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ILUSTRADO POR MARIA EDUARDA PAVÃO

ILUSTRADO POR MARIA EDUARDA PAVÃO


OS ISOLADOS E OS AGLOMERADOS DA CIBERCULTURA: ENSINO REMOTO
EMERGENCIAL, EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA E EDUCAÇÃO ONLINE
LEONARDO NOLASCO-SILVA // VITTORIO LO BIANCO

Editor(a): Gilmaro Nogueira


Diagramação: Daniel Rebouças
Capa: Gustavo Barrionuevo
Ilustrações: Maria Eduarda Pavão

Conselho Editorial:
Prof. Dr. Carlos Henrique Lucas
Prof. Dr. Leandro Colling
Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Prof. Dr. Djalma Thürler
Profa. Dra. Luma Nogueira de Andrade
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Profa. Dra. Fran Demétrio Afro-Brasileira – UNILAB
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB
Prof. Dr Guilherme Silva de Almeida
Prof. Dr. Helder Thiago Maia Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
USP - Universidade de São Paulo
Prof. Dr. Marcio Caetano
Prof. Dr. Hilan Bensusan Universidade Federal do Rio Grande – FURG
Universidade de Brasília - UNB
Profa. Dra. Maria de Fatima Lima Santos
Profa. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Instituto Federal Rio de Janeiro – IFRJ
Dr. Pablo Pérez Navarro
Profa. Dra. Joana Azevedo Lima Universidade de Coimbra - CES/Portugal
Devry Brasil – Faculdade Ruy Barbosa e Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Brasil
Prof. Dr. João Manuel de Oliveira Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista da Silva
CIS-IUL, Instituto Universitário de Lisboa Faculdade de Educação
Profa. Dra. Jussara Carneiro Costa Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil)
N724i Nolasco-Silva, Leonardo
1.ed. Os isolados e os aglomerados da cibercultura: ensino
remoto emergencial, educação a distância e educação online /
Leonardo Nolasco-Silva ; Vittorio Lo Bianco – 1.ed. – Salvador,
BA : Devires, 2022. 127 p. ; PDF.
Ilustrado
ISBN : 978-65-86481-57-0
1. Cibercultura. 2. Educação. 3. Professores –
Formação profissional. I. Lo Bianco, Vittorio. II. Título
12-2021/85 CDD 370.71

Índice para catálogo sistemático:


1. Cibercultura : Educação 370.71
Bibliotecária: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que


citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires.

Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA


www.editoradevires.com.br
SUMÁRIO

PREFÁCIO 5

INTRODUÇÃO
OS ISOLADOS E OS AGLOMERADOS DA CIBERCULTURA 11

CAPÍTULO UM
DOCÊNCIAS EM TEMPOS DE CIBERCULTURA 17

CAPÍTULO DOIS
EDUCAÇÃO ONLINE 50

CAPÍTULO TRÊS
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA 75

CAPÍTULO QUATRO
ENSINO REMOTO EMERGENCIAL 97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 123

4
PREFÁCIO

É com grande alegria e surpresa que


aceitei prontamente o convite dos
professores-pesquisadores Leonardo
Nolasco-Silva e Vittorio Lo Bianco
para assinar o prefácio deste livro
tão criativo e oportuno. Em primeiro
lugar, vem o orgulho da ex-professora.
Ambos foram meus alunos no
doutorado em Educação, no ProPEd/
Uerj. Atualmente (2021) supervisiono
o Pós-doutoramento de Vittorio Lo
Bianco junto ao PPGEDUC/UFRRJ. Ambos, sempre atentos e autores de
teses muito eloquentes. Leonardo, com uma autoria cotidianista sobre
artesanias tecnológicas na educação; Vittorio, com um importante histórico
do projeto pioneiro de EAD na Graduação Pública do Consórcio Cederj. Em
segundo lugar, a alegria de tê-los na parceria autoral no campo específico
da Educação na Cibercultura.

Esta dupla de autores faz parte da nova geração que assume e toma para
si a responsabilidade de pesquisar, como eles dizem aqui no livro, em
cibercontextos situados. Este livro é um processo-produto de uma pesquisa
que acontece em nosso tempo, durante a pandemia da Covid-19, nos anos
de 2020 e 2021. Uma obra que circulará em rede e aberta, fazendo valer
a política e a ética da abertura dos contextos na cibercultura. Militamos e
somos favoráveis a abertura de conteúdos porque entendemos que este

5
movimento é fundamento para a livre circulação de práticas e de atitudes
interativas e colaborativas, que fundam as autorias ciberculturais.
Os Estudos da Cibercultura, em nosso país, configuram-se como um campo
interdisciplinar e multirreferencial, onde comunidades científicas reúnem
pesquisadoras, pesquisadores e intelectuais de várias áreas do conheci-
mento. Por outro lado, somos poucos na Educação com presença autoral
e histórica nestas comunidades – para não falar pouquíssimos. Meu lugar
de fala, como líder do GPDOC – Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura
(UERJ/UFRRJ), me permite afirmar isso. Acompanho o GT Cibercultura da
COMPÓS desde 1998. Desse GT originou-se a ABCIBER – Associação Brasi-
leira de Pesquisadores em Cibercultura, que tive a honra de dirigir na gestão
de 2017 a 2019. No campo específico da Educação, sou membro do GT16
da Anped desde 2000, onde também sou coordenadora na parceria com
Lucila Pesce (Unifesp) nos últimos quatro anos (2018/2021). Poucos são
os colegas da educação presentes nestas comunidades, se autorizando e
marcando presença nos estudos específicos da Cibercultura e Educação.

A Pandemia da Covid-19 nos apartou de nossos territórios físicos e, com


isso, precisamos forjar práticas online outras. Leonardo Nolasco-Silva (Uerj)
e Vittorio Lo Bianco (Cederj), atuam na produção efetiva de conteúdos e prá-
ticas docentes e de pesquisa com os cotidianos na cibercultura. Isso muito
me alegra! Somos mais dentro e fora do Brasil, tentando compreender os
fenômenos do nosso tempo e com eles aprendemosensinamos, assumindo o
lugar de fala de pesquisadores da e na cibercultura. O que é muito diferente
dos lugares reservados aos estudos da Mídia Educação, EAD, Informática
na Educação ou mesmo da clássica Tecnologia Educacional, áreas com as
quais diálogos sobremaneira, mas marcamos uma posição singular na
Cibercultura e Educação.

Nas áreas citadas acima, a internet e seus desdobramentos em dispositivos


e interfaces são encarados como meras “mídias”. Este é um dos erros mais
graves e comuns. Tratar dos fenômenos forjados por tecnologias digitais
em rede (pós-massivas) com tratamento teórico e prático das mídias mas-
sivas, engendra problemas sérios de compreensão dos fenômenos e, com
eles, equívocos de análise e sínteses de novos e diferentes construtos de
pesquisa e de práticas educativas para o exercício das ciberdocências.

6
As tecnologias digitais em rede, que se materializam em diversos suportes,
plataformas e sistemas lógicos – em interface com as cidades, o ciberes-
paço e os artefatos técnico culturais – vêm instituindo, cotidianamente, a
cultura contemporânea, cultura digital ou cibercultura como preferimos
nomear (SANTOS, 2005, 2014). Esse híbrido entre territórios físicos, eletrô-
nicos e simbólicos – portanto, representativo – configura o contexto onde
diversos fenômenos emergem, modificando e produzindo novos arranjos
às expressões de cidadanias, práticas culturais e processos educacionais
protagonizados por adultos, crianças e jovens.

A presença do digital em rede é transversal em nosso tempo nas mais


variadas ações humanas. Seres humanos em processos de cocriação em
rede, na relação cidade/ciberespaço, protagonizam a cultura contempo-
rânea, ou seja, a cibercultura. Portanto, para nós, a educação online já é
em potência uma educação híbrida, uma vez que nos permite bricolar e
fazer convergir espaços, tempos e pedagogias. “Convergir” não é replicar
ou copiar. “Bricolar” não é juntar sem propósito. Convergir e bricolar exi-
gem de nós cocriação inteligente de processos, produtos, arquiteturas e
mediações. Incorporar, de forma desintegrada, o uso de tecnologias e/ou
situação online a rotinas presenciais, não é – para nós – educação online
ou mesmo híbrida. Essa é a nossa posição autoral, uma vez que nosso
lugar de fala se encontra nos estudos da cibercultura e da educação for-
jada com e na docência online (SANTOS, 2005, 2014, 2019, 2020), (OKADA
e SANTOS, 2000).

Convergir e Bricolar são levados muito a sério neste livro. Seus autores
dialogam com suas memórias, autorias e narrativas digitais históricas –
anteriores a pandemia – e com suas memórias, autorias e narrativas de
pesquisa e docência durante a pandemia da Covid-19. O livro apresenta
uma escrita criativa inspiradora. Os autores narram a vida e literaturizam
o saber científico produzido em contexto. Personagens conceituais se
materializam em histórias, memórias, imagens e sons. As narrativas são
multimodais e algumas podem ser acessadas via Qr Code – estratégias já
utilizadas por nós há algum tempo, mas que, no âmbito da Educação, ainda
são desconhecidas por muitos de nós.

7
O milagre de viver e sobreviver à revelia da pandemia, no contexto de uma
tragédia política desgovernada e negacionista, motivou os autores deste
livro a fazer e a aproveitar diferentes e plurais expressões educacionais
e artísticas, mediadas por tecnologias digitais em rede, principalmente
aquelas estruturadas por interfaces síncronas e assíncronas. Passamos a
habitar estas interfaces digitais em rede e, com elas, viver online. Com elas
educamos, trabalhamos, amamos e odiamos, performamos, produzimos
processos de subjetivação, práticas ativistas, inventamos outras existências
mediadas por tecnologias digitais.

Leonardo Nolasco-Silva e Vittorio Lo Bianco nos presenteiam com suas


conversas e com conversas críticas e inventivas, por eles mediadas em
atos de currículos na cibercultura. A cibercultura é a cultura contemporâ-
nea que revoluciona a comunicação, a produção e a circulação em rede
de informações e conhecimentos na interface cidade–ciberespaço. Novos
arranjos espaço-temporais emergem e com eles novas práticas de pesquisa
e formação síncronas e assíncronas (SANTOS, 2019).

A comunicação síncrona (em tempo real) é a marca das lives, dos webnários.
Entretanto, sua potência de comunicação também é assíncrona (acesso
em diferentes tempos), uma vez que lives e webnários podem ser grava-
dos e disponibilizados no ciberespaço, em diferentes plataformas. Esta
gravação para reuso já se configura em “artefato curricular” e/ou cultural
em potência, ou seja, podemos reutilizá-la em nossas aulas, atividades
formativas ou para uso privado e autoestudo. Encontramos tudo isso neste
livro. Sentimentos de pertença, sororidade e parcerias são igualmente
revelados quando as pessoas se identificam também pelos pertencimen-
tos de identidade e diferenças. Encontros de leitores com seus autores,
professores com seus alunos, pares com seus pares, amantes com seus
amores estão presentes nos capítulos aqui materializados.

Que este livro que circula em rede, nas materialidades de e-book e


impresso, seja inspiração para mais e melhores autorias e encontros. Ado-
rei encontrar com a ilustradora dessa obra e aproveito aqui para também
parabenizá-la por sua autoria linda. As imagens são mais que ilustrações,
são personagens que nos convidam a pensar com o texto e, muitas vezes,
nos libertam dele. Isso é oportuno e necessário. Este livro é um contradito

8
a precarização das práticas docentes e de pesquisas em tempos de pande-
mia. Por este motivo, recomendo-o a todas, todos e todes a leitura atenta a
crítica de seus capítulos. Os autores assumem aqui a incompletude e esta
é formativa e nos constituem devir... Viajemos com eles...

Edméa Santos
Praia do Leme, Cidade Maravilhosa
Professora-titular livre da UFRRJ
www.edmeasantos.pro.br

9
REFERÊNCIAS

OKADA, Alexandra. SANTOS, Edméa. A construção de ambientes virtuais de aprendizagem:


por autorias plurais e gratuitas no ciberespaço. ANPED:GT16, 2000.
PIMENTEL, Mariano; CARVALHO, Felipe da Silva Ponte. Princípios da Educação Online: para
sua aula não ficar massiva nem maçante! SBC Horizontes, maio 2020. ISSN 2175-9235.
SANTOS, Edméa. Educação Online: cibercultura e pesquisa– formação na prática docente.
2005. 351 f. Tese (Doutorado) – Curso de Educação, Faculdade de Educação, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, Bahia, 2005.
SANTOS, Edméa. Pesquisa-Formação na Cibercultura. Santo Tirso, Portugal: Whitebooks,
2015. 204 p. Acesso em: junho. 2020.
SANTOS, Edméa. Pesquisa-formação na Cibercultura. Teresina: EDUFPI, 2019. Acesso gra-
tuito na aba “Livros”
SANTOS, Rosemary; RIBEIRO, Mayra R. F.; CARVALHO, Felipe S. P. Educação Online: apren-
derensinar em rede. In: SANTOS, Edméa O.; PIMENTEL, Mariano; SAMPAIO, Fábio F. (org.).
Informática na Educação: cultura, sociedade, histórias e políticas. Porto Alegre: Sociedade
Brasileira de Computação, 2019. n. p. (Série Informática na Educação, v.1).

10
OS ISOLADOS E
OS AGLOMERADOS
DA CIBERCULTURA

Começamos esse livro sem saber, ao


certo, onde ele vai chegar, pois não pode-
mos antecipar as estradas, as paisagens,
os viajantes que encontraremos pelo
caminho. Escrevemos em trânsito, isola-
dos na medida do possível, na ebulição
dos acontecimentos de uma pandemia
que não nos permite projetar o futuro
próximo, pois nada nos assegura a exis-
tência de um amanhã.

Vivemos num tempo de nega-


ção da ciência, de luta contra a
Educação, de universidades tor-
nadas inimigas da sociedade, da
diferença que tentam a qualquer
custo eliminar. Não sabemos o
que esperar dos próximos dias.
Não sabemos se teremos muitos
dias pela frente – a morte nos
ronda. Mas escrevemos como
forma de não apagar o que temos
vivido, pois muitos estão sendo
apagados das nossas vidas, sem
chance de cura, em hospitais lota-
dos, sem vagas, sem ar, sem dig-
nidade, sem despedida.

11
A imagem do escritor em seu pro-
cesso de criação é quase sempre
uma ilusão subordinada ao tempo de
espera. Tempo de lapidação: do texto,
dos autores e do tema que envelhece
todo dia e que todo dia renasce com
traços novos, com demandas outras,
com intensidades e interfaces que
certamente não conseguiremos
acompanhar.

Às vezes, precisamos parar para viver os nossos lutos. E nessas oca-


siões é sempre muito difícil separar a dor do texto. Ela nos escapa,
nos domina, nos transborda. Então, precisamos avisar que este livro
será escrito nas bordas da nossa sanidade, nascerá dos restos das
nossas possibilidades de manter um pensamento sóbrio diante de
tantas e tamanhas atrocidades. Será um livro que se pretende gesto,
uma braçada de afogado que, na iminência da finitude, batalha por
algum segundo a mais de continuidade.

12
Queremos sobreviver e achamos que seria
bom escrever sobre esses dias no curso dos
acontecimentos, sem esperar pelo tempo da
poeira assentada. Talvez esse tempo demore
a chegar, talvez não estejamos mais aqui para
contar essa história. Podem, então, classifi-
car esses nossos escritos como um livro de
memórias de dois trabalhadores da Educação
que, na solidão da quarentena, na interrup-
ção das aulas e dos abraços, produziram laços
com o futuro desejável, em forma de compo-
sições diversas, por meio de conversas que
nem sabíamos se poderiam ser continuadas. Cada despedida, ao fim das mensa-
gens trocadas, dava lugar à incerteza de um novo contato. É mórbido pensar que
algumas das vozes que faremos caber aqui podem não mais existir quando este
livro chegar às mãos do leitor. Façamos, pois, do dissabor dessa possibilidade,
um tipo de homenagem àqueles que não puderam acordar do pesadelo.

Mas, se a pandemia da Covid-19 pôs em cir-


culação um vírus violento e rápido, não pode-
mos ignorar que do trágico fez-se o ímpeto de
buscar alternativas. Soluções criativas, brico-
lagens tecnológicas, modos de subverter as
lógicas institucionais estão entre as artes de
criar, de reexistir e ressignificar que circulam
entre os isolados e os aglomerados da Ciber-
cultura. Sim, vivemos hiperconectados nesses
tempos de quarentena – nós, os autores, pri-
vilegiados em nossos apartamentos da Zona
Sul do Rio de Janeiro. Assistimos lives, muitas
lives. Usamos mensageiros instantâneos para
não nos perdermos na solidão dos não-en-
contros. Atualizamos o feed de notícias das
nossas redes sociais a cada dois segundos.
Produzimos um mundo delimitado por telas.
Não consumimos mais novelas porque elas
pararam de ser produzidas. Um de nós sente
falta dos capítulos inéditos de Amor de Mãe.
O outro aguarda ansiosamente a estreia do
próximo Big Brother Brasil.

13
Enquanto a cura para a pandemia não vem – e a
morosidade da vacinação explicita o negacionismo
científico e o fundamentalismo cínico que faz da
morte uma bandeira hasteada – trabalhadoras e tra-
balhadores da educação praticam a multiplicação das
formas de encontro. Em rede, por mais precária que
seja a conexão; negociando a atenção do estudante
com o luto, com a sobrevivência demandante, com o
desemprego da família, com o barulho que cria dis-
persão, com a falta de concentração, de dispositivo
adequado, com o sinal minguado de Internet e tudo
mais que compete à política pública de conexão e de
formação para a Cibercultura que não temos.

Entendemos que um livro escrito na pulsação do


tema que lhe serve de argumento é um tipo de
unguento cuja mistura não sabemos o que pode
causar antes de bebericar o seu caldo. O saldo
desse empreendimento é algo que só você, lei-
tor, poderá calcular. Se faltar alguma coisa, algum
pensamento, alguma experiência não abordada
– até um pouco de leveza – pedimos que com-
plete as lacunas que deixaremos abertas. Decerto
você saberá muito sobre as nossas não-sabenças,
porque um livro será sempre a escrita de uma
diferença que só se completa quando acessa o
desejo de cocriação do leitor. Sejamos, pois, um
coletivo-compositor disponível à incompletude e
ao devir-pensamento. Sejamos também sementes
para um outro momento que precisa germinar e
nascer depressa.

14
Nesses meses de isolamento em que nos juntamos remotamente para
pensar e escrever um diário, um ensaio ou um manifesto acerca dos movi-
mentos que temos visto acontecer atualmente, no campo da Educação,
entendemos que só com muita
conversa – com professores e
estudantes – teríamos alguma
chance de produzir um texto
relevante ou, ao menos, atento
ao que se passa entre os nos-
sos. Em meio aos destroços das
nossas vidas pelo avesso, produ-
zimos um texto costurado por
narrativas. Bricolagem de gentes,
remendos de escutas, retalhos de
emoções. Assumimos a pesquisa
como palco de criações onde
atuamos, roteirizamos, contrace-
namos, escalamos elenco, faze-
mos desenho de luz, decidimos
as marcações e, um dia, se tudo der certo, marcamos a data da estreia. Os
pesquisadores nunca estarão na plateia porque fazem parte do espetáculo.

– O pesquisador escuta, vê, sente com as redes dele. Ele não busca a ver-
dade, mas um efeito de verdade. A gente nunca chega ao real. A gente cria
o real possível com a nossa escrita, com as nossas pesquisas. Mas é um
real que está atrelado às nossas possibilidades de interpretação. Quando
a gente conversa com um professor, não é importante saber se o que ele
está dizendo é verdade ou mentira. O que importa é a possibilidade de
vir a acontecer o que ele está emitindo. Naquela fala existe uma potência
de transformação, uma possibilidade de mudar o real, de explorar outros
modos de fazer. É o que Deleuze vai chamar de virtual. Na pesquisa em
educação, esse é um elemento central: emitir algo é dar a possibilidade
desse algo acontecer1.

1
As narrativas presentes neste livro não serão atribuídas a um nome próprio. Adiante explicaremos
o porquê disso. Contudo, queremos informar que essa fala foi transcrita a partir de uma conversa
que Nilda Alves teve – via Zoom, em junho de 2021 – com um grupo de professoras de Manaus.
Marcamos essa autoria para dizer que uma parte deste livro, antes da publicação, circulou pelas
redes de Nilda, em conversas registradas em vídeo. Um dos autores – Nolasco-Silva – dividiu
com ela duas disciplinas no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, ao longo da
pesquisa e da escrita do livro. Tal fato acarreta uma presença constante das ideias e das pro-
vocações dessa professora que tem, por hábito, estar sempre um passo à frente do seu tempo.

15
[...] Da voz outra, faço minha, as his-
tórias também. E no quase gozo da
escuta, seco os olhos. Não os meus,
mas de quem conta. [...] Portanto,
estas histórias não são totalmente
minhas, mas quase que me pertencem,
na medida em que, às vezes, se (con)
fundem com as minhas. Invento? Sim,
invento, sem o menor pudor. Então as
histórias não são inventadas? Mesmo
as reais, quando são contadas. Desa-
fio alguém a relatar fielmente algo que
aconteceu. Entre o acontecimento e
a narração do fato, alguma coisa se
perde e, por isso, se acrescenta. O real
vivido fica comprometido. E, quando
se escreve, o comprometimento (ou o
não comprometimento) entre o vivido
e o escrito aprofunda mais o fosso.
Entretanto, afirmo que, ao registrar
essas histórias, continuo no premedi-
tado ato de traçar uma escrevivência.
(EVARISTO, 2020, p.7).

Sem
estoque

16
DOCÊNCIAS EM TEMPOS
DE CIBERCULTURA

Para falar de docências – no plural,


porque há muitos modos de exercer o
ofício2 – é preciso estar atento (e for-
te)3 ao que acontece nos cotidianos
das escolas, das universidades e, nesse
tempo-tempestade de 2020/2021, nos
Ambientes Virtuais de Ensinoaprendi-
zagem (AVE)4, terreno movediço onde
temos erguido esse negócio5 chamado
Ensino Remoto Emergencial (ERE)6.

2
Gostamos dessa definição de Deleuze (1986) sobre o que é uma aula – práticateoria funda-
mental para a compreensão de como o docente pensa e exerce o seu ofício: “Para mim, uma
aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em
movimento. É por isso que é musical. Numa aula, cada grupo ou cada estudante pega o que lhe
convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a
todos. As pessoas têm de esperar. Obviamente, tem alguém meio adormecido. Por que ele acorda
misteriosamente no momento que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a
alguém. O assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção. É tanto emoção quanto
inteligência. Sem emoção, não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender
e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso que
um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento dos centros de interesse que
pulam de um para outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura”.
Entrevista concedida por Deleuze à Claire Parnet, em 1986. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=-C2BlFFUu9M&t=1s. Acesso em 13/03/21.
3
Referência ao verso da canção ‘Divino Maravilhoso’, de Caetano Veloso.
4
Alguns ainda chamam essas interfaces digitais de AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem. Mas,
como não acreditamos em aprendizagem acontecida na ausência de ensino, preferimos usar AVE
– escrevendo ensinoaprendizagem como uma palavra única, não dicotômica, seguindo a aposta
estético-política das pesquisas nos/dos/com os cotidianos. Para essa corrente do pensamento
educacional, a lógica da ciência moderna opôs noções que seriam mais potentes se pensadas
lado a lado – tempo-espaço; saber-fazer; prática-teoria etc. Sublinhando a despotência dessas
oposições, passamos a escrever temposespaços ou espaçostempos; práticateoria ou teoriaprática
ou ainda práticateoriaprática; saberesfazeres etc.
5
E quem há de dizer que o Ensino Remoto Emergencial não é um negócio? Uma breve análise
das propostas colocadas em prática pelas secretarias de educação de diversos Estados brasileiros
apontará a forte presença e influência de grandes empresas privadas que praticam a educação
como negócio. São elas as vendedoras dos pacotes de soluções pedagógicas que vão desde
ambiências digitais até materiais didáticos e aulas gravadas por professores uberizados. Falaremos
de alguns casos no capítulo Ensino Remoto Emergencial.
6
Nossas reflexões acerca do Ensino Remoto Emergencial serão realizadas, primordialmente,
tendo a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) como recorte, pois é nela que atua-
mos e desenvolvemos nossas pesquisas. Em algumas passagens do texto, contudo, falaremos
de forma mais abrangente, citando experiências que se dão/deram em outros espaçostempos.

17
É fundamental par-
tirmos das pedras
miúdas se quisermos
falar – caminhando –
acerca do caminho.
É prudente escutar
e compreender, no
comezinho dos dias,
as vozes que enchem
esses espaçostem-
pos praticados de
sons dissonantes 7 ,
contando histórias
outras, nem sempre
convertidas em pala-
vras nos documentos oficiais8. Entre o que as instituições um rio largo de águas
turvas, do qual só saberemos algo (jamais tudo) se mergulharmos sem medo de
nos molhar. A sensação de afogamento também faz parte dessa aventura, mas a
gente aprende a nadar e a boiar para contemplar a paisagem9.

⁷ Os cotidianos escolares, apesar da rigidez e da disciplina que tentam impor, são também espa-
çostempos de expansão da vida, de diferenciação, de afirmação de outros modos de existência,
inclassificáveis, inomináveis. Neles, o poder – como relação de forças – estará sempre em disputa.
⁸ Nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, compreendemos a investigação científica a partir
do mergulho que o pesquisador se dispõe a fazer, com todos os sentidos, nos espaçostempos
sujeitos de seus estudos. Isso implica escutar o que aparentemente não seria fala, mas barulho
– sons que permeiam os cotidianos escolares e que não são, de imediato, significados como
narrativas que informam algo interessante à pesquisa. Os cheiros, os sabores da comida servida
no refeitório, do salgadinho comprado na cantina e outros disparadores de sentidos ajudam a
compor entendimentos quando se está no campo para pensar com e não sobre. Tais percepções
acerca dos cotidianos investigados nem sempre encontram correspondência nos documentos
institucionais. Cabe às pesquisas em Educação registrar a pluralidade desses modos de existir
e de habitar as escolas. Cf. Alves, 2015.
⁹ Seja em sala de aula ou no campo, como pesquisador, o ofício do professor não se realiza sem
sobressaltos, tensões, necessidade de tomar decisões rápidas para dar conta dos imprevistos do
dia a dia. O que aprendemos na faculdade e em outros cursos de formação nunca será suficiente
para a feitura do trabalho diário, para compreender as demandas e propor negociações. Por
isso, quando pesquisamos com os cotidianos, estamos interessados em conhecer os danos, os
remendos, as voltas por cima, os recuos, os avanços, os disfarces, as malícias, os enganos, as
estripulias, as desobediências, as gambiarras e demais fazimentos que compõem os processos
de singularização docentes. É o que escapa das normas que nos interessa. São as rebeldias.

