste a ir ao fundo da questão, em vez de olhar para


o homem como para uma pedra, volta-se para os mitos, porque eles —
sobretudo os gregos — são a 25 GASSET, J. O. História como sistema.
Tradução de J. A. G. Sobrinho & E. H. C.

Costa. Brasília: UnB, 1982.

202

Ciência Psicológica por excelência. Quando você olha para um mito grego,
ele ilumina os seus movimentos e você se entende melhor. Ele não o livrará
da sua aracnofobia ou da sua ptesiofobia, porque não é essa a função deles.
Se, porém, você quiser entender certos movimentos da sua alma, o mito é a
ferramenta para isso.

Na escola, aprendemos mitologia como uma história quase infantil, que os


gregos utilizavam para explicar certos movimentos da natureza, no estilo
“Ah, como não tinham a ciência da meteorologia e não conheciam os
movimentos das marés, os gregos colocavam tudo na conta de Poseidon. ”
Isso não poderia estar mais distante da realidade.

Esse já é um pensamento cientificista, que levou muitos a acreditarem que a


única realidade relevante do mundo é aquela passível de abordagem pela
Ciência Contemporânea, como as leis da meteorologia. E, pior, não só os
alunos, mas também os professores que explicam dessa forma
(praticamente todos) passam a vida inteira sem jamais saber que, na
verdade, existem movimentos psicológicos muito profundos que explicam a
ra-zão de ser de divindades marinhas como Poseidon .

A teogonia grega, ou seja, a explicação grega para a origem do cosmos, dos


deuses e dos homens é riquíssima. O mito cos-mogônico grego não é um
conto da carochinha. Não é que os gregos, desconhecendo a teoria
cosmológica do Big Bang, in-ventaram uma historinha em que Gaia (Terra),
uma das divindades primordiais e originárias, gerou Urano (Céu) e uniu-se
a ele, gerando os doze titãs. Eles estão, na verdade, falando que existem
dois princípios no ser humano, um material e outro imaterial.

Ninguém é louco de dizer que não somos compostos de matéria, porque


temos carne e osso; mas todo ser humano (até mesmo o pouco sensível)
nota que há algumas coisas em nós que não são exatamente carne e osso.
Peguemos como exemplo a vontade de comer. A fome está relacionada à
matéria, ao estômago, mas, às vezes, mesmo depois de comer, surge em nós
um processo que não tem muito a ver com matéria.

203

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR
Não estamos mais com fome, nossa barriga já não dói, enfim, já comemos...
Mas ainda queremos comer. É a tal “vontade de comer”.

Outro exemplo: quem nunca, em algum momento da vida, teve vontade de


ser bom, de ser justo, de ser fiel, de fazer o certo, de ensinar alguém, de
aprender? Nenhuma dessas coisas acontece na matéria. Neste presente
momento, em que lê este livro, em que busca aprender, você está
contrariando um princípio de Gaia na Teogonia.

Para os gregos, no início havia uma primeira terra — selvagem, cheia de


erupções vulcânicas, regida pela força bruta da natureza material e ainda
não havia vida. Esse é o reino de Gaia, constituído por um princípio de
matéria natural selvagem. Quando sente vontade de aprender, você contraria
esse princípio material, que preferiria que você estivesse dormindo,
comendo ou fazendo qualquer outra coisa mais propriamente material.
Quando estamos fazendo algo chato, mas importante, e bate aquele cansaço,
aquela vontade de jogar tudo para os ares e descansar, está agindo em nós
esse mesmo princípio bruto da matéria.

Assim sendo, é claro que deve existir um outro princípio, que rege essas
outras vontades imateriais; um princípio espiritual. Não entenda “espiritual”
no sentido religioso. Não estou falando de Deus, estou falando de você.
Existe, em você, um movimento que não é bem da matéria, mas vem de
outro lugar.

Ora, no princípio da Teogonia grega, conforme a versão que nos deixou


Hesíodo, primeiro havia o Caos, ou seja, o que primeiro havia é um grande
mistério, que está além da compreensão do homem. Depois do Caos, o que
aparece então é Gaia, Terra de amplo seio, princípio material, de Mãe e de
Terra.

Esta, desejando ter alguém que a cobrisse totalmente, gerou Urano (Céu),
princípio espiritual, de Pai e de Espírito.

Urano então passou a cobrir Gaia com sua chuva torrencial. E Gaia não o
aceitou senão passivamente. Como veremos melhor adiante, trata-se de uma
união, mas também de uma oposição. Gaia (princípio material) desejava ser
coberta ou
204

penetrada por Urano (princípio espiritual), mas logo teve iní-

cio uma série de resistências e querelas.

Se você está achando tudo isso irrelevante, eu lhe digo que não o saber é
justamente o motivo pelo qual sua vida está do jeito que está; sem rédeas,
sem sentido, sem norte. Tenho certeza de que, se eu lhe perguntasse o que
ocorreu no seu dia de hoje, você não saberia me responder, exceto se tivesse
sido assaltado, ou demitido, ou traído, ou qualquer uma dessas coisas
“marcan-tes” (de que você só se lembra por dois dias, na verdade).

Isso acontece porque existe um princípio de banalização que todo ser


humano carrega dentro de si; princípio de banalização do espírito, de
banalização da própria biografia. O

ser humano carrega dois princípios que o jogam para baixo: o nervosismo e
a banalidade. São duas tentações do homem, que está sempre tateando as
coisas, nervoso, porque está cego e nada parece ter sentido — e não falo do
sentido último (para que fomos criados, de onde viemos, para onde vamos
etc.), mas de um sentido muito mais baixo. O que aconteceu no seu dia
entre as oito horas da manhã e as dez horas da noite? Quais princípios
foram os regentes dessa parte da sua história?

Eu já sei a resposta: 90% dessas quatorze horas úteis da sua vida foram
regidas por dois princípios: nervosismo e banalidade. Não estou dando uma
de profeta, de guru ou de adivinho. É

que esses são os princípios que regem o homem cego, que não reconhece os
princípios simbólicos (ou, em nosso caso aqui, mitológicos) dentro da
própria história. Ele olha para a pedra e não vê nada além de pedra. Ele olha
para a própria vida e não vê nada além de nervosismo e banalidade.

Isso é princípio de anamnese. Enxergue-se e analise sua vida no dia de hoje:


90% dos seus atos ou foram banais ou foram nervosos. Essas duas coisas
são resposta para a pergunta que você se teria feito, houvesse prestado
atenção no que estou dizendo, que é a seguinte: “De que me interessa saber
de mitologia? Comecei a ler este livro porque achei que você trataria de
ciência, de técnica. ”

Eu lhe digo: você está lendo este livro exatamente para que esses princípios
de nervosismo e banalização, que regem todo

205

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

o mundo, sejam atenuados; e isso acontece quando você se permite olhar a


vida de modo poético.

Há um modo poético por excelência que lhe ajudará: a mitologia grega.


Outro modo é a narrativa do Tarô e seus 22

Arcanos Maiores, que contam a história da vida humana.

Quando contamos a história do ser humano a partir de um princípio


mitológico, de um simbólico poético, escapamos da banalização.

Pense em si próprio quando está nervoso. Há várias formas de pensar sobre


isso, e uma delas é o não pensar absolutamente, mas apenas reagir, como
um bicho nervoso (que é em geral como as pessoas fazem). Você, porém,
pode pensar que existe em seu peito um princípio terreno, de Gaia: uma
matéria bruta, uma natureza selvagem que pede para se revoltar contra a
chuva que emana do céu de Urano, princípio espiritual.

No dia em que você se irar e olhar para a sua cólera com esses outros olhos
— notando que dentro de si está acontecendo algo similar ao que foi
descrito na teogonia grega —, sua vida ganhará poesia. Veja bem: não
quero que você se torne um cara chato e pedante e saia por aí dizendo que
está nervoso porque o princípio de Gaia está agindo em você. Pelo amor de
Deus!

Não é para falar, mas apenas para perceber isso em você.


Os frutos da união

entre Gaia e Urano

Mas voltemos à narrativa da Teogonia. Imagine a união entre céu e terra


que se dá quando Urano cobre Gaia com sua chuva torrencial. No mito
semítico, judaico-cristão, temos o mesmo princípio: o vento sopra do alto,
inflamando a lama, o barro, e, da conexão entre barro e vento, o homem é
formado. Ora, o barro é o resultado de uma terra cujo princípio inferior foi
moldado por um princípio superior, que o vento se encarregou de terminar
de animar, formando então Adão. Há muitas semelhanças nos simbolismos
dessas duas narrativas, mas o mito

206

grego é mais completo, uma vez que, da união entre Urano e Gaia, surgem
diversos desdobramentos.

Fecundada e devastada a Terra, numa violenta união com o Céu, pariu ela
os doze titãs (Crono, Oceano, Céos, Crio, Hipé-

rion, Jápeto, Réia, Memória, Tétis, Têmis, Febe e Téia). Dessa união
surgiram ainda os ciclopes (monstros de um olho só) e os hecatônquiros
(gigantes de cem braços). Esses filhos de Urano e Gaia personificam as
forças selvagens da natureza que nascia. São uma primeira e turbulenta
etapa na preparação da terra para a expansão da vida.26

Na seqüência, como Urano viu que lhe nasciam filhos “os mais temíveis”,
que tenderiam a revoltar-se contra ele e que o poderiam destronar no futuro,
“detestou-os desde o começo”.

Logo que um filho nascia, ele o lançava na cova da Terra. Mas a Terra
gemia e se doía. Ela conclamou, assim, os filhos a se voltarem contra o pai.

Quem se apresentou para investir contra o pai foi o ousado Crono, “o mais
temível”. A própria Gaia escondeu o filho e disse a ele tudo o que deveria
fazer. Quando Urano surgiu na noite à procura de Gaia, “da tocaia o filho
alcançou com a mão esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice longa
e denta-da. E do pai o pênis ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo para
trás.” (Hesíodo , Teogonia, v. 178-182) Uma das etimologias do nome
“Crono” remete a um termo grego que designa o tempo (o prefixo crono-,
em língua portuguesa, aparece em palavras como “cronômetro” ou “crono-
logia”). O tempo é, pois, o que marca a sucessão da matéria.

A matéria, já um pouco mais organizada, não mais a massa caótica do


princípio, vai se decompondo com o tempo. Fora da realidade material não
existe tempo, porque ele é justamente o que marca a passagem da matéria.

26 DIEL, Paul. O simbolismo na mitologia grega. Tradução de Roberto


Cacuro e Marcos Martinho dos Santos. São Paulo: Atar, 1991, p. 110-111.
(Para um estudo mais aprofundado sobre o rico simbolismo presente na
mitologia grega, recomendo a leitura integral desta obra, cujas “traduções
psicológicas” dos mitos muito me valeram na elaboração deste capítulo.)

207

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

Na Teogonia, como vimos, Urano soube que poderia ser destronado por um
dos filhos. E isso de fato aconteceu: Crono o destronou. Ou seja, aquele
princípio de espiritualiza-

ção, aquela chuva que vem do alto (Urano) e dá forma à maté-

ria bruta (Gaia), em algum momento veio a perder seu império para o
tempo (Crono).

Nossa vida está acontecendo, temos uma história para contar. Precisamos
comer, tomar banho, ganhar dinheiro, amar

— e precisamos fazer isso dentro do tempo, enquanto ele está correndo.


Pode ser que, com a passagem do tempo, você seja atropelado por ele e
perca a visão do princípio espiritual.
O tempo passa e você fica nervoso, pois o mês está acabando, e seu
dinheiro acabou antes; o prazo está acabando, e você não entregou seu
trabalho. É o tempo passando, o império de Crono. Quando você se distrai
com esses nervosismos, afasta-

-se do princípio espiritual, a visão da chuva que vem do alto e enforma a


matéria no início.

Veja bem: Crono pega uma foice e corta os órgãos genitais de seu pai.
Urano continua vivo, mas agora está castrado. O

princípio fecundante de Urano foi tirado. Ele segue vivo, mas é um rei
impotente. O princípio da espiritualidade está aí, mas sua possibilidade
fecundante foi perdida pelo tempo.

Urano então pega os órgãos genitais de seu pai, sacode-os e os joga ao mar
(aliás, é da espuma da inseminação dos órgãos castrados com o mar, que
nasce Afrodite, a deusa do amor).

Crono tem uma esposa, uma das filhas de Urano e Gaia, sua irmã Réia. Réia
simboliza uma terra cheia de vida, não mais aquela terra turbulenta do
início, mas um princípio de matéria organizada, em que se consegue
observar a passagem do tempo: uma árvore que cresce, um cachorro que
nasce e morre...

Ora, nós também temos dois princípios materiais. Um deles é muito bruto,
muito desorganizado, como o de Gaia; o outro não foge tanto do controle,
tem certa uma organização, como o de Réia. Há movimentos brutos da
nossa matéria, como quando você está com olhos pesados de tanto sono, ou
quando sente uma fome dos infernos, mas também há movimentos a

208

que você cede apenas se quiser, porque eles estão de certa forma
organizados, como a vontade de dormir com a mulher do próximo, ou de
tomar um sorvete fora de hora. Há quem ceda logo a movimentos como
estes, mas eles não são tão urgentes, fortes e “primordiais” como os
primeiros. Dito de outro modo: há níveis de materialidade.
De volta à Teogonia, temos uma história que se repete: todos os frutos da
união entre Crono e Réia são devorados por Crono. Pois, como Urano, ele
também temia ser destronado pelos filhos. E não é assim? Podemos mesmo
dizer que o tempo devora seus filhos, que aquilo que é gerado no tempo
eventualmente acabará, será comido, irá se decompor. Tudo o que está no
tempo se decompõe. Achar que o que fazemos nesta terra perdurará é uma
esperança vã. Não permanecerá; será devorado. Mas que isso não nos
arranque a esperança — a razão para não perder as esperanças, eu a dou
evocando novamente o exemplo da pedra.

A pedra é presença de uma estabilidade, de algo que permanece; ela aparece


e reaparece milhares de vezes na mitologia, nos textos sagrados e nos textos
poéticos. Já diziam as Escrituras: “Aquele que não tiver pecado, que atire a
primeira pedra.”

Em lugar de pedra, as Escrituras poderiam ter apresentado outra coisa,


como areia ou cuspe. Mas a escolha foi a pedra.

Nós só nos mantemos de pé em um chão sólido, de pedra.

Ora, se você perde seu tempo, arrancando as pedras sob seus pés — que são
aquilo que o faz ficar de pé — para atirá-las ao outro, perderá o chão. Se
você perde o tempo que deveria usar para construir solidamente seu
caminho biográfico neste mundo, julgando os outros, você será o primeiro a
cair.

O símbolo da pedra não foi evocado à toa naquela passagem. Pedra é


símbolo de solidez, de constância, de durabilida-de e, de algum modo, de
esperança — também não é à toa que Réia fez o que fez ao olhar a
brutalidade de Crono com seus filhos, devorando-os todos ainda bebês, logo
após o nascimento.

Eventualmente, ela resolve dar um basta àquela conduta.

Nasce um novo bebê, mas ela diz: “Este não.” Pega uma

209
MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

pedra, envolve-a em paninhos macios e a dá para Crono devorar.

Crono não distingue a natureza de seus filhos, não distingue a natureza


daquilo que é material. Seu império é implacável: o tempo enferruja o ferro,
decompõe o minério, mata seus filhos de carne, resseca seus filhos vegetais.
Para Crono, tudo tem o mesmo sabor, por isso ele devora a pedra dada por
Réia como se filho fosse, enquanto o verdadeiro bebê cresce escondido na
natureza selvagem. O nome desse bebê é Zeus.

Réia retira a criança do reinado de Crono e a leva para o reinado caído de


Gaia e Urano — ainda vivo, mas impotente —, para um domínio anterior,
uma terra bruta e indiferenciada, repleto de uma expectativa de chuva que
vem do alto e nunca termina de dominar a terra (lembre-se de que Urano
havia perdido seu poder). Nessa terra, esse pequeno deus fica amigo de
alguns dos ciclopes.

Os ciclopes eram, como os titãs, filhos de Urano e Gaia.

Eles olharam para esse bebê e viram nele a esperança de reto-mada do


império espiritual de seu pai Urano, razão pela qual passaram anos e anos
forjando uma arma para que a criança, no futuro, a utilizasse para enfrentar
Crono. Os ciclopes nota-ram que Crono, que não distingue matéria, só pode
ser vencido por um princípio superior ao da matéria. Se alguém o tentasse
enfrentar com pedras, lanças ou paus, ele o devoraria, porque é o que faz
com tudo quanto é material.

Esse bebê, portanto, precisava crescer dominando uma arma imaterial. E,


entre os elementos deste mundo (Ar, Água, Terra e Fogo), qual deles aponta
para um princípio imaterial?

O fogo! A própria Física veio confirmá-lo posteriormente, quando


descobriu que a luz tem um princípio corpuscular e um imaterial,
comportando-se ora como partícula, ora como onda. Além disso, dos quatro
elementos, o Fogo é aquele que tem luz.
Os ciclopes então forjaram uma arma a partir da lava, ex-traindo o fogo
daquela pedra incandescente para construir um cetro em forma de raio.
Deram-na a esse bebê chamado Zeus.

210

A arma de Zeus é um raio, porque somente a luz da inteligência consegue


acessar princípios que estão fora do tempo, que não são do domínio de
Crono. Se Crono é na Teogonia descrito por Hesíodo como ankylométes
(“de astúcia torta ou distorcida”), Zeus é dito metíeta (“de astúcia perfeita,
plenamente capaz de discernir”).

Como Crono destrói tudo quanto é matéria, se você lhe apresentar um


princípio superior à matéria, ele não terá dentes para o morder. Os
princípios da Beleza, da Verdade, da Unidade, da Justiça e da Lealdade
cegam Crono; ele não os consegue devorar.

Naquele mundo caótico, no qual Réia tentava dar à luz seus filhos e Crono
os devorava, não havia ordem propriamente; não havia uma forma final,
inteligível, porque ele não permitia que houvesse. Então Zeus, filho de
Crono, com sua arma forjada no reinado de Urano e Gaia, ou seja, forjada
no mundo do princípio de tudo, tocando naquilo que é imutável, destrona
seu pai, subjuga Crono — e por isso se torna o rei do Olimpo.

Zeus é o maior dos deuses, embora não seja o primeiro na origem. Ele é rei
porque foi aquele que venceu Crono: ele venceu o império do tempo e da
matéria.

Em cada um de nós existe, dentre muitos outros, um princípio de Urano, um


princípio de Gaia, um princípio de Crono e um princípio de Réia. Se não
cultivarmos as armas dos ciclopes, ou seja, se não houver um esforço
intencional, paciente, calmo, para, a partir da confusão deste mundo, tentar
pegar a lava (aquilo que brilha na matéria), estaremos fadados a tatear no
escuro de nossas vidas.

A lava incandescente de um vulcão é símbolo dessa pedra que brilha, uma


pedra derretida, que pode ser moldada e da qual podemos extrair luz.
Quando Adélia Prado diz que Deus lhe tira a poesia e ela só vê pedra, é
como se dissesse: “Não há ciclopes aqui. Não consigo voltar para o reino
de Urano e Gaia, para aqueles princípios, para extrair o verbo das coisas.

Não interessa de que a pedra é feita. Ela pode ser diamante ou basalto. O
que interessa é que ela é também algo a mais: um

211

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

verbo, uma presença, algo que permanece. A partir da pedra, podemos (e


devemos) fazer o ofício dos ciclopes para contar nossa história.

Continuando a narrativa teogônica, Zeus domina Crono e o obriga a


vomitar todos os filhos que ele engolira. Assim rea-parecem os irmãos de
Zeus, dentre eles Hades e Poseidon que, junto com ele, são o ternário dos
princípios superiores.

Talvez você esteja pensando: “Hades é o irmão mau, não é?

Não era o pai dos infernos? ” Bem, pode-se entender assim, mas tente
imaginar o inferno como um mundo espelhado: a ordem do mundo superior
espelhada na ordem do mundo inferior.

Tal como Zeus rege o mundo superior, Hades rege o mundo inferior; logo,
ele também é um princípio de ordem. Poseidon, por sua vez, é o elemento
selvagem desse ternário. A água está entre o céu e o inferno, e Poseidon é o
deus que a rege. Há ainda outros princípios, representados pelas irmãs de
Zeus.

