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Os símbolos e sua linguagem

no estudo das Letras

Waldemar Ferreira Netto

O estudo dos símbolos ocorre desde as primeiras discussões gregas de que temos
notícia. Platão já falava sobre eles, Aristóteles... Mas vamos nos ater a um pensador,
também grego, do século II, d.C: Sexto Empirico. Sexto Empírico fazia parte do
movimento pirrônico que era extremamente crítico. Sua atenção voltava-se
especialmente para os discursos filosóficos que ocorreram antes dele. Assim, ao criticar
as interpretações do símbolo que os estoicos faziam, ficamos conhecendo a proposta de
símbolo dos estoicos, que nos deixaram muito pouca coisa escrita documentada. Sexto
Empirico nos conta que eles tomavam o símbolo como um fenômeno composto por três
elementos: dois corpóreos e um incorpóreo. Os elementos corpóreos são esses que
podemos pegar com as mãos, ver com os olhos, senti-los... os incorpóreos são os que
não nos permitem pegar, ver ou sentir, como, por exemplo, nosso pensamento. Ele dava
como exemplo o nome próprio “Dion”. O som que se produz pela boca quando se fala
“Dion” e o próprio Dion em pessoa são corpóreos, a lembrança que se tem de Dion é
incorpórea. Sexto Empirico dava um nome para cada um desses elementos. O primeiro,
que está mais diretamente ao nosso alcance, o som, no caso da fala, era o semainon. O
outro elemento corpóreo, que está mais distante de nós, era o tynchanon. E, finalmente,
o terceiro que é incorpóreo, que só existe em nosso pensamento, é o Lekton ou
semainomenon. 1

semainon semainomenon
ou tynchanon
lekton

Figura 1: Na figura à esquerda, marcados pelo círculo pontilhado vermelho, estão um


sonograma (acima) e um espectrograma (abaixo) do som da palavra osso, representando o
semainon; à direita, marcado pelo círculo pontilhado vermelho, está a figura de um osso,
representando o tynchanon; ao centro está a figura de um pensamento figurativo
hipotético, marcado pelo círculo pontilhado vermelho, desencadeado no cachorro ao ouvir
o som da palavra osso, representando um semainomenon ou lekton.

1
EMPIRICUS, S. Against the logicians. Trad. do grego para o inglês de R. B. Bury. London: Harvard
University Press, 1967. MOURA NEVES, M. H. A vertente grega da gramática tradicional. Brasília:
Hucitec; Editora Universidade de Brasília, 1987. TODOROV, T. Teorias do símbolo. Trad. do francês de
Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
Embora estejamos falando do semainon como o som da fala, ele pode ser uma imagem,
um cheiro, um objeto... O semainon pode ser composto de qualquer material, mas é
condição necessária que ele tenha essa materialidade. O tynchanon, que Sexto Empirico
tratou como corpóreo, não recebeu o mesmo tratamento por outros que vieram depois
dele.
Muitos anos depois de Sexto Empirico, no final do século XIX, Charles Sanders Peirce
retomou essa proposta de símbolo composto por três elementos, mas deu-lhes outros
nomes: representamem, objeto e interpretante. 2 Se adaptarmos a Figura 1 com a
terminologia de Peirce, poderemos ver a equivalência com a terminologia de Sexto
Empirico:

representamem interpretante objeto

Figura 2: A figura acima reproduz a Figura 1, apenas adequando-a à terminologia proposta


do Peirce.

A noção de interpretante de Peirce está diretamente relacionada à de Sexto Empírico.


Trata-se de um fenômeno puramente cognitivo, um fato de pensamento. Nem sempre
é fácil nos darmos conta de sua ocorrência, mas logo o percebemos quando estamos
numa leitura atenta, com fluxo contínuo. Quando isso ocorre, perdemos o texto de vista
e passamos a contemplar nossas próprias ideias, como fosse um filme que estivéssemos
vendo. Imaginamos as personagens, suas roupas, criamos um cenário. Tais imagens são
tão bem definidas que, posteriormente, quando vemos um filme da obra, sentimos que
as escolhas feitas se chocam com as nossas. A feição das personagens era diferente,
bem como o cenário, as roupas... Essas imagens que criamos durante a leitura são os
interpretantes de Peirce. Aliás, esse é um critério importante na caracterização dos
autores de textos narrativos, pelo menos. Nem sempre os autores conseguem que
tenhamos uma leitura fluida que nos permita desfrutar de interpretantes. Há os que
escrevem com vocabulário precioso, os que têm sintaxe tortuosa, os que abusam das
inovações e dos descuidos ortográficos, dentre outras coisas. Esses todos nos fazem
perder os interpretantes que eles mesmos nos criaram, porque temos de reler a frase,
ir ao dicionário ou tentar entender um garrancho ortográfico qualquer. Esses fatos todos
nos levam de volta ao texto, ao representamem.