18
– É um dia de cada vez, eu já coloquei isso na minha cabeça. É um
processo de autoconhecimento também. Eu, que já não sabia nada
de mim quando começou a pandemia, agora sei menos ainda, mas
eu acho que eu consegui conhecer mais um pouco das pessoas que
interagem comigo nas redes sociais. Sobrou mais tempo pra acom-
panhar a vida alheia, né? A vida hoje é uma enorme tela plana e eu tô
mergulhando cada vez mais nela. E com essa pressão das aulas remo-
tas, acaba que tudo acontece ali mesmo, no celular, no computador.
Eu não conheci os meus alunos desse semestre, mas é como se [os]
conhecesse mais do que os outros, dos semestres presenciais, porque
esses de agora produzem mais imagens de si, da casa, do cotidiano
deles, e eu acesso mais essas imagens do que acessava antes, eu vejo
os vídeos deles no Instagram, eu escuto os áudios que eles mandam
no grupo do Whatsapp. Às vezes, nessas lives, nessas interações em
vídeo que eu faço com as turmas, eu acabo conhecendo muito mais
as famílias, o espaço em que eles moram, a casa sem reboco, a soli-
dariedade entre as pessoas que moram naquela casa, que tentam
se ajudar. É uma pobreza
material que existe em
meio a uma riqueza de
sentimentos. É estranho
me ver dentro daquelas
casas, sentindo os cheiros,
ouvindo os barulhinhos. Eu
me sinto uma prisioneira
olhando pelo buraco da
fechadura. E quanto mais
eu olho, quanto mais eu
escuto as cenas desse Big
Brother, mais eu quero
ver e ouvir. Por isso é que
eu acho difícil separar o
tempo do lazer do tempo
do trabalho, porque tudo
acontece no mesmo lugar
agora, entende?10

10
Narrativa de praticantepensante alegórico. O praticantepensante alegórico é uma escolha meto-
dológica caracterizada pela reunião de múltiplas vozes que, sob o signo de uma identidade única,
exercem em nosso texto uma função-informante. Trata-se da junção de pedaços de narrativas,
produzidas por diversos interlocutores de pesquisa, que nos ajudam a pensar sobre determinado
tema. Não possui, pois, um caráter biográfico, mas unicamente comunicativo – ilustração de certos
modos convergentes de pensar entre sujeitos de uma mesma comunidade (NOLASCO-SILVA,
2019). Os praticantespensantes alegóricos funcionam, nesse sentido, como personagens concei-
tuais. Para Alves (2010, p.1.203), “Os personagens conceituais são, assim, aquelas figuras, argu-
mentos ou artefatos que entram como o outro – aquele com quem se “conversa” e que permanece
presente por muito tempo para que possamos acumular as ideias necessárias ao desenvolvimento

19
As docências – mosaico de variadas imagens – são práticas de leituras e
de escritas do mundo. Como tal, são passíveis de equívocos, de engasgos,
de tropeços que nos quebram as letras11, de miopias e outros defeitos da
visão adoecida. Não são mais legítimas que as outras formas de ‘ler’, mas
tampouco seriam menos relevantes, como querem fazer acreditar aqueles
que pintam o professor como inimigo.

de conhecimentos nas pesquisas que desenvolvemos. Esses personagens conceituais aí têm que
estar, para que o pensamento se desenvolva e para que se crie novos conhecimentos”. Parte das
narrativas aqui apresentadas foram usadas na criação de um roteiro de ficção que, ao longo do
ano de 2020, em meio a pandemia, deu origem a websérie “Isolados”. A proposta da série é fazer
circular conhecimentossignificações elaborados em contextos de pesquisa, entre um público não
necessariamente acostumado aos textos e aos eventos acadêmicos. Os episódios, produzidos
sob medida para o Instagram, têm sido trabalhados em salas de aula como disparador de temas
e complemento de textos. Ao longo desse livro, disponibilizaremos QR Codes que levarão aos
episódios correspondentes às narrativas citadas.
11
Tem coisas que acontecem com a gente na aula – exemplos que são dados, conflitos impossíveis
de serem mediados naquele momento etc – que nos deixam sem palavras.

20
Aliás, já que tocamos
nesse assunto 12 , é
preciso demorar um
pouco, ainda que sob
o risco da indigestão
e da azia, nessa ale-
goria do mau pressá-
gio chamada Escola
“sem” Partido13. Mau
agouro de nomes
variados, esse pro-
jeto de lei (mal pro-
jetado) encontra-se
espalhado por câma-
ras de vereadores,
assembleias legisla-
tivas, programas de
TV sensacionalistas
e afins, tentando
exterminar a diferença, silenciar as minorias que habitam em qualquer
agrupamento humano14. Insiste em esconder sob o pano da crueldade,

12
Em tempos de cibercultura, é difícil não cruzar o magistério com os discursos de ódio que tentam
desqualificar e demonizar o professor – e as escolas, e as universidades, e a ciência – baseados
no argumento da doutrinação ideológica. Forças políticas, empresariais e religiosas investem
dinheiro e tempo nas redes sociais online, fabricando postagens – muitas vezes por meio de
bots – que pintam o professor como inimigo da sociedade, do nacionalismo, do patriotismo, das
famílias, principalmente no tocante aos debates sobre gênero e sexualidade.
13
O Escola “sem” Partido não é um discurso novo, tampouco isolado. Suas origens datam de 2004
e são, em teoria, uma reação a um professor de História que teria feito uma comparação entre
Che Guevara e São Francisco de Assis. Na turma deste professor estava a filha do Procurador
do Estado de São Paulo Miguel Nagib e foi ele quem idealizou este movimento “100% apartidário”
que “tem dois objetivos: combater o uso do sistema educacional para fins políticos, ideológicos
e partidários e defender o direito dos pais dos alunos sobre a educação moral de seus filhos”
(BÁRBARA; CUNHA; BICALHO, 2017, p.106). Há no Escola “sem” Partido um sentido ideológico
e político que potencializa a intolerância aos movimentos sociais e tenta impedir os avanços das
lutas populares e da classe trabalhadora. Para tanto, conta com o poderoso auxílio da grande
mídia e do crescente mercado de seitas religiosas que usam “deus” como mercadoria, tornando
reféns de uma manipulação em cascata um número cada vez maior de pessoas. Versões da rea-
lidade são produzidas e veiculadas na TV, nos jornais e na internet, eficientemente orquestradas
pelos interesses de uma elite econômica, dando origem a um fenômeno que tem sido chamado
de pós-verdade.
14
Pensando com Deleuze (2002), produzir maiorias é levar as pessoas a se enquadrarem num
metro-padrão hegemonicamente estabelecido. A maioria não é ninguém, todo mundo é minoria.
A maioria é um padrão vazio, só que muitas pessoas se reconhecem nesse padrão, realizam
esse padrão. Minoria, na perspectiva deleuziana, tem a ver com não estar conforme o padrão.

21
a multiplicidade de
modos de existir, de
produzir vida num
tempo histórico
de tantas mortes –
reais e simbólicas15.
Aposta numa histó-
ria única16 contada
por uma escola-i-
dealizada destinada
a docilizar corpos17.
Deseja produzir cor-
pos únicos, vigia-
dos, encarcerados
na héterocisnorma
fragilizada que não
resiste a um clipe
da Pabllo Vittar sem
espernear nas redes.

Por isso, pensamos que a diferença/diferenciação, processual e afirmativa, é característica do


vivo e que conhecer não é reconhecer (2006).
15
Falamos de uma ideia de currículo, defendida por esse projeto estapafúrdio que, ao tentar
constituir maiorias, alija minorias ao mesmo tempo em que as produz. Um tipo de texto curricular
que, ainda que não consiga tudo o que fabula, ao se fazer credível, produz crentes praticantes
(CERTEAU, 1994) e, dessa forma, pode produzir também, por outro lado, dor, tristeza, medo,
vergonha, sofrimento naqueles que não podem ou que não querem se enquadrar em seus pro-
cessos padronizadores.
16
Chimamanda Adichie (2009, online) diz que: “É assim que se cria uma história única: mostre
um povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna”. Seguindo
na mesma lógica, a propagação de uma ideia única acerca do que pode um corpo, do que cabe
numa existência, a insistência no discurso totalitário que reduz a experiência humana ao conjunto
de regras morais criadas por uma elite cultural e econômica, querem dizer através das escolas
que aqueles que não cabem nas normas estabelecidas não merecem fazer parte da vida. São
a sobra, o avesso, o invisível, o indesejável, o abjeto, o que será punido por sua diferença. A
punição, muitas vezes, é a interdição do ato de narrar a própria história. O que se sabe desse
outro indesejável acaba sendo aquilo que falam dele.
17
“O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recom-
põe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo;
ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que
façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez
e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
‘dóceis’” (FOUCAULT, 1977, p. 164).

22
– Escola “sem” Partido é novidade pros héteros
e pros cis, igual o isolamento social. Pra uma
pessoa dissidente como eu, travesti, o distancia-
mento e a tentativa de aniquilação são a regra,
a vida normal. As pessoas não costumavam me
receber em casa. As pessoas de bem, né (?), como
dizem. Elas não falam nada, mas deixam tudo
muito claro nas atitudes, demonstram que andar
comigo é algo que não pega bem. O que os outros
vão pensar vendo uma moça de família chegando
em casa com uma travesti? Se for homem hétero,
então, nem pensar, nem na rede social eles me
adicionam. Então, olha a ironia, eu já estava isolada antes. O meu isola-
mento social começou nos anos noventa, quando eu descobri a sala de
bate-papo da UOL e a minha condição de pessoa trans. Eu perdi a vida
social ali, foi naquele momento. Eu entrava em tudo que era sala: cidade,
região, sexo, namoro, amizade. Falava com homem, com mulher: “oi, quer
tc? É só logar aqui”. Por isso que eu nem estranho esse novo normal,
porque eu sei que faz é tempo que a gente vive muito mais online que no
cara a cara. Travesti, então, vive num mundo à parte desde sempre, jogada
nos guetos. Eu já estava adaptada à solidão, à exclusão. O Escola “sem”
Partido só quer oficializar o que pessoas como eu já passam no dia a dia.
Só que hoje, eles é que são os prisioneiros. Eles é que precisam ficar em
casa por causa do vírus e estão enlouquecendo porque sempre tiveram
o direito de ir e vir pelas ruas. Eu, como já tô acostumada, só observo e
teço comentários nas redes sociais, porque eu ainda não estou morta,
apesar das tentativas dessa gente. Se não fossem as redes sociais eu
nem sei o que seria de mim, viu? Eu amo ficar no meio daquela multidão
de gente que eu nem conheço, gente sem rosto ou com rosto fake que
também não tem certeza se sou eu na foto. Cada dia eu sou uma por lá,
tipo atriz de novela que emenda uma personagem na outra, sabe? Eu já
fui tantas na Internet que se um dia eu encontrar
meus arquivos de conversa é capaz de nem me
reconhecer. Antigamente eu usava Barbie Cat do
Irajá de nickname nas salas da UOL. No MSN era
Gatinha Manhosa 17. Se eu soubesse no que esse
número ia dar, nem tinha usado. Por isso eu não
tenho medo dessas ameaças que eles fazem con-
tra o professor, porque sou puta velha de Internet,
eu sei como essa coisa funciona. Eu digo o que
eu quero de uma forma que eles não conseguem
captar a malícia e, se conseguir, não vão conseguir
provar nada. Aprendi com Chico Buarque fazendo
música de protesto na ditadura.

23
As docências da atualidade são atravessadas por um fantasma denun-
cista, x-9, delator do comportamento alheio, praticante do “sorria, você
está sendo filmado para depois ser postado e achincalhado nos grupos
de Whatsapp da tradicional família brasileira”.

– Eu confesso que passei a ficar mais come-


dida em sala de aula, porque eu sei que o que
eu falo para eles pode ser publicizado para
audiências que não terão acesso ao contexto
das minhas falas. Durante muito tempo eu vi
com bons olhos os estudantes usarem celu-
lares como gravadores durante as aulas. Eu
imaginava que eles poderiam ouvir de novo
aquilo que foi dito durante a aula em seus
momentos futuros de estudo, de revisão.
Agora eu não consigo tirar da minha cabeça
a sensação de que eles estão gravando a aula para descontextualizar a
minha fala e me expor nas redes fascistas atuais. O MBL chega a pagar uma
quantia por esses vídeos e agora eu fico pensando que posso ser vítima
das minhas próprias aulas, das ideias que eu trago comigo, das leituras
que eu faço, das minhas posições políticas. Se há uma coisa que o Escola
“sem” Partido conseguiu na nossa sociedade foi implantar o medo entre
os professores. E as tecnologias de registro, de comunicação, que tinham
tudo para ser o instrumento de avanço, de progresso entre nós, podem
ter se tornado uma ameaça, um instrumento a serviço do controle, do
cerceamento das ideias, das perseguições políticas e de tudo aquilo que
deriva da visibilidade descontextualizada.

24
Não existe docência sem bandeira, sem causa, sem uma paixão que nos
justifique acordar todo dia para trabalhar formando gente – e sendo por
essa gente (trans) formado. O Escola “sem” Partido está fadado a entrar
para a história como o sopro do passado que tenta apagar a vitalidade do
presente. Não vai conseguir realizar o intento, pois o presente compõe os
espaçostempos do invento, da travessura, da gaiatice, da fissura por onde
passamos com certo aperto, mas sem conter o movimento18. Mesmo os
corpos interditados – pois, dissidentes – cuja lógica afronta as tradições
inventadas, ao habitarem as escolas acionam discursividades de gênero e
sexualidade, mesmo sem falarem nada.

A presença de pessoas trans nas escolas e universidades,


numa época em que se discute a absurda possibilidade
da interdição do debate sobre gênero e sexualidade
na educação formal, é front de resistência. Trata-se
de um corpo que impõe, só por estar presente nesses
espaçostempos de formação, a pauta de gênero. Ao não
passar despercebido é imagem que faz pensar, que faz o
corpo-cis vibrar, colidir, perturbado com a própria noção
que faz de si. (NOLASCO-SILVA; VIEIRA, 2020, p. 183).

As docências do presente acontecem sob olhares vigilantes e cobiçosos,


nem sempre claros em suas intenções, mas
geralmente perversos como toda tentativa
de conter o fluxo da vida que deseja ir por
múltiplas direções. Entre os falsos religio-
sos que almejam a escola-prolongamen-
to-da-igreja e os ambiciosos empresários
que desejam a educação-mercadoria, há a
fresta por onde se inventa a vida. É dela
que queremos falar aqui – da passagem de
ar que viabiliza a construção permanente
do existir enquanto potência, como dispo-

18
Ao pesquisarmos com os cotidianos, preferimos dirigir a nossa atenção e preocupação para
os cruzamentos de diversas dinâmicas criadoras de modos de existência possíveis e para a
heterogeneidade e a ambiguidade que resultam dos processos de significação, classificação e
produção de diferenças reconhecíveis e administráveis.

25
nibilidade para transformar o mundo, de modo que ele se alargue tanto,
tanto, tanto que caiba todo mundo dentro dele. Educar na fresta é não se
comprometer com a ideia de um corpo-pecador porque pecado é invenção
que não faz sentido num Estado laico. O corpo tem que ser livre para (se
quiser) romper as barreiras do comportamento normativo, gingando, esca-
pando das flechas de uma moralidade reduzida à obediência. As escolas
são contingências espaçotemporais por onde os corpos transitam. Não é
possível interromper esses fluxos sem cometer algum tipo de violência.

– Eu tive muito medo


de que me descobris-
sem gay na escola,
mesmo não tendo
aquelas marcas mais
perceptíveis, porque
eu escondia tudo, eu
me escondia, eu não
reagia como eu queria
reagir. Eu me contive
sempre, eu me anu-
lava porque era isso que diziam que era o certo – os professores, os colegas,
a direção. Quando eles me repreendiam, quando diziam que aquilo não era
coisa de menino, eu violentava o meu desejo, eu desistia de quem eu poderia
ser na infância, na adolescência. E isso foi deixando minha autoestima muito
baixa. Tinha um garoto na escola que era lindo, que tocava violão, que todo
mundo queria ser amigo dele. Eu não conseguia nem chegar perto. Porque
eu tinha certeza que ele também era gay e que me descobriria na primeira
oportunidade. Passou um tempo e ele quis ficar comigo. Não sei o que deu
na cabeça dele, mas ele pediu um beijo, no meio de uma festa da turma. Eu
neguei, disse que ele estava doido, que aquilo não era certo. Mas eu queria
ficar com ele, cuidar dele, mas também queria sair correndo, deixar ele ali,
sozinho, com aquele violão em baixo do braço, porque eu sabia o tamanho
do problema que aquilo seria na escola, na minha casa, na minha vida. Então
eu resisti o quanto pude e ele não descansou até conseguir ficar comigo.
E sabe como que ele conseguiu? Num aplicativo de pegação, anos depois,
usando uma foto sem cabeça. Eu me interessei por ele sem saber quem ele
era. Eu acho que pela Internet a gente cria mais coragem pra ser quem a
gente deseja ser.

26
Nas contingências do presente, as escolas
e as universidades são espaçostempos que
se dobram entre o corpo-presença-física
e o corpo-presença-virtualizada em telas,
em rede. Nossos corpos estão ali, no pátio,
nas salas, mas também em outros lugares,
gravitando no ciberespaço que transborda
pelas ruas, pelas casas, pelos escritórios e,
claro, pelas salas de aula.

– Eu stalkeio mesmo, quero nem saber. Se a


pessoa tem perfil na internet é pra ser vigiada,
gente. Na pandemia, então, com esse tempo
sobrando, eu fico online o dia todo e vou
montando um quebra cabeça da vida de cada
um. Até dos vizinhos trancafiados no prédio
da frente ou até no meu prédio, eu já tenho
informações. Eu observo tudo, eu acompanho
as conversas botando o copo na parede. Essas
paredes de hoje em dia são tão finas que nem
precisam mais de copo. De vez em quando
eu escuto um nome e vou pesquisar no Face-
book. Se eu acho o perfil da pessoa, eu acabo
descobrindo a árvore genealógica
toda. Aí meu passatempo é imagi-
nar o que acontece em cada casa.
De tédio é que eu não morro nessa
quarentena, porque o que eu não
consigo descobrir ouvindo, pesqui-
sando na Internet, eu invento. Já
posso fazer uma novela só com a
vida dos meus vizinhos.

27
Existir hoje em dia é estar multiplicado em temposespaços praticados como
extensão da vida; é frequentar encruzilhadas convencidos da não fixidez,
pois fascinados com as possibilidades do devir.

– Aí veio a pandemia e a gente estava separado. Ele tinha ido visitar os pais na
Argentina e eu aqui pulando carnaval dentro de casa, pra não correr o risco de cair
em tentação. Resultado: veio a quarentena e eu tô praticamente virgem de novo.
O namoro continua pela Internet, a gente se fala toda hora. Mas eu já entrei numa
piração de estar esquecendo o cheiro dele, a textura do cabelo, a temperatura do
corpo, o gosto do beijo, sabe? Eu queria dormir junto, acordar junto. A tecnologia
permite isso, mas não é a mesma coisa, não supre a saudade do contato físico. Eu
quero a minha vida de volta, mas eu sei que aquele mundo não existe mais. Agora
resta aprender a viver nesse mundo novo, cheio de restrição, mas também com um
monte de possibilidade por causa da tecnologia. O meu namorado, nesse tempo
que a gente tá distante, me ensinou umas coisas na cama que eu nem sabia que
eu queria aprender, mas aprendi e gostei, online mesmo. Tem isso também, eu
sou pilhado demais e esse contato virtual, por incrível que pareça, tem me relaxado
mais, tem me deixado mais à vontade pra rever as prioridades, pra controlar os
meus impulsos. Vou dar um exemplo: meu namorado tá sempre de bem com a
vida, ele minimiza tudo, não se abala com nada. Aí, parece que eu sou o maluco
da relação, que eu problematizo tudo enquanto ele acha que tudo está na mais
perfeita ordem. Ao vivo, isso sempre
acabava em briga. No virtual, eu finjo
que caiu a conexão, fico off, penso,
me distraio vendo uns vídeos de coach
de relacionamento no Youtube. Já tô
pós-graduado em relacionamento pela
Internet. No dia seguinte eu mando
mensagem com emoji de coração,
como se nada tivesse acontecido. Até
o momento em que eu lembro que ele
viajou sabendo que existia uma pan-
demia a caminho. Aí eu fico puto de
novo e digo que qualquer dia desses
ele vai voltar pro Brasil transladado
num avião da FAB, direto pro cemité-
rio. Eu tô com medo da gente não se
encontrar mais, assim, ao vivo.

28
Se a história do presente nos revela outros modos de existir – e podemos
acompanhar essas novidades a partir das novas formas de comunicação,
das autorias textuais e imagéticas e sonoras espalhadas pela Internet – por
que não teríamos que investir em novos processos de formação? Por qual
razão manteríamos o magistério aprisionado a procedimentos e critérios
de um tempo que conversa tão pouco com o hoje?

– A verdade é que eu estou vivendo a base de remédio.


Não dá pra aguentar essa pressão toda na escola de
cara limpa. Se eu fosse menos responsável, eu bebia
todo dia, mas eu não tenho vocação pra isso. Então eu
me dopo. Eu faço as videochamadas completamente
dopada. E ninguém repara, sabe por quê? Porque eles
também não estão mais ali. O corpo até pode estar,
mas a cabeça tá na outra janela do computador, tá na
mensagem chegando no Whatsapp.

– Eu fui falar com a psicóloga da escola, mas ela pegou Covid. Nem a psicóloga
segurou a onda, tá internada, coitada. Eu mandei mensagem de áudio e quem
respondeu foi o marido dela. Aí eu caí na bobagem de perguntar se ela estava bem.
Ele disse que ela estava bem... Bem entubada, bem cansada, bem ofegante. Eu ri,
mas foi de nervoso. Essa interação por mensagem de áudio me deixa confusa. Eu
penso em voz alta, não é pra gravar, mas o meu dedo esbarra no microfone, grava e
ainda envia o que não era pra pessoa ouvir. Imagina o que pode acontecer comigo
nesse novo esquema de aula pela Internet, com tudo sendo gravado, com os pais
escutando o que eu digo. Tem noite que eu sonho que tô sendo presa porque falei
alguma merda na aula. E eu nem posso desmentir porque tá tudo gravado.

29
As docências em tempos de cibercultura necessitam considerar a insufi-
ciência das lógicas normativas, criadas por discursos que viam o mundo
como habitat dos estabelecidos e dos indesejáveis, dos conformados e dos
indignados, cabendo aos últimos desses pares antagônicos deixarem de
existir ou almejarem ser como os primeiros. O paradeiro dessa visão, em
tempos de liberação do polo emissor19, deveria ser o descrédito. Todavia,
ainda há quem insista no mérito do “ainda somos os mesmos e vivemos como
os nossos pais20” mesmo que a vida nos mostre que “nada do que foi será
de novo do jeito que já foi um dia21”.

A cibercultura é a cultura contemporânea que


revoluciona a comunicação, a produção e circulação
em rede de informações e conhecimentos na
interface cidade-ciberespaço. Logo, novos arranjos
espaçotemporais emergem e com eles novas práticas
educativas. Sendo a cibercultura o contexto atual, não
podemos pesquisar sem a efetiva imersão em suas
práticas. (SANTOS, 2019, p.20).

Temos sido avisados sobre essas mudanças há alguns anos, em nossas


casas, em nossas salas de aula, em nossas próprias itinerâncias nas redes
sociais. Os sinais de que alguma coisa mudou estão por toda parte e a
arte de formar pessoas precisa conversar com as mudanças miudinhas e,
também, com as grandes – que se fazem perceber mais imediatamente. A
gente sabe que as práticas no ciberespaço são mais independentes, mais
imediatas, mais próximas da multiplicidade de procedimentos, de fontes
e de interfaces. Assim, muitos elementos que antes eram constitutivos do
nosso ser social, que nos serviam de cartão de visitas para sermos inte-
grados ou afastados dos grupos com os quais interagíamos (ou queríamos
interagir), hoje não fazem muito sentido quando tomados enquanto modos
definitivos de pertencimentos, de filiações.

19
Voltaremos a essa questão mais adiante. Por enquanto, vamos pensando um pouco mais nessa
ideia de que na Internet todos falam para todos. Quando você publica algo no seu perfil da rede
social, quem lê? Quem interage com você? Quem se sente mobilizado com a sua postagem?
Que consequências ou movimentos o seu post produz?
20
Referência ao verso da canção ‘Como nossos pais’, de Belchior.
21
Referência ao verso da canção ‘Como uma onda’, de Lulu Santos e Nelson Motta.
30
– A minha sexualidade é totalmente atravessada pela Internet. Eu
passei anos achando que só gostava de homens, mas bastou uma
garota dar match no Tinder pra eu prestar atenção em outras pos-
sibilidades. No começo da pandemia eu ainda namorava um cara,
mas a relação estava por um fio. O isolamento foi a deixa pra gente
colocar um ponto final naquela história. Daí teve esse match no
Tinder e a gente marcou de se encontrar na praia. Isso era final
de março, tava tudo vazio. Transamos ali mesmo, na areia, assim
que anoiteceu. O mais engraçado é que as minhas experiências de
sexo gay foram todas
caretas, mas o meu
primeiro sexo hétero
foi num local público,
em plena pandemia,
com uma desconhe-
cida que esbarrou
comigo num app.

Não há mais quem disfarce o tédio diante de uma aula exclusivamente


expositiva, que dura horas, que não estimula a coautoria. Nosso pensa-
mento é hipertextual, como aquilo que consumimos através dos dispo-
sitivos digitais. Nossa imaginação acontece bricolando imagens, sons,
memórias, ficções, negociando sentidos entre o vivido e o desejado. O
ciberespaço constitui espaçostempos praticados como expansão da vida. É
componente da rede educativa que nos entrelaça e nos realoca, dia após
dia, em determinadas posições fadadas ao movimento.

31
Como cultura contemporânea onipresente, o digi-
tal em rede ganha ainda mais potência formativa
no contexto da Pandemia de Covid-19, na
qual os sujeitos praticantes dessa/nessa cul-
tura foram impelidos a um distanciamento
social, com impacto mais duradouro em
escolas e universidades que, desde março
de 2020, em sua maioria, encontram-se no
ensino remoto, devendo permanecer assim
até dezembro, quiçá não adentrando em
2021. Nesse cenário, nunca vivido por pes-
soas que nasceram após a gripe espanhola
em 1918-1920, o digital em rede, com suas
interfaces de comunicação, informação e
conteúdo, foi a “salvação” para a perma-
nência ativa da sociedade nas diferentes
áreas de atuação, como economia, cultura, saúde,
educação, entretenimento e outras. Estar na rede
passou a ser rotina de pessoas de todas as idades.
(SANTOS; RIBEIRO; FERNANDES, 2021, p. 25)

Nesse momento em que vivemos o cansaço de meses e meses de uma pan-


demia sem precedentes, é de causar espanto o lamento de tantos docentes
que parecem ter acabado de descobrir a cultura digital em rede. Muitos de
nós enxergamos, boquiabertos, novas formas de existir e de perceber o
mundo através dos dispositivos que nos conectam à Internet. A peste que se
alastra sem dizer quando vai embora nos apresentou – já era hora! – o vere-
dicto da história recente: “o que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo/
E precisamos todos rejuvenescer22”. Cabe dizer, porém, que não há novidade
que se construa na ausência da história acumulada. Toda novidade é uma
espécie de releitura, de continuação que, às vezes, é ruptura aparente;
outras, invenção que faz frente às práticas que precisavam mesmo acabar,
sob a pena da obsolescência de certo modo de existir em sociedade. Há
que se ter humildade para reconhecer e organizar nossas quinquilharias
didáticas, abrindo caminhos para outros traços em nossas pedagogias.