Foi ele quem organizou tudo, fazendo Crono regurgitar seus irmãos e
distribuindo a regência do mundo entre eles: um para cuidar do mar, outro
da guerra, outro da beleza, outro das estações do ano… Ele aprisionou os
titãs no Tártaro e destronou Crono. Foi somente com Zeus que, finalmente,
o mundo ficou organizado.
Aqui, ainda estamos no domínio da terceira carta do Tarô, falando da vida
humana, que é esse conjunto narrativo. Se não tivermos intelecção sobre
nossa narrativa pessoal de cada dia, seremos regidos por aqueles dois
princípios que dominam o homem desatento: o nervosismo e banalização.

A banalização é maximamente representada por um sujeito que aparece —


adivinhe — na mitologia. Veremos quem é o homem mais banal da história
do mundo — e, pior, veremos que precisamos nos reconhecer nele.

212

Midas,

um homem banal

Refiro-me ao rei Midas, famoso por seu toque de ouro. Há várias versões do
mito, mas uma das mais conhecidas está no livro XI das Metamorfoses do
poeta romano Ovídio.

A narração do mito tem início quando Dionísio (ou Baco, para os latinos) e
seu cortejo seguem para os vinhedos, mas ele se dá conta da falta de Sileno,
sátiro que fora seu preceptor.

Sileno tinha se embriagado de vinho e sido levado por camponeses frígios


até o rei Midas, que o recebeu como hóspede durante dez dias. Ao cabo
desse período, Midas levou Sileno para Dionísio.

O deus do vinho, dos prazeres e do excesso — mas também o deus da piada


e da zombaria — ofereceu-lhe uma recompensa. Ele poderia escolher
qualquer coisa. O desejo de Midas era tornar-se rico, muito rico. Tudo o que
queria eram riquezas.

De modo que pediu a Dionísio que tudo o que tocasse se con-vertesse em


ouro. “Com tantas maravilhas no mundo, esse imbecil quer dinheiro! ”, é o
que o deus deve ter pensado. Embora per-cebesse a tolice do pedido,
Dionísio o concedeu. O escárnio do deus estava justamente nessa
concessão: “Quer que tudo vire ouro? Tudo bem. Tudo quanto você tocar se
tornará ouro. ” Midas julgava estar pedindo uma bênção, mas recebeu uma
maldição.

Em dado momento, ele se deu conta de que havia sido víti-ma de uma
galhofa de Dionísio, pois absolutamente tudo que tocava se tornava ouro.
Tocava um pão e ele se convertia em ouro. Mas de que serve um pão de
ouro, quando se está com fome? Comida é o que sacia a fome, não o
dinheiro. Tampouco se dorme com dinheiro, mas com um outro ser
humano. O

dinheiro é o símbolo da banalização total, porque, no fim das contas, é algo


que não serve para nada. O que é bom no mundo não é o dinheiro. O
dinheiro é apenas uma das formas de conquistar certas coisas, mas há
outras.

Quando, pois, viu seu palácio, sua comida e sua própria filha transmutados
em ouro, Midas clamou por Dionísio. Nesse

213

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

momento, poderia ter ocorrido uma ruptura da banalização. Midas poderia


ter se arrependido de seus erros e entendido como o mundo funciona. Ele
poderia ter se dado conta de que o ouro não é o que há de melhor. Há coisas
que estão acima dele.

Um sapo tem um verbo próprio, uma pedra tem um verbo próprio, sua
mulher tem um verbo próprio. Quando você banaliza tudo com ouro, o sapo
perde seu verbo e assume o verbo do ouro, a mulher perde seu verbo e
assume o verbo do ouro, o pão perde seu verbo e assume o verbo do ouro.
O dinheiro banaliza tudo.

Midas poderia ter entendido isso, tivesse ele olhos para ver.
Já se vendo desesperado, prestes a morrer de fome, ele deveria ter dito a
Dionísio: “Eu perdi o verbo do mundo. O mundo não conversa mais
comigo, eu não o escuto mais. Perdi toda a poesia da vida, só porque quis
ouro. O que faço para converter essa minha vida banal em algo melhor? ”
Mas não foi isso o que aconteceu.

Dionísio deu a Midas uma segunda chance: aconselhou-o a se lavar num


determinado rio, quebrando assim a maldição para que Midas transformasse
em ouro somente aquilo que desejasse. Mas, depois, fazendo uma espécie
de teste, o deus levou o rei avaro a uma competição musical entre Apolo e
Pã.

De um lado, Apolo com sua lira — o deus da ordem, da perfeição, da


música, da beleza sublime, que eleva. Do outro lado, Pã, com sua flauta,
que atiça os movimentos mais inferiores do homem. Pense num salão em
que houvesse Bach tocando de um lado e Anitta tocando do outro.

Dionísio então pediu que Midas julgasse qual o melhor músico. Midas fitou
Apolo e pensou: “Essa música não seduzirá ninguém, não conseguirei levar
ninguém para a cama com isso.

Já com a música de Pã, se eu a dominar, seduzirei todas as donzelas.

Fico com Pã. ” Mais uma vez, o rei se deixou levar pela estupi-dez: à vida
sublime ele preferiu a perversa.

Dionísio olhou novamente para Midas com desprezo absolu-to, pois viu que
ele não conseguia extrair o verbo das coisas, pois estava demasiado preso à
materialidade. Midas é o sujeito mais imbecil e banal do mundo: não
aprendeu nada com a lição

214

anterior. Escolheu de novo a matéria, desdenhou dos sublimes dons de


Apolo porque umas breves noites de lascívia lhe pare-ciam melhor negócio.

Indigno até mesmo da ira de um deus, o que Midas recebeu foi um castigo
zombeteiro de Apolo, que lhe pôs na cabeça duas enormes orelhas de asno.
O rei, além de precisar usar luvas, passou a ter duas orelhas de animal.
Imagine a figura desprezível em que se transformou. E era de fato um asno,
um homem banal, entregue à luxúria e à avareza, alguém que não sabe fazer
escolhas.

Na seqüência, envergonhado por conta das orelhas, Midas as tentou


esconder. Vestiu um capuz típico do povo frígio, conhecido por suas orgias.
Ora, quis esconder o sinal de um vício (as orelhas que representavam sua
cobiça e avareza) com o em-blema para outro vício (a tiara frígia
representava a perversão e luxúria daquele povo).

Acontece que Midas certo dia foi cortar os cabelos. E o escravo que lhe
cortava os cabelos viu as orelhas que ele escondia de todos. O capuz não foi
capaz de esconder a vergonha de Midas por muito tempo… Isso acontece
com todos nós. Tentamos esconder a vergonha, mas uma hora ela aparece.
Tentamos ocul-tar os vícios que nos envergonham, mas uma hora eles
surgem.

Como não conseguiria manter o segredo, o barbeiro con-fiou-o à terra: fez


um buraco no chão e sussurrou que viu as orelhas de burro do seu senhor.
Tampou o buraco e foi-se embora. Mas ali cresceu um junco, que, agitado
pelo vento, revelou o que o rei não queria que os outros soubessem: “O rei
Midas tem orelhas de asno.”

O junco é uma árvore flexível, que vai para onde o vento sopra. Aquele
junco específico ecoou, desde o fundo da terra, excitado pelo vento, a
banalização de uma vida que não tinha um centro, a qual, como ele próprio,
vai para o lado que o vento sopra. Essa é a vida do homem banal, que não
confessa as orelhas de asno que tem, mas tenta escondê-las a todo custo.

O homem banal tem uma vida que se agita com o vento.

Midas era um desses homens banais, homens-junco, porque, em primeiro


lugar, não viu a diferença entre pedra e pedra de ouro,

215

MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

entre mulher e mulher de ouro; depois, não viu a diferença entre a lira
sublime de Apolo e a flauta perversa de Pã. E, ainda por cima, não foi
homem o suficiente para confessar que era um asno.

Midas poderia ter dito: “Dionísio, sou um asno. Não sei escolher. Envie, por
favor, alguém com quem eu possa conversar, contar-lhe minhas misérias,
para que me ajude a enxergar e corrigir meus erros. ” Ele poderia ter
buscado o conselho de um homem sábio, a quem confessaria seus erros.
Poderia até mesmo ter confessado seus erros a um homem não tão sábio,
mas de sua confiança. Mas o fato é que ele nunca se confessou. E não se
confessou porque jamais se arrependeu verdadeiramente: jamais se
converteu em um homem novo. O que teve foi somente vergonha de suas
orelhas e de seus vícios. Mas não adianta envergonhar-se de seus vícios, de
seus pecados, de seus crimes.

Isso não basta.

O mito de Midas vem nos mostrar que aquele que esconde suas misérias
viverá para vê-las todas reveladas. O sujeito que não se confessa para
alguém nunca melhora, nunca escapa à banalização. Somente quem pede
ajuda é capaz de ascender.

O vaidoso, que não conversa com os outros, que não pede ajuda quando
necessário, que não elogia o bem que o próximo faz, que não tem relação
humana, que esconde todas as suas mazelas sob um capuz frígio, ele se
torna um homem banal. O

nervosismo e a banalização são os frutos da falsidade. Midas é falso; não é


um homem de verdade.

A banalização é o inimigo da minha e da sua biografia. Ela acontece


quando você olha para as coisas e só vê pedra; tudo tem o mesmo símbolo
— ou, como simbolizado na narrativa de Midas, tudo é ouro.

Um sapo de ouro e um pingente de ouro não têm muita diferença entre si,
porque ambos têm o verbo do ouro. Faça esse exercício meditativo. Já um
sapo vivo em nada se parece com um sapo de ouro: eles têm verbos
completamente distintos.

A banalização ocorre quando olhamos para as coisas e achamos que é tudo


a mesma coisa. Isso é Midas agindo.

216

Zeus derrota Tifeu

A mitologia grega apresenta-nos ainda outras expressões da banalização.


Lembra-se de que Crono e os titãs haviam sido vencido anteriormente por
uma nova geração, encabeçada por Zeus? Essa vitória inicial do espírito
sobre a matéria, do que é mais elevado sobre a animalidade, não foi uma
vitória definitiva. “O ser humano pode, num certo sentido, retornar à
animalidade.”27 Ele pode se render no meio do caminho e converter-se
numa besta. Quando isso acontece, ele se banaliza.

Ele se torna uma espécie de Midas, e acha que o que há de melhor no


mundo é o ouro, ou umas noites de lascívia ao som da flautinha de Pã.

Na Teogonia de Hesíodo, vemos que, logo que Zeus expul-sou os titãs dos
céus, Gaia gerou de Tártaro um monstro terrível, de nome Tifeu. Foi uma
espécie de vingança ou revolta de Gaia contra o espírito. Tifeu tinha cem
cabeças de serpente e dos olhos de cada víbora saltava fogo. As cabeças ora
falavam com voz de touro, ora com voz de leão, ora como cadelas, ora
emitiam assobios altos que ecoavam pelas montanhas. Não houve quem não
tivesse medo de o enfrentar: somente Zeus, pois tinha o trovão, o
relâmpago, o raio flamante e a luz da inteligência.

Tifeu é o mais temível de todos os monstros, inimigos do espíri-to. Ele


simboliza a possibilidade de banalização do ser consciente, a mais decisiva
oposição ao espírito evolutivo: o recuo em di-reção à imediatidade dos
desejos característicos da animalidade.

Com Tifeu, a criatura mais monstruosa da terra-matéria Gaia, renasce,


concentrado num único símbolo, o perigo antes representado pelos Titãs
vencidos, perigo que permanece, no entanto, insuficientemente domado
pelo espírito.28

27 DIEL, Paul. O simbolismo na mitologia grega. Tradução de Roberto


Cacuro e Marcos Martinho dos Santos. São Paulo: Atar, 1991, p. 117.

28 Idem, ibidem.

217

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

Ao final da batalha contra o monstro, o deus saiu vitorio-so. Se Zeus não se


tivesse erguido contra ele, o monstro teria reinado sobre mortais e imortais
e a animalidade teria voltado a reinar. Porém, vemos na versão da história
contada por Pseudo-Apolodoro em sua Biblioteca (1. 6. 3), que, antes de
vencer Tifeu, Zeus levou uma coça. O monstro cortou seus tendões com
uma foice.

Na mitologia grega, o tendão é símbolo da alma. Essa noção permaneceu


enterrada por 2.600 anos, até que Ortega y Gasset e Julián Marías a
escavassem e, sem se referir à mitologia grega, dissessem que a alma do
homem é a história que ele conta. E como é que fazemos nossa história?
Ora, fazendo-a.

Caminante, no hay camino, se hace el camino al andar. “Caminhante, não


há caminho; o caminho se faz ao caminhar.”29 E o que se usa para
caminhar senão os pés? Para a mitologia grega, o símbolo da alma são os
tendões exatamente porque são os músculos que nos fazem andar. Nossa
alma é, enfim, a história que nós contamos, é a história de nossa vida.

Felizmente, Zeus conseguiu se recuperar do ferimento e, finalmente,


derrotar o monstro. Tifeu morreu. Mas, antes disso, já se havia unido a
Équidna (monstro metade mulher, metade serpente) e gerado uma
descendência funesta: Ortro, Cérbero, Hidra de Lerna e Quimera. Outro
monstro perigoso descen-dente de Tifeu é a Esfinge (segundo Hesíodo, ela
teria sido gerada por Quimera e Ortros; segundo Pseudo-Apolodoro,
diretamente por Tifeu e Équidna). Esses são os monstros que os heróis
gregos, os filhos do espírito, deverão combater. E esses combates abundam
na mitologia grega.

Édipo, o nervoso

Um dos frutos da união de Tifeu e Équidna foi a Esfinge, figura de que você
deve se lembrar por conta da história de Édipo, 29 MACHADO, António.
Proverbios y cantares XXIX.

218

mito fundador da Psicanálise. Édipo é o cara que vence a Esfinge, pois


consegue decifrar seu enigma. É isso o que lhe permite matar o pai, tornar-
se rei e ter uma vida marital com a mãe — embora ignorando que ela fosse
sua mãe.

O desejo do parricídio e do incesto, recalcado por um tabu, não é o centro


mesmo da Psicanálise? Por essa razão, repito que, se você não conhecer a
história de Édipo, e não tiver claro em sua cabeça que essa vitória de Édipo
sobre a Esfinge foi o que possibilitou que ele fizesse o que fez, você não
entenderá nem essa psicologiazinha vulgar chamada Psicanálise, muito
menos as psicologias mais profundas, como a apresentada na obra já citada
de Paul Diel.

Mas recuemos um pouco na história de Édipo para compreender melhor o


que aconteceu. Édipo era filho de Laio, rei de Tebas, e Jocasta. Como um
oráculo anunciou a Laio que seu filho o iria matar, logo ao nascer Édipo, o
rei amarrou seus tornozelos e mandou Jocasta entregar o bebê a um pastor
de seus rebanhos. A tira com que os tornozelos foram apertados acabou
ferindo os tendões do menino. Seus tendões foram feridos para que ele não
pudesse ter uma história. Não ter história é como morrer.

Mas o pastor não teve coragem de abandonar o menino no monte Citéron e


deixá-lo ali para morrer, conforme a ordem da rainha. Deixou-o então com
um outro pastor, que traba-lhava para o rei de Corinto, Políbio, e para esse
rei entregou o bebê. Políbio e a esposa criaram-no como filho, pois não
tinham descendência. O nome dado ao menino foi Édipo, por causa de seus
pés inchados. E a marca deixada em Édipo pelos pais verdadeiros não se
apagou: por causa dos pés amarrados com tanta força, ele permaneceu coxo
por toda a vida. E não só coxo fisicamente, mas também coxo
psiquicamente. Era um homem nervoso, vacilante, inseguro, que não
conseguia dar passos firmes e decididos. Nunca foi de aceitar críticas,
desaforos, ofensas, nem mesmo um empurrão — esse tipo de coisa sempre
abalava sua segurança. A deficiência física, ele a tentou compensar com um
cajado que utiliza para se manter de pé.

219

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

A alma ferida, ele tentou compensar com uma busca constante e agressiva
pelo domínio.

Criado em Corinto, um dia Édipo foi abordado por um bêba-do que o


insultou e disse que ele era filho adotivo. Ele ficou com a pulga atrás da
orelha e resolveu consultar o oráculo de Delfos. A resposta do oráculo foi
trágica: Édipo estava destinado a matar o pai e desposar a mãe. Com medo
de que a profecia se realizasse, abandonou Corinto e saiu por aí, guiado
pelas estrelas.

Nessa viagem, acabou topando com Laio, seu verdadeiro pai, e um grupo de
viajantes. Quando alguém empurra um homem vaidoso e agressivo, esse
homem, em geral, revida com socos e pontapés. Foi o que aconteceu ali.
Empurraram Édipo na estrada e ele, que não levava desaforo para casa,
revidou violentamente. No fim da briga, com o cajado que usava para se
apoiar, matou Laio e quase toda a comitiva.

Ele não sabia que Laio era seu pai.Também não sabia que o homem que
matara era o rei de Tebas. Mas o fato é que usou como arma mortal aquela
“muleta”, que corrigia apenas par-cialmente a doença dos pés que seus pais
haviam provocado. A muleta de um homem nervoso como Édipo é a
vaidade. Ele só fica “de pé” psicologicamente falando se se apoiar na sua
vaidade. E ela é também sua expressão de agressividade e violência: com
ela, mata o pai.

Depois desse incidente, seguiu perambulando até dar com as portas de


Tebas, onde encontrou a Esfinge, monstro que devorava todo aquele que
dela se aproximasse e não decifras-se o enigma proposto. O enigma que
propôs a Édipo era o seguinte: “Que animal caminha de manhã com quatro
patas, ao meio-dia com duas e à noite com três? ” Édipo respondeu corre-
tamente: “O homem. Eu. Ao amanhecer, no início da vida, ele engatinha em
quatro patas; ao meio-dia, no meio da vida, ele anda com as duas pernas; e
ao anoitecer, ou seja, na velhice, ele anda com suas duas pernas mais o
apoio de um cajado”. Ele foi o primeiro a decifrar um enigma da Esfinge.
Com isso, salvou-

-se a si mesmo da morte e à cidade de Tebas, constantemente ameaçada


pelo monstro.

220

A recompensa que recebeu pelo ato de aparente heroísmo foi o título de rei
de Tebas e a união marital com Jocasta, sua mãe. Esse é o centro da
Psicanálise. Sem o simbolismo do mito de Édipo na cabeça, é impossível
entender bem essa corrente da Psicologia.

Mas veja, essa recompensa que parece ser seu grande sucesso, é também a
sua derrota, a sua ruína. E é também a ruína da cidade: enquanto Édipo
reinava, Tebas foi tomada por uma grande peste, da qual só haveria de se
livrar se dali fosse banido o ser impuro que matou Laio.

Voltemos ao enigma da Esfinge: “que animal caminha de manhã com


quatro patas?” No enigma, o homem é reduzido à condição de animal, de
besta. E Édipo não tem dificuldade nenhuma para reconhecer o homem
como aquela besta que caminha sobre quatro patas, pois ele mesmo passou
a infância se arrastando como um animal, por conta de sua enfermidade.

Depois, passou a andar de pé, mas apenas com o apoio de um cajado.


Mas Édipo não é um homem tipicamente banal, como Midas ou Laio.
Ainda que ele se veja, em certo momento da vida, abra-

çando os prazeres terrestres na figura de sua mãe e seja seduzido pelo


poder, pelo desejo de ser rei, ele é um banalizado diferente

— ele é o homem nervoso que nunca fica em paz porque, no fundo, no


fundo, sabe que não é inocente. Ele é constantemente atormentado por um
conflito que nunca se resolve.

Quando começam a aparecer os indícios de sua culpa, ele vai sofrendo cada
vez mais. Sofre e fica desesperado principalmente porque percebe que fez,
por vontade própria, exatamente aquilo de que tinha mais horror: matou o
pai e desposou a mãe.

Ao final da história, quando não há mais como negar a pró-

pria culpa, Édipo arranca os olhos. Essa resolução pode significar duas
coisas: ou ele continuou sendo um vaidoso e preferiu arrancar os olhos para
não ver a própria culpa; ou ele realmente se arrependeu do que fez e se
cegou para evitar ser seduzido pelas coisas mundanas e, assim, conseguir
exilar-se dentro de

221

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

si mesmo e, finalmente, conhecer-se. “Conhece-te a ti mesmo”, diz a


inscrição no Templo de Apolo em Delfos.

Mesmo o homem vaidoso, inseguro e nervoso tem saída.