2
Peirce fazia suas anotações de forma pouco organizada. Seus manuscritos, mais de cinco mil páginas,
foram transcritos por Charles Hartsbone e por Paul Weiss entre 1931 e 1935 e, posteriormente,
completados por Arthur W. Burks, em 1958. Atualmente estão digitalizados e disponíveis em edição digital
feita por John Deely, desde 1994. Para uma versão em português, podem-se consultar: MOTA, O. S.;
HEGENBERG, L. (Org.) Semiótica e filosofia. Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. São Paulo:
Cultrix/Edusp, 1975. PEIRCE, Ch. S. Escritos coligidos. Trad. Armando Mora D’Oliveira e Sergio
Pomerangblum. São Paulo: Abril Cultural, 1974. PEIRCE, Ch. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015.
Peirce, no entanto, foi muito além dessa proposição de símbolo. Sua proposta não era
somente compreender o que era um símbolo, mas também como ele poderia ser usado.
Para tanto, ele fez várias classificações de símbolos, mas há uma que nos interessa mais
de perto. Ele propôs que os símbolos pudessem ser subdivididos em símbolos, índices e
ícones. Desses três, vamos atentar para o último: os ícones.
Ícones são símbolos que se caracterizam pela semelhança que existe entre o
representamem e o objeto. Na Figura 2 não há nada de semelhante entre o som da
palavra “osso” e o próprio osso. Para que seja um ícone, temos de ter semelhança entre
as duas partes corpóreas do símbolo, usando a expressão de Sexto Empirico.
Se observarmos a Figura 3 abaixo, que é uma inscrição rupestre encontrada pela Profa.
Niéde Guidon, na Serra da Capivara, no Piauí, veremos ícones.

Figura 3: Pintura rupestre na Serra da Capivara, PI,


encontrada pela Profa. Niéde Guidon.