22
Referência ao verso da canção ‘Velha roupa colorida’, de Belchior.

32
– A psicóloga dizia muito isso pra mim: que eu
estava presa no passado, agarrada num mundo
que não faz mais sentido. Eu cheguei a contar
pra ela que a escola voltaria, fazendo esse Ensino
Remoto, que eu sou contra. E ela disse que era pra
eu tomar cuidado pra perceber o que era só tei-
mosia e o que era resistência. Ela sabe que eu sou
cabeça dura, por isso deu esse toque – toque, não,
esse tapa na cara. Eu preciso mesmo me permitir
explorar mais a Internet, os recursos, aprender
outras formas de fazer o meu trabalho, do mesmo
modo que eu aprendo um tanto de receita nova
pelo Youtube.

Quando disseram que não podia mais sair de casa


por conta do lockdown, eu fui ao mercado e com-
prei tudo que podia, porque eu fico nervosa e fico
com fome. Eu preciso cozinhar, eu preciso fazer
as receitas. E não pode ser a mesma comida todo
dia, porque isso me dá gatilho. Eu preciso ficar
experimentando receita nova, mas uma hora o
repertório acaba e eu apelo pra Internet. A psi-
cóloga me disse pra não cozinhar só os pratos
que a minha mãe cozinhava, porque isso me fazia
repetir outros comportamentos dela que não são
bons pra mim.

Outro dia eu pensei em ligar pra ela [pra psi-


cóloga], pra saber se ela já tava em casa, se
tava melhor da Covid. Mas aí eu fiquei com
medo dela ter morrido e, sei lá, ouvir o tele-
fone tocando do outro lado e resolver aten-
der. Deus me livre falar com morto no meio
dessa pandemia, sozinha dentro de casa.

33
O que chamamos de ciberdocências são modos de praticar o magistério
que estejam atentos aos repertórios criados em nossas itinerâncias pelas
redes. Repertórios que, às vezes, causam estranhamentos às nossas igno-
râncias, que competem com os nossos já sabidos e nos deslocam para
contingências de desconfortos teóricos e metodológicos. As ciberdocências
reconhecem o perigo de uma história única e, por isso, diversificam as
fontes e conversam com as fontes consultadas pelos estudantes, tecendo
confianças para alertar a respeito das fake News.

– A coordenadora veio pra cima de mim, ligou dizendo um monte de


desaforo. Que ela tinha recebido no grupo do pilates – que tá cheio
de mãe de aluno – que eu era procurada pela polícia. Tudo porque
eu tenho o mesmo nome de uma 171 que deu vários golpes na Zona
Oeste. A mulher estava tão certa da minha culpa que eu cheguei a
duvidar de mim mesma. A sorte é que eu já sabia do babado por-
que uma prima minha viu no RJTV e me ligou contando. Eu mandei
a reportagem pra direção da escola, com a foto da mulher que era
bem diferente de mim e que já tinha sido presa, inclusive. Mas como
é que se desfaz a fama que eu ganhei agora entre os alunos? Eles
estão me chamando de Bibi Perigosa, é mole?

As ciberdocências sabem das impermanências da linguagem e criam


coragem para experimentar a
comunicação por memes, por
virais, por escritas acadêmicas
mais próximas aos estilos dos
jornais e/ou da literatura; o
ciberdocente procura pensar a
aula como ritual de abertura de
caminhos, desenhando atalhos
por ruas nem sempre certas,
mas cuja rota libera o estudante
para trilhar a própria estrada,
com as pedras e as belezas que
devem existir em qualquer tra-
jetória; a docência ciber-situada
aposta na autonomia que todos
deveríamos ter para produzir
nossas jornadas de aprendizagem, deixando claro paras as turmas que

34
nós – professores – escolhemos a paisagem, mas são eles que deverão
fotografar, ajustar a lente da câmera, colocar filtros, compartilhar, escrever
legendas e outras autorias – cabe até plantar árvores, alimentar passari-
nhos, soltar pipa, brincar de amarelinha na paisagem que o ciberdocente
projetou. Afinal, quem disse que a sala de aula não pode ser uma fase mais
avançada do The Sims ou que o conhecimento se encontra bloqueado para
as alterações do Photoshop ou dos filtros divertidos do Instagram? O profes-
sor da cibercultura, no afã de viver o presente em toda sua complexidade,
se aventura na criação de dinâmicas novas, bota a cara no sol, se expõe,
sem medo de parecer ridículo – porque pior seria parecer deslocado do
tempo em que vive – uma presença que não se faz notar.

O digital em rede, caracterizado pela rede mun-


dial de computadores, ao permitir que esteja-
mos simultaneamente em diferentes espaços
físicos compartilhando sentidos, potencializa e
democratiza o conhecimento por meio da ciber-
presencialidade atingindo um público maior em
formato síncrono e assíncrono [...] (SANTOS;
RIBEIRO; FERNANDES, 2021, p. 26).

Ciberdocentes brincam com o previsível, desnorteiam as bússolas, inventam


nas frestas do que parecia impossível. Ousam olhares originais e sabem
que não vão agradar a todos. Recebem likes e deslikes e aprendem coi-
sas novas com esses feedbacks. Compreendem a escassez dos recursos
e criam percursos didáticos conscientes das armadilhas impostas pelas
desigualdades sociais.

– A gente precisa aceitar que nem todo recurso didático


é adequado pra todo mundo. E isso tá bem claro agora
no Ensino Remoto. Não dá pra achar que qualquer pro-
fessor e qualquer aluno vão entrar nas plataformas de
estudo e vão tirar de letra. Por isso é importante que a
gente invente nosso próprio material, nossos próprios
recursos.

35
Eu, quando comecei esse semestre já fui logo dizendo
pras turmas: eu sou a proprietária dessa nova rede
social, porque as que existiam não me bastavam. Eles
riram, mas eu estava falando sério. Eu criei o meu AVA
praticamente do zero. Eu não gosto dessa mesmice,
dessas fórmulas didáticas que não consideram as espe-
cificidades locais. Daí, como eu tenho um certo conhe-
cimento de programação, eu fui investindo, pesquisei
e hoje tenho meu próprio AVA, que é um parque de
diversão pra mim.

– Eu acho que nós estamos criando uma expertise


com a pandemia que é esse saber acerca do online,
dos modos como a gente pode incrementar as aulas
presenciais com os recursos da Cibercultura. O nosso
repertório está crescendo
com a gravação e os usos
dos podcasts e dos vídeos
curtos do Tik Tok, por
exemplo.

Estamos falando de um docente que entende que


as docências na cibercultura dialogam mais com
as práticas do que com os equipamentos. Muitos
dos seus inventos não precisam ser comprados,
pois apostam na mudança do comportamento,
no aproveitamento das coisas e das histórias do
dia a dia, daquilo que viraliza nas redes e chega
às comunidades que nem Internet tem direito23.
O grande feito da ciberdocência é preencher o
vazio da vida com conversas que fazem sentido,
ou melhor, cujo sentido é feito por cada um que participa dessas conversas.
O sumo das conversas tecidas em salas de aula, na perspectiva de uma
docência ciber-situada, é a inconclusão negociada dos pensamentos que
miram o devir.

23
“A forma como é implantada a infraestrutura de conectividade gera desigualdades de oportu-
nidades no uso da rede. É perceptível que atualmente não basta conectar os cidadãos, sendo
necessário conectá-los em velocidades compatíveis com o desenvolvimento das aplicações,
sistemas e soluções na rede”. (VELOSO; BONILLA; PRETTO, 2016, p.48).

36
– Essa reaproximação que estamos fazendo com as aulas remotas
é fundamental. Porque a gente tem trocado ideias, tem partilhado
experiências com os dois pés na realidade. Eu não romantizo esse
momento com as minhas turmas. Tem colega adotando aquele dis-
curso que diz “é na crise que a gente cresce”, “isso tudo vai passar”.
O coronavírus é inofensivo se comparado ao vírus do coach.

Meu papo com eles é reto: eu mostro os números, as estatísticas e


as análises sociológicas desse horror que estamos vivendo. Deixo
bem claro quando foi o início dessa tragédia que não começou com
o vírus, mas com o golpe de 2016 e as eleições de 2018. Dá gosto de
ver quando a carapuça serve neles. Eles estão gostando de falar, de
mexer nas feridas, sabe?

Tem dia que eu levo um texto mais teórico, mais


analítico, e eles respondem com as suas histórias
de vida, eles humanizam esses debates. Tem uma
aluna que perdeu pai e mãe logo no começo da
pandemia. Ela tá sozinha no apartamento e não
admite que ninguém vá lá visitá-la. Ela tem certeza
que contaminou os pais e acha que ficar sozinha é
uma maneira de se punir. Nem o ex-namorado, que
mora no mesmo prédio, ela atende quando bate na
porta dela. O garoto vive insistindo, convidando ela
pra jantar no apartamento dele, fala até em reatar
o namoro. Mas ela está irredutível. A faculdade é
o único vínculo que ela mantém com a sociedade,
acredita? Se não fossem as aulas remotas eu acho
que ela não falaria com ninguém.

Ainda não estamos falando aqui das práticas de Educação Online24, que
abordaremos depois. Tampouco daquilo que está sendo inventado em
termos de Ensino Remoto Emergencial. A ciberdocência também não está
condicionada ao tipo de professor que atua na Educação a Distância. Ela
pode transitar por qualquer uma dessas instâncias formativas, mas não
se limita a elas – alimenta-se delas e cospe aquilo que comeu. Ao cuspir,
no entanto, o alimento já é outro.

24
Apresentamos uma primeira definição de Educação Online, a partir de Santos (2019, p. 69): “A
educação online é o conjunto de ações de ensino-aprendizagem, ou atos de currículo mediados
por interfaces digitais que potencializam práticas comunicacionais interativas, hipertextuais e em
mobilidade”.

37
[...] as necessidades formativas que foram emergindo em contexto de
pandemia, nos provocaram, nos ensinaram a buscar caminhos outros
no pensar/saber/fazer formação docente privilegiando a oportuni-
dade de uma relação com o conhecimento formativo referenciado nas
demandas e nos sentidos de um aprender plural, dialógico e, princi-
palmente, experiencial. (SANTOS; RIBEIRO; FERNANDES, 2021, p. 26).

O corpo do ciberdocente, em tempos de pandemia, precisa caber numa


tela – de celular, de computador, de tablet etc. Ele está na tela, mas não
como orador. Ele e a tela são partes do motor que prensa a mensagem,
permitindo tiragens de comunicação ao final de um processo sempre em
aberto. São performatividades que existem nos espaçostempos incertos do
consumo cibercultural.

– Eu detesto aparecer em vídeo. Nunca me achei fotogênico, desini-


bido, capaz de falar com naturalidade pra uma câmera. Gravar
videoaula é um sacrifício pra mim. Eu não sei como essas blogueiras
conseguem se filmar o tempo todo e ainda expor essa intimidade
nas redes.

E tem umas que vão fundo no negócio, a ponto de exibir o próprio suicídio numa
live. Uma aluna trouxe essa história numa aula e eu não acreditei. Daí ela compar-
tilhou o tal vídeo com a turma e comigo e eu me arrependi de ter duvidado dela.
Essa mesma aluna usou a aula pra contar pra turma que descobriu que estava
grávida de um amigo, com quem ela ficou no carnaval. E queria ajuda pra decidir
o que fazer: se contava pro amigo, se tentava abortar, se criava a criança sozinha. E
tudo isso no meio da pandemia, no meio da minha aula, pela tela do computador.
Foi impressionante a naturalidade dela com aquela situação, as pessoas foram se
engajando na história a ponto de fazerem uma lista de nomes pro bebê – Corona
se for menino, Covid se for menina – uma cena
inacreditável. Eu pensei em intervir, mas fiquei com
receio de ser acusado de machista, sei lá. Ela tam-
bém parecia precisar de ajuda, eu não queria ser
omisso. Aí no final do desabafo público, a maluca
disse que era uma pegadinha, que estava gravando
um vídeo pros seguidores dela. Eu simplesmente
desconectei a minha Internet e comecei a gritar
dentro de casa. E depois eu tive uma crise de riso.
Até hoje eu não sei se aquilo aconteceu, se foi um
delírio. O fato é que a aluna não apareceu mais
nas aulas. Eu, se pudesse, também não apareceria.

38
A condução atual dos ritos educativos, mediante a necessidade do distancia-
mento físico, tem revelado docentes ciber-situados, criando aulas inspiradas
nos princípios da cibercultura. É o caso, por exemplo, de uma professora
de Artes – Tatiana Goldring – que faz uso de uma linguagem aproximada
do aplicativo Tik Tok para produzir, em vídeos curtos, os conteúdos pro-
gramáticos da sua disciplina, ofertados via YouTube, para estudantes da
educação básica
curtos, os de uma
conteúdos escola municipal
programáticos em Cariacica,
da sua disciplina, ofertados município periférico
via YouTube, para
da grande
estudantesVitória, no Espírito
da educação básica deSanto.
uma escola municipal em Cariacica, município
periférico da grande Vitória, no Espírito Santo.

Figura 1 Print de tela de dois vídeos publicados no canal de YouTube


daFiguraprofessora
1 – Print de Tatiana Goldring.
tela de dois Disponível no
vídeos publicados em:
https://www.youtube.com/user/tatigol. Acesso: 13/10/20.
canal de YouTube da professora Tatiana Goldring.
Disponível em: https://www.youtube.com/user/
tatigol. Acesso: 13/10/20.
A ciber-professora entende que o filtro do aplicativo também faz parte da mensagem; ela
planeja as aulas como um roteiro de experiências, de modo que a audiência se engaje em
fazer, nas suas casas, aquilo que a professora faz no vídeo. O estudante é convidado a
A ciber-professora entende que o filtro do aplicativo também faz parte da
cocriar, a opinar sobre os temas, a realizar experimentos a partir dos novos
mensagem; ela planeja as aulas como um roteiro de experiências, de modo
conhecimentossignificações partilhados na rede. Numa dada ocasião, por exemplo, a
que a audiência se engaje em fazer, nas suas casas, aquilo que a professora
professora praticateoriza a produção das cores através de itens pigmentados que ela tem
faz no vídeo. O estudante é convidado a cocriar, a opinar sobre os temas, a
em sua casa. Ela apresenta as técnicas, os materiais e, em seguida, propõe que os
realizar experimentos a partir dos novos conhecimentossignificações partilha-
dosestudantes
na rede.recriem
Numaa dada
experiência, adaptantando-a
ocasião, por exemplo,ao que aseprofessora
tem em mãos.praticateoriza
Ou seja, o
currículo praticado
a produção pela professora
das cores através demanda
de itensumpigmentados
estudante autor, que
fazedor de tem
ela itinerários
em sua
plurais.
casa. Tal convocação
Ela apresenta asàtécnicas,
ação converge
os com o praticado
materiais no ciberespaço,
e, em seguida, sendo
propõe gestoque
de os
estudantes recriem a experiência, adaptantando-a ao que se tem em mãos.
um currículo online e não de uma simples transposição da sala de aula presencial para um
Ou Ambiente
seja, o currículo praticado pela professora
Virtual de Ensinoaprendizagem. demanda
A aula da professora um
Tatiana estudante
é tecida no
autor, fazedor
fazimento, de itinerários
na imersão e no cruzo plurais.
24 Tal convocação
autoral. Online, à ação
forma e conteúdo converge
são elementos quecom
o praticado
se acoplam; ambos são mensagens, são expressividades autorais que participam dos de
no ciberespaço, sendo gesto de um currículo online e não
uma simples
gestos transposição
de aprenderensinar. da asala
O que de aula
professora presencial
realiza para um
em sua tentativa Ambiente
de assumir a
Virtual
linguagem praticada pelos estudantes como a língua falada em sua disciplina é um gesto no
de Ensinoaprendizagem. A aula da professora Tatiana é tecida

24
“O cruzo, o encruzamento ou o encruzar emerge como perspectiva teórico-metodológica assentada nos
complexos de saber das macumbas brasileiras. Fiel aos princípios exusíacos, o encruzar dá o tom dos
39
caracteres diversos, ambivalentes e inacabados dos conhecimentos existentes/ praticados no mundo”.
(SIMAS; RUFINO, 2018, pp.25-26).
fazimento, na imersão e no cruzo25 autoral. Online, forma e conteúdo são
elementos que se acoplam; ambos são mensagens, são expressividades
autorais que participam dos gestos de aprenderensinar.

– Uma opção que eu fiz foi gravar todos


os encontros. Não só pra registrar o que
foi dito, mas também pra acessar, num
outro momento, as emoções. Isso me
permite analisar os movimentos peda-
gógicos, os movimentos curriculares, os
modos de fazer de cada um, os exemplos
que a gente cita, as histórias que a gente
narra. É também uma forma de fazer uma
autoavaliação. Eu quero poder me ver de
fora, analisar a minha performance.

Pra dar aula síncrona, por vídeo, eu ponho a minha


melhor roupa, abro o meu melhor vinho, faço escova,
até perfume eu passo. Nessa cidade só tem óbito e eu
não tô saindo pra nada. Já que eu tenho que aparecer
nas aulas, quero estar bonita. Eu vou esperar o fim do
mundo com dignidade e, enquanto ele não vem, eu
posto o look do dia nas redes sociais.

Performar um ciberdocente, como dissemos, está para além do trabalho em


plataformas online. É uma aposta ética, estética e política. Nesse sentido,
muito antes da pandemia, em turmas do curso presencial de Pedagogia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a professora Maria Jacintha Var-
gas Netto, desenhou uma disciplina traçada no imprevisível gesto da cura-
doria discente26. Caberia aos estudantes – alunos do primeiro período do
curso – escolher vídeos compartilhados no YouTube que pudessem servir
de pretexto para as conversas que seriam tecidas nas aulas. A plataforma
de compartilhamento de vídeos foi escolhida como lócus de ensinosapren-

25
“O cruzo, o encruzamento ou o encruzar emerge como perspectiva teórico-metodológica assen-
tada nos complexos de saber das macumbas brasileiras. Fiel aos princípios exusíacos, o encruzar
dá o tom dos caracteres diversos, ambivalentes e inacabados dos conhecimentos existentes/
praticados no mundo”. (SIMAS; RUFINO, 2018, pp.25-26).
26
A experiência da professora foi tema de sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação
em Educação, na UERJ. A tese foi publicada em livro – NETTO, Maria Jacintha Vargas. Gestos tec-
nológicos: o que pensa o YouTube em um curso de formação de professores de uma universidade
pública na cidade do Rio de Janeiro? Rio de Janeiro: NEFI, 2016 (Coleção: Teses e Dissertações).

40
dizagens, como fonte de conhecimentossignificações capazes de agenciar
atos de currículo numa turma de formação de professores.

Este trabalho vem procurando provocar algumas ações tão simples


como escolher vídeos disponíveis na rede, exibi-los coletivamente,
falar sobre eles, para poder, então, curtir, compartilhar, copiar, reco-
nhecendo, nessas ações, também a possibilidade de narrar, pensar,
imaginar, emocionar, escrever que só pode ganhar corpo a partir da
variada e dispersa “ação de cada um nós” (NETTO, 2016, p. 20).

As práticas educativas, as práticas na cultura digital em rede e as


práticas narrativas são aqui articuladas a partir da ideia de gestos tec-
nológicos. Deste modo, a partir do questionamento dos nossos gestos
tecnológicos como os de curtir, embedar, copiar, exibir, compartilhar,
incorporar, espectar, conversar, contar, entre outros, a pesquisa busca
levantar questões como: que sentidos são produzidos na contempo-
raneidade a partir destes gestos tecnológicos que partilham narrativas?
De que maneiras estes gestos tecnológicos vêm reconfigurando as
questões de autoria, as de produção dos discursos e as de produção
e partilha do pensamento em nosso tempo? Quais são as articulações
tecidas entre gestos tecnológicos, os gestos de narrar e gestos educa-
tivos? Como pensamos a partir de nossas práticas com o digital em
rede? Como este pensar produz uma abertura estética para outras
sensibilidades e outros discursos? Como essa abertura estética pode
também significar uma abertura epistemológica ao reconhecer que
o pensamento circula através de diferentes linguagens, de variados
artefatos e a partir de múltiplos seres pensantes? Como essas aber-
turas estética e epistemológica podem produzir no ato educativo,
também, uma abertura política ampliando o campo dos possíveis da
percepção, do sentir, do pensamento e da ação? (NETTO, 2016, p. 21).

Nesse gesto de abertura para a coautoria a ciberdocente criou oportuni-


dades para a bricolagem, para a ressignificação de práticas comumente
associadas ao entretenimento, mas que ao serem usadas intencionalmente
em contextos de formação acadêmica/escolar, podem constituir artefatos
curriculares.
Há muitos fundamentos da ciberdocência presentes na prática da profes-
sora Maja – como é conhecida na Universidade. Entre eles, podemos citar: a
valorização do repertório discente – o conjunto daquilo que os estudantes
consomem nas redes; o reconhecimento da rede online de compartilha-
mento de vídeos como fonte de informação passível de ser consultada

41
e considerada; a diversificação da linguagem na formação acadêmica; a
autonomia do estudante que se torna um curador do material usado para
disparar o pensamento etc.

Nas práticas propostas a partir das narrativas do YouTube no espaço


e tempo desta pesquisa, vêm se articular outras tantas narrativas dos
alunos e da professora e pesquisadora. São essas histórias contadas,
assistidas, partilhadas que vão estabelecendo um campo de sentidos
que nos permitem, a nós, praticantes da experiência vivida, seguir
narrando o mundo e narrando a nós mesmos no mundo, em um
processo que pode ser considerado como formativo, mesmo que
a despeito de programas, conteúdos programáticos ou avaliações
institucionais. (NETTO, 2016, p. 38).

– Durante muito tempo eu tive medo das coisas saírem do controle


dentro da minha sala. Então, eu fazia um planejamento que era uma
camisa de força. Escrevia no quadro, depois lia, passava atividade pra
eles fazerem com tempo determinado. Seria perfeito, se não fosse
chato. Eu mesma não aguentava mais aquela repetição, aquela falta
de novidade. Agora, nas aulas remotas, eu deixo correr mais solto, eu
libero a aula pra que eles também falem, também construam aquela
experiência junto comigo. Se vai dar certo sempre, eu não sei. Já teve
briga, ameaça de morte, xingamento de mãe.

– Eu acho que todos nós estamos mais sensíveis por conta da pande-
mia. Outro dia uma aluna mostrou o cachorro na aula remota. Não
demorou pra aparecer periquito, gato. Eu não consegui mais dar aula
porque todo mundo queria mostrar os bichinhos da casa.

42
– Eu nem me abalo mais. Eu desencanei dessa coisa de manter a paz a
qualquer custo. Hoje eu abro o microfone e já falo: quer matar, mata,
quer morrer, morra, mas me deixa viva pra contar essa história. Eu
acho que é isso que a gente tá fazendo, né? A gente tá escrevendo
uma história que lá na frente vai ser lida, vai ser estudada. E a his-
tória não pode ter o registro de uma voz só. Porque isso é o que
sempre foi feito pela grande imprensa que, sabemos, tem partido
e tem ideologia.

A imprensa mostrou outro dia a visita que o presidente fez a um


município do Espírito Santo. Pela televisão, parece que ele foi muito
bem recebido. Mas esqueceram de mostrar que uma mestranda da
universidade pública fez uma campanha online pra arrecadar dinheiro
e confeccionar outdoors de protesto. Ela conseguiu o dobro do que
precisava, mas nenhuma empresa capixaba aceitou produzir os out-
doors. Ela conseguiu com uma empresa de fora que não só confec-
cionou os outdoors, como doou um pra cada município. Esse não é
um fato jornalístico? Onde é que essa história de resistência vai ser
registrada? A gente não é só gado, não é só rebanho.

– Esses conflitos do dia a dia também precisam aparecer na voz de


quem está vivendo isso tudo. E não somos só nós que fazemos parte
disso, não. Tem as famílias também. Tem pai e mãe que nunca mexe-
ram em computador, que não estão na Internet e que agora vivem
essa inclusão digital forçada.

– A mãe de uma aluna apareceu na câmera uma vez, abriu o micro-


fone e soltou o verbo. Ela pediu desculpas e disse que precisava
desabafar, que não estava mais aguentando ficar longe do marido que
trabalha embarcado, que assim que ele voltasse pra casa iria matá-lo
antes que ele matasse todo mundo, porque parece que o cara é nega-
cionista – ela apelidou o marido de Covid! Aí disse que não conseguia
ajudar a filha nas lições e que a culpa daquilo tudo era da OMS, que
ela nem tinha votado na OMS pra se sujeitar às ordens deles. Todo
mundo riu, mas eu fiquei com pena dela. A mulher chorava, dizia que
estava infartando e a filha ria, falando que não ia chamar a ambulância
com medo de se infectar com o povo do hospital. Parecia um Casos
de Família e eu ali, de Cristina Rocha.

43
– A família tá sendo incluída nas aulas remotas porque não é toda casa
que é grande, que tem cômodos com portas pro aluno entrar e se
isolar do resto da família. A minha mãe, por exemplo, estava ouvindo
a nossa conversa no grupo de pesquisa sobre um filme que a gente
viu – Mercado de Notícias, do Jorge Furtado – e quis participar. Ela se
interessou pelo filme ouvindo a gente discutir. Então, eu assisti de
novo o filme, mas dessa vez com a minha mãe. E ela ficou impressio-
nada com coisas que passariam despercebidas caso ela não tivesse
escutado o debate no grupo. Ela disse, por exemplo, que não tinha se
tocado sobre o fato de haver mais jornalistas homens que mulheres.

São muitos os bons exemplos de práticas docentes ciber-situadas, antes e


durante o Ensino Remoto Emergencial inventado na pandemia. Mas também
são múltiplos os casos de professores exercendo o ensino remoto à revelia,
percebendo a mais-valia27 que se intensifica no aumento disfarçado28 da
jornada de trabalho docente. São professores que alertam para a preca-
riedade de uma “solução” apressada, de uma volta às aulas insuficiente-
mente negociada e/ou debatida com os atores diretamente envolvidos
no processo.