Mesmo um homem cujos pais o tentaram matar, um homem que matou o


pai e se casou com a mãe — até esse desgraçado tem cura. É preciso, em
algum momento, “cegar-se” para certas coisas do mundo, ou seja, afastar-se
de certas distrações ou se-duções que nos atrapalham a descobrir quem de
fato somos. A cura para Édipo, como também para mim e você, está no
exílio.

O raio de Zeus e a cura pelo exílio

Ninguém enxerga no escuro. Precisamos de luz, porque olhos já temos.

Quem dá essa luz é o raio de Zeus, que nos permite ir até as coisas e extrair
delas — não projetar nelas — o que elas são.

Esse é o princípio com que conseguimos escapar da banaliza-

ção. Como fazer isso é a grande questão da vida, cuja resposta está dada no
próprio mito de Zeus.

Nosso remédio contra a banalização é a prática da meditação sobre a


realidade. A meditação sobre a realidade é um processo terapêutico válido
para mim, para você e para todo o mundo.

Para praticá-la, há várias técnicas.

Mas lembremo-nos primeiro como foi a vida de Zeus em seus primeiros


anos. Ele foi escondido numa gruta, “sob o covil da terra divina no monte
das Cabras denso de árvores” ( Teogonia, v.484-485), onde teve uma vida
quieta e oculta. Ali ficou, e cresceu com rapidez e vigor, sem ser notado.

Alguém tomou conhecimento de sua vida enquanto os ciclopes forjavam a


arma que ele usaria para destronar seu pai Crono? Não.

Zeus estava em silêncio e quieto no mundo bravio, selvagem, natural — no


reino exilado de Urano e Gaia. Essa é a po-sição existencial de quem quer
extrair a luz do mundo, extrair a luz das coisas. É a meditação em exílio.

222

A meditação em terras exiladas da nossa alma é o que faz com que


consigamos extrair a luz, para que fabriquemos essa arma que vence a
tirania do tempo, aquele deus mau que devora nossos filhos.
Nossos filhos devorados por Crono são os nossos propó-

sitos. Todas as pessoas normais têm bons propósitos na vida:

“Hoje começo a dieta”, “Hoje trabalharei bem”, “Hoje ligarei para a


minha mãe para me reconciliar com ela”. Esses são os bons filhos do nosso
tempo na terra — que esse mesmo tempo se encarrega de devorar. Quem
não teve a experiência de ter parido bons filhos, bons propósitos, bons
afetos, boas inspirações, que foram caindo por terra dia após dia, devorados
tão logo nasciam, ante a tirania do tempo banal?

Você não emagrece, não permanece em um emprego, não fica muito tempo
em um relacionamento, não é chamado para as festas de família, não
consegue conviver direito com seu ir-mão, porque seus bons propósitos,
seus bons afetos, suas boas inspirações, foram devorados pelo tempo banal.
Você não consegue manter a luz dessas coisas viva em você. Isso é
princípio da vida, e nos dá uma intelecção maior sobre nossos movimentos
diários.

Zeus é símbolo da alma humana, de uma alma que não se esquece. Lembre-
se de que somos o “ser esquecente”, por definição. Esquecemo-nos de tudo
— ou melhor, não de tudo, mas apenas do essencial.

Até ver forjada sua arma contra o tempo, contra a banaliza-

ção, Zeus ficou em silêncio, nas terras de Urano e Gaia, que são uma terra
de exílio. Se você nunca marchou voluntária e conscientemente até lá,
talvez não reconheça isso em si; não agora.

Cristo no exílio

Essa terra de exílio foi frequentada por todos os sujeitos arquetípicos que
são exemplos para nós. O próprio Cristo ficou em uma terra de exílio até os
doze anos; depois, ficou em outra

223

MITOS GREGOS
E EXÍLIO INTERIOR

terra de exílio até os trinta; por fim, teve um terceiro exílio de quarenta dias
no deserto.

Ele nasceu, e em sonho seu pai foi avisado de que deveria exilar-se com a
família. Ele então levou a esposa e o bebê até o Egito, onde ficaram por
quase doze anos, até serem chamados novamente. No exílio, o Cristo estava
numa terra como aquela que Zeus frequentou.

O Cristo de fato teve sua primeira aparição aos doze anos, no templo, dando
lições para os sábios, que se surpreendiam com a sabedoria de alguém tão
novo, quando aquilo nada tinha de surpreendente — era o Cristo, mas
mesmo que não fosse, ainda seria alguém que passou doze anos no exílio,
ao passo em que aqueles fariseus estiveram esse tempo todo no meio da
banalização.

Depois, o Cristo voltou para o exílio, e sumiu por mais dezoito anos. Seu
segundo exílio foi na Palestina; não em uma terra estrangeira, não mais no
Egito, mas ainda assim, tratava-

-se de um exílio interior — em que ele se abstém de falar. Não se sabe o


que disse o Cristo dos doze aos trinta anos, porque isso não está escrito.

Esse silêncio é muito eloquente na vida do Cristo. Ele reapareceu aos trinta
anos, na vida pública, e dos trinta aos trinta e três pregou e fez milagres.
São três anos, e já vimos que o três é símbolo de totalidade. Mesmo em
meio a essa vida pública, ele se exilou novamente, nos quarenta dias que
passou no deserto.

O nosso exílio

O exílio voluntário para a terra de Urano e Gaia é necessário para vencer a


banalidade, mas pode ser que esse seja um do-mínio desconhecido do seu
espírito, da sua vida. Lembre-se de que você ainda não tem uma
autobiografia, porque sua vida ainda não tem uma unidade. Isso quer dizer
que, no seu caso, tentar fazer um exílio como o de Zeus ou os de Cristo (ou
seja, por trinta dias, por seis meses, por um ano, por dez anos)
224

não funcionará. Fazê-lo seria afetação, pois você não sabe o tamanho da sua
vida, não sabe qual é a sua história. E se ela durar só mais seis meses?
Então, por definição, você não conseguirá completar esse seu ano sabático,
esse seu exílio de um ano.

O exílio não é algo que faremos em bloco, porque não temos uma
autobiografia. Se você não souber contar sua história em duas linhas, não
souber qual é o seu argumento vital, então sua vida não tem uma unidade, é
tudo uma confusão.

Uma coisa, porém, você tem: um dia. Você tem hoje, e tem amanhã. Sem
esse papo de “Não sei se tenho amanhã, só Deus sabe.” É óbvio que você
terá, sim, amanhã, até o dia em que estiver errado, mas até lá você terá
acertado todos os outros dias em que disse “Eu tenho amanhã.” Na média
das apostas, se você tem menos de noventa anos, a chance de acertar é
grande.

Um dia ao menos você tem, então vá para o exílio, para a terra de Urano e
Gaia, para o deserto do Cristo, para os anos ocultos Dele, cada um desses
dias. Do contrário, você não forjará a arma de Zeus, não terá o raio, e
acabará por cair no mundo de Midas, da banalização.

Midas é um rei, e um rei nunca vai para o exílio, a não ser que seja
destronado. Essa é a nossa vaidade; nós achamos que somos reis: das nossas
idéias, das nossas opiniões, dos nossos relacionamentos, das nossas
empresas, da nossa família; quando a verdade é que ninguém nos presta
ouvidos, porque somos como Midas.

Poderia ser qualquer outro sujeito a falar com Dionísio: um camponês, um


guerreiro, um outro deus, mas era um rei, com um reinado próprio. Era
alguém que nunca está em exílio. E

Dionísio, sendo um deus, olha para aquele rei com desprezo, tal como
olharia para qualquer rei da terra: “Você é rei de quê?
Dessa meia dúzia de hectares aí? Dessas pessoas que não servem para
nada? Desse gado que vai morrer? Você é rei disso? Banal. ”

Midas somos eu e você, que nos pensamos reis das coisinhas que temos. No
seu reinado, você tem domínio de tudo.

Todo o mundo tem seu controlezinho sobre alguma coisinha, ainda que
somente sobre os próprios pensamentos. Se não

225

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

formos voluntariamente e diariamente para o exílio, teremos o destino do


Midas, as orelhas de asno.

Para evitar isso, você terá de marchar para um território quase que
inconsciente de sua alma (com inconsciente, refiro-me a um território do
qual você não tem domínio). Isso é estar em exílio.

Para se exilar, você ficará quieto, de manhã e à tarde, ou em algum outro


momento que escolher. Exílio não se faz em agitação. É preciso querer.
Você ficará quieto como Zeus ficou naqueles seus anos, enquanto seus tios
ciclopes tomavam uma realidade material e dela extraíam um princípio de
luz.

Só temos informações de um dos três exílios do Cristo, qual seja, o exílio


dos quarenta dias. Durante esse exílio, em certo momento ele sentiu fome, e
houve uma tentativa diabólica de mudança do verbo da pedra (e ela voltou
a aparecer como símbolo). A presença diabólica soprou no ouvido do
Cristo:

“Vê, é pão. Come. Vou transformar estas pedras em pão”, o que era uma
mentira, porque o diabo não tem poder sobre a matéria, não pode
transformar o verbo da pedra em verbo de pão. Ele pode somente, e tão
somente, banalizar a percepção do homem sobre o verbo — e isso é algo
que acontece conosco o tempo todo. Em vez de enxergarmos o verbo da
coisa, enxergamos o verbo da nossa cabeça. Fazemos uma projeção: “Se
estou com fome, então aquilo é pão”, “Se quero me satisfazer, ela vai
topar”,

“Se quero dinheiro, posso roubar”. São operações banais, porque deturpam
o verbo da coisa, tal como fez Midas. Banalizar a visão é transformar uma
coisa em algo que ela não é, segundo aquilo que você deseja ver.

No deserto, Cristo não estava em seu domínio, em seu território. Isso fica
claro no segundo movimento, quando o de-mônio leva o Cristo para o alto
de uma montanha e fala: “Vê.

É tudo meu”, como que dizendo: “Tu realmente não estás no teu reino.
Estás em exílio e, se de joelho me adorares, dar-te-ei todos os reinados
desta terra”.

O Cristo estava forjando suas armas (não que precisasse delas, afinal era o
Cristo, mas estava nos dando exemplo), e é por isso

226

que, ao olhar para a pedra, ele diz que aquilo não é pão, senão pedra. E que
não o comerá, pois quem come pedras é o tempo.

Foi Crono quem comeu uma pedra pensando ser seu filho.

O tempo não distingue o que é metal, o que é pão, o que é pedra — ele tudo
consome. Se for para o império do tempo, você será saciado com pedras,
que encherão seu estômago.

Cristo, todavia, estava no exílio, e meditou: “Estou em exílio.

Se adorar esse sujeito e ele me der este domínio, eu me tornarei rei deste
terreno; logo, sairei do exíli o.” O Cristo compreendeu as palavras do
demônio e percebeu que ele, na verdade, queria dizer que faria com que
Cristo reinasse sobre um reino que era seu convertendo-o a um rei medíocre
como Midas. O ato da meditação só pode acontecer no exílio. Ele não pode
ser feito em um reino próprio; por isso, tornar-se “rei do exílio” foi a
segunda das três tentações do Cristo.

Na seqüência, temos o terceiro movimento da tentação do Cristo, que é


óbvio. Se você transforma pedra em pão, e se é rei deste terreno todo,
inclusive do exílio, nada mais lhe falta. Francamente, você já pode até se
jogar do pináculo — é o terceiro sopro demoníaco, dizendo para que Ele se
jogasse do alto, pois certamente seus anjos o salvariam. Mas não: quem se
joga do alto cai em um buraco de terra, onde poderá confessar que é um
asno, que está destruído, que não tem mais uma biografia, que é um junco
cuja história vai para onde sopra o vento.

Nada disso aconteceu com o Cristo, porque ele estava em um ato meditativo
no exílio, então pôde resistir.

Para nós, esse exílio deve acontecer não durante um ano, não durante a
quaresma, não durante dezoito anos, não durante um final de semana de
retiro. Você não sabe o tamanho da sua história; o que você por certeza tem
é um dia. Em um dia, portanto, você marchará para o deserto e extrairá da
pedra aquilo que ela é: pedra.

Para fazer isso na prática, você deve separar dez minutos do seu dia para ir
ao exílio. Não é um exílio radical, é um exílio diário, porque não sabemos o
tamanho da nossa vida. Nesse exí-

lio diário, vá pegando “pedras” (entre aspas, não pedras reais)

227

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

e meditando sobre elas, num terreno onde você não está acres-centando
nada, porque não tem domínio sobre ele. Simplesmente fique quieto, feito
Zeus. Quem fez a arma do deus olímpico não foi ele próprio, mas outros,
que estavam lá há mais tempo. Zeus deixou que a sabedoria deles o
iluminasse.
Precisamos nós também forjar as armas de Zeus para fugir do domínio de
Crono. Pegue uma idéia, um parágrafo sobre um assunto excelente, leia-o
por dois ou três minutos, e fique sete minutos em exílio, fermentando,
fazendo nada, deixando que aquele “princípio de lava” o ilumine sozinho.

De início, por ser matéria bruta, você não distinguirá nada, apenas se
queimará. Não fará nada com aquilo e o ato será cansativo. Porém, com o
tempo e a prática, a lava irá lhe dando luz e as coisas irão se esclarecendo.

Faça isso dez minutos por dia, todos os dias. Se ficar com sono, não tem
problema; o sono pode ser sua terra de exílio, o sonho é que não. Basta não
dormir. Meditar com sono funciona do mesmo jeito, porque assim você não
tem perfeito controle sobre seus pensamentos — lembre-se de que você é
rei de seus pensamentos, que ou são ridículos, ou se voltam para alguma
utilidade. Nesse caso, as duas coisas são ruins.

Utilidade serve para fazer café, para ganhar dinheiro e para um monte de
outras coisas, mas não para acessar um certo lugar de iluminação do seu
espírito, onde você vira uma espécie de Zeus. O reino da utilidade é o reino
do dinheiro, é o reino de Midas.

Portanto, vá para o território de exílio, fique quieto, e deixe aquilo


fermentar em você. Não é para “se esvaziar” e “não pensar em nada”. É o
contrário. Você deve se preencher. Com a prática, a coisa vai encaixando no
lugar certo.

Os textos excelentes, que serão suas pedras, são os que ex-traem a luz das
coisas, que não deixam você se confundir na matéria. Busque textos sobre
Justiça, sobre Caridade, sobre Lealdade, sobre Fortaleza, sobre Trabalho,
sobre Honra, sobre Família etc., que são as operações básicas, a substância
mesma da nossa vida.

228

Ortega y Gasset já dizia: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a


ella no me salvo yo”. Você é você e suas circunstâncias, de modo que
ganhar luzes sobre elas é, de algum modo, ganhar luz sobre você. Isso o
fortalece ao longo do tempo.
Um detalhe. Tudo isso deve ser feito em segredo. Estamos falando de um
processo de fermentação, de uma semente que se planta. Não é lícito
remexer muito a terra; basta plantar a semente, regá-la, deixá-la em um
lugar em que haja luz e se esquecer dela, que logo ela brotará. Mesmo com
o vinho ou com o bolo não é diferente. Se você teima em abrir o forno antes
da hora para conferir, ele sola; se abre o barril de vinho repetidamente antes
da hora, ele se enche de ar, oxida e avinagra.

O processo alquímico da nossa alma é muito semelhante a esse. As coisas


que importam crescem no silêncio, na calma, no exílio. Se mexermos
demais, elas morrem, solam, avinagram.

Eu sou eu

e minhas circunstâncias

A vida de muita gente acaba não dando certo por conta disso; ou, mesmo
quando dá certo, ainda é possível melhorar em algum ponto importante.
Isso ocorre porque, quando as pessoas pretendem um autoconhecimento,
elas ficam muito focadas na parte “Eu” da equação “Eu e minhas
circunstâncias”, ou seja, estão muito interessadas em saber sobre si mesmas
e pouco interessadas em saber sobre suas circunstâncias.

Sejamos um pouco mais poéticos e profundos para che-garmos mais perto


do que importa. Não podemos entender por “circunstância” somente o
território no qual nos movemos (nosso emprego, nossa família, nossa
aparência). Sua circunstância é muito superior a isso; ela é composta pelos
seus desejos, pelas suas aspirações, pelos conceitos que lhe aparecem e

229

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

que você precisará articular com a sua vida. Nobreza, Lealdade, Justiça,
Traição e Vilania também são circunstâncias da nossa vida. Se não conhecer
essas coisas com a luz de Zeus, com a luz indestrutível, você se tornará
pedra e será devorado pelo tempo, por ter articulado em si somente a parte
material da realidade.

Muito se fala hoje sobre o autoconhecimento, mas a verdade é que, se não


tiver essas circunstâncias claras, iluminadas pela luz do cetro olímpico,
então você, no final das contas, não se conhece. Eu = Eu + Minhas
circunstâncias, e Ortega y Gasset completa: “Eu sou eu e minhas
circunstâncias, e se não as salvo a elas, não me salvo a mim. ”

Salvar sua circunstância é tratá-la desse modo meditativo no exílio. Zeus


salvou seus irmãos, já devorados, somente quando pegou o raio, o fogo, a
luz, e subjugou Crono, aquela divindade que não distingue verbos, para a
qual pedras, filhos, pães e ferros são a mesma coisa.

Após os salvar, Zeus ordena o mundo, distribuindo uma circunstância a


cada irmão: há o território da Guerra, o território da Agricultura, o território
da Beleza, o território do Amor... E

esses irmãos regurgitados por Crono, agora salvos e iluminados pelo


intelecto, tomam parte na ordem do mundo. Assim foi que Zeus salvou suas
circunstâncias.

Esta é a explicação da frase de Ortega, encaixada na sua vida e na minha; é


ir ao exílio e forjar as armas de Zeus. Fazemos isso deixando às claras
nossas circunstâncias, que levamos conosco para o exílio.

As armas da Imperatriz

Ninguém vai para o exílio sem bagagem ou descalço, à toa.

Veja o Mago, a Papisa ou a Imperatriz — todos eles carregam algo. O Mago


tem seu chapéu e seus itens sobre a mesa. A Papisa tem seu livro e sua tiara.
A Imperatriz tem seu escudo e seu cetro, que são símbolos da vida
acontecendo.

230
Não poderíamos percorrer o caminho que percorremos hoje com base em
um artigo científico. Ele não serve para isso; serve para um monte de outras
coisas boas, mas muito pequenas em comparação. Sob certo aspecto, até
mesmo inúteis.

Até cem anos atrás, a civilização não conhecia artigos científicos, nem
injeção, nem micro-ondas, nem foguetes para a lua. É bom que a Ciência
Contemporânea exista, mas, do ponto de vista da evolução do espírito, ela
de nada serve.

Precisamos marchar nesta terra munidos do escudo e do cetro da Imperatriz.


O cetro dela é um bastão dividido em duas partes. São dois copos, um
virado para cima e outro para baixo, ambos fechando uma esfera,
simbolizando que um cetro é próprio deste reinado próprio, e outro é
próprio do exílio.

Veja que curioso: a Imperatriz tem um escudo, mas não uma espada; e nesse
escudo está a imagem de uma águia. A águia é o arquétipo do líder, porque
é o único animal que consegue encarar o sol de frente — e não estamos
indo ao exílio para contemplar a luz? Pois bem. O escudo da Imperatriz
carrega esse olhar de águia, simbolizando o animal que consegue olhar a luz
de frente. Nós temos dois olhos, um de pomba e um de serpente, um de luz
e um de trevas. Nosso olhar funciona por contraste. O dois é símbolo de
divisão, de oposição, que sempre lutaremos por articular.

Nossos olhos são preparados para luz e para trevas; são pomba e serpente,
boi e jumento. O ciclope tem apenas um olho, e é por isso que ele só vê luz
e consegue ficar perto da lava sem se cegar, para extrair dali a luz.

Como nós não somos ciclopes, precisamos nos armar com o escudo da
Imperatriz, que nos protege da cegueira. Nesse sentido, ele é uma arma. A
águia é um animal incisivo, agudo

— e, no entanto, ela está retida em um escudo, que não é nada incisivo, mas
sim obtuso, como um pombo.

A águia voa em direção ao sol; ela tem natureza de espada, mas está
inserida num escudo. É a articulação perfeita. Para nós, esse escudo é o
silêncio. Marchemos até a forja dos ciclopes armados daquela que é a
postura existencial do exílio:

231

MITOS GREGOS

E EXÍLIO INTERIOR

o silêncio. Deixe que a luz o ilumine. Enquanto o ciclope forja a arma, você
assiste, quieto, portando o escudo que lhe permite enxergar, o escudo que é,
ao mesmo tempo, defesa e arma para o exílio.