Nessa Figura 3, não temos como saber exatamente o que representam as formas
encontradas, mas podemos deduzir que o desenho mais à esquerda e acima dos demais
é a representação de uma figura humana, bem como os desenhos que vão abaixo,
formando uma fila. Ainda podemos perceber que há algo como um órgão genital
masculino na figura maior e em algumas das pequenas, que se assemelham a ela. Isso
nos leva a crer que esses desenhos representam figuras masculinas e que os demais
representam figuras femininas. Abaixo da fila de figuras humanas, podemos ver que há
representações de animais, o que vai caracterizado, principalmente, pela posição das
pernas e dos braços, que saem perpendiculares do tronco e não ao longo do corpo como
nos humanos. Não sabemos falar a língua que os desenhistas falavam, mas somos
capazes de entender os seus desenhos, porque são iconográficos.
Na Figura 4 já não é tão fácil perceber a que se reportam os desenhos que vemos. Se
bem que, à esquerda, embaixo, podemos ver o desenho de uma figura humana. Já
temos alguma experiência anterior, por isso, podemos imaginar que não se trata de uma
figura masculina. Pode-se notar isso tanto pelo desenho do órgão genital como pela
presença de peitos bem marcados. É bem possível que seja a representação de uma
figura feminina. Não há como termos certeza dessa interpretação estar correta, mas
certamente não se trata de uma árvore, de uma onça, de uma casa, ou de um conjunto
de traços feitos aleatoriamente. É claramente a representação de uma figura humana.
E, porque podemos ver isso, é um ícone.
No entanto, em volta desse ícone, há um conjunto de traços que se assemelham com
uma escrita cursiva. Trata-se de uma
representação da escrita. É o ícone de uma
escrita. Apenas para dar um contexto,
recebi esse papel que vai na Figura 4
quando um senhor de bastante idade
levou meu fichário com as transcrições
fonéticas que eu fazia da língua que eles
falavam. Depois de uns três dias, o mesmo
senhor me devolveu o fichário e me
entregou separadamente uma folha na
qual constavam essas inscrições que,
segundo ele, eram a história de seu grupo.
Podemos notar que, durante o tempo que
ele manteve o meu fichário, consultou-o e
procurou reproduzir o que via. Daí ter
submetido suas inscrições às linhas
horizontais impressas do papel, fazê-las
ora isoladas, como na transcrição fonética,
ora serifadas, como na escrita cursiva. Não
se trata de uma escrita, mas de uma forma
iconográfica de representação da escrita.
Figura 4: Folha de caderno coletada pelo autor
junto aos Uru Eu Wau Wau, em Rondônia, nos Quanto à história que ele queria narrar,
anos 90. creio que jamais saberemos qual era.
Para Peirce, um ícone é um representamem que quase se
confunde com o próprio objeto representado. Um dos
exemplos que ele dá é o do mapa de uma ilha em que,
colocado sobre ela, há um ponto que, no chão da ilha,
coincide exatamente com o mesmo ponto no próprio mapa.
Ou ainda outro exemplo, como o de se usar, numa peça
teatral, o próprio objeto para representar o objeto. Nesse
último caso, um crucifixo, segundo o exemplo dele, seria
usado para representar um crucifixo. Assim, o mesmo objeto
pode ser representamem e objeto a um só tempo de um
mesmo símbolo. Sua proposição de ícone, ainda se estende
para um efeito totalmente inovador para o conceito de
símbolo. O representamem de um ícone não só pode quase
se confundir com o seu objeto, como ser, ele próprio, o Figura 5: A própria imagem de
objeto, caso o objeto não exista. Assim, ele dá como exemplo um centauro criada como
o centauro. Ora, se centauro não existe, não há um objeto representamem atua como
objeto, gerando, por ela
para ser representado. Nesse caso, o interpretante toma mesma, um interpretante
como objeto o próprio representamem, como no caso do
crucifixo.
Tomando essa proposta de Peirce que estabelece que o representamem de um símbolo
pode se tornar seu próprio objeto, podemos explicar um conjunto de fenômenos que
costumam ser atribuídos à imaginação pessoal. O símbolo consta necessariamente de
um representamem e de um objeto que nos evoca um interpretante. Ora, se o objeto é
o próprio representamem, então nosso interpretante assume que o representamem é
real. Parece uma coisa complicada, mas, de fato, não é. Trata-se somente de uma forma
de enganar os sentidos, propondo representamina de objetos inexistentes, o que gera
interpretantes. Ocorre assim com uma série de figuras criadas artificialmente, ou quase
isso, que povoam as narrativas mais diversas.
Um caso que pode ser tomado como prototípico é o da
figura do Saci, que todos conhecem. Trata-se de uma
personagem que participa de um número expressivo de
narrativas que vêm percorrendo o mundo desde o
período clássico. Suas primeiras referências estão no
mundo germânico, depois atravessam a península
ibérica durante a Idade Média, pousam em Portugal e
chegam ao Brasil no século XVIII, pelo Rio de Janeiro.
Durante todo esse percurso, a personagem recebeu
vários nomes, dividiu-se em duas, foi reunificada, ganhou
e perdeu pelos, rabo, pernas, cachimbos, barrete, furo
nas mãos, dentre muitas outras mudanças. No começo
do século XX, quando foi necessário fazer uma imagem
Figura 6: Figura do Saci definida fixa em bronze dessa personagem, Monteiro Lobato,
por Monteiro Lobado no início antes ainda de se tornar escritor, partindo de várias
do do século XX.
narrativas que coletou, estabeleceu sua forma fixa que
vai na Figura 6. 3
Foi a partir dessa proposta de figura, de representamem, que todas as demais se
desenvolveram atualmente. Está claro que é uma forma que conflita com muita outras
que fazem parte de narrativas que ocorrem atualmente sobre a mesma personagem.
Mas essa, a de Monteiro Lobato, parece ter sido a que prevaleceu, universalizando-se.
Podemos notar que o fenômeno é similar ao que Peirce propôs para o Centauro. É o
próprio representamem que atua como objeto, gerando o interpretante desejado pelo
autor em nossas mentes. Para aqueles que só conhecem a figura do Saci após a definição
de Monteiro Lobato, será esse o interpretante que vão ter ao ouvir qualquer narrativa
que o tenha como personagem.
Mas estamos falando somente de figuras cuja existência permanece no campo do
folclore. Podemos nos estender para além disso. Uma figura literária muito conhecida é
a da Capitu, personagem, do romance Dom Casmurro de Machado de Assis. É uma
personagem que já causou muita polêmica fora do romance. Na narrativa, Capitu é
casada com Bentinho. O autor, num dado momento, faz com que Bentinho passe a
duvidar da fidelidade de Capitu. No texto, o autor não oferece indícios suficientes para
que o leitor possa se assegurar se houve ou não alguma traição, pois não se trata de um
romance policial. Essa atitude de Machado de Assis, ao não dar evidências nem de
fidelidade nem de traição da personagem tem provocado grandes discussões. Uma delas
foi patrocinada pelo jornal A Folha de S. Paulo, em 1999, que promoveu um grande