27
A mais-valia, para Marx (1973), é a diferença entre o tempo de trabalho necessário para o
empregado exercer o seu ofício e garantir o seu salário e o tempo excedente desse trabalho,
no qual a produção não se converte em ganhos para o trabalhador, mas para quem o emprega.
28
Disfarçado para quem está do lado de fora dos cotidianos desse tipo de trabalho – ou para quem
vê e finge que não enxerga. Para quem está dentro, exercendo múltiplas jornadas – entre elas
a tentativa de não ficar doente – a ampliação da jornada laboral é uma realidade que se mostra
como um tapa no meio da nossa cara. De acordo com pesquisa realizada pela Associação dos
Docentes da UERJ (Asduerj), entre 26 de novembro e 14 de dezembro de 2020, a sobrecarga
de trabalho docente na Uerj durante a quarentena chegou a uma média diária de 9 a 12 horas
(para 44, 7% dos professores participantes da pesquisa), subindo para mais de 12 horas para
14% dos/das respondentes. Disponível em: http://asduerj.org/v7/na-pandemia-docentes-da-uerj-
trabalham-mais-do-que-carga-horaria-contratual-determina-aponta-pesquisa/. Acesso: 28/02/21.

44
– É preciso deixar uma coisa bem clara quando se fala de ensino
híbrido nesse momento da pandemia. A gente não pode confundir a
ideia de uma educação híbrida, no sentido da conjugação de técnicas,
de modos de fazer no presencial e na Cibercultura como exercícios
de bricolagem, com a imposição absurda de um sobretrabalho. Por-
que é isso que eles estão chamando do ensino híbrido: o professor
trabalhar duas vezes, realizando as aulas presenciais nas escolas que
voltaram ao presencial e realizando as aulas online pros estudantes
que ainda estão em casa.

As consequências das desigualdades abissais – econômicas e de inclusão e


letramento ciberculturais29, sobretudo – têm aparecido nas telas do nosso
AVE30. As autorias ali inscritas, produzidas por estudantes em processo de
descoberta da plataforma, dão forma a um pensamento que mescla curio-
sidade, medo, ignorâncias, sabenças, consciência de classe, indignação.
São falas que apontam para uma concepção de mundo e de educação em

29
Entendemos que os letramentos ciberculturais são processos de aprendizagensensinos, teci-
dos em rede, em contextos de cibercultura. Trata-se de apropriações e invenções autorais (e em
coautoria) realizadas no ciberespaço, sempre abertas à novas interações, pois continuamente
inacabadas. Os letramentos ciberculturais não se resumem aos saberesfazeres de operação dos
dispositivos e das interfaces digitais, mas dialogam com a feitura de autorias múltiplas, atentas
aos processos de produção, consumo e apuração das narrativas (escritas, sonoras, imagéticas)
que circulam nas redes. Os praticantes ciberculturalmente letrados se reconhecem como prota-
gonistas e contestam suas próprias práticas, anunciando novos sentidos para elas (SANTOS;
RIBEIRO; FERNANDES, 202).
30
Nossos apontamentos, como dissemos anteriormente, estão localizados nos espaçostempos do
Ensino Remoto Emergencial praticado, a partir de setembro de 2020, na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Os autores atuam na disciplina Tecnologias e Educação, ofertada para
o 1º período do curso de Pedagogia. A comunicação (assíncrona) acontece via Moodle, criado
pelos autores, uma vez que a Universidade não dispõe de servidores capazes de atender a todas
as disciplinas e professores (justificativa dada pela coordenação do curso no primeiro semestre
letivo de 2020 – realizado no segundo semestre do mesmo ano).

45
trânsito (em transe?) e que nos deixa, muitas vezes, sem entender qual é o
nosso papel nisso tudo, o que podemos e não podemos querer em termos
de respostas para as demandas programáticas e burocráticas da disciplina
ministrada. De um lado, as exigências institucionais; do outro, as ausências
em suas formas múltiplas.

– Nós já tínhamos essa ausência, só que ela era de corpo presente.


A gente via o aluno na sala, mas nem sempre ele estava ali. O que
tá mudando agora é a nossa percepção sobre os estudantes porque
eles desligam a câmera, o microfone e deixam essa ausência mais
explícita. Eu li no jornal que hoje existem 10 milhões de crianças no
Brasil sem condições mínimas de ter uma vivência escolar. São crian-
ças que vivem sem esgoto, sem água desde antes da pandemia. Na
pandemia a gente tá vendo que as crianças não têm acesso à Internet,
não têm aparelho pra acessar a Internet. Mas antes da pandemia,
tinha professor dando aula em escola com apenas um banheiro, sem
água e com o vaso entupido. O que a gente vai fazer com tudo isso?
Com essas descobertas que a pandemia tem nos permitido enxer-
gar? Eu quero ver que respostas os políticos vão dar nas próximas
campanhas eleitorais.

46
O que fazer com a estudante que, sem com-
putador, celular ou tablet ganhou um chip de
dados para conectar o dispositivo que não
tem à Internet que não existe na comuni-
dade onde mora31? E a estudante-senhora
que precisa dividir o único celular da casa
com os filhos em idade escolar? E a profes-
sora, já idosa, que usava o computador ape-
nas para se comunicar através de e-mails e
que agora, sem formação adequada, se vê
em meio às demandas de controle de frequência, de notas a serem lan-
çadas, de aulas que serão ministradas mediadas por tecnologias que, até
pouco tempo, não eram praticadas por ela como elementos passíveis de
serem usados como recursos didáticos?
Nossa experiência de aprofundamento nos recursos digitais tem nos mos-
trado a pluralidade de espaçostempos em que a nossa formação se dá.
Aprendemosensinamos em rede, rizomaticamente, de acordo não só com
as intenções curriculares (em contextos de formação escolar/acadêmica),
mas também a partir das nossas necessidades de (re)existência, de rea-
locação no mundo.

31
A UERJ elaborou um programa de distribuição de chips de dados e de tablets para alunos
que não dispunham de conexão e meios de acesso à Internet. Os chips foram distribuídos no
início do Período Acadêmico Emergencial, mas até agora – transcorrido mais de um mês de aula
(escrevemos essa parte do texto no dia 16 de outubro de 2020) – os tablets seguem em processo
de licitação, sem previsão de entrega. O que fazer com os estudantes cuja presença nas salas
de aula remotas não pode ser efetivada? É justo reprovar por falta um aluno que sobrevive na
falta de quase tudo que importa para esse tipo de formação acadêmica? Tais problematizações
não visam criticar os esforços da equipe de gestão da universidade, mas questionar algumas das
escolhas feitas, sobretudo as que se deram em harmonia com as ofertas da iniciativa privada. É
público o acordo do Estado com a Microsoft, bem como é pública a adesão dos gestores da UERJ
aos ambientes online criados pela referida empresa que, entre outros dados – já muito divulgados
criminosamente no Brasil – passa a ter informações sobre os nossos comportamentos em contextos
de formação universitária. Conhece nossos métodos de trabalho, acessa nossas bibliografias,
acompanha as fragilidades no desempenho dos estudantes, descobre os pontos fracos e fortes
das atuações docentes, enfim, cria um conhecimento robusto acerca do que temos vivido nessa
fase de transição/adaptação aos AVE, reunindo elementos capazes de, muito em breve, ofertar a
preços inimagináveis soluções didáticas para aqueles que seriam os problemas da universidade
– a falta de infraestrutura tecnológica, a carência de formação cibercultural dos docentes e dos
discentes e sabe-se lá mais o quê. A universidade não seria capaz de criar outras soluções tec-
nológicas a partir do seu coletivo docente? Não valeria mais a pena investir em ambientes virtuais
elaborados na universidade pública, por servidores públicos que já possuem expertises na área?

47
As demandas formativas emergentes no contexto da pandemia
possibilitaram a muitos dos docentes universitários problematizar
suas opções epistemológicas e metodológicas expressas nas didáti-
cas presenciais. Ao se perceberem convocados a uma transposição
didática para o online, se viram em condição de tensão e de incer-
teza, pois o ainda distanciamento na formação de professores de
perspectivas teórico-metodológicas relacionadas ao novo contexto
das tecnologias digitais, como se a cultura do digital em rede fizesse
parte do cotidiano, mas estivesse desarticulada da formação, acabou
gerando esse desconforto, ou seja, os multiletramentos, em especial
o letramento digital com intencionalidade formativa, não se apresen-
taram potentes na rede de conhecimento dos professores. Mobilizar
interfaces digitais com intencionalidade formativa passou a ser um
problema nesse contexto e muitas universidades precisaram parar
por meses seu ensino de graduação e pós-graduação para atender a
duas demandas, a de formação de professores e de conectividade dos
alunos, ou seja, em um mundo digital, a exclusão cibercultural ainda
é presente na realidade de muitos estudantes. (SANTOS; RIBEIRO;
FERNANDES, 2021, p. 27).

A pandemia nos colocou diante de inúmeras deman-


das de ressignificação das muitas coisas que já
sabíamos, mas não podemos romantizar esse alar-
gamento dos saberesfazeres, ignorando o tempo e
a força que precisamos empregar para dar conta
dessas novas demandas, sobretudo quando elas são
impostas no mundo do trabalho, sem a infraestru-
tura necessária. Seria o trabalho docente exercido
no Ensino Remoto Emergencial um desdobramento
de um processo, cada vez mais intenso, de uberiza-
ção do magistério? A flexibilização dos direitos do
trabalhador, divulgada pela cumplicidade da grande mídia como moder-
nização das relações trabalhistas, representa o retrocesso de conquistas
históricas, mas é difícil enxergar a derrota quando estamos sob a ótica do
grandioso avanço das tecnologias (se fetichizadas) que transformam a vida
numa série de demandas a serem atendidas por trabalhadores precariza-
dos, andando pra lá e pra cá em suas motos, carros e bicicletas, sempre
alertas ao sinal que anuncia o próximo bico32.

32
Gíria para trabalho temporário, informal e, geralmente, mal remunerado.

48
O risco representado pela vida que se cria em meio às tecnologias pode
ou não equivaler à liberdade que se pretende exercer através delas. Eis
o dilema das telas que abrem janelas na palma das nossas mãos. Poderá
a conexão em rede fortalecer os nossos vínculos com uma concepção de
trabalho baseada na expansão da vida? Ou será perdida, definitivamente,
a autonomia que deveríamos ter para organizar o nosso tempo, planejar
os nossos passos, criar as distâncias ou os laços com aqueles que circulam
por nossas vidas?

A ciberdocência não pode ser entendida como trabalho constante reali-


zado por um professor-sempre-alerta. Trata-se de uma prática que nos
liberta dos vícios da educação bancária33, da encenação de um papel que
diz pouco ou quase nada sobre as nossas querências. A ciberdocência é o
direito à impermanência, à dúvida, à ousadia da experimentação constante.
Se depois da pandemia, como dizem, “nada será como antes, amanhã34”
que sejamos, ao menos, melhores e mais livres.

33
Noção fundamental do pensamento de Paulo Freire. Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
34
Referência ao verso da canção ‘Nada será como antes’, de Milton Nascimento, Ronaldo Bastos e R. Vince.

49
EDUCAÇÃO ONLINE

– Eu entendo que parte da minha resistência ao ensino remoto se


deve ao fato da minha pouca vivência na Internet. Eu não sou comple-
tamente iletrado nas redes sociais e nos aplicativos, mas isso ocupa
uma dimensão mínima da minha vida. Eu não fico me expondo na
rede, como essas pessoas que filmam as suas intimidades, a vida
privada da família. Não teve a tal que filmou o próprio suicídio? Isso
é coisa de gente doida – doida não, deslumbrada. Porque as pes-
soas têm um fascínio com a fama, com a exposição. Se a morte está
na pauta, a pessoa vai lá e fala de
morte, para fazer parte, para gerar
engajamento. Se não tiver o que
falar, ela transmite a própria morte
na Internet? Eu tenho medo disso,
um certo constrangimento. E agora
– olha o tombo – onde é que eu
estou? Na Internet todo dia, dando
aula online de manhã e de tarde,
mostrando a minha casa, mos-
trando a rotina do meu filho e da
minha esposa – que acaba vazando
no vídeo – e falando com a minha
família e com os meus amigos, nos
grupos de WhatsApp, de noite. Eu
entrei no Big Brother e nem con-
corro ao prêmio de 1 milhão e meio.

Entre as desobrigações do isolamento físico35 – que liberam alguns corpos


em detrimento de outros – a nossa ida às escolas e às universidades tem

35
Ao usar o termo isolamento físico, ao invés de isolamento social, Henrique (2020, p. 6) entende,
a partir do que preconiza a Organização Mundial de Saúde (OMS) que parte da sociedade se
mantém conectada virtualmente, dando continuidade às relações familiares, trabalhistas, edu-
cacionais etc., mesmo que não presentes fisicamente, promovendo “um grande espalhamento
social, aqui na acepção de difusão social, irradiação social e alastramento social”. Por isso, não
usaremos a expressão “isolamento social”, por entendermos que os vínculos, as frequentações,
as interações seguem acontecendo via tecnologias de encontro. As pesquisas que realizáva-
mos antes, já em torno das relações tecidas entre os sujeitos da educação e as tecnologias,
passaram a se concentrar em conversas síncronas e assíncronas, espalhadas por aplicativos
diversos, em especial o WhatsApp. Mas também foram se alargando pelas redes sociais dos

50
sido substituída (dizem que temporariamente) pela presença virtualizada
em dispositivos conectados à Internet – a despeito de muitos professores
e estudantes pertencerem ao grupo das sobras, dos que não têm Inter-
net rápida nem equipamento adequado, mas que vão dando o seu jeito
enquanto são deixados de lado por um Estado que se pretende mínimo,
gerido por gente que se acha o máximo.
No caos cognitivo, que toda mudança de hábito repentina produz, o obser-
vador apressado deduz que a educação praticada de forma remota, via tec-
nologias de encontro36, é a mesma coisa que Educação a Distância ou Educação
Online, ainda que os textos institucionais informem, sem grandes aprofun-
damentos teóricos, que o nome dessa prática é Ensino Remoto Emergencial.
Essa confusão, presente nas falas de gente com ou sem instrução acadê-
mica, aponta para a urgência de discutirmos aquilo que se faz intencional-
mente com essas tecnologias visando criar situações de ensinoaprendiza-
gem. Mais do que falar de modalidades educacionais urge refletirmos sobre
estéticas de formação, sobre uma ética da escolarização comprometida com
a pluralidade de formas de vida e com os hábitos praticados pelos sujeitos
ensinantesaprendentes. Torna-se urgente pensar políticas de currículos ins-
piradas nos cotidianos, rever os planos teóricopráticos que acreditam em
uma vida assentada na previsão, mas que, de repente, se vê no olho do
furacão cujos ventos são soprados por um vírus pequenino.

nossos interlocutores, através de uma cartografia digital dos relatos que produzem e que os fazem
existir publicamente. Seguindo a ideia de Artières (1998), para quem escrever é inscrever-se,
entendemos que a veiculação escrita, imagética e sonora de si nas redes sociais online, produz
uma existência pública – condição que durante muito tempo foi possível apenas aos homens das
classes dominantes (que tinham suas biografias e autobiografias publicadas e consumidas). A
proliferação de relatos, de autorretratos, de opiniões – marca da liberação do polo emissor em
contexto de Cibercultura – indica movimentos de percepções variadas do tempo presente e, em
alguma medida, também do passado se consideramos as práticas de TBT, por exemplo. A hashtag
#tbt começou a ser usada em 2012, no Twitter e, hoje, é mais utilizada no Instagram. A sigla é
uma abreviação do termo Throwback Thursday. A palavra throwback significa regresso, retorno ou
retrocesso, enquanto thursday quer dizer “quinta-feira”. Assim, nas quintas-feiras, é comum que
os usuários das redes sociais publiquem fotos, vídeos e/ou textos antigos, atualizando vivências
com os contornos discursivos do presente (filtros, comentários, edições etc.). A feitura das narra-
tivas costuradas por essas publicações online, seguindo os princípios dos praticantespensantes
alegóricos, considera a ideia de “memória emblemática”, proposta por Stern (2000). Trata-se de
pensar que o subjetivo e o coletivo se articulam em torno da transformação de si e da sociedade,
produzindo estéticas de existência que, potencialmente, rompem com as sujeições e deslocam o
eu/nós atual em relação ao eu/nós do passado. As narrativas alegorizadas que apresentamos aqui
cerzem relatos de subjetivações pautadas em tecnologias de hipercomposições de si, isto é, em
processos de enfrentamento da normatividade imposta, em gestos de ruptura com a biopolítica.
36
Chamamos de tecnologias de encontro as interfaces digitais utilizadas para promover interações
síncronas, seja por voz ou por vídeo. Na pandemia, as mais usadas têm sido Zoom, Google Meet,
Microsoft Teams, RNP, Jitsi meets, Streamyard, entre outras.

51
– Eu, que sempre fui
muito organizada pra
tudo, muito metódica,
me vi no meio dessa
bagunça, com a vida
do avesso. Pra piorar,
me separei no meio da
pandemia e precisei
mudar de casa. Desco-
bri que fui traída numa
live, acredita? Quando eu
não tenho o que fazer,
eu vejo live e numa des-
sas eu peguei a ex do
meu marido, na época,
falando do aniversário de namoro deles, no meio da live do Gust-
tavo Lima, nos comentários do Youtube. Quando o safado chegou em
casa eu soltei os cachorros e ele disse que ia me contar, que queria
me pedir perdão. E eu só queria pedir pra ele ir à merda, mas sem
pressa, no tempo dele. Por mim, ele até ficava por lá. Mas quem
ficou na merda fui eu que precisei me mudar, sem a ajuda dele. Não
dava pra continuar ali, mas ir pra onde? Pra casa da minha mãe eu
não podia, porque ela é grupo de risco. Eu cheguei a ligar pra uma
amiga que dividia apartamento comigo antes do meu casamento, mas
ela disse que por conta do chifre eu devia estar
vivendo na Coronolândia. Não critiquei porque
podia ser verdade mesmo. Ela já tinha perdido
muita gente pra esse vírus. Em menos de um
mês morreram o pai, a madrasta, o irmão e uma
prima. Se eu não sabia o que fazer da minha
vida, imagina ela! Mas, por fim, eu consegui me
mudar. E ainda dava aula remota, com a casa
nova entulhada de caixas da mudança. À noite,
eu queria fazer a Gretchen saindo da Fazenda
e gritando: “Eu quero a minha família, quero a
minha casa, quero os meus filhos”! E olha que
eu nem tenho filhos!

O planejamento de um curso, com todas as decisões que isso acarreta,


é sempre um processo de apostas que vão sendo atualizadas na medida
em que os encontros com as turmas acontecem. As escolhas dos textos,
dos teóricos, das atividades etc., vão se dando em práticas de negociação
– com o tempo, com os recursos disponíveis, com as pessoas envolvidas.

52
Participa desses trâmites também o ânimo do professor, isto é, seu estado
emocional, suas querências, seu cansaço, seus receios e um tanto de outras
emoções que, quase sempre, são desconsideradas por quem ocupa postos
de decisão na estrutura escolar/acadêmica. A pandemia nos tornou ainda
mais vulneráveis às pressões dessa estrutura, impondo demandas para
as quais não fomos – geralmente – preparados.
O que estão nos demandando agora é uma fluência em ambiências digitais
ainda pouco conhecidas e/ou exploradas por professores, com intencio-
nalidade didática. Decerto, muitos de nós habitamos e usamos as redes
sociais, os aplicativos, os portais, os mensageiros instantâneos, mas nem
sempre visamos criar com eles desenhos didáticos. Então, são razoáveis as
sensações de estranhamento, de estrangeiridade e, até mesmo, de recusa
a esses ‘novos’ espaçostempos de formação.

– Embora eu tenha contato com computador e com smartphone, os


conhecimentos que eu tinha eram diferentes dos necessários agora.
Porque agora eu preciso resolver problemas mais burocráticos, ela-
borar documentos, usar corretamente o pacote Office, fluir numa
plataforma online de ensino, enviar e-mails mais formais. Está sendo
bem trabalhosa essa adaptação aos desafios do ensino remoto.

– A pandemia me levou a ter um contato muito


maior com as tecnologias digitais. Já utilizava várias,
mas em doses muito menores. Quando veio a qua-
rentena, comecei a interagir muito mais. Aboli em
90% a TV da minha vida e passei a utilizar o YouTube
diariamente. Através dele fui descobrindo novos
artistas, músicas, versões de letras conhecidas,
receitas, programas e conteúdos muito interessan-
tes que agregaram conhecimentos, além de outros
tantos que trouxeram e continuam trazendo alívio
para a dura realidade em que vivemos. O Whatsapp,
tornou-se instrumento obrigatório de trabalho e
forma de contato maior com amigos e colegas que
antes víamos diariamente ou com frequência, dos
quais fomos obrigados a nos distanciar temporariamente. O Instagram
e o Facebook ainda ocupam pouco espaço no meu dia a dia. Neles,
prefiro acompanhar as postagens de pessoas amigas e vídeos interes-
santes que possam aparecer. Vejo também que nem tudo foi ou está
sendo ruim. Fui obrigado a aprender a utilizar outras ferramentas que
não conhecia na prática e que agora fazem parte do meu dia a dia:
Meet, Zoom, Google Classroom, entre outras. Enfim, algo de positivo
temos que tirar desse tempo difícil que estamos vivendo.

53
Para falarmos de outros modos de aprendizagemensino, precisamos refletir
acerca da nossa atuação na formação de professores e assumir os dissabo-
res que a percepção da obsolescência de parte das nossas práticasteorias
poderá nos trazer. É imperativo compreender o giro comunicativo oportu-
nizado pelo digital em rede, a começar pelas potências da Educação Online.
A Educação Online não é, necessariamente, uma prática da Educação a Dis-
tância, tampouco um desdobramento dela (SANTOS, 2020). Também não
corresponde automaticamente, como já apontamos, ao que se tem prati-
cado no Ensino Remoto nascido nesses tempos de pandemia da Covid-19.
A Educação Online envolve modos de ensinoaprendizagem – ou atos de cur-
rículo (MACEDO, 2011) – mediados por interfaces digitais (PIMENTEL, 2018).
Cria relações horizontais que incorporam uma série de práticas inspiradas
nas nossas vivências na Internet. Remete à opção por uma comunicação
todos-todos, onde os sentidos estão em permanente negociação e disputa.
Refuta exclusividades de interface, transitando por sistemas computacio-
nais diversos (PIMENTEL, 2018). Alimenta-se do pluriverso das práticas
comunicativas, vadiando entre os saberesfazeres das escolas, da Academia,
do trabalho, da rua, da família etc. Concilia fontes, técnicas e tecnologias.
Mira a dialogia e a interatividade; a conectividade e a autoria (PIMENTEL,
2018). Abdica de tudo que obstrua o encontro37. É um potente contraponto
à educação bancária.
Inserida na vida ordiná-
ria, a Educação Online é
um fenômeno da Ciber-
cultura (SANTOS, 2020) e,
como tal, transborda os
limites de uma concep-
ção curricular interditada
ao movimento. Educação
Online é invento praticado
em rede, nos cotidianos da
formação conjunta, coau-
tora, fazedora de formas
múltiplas porque nessa
estética de aprenderensinar,
“forma é conteúdo” (SAN-

37
Para Deleuze e Parnet (1998, p. 4; p.36), “Um encontro é talvez a mesma coisa que um devir [...]
onde cada um empurra o outro, o leva em sua linha de fuga, em uma desterritorialização conjugada.”

54
TOS, 2020). Não existe recurso didático mudo que não diga – ele próprio
– alguma coisa sobre as percepções de mundo de quem o utiliza.

– Eu já fui uma professora mais linha dura, controladora, que queria


conduzir as turmas na rédea curta. Imagina, que iludida que eu era!
Essa vontade de controlar tudo devia ser reflexo do controle que
eu mesma sofria. Primeiro, da minha família que dizia que mulher
não devia estudar demais porque senão corria o risco de ficar doida.
Depois, do meu ex-marido, que é médico, e que me convencia a estar
sempre dopada, porque eu era muito nervosa
de acordo com o diagnóstico dele. Então, eu
chegava na sala mais dormindo do que acor-
dada. A cabeça cheia de Rivotril, de Bromaze-
pam porque ele me dizia que só assim eu iria
me sentir melhor, mais disposta, mais feliz. Só
que eu escrevia no quadro e na metade eu já
estava cansada, quase caía ali mesmo na frente
da turma e dormia.

– Eu era exatamente a professora que eu criticava, mas eu não conseguia


sair daquele ciclo. Aí, quando veio a pandemia, ele saiu de casa porque
precisou passar mais tempo no hospital e eu fui parando de tomar os
remédios. E começaram as aulas remotas e eu fui gostando de dar aula
de cara limpa, sem aqueles aditivos. E meu humor foi mudando, eu fui
ficando mais alegre durante as lives. Eu pensava: eu gosto disso, eu gosto
de ser essa pessoa. Daí, ao longo do dia ele me ligava e perguntava se eu
tinha tomado os remédios, que era pra aliviar a angústia. Ele dizia que
ele era a única pessoa que gostava de mim, porque na minha família só
tinha gente doida, principalmente a minha mãe. Ele tinha medo de que
eu ficasse como ela. Até terapia ele marcava pra mim, com uma psicó-
loga que era amiga dele. A minha ficha foi caindo aos poucos até que eu
tomei coragem e decidi que não queria mais nem os remédios e nem
ele. E saí de casa, fui morar com a minha avó que precisava de alguém
pra cuidar dela. Tadinha, ela que cuidou de mim, me ajudou a ficar
sóbria, como tem que ser. Minha avó foi a minha primeira professora,
sabia? Foi ela quem me ensinou a ler. Preparar as aulas online ao lado
dela, na mesa da cozinha da
casa dela – que foi onde ela
me alfabetizou – é o maior
barato porque a gente fica
trocando figurinhas, ela vai
me ensinando técnicas do
tempo dela, eu conto como
tem sido as aulas no AVA e

55
tudo fica mais leve. A aula que eu dou hoje é um pouco minha, um pouco
dela. É até um pouco da abstinência dos remédios que eu parei de tomar.
A gente é essa mistura de referências, né?

O trabalho que o ciberdocente realiza precisa ser compreendido como


extensão de um complexo de autorias tramadas em rede, inscritas no
giro hipertextual38. A arte final de um cibercurrículo é um sem-fim de janelas
que podem ou não serem abertas, mas que estarão ali para oportunizar
a contemplação e a exploração de paisagens outras. O docente ciber-si-
tuado assume que o seu curso veste uma roupa escolhida por ele, mas
defende e viabiliza as customizações que os estudantes farão. Ele sabe
que a cibereducação se dá apoiada em modos de pensar mais abertos e
flexíveis, com estudantes-autores que produzem conhecimentossignificações
enquanto navegam entre fruições e autorias. O discente da Educação Online
tem consciência de seu percurso de aprendizagem – individualcoletivo –
mapeado por desenhos didáticos alternativos cocriados com o professor
(PIMENTEL, 2018).