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

233

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

Já abordei as três primeiras lâminas que compõem o nosso eixo condutor do


Tarô. Tratarei agora de um assunto acessório ao nosso eixo e, no entanto,
essencial em termos de ajuste de narrativa: a culpa. Ela é causa de um
grande desajuste biográfico, porque pode tanto lhe paralisar quanto acelerar
sua ida para um lugar para onde você não deveria ir.

Não gostaria de começar conceituando “culpa”, uma vez que a culpa é uma
percepção interna muito difícil de definir universalmente. Dito isso,
iniciarei abordando a culpa a partir de um lugar que você reconhece como
próprio. Mais adiante, tratarei sobre um lugar da culpa que, embora você até
possa reconhecer, não o consegue nomear (e, geralmente, os fracassos
biográficos vêm desse segundo lugar).

Vimos anteriormente que há quatro narrativas possíveis para


desenvolvermos nossa vida. Dentro de uma dessas narra-
234

tivas, será preciso “encenar” um tipo de personagem específico, com uma


força específica.

Percebemos também que o motivo pelo qual não conseguimos levar a cabo
nossas pretensões biográficas é justamente a falta de força interior.

Fizemos também alguns ajustes de percepção do mundo e, por fim, falamos


das ferramentas a que chamamos “armas de Zeus” a partir da teogonia
grega. A teogonia grega é mais completa do que a teogonia judaico-cristã
(ao menos, no que diz respeito à origem do mundo), pois aquela traz mais
elementos que nos ajudam a compreender simbolicamente onde estamos
inseridos — e aliás uma das primeiras grandes questões de ajuste biográfico
é esse “onde estamos inseridos”, que chamamos de circunstância.

Feita essa retrospectiva, voltemos à culpa. A realização biográfica plena


possui alguns inimigos; dentre eles, está um certo peso que as pessoas
carregam dentro de si. Esse peso é como que um peso de balão de ar: é
importante num certo momento, para fins de calibragem e ajuste, mas
eventualmente o balão terá de se livrar dele para alçar vôo, adquirir a
velocidade desejada e assim cumprir sua meta. Esse peso é o peso da culpa.

O psicólogo austríaco Igor Caruso, falecido há algumas dé-

cadas, dizia que a gênese dos sintomas depressivos, histéricos, ansiosos e,


sobretudo, neuróticos, não era exatamente a luta mal travada entre o
Superego e o Id, como pretendia Freud, mas sim uma outra coisa.

Freud dizia que, quando o Superego não tem capacidade de recalcar os


complexos, sobretudo na gênese dos complexos fundamentais, como do
parricídio e do incesto, surgem os sintomas neuróticos.

Para Freud, o Superego é, na verdade, um tabu cristão: você só não mata


seu pai e só não dorme com sua mãe, por conta do tabu. Portanto, das duas,
uma: ou seu recalque é perfeito e você não terá sintomas, ou esse tabu
deverá ser desfeito para que você consiga tocar os sintomas e revertê-los.
Essa é uma das pretensões da psicodinâmica desenvolvida na psicanálise
freudiana.

235

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

De um lado, Freud falava sobre a formação do inconsciente individual; do


outro, Jung falava sobre a formação do inconsciente coletivo. Igor Caruso
olhou para ambos e teve uma outra vi-são, como que dizendo: “Bem,
parece-me não ser bem de nenhum desses lugares que vem a formação dos
sintomas neuróticos”.

Houve um outro teórico que também elaborou uma explicação extensa


sobre a formação dos sintomas: Léopold Szondi, um psiquiatra húngaro.
Ele também discordou de Freud e Jung, considerando que não se trata nem
de inconsciente individual, nem de inconsciente coletivo; pareceu-lhe que a
formação dos sintomas vinha de uma pulsão que todos temos dentro de nós
e que se origina de um inconsciente familiar, como se tendêssemos, numa
linha de ancestralidade, a repetir os sucessos e as tragédias de nossos
antepassados. Eis, portanto, um ternário: inconsciente individual,
inconsciente coletivo e inconsciente familiar.

É possível compreender a psicodinâmica humana à luz da


contemporaneidade sem precisar necessariamente de estudar, digamos, a
Ética de Aristóteles ou a escolástica medieval; mas será muito difícil
compreendê-la sem fazer uma articulação entre os três inconscientes
mencionados. E mais: todo psicó-

logo que se cristalizar em apenas um dos vértices do triângulo terá uma


dificuldade enorme em sua pretensão de entender o homem de modo mais
completo. O inconsciente individual articula-se com o inconsciente coletivo
e é permeado pelo inconsciente familiar. Somente pensando-os nessa
integração é possível alguma compreensão contemporânea mais profunda
do homem, ainda que carecendo das bases da Antropologia Tradicional
Escolástica e do fundamento ético grego.
Se tencionarmos olhar o homem só por um dos lados, fazendo um recorte,
faltarão muitíssimas coisas. Seria de um anacronismo absurdo analisar a
Ética aristotélica e pretender abordar o homem “aristotelicamente” sem o
auxílio de outras ferramentas. Aristóteles não tinha por ofício observar
pessoas em sofrimento psíquico; por conseguinte, por mais preciso que seja
esse recorte, faltarão elementos e ferramentas práticas

236

para tocar homens e mulheres concretos — sobretudo da


contemporaneidade. O mesmo se aplica à Psicologia desenvolvida na
Escolástica, no período conhecido vulgarmente como

“Idade Média”.

Um parêntese sobre a chamada

Idade das Trevas

Sobre isso, gostaria de abrir um breve parêntese. Recorramos ao nosso


imaginário.

Por que você acha que a Idade Média é uma época sombria?

Seja honesto consigo mesmo. Você já leu algum livro sobre esse período
histórico, ou você só sabe aquilo que aprendeu com seu professor de
História no Ensino Médio? O que você realmente conhece sobre o poderio
da Igreja Católica naquela época, ou sobre a Inquisição? Quando pensamos
em Inquisição, vem-

-nos à mente imediatamente a tal “queima de bruxas” — mas você conhece


os números? Sim, eles estão documentados.

Se for honesto, você admitirá que não conhece sequer um escritor da Idade
Média. Nunca ouviu falar em Duns Scott, Guilherme de Ockham, Bernardo
de Claraval — e, se ouviu, não os leu. Você não tem idéia da literatura que
tem em mãos, mal conhece um livro escrito naquela época. Qual era o expe-
diente no tribunal de ofício da Inquisição da Igreja Católica?
Havia inquérito, ou era uma coisa mais sumária? Você sabe se há conexão
entre as práticas de inquérito do FBI e as práticas de inquérito da
Inquisição? Sabe se havia diferença entre uma inquisição civil e uma
inquisição religiosa? Provavelmente não, certo? Pois bem.

Esses questionamentos são uma lembrança de que existe uma ignorância


habitando nossa cabeça que nos faz puxar idéias sabe-se lá de onde.
Provavelmente reagimos com base em preconceitos alimentados pelo
professor de História, pela matéria da revista sensacionalista, pelo post no
blog do fula-ninho, por aquele filminho de época feito sem uma pesquisa
histórica razoável.

237

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

Não há razão para torcer o nariz quando lhe disserem que a Filosofia
Escolástica é uma filosofia medieval. A primeira quebra a ser feita é na
idéia de que “medieval” é sinônimo de algo ruim.

Você já foi a Nice, à Toscana, a Madrid, a Lisboa ou a Barce-lona? São


cidades iluminadas, perfumadas, de arquitetura maravilhosa, é uma coisa
incrível, poética. Não é? Imagine esses lugares, fisicamente, hoje. Desde
aquela época, o sol continuou lá, o eixo da terra continuou o mesmo, as
árvores provavelmente eram até mais frondosas e belas. Por que diabos,
então, você acha que na Idade Média todos esses lugares eram escuros,
sombrios e tudo o que havia eram ratos mortos pela rua?

Na Idade Média, a geografia era a mesma, a luminosidade era a mesma, as


pessoas andavam pela rua, elas igualmente tocavam suas flautas e violões.
Sim: já havia música! As famílias voltavam da colheita e conversavam,
tocavam viola, comiam, iam à praia, se divertiam, jogavam bola. Todas
essas coisas também aconteciam na Idade Média. As pessoas viviam em
uma certa harmonia, assim como viviam na Grécia antiga, assim como
viviam na Idade Moderna renascentista, e assim como vivem na
contemporaneidade.
Ocorre que os preconceitos do cinema entraram na nossa cabeça, e
aprendemos que Idade Média foi uma época em que pessoas encapuzadas
queimavam bruxas. O curioso é que, em toda a Europa, em sete séculos de
inquisição, foram executadas 3000 pessoas — e nem todas foram
queimadas. Não estou dis-cutindo se isso é muita ou pouca gente; é apenas
um número, e quero que você o confronte com o que achava sobre o que
ocorria na Idade Média, porque a idéia que nos foi vendida é a de que havia
fogueira, forca e guilhotina todas as semanas para executar alguém que
discordasse da Igreja Católica.

Ao pensar em Filosofia da Idade Média, em Psicologia e Antropologia


Medievais, portanto, a primeira coisa que deve surgir na sua cabeça é um
desmonte dessa falsa idéia implan-tada na sua cabeça. A verdade é que boa
parte das neuroses, das pretensões e das crenças que as pessoas têm, não
vem da realidade, mas de uma fantasia, de um preconceito, de um “ouvi
falar”, de uma idéia forjada.

238

De modo semelhante, o ciúme que corrompe e destrói relacionamentos


familiares e empresariais é totalmente baseado em crenças fantasiosas, em
indícios de realidade — que, portanto, não são realidade por definição, mas
fantasias que habi-tam nossa cabeça.

No ofício do consultório, no aconselhamento, na amizade, ou mesmo na


pretensão autobiográfica, é essencial fazer um inventário de coisas que
fundamentam o nosso “conjunto de crenças”, porque o seu pode muito bem
estar moldando sua vida de um modo destrutivo: caso não seja calcado no
real.

Afinal, a vocação biográfica se desenvolve dentro da realidade, entre o


chamado e a circunstância.

Prefira sempre estar fundamentado na circunstância real a estar


fundamentado na circunstância imaginária, porque esta é má pagadora. O
combinado não sai caro, mas a imaginação não tem tamanho, não tem peso,
não tem volume, não tem medida, então tudo o que se combina com ela
acaba saindo caro.
Como dizia santa Teresa, ela é a “louca da casa”. É necessário ter uma
imaginação pautada na realidade, com profunda raiz no real, porque a que
se desloca disso é má pagadora.

Para se basear na realidade, é necessário, em primeiro lugar, uma noção da


concretude do real, que só se adquire observando, conversando, tendo
calma, lendo, investigando e, sobretudo, se acalmando. Pessoas muito
ansiosas padecem de uma tremenda fabulação imagética. Por exemplo,
certa feita eu estava em uma casa numa região na qual há
desmoronamentos, e começou a trovejar e chover. Logo comecei a ficar
ansioso, e teve início uma fabulação imagética. “Meu Deus, serei soterrado
aqui. Tenho de ir embora”. Imediatamente, porém, fiz o exercício de me
calcar em dados, de me basear na realidade, e pensei: “Estatis-ticamente
falando, morros não desmoronam assim tão fácil, e, na verdade, não está
chovendo tanto. Isso é neurose, é loucura. Melhor ficar aqui. Sair de carro
nessa tempestade é muito mais perigoso. ”

Naquele momento, minha imaginação baseava-se em certos elementos da


realidade, mas era amplificada por todas as histórias que conheço de gente
cuja casa desmoronou. Na prática,

239

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

era muito mais perigoso sair de carro na madrugada e na chuva do que ficar
ali.

Quantas condutas biográficas não adotamos com base nesse tipo de


operação de fábula narrativa? Para citar uma só: a do psicólogo que rechaça
todo o conteúdo medieval por causa do mero nome “medieval”, que, hoje,
ecoa “trevas” e “ignorância” em 98% das cabeças viventes. Que tragédia
seria, para um psicólogo, ignorar todo o corpo antropológico oferecido por
aqueles sujeitos do Medievo! E esse é apenas um exemplo do ponto de vista
intelectual; em nossa vida prática, acontecem coisas parecidas o tempo
todo.
Culpa enquanto sintoma,

culpa enquanto sinal

e culpa existencial

Entender, pois, a Psicologia Contemporânea desarticulando o inconsciente


individual de Freud do inconsciente coletivo do Jung e do inconsciente
familiar do Szondi, é o mesmo que não entender a psicodinâmica do
homem à luz da contemporaneidade. E essa psicodinâmica ainda pode — e
deve — ser completada com a contribuição dos medievais, dos gregos — e,
por que não, de Igor Caruso.

Caruso olha para aquela dinâmica freudiana-junguiana e pensa: “Existe


ainda algo mais profundo e mais fundamental na gênese dos sintomas
neuróticos”.

A todo momento volto-me à gênese dos sintomas, porque

“sintoma”, para nós, é sinônimo de pedra de tropeço, de dificuldade, de


peso na nossa escrita biográfica. Igor Caruso olha para o ser humano e
considera que, na gênese dos sintomas, na dificuldade de desenvolver uma
biografia, está a repressão da consciência moral. Quando um sujeito
reprime ou recalca — a nomenclatura muda, mas a psicodinâmica é a
mesma — sua consciência moral, quando recalca aquilo que ele sabe ser
certo e segue fazendo o errado, ele padecerá dos sintomas neuróticos.

240

Existe um sintoma fundamental, que aparece no início da repressão da


consciência moral, chamado culpa. Ela é, portanto, um símbolo, e um
símbolo, via de regra, possui duas faces; é como o deus romano Jano. Jano
é aquele ente mitológico de duas faces, sempre olhando para a frente e para
aquilo que já passou, na interseção dessas duas realidades. Daí o nome
“Janeiro” que, no calendário romano, é o mês situado entre o fim do ano
anterior e o início do seguinte.
A culpa pode ser percebida como algo real, mas também como algo
simbólico, de duas faces. Uma delas é a que olha para baixo e pesa
gravemente; a outra é a que olha para cima e permite acesso à redenção,
como um sinal positivo, um alerta.

Se você não percebe culpa interiormente, ou seja, se não se sente culpado,


então das duas, uma: ou você tem uma consci-

ência muito deformada, ou você passou anos praticando aquilo a que


podemos chamar vício. Você reprimiu sua consciência moral de tal modo, e
por tanto tempo, que lhe aparece um sintoma ao qual você já não consegue
mais dar nome, na forma de alguma questão interior; alguma lentidão,
alguma preguiça, alguma instabilidade, alguma inconfiabilidade, alguma
injusti-

ça, algum nervosismo, alguma ansiedade...

Por uma repressão da sua consciência moral, você talvez já não saiba mais a
origem do problema, não consiga mais investigar onde ele está. Isso se
atinge com anos de prática repri-mindo o que se acha certo e fazendo o
errado (sabendo que é errado). A culpa, então, já não tem mais aquela face,
aquele sinal positivo de alerta; ela é algo que mira para baixo. Quando
chega a esse ponto, você não vê mais nada do que está acima, você
simplesmente segue agindo como já vinha agindo, cerca-do por sintomas de
desvio biográfico.

Essa é, em linhas gerais, a idéia de Igor Caruso. Como, en-tão, agir diante
disso?

Bem, se ainda há uma clara culpa em sua cabeça, você não precisa fazer um
inventário de consciência, de conduta. Se ainda tem noção do que é certo e
do que é errado, esse é um ótimo sinal, quer dizer que você só não está
conseguindo agir

241

CULPA EXISTENCIAL
E FRACASSO

de acordo. O problema maior surge quando você agiu errado por tanto
tempo que já não sabe mais o que é agir certo. Nesse caso, Caruso propõe
que se faça uma formação da consciência; é realmente voltar ao bê-á-bá
para formar a consciência novamente — que é parte do que estamos
fazendo aqui.

A formação da consciência, portanto, é parte do método terapêutico


proposto por Igor Caruso. É preciso formar sua consciência mais uma vez, e
o procedimento para isso engloba o acesso à Beleza por vias como a
literatura (poesia, romances, etc.), e o cinema. A boa arte, especialmente a
cinematográfica, ao explicitar a conduta de seus personagens, pode ajudar
no processo.

Um remédio é assistir a bons filmes de super-heróis, em que a pretensão do


ser humano enquanto narrativa xátria está muito clara. O protagonista
sempre faz o bem e vence o mal.

Assista aos filmes do Batman ou do Homem-Aranha — não é preciso ficar


assistindo a filmes cult. Você não é o Homem-Aranha nem o Batman, mas
vê-los é uma forma de reacender em você princípios ocultos da sua
biografia.

Outra forma de formar a consciência moral é a meditação de que falei


anteriormente. Levar para seu exílio interior questões de Justiça, Nobreza,
Temperança, de Valentia, também vai reacendendo sua consciência moral.

A culpa do fracasso: o que acontece

quando escolhemos um modelo

biográfico inalcançável

As pessoas sentem-se “nobremente” culpadas, na melhor das hipóteses,


porque sabem que estão fazendo algo que é errado.
Você deu um tapa em alguém, furtou, mentiu, e veio aquela culpa. Se ficar
agindo assim durante muito tempo, você poderá reprimir sua consciência
moral, aquilo se tornará um hábito e você terá sintomas. Esse é um dos
princípios da culpa sobre o qual precisamos agir. Existe, porém, outra
dimensão da culpa,

242

esta, sim, mais endêmica e mais profunda, e, no entanto, desconhecida pela


maior parte das pessoas. Quando eu começar a descrevê-la, você logo a
reconhecerá.

Um sociólogo australiano com alguns estudos sobre a culpa descreveu


perfeitamente esse movimento. O nome dele é John Carroll. Um de seus
livros chama-se “On Guilt: The For-ce Shaping Character, History, and
Culture”, mas é no livro

“Guilt: The Grey Eminence Behind Character, History, and Culture”, de


1985, que ele descreve bem o fenômeno.

Carroll diz que há todas essas culpas que comentamos e que, em geral,
confessamos. São as culpas morais, das quais também fala Caruso; mas
Carroll alega que há também, no fundo de toda vida, uma culpa mais
fundamental, que ele não chega a descrever ou nomear exatamente, mas que
parece ser geradora dos sintomas de desvios biográficos profundos. É a
culpa do fracasso.

Quando você está se desculpando por uma culpa moral, em regra, você está
revoltado porque fracassou. Quando pede desculpas por ter roubado, por ter
mentido, esse pedido brota de uma culpa que você teve por fracassar em
algo específico: você tinha um modelo na sua cabeça, mas fugiu dele.

Veja que coisa terrível: você não está se culpando por um mal que fez; está
se culpando porque projetou algo sobre sua vida e falhou — não porque
errou moralmente, mas porque você é ruim e fraco. É uma culpa insidiosa,
sem esperança, egoísta.
Carroll diz que a formação dessa culpa específica ocorre a partir da escolha
de modelos impossíveis de serem concreti-zados. Existe uma culpa que
advém do fato de que você quer ter sucesso — portanto, quando faz alguma
coisa errada no trabalho, você é tão canalha, que não sente um
arrependimento moral. Você está frustrado consigo mesmo, porque é
egoísta e porque tinha na cabeça um modelo de sucesso irrealizável.

A criança sempre começa a pensar no que deseja ser quando crescer:


médico, bombeiro, astronauta. Depois, ela vai fazendo ajustes: “É, ser
astronauta era só uma idéia que eu tinha

243

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

quando criança, mas isso não tem nada a ver comigo; além do mais, é
muito difícil chegar a ser astronauta. E, pensando bem, a vida de um
astronauta deve ser muito triste. O que quero mesmo é ser médico (ou
arquiteto, ou cineasta, ou engenheiro, ou contador).”

Quantas pessoas não andam culpadas hoje por modelos de sucesso


irrealizáveis? Pensemos, por exemplo, na idéia de “ficar rico”. Antes de
mais nada, guarde bem isto: não estou dizendo que não é possível ficar rico,
mas apenas que ficar rico não depende só de você. Isso é muito esquisito,
porque vai contra uma idéia burguesa estúpida, mas que parece
absolutamente correta e moral hoje em dia, chamada “meritocracia”. Por
ela, ascende-

-se pelo “mérito”: se você trabalhar duro, chegará lá, ficará rico e
prosperará. Isso é coisa de gente que nunca percebeu como a vida funciona.
Há muitas pessoas obstinadas, que trabalham duro a vida inteira e jamais
ficam ricas. Não é assim que se fica rico, e, sinceramente, “ficar rico” não é
algo ensinável ou que tenha um método certo. Existem tantas variáveis
sobre as quais não se tem controle, que enriquecer é um processo irreprodu-
zível — e qualquer rico com um mínimo de honestidade vai lhe dizer isso.
“Italo, isso não é verdade. Eu sei como ficar rico definitivamente.