3
LOBATO, J. B. M. O Sacy Perêrê. Resultado de um inquérito. Ed. fac-similar da ed. de 1918. Rio de Janeiro:
Gráfica JB S.A., 1998. VIEIRA, M.de F. O Saci da tradição local no contexto da mundialização e da
diversidade cultural. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo. 2009.
debate sobre isso para, enfim, elucidar a questão. 4 Isso foi, obviamente, um exagero,
como a criança que acredita na existência de um objeto corpóreo para qualquer
interpretante de qualquer narrativa, como Papai Noel, Coelho da Páscoa, etc. A
discussão sobre o comportamento da personagem Capitu no romance é semelhante à
discussão sobre como pode a Mula-sem-Cabeça soltar fogo pelas ventas se ela não tem
cabeça? Ora, nenhuma das duas personagens existe senão na narrativa em que
ocorrem. São símbolos icônicos. Não há como fazer esses questionamentos. Capitu é
somente um conjunto de palavras que formam frases que nos geram interpretantes.
Sua existência depende exclusivamente das palavras que foram escolhidas pelo autor
durante o processo da criação. No fragmento da do capítulo III de Dom Casmurro,
podemos dar uma olhada no aparecimento da personagem Capitu, seu “nascimento
formal”:
CAPÍTULO III A Denúncia [fragmento]
(...)
— D. Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais
que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.
— Que dificuldade?
— Uma grande dificuldade.
Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração,
veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse
que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.
— A gente do Pádua?
— Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito
que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a
dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-
los.
— Não acho. Metidos nos cantos?
— É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase que não sai de lá.
A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de
maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe
que todos têm a alma cândida...
— Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça
desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana
passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela
grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa; daí vieram as
nossas relações. Pois eu hei de crer...? Mano Cosme, você que acha?
Tio Cosme respondeu com um “Ora!” que, traduzido em vulgar, queria dizer: “São
imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?”
— Sim, creio que o senhor está enganado.
— Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão depois de
muito examinar...
(...)
Nesse fragmento, temos a representação de uma conversa entre a mãe de Bentinho e
o Tio Cosme. Machado de Assis distribui entre eles as primeiras referências à
personagem Capitu:

4
GONÇALVES, M. A. O veredicto. Capitu absolvida. Folha de S. Paulo, ilustrada, São Paulo, 25/jun/1999.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq25069914.htm>. Acesso em: 24 jan. 2017.
Tio Cosme Mãe de Bentinho
uma dificuldade dificuldade?
Uma grande dificuldade A gente do Pádua?
a dificuldade os pequenos
a gente do Pádua Capitu
a filha do Tartaruga é a dificuldade. dois criançolas
A pequena é uma desmiolada imaginações do José Dias
os pequenos