Seja na tela do computador, do


tablet ou do celular, a Educação
Online se afirma como uma estética
de aprenderensinar que se contrapõe
aos processos de industrialização
da educação presencial, remota
ou a distância. As itinerâncias
dos sujeitos envolvidos nos ciber-
ritos-educativos criam rastros de
performances 39 potencializados
por práticas comunicacionais

38
O que chamamos de giro hipertextual é a opção por uma comunicação aberta à fruição da
audiência, seja através de hiperlinks, de mídias integradas ao texto ou, até mesmo, na aula
presencial, de uma fala criadora de frestas por onde, em virtualidade, podem acontecer passeios
inferenciais (ECO, 2004). Umberto Eco defende que quando adentramos em um texto literário
(ou numa aula – complementamos) o fazemos com todas as nossas bagagens (e com as nossas
redes) e, dependendo de como estivermos naquele momento, podemos seguir a rota traçada
pelo autor ou trilhamos um caminho só nosso, instigados por uma memória desperta por um
fato narrado no livro que estamos lendo. Nesses casos, saímos do mapa desenhado pelo autor
do texto e fazemos passeios inferenciais, costurando sentidos prévios e adquiridos, fabulando
reviravoltas, antecipando desfechos ou simplesmente saindo daquele espaçotempo de fabulação
para nunca mais voltar. O giro hipertextual pode se movimentar por meio de passeios inferenciais.
39
Pensamos rastros de performances como o conjunto de nossas autorias no ciberespaço, sejam
as nossas interações textuais, os nossos gestos de aprovação, desaprovação e compartilhamento
de postagens, nossas imagens produzidas e legendadas, com ou sem filtro, nossos vídeos, nossos

56
hipertextuais e interativas (PIMENTEL, 2018). O estudante da Educação
Online não vai simplesmente à aula: ele performa. Cria autorias escritas,
sonoras e/ou imagéticas cuja métrica de avaliação caminha na direção
do sujeito que se autoriza, que se coloca em posição de enunciador, que
aprende a pesquisar e a compor roteiros próprios, negociando fontes com
o professor, construindo pontes com os colegas por meio de atividades
colaborativas baseadas numa ética wiki40.

– Estamos todos embolados nessa cama de gato. Ninguém sabe como


vai sair disso, se vai sobreviver ao fim do mundo ou se vai virar estatís-
tica. Tem gente que acha que a poeira vai baixar, que a gente vai sair
na rua de novo como se nada disso tivesse acontecido. Eu não quero
me revoltar, porque não dá pra levar essa raiva pra onde a gente tá
indo – se é que a gente tá indo pra algum lugar, né? Só que indo ou
ficando, a gente não está sozinho, a nossa vida é sempre coletiva.
Então, se eu dou uma aula chata isso não afeta só o meu aluno. Afeta
também o meu colega que dá aula pra esse mesmo aluno e que vai
sofrer as consequências do meu trabalho ruim. É uma engrenagem,
mesmo que a gente viva na ilusão da separação da experiência esco-
lar por disciplinas. Aliás, isso aí é o tipo de coisa que vai ser difícil
manter depois da pandemia. Se você acredita que vai pegar a sua
vida de volta, você está enga-
nado. Aquela vida dividida
em gavetas não existe mais.
Currículo é mistura, é nego-
ciação com o possível, com o
circunstancial. Tem que que-
brar essas barreiras, perder
o pudor de invadir o campo
do colega ou ficar receoso
de perder o que você acha
que é o seu campo. Tem
que dar um vale-night pra
sua disciplina e deixar ela
sair com quem ela quiser.

posicionamentos políticos, enfim, tudo aquilo que compõe o nosso diário íntimo tornado diário
éxtimo, como aponta Sibília (2008).
40
A ética wiki é baseada na colaboração, no conhecimento construído em conjunto e sábio do seu ina-
cabamento. É um movimento de escrita em rede que aceita a correção, a atualização e o desapare-
cimento da assinatura. Pratica algo que Derrida (1991) considera inevitável: faz desaparecer o autor,
concebendo o texto como intertextualidades reunidas cuja sina é assumir uma função-informante.

57
É fundamental que o professor da Educação Online se identifique com uma
concepção de educação enquanto “obra aberta, plástica, fluida, hipertextual
e interativa” (SANTOS; SILVA, 2009, p. 275), localizada em ambiências onde
os recursos infotécnicos se reorganizam ao sabor das relações tecidas entre
ensinantesaprendentes. As interfaces digitais, que são comumente tratadas
nos cursos tradicionais de EAD como espaçostempos de aprisionamentos
curriculares, são praticadas na Educação Online como temposlugares de
singularizações transindividuais.

– Quem podia imaginar uma situação


como essa? O celular que a pessoa
usava pra controlar a vida alheia é
o mesmo equipamento que ela usa
agora pra dar aula. E ela reclama que
não sabe fazer, que não consegue
acessar? Mas não foi ela que deixou o
telefone filmando no quarto e flagrou
a cunhada e o marido na cama? Con-
segue armar flagrante de adultério,
mas não consegue se entender com
o AVA? Não é sobre o celular ou sobre
o computador. É sobre o que você pode se tornar quando resolve usar
um deles, quando se esforça pra tirar deles o que eles podem te dar. E
o que um faz com o celular não é a mesma coisa que o outro consegue
fazer. E um não é menos capaz que o outro. São só pessoas diferen-
tes conseguindo resultados diferentes. E ambos podem ser ótimos.

O indivíduo ciber-situado participa de uma rede de conexões e é essa


rede que produz uma realidade transindividual. Trata-se de uma rela-
ção de prolongamento entre o sujeito e a tecnologia e não de oposição;
é um fora interior, mais vasto e mais rico que o indivíduo (ESCÓSSIA,
2010). Nessa perspectiva, o sujeito não é um dado, um ponto de par-
tida, mas o resultado de um processo no qual emergem indivíduo psí-
quico e meio. Do mesmo modo, a tecnologia não é só um objeto, mas
uma relação que assume formas diversas no exercício do fazer com.
No momento em que as práticas remotas de formação se tornaram esteio
da preservação da saúde, a concepção exclusivamente tecnicista da edu-
cação mediada pelas tecnologias em rede é um equívoco que precisa ser
evitado. As soluções em forma de pacotes, de currículos embrulhados em
softwares e distribuídos a partir das tecnologias de encontro enfraquecem
o ponto principal do que estamos chamando aqui de Educação Online. Ao
desconsiderar a intrínseca relação entre os praticantes e as tecnologias,

58
essas educações-mercadorias ofertadas por empresários “bem” intencio-
nados, ignoram o princípio da sala de aula baseada na coautoria e tentam
padronizar o que, de saída, é tempoespaço de produção da diferença.

– Eu não vou jogar pedra nos meus colegas que


usam essas plataformas privadas e acham que
estão fazendo um grande negócio. Na hora do
desespero, quando quem manda te exige uma
resposta rápida, esses pacotes de aulas pré-
-fabricadas parecem ter caído do céu. Tá todo
mundo em crise. Como é que o professor ficaria
lúcido no meio do fim do mundo? A minha sorte
é que eu sou atriz, então eu improviso, eu lido
bem com a câmera, eu tenho repertório pra ir
levando as turmas com conversa, com troca,
com alguma conscientização sobre o que está
acontecendo. É por isso que eu acho que o tra-
balho dos artistas na frente das câmeras, nesse contexto, é fundamental, tem que
ser considerado atividade essencial, sim. A gente tá mostrando que uma vida só
não basta. Essa vida real, preto no branco, sem cor, sem música, sem poesia... Essa
vida acaba. De uma hora pra outra ela pode ser interrompida. E através da arte a
gente pode esticar mais a vida, pode lidar com ela de uma forma mais generosa,
reconhecendo que não há necessidade de um modelo único, de um caminho certo
que faz todos os outros caminhos parecerem errados.

– Quando eu ligo a câmera pra começar a aula e


vejo aqueles quadrados com fotos ou apagados,
os microfones desligados ou até ligados permi-
tindo que eu escute o barulho das casas, o som
dos tiros, do carro do ovo, das brigas, enfim,
quando eu começo uma aula online eu enxergo
o quão diferentes nós somos. Porque a escola,
em alguma medida, uniformiza as pessoas, então
a gente tem a impressão de que está todo mundo
no mesmo barco. O Ensino Remoto mostra que
não. Mostra que tem barco, tem lancha, tem
canoa, tem gente sem embarcação tentando
nadar pra não morrer afogado.

– Faz tempo que eu entendi que ser professora é partir desse princípio: há
muitos modos de se criar uma vida. E há muitas limitações também. Mas
todo mundo precisa ser livre pra ser homo, bi, pan, enfim, do jeito que
quiser ser. Sala de aula não é pra fabricar crente, bitolado, não é pra seguir
cartilha. É pra explodir, pra bagunçar, pra inventar vidas novas. – Ah, mas

59
você não pode explodir toda vez que entra numa sala de aula! Eu posso,
sim, eu quero. Eu não posso é ficar parada enquanto a Terra – que não é
plana – continua girando.

A crença numa educação em escala industrial, de métodos padronizados,


de dados avaliativos que podem ser cruzados com o objetivo de mensurar
fracassos, sucessos e desistências são reminiscências de um modo de edu-
car ultrapassado, deslocado do presente, assentado nas hierarquias que
dividem quem aprende e quem ensina, mas também quem pode aprender
e quem pode ensinar numa sociedade acostumada a ser injusta e desigual.
Se prestarmos atenção na apropriação gradual que muitos professores
quarentenados têm feito das tecnologias digitais, transformando-as em
recursos didáticos criativos e autorais, descobriremos que as tais soluções
vendidas ao Estado pela iniciativa privada não passam de comida requen-
tada servida no almoço de domingo. Os cotidianos das escolas – sejam
eles físicos ou virtuais – são territórios praticados no bailado do improviso,
resultados de uma longa jornada de estudos e vivências no dentrofora das
instituições.

– Uma aluna contou que foi abusada pelo pai, desde muito criança,
quando a mãe morreu no parto. Fez o relato no meio da aula online,
firme, sem derramar uma lágrima. O assunto surgiu porque eu falei
do aumento dos índices de violência doméstica na pandemia. A irmã
dessa aluna foi vítima do marido, saiu de casa e foi morar com ela. A
questão é que elas não se davam bem há anos. Porque a mais velha –
essa que era casada – saiu da casa do pai pra estudar em outra cidade
e foi a partir da mudança dela que os abusos começaram. A pandemia
uniu as duas e as obrigou a supera-
rem as mágoas. Eu chorei ouvindo
o relato. As outras alunas choraram.
Teve gente que achou que naquele
dia não teve aula, mas eu acho que
foi a aula mais importante do ano.
Aula de empatia, de sororidade.
Nenhuma dessas empresas que ven-
dem “soluções” pras escolas inven-
tou um produto que seja capaz de
fabricar isso.

O magistério é ofício de inventar existências novas, a despeito da desva-


lorização das escolas e dos professores. E isso acontece porque a arte do

60
encontro pode se impor às mazelas quando, por exemplo, na sala de aula,
por meio de conversas41, são tecidas solidariedades e identificações capa-
zes de problematizar as relações de poder, cambiar as posições, alargar o
que se apresenta muito estreito. Nas pesquisas com os cotidianos aposta-
mos nos encontros como lócus da perturbação42, pois a docência, quando
considerada em sua imprevisibilidade – já que constituída por corpos em
movimento – oportuniza momentos de breakdown, de ruptura, desarruma
o que pensamos saber sobre as coisas, sobre o mundo, sobre nós mesmos.
Nessa desarrumação podemos enxergar a diferença enquanto afirmação
da vida, da pluriversidade.

– Eu tenho um aluno que acredita que a Terra é plana. É uma crença


que fere os fundamentos das coisas que fazem sentido pra mim. Só
que eu entendo que essa ferida não foi ele quem abriu, foi um coletivo
de homens e mulheres, com os seus marcadores de classe, de etnia,
de religião, de sexualidade, de escolaridade. Esse coletivo não surgiu
espontaneamente, foi fruto de um processo derivado da história. A
mesma história que validou os fundamentos das coisas que pra mim
fazem sentido. Eu não estou relativizando, tá? Eu estou tentando
situar diferentes visões de mundo no plano da coexistência, mesmo
que uma visão refute a outra ao seguir princípios científicos. Eu não
digo ao meu aluno que ele está errado. Eu mostro os processos que
geraram o meu entendimento, deixando claro que o meu ponto de
partida é a ciência. E o de chegada, também. Se ele deseja fazer uma
opção pela fantasia, pelo delírio, pela histeria coletiva, tudo bem.
Mas terá que entender muito bem aquilo que ele refuta porque na
escola o fundamento é outro. Se ele deseja viver na pós-verdade, ok,
é um direito dele. Até eu já questionei nesses meses de pandemia as

41
Conversar é, antes de qualquer coisa, dar-se ao encontro com outros, é permitir afetar-se pelo
que diz o outro, é produzir efeitos através de atos de enunciação responsiva. Conversa não é
monólogo, não é entrevista, não é escuta subordinada aos procedimentos de registro. Há pas-
sagens de conversas que esquecemos e só lembramos tempos depois. Há silêncios e gestos
que demoramos a compreender – uma compreensão sempre circunstancial, precária, da ordem
das apropriações. Conversar tem a ver com aproximar abismos, criar caminhos comuns ou, ao
contrário, provocar fissuras, desestabilizar territórios, bagunçar paisagens. Uma conversa não
começa e nem termina, é a continuidade da vida, é fluxo discursivo feito de emendas. (NOLAS-
CO-SILVA, 2019).
42
“O mundo perturba, mas não informa. O conceito de “perturbação” ou de “breakdown” responde
pelo momento da invenção de problemas, que é uma rachadura, um abalo, uma bifurcação no
fluxo recognitivo habitual. O conceito de “breakdown” é essencial na argumentação de que não
existe mundo prévio, nem sujeito preexistente. O si e o mundo são co-engendrados pela ação,
de modo recíproco e indissociável. Encontram-se, por sua vez, mergulhados num processo de
transformação permanente. Pois ainda que sejam configurados como formas, estas restam sujeitas
a novas perturbações, que forçam sua reinvenção”. (KASTRUP, 2005, p. 1276).

61
minhas certezas. Às vezes, eu penso que viver sob a lógica da ciência
é um fardo muito pesado porque os acontecimentos nem sempre
permitem uma fantasia, uma interpretação mais leve.

– Quando eu abro o Instagram e vejo a rotina de maquiagem, de look


do dia, de viagens, de rituais de beleza que as influencers mostram,
eu sinto um pouco de inveja, sabia? Eu tenho a impressão de que se
uma delas for sequestrada, ela vai agir com tranquilidade, vai pedir
o celular emprestado pro sequestrador, vai fazer uns stories dando
dicas de figurinos pros dias de cativeiro. Ou vai postar no OnlyFans43
imagens realistas de um ensaio fotográfico inspirado em ‘Cinquenta
Tons de Cinza’. Eu sinto que essa geração tem o poder de criar narra-
tivas plausíveis, sustentadas por um trabalho competente de edição,
de falseamento das imagens, dos sons, até das memórias. E há uma
indústria por trás disso, estimulando esse tipo de comportamento,
criando produtos e convencendo as pessoas a consumirem essas
sensações de uma vida produzida em filtros. São filtros que modi-
ficam o rosto, são medicamentos e dietas que prometem fabricar
corpos perfeitos, são negócios de venda de seguidores e agora, com
a demanda por aulas online, são empresas de tecnologias que já
tomaram conta de muitos estados e cidades, oferecendo soluções
em termos de plataformas de ensino.

As razões que ainda separam parte considerável dos docentesdiscentes


do fazer com as tecnologias digitais poderiam encontrar soluções menos
dispendiosas no âmbito de um Estado mais financiador da ciência e da
tecnologia e menos comprador de itens tornados urgentes pelo mercado44.
Há soluções locais sendo praticadas, há invenções, bricolagens, práticas-
teorias cotidianas produzidas por professoras e estudantes nos rodopios
das sabenças e dos acasos. Táticas de praticantes (CERTEAU, 1994) que não
aparecem nos relatórios das instituições, mas que estão por aí, disponíveis
aos sentidos dos pesquisadores que se permitem verouvirsentir além do
já sabido (ANDRADE; CALDAS; ALVES, 2019).

43
Serviço de conteúdo por assinatura.
44
No começo da pandemia, as empresas que pensam, produzem e vendem tecnologias, criaram
pacotes genéricos daquilo que seria a melhor forma de implementação do Ensino Remoto. Muitas
escolas particulares e Secretarias de Educação, no desespero causado pela obrigatoriedade
do isolamento físico, preferiram correr o risco de uma solução vinda de fora. As consequências
dessas importações pedagógicas serão percebidas no futuro.

62
– Em primeiro lugar, eu acho que é preciso ter muita sensibilidade pra
entender que nenhum de nós está tirando de letra o ensino remoto.
No meu caso, o problema nem é me virar com a tecnologia, mas sim
controlar as minhas reações quando eu vejo as condições de vida dos
estudantes pela câmera ou quando eu escuto algo que não era pra
ouvir, mas o microfone estava aberto. Eu ouço barulho de tiro, gritaria,
gente brigando do outro lado da tela. Nas poucas vezes que a câmera
de um deles está aberta eu posso ver a precariedade daquela vida,
daquela família e o esforço que aquele aluno faz para estar presente
na minha aula, em condições extremamente desfavoráveis.

– No Sul, não sei se você viu, um homem foi flagrado pela professora
agredindo o enteado durante a aula remota. Um pré-adolescente, 13
anos. Espancado na frente da turma por alguém que mora na casa
dele. Eu não tenho emocional pra ver uma cena dessas sem me des-
controlar, pra depois seguir a aula como se nada tivesse acontecido.

– Antigamente eu via os quadradinhos fechados na tela e pedia pra


eles abrirem, pra falarem alguma coisa comigo, mas hoje eu percebo
que esse tipo de pedido é uma violência que o professor não pode
cometer. A gente não sabe o que se passa por trás de uma câmera
fechada, de um microfone desligado. Eu já vi aluna de olho roxo,
de óculos escuro e, do jeito que a coisa anda, eu já imagino a aluna
sofrendo violência doméstica. Pode ser exagero meu, mas também
pode ser verdade.

Um ponto que ainda vai demandar muita reflexão, quando se pensar em


Educação Online, é o da produção de novas presencialidades. Em outras
palavras, precisaremos aprender a lidar com a possibilidade de o estudante
estar presente na aula (síncrona, no caso) sem usar – como prova – a sua
imagem capturada pela câmera do dispositivo utilizado.

63
– Eu não sou um quadrado cinza na tela do Zoom. Eu tô na casa de
um amigo, usando o wi-fi dele. Estou na sala dele, sem acender a
luz, pra não atrapalhar e nem gastar energia. Ele está no quarto, em
outra reunião. Eu não posso ligar a câmera porque eu não me sinto à
vontade pra isso. Mas eu estou na aula, eu estou ouvindo, eu escrevo
no chat. É muita afronta dizer que eu não estou aqui só porque eu
não abri a câmera. Quadradinho fechado não significa ausência, mas
circunstância.

Dependendo da interface escolhida para o encontro síncrono, a participa-


ção dos estudantes pode acontecer de variadas maneiras: por mensagens
via chat da própria interface; por conversas paralelas com outros colegas
em mensageiros instantâneos (WhatsApp, por exemplo); por uma audiência
silenciosa, mas atenta, enquanto o estudante se desloca pela cidade; pelo
acompanhamento da aula em momento posterior, caso ela fique gravada
e disponível para consulta etc. Uma câmera fechada ou um microfone
desligado não são, necessariamente, sinônimos de ausência. São contin-
gências dos cotidianos do Ensino Remoto e só quem pode dizer acerca dos
sentidos daquela falta de imagem e som é o praticante que opta/demanda,
ocasionalmente, pelos supostos silêncios e/ou invisibilidades.
Por isso, planejar e praticar cursos online são desafios que não renunciam
ao docente autor. O professor que se aventurar em práticas de Educação

64
Online terá que produzir desenhos didáticos não dependentes de um tipo
único de participação discente. Precisará criar ambiências abertas à bri-
colagem, à negociação, ao imprevisível, ao desconfortável e, sobretudo, à
sensibilidade no trato com o outro que pode não ter as mesmas condições
de acesso e de atenção que o professor e demais estudantes possuem nos
espaçostempos da aula síncrona.

– O tablet que a reitoria comprou pros alunos chegou praticamente


no fim do primeiro semestre das aulas remotas. Eu já tinha perdido
muito mais da metade das aulas. E ainda teve professor que não
amenizou a questão das faltas. Eu tive que fazer cerca de vinte ativi-
dades em menos de duas semanas pra dar conta do tempo perdido.
Só que digitar no tablet não é tão rápido, principalmente se você não
tem o costume. Eu acho que foi um erro comprar tablet no lugar de
notebook ou até de celular. Eu dei esse feedback pra coordenação. A
coordenadora me chamou de ingrata e disse que se eu não estivesse
satisfeita que eu poderia esperar a vacina pra voltar a estudar só no
presencial, quando a pandemia passar.

O professor que planeja um ambiente virtual praticado como sala de aula,


partindo de um desenho didático adequado às demandas do seu curso,
sabe que editar um AVE a partir de um dispositivo sem teclado físico – como
um tablet ou um celular – é muito mais demorado, dificulta a escrita e é
menos preciso nas tarefas de edição de vídeo e/ou de imagem. Contudo,
no caso da Universidade que nos serve de campo de pesquisa, a opção
institucional foi pela compra de tablets (entregues tardiamente, na segunda
metade do semestre letivo 2020.1). A decisão institucional – que parece
ignorar a questão pedagógica – assume a lógica do mercado, deixando em
segundo plano a experiência do usuário. Entre a qualidade dos processos
de aprendizagemensino e a suposta economia realizada na compra de
dispositivos mais baratos, a escolha se deu pela racionalidade de mercado.
Nada surpreendente em uma conjuntura histórica em que a educação é
tratada como gasto e não como investimento.

Esse tipo de Ensino Remoto que vem sendo praticado para viabilizar a
quarentena – de uns poucos, porque muitos já estão vivendo como se
não estivesse acontecendo nada – está longe de poder ser comparado à
Educação Online. Afinal, planejar currículos online é prerrogativa de pro-
fessor bem formado, assegurado em seus direitos trabalhistas, ouvido em

65
situações de crise – como a de agora – pois conhecedor do seu público,
da sua escola e, sobretudo, das próprias habilidades. Um trabalhador da
educação, ganhando o pouco que ganha, com pouca ou nenhuma formação
continuada em serviço, não tem obrigação de ser um exímio criador de
ambiências online. Porém, pode aprender, com tempo e boas condições
de trabalho, a conhecer os dispositivos, a explorar as ferramentas e a
experimentar novas linguagens. Fazer tudo isso, de uma hora para outra,
tendo que lidar com as mortes de pessoas queridas, com o trabalho de
casa multiplicado, com as aulas remotas dos próprios filhos é uma tarefa
ainda mais complicada.

– A escola agora acontece na casa do aluno e na casa do professor.


Outro dia um aluno perguntou por que deveria fazer o dever de casa
se tudo agora é casa. Daí eu passei a chamar essas atividades de
dever pós-aula.

– Mas não basta mudar o nome da atividade, né? Tem que conside-
rar que ela será feita em condições muito limitadas, numa casa que
passou a ter outro tipo de movimento, de interação entre as pessoas.
De algum modo a gente tem que integrar essa família do aluno na
atividade que ele vai fazer. Mais do que querer que o aluno escreva,
é necessário fazer com que o aluno fale sobre o que acontece na
casa dele depois que a aula remota termina. Aprender a narrar a
própria vida é uma questão curricular central. Como que a mãe fez
a comida do dia? Como estava o sabor do arroz, do feijão? Como se
limpou a casa? E o banheiro, quem limpa? Quem cuida do irmão mais
novo? Como estão os corpos dentro daquela casa? Estão sadios, estão
doentes? Ou seja, a gente precisa aproximar o currículo do cotidiano
do aluno, criar atividades em que esse cotidiano ganhe relevância na
formação dele, naquilo que a escola considera relevante.
– A vida doméstica também é um aspecto da Cibercultura. Nós vive-
mos hoje em ciber-casas. Por isso, é fundamental que os desenhos
didáticos considerem a existência de uma família, de um lar, de pos-
sibilidades ou impossibilidades de conexão. Se eu recomendo um
filme, eu preciso saber se há espaço e oportunidade praquele filme
ser assistido sozinho, pelo estudante. Mas, se não houver privacidade,
é preciso escolher um filme que possa ser visto por toda a família.
Porque a ideia não é mais ir até uma sala de aula, mas de ritualizar
a aula, tanto na casa do estudante, quanto na casa do professor. E
isso inclui as famílias de ambos.

66
– O mais difícil de um ensino remoto pra mim, além da instabilidade
da internet, é conseguir um lugar silencioso em casa para realizar
as tarefas pendentes. Os professores, na maioria das aulas, falam
sozinhos, ninguém abre a câmera, levam minutos intermináveis para
responder. Muitos faltam constantemente, outros entram na sala e
não respondem.45

Por isso, é fundamental que sejam problematizadas as condições de emer-


gência de uma Educação Online, numa sociedade em que até o direito à
conexão é tratado como luxo, como assunto que pode ser politicamente
negligenciado. A propaganda do mercado, transmitida em comerciais que
enfeitam a programação e geram lucros para a grande mídia, diz que somos
um país de indivíduos conectados, consumidores disputados pelas marcas
nas redes sociais online. Esquecem, contudo, de dizer que, dependendo do
seu pacote de dados e do seu dispositivo de acesso, o processo de inclusão
cibercultural é desigual, marcado por avanços, retrocessos e subutilizações.

45
Essas falas são vestígios de conversas tecidas com praticantespensantes alegóricos que cur-
saram, no segundo semestre de 2020, o período que deveriam ter cursado no primeiro semestre
deste ano. São rastros deixados por estudantes do curso de Pedagogia no Moodle que criamos
para as aulas de Tecnologias e Educação.

67
– Léo, eu tô sem internet pra assistir a
aula. Minha franquia acabou na sexta
aula da pós-graduação. Eu só posso
usar WhatsApp e Instagram. Amanhã
meu wi-fi será instalado e vou assistir a
aula que estou perdendo quando você
a disponibilizar no Moodle. Espero que
os outros professores não sigam me
odiando por isso46.

– Nós temos um problema muito grave de inclusão digital. A pandemia


deixou isso muito claro pra gente. É necessário que exista Internet para
todos, bons artefatos digitais nas mãos dos alunos e dos professores. Para
existir magistério hoje tem que existir inclusão digital.

O desenho didático de um AVE comprometido com uma Educação Online


ou com outras práticas de Ensino Remoto, não pode desconsiderar a
imbricação entre dispositivos, modos de acessos e objetivos curriculares.
Se os estudantes usam mais celulares, conectados através de pacotes de
dados, por exemplo, o mais indicado seria apostar em ambiências acessí-
veis, intuitivas, já praticadas nos cotidianos de estudantes e professores,
como o Facebook e o Whatsapp – tanto a rede social, quanto o mensageiro
instantâneo são oferecidos ‘gratuitamente’ por algumas operadoras de
telefonia atuantes no país.