Basta fazer o que fiz: estudar tudo sobre a bolsa de valores, sobre de-
rivativos, renda fixa, opções de venda, opções de compra etc., e aplicar
seguindo o método. ” Certo, mas você, que enriqueceu assim,
provavelmente tomou conhecimento sobre a bolsa a partir de um princípio
que não controla: alguém por acaso lhe contou, e você por acaso estava com
disposição para ouvir naquele dia, e assim pôde pesquisar mais a fundo
depois. Calhou ainda de ter alguma sorte, pois você poderia ter perdido todo
seu dinheiro ou, pior ainda, ficado devendo muito dinheiro. Sei que pode
parecer frustrante, mas a verdade é que ninguém sabe como ficar rico.

O modelo que as pessoas têm na cabeça é: “Ficarei rico e terei muito


sucesso, basta eu ser uma pessoa esforçada”. De fato, à exceção dos
sortudos e dos herdeiros, só ficará rico quem se esforçou muito, quem
trabalhou muito. Mas não seja estúpido: existem pessoas que trabalham
muito mais do que você, que

244

são muito mais capazes, muito mais comprometidas e, ainda assim, não
ficaram nem ficarão ricas.

O sujeito que chegou lá no topo dirá: “Você precisa ter mérito, trabalhar
dia e noite, se esforçar, servir, não encher o saco”. Certo, mas será que esse
sujeito já se deu conta de que existe muita gente pobre ou na classe média
que faz exatamente isso, e ainda muito melhor do que ele — gente com
talento — mas que não enriqueceu? Ora, “ficar rico” não depende só da
pessoa. Há um imenso número de variáveis incontroláveis.

Vou dar exemplos mais concretos, que podem parecer cho-cantes. Pense
num rapaz que quer apenas ser médico, sem pretensão de ficar rico. Se esse
rapaz estiver em Cuba, talvez seu sonho não se realize, pois uma regulação
estatal sobre a profissão só permite a titulação de médicos se o país estiver
precisando de médicos. E mesmo no Brasil o rapaz poderia se frustrar com
facilidade. Suponhamos que ele tenha estudado horrores, mas não tenha
conseguido uma nota no vestibular que lhe permitisse ingressar numa
universidade pública. Se a família dele não tiver dinheiro para pagar a
faculdade, ele não será médico, simples assim.

Mesmo o rapaz que quer ser contador poderá encontrar dificuldades que o
impedirão de chegar a seu objetivo. Suponhamos que ele tenha estudado
bastante para se tornar contador, mas seu pai morreu, e eis que ele, do nada,
vira arrimo de famí-

lia e precisa ganhar dinheiro imediatamente. Ele vai se tornar motorista de


aplicativo, caixa de supermercado, qualquer coisa que lhe garanta o
sustento da família, e já não poderá mais se dedicar à faculdade. Ao menos
temporariamente.

E o rapaz que quer ser comerciante e já tem uma loja pronta? Parece que
tudo está a seu favor. Mas pode ser que a loja pegue fogo e ele não tenha
seguro. Ou que aconteça como aconteceu atualmente a tantos lojistas que
haviam acabado de montar seus empreendimentos: surja uma pandemia e o
prefeito da cidade mande fechar todos os estabelecimentos por tempo
indeterminado, ele não consiga transformar sua loja física em e-commerce e
acabe falindo.

245

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

E o rapaz que quer ser bailarino, tem dinheiro e estuda na melhor escola de
balé do país? Não há chances de dar errado, certo? Ora, ele pode sofrer um
acidente de carro e perder as duas pernas.

Mesmo a mocinha que julga ter pretensões mais humildes e, no entanto,


mais nobres, pode se ver frustrada. A mocinha que quer apenas ser mãe
pode se deparar com a triste realidade de ser infértil. Ou pior: pode ser mãe
e perder todos os filhos num acidente. Ou ver todos os filhos virarem
bandidos, drogados, cafetões, ou qualquer coisa de que não gosta. “Ser
mãe”
também não depende só da pessoa. Por mais primorosa que seja a educação
recebida pelo filho, por mais amor, carinho e valores cristãos que a mãe lhe
transmita, cada filho ainda terá uma coisa chamada liberdade.

Todos esses modelos de vida citados conduzem a uma culpa existencial,


invariavelmente. Quando essas idéias são postas como ideais de realização
biográfica, só uma coisa acontecerá dentro de você: culpa atrás de culpa,
porque você vai fracassar.

Mesmo que tenha ficado rico, será que você ficou rico tanto quanto queria?
Mesmo que tenha se formado médico, será que você está na clínica que
queria? Mesmo que tenha se tornado mãe, será que teve a quantidade de
filhos que gostaria, ou será que seus filhos se tornaram o que você
desejava? Quando a resposta é “não” (e a resposta sempre é essa), surge um
pensamento que sintetiza essa conexão entre Igor Caruso e John Carroll:
“As coisas estão dando errado na minha vida porque sou imoral. Foi um
erro que cometi lá atrás, foi minha preguiça que me levou ao fracasso; foi a
mentira que contei no aniversário de três anos da minha sobrinha e acabou
repercutindo mal na família que fez com que eu fracassasse”.

Não estou dizendo que você deva ser imoral; sustente por um momento a
idéia de Igor Caruso, porque ela não será der-rubada, mas precisa estar
profundamente articulada. Se estiver isolada, você pensará que tem de ser
bom e fazer a coisa certa; mas isso não basta. Não basta ser bom e agir
moralmente. Se seu modelo biográfico for inadequado, você estará
projetando a

246

realização da sua vida em algo que não depende de si, de modo que ainda
haverá culpa.

Além disso, você não sabe de onde vem essa culpa. Sua vida será vazia,
pesada e dramática, sob certo aspecto, e eventualmente você poderá pensar
que, apesar de ser bom, de ter uma vida de oração, de buscar agir sempre
moralmente, de ter lutado contra suas más inclinações, há algo que não está
andando.
Essa é a culpa de que John Carroll falou. É uma culpa de formação, quase
que estruturante, que surge a partir da escolha de um modelo biográfico
inalcançável.

Enfim um modelo biográfico

realizável: Breve introdução

às Doze Camadas da Personalidade

Quando a pessoa escolhe um modelo biográfico inalcançável, ou seja, que


não depende dela, um modelo-idéia, como, por exemplo, uma carreira, ela
sentirá essa culpa. Também são modelos biográficos inalcançáveis o
veganismo, o comunismo, o esquerdismo, o direitismo, o bolsonarismo e
tudo quanto for ideologia.

Essas idéias são discutíveis, afinal, nem todo o mundo é comunista, mas ao
tentar discutir com alguém que aderiu a esse tipo de eixo biográfico, na
tentativa de convencê-lo de que o eixo é ruim, só haverá uma reação
possível. A pessoa não entenderá que você está falando do comunismo,
criticando a coisa, mas achará que você está falando dela, criticando-a.

Quando esse é o eixo biográfico da pessoa, ela reagirá como se você


estivesse fazendo-lhe uma ofensa pessoal, porque é pessoal mesmo, e
tratando-se de ofensa pessoal, já não estamos mais no nível de uma
discussão racional lógica.

Isso vale para o veganismo, mas também para o tomismo. Pois certas
operações fogem à pretensão de escolas filosóficas ou teológicas, bem
como de determinadas ideologias.

Como ter uma relação sexual homossexual ao modo vegano?

247

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO
Como pagar uma conta no banco ao modo tomista? Como fazer uma oração
a Deus ao modo vegano? Não dá. Logo, veganismo e tomismo não podem
ser eixos biográficos.

Embora a ideologia vegana seja certamente muito mais ras-teira e limitada


do que a extensíssima e abrangente obra do Aquinate e possa parecer
descabido colocar tomistas e veganos lado a lado, quando o tomismo se
torna o eixo biográfico de alguém, a coisa também fica feia.

Tanto o vegano quanto o tomista poderão julgar os outros como imperfeitos


e imorais se notarem que estão diante, res-pectivamente, de não-veganos ou
não-tomistas. Assim, não é incomum que olhem com desprezo para os não-
veganos ou não-tomistas, pois eles mesmos amputaram várias dimensões
das próprias vidas.

O primeiro movimento de quem está sentindo culpa é defender-se com


unhas e dentes. É preciso ser muito humilde para assumir a culpa de cara. O
tomista e o vegano se sentem culpados, pelo princípio de culpa de John
Carroll, porque acreditam que sua vida fracassará, ou mesmo que ela já é
um fracasso, tendo em vista que inúmeros movimentos dela não podem ser
tomistas nem veganos. Não se pode beijar na boca ao modo tomista, não se
pode fazer um relatório ao modo vegano.

A vida dessas pessoas será um fracasso sempre, exceto quando estiverem


estudando São Tomás de Aquino ou quando algum ponto do tomismo for
aplicável (no caso dos tomistas), ou quando estiverem comendo (no caso
dos veganos). O problema é que essas atividades ocupam um período
ínfimo do dia. Em todo o resto, em todos os outros domínios da vida do
sujeito, haverá um fracasso biográfico.

A escolha de um eixo biográfico desses lhe impõe um peso de culpa, você


se torna hiper-reativo diante do mundo e se sente culpado por estar
fracassando. É o princípio da crise de base, de que fala John Carroll.

“Italo, mas eu sou uma blogueira fitness em tempo integral”. Só é possível


ser fitness quando você está fazendo exercícios ou

248
comendo. Em todo o resto da vida, você não poderá ser fitness.

Como cortar o cabelo ao modo fitness? Como ir ao hospital operar apêndice


ao modo fitness? Não dá. É óbvio que sua vida será permeada por esse
fracasso existencial que inscreve em você o peso da culpa. Sua vida não
andará, embora possa parecer andar. É aí que o sujeito começa a extrapolar
e tenta levar a coisa fitness para todos os âmbitos da vida, e começa a falar
em assuntos fitness em todas as rodas de conversa e a vestir-se com roupas
fitness em praticamente todas as ocasiões. Mas nem isso é possível fazer
sempre. Eu nunca vi ninguém com roupa de academia em um casamento,
por exemplo.

Sua vida se tornará uma coleção de fracassos acumulados que não têm a ver
com a moralidade de certo ou errado. Você pode ser um sujeito fitness,
vegano ou tomista, do modo “certo” (do ponto de vista de Igor Caruso).
Você pode não cometer crimes, não roubar, não mentir. O problema é que o
certo e o errado estão na base. Não é que seja melhor ser um sujeito
relaxado e displicente do que ser fitness, ter saúde e força. O ponto é que
estamos falando de certo e errado, e da impossibilidade de ter uma biografia
completa e ampla, porque o modelo é insuficiente.

É como a escolha do “ser rico”. Não dá para objetivar uma biografia com
esse modelo, porque a realização dele não depende de você. Deixar de
comer carne e estudar São Tomás de Aquino são coisas que até dependem
você; o que não depende, nesses casos, é a realidade da vida, que é mil
vezes mais ampla do que uma academia e até mesmo do que a obra inteira
de São Tomás.

A escolha de um modelo biográfico correto é fundamental.

O problema é que o homem não inventa modelos biográficos, está sempre


imitando alguma coisa. Precisamos, portanto, entender o que é o modelo
biográfico possível, porque esses todos são irrealizáveis por definição.

Já se perguntou por que é que existe um pessoal religioso, de igreja, com


anos de prática religiosa, que mesmo assim não consegue progredir na vida,
não fica mais inteligente, nem mais caridoso, nem mais humilde? Isso
acontece porque eles
249

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

têm, na base, a imoralidade contra a biografia, traduzida em um modelo de


vida estruturalmente impossível, em um eixo biográfico impossível de ser
realizado. São esses os indivídu-os que começam a culpar Deus de modo
sutil e a buscar em si próprios os motivos pelos quais não têm sucesso,
quando a verdade é que o sucesso não depende só do indivíduo.

O fetiche da meritocracia humana precisa acabar na cabeça de todos. O


mundo não é meritocrata! Qualquer um que tenha de escolher entre alguém
da própria família e alguém desconhecido, escolherá alguém da família, a
não ser que a diferença de competência seja avassaladora. Essa escolha será
baseada puramente no amor, e não há mérito nenhum nisso. É assim e
pronto. De modo semelhante, pessoas feias são preteridas todos os dias em
prol de pessoas bonitas e jogadores mais altos serão escolhidos antes para
ingressar nos times de basquete.

Para ter uma vida com sentido, livre de culpa, não basta ser bom; mas isso
não quer dizer que devamos ser maus. Essa culpa estruturante não exclui as
necessidades conceitualmente elencadas por Igor Caruso — o problema é
quando só elas aparecem na sua história.

Já vimos os eixos narrativos, e agora entendemos que certos modelos de


vida não podem funcionar por definição — e, infelizmente, são esses os
modelos que estão em voga hoje.

A verdade é que o único lugar biográfico no qual é possível encontrar um


modelo moral para o desenvolvimento da sua biografia é na formação do
seu eu. Somente um sujeito que está comprometido em falar “eu” entra no
fio da biografia própria possível de ser realizada. Isso é muito profundo e
prático ao mesmo tempo.

O que me diferencia de você, no final das contas, é que, quando eu falo


“eu”, não é você quem está falando. É só isso.
A única coisa que se pode controlar nesta vida é o lugar a partir do qual se
fala “eu”, é o testemunho solitário que se dá diante da vida. Todo o resto
está fora de controle. Controlar este lugar é a única maneira de sair dessa
culpa de base, desse fracasso necessário.

250

A descrição das Doze Camadas da Personalidade Humana do professor


Olavo de Carvalho é o único modelo de realização biográfica possível. Lá
está descrito o itinerário de realização pessoal; as doze camadas são o eixo
biográfico — veja bem, o eixo biográfico, não o eixo narrativo. Você pode
contar qualquer história: a dos brâmanes, dos xátrias, dos vaixás e dos
sudras, mas, ao fim e ao cabo, se a história contada não for a sua, se você
não for escalando as camadas, você terá fracasso na base. As doze camadas
são a história da conquista de um “ Eu ” . São motivações que vão se
personalizando, tornando-se cada vez mais pessoais, camada a camada.

A motivação da Primeira Camada é ser, aparecer, existir. Essa é uma


motivação maximamente impessoal, totalmente passiva e inconsciente,
igual para todo o mundo . Sequer é preciso consci-

ência para tê-la. A única intenção do feto no ventre da mãe é ser, existir, não
se desintegrar. Não é uma intenção consciente, uma vez que o feto não tem
consciência, mas uma tendência. Na primeira camada temos, portanto, não
uma psique do modo como a entendemos, mas aquele ente já tem o desejo
de permanecer.

A motivação da Segunda Camada, por sua vez, é ser, mas ser na história.
Lembre-se do inconsciente familiar de Szondi.

Na Primeira Camada, você aparece, adquire presença metafísica; na


Segunda, você se faz de carne e osso, você aparece na história

— e história é família. Rebenta em você o sangue de seus pais.

Isso também é pouco diferenciado, pouco pessoal, porque, querendo ou


não, muita gente apareceu nessa sua família; esse sangue vem sendo
carregado há milênios. Não existe ainda propriamente um eu individual na
Segunda Camada, portanto.

Depois vem a Terceira Camada, cuja motivação é aprender.

Quem está aprendendo, porém, é um ser ainda pouquíssimo pessoal. Não é


um aprendizado intelectual, e sim mais básico, de estar no mundo,
calculando-o. Na Terceira Camada, você aprende que as coisas têm
unidade, são separadas, existe distância; você aprende, basicamente, a se
instalar no mundo, e todo ser humano adulto vivente está instalado neste
mesmo mundo e aprendeu sobre ele. Logo, essa camada ainda é pouco
pessoal.

251

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

As dificuldades de aprendizado da Terceira Camada são aquilo que o


impede de continuar progredindo. O autismo grave, o retardo moderado, as
lesões neurológicas, o impedem de calcular as organizações das letras, das
frases, das unidades narrativas.

Existe dificuldade até em compreender um pedido simples, porque ele nada


mais é do que pequenas historinhas conectadas, como em “Você pode pegar
aquela xícara, colocar nela um pouco de café e depois adoçá-lo com
açúcar, por favor? ”. Por isso é que, com o autista grave, é necessário falar
uma coisa de cada vez, calma-mente e olhando para ele. Ele não calculou o
mundo direito, e tem essa dificuldade de aprendizado.

A Terceira Camada é pouco personalizada, porque todo o mundo aprendeu


ou está aprendendo este mesmo mundo. O

que está entrando em você é compartilhado com muita gente; não existe um
eu interior ainda.

Na Quarta Camada, temos a formação do mundo afetivo.


Você começa a ter um eu mais pessoal, mas ainda é um eu passivo, porque
o território interior é de uma matriz comum a todos os seres humanos,
antropologicamente falando.

O território a ser conquistado na Quarta Camada é o da segurança, e isso


vale para todos. A pessoa na Quarta Camada só quer dizer: “Eu fechei um
contorno interior de segurança”. Sim, ela já tem eu, mas ainda é pouco
personalizado, pois é muito semelhante a todos os outros. Mesmo os
sofrimentos de Quarta Camada são iguais para todo o mundo, e isso já é
indício de que há pouco eu ali.

Já a motivação da Quinta Camada é testar forças e vencer, é autodeterminar


aquele eu que foi formado e fechado interiormente na Quarta Camada. Aqui
já há um eu mais bem deli-neado, porque sua ação no mundo é sua, já
começa a ser mais pessoal. Você quer agir no mundo e vencer.

Nenhum adulto deveria ficar aprisionado na quarta camada, pois ela não é
senão uma etapa de transição. Mas há hoje muita gente que insiste em não
amadurecer, em não abandonar a quarta camada. No consultório, faço uma
progressão congruente para tirar o sujeito da quarta e jogá-lo na quinta ou
na sexta camadas.

252

É preferível um sujeito brigão e forte (de quinta camada) do que um


coitadinho. É bom ser alguém brigão e forte? Não. Mas já é melhor do que
um coitadinho que não faz nada e sempre se coloca como vítima. O sujeito
de quinta camada já reconhece, de algum modo, que há um mundo fora de
si. Quem está na quarta camada acha que o centro do mundo é o seu
umbigo; quem está na quinta acha que o centro do mundo é o seu braço —
o que é melhor, pois um braço pode derrotar um inimigo, limpar uma pia,
embalar um bebê, dar pão a quem tem fome, ao passo que um umbigo só o
que faz é juntar sujeira.

Na seqüência, existe a motivação da Sexta Camada, que é agir no mundo,


vencer e recolher benefícios de utilidade com aquela ação. Nesta camada,
começa-se de fato a ser adulto. Nela encontramos o sujeito que, embora não
seja propriamente altruísta, reconhece que precisa de outros e que precisa
fazer algo pelos outros; do contrário, não ganhará nada. É o sujeito que sabe
que precisa trabalhar, produzir, ajudar - ser útil de algum modo.

Veja a complexidade de realização que já temos. A história das Doze


Camadas da Personalidade é a história da conquista de um eu. Este é o
único eixo biográfico possível para todo o mundo.

Dito de outro modo, os sofrimentos e culpas que aparecem, no final das


contas, são culpa por não amadurecer. Amadurecer é conquistar um eu cada
vez mais individualizado; e isso, que é uma poesia compreensível, mas
abstrata, torna-se cristalino no itinerário das doze camadas. Elas são o
remédio para a falsidade biográfica.

Um mesmo objetivo pode ser alcançado por mais de uma motivação, a


depender da pessoa. Você pode, por exemplo, querer ganhar dinheiro para
ser útil (Sexta Camada), mas também pode querer ganhar dinheiro para se
sentir amado por seus pais (Quarta Camada). Nesse último caso, ganhar
dinheiro não resolverá nada desse fracasso que você tem por dentro, porque
seu fracasso real não é a pobreza, mas a imaturidade latente da Quarta
Camada.

Todos esses modelos biográficos (ser médico, ser mãe, ser rico...) acabam
caindo em alguma camada. Ganhar dinheiro e ter sucesso é uma motivação
característica da Sexta Camada, mas ainda é uma motivação pouco
personalizada. Acima dela, existe uma série de outras necessidades do eu, e
o sujeito que ganha

253

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

muito dinheiro e de fato está na Sexta Camada eventualmente acaba


notando que ele não serve para nada além de fazer dinheiro

— como tantos outros no mundo (daí a falta de personalização).