Pode-se perceber que, logo em suas primeiras referências, Machado de Assis dá a Capitu
um tratamento ambíguo: de um lado é tratada como “dificuldade”, “desmiolada” e de
outro de “pequenos”, “criançolas”. Pela Mãe de Bentinho é tratada como uma criança
qualquer, que tem um nome, mas, pelo Tio Cosme, como uma pessoa que pode trazer
problemas, sem um nome próprio, somente a “Filha do Tartaruga”. Com isso, Machado
de Assis gera um interpretante cujas características são conflitantes desde o primeiro
momento de sua criação. Essa é uma opção do autor.
Na medida em que estamos tratando das opções do autor podemos adiantar um pouco
mais nossa incursão nas teorias simbólicas. Para tanto será interessante conhecermos
um pouco da proposta de símbolo feita por Gottlob Frege. No final do século XIX, Frege
também propôs que os símbolos fossem compostos, como já era feito desde os gregos,
por três elementos. Chamou a cada um desses elementos de Zeichen, Sinn e Bedeutung.
Zeichen foi o termo usado para referir-se ao objeto físico que constitui a materialidade
básica do símbolo propriamente dito. No caso dos símbolos linguísticos usados na fala,
ele é o canal sonoro. Bedeutung foi o termo usado para referir-se ao objeto, físico ou
não, que o símbolo representa. Sinn, por sua vez, foi o termo usado para referir-se à
forma escolhida para a constituição do Zeichen. Frege diferia Sinn de Bedeutung
partindo de alguns exemplos, como das expressões “estrela da manhã” e “estrela da
tarde” que têm o mesmo Bedeutung, mas têm Sinne diferentes; assim como as
expressões 1+3 e 2+2, que também têm Sinne diferentes, mas o mesmo Bedeutung (os
exemplos são de Frege). Para Frege, a discussão sobre o símbolo relacionava-se
diretamente com a Lógica e não com estudos semióticos ou linguísticos. Para ele, a
inexistência de Bedeutung implicaria a falsidade da expressão. 5
Jakobson, entretanto, pensou diferentemente, e aplicou os conceitos de Zeichen, Sinn e
Bedeutung à linguagem. 6 Jakobson entendeu que, em seu esquema de funções da
linguagem, o Bedeutung poderia ser considerado como o referente e, portanto, assumir
um caráter semântico denotativo, pois, segundo Frege, a presença do Bedeutung
garantiria uma expressão ser verdadeira. Jakobson entendeu também que Sinn deveria
ser considerado como mensagem, em seu esquema; ou seja, Sinn é o arranjo, a escolha
feita pelo emissor, para expressar, para representar o Bedeutung pretendido.

5
FREGE, G. Sobre o sentido e a referência. (Texto publicado pela primeira vez em 1892). In: FREGE, G.
Lógica e filosofia da linguagem. Seleção, introdução, trad. do alemão e notas de Paulo Alcorofado. São
Paulo: Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1978. p. 59-86.
6
JAKOBSON, R. Metalanguage as a linguistic problem. In: ––––– The framework of language. Michigan:
University of Michigan, 1980.
Bedeutung Referência
Sinn Mensagem
Código
emissor Zeichen receptor
Canal
Figura 7: Esquema da Comunicação de Roman Jakobson. As formas
que vão tachadas fazem parte da terminologia de Frege que foram
adaptadas por Jakobson.

O esquema da comunicação que vai disposto na Figura 7 decorre da interpretação de


Jakobson quanto à descrição das propriedades dos símbolos na linguagem. O autor
retomou o conceito de símbolos tripartidos, que vinha desde as primeiras proposições
gregas, e o incorporou no contexto de uso da linguagem como um meio de
comunicação. Ao tomar emprestado da Teoria da Comunicação os conceitos de emissor
e receptor 7, seu esquema reconstrói toda a formulação teórica que se tinha definido
para os estudos da linguagem. Do modelo de Peirce, o interpretante foi distribuído entre
emissor e receptor, o representamem foi dividido em código e canal, seguindo a
proposta estruturalista 8 e o objeto é a referência contextual. Desse modo, Jakobson
sintetizou diversas teorias no seu modelo e, ainda, nos permitiu tratar isoladamente de
cada uma das funções que propôs.

Objeto/Bedeutung

CONTEXTO
Interpretante Função referencial Interpretante
do rementente Sinn do destinatário
MENSAGEM
Função poética
REMETENTE DESTINATÁRIO
Função emotiva CÓDIGO Função conativa
Função metalinguística

Representamem/Zeichen CONTATO
Função fática

Figura 8: Esquema da comunicação de Roman Jakobson na sua versão final. As


marcações em vermelho mostram as adaptações teóricas feitas por Jakobson.