– Se o único lugar possível pra aula acontecer for o WhatsApp a gente


precisa entender a razão disso. A gente tem que discutir outros meios
também: rádio, TV. Essas tecnologias podem ser usadas como recur-
sos didáticos e em nada elas diminuem a importância do professor,
pelo contrário: autorizam ainda mais o professor. Existe um virtual aí
que precisa ser explorado, que pode ser experimentado como saída,
como possibilidades de ação.
– Mas como que pode usar o zap? A professora manda um áudio
de três minutos e eles dizem que é pra professora escrever, porque

46
Mensagem recebida por um dos autores deste livro, via WhatsApp, enquanto ele dava uma aula síncrona.

68
o áudio não baixa. A conexão nem sempre permite baixar o áudio.
Então, isso aumenta o trabalho do professor. Não é a mesma coisa
que se fazia no presencial, entende? Leva um tempo muito maior
de preparação, pra gente aprender a usar um equipamento, uma
tecnologia, que nem sempre é tão familiar pra gente. É muito fácil
dizer qual é a melhor maneira de educar na pandemia, respeitando
o isolamento, mas entre o que eles acham que é bom e o que se
consegue fazer com isso, há um abismo.

É preciso deixar claro que não se trata de acatar, acriticamente, uma prática
de consumo do mercado, mas de aprender com esse consumo, a investigar
os usos (CERTEAU, 1994) e a indagar as razões do engajamento, da fideli-
dade, da disponibilidade para múltiplos letramentos. Afinal, sabemos que
estar numa rede social ou em grupos de mensagens, exige dos praticantes
certas habilidades que, às vezes, precisam ser aprendidas ou ressignifica-
das: compartilhar imagens, editar, encaminhar áudios, usar filtro, fazer
montagens, passar o meme certo na hora certa, escolher o emoji adequado
numa conversa, abrir um gif, criar subgrupos, sair dos grupos, armazenar
mensagens, comentar nas postagens, criar autorias de aniversário nos
murais dos amigos... A lista de habilidades, de aprendizagens técnicas é
enorme e precisamos ter em conta que tais itinerâncias não se dão da
mesma forma, no mesmo ritmo, para todas as pessoas. Há cortes gera-
cionais, de classe, de instrução que devem ser ponderados. Mas, nesses
tempos de confinamento, quando os dispositivos em rede intensificaram
suas marcas em nossas práticas comunicativas cotidianas, não dá mais
para negar o ciberespaço como lócus de uma intensa rede educativa.

– Não é que as pessoas não saibam usar o celular ou o computador.


A maioria, talvez, até saiba, mas usa pras tarefas que fazem sentido
pra elas. Você quer editar uma foto porque gostaria de se sentir mais
bonita naquela imagem que será postada e será vista por outras
pessoas. Então, você quebra a cabeça tentando aprender a editar
uma foto. Pergunta a um, pergunta a outro, assiste um tutorial no
Youtube. Você dá um jeito e aprende porque aquilo é importante pra
você. Mas, aprender alguma coisa que você ainda não sabe – como
subir um vídeo pra nuvem e enviar o link pro professor – só porque
aquilo foi pedido numa disciplina remota que você está cursando,
não é necessariamente algo que faz sentido pra você. É um vídeo que
você não gostou de fazer, que você não sente prazer em mostrar, você
não gosta do modo como aquilo que foi gerenciado pelo professor.

69
Então, você cria uma resistência, uma implicância ou até mesmo um
bloqueio. E não consegue cumprir a tarefa.

– Eu não vou usar meu celular para ler um texto de 40 páginas em


PDF. Prejudica a minha visão, o texto tem uma fonte muito pequena,
o assunto é muito denso para ser lido na tela e o meu celular nem
tem memória suficiente pra baixar e salvar todos os textos.

Outra questão, que precisamos levar em conta, é a transição de um hábito


já consolidado – o uso do celular visando o entretenimento – para uma
prática curricular mediada por essa tecnologia. As polêmicas que sem-
pre existiram quanto ao uso do celular nos espaçostempos de formação
institucional criaram uma confusão conceitual que apartou, no imaginá-
rio coletivo, a prática curricular, de um lado e, do outro, o dispositivo de
acesso à internet. A reconciliação que o Ensino Remoto promete (e que
pode realizar) ainda está distante de ocorrer, visto que é preciso tempo pra
gente compreender modos outros de fazer aulas com uma tecnologia até
então considerada – por muitas instituições, famílias e discentesdocentes
– objeto de distração.

– O maior desafio dessa pandemia foi transformar ou adaptar um


recurso tecnológico de diversão (no meu caso, o celular) em um ins-
trumento de trabalho, com pressões, prazos, lembretes, reuniões
importantes, cobranças e stress.

– Até o ano passado eu não podia usar o celular dentro da escola


como recurso didático das minhas aulas. A direção proibia, demo-
nizava. Agora, eles querem que eu crie aulas pelo celular. Mas nem
pensam em fazer uma autocrítica, né? Dizem que é circunstancial. Eu
aposto que quando acabar a pandemia e a gente voltar pro presencial,
o celular vai virar persona non grata de novo na escola.

– Ainda tem a questão das fake news, que é um tema delicado pra
gente e que conta muito com o celular pra criar um público de desin-
formados perigosos pra democracia, pro bem-estar sanitário. Eu não
tenho percebido essa preocupação lá nas reuniões da escola.

Será importante repensar o papel formativo das nossas itinerâncias na


rede, redimensionando a preocupação com o consumo das informações

70
que chegam via mensageiros e redes sociais, para nele inserir a prática da
apuração47. A arte de produzir e propagar mentiras pela internet se espa-
lhou no país e no mundo, sendo pano de fundo do caos político que temos
vivenciado. Discursos de ódio e mentiras deslavadas estão por todos os
lados e constituem o motor dessa máquina de moer reputações e sanida-
des. Não é à toa que as fake news48
fazem tanto sucesso por aqui. O
fato de um presidente como Jair
Bolsonaro conseguir ser eleito por
meio de uma campanha baseada
em delírios ficcionais, espalhados
em grupos de WhatsApp e posta-
gens no Facebook, falando da dis-
tribuição de mamadeiras de piroca
para crianças da Educação Infantil
ou de supostos Kit Gays que inten-
tavam instaurar, via escolas, uma
ditadura LGBTQIA+ no país que
mais mata travestis e transexuais no mundo, é sintomático do nosso des-
preparo fecundo frente às potências do digital em rede.
Nossa inserção no ciberespaço reproduz, em grande medida, a nossa aloca-
ção nos demais espaçostempos onde os marcadores sociais – como classe
e instrução, por exemplo – funcionam como cartões de visita para o passe
livre ou para a porta fechada. A democracia digital anunciada pelos chavões
da publicidade é uma fabulação perversa que ignora a precariedade do
acesso à internet no Brasil, sobretudo em regiões periféricas, esquecidas
pelo Estado e desconsideradas em grande parte das decisões tomadas

47
Almeida e Santos (2020), a partir de uma pesquisa-formação nos cotidianos de uma disciplina
oferecida na modalidade EAD, criaram experiências curriculares de checagem e combate às
fake-news, oportunizando aos estudantes o acesso a letramentos ciberculturais fundamentais no
presente. O trabalho realizado na disciplina “Informática na Educação” gerou uma plataforma cola-
borativa, alimentada pelos estudantes, cujo foco é o exercício da checagem das notícias e, claro, a
propagação de fontes mais confiáveis. Disponível em: encurtador.com.br/dCMPT. Acesso: 25/12/20.
48
As fake news são leituras distorcidas e mal intencionadas de eventos sociais, cujo objetivo é
produzir, na opinião pública, certa disposição contrária a pessoas e/ou movimentos. Elas constituem
as bases do que se tem chamado de pós-verdade. Para Santaella (2018, p.54) “as ondas da
pós-verdade não estão deixando ilesa nenhuma área de atividade humana, atingindo, inclusive,
questões de cunho científico”. Os discursos da pós-verdade, diz Santaella, ignoram, desrespeitam,
distorcem e manipulam os fatos (como fazem muitos veículos de imprensa).

71
pelas instituições que optaram pelo Ensino Remoto Emergencial nesses
tempos de quase-quarentena49.

– O ensino remoto me trouxe medo. Eu não sabia se teria condições


de estar presente nas aulas porque não tenho um computador. Além
disso, a internet na minha comunidade costuma não ser tão boa.
Muita gente em minha volta morreu por conta do vírus. Então, o psi-
cológico fica frágil. Fico desanimada cada dia mais nesse isolamento.

São tantos os problemas causados pelo desencontro entre as pessoas e as


tecnologias, que qualquer solução apressada que reduza a contenda à falta
de dispositivos ou de pacote de dados está indo pelo caminho errado – que
nem é o mais fácil, nem o mais efetivo. Os motivos do descompasso entre
as formas remotas de ensino e uma apropriação mais genuína, mais autoral
do repertório de tecnologias do presente estão frequentemente ligados ao
pensamento engessado que concebe formação como formatação e não
como invenção de si e do mundo (KASTRUP, 2005).
Um projeto moribundo de educação como mercadoria se arrasta entre
nós e dele precisamos nos desvencilhar. É imperativo apostar nas autorias
discentedocentes, tão presentes na cibercultura (PIMENTEL, 2018), mas
que nos espaçostempos das salas de aula institucionalizadas tendem a
ficar de escanteio, escondidas, com receio de
não combinar com o que supostamente seria
o correto a ser dito e feito nas práticas curri-
culares. É preciso narrar outras histórias. No
silêncio ritualizado a informação não circula.
O que gira na presença da palavra incontes-
tada é o delírio da instrução. No tempo his-
tórico da emissão liberada, da comunicação
todos-todos, praticar uma educação baseada
em monólogos e obediências é desperdício e
devaneio. Mas também é lucro e manutenção
de privilégios.

49
A quarentena recomendada não cabe na vida de todo mundo. Há os que precisam trabalhar
fora de casa porque o Estado não lhes deu outra opção; há os que já estavam quarentenados
nas ruas, por falta de políticas públicas de moradia; há os que não acreditam no vírus ou creem
numa superproteção concedida sabe-se lá por quem; há os que não respeitam ninguém e querem
mais é que todo mundo morra.

72
– Eu tenho receio de abrir o microfone e pedir a palavra. A professora tá
sempre com um jeito de que vai brigar com a gente, de que vai ouvir alguma
idiotice. Ela reclama da qualidade dos microfones, dos ruídos que existem
nas casas, o cachorro latindo, a criança chorando. E sempre pede pressa
pra quem está falando. Só ela pode falar muito e coitado de quem ousar
interromper a fala dela. Daí, muitas vezes, a pessoa fala alguma coisa sobre
o tema da aula, sobre o texto e ela nem comenta, passa pro próximo. Então,
por que eu vou falar na aula se ela não vai comentar a minha fala? É só pra
constar? Só pra cumprir o ritual e ela acreditar que fez uma aula interativa?

– Eu prefiro bater boca com bolsominion no Facebook a falar o que eu


penso nas aulas. No Facebook, pelo menos, o inimigo vai ler o que eu
escrevi. Na aula remota o professor nem presta atenção no que eu digo.

O sortilégio do capitalismo neoliberal é perceber nos acontecimentos da


vida a oportunidade do investimento certeiro em atividades cuja meta é o
acúmulo de dinheiro mesmo que à custa de mortes físicas e simbólicas. A
pandemia ficará marcada pela astúcia das empresas de tecnologias que,
diante de um Estado despotencializado, desfinanciador da ciência e da
tecnologia, renunciou aos conhecimentos que poderia possuir, incentivar
e/ou fiscalizar para entregar, de mão beijada e da noite pro dia, com pouca
ou nenhuma transparência, a condução da transferência das aulas pre-
senciais para os Ambientes Virtuais de Ensinoaprendizagem. A transição,
gigantesca em alguns estados como o Rio de Janeiro, foi capitaneada por
empresas de capital estrangeiro – como a Google e a Microsoft.
Por sorte, em todo instituído há vazios que podem ser ocupados por sabe-
resfazeres cotidianos, por táticas que não fazem parte de um grande plano,
mas que são produzidas na ocorrência da oportunidade (CERTEAU, 1994).
Os usuários das leis e normas impostas, os praticantes ordinários da cul-
tura, se apropriam dos artefatos tecnológicos e produzem, como lhes é
possível, formas de combate às tentativas de subordinação e de apaga-
mento das trajetórias. Fabulam (re) existências, multiplicam e potenciali-
zam invenções nas redes sociais em que operam. Fabricam, em diferentes
linguagens, maneiras de existir, de estar no mundo que não cabem nas
fôrmas e nem são, necessariamente, inteligíveis aos códigos dominantes.
Os homens e mulheres comuns, em suas práticas de usuários do que não

73
foi por eles fabricado e que lhes foi oferecido ou imposto pelo mercado
ou pelo Estado, criam outros usos, mundos, práticas possíveis com suas
operações, produzindo sempre diferença em uma combinação singular de
artes de fazer a partir do repertório dominante. Tais artes de fazer, que
também constituem modos de pensar, implicam uma produção secundária
informada pelos desejos e interesses dos praticantes da cultura.
Educar no contexto da cibercultura é jogar com essas produções oficiais
e/ou secundárias, é também registrar os feitos que escaparam da norma,
é escrever uma história do presente antes que no futuro alguém escreva
a nossa história pra gente, apagando o vivido em nome de relatos feitos a
partir do instituído que sempre tentará ocultar os vestígios das violências
praticadas.
As histórias aqui narradas e as reflexões que fazemos a partir delas, no
fluxo de uma experiência em curso, comunicam em tempo real o que
temos vivido no Ensino Remoto Emergencial praticado em nosso campo de
trabalho e de estudo. Comunicam também um devir ciberdocente, prati-
cantepensante (OLIVEIRA, 2012) da Educação Online – que pode ser um tipo
de formação mediada pelo
digital em rede, mas pode
ser também uma estética
de ensinoaprendizagem,
bricolada com outras artes
do ensino presencial ou da
Educação a Distância.

74
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Em muitas das conversas


de pesquisa que tivemos
nesses meses pandêmi-
cos, em tudo aquilo que
ouvimoslemos acerca dos
modos de continuidade da
escolarização institucional
em situação de isolamento
físico, a sigla EAD esteve
presente como uma espé-
cie de síntese que identi-
fica a modalidade educa-
cional do presente. Contudo, como sublinhamos em diferentes momentos
deste texto, nem toda atividade curricular mediada por tecnologias de
encontro pode ser pensada como Educação a Distância. No caso específico
da pandemia, o termo mais condizente com o que se tem feito é Ensino
Remoto Emergencial ou, na melhor das hipóteses, Educação Online. Mas
o que seria, então, a Educação a Distância?

[...] considera-se educação a distância a modalidade educacional


na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino
e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de
informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de
acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros,
e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da
educação que estejam em lugares e tempos diversos.” (BRASIL, 2017)

Falaremos de Educação a Distância posicionando as nossas presenças num


espaçotempo institucional que, a nosso ver, poderia ter sido mais bem
aproveitado na elaboração do Ensino Remoto Emergencial, no Estado do
Rio de Janeiro, nesses tempos de pandemia. A polissemia das experiências
de ensino mediado por tecnologias não nos deixa a vontade para gene-
ralizar conceitos, práticas, processos e decisões nesse campo. Portanto,

75
olharemos para o que nos é próximo, familiar, atualizando uma pesquisa
realizada por um de nós (LO BIANCO, 2019) acerca da EAD praticada no
Consórcio Cederj50.

Nosso texto, neste capítulo, será costurado


por conversas tecidas com os praticantes do
Consórcio, em meio aos encontros media-
dos por tecnologias e/ou produzidos nas
visitas aos polos, já que a EAD do Cederj
acontece na modalidade híbrida, mesclando:
1) interações síncronas e assíncronas no
AVE, 2) estudo através dos livros escritos
pelos professores conteudistas, 3) consul-
tas aos professores tutores – por telefone
ou pessoalmente, nos polos existentes – e
4) avaliações presenciais e a distância.

Os sujeitos da EAD, ao menos na teoria e nas falas institucionais, praticam


presencialidades múltiplas, inventam outros modos de habitar salas de
aula, de organizar a própria formação no espaçotempo viável, entre os
afazeres do trabalho, da vida familiar etc. Os vestígios desses percursos
formativos, como boa parte dos registros cotidianos do presente, também
poderiam ser encontrados nas redes sociais online, o que nos levou a incluir
em nossos processos metodológicos a prática da netnografia51. Parte dos
relatos aqui apresentados, seguindo a técnica do praticantepensante ale-

50
O Consórcio Cederj surge nos anos 2000, após diversas fases de embates e (des)continuidades
na política educacional fluminense. Em 2002, a Assembleia Legislativa aprova a criação da Fun-
dação Cecierj, que, além de contar com um corpo próprio de servidores e funcionários, engloba
outros projetos como o Pré-Vestibular Comunitário, a formação continuada de professores, a
divulgação científica e a Educação de Jovens e Adultos a distância. Hoje o Cederj oferece, em
Consórcio com as universidades públicas, 18 cursos de graduação em 34 polos diferentes no
Estado do Rio de Janeiro. O Consórcio conta com aproximadamente 45.000 alunos matriculados
em seus cursos. O Consórcio Cederj é composto pelas seguintes instituições: UERJ, UEZO, UENF,
UFRJ, UNIRIO, UFF, UFRRJ, CEFET-RJ, IFF, FAETEC e IFRJ.
51
A netnografia é “uma ferramenta metodológica que amplia as possibilidades oferecidas pela
etnografia tradicional ao permitir o estudo de objetos, fenômenos e culturas que emergem
constantemente no ciberespaço a partir do desenvolvimento e da apropriação social das tecnologias
da informação e da comunicação (TIC). O método netnográfico adapta técnicas, procedimentos
e padrões metodológicos tradicionalmente empregados na etnografia para o estudo de culturas
e comunidades emergentes na Internet”. (CORRÊA; ROZADOS, 2017, p. 2). Em pesquisas mais
recentes, temos optado pela cartografia digital.

76
górico, advém das falas partilhadas em rede por docentesdiscentes que
pensampraticam o Consórcio hoje. A pesquisa realizada traçou um breve
panorama dessa história recente, sublinhando o papel dos professores52
– personagens nem sempre escolhidos como protagonistas nos estudos
dedicados à EAD.
Precisamos debater: Como se realiza a docência na Educação a Distância?
Em que condições de trabalho esses profissionais atuam? Quais são as
reivindicações desses professores? Como são os seus processos de for-
mação voltados à atuação na EAD? Que desafios a cibercultura apresenta
para essa atividade? Que rupturas com o ensino presencial se tornaram
necessárias aos que migraram53 para a Educação a Distância?
Em meio à digitalização dos modos de ensinoaprendizagem, processo que
se multiplicou nessa crise pandêmica, temos urgência em compreender
a EAD praticada no estado do Rio de Janeiro, cuja oferta se dá por um
consórcio de universidades públicas reunidas em torno de uma política
educacional longeva, que atravessa governos descontinuados – uma rari-
dade na política local54.
Narrar a trajetória de uma política pública, sob um viés escolhido por afi-
nidade de pesquisa, será sempre uma possibilidade narrativa entre tantas
outras e, então, estamos cientes da precariedade dos nossos pontos de
vista. Escrevemos com a lógica da incompletude, reunindo pistas e reflexões
para usos (CERTEAU, 1994) futuros, nossos e de outros, como convém ao
trabalho científico. Essa observação nos parece necessária em um contexto
histórico marcado por polarizações político-partidárias e pela negação da
ciência. Ao lado da urgência de se pensar o presente a partir dos acúmulos
de tantos pesquisadores, existem os temores das retaliações político-insti-
tucionais, principalmente em um Estado tristemente marcado por gestores
e políticos arrolados em crimes de corrupção.

52
Incluímos nessa categoria os tutores presenciais, os tutores a distância, os coordenadores de
disciplina, os coordenadores de curso e os conteudistas.
53
Os professores coordenadores de disciplina e de curso do Consórcio são também professores das
universidades consorciadas. Portanto, ao migrarem para a EAD mantiveram-se no ensino presencial.
54
Cf. FARIA, Lia. Chaguismo e Brizolismo: Territorialidades políticas da escola fluminense. Rio
de Janeiro, Quartet, Faperj, 2011.

77
– (P) 55 É muito delicado falar de certos temas quando se está atrelado
com o administrativo. Se eu pudesse exercer apenas a docência, seria
mais simples apontar aquilo que eu considero equivocado. Mas, exer-
cendo um cargo de gestão, eu tenho que me equilibrar entre o desejo
de fazer acontecer e o conhecimento das restrições que impedem ou
dificultam que coisas melhores aconteçam. Tem muita coisa que pre-
cisa mudar, principalmente nas mentalidades, nos costumes, naquilo
que foi aprendido como o ideal de sala de aula, de magistério. A EAD
não pode ficar subordinada à formação que tivemos para o ensino
presencial, mas como falar disso sem melindrar as universidades
consorciadas? Porque são essas universidades que formam boa parte
do nosso corpo docente. Então, é um ciclo eterno de cristalizações, de
pensamentos consolidados e que não se abrem pro novo, pras novas
tecnologias, pras novas formas de comunicar, de produzir sentido.
Agora, por causa da pandemia, é que a gente tá vendo as pessoas
se mobilizarem pra aumentar o repertório delas com as tecnologias,
mas ainda assim é um gesto muito tímido e, muitas vezes, terceiri-
zado. O professor pede pro tutor se atualizar, mas ele mesmo não se
aprofunda nesse debate, não aprende essas habilidades.

Seguimos, apesar disso, em nossa função de pesquisar relevâncias, de


indagar como tem sido os cotidianos dos professores e dos estudantes que
praticam essa modalidade de ensinoaprendizagem. É salutar conhecer as
normas e, mais ainda, identificar as brechas por onde se criam trajetórias
singulares e inventivas, cocriadas por docentesdiscentes praticantespensan-
tes das ambiências não presenciais (ou tecidas noutras presencialidades).
Tais apontamentos, mesmo que iniciais, poderão ser úteis para gestores,
professores, estudantes e demais atores que planejam/executam/vivem
a oferta de EAD no Estado do Rio de Janeiro – e não só por aqui, já que as
experiências escolares oriundas das políticas educacionais mantém entre
si alguma comunicação, sobretudo quando atravessadas por interesses
mercadológicos que convertem toda atividade humana em negócio, em
mercadoria cujo valor varia de tempos em tempos. Na atual conjuntura
quem já lucrava com a EAD tem lucrado ainda mais. Por isso, é fundamental
conhecer o modo como uma instituição pública faz aquilo que as empresas
privadas estão cada vez mais interessadas em fazer.

55
Utilizaremos códigos para localizar a posição dos nossos interlocutores: (P) antes das falas dos
professores coordenadores de disciplina, (T) para os professores tutores e (E) para os estudantes
do Consórcio Cederj.

78
No proceder dessa tarefa, dialogaremos, no plano teórico, com o pensa-
mento de Darcy Ribeiro – intelectual orgânico que esteve no centro dos pri-
meiros debates sobre uma educação mediada por Tecnologias da Informa-
ção e da Comunicação no Brasil e que, em tese e nos discursos daqueles com
quem conversamos nessa pesquisa – serviu de fonte de inspiração – com os
seus escritos e sua atuação política – para a formulação do Consórcio Cederj.

Uma das preocupações de Darcy era suprir a demanda dos habitantes


do interior do Estado pelo Ensino Superior. Interiorizar as universidades
públicas ao invés de migrar os estudantes para a capital. Levar para o inte-
rior cursos de formação que pudes-
sem suprir às necessidades locais,
valorizando áreas e temas coerentes
com as atividades praticadas em cada
lugar. A Educação a Distância surgia,
em solo fluminense, como possibi-
lidade de democratizar a formação
numa universidade pública e ainda
estimular o desenvolvimento regio-
nal, criando uma mão de obra qua-
lificada já integrada e comprometida
com o interior do Estado.

Ultimamente, se multiplicaram em todo o mundo os cursos de educação


a distância, através do correio, do rádio e da televisão, com emissão por
satélite, que se generalizam em vários países. Muitos deles são melhores
do que os cursos correntes da maioria das escolas superiores isoladas do
Brasil. Naqueles, o aluno recebe semanalmente uma massa de material
didático que deve assimilar e é obrigado a comprovar depois, nos exames,
que efetivamente aprendeu. São dadas, também, nos períodos de férias,
em instituições especiais, oportunidades de prática nas matérias em que
ela é indispensável. O êxito crescente desses cursos se deve à sua capaci-
dade de alcançar e servir a esse alunado imensamente maior, sem grande
custo adicional. Igualmente importante é sua notória eficácia docente e sua
extraordinária flexibilidade para atuar em múltiplos campos, formando uma
variedade de especialidades infinitamente maior que o estreito rol de currí-
culos mínimos que nossas escolas superiores oferecem. [...] Isso [a EAD] se
recomenda especialmente para campos difíceis, como o aperfeiçoamento do
magistério, tanto o leigo como o insuficientemente formado. Combinando
cursos por correspondência com programas de teledifusão educativa, o

79
ensino a distância pode ensejar um bom aprendizado, se controlado por
um sistema eficaz de exames e devidamente complementado por estágios
na universidade. (RIBEIRO, 2016, p. 223-224).

A Educação a Distância vislumbrada por Darcy Ribeiro como política edu-


cacional destinada a ampliar a oferta de vagas e de cursos no Ensino Supe-
rior, abrangendo um público não morador das grandes capitais, ainda não
contava com as possibilidades espaçotemporais que hoje conhecemos e
praticamos no/com o digital em rede. Porém, mesmo com a pouca varie-
dade de opções tecnológicas da época, Darcy já planejava uma oferta edu-
cacional não limitada ao território, à arquitetura escolar.

– (P) Eu tenho pensado muito nessa relação


arquitetônica que a gente estabelece com
a sala de aula. O nosso apego pelo quadro,
pela mesa, pelo mural de recados, pelo sinal
do recreio, pela ordem que precisa reinar
não vale nada hoje. Isso tudo perde o sen-
tido quando a sala de aula precisar ser a sala
da minha casa e qualquer outro cômodo da
casa dos estudantes. Que lugar é esse que eu
não posso arrumar do meu jeito, que não me
permite fazer uma roda, que não me deixa
separar dois alunos que conversam demais
e não prestam atenção na aula? A escola tá
nuvem, eu tô na nuvem, as minhas turmas
estão na nuvem. E, nem por isso, eu deixei de ser professora, nem
eles deixaram de ser estudantes, nem a escola deixou de ser escola.

80
Ao repertório do que hoje conhecemos como EAD no Brasil precisamos
acrescentar esses lampejos pioneiros que, diante da escassez do dinheiro
que “ergue e destrói coisas belas”56, poderiam ser fontes de inspiração e
criação de alternativas. Muito se tem reclamado, por exemplo, dos proces-
sos excludentes do Ensino Remoto baseado exclusivamente na utilização
de um dispositivo capaz de se conectar à internet. O passado da EAD,
entretanto, nos remete à outras tecnologias de encontro, como o rádio, a
televisão e, por que não, o serviço de Correios. Sabemos que esses meios,
considerados por muitos como ultrapassados, não possuem a potência
da interatividade, própria da cibercultura. Mas, em casos de necessidade,
como essa a que estamos expostos durante a pandemia, essas tecnologias
teriam ainda validade se pensadas pedagogicamente, com intencionalidade
formativa e estímulo à criação. Mas, ao invés disso, o Estado e as empresas
que administram a educação, enxergam no professor a obrigação de gravar
aulas em vídeo, de estar online diante de uma tela enquanto acende uma
vela no oratório improvisado atrás do computador em memória do pai,
do filho, do avô falecidos de Covid-19.