Não à toa, a motivação da Sétima Camada é servir, e seu representante
teórico é Alfred Adler, que diz que os sintomas aparecem a partir de uma
coisa chamada complexo de inferioridade.

E é verdade: enquanto não entender que seu eu aparece no confronto de


serviço para a comunidade, você será inferior.

Ainda faltam coisas, mas Adler já conseguiu ver mais longe do que seus
colegas. Não adianta autodeterminar o seu eu interiormente, como Freud
propõe, ou projetá-lo no mundo, diante dos arquétipos, como Jung pretende.
Adler é quem diz que, acima de todos esses eus, existe um eu mais
poderoso (mais personalizado, portanto), que é o eu que aparece no
confronto de serviço para a comunidade.

Esse eu é mais poderoso, porque o serviço já começa a, de fato, depender de


você. Ganhar dinheiro não depende somente de você, mas de outras mil
circunstâncias que fogem ao seu controle. Numa situação de guerra ou de
penúria, onde faltam recursos materiais, você nunca ganhará dinheiro (a não
ser que seja dono de uma indústria bélica). Numa sociedade cibernéti-ca,
em que a tecnologia tomou conta de tudo, só sobrarão três profissões: TI,
metalúrgico e pedreiro. Não dá para se realizar ali ganhando dinheiro ou
sendo médico ou bailarino; mas mesmo em uma sociedade dessas, onde
falta a possibilidade do sucesso profissional, é possível desempenhar o eu
da Sétima Camada, que é o papel social do serviço, como vemos com
Adler. O papel social não é uma máscara que diminui ou que anula o
indivíduo.

Pelo contrário, se estiver na sétima camada, o papel social faz com que você
seja mais você. Chega uma hora em que você percebe que sua motivação é
entregar e servir. Você é mais quando entrega para o outro aquilo que
corresponde à expectativa dele.

Todo ser humano normal deveria chegar à sétima camada, de algum modo.
Ao longo da vida, se você aprende a fazer muitas coisas úteis, alguma
comunidade terá uma expectativa sobre você, e o que você tem de fazer é
cumprir esse dever.

254
Por fim, na Oitava Camada (só comentarei até ela), aparece um eu que fica.
É uma força que independe até mesmo da comunidade; é um eu que
apareceu na linha metafísica (Primeira Camada), que se concretizou com
sangue de seus antepassados (Segunda Camada), que aprendeu a se instalar
no mundo (Terceira Camada), que contornou seus afetos no mundo interior
(Quarta Camada), e que, por ter uma unidade interior, pôde testar forças no
mundo (Quinta Camada). Essas forças passaram a ser úteis e a trazer
recursos de sucesso (Sexta Camada), e ele agora as põe a serviço da
comunidade (Sétima Camada) e transcende a conquista material (Oitava
Camada). É o itinerário de personalização do eu; a cada vez que você fala
eu perpassando as camadas, esse eu se torna mais seu e mais indestrutível.

Não se trata do papel social prestado, do dinheiro desejado, do estilo de


vida vegano ou tomista, do ser fitness, ou do ser médico.

Essas coisas são a impossibilidade mesma da realização biográfica.

Assim não dá para ser, e, se tentar, você carregará uma frustração de base
que o levará para uma culpa existencial e, por conseguinte, para uma
tristeza.

Na Oitava Camada, a motivação já é a aquisição de um eu que independe de


comunidade, de dinheiro, de força, de um mundo afetivo. A Oitava Camada
é a resposta de um eu diante da morte, porque, na comunidade, ainda há
muita gente, mas, no fim, quem morre é o indivíduo.

Ninguém morre acompanhado. Isso é algo sobre o qual precisamos meditar.


Você ganha força na comunidade, adquire dinheiro na sociedade, testa sua
força num grupo, é validado afetivamen-te por alguém de fora. Os eus, até a
Sétima Camada, são sempre compartilhados, logo, são pouco eus.

Na Oitava Camada, por outro lado, é você e mais ninguém.

Metafísica e esterilidade:

o eu diante da morte
As Doze Camadas da Personalidade são uma tecnologia muito profunda.
Subindo, de camada em camada, vamos aos poucos

255

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

conquistando o eu, a pessoalidade. Como vimos anteriormente, o eu da


Primeira Camada é pouquíssimo pessoal. É a partir da Sétima Camada que
ele começa a se personalizar mais.

Mas por que diabos você precisa se preocupar com essa pessoalidade, com
dizer eu? Ora, porque absolutamente tudo o que fazemos, fazemos diante de
um eu: eu acordo, eu preparo meu café da manhã, eu sirvo minha empresa,
eu ganho dinheiro, eu sonho meus sonhos, eu enterro meus entes queridos,
eu gero vida no meu ventre, eu gero vida intelectual.

Esse eu ativo é contrário ao eu egoísta, egocêntrico. Aliás, as pessoas sem


conhecimento de Psicologia geralmente associam o ego a algo ruim,
quando, na verdade, seu ego é tudo o que você tem. O importante é
construir um ego pleno e que faça sentido. Que, no leito de morte, você
possa dizer diante de sua vida:

“É, fui eu quem vivi”. Esse ego pleno é um ego particularizado.

Uma pessoa em sofrimento, seja ela sua amiga ou paciente, muito


provavelmente está com grande dificuldade para dizer eu.

Há uma espécie de falha em algum lugar de sua personalidade, que a faz


mover-se como tudo o mais se move, sem questionar o motivo pelo qual
vem fazendo isso. Ela não se faz as perguntas fundamentais. Esta é a grande
tragédia do ser humano que a teoria das Doze Camadas da Personalidade
busca solucionar, lançando luzes no processo de amadurecimento.

Amadurecer nada mais é do que tomar posse daquele domínio espiritual


que apenas o homem tem. Por mais que você ame seu bicho de estimação,
ele jamais poderá dizer “eu”; ele nunca poderá mar-car um compromisso
com você, ou ainda dizer “Eu te amo”, pois não há eu ali. Há, sim, um
indivíduo que pode ser amado, que aceita afeto, que até manifesta afeto,
mas que o faz tal como todos os demais bichinhos de estimação. Seu
bichinho é, no final das contas, indistinto, como um folião de carnaval. Não
existe nele um princípio de personalização, que é justamente o que
distingue o homem dos demais animais, dos minerais e dos vegetais. Temos
uma condição esquisita dentro nós, que é a capacidade de fazer um ato
pessoal. Seu gatinho também age, mas segundo a espécie dele.

O ato do gato é um ato da espécie, já o ato humano é pessoal — e pode ser


pouco ou muitíssimo pessoal.

256

Todo e qualquer amadurecimento consiste em fazer com que os nossos atos


sejam pessoalíssimos, e um ato pessoalíssimo é um ato sem esperança.
Parece um grande paradoxo, não?

O ato humano sem esperança vem de um lugar que nos amarra ao Ser,
dentro do qual vivemos. Esta é a síntese de toda a filosofia de Louis
Lavelle, segundo a qual, no fundo de tudo, domando tudo, penetrando tudo,
existe um Ser, e não o nada. Isso deveria ser bastante óbvio: basta respirar,
basta um abraço, basta ver uma criança, basta dar uma esmola, basta ver
uma flor germinando, basta contemplar o sol que nasce e se põe
diariamente. Tudo isso é presença de algo, e não presença de nada. Não se
pode ter presença de nada; nem mesmo a mentalidade mais tacanha pode
negar essa verdade. O que existe é o Ser, e não o nada, e isso se constata
pela própria autoridade da realidade, que é profundamente presente.

O ato humano se distingue dos demais atos. Um objeto também “age”, mas
chamamos seu agir de padecer. Quando você segura uma pedra com as
mãos, ela fará peso, afinal, tem volume, matéria, dimensões. Ela age,
portanto — mas é uma ação passiva. A ação de um cachorro, pelo contrário,
é ativa (como uma ação pretende ser), mas ainda não é pessoal.

Animais não agem em primeira pessoa, segundo o indivíduo, mas sim


segundo a espécie.
O ser humano é o único que age pessoalmente, e por isso nosso ato se
parece muito com o ato primeiro, criador, do Ser em Ato Puro, e disso
deriva que todos os atos do ser humano são absolutamente dignos — até os
mais imanentes, como escovar os dentes, passar uma blusa a ferro, apertar o
botão do elevador. No homem verdadeiramente maduro, que foi ascendendo
as camadas da personalidade, mesmo esses atos cotidianos (que, via de
regra, não preenchem nossa vida de história) compõem profundamente a
biografia. Isso acontece, pois o ato humano tem comunhão com o Ser em
Ato Puro, que é Aquele que nos sustenta na realidade, que é o fundamento
mesmo da realidade.

Todas essas coisas de que falamos ou são transformadas em linguagem


vulgar por uma religião mal compreendida, ou são desconhecidas pelo
homem contemporâneo. Explico.

257

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

O homem de hoje vive entre máquinas e telas, entre preocupações


financeiras e afazeres, entre doenças e egoísmos, então é perfeitamente
compreensível que o desconhecimento seja uma das dinâmicas mais
preponderantes do nosso tempo (ainda que seja uma tragédia). Por outro
lado, existem homens que vivem revestidos de uma religião mal
compreendida e atribuem tudo a Deus, quando há coisas que absolutamente
não são de Deus.

Na verdade, a maior parte das coisas que os religiosos atribuem a Deus


alegando ser “matéria de fé”, são simplesmente uma abdicação da
inteligência humana.

O Deus metafísico, o Ser em Ato Puro, é um ente de razão absolutamente


demonstrável, e, mais do que isso, ele é percebido sem a mínima
necessidade de que haja fé. Portanto, esses religiosos postiços que se dizem
profetas, que dizem ter visões, in-terceder etc., estão profanando não a
religião, mas a humanidade mesma, aquilo que há de mais íntimo no ser
humano: o ato.

A tragédia de uma existência

sem metafísica

O ato é o tecido que compõe a trama da nossa existência, e há diferença na


qualidade dos tecidos. Existem tecidos escu-recidos, aqueles atos que são
como trevas, que vão compondo uma existência nebulosa, sombria — ou,
como diria Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, no poema
“Tabacaria”, uma existência “sem metafísica”.

Tudo o que falamos aqui já foi registrado na poesia contemporânea


inúmeras vezes. Benedetto Croce já dizia que a poesia serve para registrar
impressões, e claro está que a falta da metafísica é uma impressão do
espírito do homem contemporâneo.

O homem contemporâneo, vagando sombriamente pelo mundo, não


consegue encontrar o sentido mesmo desta vida. Ainda que reconheça que
seu eixo narrativo é o de servir, ainda que saiba em que precisa melhorar,
ainda que saiba que precisa deixar de ser um personagem imitativo baixo
para se tornar um imitativo elevado, ainda que saiba que precisa ascender
nas

258

camadas da personalidade, o homem contemporâneo não consegue


encontrar o sentido da vida. E, ao não encontrá-lo, já não consegue mais
acreditar numa existência para além do mundo material. Há como que uma
sombra que enforma não só os olhos, mas todo o ser, há algo que amputa e
deixa lesões profundas no homem, como se fôssemos bonecos de vudu na
mão de demônios malignos que nos odeiam e nos querem controlar.

Essa é, em geral, a conversa do homem contemporâneo.

Que tragédia é a vida sem metafísica!


O convívio com pessoas excelentes, a meditação e o exílio diário são o que
nos ajuda a reter essa metafísica que é o apon-tamento para o sentido último
da existência. Pela leitura do poema “Tabacaria”, você entenderá o que
estou dizendo. Nele existe um niilismo, ou seja, uma visão de mundo de
alguém para quem, ao fim e ao cabo, não há nada, não haverá nada, nunca
houve nada.

No poema, o eu lírico está tomado de uma angustiante dú-

vida metafísica. Ele diz que não é nada, nunca será nada e não pode querer
ser nada; no entanto, tem em si “todos os sonhos do mundo”. Em sonho, em
hipótese, em segredo, ele fez mais que Napoleão, apertou ao peito mais
humanidades que Cristo e fez mais filosofias que Kant. Mas na realidade o
que é que fez?

Falhou em tudo, pois que “o mundo é para quem nasce para o conquistar e
não para quem sonha que pode conquistá-lo”.

Revela, assim, suas tristezas e demônios interiores num queixume sem fim,
que lhe serve de resposta diante da morte: Estou hoje vencido, como se
soubesse a verdade Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer E não
tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se
esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma
partida apitada De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

259

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da
rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como
coisa real por dentro.
Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

(...)

Não, não creio em mim.

(...)

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.

Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —, E quem sabe se


realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

0 mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que
pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.


Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho
feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha
qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
uma parede sem porta.

(v. 25-60)

260

É a triste confissão de um homem que não crê em si mesmo, não sabe o que
é e não vê sentido na própria vida. Como resultado, olha também para o
mundo exterior, para as ruas da cidade, para o campo, para onde quer que
seja, e não vê senão coisas banais, indistintas e desprovidas de sentido:
árvores, ervas, pessoas iguais a todas as outras. Não vê graça alguma no
mundo, quando poderia ter percebido o alegre canto dos pássaros, o sopro
gostoso da brisa, o precioso dom do sol que não deixa de nos dar luz e calor
um só dia ou a sinceridade do sorriso desdentado de uma menina de rua.

Esse homem esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem
porta. Esperou e esperou... Mas o que é que ele fez?

De que adianta ficar cabisbaixo, cruzar os braços e ficar esperando


(desesperançosamente)... sem fazer absolutamente nada?

De fato, ninguém vive só de “aspirações nobres, altas e lúcidas”

— é preciso convertê-las em atos. Pode ser que essas aspirações não


cheguem aonde pretendíamos, mas isso de nunca verem a luz do sol real
nem acharem ouvidos de gente é, além de um pessimis-mo extremado, uma
grande falsidade.

E ele segue:

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chuva, o


vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou
não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas


acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e
o Indefinido.

(v. 63-72)

“Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama”?! Em sonhos,


talvez. Mas antes de levantar da cama, o que fazemos é uma oração ao Bom
Deus, para que Ele nos guie no caminho e não nos deixe esmorecer diante
das adversidades, e para que possamos bem servir aos outros, que são esses
que

261

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

estão ao nosso lado. Só conquistamos o mundo depois que nos levantamos


da cama, inspirados e embalados por um ofereci-mento de obras — não
antes de nos levantarmos, mas depois.
É óbvio que o mundo é opaco para um “escravo cardíaco das estrelas”, para
alguém cujo coração bate na prisão de uma constelação distante, e não na
constelação de amor daquele que está ao seu lado — que mora consigo, que
precisa de seu beijo, de seu abraço, de seu cuidado, de seu dinheiro, de seu
serviço.

O que um homem como esse não consegue entender é que a metafísica não
está distante, nas estrelas, mas sim num olhar de amor, no serviço ao outro,
no cumprimento de um dever, na re-tificação de um erro, no pedido de
perdão para quem magoamos e traímos, para quem esteve ao nosso lado nos
suportando em nossas falhas e misérias.

Aqui está o delírio de quem não entende que esta vida se dá neste mundo.
Parece que o céu e a terra se tocam lá longe, no horizonte, na Via Láctea, no
Indefinido, mas não é assim: o céu e a terra se fundem no coração de cada
ser vivente, e é a partir desse lugar que um ato criador emerge.

Quando se pensa que religião, transcendência, amor e humanidade são


coisas tão distantes de nós quanto as estrelas, nada mais natural do que
considerar que religiões não ensinam mais do que a confeitaria e que não há
mais metafísica no mundo senão chocolates:

(Come chocolates, pequena; Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

(v. 73-76)

Pouco depois, no verso 83, o eu lírico diz o seguinte: “ao menos consagro a
mim mesmo um desprezo sem lágrimas ”. Mas um homem que não chora
não é verdadeiramente homem e uma mulher que não chora não é
verdadeiramente mulher. Chorar é profundamente humano. Chorar diante
de uma realidade
262

de perda, de uma alegria, da beleza das coisas simples do mundo, que está
aí para nós gratuitamente, é profundamente humano. As lágrimas servem-
nos de polimento para os olhos. E, como vimos no capítulo dedicado à
lâmina da Papisa, quem não tem os olhos polidos, não tem neles refletido o
mundo.

E se não o tem, não é capaz de captar o ser das coisas.

Apesar dessa incapacidade, ele diz “ver a rua com uma nitidez absoluta” (v.
98). Sim, vê lojas, passeios, carros, “entes vivos que se cruzam” e “cães que
também existem”: mas não capta o ser de nada disso, pois não tem os olhos
polidos. Apenas constata que aquelas coisas existem, pois seus olhos não
podem estar lhe enganando.

“E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, / E

tudo isto é estrangeiro, como tudo.” Para o homem que não chora e não se
emociona diante da realidade da beleza da vida, tudo

“pesa como uma condenação ao degredo”, “tudo isto é estrangeiro, como


tudo”. As lojas, os passeios, os carros, as pessoas, os cães: tudo lhe parece
estrangeiro. De fato, tudo quanto existe e é material, é estrangeiro como
tudo. É como se vivêssemos em uma terra de exílio; vivemos aqui, mas não
somos daqui. No entanto, estamos domiciliados no sentido metafísico do
mundo, não nas estrelas ou em outro lugar distante. E aqui devemos amar e
servir.

No verso 111, deparamo-nos com um grande drama: Fiz de mim o que não
soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,


Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela


gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

(v. 111-121)

263

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

Ele tentou contar uma história que não era a dele, vestiu o traje errado,
deixou que a máscara se colasse em sua cara.

Quando finalmente arrancou a máscara, viu que já tinha envelhecido e já


havia se esquecido como vestir aqueles trajes — e acabou como um cão
tolerado pela gerência. Todo o esforço do ser humano consiste em não
deixar com que essa máscara se cole em sua cara e a vida passe sem que
você a tire. Consiste em não deixar de fazer de si o que poderia fazer.

“Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.” O
dominó é um tipo de roupa. Veja o drama: ele não o sabia mais vestir, mas
tampouco o tirou. Ele queria ter vestido esse dominó, mas alguém o vestiu
nele, de modo que agora já não sabe mais como desfazer a situação, porque
foi privado de uma vida de atos.
Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me
como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de
defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um
tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram
e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da


alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

(v. 122-131)

Veja, pelos versos acima, como eu lírico trata de temas da Oitava Camada.
Ele faz um inventário de sua vida diante da morte; é disso que trata o poema
“Tabacaria”. De início, o tema da morte não aparece senão de passagem.
Mas agora é chegada a hora da constatação fundamental, da lembrança de
uma verdade a que ninguém pode se esquivar:

“Ele morrerá e eu morrerei.”

264

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em


que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente


Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como
tabuletas,

(v. 132-138)
Diante da morte, o poeta busca entender o sentido daquilo que ele faz —
escrever versos. Pois hoje o que ele produz são versos, e versos como uma
pretensão sublime, mas um dia o mundo há de acabar, e com ele perecerão
o poeta, seus versos e a própria língua em que foram escritos. Sua obra
morrerá.

Para quê, então, fazer versos? Em sua reflexão, escrever torna-

-se algo inútil diante da morte.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), E a


realidade plausível cai de repente em cima de mim.

Semiergo-me enérgico, convencido, humano, (v. 143-145)

Uma pessoa entra. Os devaneios do cardíaco das estrelas, de quem quer


alcançar mundos e Vias Lácteas, e tudo aquilo que paira abstratamente
sobre a cabeça perturbada do poeta, que quer entender o que é a sua vida
diante da morte, é interrom-pido pela grande maravilha que há neste
mundo: uma pessoa.

Surge um universo real, profundamente real: entra na tabacaria alguém que


quer comprar tabaco. Há, finalmente, esperança.

Ele então acende um cigarro e saboreia nele a libertação de todos os


pensamentos e especulações que antes o atormenta-vam (v. 147-151).
Contudo, conclui erroneamente que a metafísica é uma “conseqüência de
estar mal disposto”. E, assumin-do novamente a postura letárgica e
abstendo-se dos atos, ela se deita na cadeira e continua fumando. Fumando
e esperando.

Fumando e deixando a vida passar.

265

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO
Deus sabe quantas oportunidades não teve este poeta de dar sentido a esta
vida sem sentido. Sabe o que quebraria a maldição desse escravo cardíaco
das estrelas? Olhar para aquela pessoa que entrou na tabacaria, sorrir-lhe e
oferecer-lhe um cigarro — e quem sabe convidá-la a se sentar, perguntar de
que tabaco mais gosta etc. Mas ele preferiu desperdiçar mais uma chance de
fazer algo para continuar fumando e divagando.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-


me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

(v. 159-164)

Por que você imagina que, para o poeta, esse tal Esteves não tem
metafísica? Em primeiro lugar, porque o poeta não tem os olhos polidos e
não consegue captar o ser das coisas.