Para Jakobson, apesar da divisão mais detalhada do símbolo usado na linguagem, todas
essas características atuam conjuntamente a todo tempo. O fato de o autor distribuir o
interpretante entre remetente e destinatário aponta para a instabilidade desse
elemento formador do símbolo. Nos modelos tripartidos propostos anteriormente, esse
elemento era tomado como um fenômeno fixo, isto é, cada símbolo evocaria sempre o
mesmo interpretante. Jakobson trouxe para a teoria a incerteza da igualdade entre os

7
SHANNON, C. A mathematical theory of communication. The Bell System Technical Journal. n. 27, p.
379–423, 623–656, July, October, 1948.
8
SAUSSURE, F. Cours de linguistique générale. Éd. critique préparé par Tullio de Mauro. Paris: Payot,
1974
interpretantes do remetente e do destinatário. Essa incerteza, por sua vez, desencadeia
a ambiguidade na própria comunicação. Ele ainda chama a atenção para o fato de que
essa ambiguidade, na maioria das vezes, ocorre no interpretante do destinatário. O
remetente sabe o que pretende comunicar, mas o destinatário precisa descobri-lo a
partir dos diversos representamina que lhe são enviados. E, nesse caso, voltamos à
questão da habilidade do autor.
O domínio do representamem de forma a utilizá-lo com intenção comunicativa
representa um passo significativa no conjunto das relações humanas. Esse domínio, no
entanto, nem sempre é facilmente percebido. Trata-se de um comportamento em que
facilmente se confundem intuições e intenções. De certa maneira, é como pensar sobre
um cachorro que abana o rabo intuitivamente quando está feliz, ou quando sorrimos
pelo mesmo motivo. O comportamento do cachorro é intuitivo, o nosso também. Mas
o cachorro não abana o rabo quando quer, só quando está feliz. Ele não pode enganar
seus inimigos, fingindo felicidade e mordendo quando se aproximam. Nós podemos
fazer isso; é o que dizemos de “sorrir para manter a amizade”. Embora o sorriso seja
também intuitivo, podemos controlá-lo e usá-lo com intenção comunicativa. Nesse
caso, o sorriso é um símbolo bem definido.
Fazemos isso, muitas vezes sem nos darmos conta de que estamos propondo uma
comunicação. Uma das formas mais corriqueiras e universais é a pintura corporal. Nas
figuras abaixo, podemos notar que à esquerda há um assurini com pintura corporal ao
redor da boca, nos lábios, na testa, com cabelos avermelhados e com sobrancelhas
aparadas. 9 A direita uma mulher com pintura corporal nos lábios, ao redor do olho, com
faixa na testa, cabelos esvoaçantes e adereços brilhantes no lóbulo de ambas as orelhas.

Figura 9: A figura à esquerda mostra um homem assurini com pintura facial; a figura à
direita mostra uma mulher ocidental com pintura facial.

Podemos imaginar pensar que o queixo acentuado no assurini pode apontar para a
manifestação simbólica da masculinidade. Na citação abaixo, retirada de um site de
diversidades aleatórias apresenta uma interpretação semelhante.
Um rosto masculino (o tal do macho) tem um queixo relativamente acentuado, mandíbulas
fortes, olhos estreitos e sobrancelhas bem definidas. George Clooney se encaixa nesse
perfil, Gangestad sugere. Um rosto menos masculino, por outro lado, inclui uma mandíbula
menos pronunciada e olhos maiores, como o ator que interpreta o Mr. Bean. 10