– (E) Não importa se você está de luto,


se você perdeu alguém, se você tá sem
cabeça pra pensar em dar aula, pra ler,
estudar, fazer alguma atividade que vale
nota. Estão pouco se importando se o
barulho que a sua família faz atrapalha a
concentração que você precisa ter na hora
da leitura. Aliás, eu não consigo ler no celu-
lar, prefiro texto impresso. Mas não tenho
impressora. Eu não tenho um celular só
pra mim. Vou fazer o quê? Vou roubar?
Vou pegar o telefone da mão da minha
filha se ela precisa estudar pra prova que
vai fazer no dia seguinte? O meu pai disse
que estudou muito bem pelo Instituto
Universal Brasileiro. Acho que seria mais
jogo receber as apostilas em casa, as fitas
(hoje seriam CDs, pendrives, sei lá). Mais fácil que ficar brigando pelo
único celular da casa que nem sustenta a internet por muito tempo.

56
Referência aos versos da canção ‘Sampa’, de Caetano Veloso.

81
A EAD é uma realidade e uma opção política cada vez mais praticada no
Brasil e no mundo, muito antes da pandemia do novo coronavírus. A lite-
ratura especializada indica que essa modalidade de ensino se encontra
intimamente associada ao crescimento da oferta educacional, funcionando
como estratégia para o atendimento de um número crescente de alunos
situados nas camadas mais pobres da sociedade. Contudo, entre a intenção
e a prática há abismos de onde precisamos nos jogar para, no voo, alcan-
çarmos uma visão mais alargada. Darcy Ribeiro, antes de ver consolidada
a sua aposta numa EAD pública, fez a seguinte observação:

Minha universidade do ar é perfeita como um hospital sem doentes


e sem médicos. [...] Inspira-se na Open University, de Londres, e nas
congêneres de Madri e Caracas. [...] Isso representa perigo e uma
ampla perspectiva de melhoria do ensino. Perigo porque se o ensino
a distância se converter em máquina de fazer dinheiro, como ocorre
na maioria das escolas privadas, será um desastre. Promessa por-
que possibilitará o Brasil recuperar 30 anos de atraso que tem nesta
matéria [...] (RIBEIRO, 1997, p. 486).

Os anos 1990 representaram o auge dos processos de privatização no


Brasil. O ideário de uma educação-mercadoria já estava consolidado e veio,
desde então, se fortalecendo e se espalhando por todo o país. O que assis-
timos nos últimos meses em termos de cobrança dos donos das escolas e
faculdades privadas, foi a publicização mais clara e sem pudores de uma
ideologia que privilegia o lucro em detrimento das pessoas. Lutar contra
esse tipo de ideal, apontar sua perversidade e a burrice desse pleito é algo
que nós, nas universidades e nas escolas, não podemos nos furtar. Não se
trata de cruzar os braços e ser contra a retomada das aulas pela via das
tecnologias, mas de pensar caminhos que sirvam como alternativas para
os absurdos propostos por essa gente.

– (P) O teletrabalho é uma realidade e nós estamos fazendo, certo?


Existe um currículo oficial exigindo o possível e o descabido, mas na
prática é o professor que resolve, que negocia com as possibilidades
dos alunos. Agora, eu sei que por trás desse currículo oficial – ou
acima dele – têm as grandes corporações ganhando muito dinheiro
com a pandemia. Essas empresas que produzem plataformas, que
disponibilizam salas de videoconferência, não estão fazendo isso de
graça, por amor à Educação.

82
– (P) Mas essas grandes corporações não conseguiram dar uma resposta
imediata pras demandas das escolas. Quando o bicho pegou, assim que
estourou a pandemia, foram as diretoras das escolas que decidiram de
que modo elas iriam distribuir a merenda pros estudantes. Foram as
professoras que criaram meios de encontrar suas turmas, de seguir mini-
mamente com o ano letivo. As Fundações estavam preocupadas em fazer
apostilas porque é material barato. Eles acham que o melhor negócio é
moldar a prática docente. Mas como é que controla o professor? Como
é que se domina o turbilhão dos cotidianos escolares? As Secretarias de
Educação que até então proibiam o uso do celular na escola precisaram
se conformar com a existência e com os usos dessa tecnologia. Só que
essa ficha institucional caiu tarde demais. Felizmente, os estudantes e
os professores já usam o celular no seu dia a dia e, por isso, uns mais,
outros menos, foram se virando, inventando possibilidades curriculares.
A potência dos grupos hegemônicos diante da pandemia foi zero porque
eles não sabem responder ao novo. Eles só sabem repetir o velho.

O desafio é mais complexo quando postulamos uma sociedade e proces-


sos educativos que tenham como parâmetro não o mercado e o capital,
mas o ser humano. Trata-se de reiterar e dar saturação histórica ao
ideário de Protágoras que coloca o ser humano como medida de todas
as coisas. Neste horizonte, o patrimônio natural e científico e os proces-
sos culturais e educativos não podem estar subordinados ao mercado
e ao capital, mas ao conjunto de direitos que configuram a possibili-
dade de qualificar a vida de todos os seres humanos. A educação, nesta
perspectiva, é elemento crucial no processo de emancipação da classe
trabalhadora e de estabelecer práticas sociais comprometidas com a
dignidade e a vida de todos os seres humanos. (FRIGOTTO, 2002, p.65).

As universidades precisam estar na linha de frente para barrar a ganân-


cia desse empreendimento neoliberal. Não podem se adaptar ao ideal
mercantil, dobrando-se, servil, à propaganda das empresas que vendem
ambiências online voltadas para a prática de aulas remotas. Devem reco-
nhecer que em suas unidades há pesquisadores dedicados a pensar o tema
da formação escolar/acadêmica praticada em outras presencialidades. Há,
nesses lugares, programadores, designers, educadores e outros inventores
de tecnologias.

83
O desafio das universidades, que
estão há anos no centro de uma
grave crise, é não sucumbir ao
canto da sereia entoado pela ini-
ciativa privada sedenta para ven-
der soluções enlatadas que não
chegam aos pés do que podería-
mos, localmente, produzir.

[...] Não pode, também, ser uma mera universidade local, formadora
de quadros profissionais do tipo comum. O pleno desenvolvimento
regional e nacional exige que se aproveite esta oportunidade de cria-
ção de uma nova universidade para fazer dela não um mero conglo-
merado de escolas de nível superior, mas aquele tipo de universidade
que corresponda às exigências da modernização e desenvolvimento
do Brasil (RIBEIRO, 2016, p. 215).

Já deu para notar que não conseguimos falar de Educação a Distância sem
voltar, de quando em vez, ao Ensino Remoto Emergencial. Talvez seja um
sinal de que ambos estejam valorizando muito pouco os sujeitos que os
corporificam, que conferem aos ritos neles praticados algum sentido, algum
valor agregado para além dos números e da propaganda.

Não nos esqueçamos de que o Brasil foi formado e feito para produzir
pau-de-tinta para o luxo europeu. Depois, açúcar para adoçar as bocas
dos brancos e ouro para enriquecê-los. Após a independência, nos
estruturamos para produzir algodão e café. Hoje, produzimos soja e
minério de exportação. Para isso é que existimos como nação e como
governo, sempre infiéis ao povo engajado no trabalho, sofrendo fome
crônica, sempre servis às exigências alheias do mercado internacional
(RIBEIRO, 2016, p. 46).

De acordo com Castro (2015), a conjuntura política do momento de imple-


mentação do Consórcio Cederj, estava marcada por um governo federal
alinhado a uma lógica neoliberal e, no plano estadual, tinha-se um governo

84
por ele classificado como neopopulista. Disso derivou uma proposta de
Consórcio que o autor considera conservadora, capaz

[...] de não considerar os conhecimentos prévios dos alunos, de impri-


mir discussões desconectadas das realidades educacionais locais e
de exigir dos alunos muita memorização dos conteúdos estudados.
Agrava tais fatores a questão de que o estudo é feito basicamente
através das apostilas entregues aos alunos, gratuitamente, no início
de cada semestre. Estas apostilas têm sido reproduzidas por diver-
sos semestres, muitas vezes, sem renovação dos conteúdos nelas
contidos. (CASTRO, 2015, p. 111).

Castro ainda destaca a pressão de organismos internacionais, como o


Banco Mundial, que insiste na EAD como solução para a expansão de um
ensino voltado exclusivamente ao mercado de trabalho. Pesa nesta con-
cepção o valor atribuído à Teoria do Capital Humano57 e a maximização de
lucro para o setor privado com o menor custo possível.
O mercado privado universitário, para Santos (2005), tem apresentado
desafios complexos para pensar a educação, sobretudo ao incorporar as
tecnologias da informação e da comunicação como ferramentas para a
diminuição de custos58. Em que medida a oferta de EAD pública serve de
contraponto a isso? Uma questão que insistimos em sublinhar, diz respeito
ao precário processo de inclusão dos docentes59 na cultura das TICs e, ainda
mais grave, na cibercultura. Muitas vezes, optando por uma concepção
tecnicista, as práticas de EAD enxergam as TICs como meras ferramentas
que, se bem exploradas, podem reduzir custos a partir do trabalho de
profissionais qualificados, mas contratados como mão de obra barata.

57
A Teoria do Capital Humano é uma formulação do Banco Mundial, uma construção ideológica
que, ao mesmo tempo em que responsabiliza o indivíduo pela desigualdade no acesso à educação
e por sua condição socioeconômica, modifica a concepção republicana de educação ao afetar o
caráter público, gratuito, laico e universal da educação, que passa a não ser mais compreendida
como um direito social inalienável, sendo regida pelas leis de mercado (FRIGOTTO, 2017).
58
A diminuição de custos tem a ver com o aumento da quantidade de alunos por professor, com
a produção de material didático de baixo orçamento, com a precarização do trabalho docente.
É sempre bom sublinhar que, apesar da legislação vigente, entendemos que os tutores também
são docentes do curso.
59
A docência no Consórcio Cederj funciona através de vínculos por bolsas, em diferentes catego-
rias: professor conteudista, contratado para escrever o conteúdo do curso, em especial o material
impresso; professor coordenador de disciplina, que, como diz o nome, coordena a disciplina no
Ambiente Virtual de Ensinoaprendizagem (o que inclui a coordenação dos professores tutores);
professores tutores a distância e presencial (esses últimos atuando nos pólos).

85
– (T) Quem coordena a disciplina ganha mais que eu, mas não faz ideia do
que acontece com as turmas com quem ela, supostamente, trabalha. Ela
nunca dá as caras por lá. Só define os textos, alguns bem antigos, difíceis
de debater mesmo nas salas presenciais. As atividades que ela propõe
são todas reativas. O cursista só responde – quando responde – pra não
ficar sem nota. Não vejo engajamento, não tem conversa espontânea,
troca de ideias. É um processo muito mecanizado e pouco discutido entre
a gente. A tecnologia evoluiu muito e a coordenadora não acompanha.
O material que ela não deve ser atualizado há anos. É sempre o mesmo.
Quando alguém lá da Fundação propõe revisar alguma coisa dela, ela
solta os bichos, alegando que não aceita interferência no trabalho dela.
Que trabalho? Quem trabalha naquela disciplina sou eu. Ela só recebe
a bolsa dela e, quando o bicho pega, bota a culpa nas tutoras. Mas nem
acho que a culpa seja só dela, não. O sistema funciona assim, ninguém
avalia o trabalho dela, não tem consequência. Tanto não tem que entra
ano, sai ano, ela continua lá, intocável.

Tais processos, oriundos de uma visão pouco alargada de EAD, colocam


a modalidade em tela diante de um paradoxo: ao mesmo tempo em que
anuncia o futuro, simulando um presente inovador, antenado, vale-se de
procedimentos antiquados, conservadores, muito similares aos modos
tradicionais de educação.
Se, por um lado, ela é anunciada como possibilidade de inclusão, resposta
para as desigualdades de acesso, como acreditava Darcy, por outro lado
é, muitas vezes, marcada por velhas práticas pedagógicas pouco atentas
às especificidades do estudante e, não menos importante, gerida a partir
de critérios estabelecidos pelo grande capital – o que não resolve as desi-
gualdades e, em alguma medida, pode aprofundá-las se considerarmos as
barreiras impostas pela diversidade dos letramentos ciberculturais.

Os multiletramentos críticos, (STREET, 2014; ROJO; MOURA; 2012; FER-


NANDES; CRUZ; SANTOS, 2020) são práticas contextualizadas social,
política, econômica e culturalmente, envolvendo identidade, discurso
e poder, os quais configuram e determinam a produção, interpreta-
ção e atribuição de sentidos às práticas culturais cotidianas. São redes
complexas e heterogêneas de conhecimentos, habilidades, atitudes e
valores (éticos, políticos e humanos) que convergem um conjunto de
artefatos tecnológicos, gêneros do discurso e linguagens analógicas e
digitais (verbal, sonora e visual e seus desdobramentos), circunstancia-
das pelo contexto sociohistórico e condições de produção. Essa gama
de conhecimentos se conecta a outros, formando letramentos (con-
vencionais e emergentes), que se desenvolvem em um contínum e for-
mam uma multiplicidade. (SANTOS; RIBEIRO; FERNANDES, 2021, p. 29).

86
Promessas da EAD como, por exemplo, a atenção à autonomia do estu-
dante, nem sempre podem ser cumpridas, visto que há prazos, procedi-
mentos, cobranças acadêmicas que inviabilizam a plena customização do
próprio tempo, exi-
gindo do estudante
certos enquadramen-
tos comportamentais
e tecnológicos.

– (E) Eu fiz essa opção porque me disseram que eu poderia trabalhar e


estudar. Só que, na prática, tem prazo pra tudo e ainda tem professor
que quer fazer aula síncrona pelo chat. Se você não comparece, leva
falta, perde ponto, sem direito à segunda chance. A ideia de autono-
mia do estudante é falsa pra maioria dos professores.

No Cederj, mesmo que parte da experiência se dê online, a partir do digi-


tal em rede, a alardeada autonomia dos atores conectados esbarra, por
exemplo, em um sistema de acompanhamento60 que monitorava, até

60
“O Acompanhamento Acadêmico é um projeto coordenado pela Diretoria Acadêmica com ações
em parceria com a Diretoria de Material Didático e a Diretoria de Tutoria; tem como objetivo a
supervisão sistemática do processo pedagógico e a promoção de ações integradoras entre os
setores da Fundação Cecierj com as universidades consorciadas, a fim de otimizar o atendimento
ao estudante e contribuir para sua permanência nos cursos de graduação do Consórcio Cederj
(...)” (BIELSCHOWSKY, 2018, p. 150). O projeto foi reformulado recentemente para pensar, de
forma sistemática, os processos internos de acompanhamento e avaliação das experiências de
ensinoaprendizagem. A Diretoria de Material Didático co-coordena a nova iniciativa em conjunto
com a Diretoria Acadêmica, atuando com professores tutores especializados nas análises quantita-

87
recentemente, dentre várias ações, quantidades de cliques e o tempo que
os atores gastavam online na plataforma. Tal acompanhamento, como
era de se esperar, focava no comportamento do usuário (se ele esteve
online ou off-line num determinado tempo)
e não na sua experiência concreta com/no
ambiente virtual, suas aprendizagens, desa-
fios, enfim, suas itinerâncias. No caso dos
professores tutores, com seus vínculos pre-
cários e temporários, seria pouco razoável
acreditar em altos níveis de engajamento
na plataforma, visto que as tarefas por eles
realizadas estariam mais próximas de um
job61 do que de um emprego.

No Consórcio Cederj não há uma formação específica para os professo-


res coordenadores de disciplinas, tampouco para os professores tutores,
que dê conta dos diversos aspectos da modalidade. Apesar de iniciativas
recentes para se avançar nesse sentido, a proposta de formação ainda
é centrada em aspectos tecnicistas. O processo seletivo dos professores
tutores e coordenadores de disciplina é realizado pelas universidades, por
meio de editais elaborados e geridos (administrativamente) pela Fundação
Cecierj com bolsas do governo estadual e também do sistema Universidade
Aberta do Brasil (UAB). Apesar de exigir formação específica na área, o pro-
cesso seletivo não privilegia a experiência didática no AVE, até mesmo pela
escassez de formação nesse campo. Atualmente, em setores da Fundação,
tem se pensado a oferta de qualificações em níveis médio e avançado, e
tem se consolidado o entendimento de que os professores conteudistas
não devem pensar apenas no material impresso de forma dissociada dos
recursos educacionais para o AVE. Todavia, a lógica do job permanece
devido à inação de diferentes gestões da instituição e do governo estadual.
Em um contexto de baixo engajamento, derivado de condições adversas
de trabalho, muitos profissionais responsáveis pela criação e operacio-

tivas e qualitativa das ações, a partir do monitoramento de indicadores, do aprofundamento teórico


sobre os temas e da formação continuada dos diferentes atores, visando recomendar às diretorias
e aos cursos ações para a melhoria do processo. Esse novo projeto segue como parâmetro a
compreensão da necessidade de atualização do Consórcio Cederj tendo em vista as práticas e
a reflexão acerca da educação online.
61
O termo “job”, do inglês “serviço”, “trabalho”, é usado por Sennett (2000) em oposição a ideia
de emprego. “A flexibilidade hoje traz de volta esse sentido arcano de job, na medida em que
as pessoas fazem blocos, partes de trabalho, no curso de uma vida.” (SENNETT, 2000, p. 9).

88
nalização das aulas abdicam ou negligenciam importantes processos da
produção laboral nessa modalidade de ensino. A interface entre design e
educação, por exemplo, que poderia proporcionar experiências mais signi-
ficativas para os estudantes no ambiente virtual, fica a cargo dos designers
educacionais62 que, nem sempre, contam com a cocriação dos professores
conteudistas e professores coordenadores de disciplina. A relação, que
deveria ser de criação e de troca, acaba se tornando uma relação burocrá-
tica, protocolar e, por vezes, conflituosa. Iniciativas recentes estão buscando
repensar o papel dos designers educacionais, ampliando suas atuações
para além das demandas técnicas de configuração dos recursos didáticos
para o AVE. A ideia é valorizar o potencial de cocriação dos desenhos didá-
ticos, estimulando a cooperação com os coordenadores de disciplina e com
as equipes de tutoria. É imperativo
dirimir a ideia de que os designers
educacionais colocam em risco à
autonomia docente, visto que a
parceria entre eles é frutífera tanto
para um, quanto para o outro. Se os
designers podem ajudar os docen-
tes na produção de ambiências vir-
tuais mais instigantes e eficientes,
os docentes são fundamentais para
auxiliar os designers na identifica-
ção dos processos, das potências e
dos desafios dos cotidianos habita-
dos da Educação a Distância.
O que percebemos, ao olharmos para as relações praticadas no AVE63 do
Cederj e, num cenário mais amplo, ao ouvirmos os discursos do grande
capital sobre as funções mercadológicas da EAD, é um enorme descom-
passo entre experiências pedagógicas e expectativas de gestão. Enquanto
os sistemas de acompanhamento preocupavam-se, até recentemente, com
cliques e tempos de permanência no ambiente de aula, os atores envol-

62
O trabalho do Designer Educacional (historicamente nomeado designer instrucional) é promover
as traduções necessárias para a realocação dos objetos de aprendizagem geralmente produzidos
pensando-se no ensino presencial para as ambiências virtuais. Esses profissionais planejam,
em conjunto com os docentes, o desenho didático das disciplinas, pensando-as como projetos
integrados de uma equipe multidisciplinar, em diferentes etapas.
63
No caso do Cederj, utiliza-se uma customização do sistema Moodle (AVE gratuito).

89
vidos nos cotidianos de cada curso praticavam, em suas vidas extra-AVE,
as hipertextualidades da cibercultura – nem sempre viáveis na plataforma
que, em linhas gerais, limita as itinerâncias em rede64.
Um AVE mais amigável, aberto à conexão com outras redes poderia abrigar
estratégias mais sensíveis à formação de vínculos entre os atores de cada
curso, oportunizando situações mais afeitas à autoria coletiva e à troca
de ideias. Também os professores, em um cenário de maior autonomia
e estímulo ao giro hipertextual, poderiam apropriar-se com mais autoria
do desenho didático dos seus próprios cursos, rompendo com as práticas
naturalizadas e limitadoras que, historicamente, conduzem o docente a
operar comandos previamente estabelecidos. Tais comandos tendem a
mudar quando mudam as coordenações de disciplina, por exemplo, sem
considerar o histórico de cada profissional no Consórcio, suas experiências
prévias, seus conhecimentos sobre o que deu certo e o que deu errado
no ambiente. Neste sentido, é bastante revelador o depoimento de um
interlocutor da pesquisa:

(T) É muito claro que a tutoria65 presencial acaba não funcionando como
foi pensada. A meu ver, deveria haver mais integração entre os tutores a
distância e os presenciais, com o presencial tendo um papel mais ativo do
que tirar dúvidas, fazendo atividades práticas e grupos de estudo. Isso é
especialmente negativo quando há troca da coordenação da disciplina,
pois os professores podem mudar a forma de interação conosco como
bem desejarem, isso quando estão dispostos a de fato coordenar a disci-
plina e não deixam tudo para fazermos. Para uma ação efetiva dos tuto-
res é necessária uma coordenação dedicada, o que é raro de acontecer.

64
Mariano Pimentel (2018), que durante a pandemia da Covid-19 tem realizado um potente
trabalho de circulação científica dos estudos da cibercultura, compartilha no artigo “Princípios do
desenho didático da Educação Online” suas experiências iniciais como professor do Consórcio
Cederj. Problematiza, a partir de sua itinerância como coordenador de disciplina, o perfil mas-
sivo e instrucionista da EAD ali praticada e aponta para a adoção tática de alguns princípios da
educação online. 
65
A Lei Nº 8030 de 29 de junho de 2018 (Disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/
f25edae7e64db53b032564fe005262ef/8e1b2d7bb367e462832582bf0061a037>. Acesso em:
24/10/2020) vedava a utilização do termo “tutor” para o exercício das atividades de acompanha-
mento das disciplinas ofertadas na EAD. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, em 19/04/2021,
decidiu pela inconstitucionalidade da Lei 8030/2018 do Estado do Rio de Janeiro, em resposta à
Ação direta de Inconstitucionalidade solicitada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos
de Ensino (ADIN 5997, 27/09/2018), tendo como interessados a ALERJ e o Governo do Estado
do Rio de Janeiro. Logo, o termo tutor voltou a ser utilizado. Na primeira versão deste texto usá-
vamos a denominação professor mediador para nos referirmos aos professores tutores. Professor
online talvez fizesse mais jus ao trabalho realizado. Usaremos, entretanto, a denominação legal
para identificarmos esses profissionais no tempo e no uso corrente, sem, no entanto, abrirmos
mão da palavra “professor”.

90
É salutar reconhecer que, quando falamos em tecnologias – e na EAD tec-
nologia é um conceito fundamental – não estamos nos referindo unica-
mente aos equipamentos e aos softwares, mas também às práticas, aos
usos realizados por cada praticante cultural. O debate sobre tecnologias
deve abranger também um pensamento crítico sobre as relações estabe-
lecidas entre a máquina e o humano, o que vincula a tecnologia à didática
e à cultura (PAIVA, 2010). Em outras palavras, mais que usuários de tec-
nologias, os profissionais que atuam
no Cederj deveriam ser vistos como
produtores de tecnologias, visto
que, em suas práticas cotidianas de
docência eles criam estratégias de
mediação entre os conhecimentos
e os estudantes, produzem trilhas
que não são, necessariamente, as
trilhas previstas ou indicadas pelo
sistema. Contudo, tais ações criado-
ras, características de uma docência
artesanal (NOLASCO-SILVA, 2018)66,
ficam ameaçadas em contextos de
precarização do trabalho.

O vínculo do decente com o Consórcio – por bolsa, sem direitos trabalhistas


previstos – é extremamente frágil e não colabora para o desenvolvimento
de um sentimento de pertencimento. Aqui, como dissemos acima, vale a
lógica do job (SENNETT, 2000) e não a do emprego – sem direitos trabalhis-
tas, como aposentadoria (CASTRO, 2016). Para agravar a situação, ainda
temos a falta de investimento público, derivada da alegada crise do estado
do Rio de Janeiro que, entre muitas e nocivas consequências, submete os
profissionais do Cederj aos constantes atrasos dos pagamentos67.

66
“A ideia de docência artesanal [...] devolve aos professores a sua potência enquanto traba-
lhadores – criativos que vendem sua força de trabalho sem, no entanto, abrir mão das autorias
daquele processo. Os professores, na perspectiva do artífice, são trabalhadores críticos do sistema
capitalista, defensores de uma escola insubordinada às tentativas de modelizações capitalísticas
(GUATTARI; ROLNIK, 2005), pois promotora de processos de singularização. Os manuseios
tecnológicos, nesse sentido, cumprem tarefas de desorganização e não de assentamento. As
tecnologias educacionais precisam fazer falar, pensar, questionar ordens estabelecidas, fomen-
tando novas realidades criadas a partir das palavras e dos gestos nascidos e, ao mesmo tempo,
produtores do desejo – um desejo costurado coletivamente” (NOLASCO-SILVA, 2018, p. 194).
67
Cf. NOLASCO-SILVA, L.; BIANCO, V. L. A Universidade Fluminense em tempos de calamidade
pública: reflexões baseadas nos textos de Darcy Ribeiro. Revista Interinstitucional Artes de Educar,
v. 3, p. 48-63, 2017.

91
(T) A forma de contratação dos profissionais que trabalham no Con-
sórcio é hoje um dos grandes gargalos da instituição, sem sombra
de dúvidas. É necessário concurso público para os profissionais efe-
tivos, tanto para tutores quanto para coordenadores de disciplina e
de curso. Além de impactar na qualidade do serviço oferecido aos
estudantes, a alta rotatividade atrapalha o andamento das disciplinas.
Na forma de contrato atual estamos há anos sem nenhum reajuste,
além dos constantes atrasos. Não temos pagamento de auxílio trans-
porte e alimentação, 13º, férias, licença e nenhum outro direito tra-
balhista. Sentimos que nosso trabalho não é valorizado, pois não há
investimento em nossa qualificação. Muitos polos contam com uma
infraestrutura precária, o que impacta em nosso trabalho.