Na verdade, todo ser humano tem “metafísica”, pois todo ser humano tem
um sentido que não está limitado à realidade material. Toda vida humana
tem sentido e é interessante se for bem contada.

Se o poeta diz que Esteves não tem metafísica, é porque ele próprio está
contando sua vida sem metafísica, como já vimos nos versos anteriores.

O poeta está no drama terrível da Oitava Camada, percebe?

“Ele morrerá, eu morrerei”. É um diálogo terrível, e ele aposta no cavalo


que vai perder, em uma vida sem ato, em uma vida de quem se reclina para
trás e segue fumando enquanto lhe for concedido fumar.

266
Drummond

e a máquina do mundo

“Tabacaria”, contudo, é um poema muito pesado e um tanto exagerado para


o gosto do brasileiro, que não é nem tão ufanista nem tão desesperançoso
quanto Álvaro de Campos. Lembremo-nos de que Fernando Pessoa estava
imerso em uma atmos-fera ocultista e vivia numa Europa decadente. Na voz
deste seu heterônimo, vemos a disputa incrível entre ser filho do admirá-

vel povo português (que rasgou oceanos, cruzou mares, enfren-tou dragões
dos horizontes, inflou velas com a esperança de seu coração e de sua fé e
desbravou o mundo, levando o Cristo e a cruz para além-mar) e ser nada
(ser aquele homem da mansarda, aquele gênio que se concebe gênio para si
mesmo, mas cuja genialidade talvez jamais encontre a luz do dia).

Nós não somos assim. Somos apenas “mineirinhos”, como nos retrata
Drummond em “A máquina do mundo”, um de seus ápices poéticos. No
poema, ele canta uma das nossas maiores tragédias, a saber, a do homem
que olha para as doze camadas e quer nelas ascender, que entende que
precisa se pessoalizar, que conhece as quatro narrativas possíveis e, embora
sabendo de tudo isso, tem trespassada em seu espírito uma espada negra,
envenenada, a qual mina sua energia e arranca a esperança mesma que o
habita.

É um poema razoavelmente grande e de leitura difícil, que dialoga —


apenas pela estrutura — com a “Divina Comédia”

de Dante. Gostaria de comentar alguns de seus versos. Mas peço que você o
leia integralmente três ou quatro vezes antes de passar aos meus
comentários.

O eu lírico começa o poema dizendo que caminhava lentamente, como bom


mineirinho, por uma estrada pedregosa, sob um céu escuro e sombrio, que
só não era mais escuro do que os montes e seu “próprio ser desenganado”.
Ele caminhava por uma espécie de “selva escura”, como aquela de Dante.
Mas aqui o homem viu escuridão fora e dentro de si. Estava cansado e sem
esperança.
267

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

Foi quando se deu uma aparição: “a máquina do mundo se entreabriu” (v.


10). Abriu-se majestosa, de modo calmo, sem fazer muito barulho nem
emitir uma luminosidade que feris-se os olhos sensíveis daqueles que
andam no deserto. O que aconteceu foi uma espécie de revelação, uma
oportunidade de ouro, que é descrita do verso 10 ao 69. Foi um convite a
abrir o peito e contemplar aquilo que ele havia sempre procurado em si
mesmo ou fora do seu ser, mas que nunca havia desco-berto: uma riqueza,
uma ciência sublime, porém hermética, a total explicação da vida. Tudo se
lhe apresentou naquele relance e a máquina o “chamou para seu reino
augusto” (v. 68).

Que convite!

E qual foi, afinal, a resposta a um convite dessa magnitude?

O caminhante relutou em responder, porque sua fé era fraca e a esperança


estava morta; parecia-lhe que quem dominava sua vontade era outro ser,
não mais aquele que ele já fora um dia.

E rejeitou o convite, como quem diz: “Obrigado, mas esse convite me


chegou tarde demais. É um dom tardio.”

Veja então o que fez o caminhante: “baixei os olhos, incurioso, lasso, /


desdenhando colher a coisa oferta / que se abria gratuita a meu engenho.”
(v. 88-90). Recusou a oferta gratuita e o confessa.

Essa máquina do mundo também se abre para todos nós.

Mas não se abre só uma vez na vida, quando já estamos cansados e sem
esperança na estrada pedregosa da vida. Ela está aberta para nós,
gratuitamente, todos os dias. Como uma flor perenemente aberta, ela
perfuma nosso ser, alegra nossos dias, exibindo toda a sua vivacidade e cor.
Temos nós, homens, uma irmandade com um Ser que não se abre e fecha
malignamente e se fecha como em uma comé-

dia tirânica. A imagem do caminho percorrido descrita por Drummond é


sombria e triste: a estrada de Minas é pedregosa — um chão de desamor —,
o céu é de chumbo, as aves são pretas, agourentas, e as montanhas, escuras.
Mas quem quer que tenha visitado Minas não costuma ter essa impressão:
pelo contrário, vê um céu bonito, cheio de andorinhas, e um chão

268

maravilhoso, vermelho como o sangue que jorrou da Cruz e pelo qual


fomos redimidos, num ato máximo de amor. Esse sangue é fonte da vida.

O que havia em Drummond, para que o mundo se lhe fe-chasse diante da


morte? Por que Drummond nos conta sobre o chão pedregoso de Minas,
sobre essas aves negras que voam no céu como se prenunciassem um fim
trágico e desolado?

Esses versos são meus e seus; são nossos. Não são aquela cena distante de
“Tabacaria”, pois, no fundo, todos temos alguma metafísica — ninguém há
como o Esteves. O que acontece no poema de Drummond é a história de
muitos de nós: de sujeitos que olham para baixo e enxergam um chão
pedregoso e infértil, que nos dificulta a caminhada e donde vida alguma
poderá brotar; de sujeitos que, em certos momentos da vida, perdem a
capacidade fecundante.

Há, de fato, em todo homem a possibilidade de um ato “sem esperança”, no


sentido de que se faz sem esperar nada. Nesse sentido, o ato “sem
esperança” é o pólen fecundante da vida.

Não porque seja “desesperado”, ou aberto à falta de esperança

— não se trata disso. Mas porque a ela sobrepõe-se a caridade, o amor. E o


ato perfeito é aquele movido pelo amor, em que se constrói e edifica sem
esperar nada em troca nem como resultado. Apenas um ato irmanado ao Ser
pode ter essa força, e por isso a tragédia de Drummond.
Contemplando a máquina, o eu lírico diz ter baixado os olhos, “incurioso,
lasso”. Incurioso, pois já não havia mais o fogo do primeiro amor, aquela
chama que brilha em nossos olhos e faz com que queiramos desfrutar,
entender, dominar, desejar, consumir, beijar a boca da realidade.

Esse é um poema que retrata alguém na Oitava Camada, al-guém que está
se vendo diante de um destino último e buscando responder à pergunta: “O
que sou eu, neste mundo, diante do Ser, diante da morte?”.

Isso significa que a realidade se oferta ao nosso engenho todo santo dia,
desejando ser fecundada por nossos atos, e um ato fecundo é um ato sem
esperança.

269

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

No dia de amanhã, aja sem esperar, e você verá que toda a realidade brota
num manancial sereno. O ato sem esperança não é o ato de um homem
covarde, de alguém que abdicou de ser humano; pelo contrário, é o ato
daquele sujeito que se agar-rou à única realidade que vai permanecer: a
caridade, o amor.

Se você age, se beija um filho, se vai ao trabalho, se faz as pazes com quem
está de mal, você o faz para servir, por amor. Se, um dia, todos na face da
terra agissem profundamente, intensamente, sem esperar nada, só movidos
pela caridade, imagine a qualidade desse dia! Como seria perfeito esse dia,
não? Isso porque ele seria o reflexo do ato do Ser em Ato Puro, daquele que
é a fonte mesma da nossa existência.

Entramos na existência porque ganhamos o ser do Ser em Ato Puro, que só


nos ama, ou seja, não espera nada de nós —

até porque, se esperasse, não nos criaria, porque sabe que iremos frustrá-lo.
O ato fundacional de todo o cosmos, e mais, da nossa vida, é um ato de
amor, não um ato de esperança.
A pergunta que se abre na Oitava Camada é precisamente essa; é olhar para
o poema “A máquina do mundo” e dar-lhe uma resposta pessoal: “Vou
aderir a essa desesperança? Verei o mundo tal como o eu lírico o está
vendo, desdenhando colher a coisa oferta que se abre gratuitamente para
mim? ”

O problema é que ninguém desdenha da coisa oferta impu-nemente, e o eu


lírico sabe disso, porque conclui: “eu, avaliando o que perdera, / seguia
vagaroso, de mãos pensas”. É um destino óbvio.

Esse poema é uma versão terrível daquilo que pode acontecer ao sujeito de
Oitava Camada. Desdenhar do fato de estar vivo, de acordar ao lado de
alguém que abre os olhos e o procura, desdenhar do fato de que você é
responsável pela vida de tantas pessoas, desdenhar do fato de que tem essa
vida, esse lugar, esse emprego (por mais imanente que ele lhe pareça), é dar
um tapa na cara do Cristo, na cara da Verdade, na cara do Ser em Ato Puro.

Cada vez que você reclama da realidade, você está dando um tapa na cara
do Cristo, porque ele é o Logos, e a realidade

270

é o Logos. É claro, portanto, que você perde força e não conseguirá dar uma
resposta à pergunta da Oitava Camada: diante da morte, o que você faz?
Diante da morte, essa sua vida continua tendo sentido?

O “sentido” cobrado na Oitava Camada é ratificar ou retificar; é encarar


estes versos do Drummond, tristes, terríveis, que são meus e seus, pois os
temos pulsando em nosso ventrículo esquerdo, diuturnamente, dia e noite:
“desdenhando colher a coisa oferta / que se abria gratuitamente ao meu
engenho.”

Metafísica possível

Retificar não é trocar de cônjuge, de profissão ou de país; é transformar os


versos de Drummond e de Pessoa nos versos do grande espanhol Antonio
Machado.
Toda a obra dos espanhóis do início do século XX revolve a morte, revolve
isso de que estamos tratando aqui. Quando, en-tão, Pedro Salinas, por
exemplo, inaugura seus poemas de amor e de romance, ele não está
simplesmente querendo ficar com certa dama por um ou dois dias, ele a está
querendo para sempre, não como uma possessão humana, mas como quem
quer conviver com ela na mesma casa no céu.

Em “Antropologia Metafísica”, Julián Marías diz que o destino do homem


se faz ao responder a uma pergunta dupla em que, quando uma aparece, a
outra se anula. Quando me pergunto “Quem sou eu? ”, esqueço-me para
onde vou. E quando intento responder “Para onde vou? ”, já me esqueço de
quem sou. É o equilíbrio da vida que tende para algo. Ou, ainda, quando
Gustavo Adolfo Bécquer, em um versinho tão poderoso e rápido como um
trovão, nos diz: “Al brillar un relámpago nacemos / y aún dura su fulgor
cuando morimos; / ¡tan corto es el vivir!” (“Ao brilhar de um relâmpago
nascemos, e ainda dura seu fulgor quando morremos: tão curto é o viver.”,
você deve se perguntar: “Diante dessa realidade, sou como o eu lírico do
poema de Drummond, ou como o do poema de Antonio Machado?

271

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

Será que abaixo minha cabeça, olhando as pedras pelo caminho do chão
pedregoso de Minas, de céu escuro e aves negras?”

Veja a diferença da força dos versos de Machado, um espanhol, aquele


sujeito que, ao contrário de Drummond e do heterônimo de Pessoa, olha
para a vida desde a sua infância e traça uma linha tentando encontrar um
sentido até o dia da sua morte. Machado faz parte da escola dos espanhóis:
Ortega, Julián Marias, Pedro Laín Entralgo, Ramón Gómez de la Ser-na etc.
São homens que estavam se fazendo a mesma pergunta que Pessoa se faz:
Eu morrerei? Tu morrerás? É a pergunta diante da morte, é a pergunta da
Oitava Camada.
Esses versos de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade são
muito lidos em colégios, o que é uma pena, pois são versos que
enfraquecem. Veja a diferença entre eles e um terceiro poema, todos
profundíssimos, e representantes da articulação entre a imanência e a
transcendência.

O contraponto vem pela força de um espanhol, vivo dentro de uma tradição


que olhava para a razão vital, inaugurada por Ortega em seu livro
“Meditações do Quixote”, no qual ele fala a memorável frase: “Eu sou eu e
minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”.

Antonio Machado dá à luz esse poema fortíssimo, chamado

“Retrato”. Nele há um confronto verdadeiro, sem fuga; Machado não foge


da tensão em momento algum. Não é um poema açucarado, como aqueles
versinhos gospel que dizem “Encontrarei Deus quando morrer”. Ninguém
pode ter certeza de que isso vai acontecer. Esses poeminhas pretensamente
místicos e religiosos, que açucaram tudo, que transformam Deus num
pirulito, um algodão doce, que tornam a religião um mundo de fantasias,
não nos interessam nem convencem, porque aqui sabemos que a vida não é
assim. Eis a tensão da vida:

272
Retrato
Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla, y un huerto claro donde
madura el limonero; mi juventud, veinte años en tierras de Castilla; mi
historia, algunos casos que recordar no quiero.

Ni un seductor Mañara, ni un Bradomín he sido

—ya conocéis mi torpe aliño indumentario—, más recibí la flecha que me


asignó Cupido, y amé cuanto ellas puedan tener de hospitalario.

Hay en mis venas gotas de sangre jacobina, pero mi verso brota de


manantial sereno; y, más que un hombre al uso que sabe su doctrina, soy,
en el buen sentido de la palabra, bueno.

Adoro la hermosura, y en la moderna estética corté las viejas rosas del


huerto de Ronsard; mas no amo los afeites de la actual cosmética, ni soy un
ave de esas del nuevo gay-trinar.

Desdeño las romanzas de los tenores huecos y el coro de los grillos que
cantan a la luna.

A distinguir me paro las voces de los ecos, y escucho solamente, entre las
voces, una.

¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera mi verso, como deja el


capitán su espada: famosa por la mano viril que la blandiera, no por el
docto oficio del forjador preciada.

Converso con el hombre que siempre va conmigo

—quien habla solo espera hablar a Dios un día—; mi soliloquio es plática


con ese buen amigo que me enseñó el secreto de la filantropía.

273
CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

Y al cabo, nada os debo; debéisme cuanto he escrito.

A mi trabajo acudo, con mi dinero pago

el traje que me cubre y la mansión que habito, el pan que me alimenta y el


lecho en donde yago.

Y cuando llegue el día del último vïaje, y esté al partir la nave que nunca
ha de tornar, me encontraréis a bordo ligero de equipaje, casi desnudo,
como los hijos de la mar. 30

Perceba a diferença entre os três poemas. Machado não é um “cardíaco das


estrelas” nem está fingindo andar por um chão pedregoso. Enquanto
Drummond olhava para o chão pedregoso, quando havia tantas coisas para
olhar no caminho — car-valhos, camponeses, nuvens — , Machado opta
por começar do lugar perfeito — a infância. E por ela passa rapidamente,
porque já passou. Sua infância são recordações de um pátio de Sevilha e de
um horto claro onde amadurece o limoeiro.

Esse pátio provavelmente era um lugar onde brincou com seus irmãos, e do
qual deve ter lembranças gostosas. Mas é só isso.

30 “Minha infância são recordações de um pátio de Sevilha / e de um


jardim claro onde madura o limoeiro; / minha juventude, vinte anos em
terras de Castela; / minha história, alguns casos que recordar não quero. //
Não fui um sedutor Mañara nem um Bradomín, / - já conheceis meu torpe
alinho indumentário -, / mas recebi a flecha que me destinou Cupido, / e
amei quanto elas possam ter de hospitaleiro. // Tenho nas veias gotas de
sangue jacobino, / mas meu verso brota de manancial sereno; / e, mais que
um homem ciente de sua doutrina, / sou, no bom sentido da palavra, bom. //

Adoro a beleza, e na moderna estética / cortei as velhas rosas do jardim de


Ronsard;
/ mas não amo os unguentos da atual cosmética, / nem sou uma ave dessas
de novo gay- trinar. // Desdenho as romanças dos tenores ocos / e o coro
dos grilos que cantam para a lua. / Ponho-me a distinguir as vozes dos ecos,
/ e escuto apenas, entre as vozes, uma. // Sou clássico ou romântico? Não
sei. Deixar quisera / meu verso, como o capitão deixa a espada: / famosa
pela mão viril que a brandira, / não orgulhosa pelo douto ofício do forjador.
// Converso com o homem que sempre vai comigo / - quem fala sozinho
espera falar com Deus um dia -; // meu solilóquio é conversa com esse bom
amigo / que me ensinou o segredo da filantropia. // E ao fim, nada vos devo;
deveis-

-me quanto escrevi. / A meu trabalho recorro, com meu dinheiro pago / o
traje que me cobre e a casa em que habito, / o pão que me alimenta e o leito
em que durmo. //

E quando chegar o dia da última viagem / e estiver de partida o navio que


nunca há de voltar, / me encontrareis a bordo de bagagem leve, / quase nu,
como os filhos do mar.”

274

O poeta não se demora em descrições empoladas nem em elogios


saudosistas da infância saídos da pena de uma alma que se recusa a
amadurecer.

Nos versos seguintes ele passa à mocidade, dizendo que sua juventude
foram vinte anos nas terras de Castilha, e sua histó-

ria, alguns casos que não quer recordar — afinal, para que dar voltas com
as faltas de atos? Disso, ele não quer se lembrar, e é justamente assim que a
vida deve ser levada. De que serve ficar relembrando aqueles cinco reais
que sua irmã lhe deve desde quando você tinha doze anos de idade? É a
Oitava Camada, afinal. Lembre-se de que estamos falando da história diante
da morte, daquilo que vale e daquilo que não vale.

O poeta continua sua história, narrando que não foi nenhum “Don Juán”,
embora estivesse inserido nessa tradição.
Não viveu muitos amores, mas tampouco foi um bobo. Ele amou. E amou
porque é gente.

Segue, então, revelando que, embora tenha no sangue traços de ira jacobina,
de revolta, é um homem equilibrado e tranqüilo, porque sabe o que importa.
Não lhe importa, por exemplo, ser reconhecido como clássico ou romântico.
Só deseja que seu verso seja como a espada do capitão: famosa pelo braço
viril que a empunha, não pelo ofício de quem a forjou. Essa é sua pretensão
enquanto poeta, essa é a marca que deixará no mundo.

Entra então toda a força da Oitava Camada:

Converso con el hombre que siempre va conmigo

— quien habla solo espera hablar a Dios un día —; mi soliloquio es plática


con ese buen amigo que me enseñó el secreto de la filantropía.

Veja como ele não tem afetações de religião. Não diz conhecer tudo sobre a
Trindade nem se jacta de que Deus lhe fale intimamente em orações
demoradas e profundas. O que diz é que conversa com o homem que segue
sempre com ele. Ele sabe que, em seu peito, existe essa conexão entre ele e
o Ser em Ato Puro, mas não se exibe como quem já chegou aos píncaros da
glória.

275

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

Machado está apenas contando a história do homem que aposta na


metafísica real. Ele não distingue muito bem se esse homem que o
acompanha é Deus, ou se é ele próprio; sabe apenas que está falando
sozinho, pois espera falar com Deus um dia.

Esse solilóquio, esse falar sozinho, essa tentativa de oração (se quisermos
falar desse modo), é uma busca de intimidade com o bom amigo que vai lhe
ensinando os segredos do amor.
Repare a diferença entre as aspirações dessa última estrofe e as aspirações
abstratas presentes nos citados poemas de Pessoa e Drummond, os quais
conceberam idéias que jamais verão a luz do dia. Machado fala de uma vida
concreta, ele conta uma história, como eu e você deveríamos fazer também.

Ao fim e ao cabo, aquele amigo que lhe ensinou o segredo do amor foi
quem o conduziu para essa vida pegada ao chão.