9
MULLER, R. P. Tayngava, a noção de representação na arte gráfica Asurini do Xingo. In: VIDAL, L. (Org.)
Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Nobel; Edusp; Fapesp, 1992. P. 231-248
10
http://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/noticias/homens-com-cara-de-macho-sao-mais-atraentes-
para-mulheres-ferteis-20110110.html
Na figura feminina à direita, temos uma situação invertida, em que o reforço das marcas
corporais dá-se acima do queixo, direta e unicamente sobre os lábios, o que, tira o foco
que o destinatário poderia ter sobre o queixo. A presença ou ausência marcada das
sobrancelhas, entretanto, parece contrariar, segundo o site de diversidades, a
manifestação da masculinidade, justamente porque no assurini não há sobrancelhas. Se
observarmos a Figura 10, poderemos entender isso melhor. 11
Trata-se de um desenho que procura mostrar perfis
que provocam reações diferentes. Os perfis à
esquerda mostram figuras que desencadeiam
reações de afetividade, pois, justamente parecem
mostrar-se frágeis, requerendo atenção e cuidado. Os
perfis à direita, ao contrário, desencadeiam reações
de afastamento e, até mesmo, de agressividade.
Note-se que não se trata de um teste feito com
pessoas, mas sim com animais. Trata-se, portanto, de
um fato intuitivo, que ainda não se tornou simbólico.
Walt Disney, o cartunista, soube muito bem
aproveitar essa característica. 12
Na Figura 11, abaixo, a primeira versão do Mickey
Figura 10: Na figura acima, os perfis à Mouse, que vai mais à esquerda, difere da última, que
esquerda tendem a provocar reações
afetivas positivas, os à direita, reações vai mais à direita, exatamente pela relação dos olhos
afetivas negativas. com sobrancelhas mais marcadas, olhos maiores e
mais bem definidos e nariz menos proeminente.

Figura 11: Transformações por que passou o representamem da personagem Mickey Mouse, de
Walt Disney. O representamem mais à esquerda é o que foi criado na década de 20 do século XX; o
mais à direita é a forma que apresentou 50 anos depois

Se retomarmos a Figura 9 acima, em que aparecem um moço assurini e uma moça


ocidental com pinturas corporais, veremos que as diferenças na pintura que fazem
ocorrem precisamente nos olhos. Os olhos do assurini perdem-se no conjunto do rosto
e não recebem nenhuma marca que os acentue; os olhos da mulher ocidental, por sua
vez, são muito marcados pela pintura e pelas sobrancelhas, tornando-os mais salientes
e perceptíveis. Obviamente, podemos entender que as pinturas corporais são
eminentemente simbólicas em quaisquer dos casos.
Ora, sabendo dessa possibilidade, podemos nós mesmos simular essas características,
numa forma de manipulação simbólicas, tal como fez Walt Disney. Na figura abaixo, as
representações humanas por meio do desenho do homem palito mostram que a relação
11
Extraída de LORENZ, K. Os fundamentos da etologia. São Paulo: Ed. da Unesp, 1995. P. 221
12
GOULD, Stephen Jay. Uma homenagem biológica a Mickey Mouse. In. ––––– O polegar do panda. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
do tamanho da cabeça em relação ao corpo e do tamanho dos
olhos em relação ao rosto são muito significativas para
estabelecer as mesmas reações que vimos na figura de Lorenz,
um pouco mais acima.
Em relação a essas características próprias do comportamento
humano, outros detalhes podem ser considerados também
Figura 12: Representação como fenômenos simbólicos. Podemos, por exemplo,
humana. À esquerda a relação estabelecer uma matriz de movimentos da boca e das
do tamanho da cabeça com o
resto do corpo e a relação do sobrancelhas, de maneira que possamos expressar e fazer
tamanho dos olhos com o nosso interlocutor interpretar a informação que desejamos:
rosto levam o destinatário a
reagir com O domínio dessas marcas de
afetividade
expressão, usadas com intenção
positiva; à direita, a reação se
inverte, dadas as relações
inversas em relação ao
comunicativa, são conforme
tamanho da cabeça e dos dissemos, um passo significativo
olhos. no avanço tecnológico das
relações humanas. Esse tipo de formação de símbolos
sistematizados, repetidos, estabelecem um processo de
comunicação que pode ser documentado e transmitido à
distância, isto é, sem que estejam simultaneamente Figura 13: Matriz relativa às
presentes remetente e destinatário no processo da variações de posição das
sobrancelhas e da boca numa
comunicação. Trata-se de um sistema que se representação de rosto humano.
convencionou chamar de escrita semasiográfica, num
primeiro momento, e ideográfica, num segundo. O primeiro caso pode ser
exemplificado pela narrativa ojibwa, um grupo nativo na América do Norte.
Um índio e sua mulher tiveram uma discussão: ele queria ir caçar
e ela não. Ele pegou o seu arco e flechas e encaminhou-se para a
floresta. Surpreendido por uma tempestade de neve, ele
procurou proteger-se. Avistou duas tendas, examinou-as, mas
descobriu que abrigavam duas pessoas doentes: numa delas
havia um garoto com sarampo, na outra, um homem com varíola.
Ele se afastou o mais rápido que pode e logo aproximou-se de um
rio. Vendo peixes no rio, ele apanhou um deles, comeu-o e
descansou por ali por dois dias. Depois pôs-se a caminho de novo
e avistou um urso. Disparou uma flecha contra ele, matou-o e fez
um belo banquete. Em seguida, partiu novamente e viu uma
aldeia indígena, mas como eles se mostrassem inimigos, fugiu e
Figura 14: Narrativa semasiográfica feita foi ter a um pequeno lago. Enquanto caminhava ao longo do lago,
por um ojibwa. A leitura inicia do centro apareceu um cervo. Ele matou-o com uma flecha e arrastou-o
da espiral. para sua cabana, para sua mulher e seu filhinho. 13
A narrativa mostra uma série de símbolos que representam ações; como a flecha
representando a caçada, a inversão de posição, representando a morte, a linha saindo
dos olhos, representando a visão, as pegadas conjuntas, representado o andar, as
pegadas espaçadas, representando a corrida, dentre vários outros símbolos. Na medida
em que esses símbolos se tornam mais e mais usados, ocorre uma mudança na sua
forma tornando-os mais estilizados, e menos capazes de representar por si sós. Já não
podemos pensar que podem atuar como os ícones propostos por Peirce. Mas não se

13
CAGLIARI. L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1990. P. 107
constituem como letras, como em nosso alfabeto. São tratados de ideogramas. Esse tipo
de mudança ocorreu em várias partes do mundo. Na escrita mais antiga que se conhece,
a cuneiforme, que era usada na antiga Mesopotâmia,
atual Iraque, pelo povo que se conhece como sumério,
isso foi muito bem documentado.
Na figura ao lado, 14 temos uma sequência de ideogramas
sumérios. Na primeira coluna estão suas formas mais
antigas, que vão se modificando sucessivamente até a
quarta coluna. O ideograma 1 é um perfil, representando
uma pessoa, o 2 é o mesmo perfil, mas recoberto,
representado tristeza. O ideograma 3 é um rio, ou água,
o ideograma 4 é uma pessoa que mora depois do rio, um
estrangeiro. O ideograma 5 é um pé, que representa
andar; o ideograma 6 representa o sol, e o 7, a lua. O
ideograma 8 representa uma mulher; o ideograma 9
representa montanhas, e o 10, as mulheres que moram
além das montanhas. Como se pode notar, as
modificações são sucessivas. Na quarta coluna, a versão
mais recente, há pouca semelhança com as figuras, os
representamina, da primeira coluna. Não temo como
Figura 15: Tabela, em que as colunas
mostram as transformações dos glifos
perceber que dois traços verticais representam água e
sumérios em ideogramas. As linhas que dois traços horizontais representam andar. Nada há
mostram glifos diferentes. de icônico nesses representamina. Por
isso são chamados, ideofones. São sinais que representam ideias como
um todo. A combinação desses ideogramas formam um texto.
Isso ocorreu também na escrita chinesa. Podemos ver na figura ao lado
que as formas iniciais se transformam até tornarem-se completamente
diferentes da forma original. A figura de um cavalo e de um peixe, apesar
de não serem tão parecidas com um cavalo e com um peixe, de fato, são
representamina icônicos enquanto que as últimas não são. A escrita
alfabética, como a conhecemos, que procura representar sons por meios
de desenhos decorre de
escritas ideogramáticas.
Na figura abaixo, à
esquerda, podemos ver a
transformação por que
passaram os ideogramas
egípcios até se tornarem
as letras que usamos
cotidianamente em
nosso alfabeto. Figura 16: Transformações
por que passaram os glifos
chineses.
Figura 17: Transformações dos glifos egípcios nas letras
romanas.

14
SAMPSOM, G. Sistemas de escrita. Tipologia, história e psicologia. São Paulo: Ática, 1996. P. 53

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