Como já disse, parece ser no horizonte que o céu e a terra se unem, mas não
é; isso acontece no coração do homem que trabalha. O ofício de Machado é
ser escritor; portanto, diz que nada deve; é seu leitor quem lhe deve pagar
pelos escritos. Com esse trabalho, ele compra suas roupas ( “el traje que me
cubre” ), paga o aluguel da casa em que mora ( “la mansión que habito” ),
compra a comida que come ( “el pan que me alimenta” ) e compra a cama
em que dorme ( “el lecho en donde yago” ). É aí que se dá a vida humana.

A resposta diante da morte, portanto, diante do “Retifico ou ratifico?” que


aparece no centro da Oitava Camada, é esta: ou eu retifico, porque tem sido
tudo vão, ou eu ratifico, porque já venho vivendo assim, já venho tendo
essa conversa com esse bom amigo — uma conversa de quem fala sozinho,
porque deseja falar com Deus um dia.

A fraude vital da qual falava John Carroll, sociólogo australiano citado


anteriormente, está exatamente na culpa existencial, central na nossa vida,
que é a culpa de sermos “escravos cardíacos das estrelas”, como o poeta da
tabacaria. Essa é a traição existencial da qual falava Carroll.

Assim é que aquilo que parece belíssimo, transcendente, filosófico,


espiritual, é na verdade uma vida de traição, porque

276

o nosso ato acontece no mundo. Quando o deslocamos para a mente,


usurpamos o lugar daquele único sujeito que pensa e cria. Só há Um que
pensa e cria, que diz “Fiat lux” e a luz de fato se faz, que separa o material
enxuto do material úmido, que cria os luminares celestes, que cria as
bestas,e as árvores, e as plantas. Esse sujeito pensa e seu pensamento
realmente faz, cria.O ato humano é como o ato de Machado: um ato de
quem, no final das contas, não deve ( “Y al cabo, nada os debo” ). Não
deve, porque age livremente , não é um escravo ; e quando você vira um
escravo cardíaco das estrelas, como o poeta da tabacaria, alguém tem de lhe
sustentar. Embora quisesse, ele não sabia sequer vestir o próprio dominó,
alguém precisou fazer isso por ele — ele não servia para nada.

Enquanto está reclinado para trás na cadeira, fumando e observando a


fumaça, divagando sobre as estrelas e sobre o seu fracasso nesta vida,
alguém está pagando as contas dele. Ele é um peso. E quem quer que
assuma essa mesma postura é também um peso para os outros, um traidor
existencial e carrega dentro de si a culpa existencial de que falou John
Carroll.

O segredo de Machado, por outro lado, é deslocar sua vida para o trabalho,
para coisas concretíssimas como o traje que o cobre, a casa em que habita, o
pão que o alimenta e a cama em que dorme. São coisas que parecem
maximamente imanentes, e lhe parecem imanentes porque são. Ao mesmo
tempo, pratica um solilóquio, esperando um dia falar com Deus.

O segredo do amor, da filantropia, é esse trabalho abnegado, é não pesar


para ninguém, é ser você o ato fundacional, é agir com amor, servindo aos
demais e não esperar que façam todo o servi-

ço em seu lugar: nem os outros, nem as estrelas, nem Deus.

Isso se completa na última estrofe do poema — belíssima, talvez alguns dos


versos mais belos já escritos. Machado põe a morte no lugar certo: no
último lugar, na última estrofe, pois a morte é o fechamento de qualquer
história. Ele começa o poema na infância, nos pátios de Sevilha. Depois, diz
que trabalhou, que praticou o exílio e a intimidade com esse bom amigo,

277

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO
que ele ainda não sabe quem é, e que bem pode ser ele próprio (embora
espere falar a Deus um dia). E termina com seu último dia.

Um dia será certamente o seu último dia. Pode ser que seu último dia seja
amanhã; pode ser que seja hoje mesmo. E se Antonio Machado fosse
tomado de assalto por esse último dia, veja como ele seria encontrado: “ao
chegar ao último dia de viagem, me encontrareis a bordo do navio que
nunca há de regressar, com uma bagagem leve, quase nu, como os filhos do
mar.” Quando o último dia chegar (e ele chega para todos, sem exceção),
Machado será encontrado como aquele sujeito que agiu.

Você acaso já se fez essa pergunta? Quando seu último dia chegar, como
você será encontrado? E você, psicólogo, já fez essa pergunta a seus
pacientes?

O ato humano é o ato de quem não fica esperando: não entu-lha sua
mochila de quinquilharias, ou seja, de esperanças malfa-dadas. E não
nutrimos muitas vezes esperanças que se frustram a todo o tempo? “Vou
agir assim, e espero que... ” “Espero que me reconheçam...”, “Espero que
batam palmas...”, “Espero que minha poesia seja sublime e alcance leitores
e ouvintes atentos...”, “Espero que meu filho não seja um drogado...”,
“Espero ficar rico... ” Esse “espero que”, é justamente o inverso do “ligero
de equipaje”. “Ligero de equipaje” significa “com bagagem leve”. Para a
última viagem, não devemos levar malas pesadas. Tudo quanto levamos
está dentro do nosso peito, em nossa biografia. Você pode e deve ser
encontrado de peito aberto, como os filhos do mar.

Imagine um bom navegante que sai em uma perigosa e demorada viagem e


então retorna. A bagagem dele é um coração que viveu intensamente.
Machado é perfeito quando diz que, chegando o dia de sua morte, o navio
que partirá sem jamais regressar o encontrará pronto, leve, quase nu, como
os filhos do mar. Pois, como lembrou Jó (um homem a quem praticamente
tudo foi tirado), saímos nus dos ventres de nossas mães e nus também
haveremos de perecer.

Essa é a resposta que deveríamos dar diante da morte.

278
Confissão

John Carroll é muito preciso quando fala de culpa existencial, aquela que
você sente ainda quando faz tudo de modo “correto”. Em “A máquina do
mundo”, o eu lírico não fala nada acer-ca de seus erros; ele pode muito bem
ter vivido “bem”, como um rapazinho muito bem comportado.

No poema “Retrato”, por outro lado, Machado confessa seus erros: “mi
historia, algunos casos que recordar no quiero”. Ele assume que, embora
não tenha sido nenhum Don Juán, o Cupido lhe deu algumas flechadas e,
aquelas que podiam recebê-lo em suas casas, estas ele amou.

Por isso é que aquela moral kantiana, do certo e do errado, é uma primeira
coisa a ser quebrada. Francamente falando, todo o mundo sabe diferenciar o
que está certo do que está errado.

Machado não quer se recordar de sua juventude, mas se gaba de ter


conhecido algumas garotas. Isso, para a moral da época, é algo
extravagante.

Quando diz, em seguida, que é “bom, no bom sentido da palavra”, em que


sentido ele o está dizendo, se acabou de confessar que, na juventude, se
deitou com mocinhas? Segundo a moral de nossos tempos, parece não
haver nada de errado em ter relações sexuais antes do matrimônio, mas à
época dele não era assim. Mas a questão é simples: ele é bom, porque não
nega sua vida, não nega seus erros, mas antes se põe diante deles.

Machado diz que tem sangue jacobino, o que quer dizer que poderia ter
“tocado o terror”. Mas seu verso brota de um manancial sereno, porque
sabe o que quer da vida, e ele não irá se trair.

Mas o caminhante da “Máquina do mundo” não aponta nada que tenha feito
de errado: ele falseia a própria história.

Mesmo diante de sua própria morte, ele não consegue elaborar uma
confissão clara, concreta e concisa, como fez Machado nas duas primeiras
estrofes do “Retrato” — observe como Machado confessa rapidamente, sem
dar voltas ou tentar justificar más condutas do passado.
279

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

No poema de Drummond há um medo do escurecimento que só a luz de um


ato poderia romper. Quando agimos com amor, somos reflexo do Ser em
Ato Puro, e um ato de amor, de entrega, dissipa todas as trevas. Um serviço
em casa, uma ajuda no trabalho, uma ligação despretensiosa para alguém
que já está velho, são atos que dissipam as trevas. Aqueles pássaros que se
confundem na noite de chumbo somem, e os raios de sol voltam a brilhar.
Assim nos livramos da maldição presente na “Máquina do mundo” e na
“Tabacaria”.

Não andemos por aí deitando fora a vida como aquela pequena suja que
deita ao chão as folhas de estanho do chocolate que come. Saibamos
perceber que não é verdade que exista mais metafísica na confeitaria do que
na religião; há muito mais metafísica em uma vida entregue ao serviço do
outro.

Que postura adotar diante

das pedras no caminho?

Nem todos nós temos a postura de um Machado. Pelo contrário, o mais


comum é que nos confundamos quando encontramos pedras do caminho.
Assim foi com o caminhante do poema de Drummond. Não nego que
existam pedregulhos no caminho. Há dificuldades, tristezas, agruras,
traições, impre-vistos... às vezes mais, às vezes menos. Mas no caminho
não há só pedregulhos e aves negras, senão também flores, brisa fresca à
sombra de uma árvore carregada de frutas, um regato, um viajante que nos
estende a mão quando precisamos....

O caminhante de “A máquina do mundo” só via, fora de si, pedregulhos,


escuridão, deserto e dor. Dentro de si, também: seu próprio ser estava
“desenganado”, suas pupilas se gastaram com a inspeção contínua e
dolorosa do deserto e sua mente estava “exausta de mentar”. Que mente
exausta de mentar é essa?

Que “pupilas gastas” são essas? Que deserto é esse, Drummond? Quanta
diferença de força, de instalação vital, para o poema de Machado! De um
lado, a força de vida bem vivida; de outro, a traição biográfica.

280

Quando a máquina do mundo se abriu ao caminhante, ele já tinha perdido


todos os “sentidos e intuições” de tanto os ter usado. É claro! Todos os
sentidos se perdem e trazem desesperança profunda quando o que se busca
e cultiva são exclusivamente bens deste mundo. Se tudo quanto você vê é
aquela pedra no meio do caminho, esse é o seu único fim possível.

Essa mesma pedra no meio do caminho, porém, já foi a pedra no caminho


de uma outra pessoa: um jovem pequeno, que liderou um exército
minúsculo e pretendia enfrentar um gigante chamado Golias; esse menino a
recolheu.

Se esse jovem franzino olhasse a pedra só com os sentidos e intuições que


lhe restavam, se ele estivesse cansado da vida e do deserto, jamais teria
vencido. Acontece que essa pedra, que para uns é tropeço, para outros é
sinal de vitória — como o foi para o jovem Davi, que não se deixou
confundir pelos sentidos gastos, pelo cansaço, pelas adversidades. Ele viu
além.

Diante das pedras no caminho, temos duas opções: ou não agimos — e


então tropeçamos e caímos — ou fazemos nosso dever, que é agir. Mesmo
inexperiente e contra todas as expectativas, Davi pegou a pedra, rodou-a e a
lançou. Ele come-teu um ato “sem esperança”, e por isso venceu. O
caminhante diante da máquina do mundo, por outro lado, baixou a cabeça,
recusou o convite e seguiu de mãos pensas.

Diante da pergunta da Oitava Camada, do “Retifico ou ratifico?”, ou


olhamos para as pedras e as lançamos, ou tropeçamos e caímos.
O caminhante de Drummond tropeçou e caiu na treva mais estrita. Mas não
o fez sem antes ser brindado com a chance tremenda de ver que há algo
além da escuridão e da tristeza: há algo que se abre para ele. Ele foi
chamado a entrar no “reino augusto”, a contemplar “verdades altas mais
que todos monumentos erguidos à verdade”.

Quando o caminhante de Drummond se viu diante do “so-lene sentimento


de morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa”, ele talvez
tenha se lembrado de um santo, de

281

CULPA EXISTENCIAL

E FRACASSO

um mártir ou de um herói; talvez tenha se lembrado de uma avó que


sacrificou a vida — enfim, ele vislumbrou uma existência gloriosa. Isso se
apresentou num relance, naquele instante em que a máquina se abriu. Mas
foi em vão, pois ele não estava atento nem disposto; estava cansado demais,
amedrontado demais diante da máquina do mundo.

Ele diz que vai pelos caminhos, e é como se outro ser (não mais aquele
habitante de si há tantos anos) passasse a comandar sua vontade. Noutras
palavras, ele abdicou de ser gente, abdicou do ato. Puxa vida! Se não eu,
quem? Se não agora, quando? Se não se escreve a própria história, quem a
haverá de escrever?

Gusdorf diz que a história humana é escrita a três mãos: um terço é escrito
por Deus, um terço é escrito pelo diabo e o outro terço nós é quem o
escrevemos. Com o seu terço, o caminhante do poema fez o que quase
100% das pessoas fazem no nosso tempo: entregou-o deliberadamente para
que o escrevessem as aves negras — seriam elas demônios? Daí vem a
percepção de que alguém tomou o controle de sua vontade.

Na verdade, ninguém o tomou: seu próprio eu abriu mão dele.


Faça você também, meu leitor, este exame: a pena do seu terço, a pena que
definirá a sua história, os seus amores, as suas aventuras e os seus atos sem
esperança, você a está entregando para essas aves negras? E a você,
psicólogo ou psicoterapeuta, cabe auxiliar seus pacientes a fazerem o
mesmo exame.

Pois quem entrega às aves negras — ao demônio, ao acaso, ao nada — a


caneta com que deveria escrever a própria história, não sendo mais o autor
de seu próprio roteiro, terminará por baixar os olhos, incurioso e lasso. A
esse alguém nada mais ape-tecerá: nem trabalho, nem comida, nem
dinheiro, nem sexo, nem amizades, nem amor, absolutamente nada. A um
homem nesse estado, podem acontecer as coisas mais extraordinárias,
centenas de milagres podem se lhe apresentar diante dos olhos todos os
dias, que ele sempre desdenhará colher a “coisa oferta” que se abria gratuita
ao seu engenho. Ele sempre repelirá a máquina do mundo. Se o próprio
Deus lhe aparecesse, ele diria: “Não...

É tarde demais. Já estou velho. Estou no entardecer da vida.”

282

Mas, mesmo para quem já está adiantado na estrada e vê a treva mais estrita
pousando sobre si, não é tarde demais. Não foi tarde demais para Édipo,
não é tarde demais para a mulher de trinta anos — ao contrário do que
Freud disse —, não é tarde demais para o caminhante desenganado.
Enquanto o navio não vier lhe buscar para a última viagem, ainda não é
tarde.

É possível arrepender-se, mudar, evoluir, tomar a sua pena e escrever a


própria biografia.

Um ato profundamente humano é o do arrependimento e da humilhação que


um arrependimento exige. Não há nada que dissipe mais as trevas ou
ilumine mais o mundo do que o arrependimento, do que o arrepender-se
verdadeiramente, do que o confessar-se e voltar ao eixo. São esses os
verdadeiros atos humanos — não se trata de dar voltas nas galáxias e
tornar-se um escravo cardíaco das estrelas.
Retificamos ou ratificamos? Viveremos a vida da “Máquina do mundo” e
da “Tabacaria”, ou viveremos a vida do “Retrato”, de Machado?
Adotaremos a posição existencial de quem escolhe um enredo impossível,
uma narrativa que sempre trará frustração? Viveremos uma vida carregando
quinquilharias, ou seja, atos “cheios de esperança”, no sentido de cobrar
tudo dos outros o tempo todo? Carregaremos a vida toda o peso da culpa e o
levaremos conosco para o túmulo? Ou viveremos uma vida entregue, uma
vida de trabalho, uma vida de serviço, uma vida de amor, uma vida de
religião, uma vida de culto a Deus, uma vida de oração, uma vida de
esmola?

Só isso tem sentido mesmo diante da morte, porque só isso tem a


consistência de um ato, e só o ato permanece. Aquilo que é, nunca deixará
de ser. Um ato é eterno: o cair de uma folha é eterno, o beijo roubado é
eterno, o perdão requerido é eterno, ao passo que as mirabolações do
pensamento são como a fu-maça da “Tabacaria”. Elas não têm metafísica,
não têm consistência, não ficam, não têm substância.

É por isso que, para nós, no dia de hoje, entrar na vida é agir; agir diante de
quem amamos, cumprir o nosso dever.

Só assim é que se encontra a própria vocação.

POSFÁCIO

285

s lâminas do Tarô e a mitologia têm ainda a nos oferecer muito mais do que
apresentei aqui. Porém, o esco-Apo deste livro não me permitiu avançar
mais na análise de outros mitos e de outras lâminas do Tarô além daquelas
do Mago, da Papisa e da Imperatriz. Desejo futuramente dar continuidade a
este trabalho, bebendo do riquíssimo simbolismo presente nos demais
arcanos do Tarô (e em outros mitos de civilizações antigas), chaves de
compreensão para outras realidades complexas e difíceis, com as quais nos
deparamos constantemente na prática clínica e na vida cotidiana.

Espero ao menos que, ao final desta leitura, tenha ficado claro para você
que a Psicologia não é uma caixa de ferramentas que se procura no
almoxarifado da clínica ou na despensa de casa, em busca de uma chave
com que apertar meia dúzia de parafusos soltos na cabeça de alguém. Em
primeiro lugar, porque as cabeças das pessoas não têm parafusos;

286

em segundo lugar, porque ferramentas com essa pretensão me-canicista não


existem. O que há é toda uma linguagem e percepção simbólicas e
filosóficas, das quais busquei tratar aqui.

Se propus algumas “ferramentas fundamentais”, foram elas o chapéu do


Mago e seu olhar perfeitamente desatento, a trí-

plice tiara da Papisa, o cetro e o escudo da Imperatriz, o raio de Zeus, o


exílio interior e a bagagem leve do poema de Machado – acrescidas de
algumas teorias como a das quatro narrativas possíveis ao ser humano, a
dos cinco tipos humanos e a das doze camadas da personalidade. Sem
meios como estes, o psicólogo, o terapeuta e o psiquiatra, munidos daquilo
que lhes oferece a Ciência Contemporânea (com seus medicamentos, suas
técnicas e seu arsenal de artigos científicos), serão capazes de tratar de
questões periféricas da vida, mas verão que seus instrumentos ainda são
insuficientes no que diz respeito às questões centrais. Se bem entendidas e
bem empregadas, essas inusitadas ferramentas servirão ainda – não apenas
aos profissionais, como a qualquer de meus leitores – para o
desenvolvimento pessoal e para um melhor convívio com aqueles que lhes
são próximos.

A teoria das doze camadas dá, em particular, uma descrição precisa do


desenvolvimento pessoal e progressivo ao qual todos nós aspiramos, em um
desejo constante de “conquista da personalidade”. É possível basear nela o
processo terapêutico e com ela ajudar pacientes e entes queridos a
amadurecerem.

A quem deseja conhecer melhor essa “tecnologia”, que em muito enriquece


a prática clínica, recomendo que faça um de meus cursos para psicólogos,
psiquiatras, coaches e intrometi-dos. Nesses cursos, falo mais detidamente
sobre essa teoria e sua aplicação em consultório e na vida.
Meu primeiro convite, estampado na capa deste livro, é que você vista o
chapéu do Mago. Ele representa o início do caminho, a postura existencial
necessária sem a qual não se pode captar as coisas superiores. Só um Mago
de chapéu é capaz de exercer a “magia”: o chapéu nos protege dos raios da
finitude e abre a visão para o infinito. É ele a saída para quem quer que

287

POSFÁCIO

tenha uma visão de mundo amputada, em especial uma visão


predominantemente materialista e cientificista das coisas. É a solução para
o psiquiatra que entope os pacientes de medicamentos e se esquece de que
está lidando com uma pessoa humana, dotada de um mundo interior
riquíssimo – um mundo dinâmico, de projeção, tensão, desejo e frustração.
É a solução para o psicólogo ou o amigo que, olhando para apenas um ou
dois aspectos do homem, tampouco o consegue enxergar em sua
integralidade – e, por isso mesmo, não é capaz de orientar; só o que faz é
dar soluções temporárias ou muito pontuais.

Portanto, insisto que você se pergunte, de tempos em tempos, se está de fato


vestindo o chapéu do Mago ou se é ainda uma espécie de impostor que deu
a si mesmo o título de Mago, de terapeuta, de psicólogo, ou de orientador
de qualquer tipo. Essa pergunta é fundamental. Faça-a agora mesmo, antes
de pensar em aplicar a técnica do fulano ou do beltrano – ou quaisquer
outras coisas que tenha aprendido na faculdade, ou com esta e outras
leituras.

Se você se descobrir um impostor, não se apavore. Há mi-lhões como você.


Leia mais uma vez o capítulo do Mago e busque assimilar e aplicar o que
ali está. É apenas o início.

Mas, com o tempo e a prática, você verá que seu trabalho vira jogo, e já não
será mais preciso pensar em cada passo que dá.

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