Os problemas e desafios elencados até aqui, ainda que tenham sido estu-
dados tendo o Consórcio Cederj como pano de fundo, são recorrentes em
outras instituições que praticam a EAD como modalidade educacional. São
questões referentes à concepção de trabalho na EAD, concernentes a uma
cultura que associa a educação a distância à vínculos laborais precários,
temporários, subordinados à maximização dos lucros ou, no caso da EAD
pública, submetidos à redução de custos – uma vez que educação, para os
governos de princípios neoliberais, não é investimento, mas gasto.
A percepção do ensino escolar/acadêmico como antessala do mercado de
trabalho, afeta diretamente a rotina laboral do professor. Nessas circuns-
tâncias, ele deixa de ser um idealizador de itinerâncias didáticas e passa a
ser um executor de procedimentos, preocupado com o alcance de metas,
subordinado a processos de avaliação externa que podem ditar o rumo
dos financiamentos da instituição em que atua e, em alguns casos, podem
interferir em seus próprios salários – vide algumas secretarias de educação
que bonificam os professores de turmas bem avaliadas. Este professor
cumpridor de metas tem menores oportunidades de praticar uma docên-
cia artesanal, um trabalho mais afeito à práxis68, resistente à alienação69.
Um professor artífice que atua na EAD entende que a cibercultura altera
profundamente os nossos processos de formação; compreende que as
tecnologias não são neutras e que há interesses políticos e econômicos em
sua adoção nas escolas e universidades. Mas há também usos possíveis e
criativos a partir delas, há práticas de autorias e outros modos de comu-

68
É o trabalho com sentido, imerso no mundo da vida, constituidor das utopias do trabalhador.
A práxis é a ação dos instrumentos que podem modificar as estruturas sociais. (MARX, 2005).
69
A não identificação do trabalhador com o processo e com o produto do seu trabalho (MARX, 2004).

92
nicação. O artífice da EAD faz o desenho didático do AVE de sua disciplina
(em parceria com outros profissionais – como os designers educacionais,
caso existam na instituição), customiza suas aulas na interação com os
estudantes, amplia as telas, alarga os sentidos do ato de estudar. Ensina a
aprender com a máquina. Aprende a ensinar com a máquina. Sabe que a
máquina só existe porque nós existimos. Mas, como ser um professor artí-
fice da/na EAD na ausência, às vezes, das condições básicas de existência?

(P) Eu não vou trabalhar ainda mais pra inventar moda no Cederj. Eu
faço o arroz com o feijão bem-feito, sem muita firula. O material que
eu uso lá é o mesmo que eu uso nas minhas turmas presenciais, com
poucas modificações. Eu sei que poderia fazer mais, mas com essa
mixaria que eles pagam? Tô fora. Só não jogo tudo pra cima porque
essa bolsa ajuda a pagar umas contas, mas é aviltante a relação entre
o trabalho e o que se paga por ele. Por isso eu vou devagar quase
parando. Um dia eu paro de vez.

A questão da precariedade do vínculo entre os estudantes da EAD e as


universidades consorciadas também foi levantada pelos usuários de um
dos grupos netnografados:

(E) Não nos sentimos parte das Universidades às quais estamos vincu-
lados, o que se revela desde a ausência de um documento como uma
carteirinha de estudante, em muitos casos, até a falta de acesso a opor-
tunidades de bolsa de pesquisa e de iniciação científica, por exemplo.

É difícil construir na EAD um senti-


mento de comunidade, de perten-
cimento. Não só entre os estudan-
tes e a universidade, mas também
entre as pessoas de uma mesma
turma. Eles reclamam de não ter
um “lugar” para se encontrar, para
debater. Recursos educativos como os fóruns
não são percebidos como este ponto de encon-
tro, por mais que facilitem a interação. São per-
cebidos como espaçostempos protocolares e
reativos – o estudante participa por ser cobrado
a participar, porque será avaliado. No diálogo
com um professor percebemos essa questão:

93
(P) Entendo ser ainda um desafio do Consórcio a distância existente
entre os professores e os estudantes. Isso também vale para a relação
entre os polos e as Universidades, o que gera um “não pertencimento”
ao estudante. É necessário um maior reconhecimento ao estudante
do Cederj por parte das Universidades.

Há que se prestar atenção no que dizem os professores e os estudantes


da Educação a Distância. Entre a criação do Cederj e o momento atual
muitas mudanças ocorreram, sobretudo no que diz respeito às práticas
de comunicação, aos modos de acesso à informação e demais elementos
que marcam a vida na cibercultura.
Hoje, por exemplo, 97,2% dos estudantes do Cederj alegam possuir apa-
relho celular com conexão à internet e mais de 55% utilizam banda larga
com mais de 5 MB para acessar a plataforma (outros 19,6% acessam com
menos de 5MB de banda larga e, ainda, 21,9% utilizam tecnologia 3G ou
4G). Sobre o equipamento disponível para acessar a plataforma Moodle/
Cederj, 69,7% fazem uso de computador/notebook, 27,5% se valem do
celular, 1,8% utilizam o tablet e apenas 1% alega ter nenhum acesso70. Esse
estudante, cada vez mais conectado, demanda uma formação condizente
com os hábitos tecnológicos da atualidade.

(E) Há uma necessidade urgente de mais interatividade na plataforma do


Cederj, utilizando mais recursos educacionais (muitas vezes há apenas PDF
para seguirmos o curso). Vemos uma desmotivação generalizada entre os
funcionários e professores, principalmente aqueles que atendem presen-
cialmente. Não sei se isso se deve ao tipo de contrato que eles possuem
com a instituição.
No depoimento acima, destaca-se a percepção de um problema de intera-
tividade, de subutilização do potencial pedagógico (e tecnológico) da EAD
praticada no Consórcio Cederj. A EAD praticada no Cederj, ainda imersa
em princípios muito dependentes das práticas presenciais de educação,
não leva em consideração movimentos comuns da cultura contemporânea,
derivados de uma fruição tecnológica cada vez mais intensa. Enquanto
praticamos a mobilidade, a internet nas coisas, a ubiquidade, as trocas nas
redes sociais, a liberação do polo de emissão, ainda temos AVEs projetados
como repositórios de PDF, afeitos a linearidade dos trajetos de estudo,
alheios à hipertextualidade.

70
Fonte: Avaliação Institucional do Consórcio Cederj de 2019.2.

94
O que os interlocutores da pesquisa apontam é que há uma desatualização
sobre o perfil econômico-cultural do estudante do Cederj, tendo a institui-
ção trabalhado, ao longo dos anos, com a ideia de um estudante de baixa
renda, digitalmente excluído, ignorando que há, cada vez mais, pessoas
buscando uma segunda graduação ou já incluídas no mercado de trabalho.
A diversidade do corpo discente do Cederj fica clara quando sabemos que:

(E) Busquei o Cederj pensando que a EAD poderia ser útil para pessoas
como eu e outros colegas que trabalhamos, porém, a realidade não é exa-
tamente essa. As Avaliações demandam muita atenção, pois claramente
não há uma coordenação entre professores coordenadores e tutores,
não há um planejamento adequado em muitas disciplinas que dê conta
da quantidade de horas que cada um terá que se dedicar por disciplina.
O material didático impresso está constantemente defasado, apesar de
ser ainda importante, e não dialoga com a necessidade de tempo.

Esse tipo de reclamação tem aparecido, com frequência, em nossa vivên-


cia recente com o Ensino Remoto Emergencial. Os estudantes reclamam,
como contamos em outro momento,
da grande carga de leitura de tex-
tos, em formato PDF, via celular. A
ideia de um ensino não presencial,
que protegeria os corpos durante a
pandemia, também esteve acompa-
nhada de uma promessa de auto-
nomia do estudante, de uma maior
liberdade para conduzir seus estudos,
escolhendo, por exemplo, o tempo
que iria dedicar a cada disciplina. Ao
invés disso, o que se tem notado,
é a insistência de muitos docentes
em propor, semanalmente, encontros síncronos, via Zoom, no horá-
rio originalmente reservado para as aulas presenciais. Não levam em
conta a quantidade de dados necessária para acompanhar uma video-
conferência, tampouco a inexistência dos dispositivos de acesso que
ainda não foram entregues para os estudantes das classes populares.
O fato do público atendido pelo Cederj ter se modificado em termos de aqui-
sição dos meios para a conexão em rede, não implica a integração dos estu-
dantes da modalidade presencial aos territórios da cibercultura. É importante
lembrar a opção que cada um fez ao se matricular numa e noutra moda-
lidade de ensino: o estudante da EAD sabia da importância da mediação

95
tecnológica nos cursos escolhidos; o estudante do curso presencial migrado
para o Ensino Remoto foi surpreendido pela contingência da pandemia.
Mesmo com todos os problemas apresentados, apesar dos desafios em
aberto, ainda é possível afirmar que a experiência do Consórcio Cederj repre-
senta um contraponto potente à mercantilização da EAD no país, preconizada
por organismos internacionais como o Banco Mundial. Mesmo reprodu-
zindo algumas práticas do setor privado, como a desvalorização do trabalho
docente, é potente a multiplicação das universidades pelos interiores do
Estado, financiadas com dinheiro público – premissa para uma formação
assente na liberdade, na autonomia, no compromisso com a ciência e não
com os interesses de quem pode patrocinar as pesquisas.
Em tempos em que a EAD ganha destaque, sendo apontada como solução
para parte dos problemas educacionais do presente, é preciso tomar cuidado
para que ela não se torne parte do problema. A democratização do acesso
ao ensino superior é um desafio para todas as modalidades de ensino e a
EAD, devido as suas especificidades, pode contribuir para a operacionalização
desde processo. Mas antes será necessário reconhecer que o “a distância”
do nome não significa distanciamento, mas mobilidade que, se bem prati-
cada, estimula a autonomia. Autonomia, contudo, não significa isolamento
e solidão, ao contrário. É liberdade para fazer junto, em rede, em qualquer
lugar, a qualquer momento. É mais autoria, cocriação e menos comandos. É
entender o virtual como virtualidade, como o que pode vir a ser. É itinerância
hipertextual. É docência artesanal e discência conectada – com as tecnologias,
com o mundo, com o outro.

96
ENSINO REMOTO
EMERGENCIAL
ENSINO REMOTO EMERGENCIAL

Escrevemos
Escrevemos este este livro
livro emem meio
meio ao ao
turbilhão
turbilhão de notícias que foram se se
de notícias que foram
acumulando em movimentos diá-
acumulando em movimentos diários
rios de desespero, desesperança,
de desespero,
indignação e medo.desesperança,
Muito medo.
Medo de sermos
indignação e medo. contaminados,
Muito medo.
medo
Medo dede perdermos
sermos a quem
contaminados, medoama-
mos para a onda de contamina-
de perdermos a quem amamos para a
ção 71, medo de não sabermos
onda de fazer
como contaminação
aquilo, que
1 medo de não
estamos
sendo cobrados a realizar72. que
sabermos como fazer aquilo Medo
do amanhã,
estamos sendo medo
cobrados deanão termos
realizar 2.

um amanhã. Medo de não darmos


Medo do amanhã, medo de não
conta das demandas do trabalho.
termos um amanhã. Medo de não
Medo de perdermos a conta da
darmos contaque
equação das demandas do trabalho.
liga a nossa Medoao
existência de perdermos
trabalho aque conta da equação que
realizamos ou liga
preci-
a samos realizar .aoMedo.
nossa existência 73
Preocupação.
trabalho Insônia.
que realizamos Dúvidas sobre
ou precisamos realizar o3 .que fazer,
Medo.
Preocupação. Insônia. Dúvidas sobre o que fazer, como fazer, quando fazer. Devemos
fazer
71
Emalguma coisa? Devemos
24 de outubro esperar? escrevíamos
de 2020, enquanto Podemos esperar? Temos
essa parte tempo
do livro, para esperar
o Brasil 4?
contabilizava
156.565 mortes por Covid-19, 5.358.498 casos confirmados e 4.797.872 pacientes recupera-
dos, de acordo com os dados oficiais. Disponível em: <https://covid.saude.gov.br/>. Acesso em:
1 24/10/2020. Em setembro de 2021, enquanto atualizamos o capítulo, os números da Covid-19,
Em 24 de outubro de 2020, enquanto escrevíamos essa parte do livro, o Brasil contabilizava
no Brasil,
156.565 são:
mortes por586.590
Covid-19, óbitos e 20.988.702
5.358.498 casos confirmados
casos confirmados da doença,
e 4.797.872 pacientes segundodebalanço
recuperados, acordo do
consórcio
com os dadosde veículos
oficiais. de imprensa,
Disponível a partir de dados das secretarias
em: <https://covid.saude.gov.br/>. de Saúde. Em
Acesso em: 24/10/2020. Disponível
setembro em:
deencurtador.com.br/bBY89.
2021, enquanto atualizamosAcesso em os
o capítulo, 12/09/2021.
números da Covid-19, no Brasil, são: 586.590 óbitos e
72
Falamos,
20.988.702 emconfirmados
casos especial, das demandas
da doença, segundoquebalanço
estão do sendo colocadas
consórcio ao exercício
de veículos do magistério
de imprensa, a partir
dedurante
dados dasa pandemia
secretarias de e Saúde.
que, acreditamos,
Disponível em: permanecerão como desafios
encurtador.com.br/bBY89. Acessonosemtempos posteriores
12/09/2021.
2
Falamos, em especial,
ao seu desfecho. Osdas demandas que
professores da estão sendo colocadas
Educação Básica, em ao exercício do magistério
muitas cidades duranteforam
e Estados, a
pandemia
convocados,e que,desde
acreditamos,
o começo permanecerão como desafios
da quarentena, nos tempos
a traduzirem posterioressuas
(transporem?) ao seu desfecho.
aulas Os
presenciais
professores
em encontros da Educação
remotos Básica, em muitas cidades
tecnologicamente e Estados,
mediados. Noforam
Ensino convocados,
Superior, desde o começo daque
na universidade
quarentena,
nos serveade traduzirem
campo de (transporem?) suas aulas as
pesquisa, iniciamos presenciais em encontros
aulas remotas remotos
do primeiro tecnologicamente
semestre de 2020 no
mediados.
dia 9 de No Ensino Superior,
setembro do mesmo na ano,
universidade
mas nunca que nos serve dede
deixamos campo de pesquisa,
praticar – desde iniciamos as aulas
os primeiros dias da
remotas
pandemia do primeiro
– todas semestre de 2020
as outras no dia
tarefas 9 de setembrousando
acadêmicas, do mesmoas ano, mas nunca
tecnologias dedeixamos
encontro.de praticar
– 73desde os primeiros dias da pandemia – todas as outras tarefas acadêmicas, usando as tecnologias de
Temos trabalhado, a partir de Richard Sennett (2009), com a ideia do trabalho docente que
encontro.
3 desconhece, na atualidade, o tempo de descanso, uma vez que somos acionados a todo tempo
Temos trabalhado, a partir de Richard Sennett (2009), com a ideia do trabalho docente que desconhece,
napelos dispositivos
atualidade, o tempo deque nos conectam
descanso, uma vez queo tempo
somos todo. Recorrendo
acionados ao pelos
a todo tempo velhodispositivos
Marx (2004)que enossuas
definições
conectam de reino
o tempo todo.daRecorrendo
liberdadeao e de reino
velho da (2004)
Marx necessidade, compreendemos
e suas definições de reino daque essa linha
liberdade e deque
demarcaria
reino labor e
da necessidade, vida pós-expediente
compreendemos encontra-se
que essa linha cada labor
que demarcaria vez mais
e vidaesquecida,
pós-expedientesuprimida
encontra-pela
sefacilidade do contato
cada vez mais remoto
esquecida, que nos
suprimida pelacoloca numa
facilidade do espécie de prontidão
contato remoto que nos constante
coloca numa para o trabalho.
espécie de
prontidão constante para o trabalho.
4
Há uma cobrança, sobretudo nas redes sociais online, para que estejamos produtivos, proativos, dispostos
a viver e a comunicar o vivido durante a pandemia. Os discursos que circulam no ciberespaço, sobretudo
nas postagens do Instagram e do Facebook, tentam97 nos convencer a experienciar a pandemia como
espaçotempo de novas aprendizagens, de superação, de reinvenção da vida. Todavia, o luto, o medo, a
desesperança, o desespero, as condições precárias de existência das vidas que não importam, dos corpos
como fazer, quando fazer. Devemos fazer alguma coisa? Devemos esperar?
Podemos esperar? Temos tempo para esperar74? Estamos no controle?
Perdemos o controle?
Estamos no controle? Estávamos,
Perdemos o controle? antes disso
Estávamos, tudo
antes dissocomeçar, controlando
tudo começar,
alguma coisa 75
? São questões que nos constituem nos cotidianos
controlando alguma coisa 5? São questões que nos constituem nos cotidianos da vida da vida
suspensa. Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma .
suspensa. Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma6.
76

Para falarmos,
Para falarmos, maismais
detalhadamente,
detalhadamente,
acerca do Ensino Remoto,
acerca do Ensino Remoto, partiremospartiremos
de
de umauma ideia
ideia anunciada
anunciada por por Boaven-
tura de Sousa
Boaventura de Sousa Santos,
Santos, para
para quem o
vírus
quem oévírus
umé umpedagogo
pedagogo queque está está ten-
tando
tentando nos dizer alguma coisa . Ocoisa . O
nos dizer alguma 7 77

sociólogo português
sociólogo português desafia:
desafia: “o “o pro-
blema é saber se vamos escutar e
problema é saber se vamos escutar e
entender o que ele (o novo corona-
entender o que ele (o novo
vírus) está nos dizendo”878. A reflexão
coronavírus) está nos dizendo” . A
proposta pelo intelectual português
éreflexão
potente proposta pelo intelectual
e capaz de nos levar por
portuguêseé frutíferas
muitas potente e capaz de nos
paisagens sobre
levar
as por muitas
quais e frutíferas paisagens
poderíamos sobre as quais
nos debruçar em poderíamos
diálogonos debruçar
com em diálogoautores de
os nossos
referência.
com os nossosContudo, a título de
autores de referência. recorte,
Contudo, iremos
a título pensar
de recorte, as implicações
iremos pensar as dessa
pedagogia do pedagogia
implicações dessa vírus para o campo
do vírus para o da educação,
campo focando
da educação, focando nasnasações
ações institu-
cionais, políticas
institucionais, políticas eemercadológicas
mercadológicas queinstituir
que buscam buscamformasinstituir
diversas deformas
ensino diversas
de
não ensino
presencial não
– cujaspresencial
denominações–variam
cujasemdenominações variam
cada cenário – para realizar umem cada cenário
objetivo
–que
para realizar um objetivo que virou uma espécie de mantra:
virou uma espécie de mantra: “a educação não pode parar”. Para tanto, nossas “a educação
interlocutoras, nessa parte do livro, para além dos praticantespensantes alegóricos9 já

74
Há uma cobrança, sobretudo nas redes sociais online, para que estejamos produtivos, proativos,
instagramáveis, que enfrentam a pandemia na perspectiva das privações, da fome, da presença ameaçadora
dispostos
da morte.
a viver e a comunicar o vivido durante a pandemia. Os discursos que circulam no
ciberespaço,
5 sobretudo
O isolamento físico, impostonas
pelopostagens do Instagram
avanço do novo coronavírus, ejoga
do luz
Facebook, tentam
sobre os modos de nos
vida convencer a
experienciar a pandemia
construídos na fase como espaçotempo
atual do capitalismo, de novas
onde a centralidade aprendizagens,
do trabalho e seus apelos àde superação, de reinven-
produtividade
criaram
ção dauma
vida.sociedade
Todavia,do cansaço
o luto,(HAN, 2017),aexausta
o medo, na labuta de precisar
desesperança, dar conta daquilo
o desespero, que conta precárias de
as condições
para fecharmos
existência dasas contas
vidasno fimnão
que do mês. O modo operatório
importam, dos corpos do capitalismo
que pesam contemporâneo
(BUTLER, nos2000),
conduz aapontam para
viver sob a égide do desempenho cujas métricas serão sempre inalcançáveis, para que nos mantenhamos
experiências outras, para existências nem
em movimento. Não estamos no controle, há muito tempo. sempre instagramáveis, que enfrentam a pandemia
na
6 perspectiva
Verso das privações,
da canção “Paciência”, da fome, da presença ameaçadora da morte.
de Lenine.
75
7
O isolamento
Entrevista físico, imposto
de Boaventura de Sousapelo avanço
Santos. do novo
Disponível em: coronavírus, joga luz sobre
<https://bit.ly/2O0VfFQ>. Acessoos em:modos de vida
13/06/2020. na fase atual do capitalismo, onde a centralidade do trabalho e seus apelos à produti-
construídos
8
Tradução nossa da entrevista realizada em espanhol.
vidade
9 criaram uma sociedade do cansaço (HAN, 2017), exausta na labuta de precisar dar conta
- Os praticantespensantes alegóricos passam por um processo de edição similar ao que acontece com os
daquilo
autores queque conta
entram para fecharmos
em nossos as contas
textos como citação nomodo
direta. O fim como
do mês. O modo
inserimos operatório
a citação do capitalismo
cria para ela
contemporâneo nos conduz
um novo contexto, diferente daquelea que
viver sobnoalivro
existe égide do desempenho
original cujas métricas
de onde ela foi pinçada. serão
Esse trabalho de sempre inal-
cançáveis, para que
edição é um princípio nos mantenhamos
de qualquer emtão
pesquisa. Assumir movimento.
descaradamenteNão queestamos no sofrem
as narrativas controle, há muito tempo.
ajustes,
queVerso
76 são alocadas em tal “Paciência”,
da canção lugar e não emde outro, por decisão do autor, é uma escolha ética e estética do
Lenine.
77
Entrevista de Boaventura de Sousa Santos. Disponível em: <https://bit.ly/2O0VfFQ>. Acesso
em: 13/06/2020.
78
Tradução nossa da entrevista realizada em espanhol.

98
não pode parar”. Para tanto, nossas interlocutoras, nessa parte do livro,
para além dos praticantespensantes alegóricos79 já apresentados, serão as
reverberações de falas docentes acerca da condução político-institucional
do ensino remoto praticado no Estado do Rio de Janeiro, no âmbito da
Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc). Até quando
o corpo pede um pouco mais de alma80.
Traremos, para ilustrar o debate, falas de professores distribuídas pelo
ciberespaço, rastros de conversas tecidas online, que capturam (com as
nossas redes) expectativas, tensões e táticas docentes frente aos proces-
sos de digitalização do ensino em tempos de pandemia. Tais narrativas
foram cartografadas, entre março e junho de 2020, em perfis e grupos do
Facebook, em especial o “Professores do Estado RJ”.81
Antes de seguirmos, contudo, precisamos dizer que partilhamos com Alves
(2015) o entendimento de que a educação se dá em rede, sendo as escolas e
as universidades dois lócus privilegiados da nossa formação (fundamentais,
mas não os únicos). Aprendemos e ensinamos em múltiplos e complexos
espaçostempos, em processos contínuos de trocas, de usos (CERTEAU,
1994) e de bricolagens tecnológicas (NOLASCO-SILVA, 2019)82. Por isso,
acreditamos ser redundante dizer que a educação não pode parar porque,
de fato, ela não para nunca; a educação não cessa mesmo quando esta-
mos de quarentena. Porque a vida não para enquanto o tempo acelera e
pede pressa83.
Mas qual é a razão da pressa? O que motiva o Estado, mergulhado numa
crise pandêmica sem precedentes, a buscar soluções urgentes para a con-

79
– Os praticantespensantes alegóricos passam por um processo de edição similar ao que acon-
tece com os autores que entram em nossos textos como citação direta. O modo como inserimos
a citação cria para ela um novo contexto, diferente daquele que existe no livro original de onde
ela foi pinçada. Esse trabalho de edição é um princípio de qualquer pesquisa. Assumir tão desca-
radamente que as narrativas sofrem ajustes, que são alocadas em tal lugar e não em outro, por
decisão do autor, é uma escolha ética e estética do pesquisador. (Definição que Nilda Alves deu
acerca dos praticantespensantes alegóricos, para um grupo de professoras, via Zoom).
80
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.
81
Os nomes dos docentes serão preservados uma vez que os grupos digitalmente cartografados
não são de acesso público.
82
Para desenvolver a noção de bricolagens tecnológicas, parte-se da definição de bricoleur de
Certeau (1994). Para Certeau, em meio ao consumo e ao descarte – marcas das sociedades con-
temporâneas – há pessoas que fazem outros usos dos objetos descartados ou destituídos de suas
funções. Trata-se de uma ação “desviacionista”. Esse sujeito, o bricoleur, fabrica a partir de tudo o
que consome, reapropriando-se do sistema produzido. Na antropologia, o conceito de bricolagem
tem centralidade na obra de Lévi-Strauss (1989). Trata-se da criação de objetos – ou da produção
de atos – a partir de resíduos e fragmentos dos acontecimentos, testemunhos fósseis da história
de um indivíduo ou de uma sociedade. A bricolagem, nessa perspectiva, é um fazer com as memó-
rias – físicas (ressignificação de materiais) ou simbólicas (atualização dos rituais, por exemplo).
83
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.

99
tinuidade da escolarização formal quando ainda não temos garantias para
a continuidade da vida de todo mundo? Dizemos isso porque há vidas cuja
continuidade já não era garantida antes e agora, na presença constante
da morte, valem menos ainda84.

– As palavras que eu mais


tenho ouvido dos meus cole-
gas são: desespero, choro, dor,
medo, desesperança, estresse,
cansaço, saúde mental. A pan-
demia escancarou a face de
tudo isso que já acontecia com
o professor, esse lado violento.
Doente, sem respeito, sem o
salário que deveria ter. Eu fico
me perguntando como é que a
maior categoria profissional do
país vai reagir a tudo isso.

O vírus é democrático, não faz distinção de vítimas. Mas o que acontece


depois da contaminação segue à risca o modus operandi das desigualdades
sociais. A vida é tão rara85. E raro é também o direito à vida e à Educação86.
É imperativo ter muito clara essa dimensão de uma solução que jamais será
justa se pretender ser universal87, se desconsiderar as diferentes formas

84
Para Butler (2011), o Outro, o ser detentor daquilo que é diferente de tudo que me constitui e me
assegura certa estabilidade (falsa estabilidade, claro), representa a vida precária, é a marca do
indefeso, aquele a quem desejamos (quando estamos conforme a norma) matar. Vidas precárias
são vidas que podem e/ou precisam ser subtraídas para que tenhamos certa legibilidade das
nossas existências conformadas. Falamos, pois, de corpos que desviam das normas de gêneros
e sexualidades, dos corpos pretos que vivem num país racista, dos corpos de pessoas pobres
que apontam, com suas presenças incômodas, a arbitrariedade dos modelos, dos protocolos, dos
apelos de consumo, do estabelecimento de uma única e suposta nova normalidade. Os corpos
matáveis, os que não merecem/precisariam existir no estágio atual do capitalismo, são exatamente
os corpos que não conseguem fazer parte dos acordos que têm sido feitos sob a sombra do vírus,
sobretudo no que diz respeito ao retorno da vida escolar/universitária mediada pelo digital em rede.
São os corpos que não puderam se isolar, aos quais não foi dado o direito de quarentenar. Corpos
aglomerados nos transportes públicos, condenados às calçadas, enfileirados no desemprego.
Corpos com pouco ou nenhum acesso à Internet e, portanto, com pouco ou nenhum acesso aos
ritos da formação escolar em tempos pandêmicos.
85
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.
86
Lê-se na Constituição de 1988, Art. 205. “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento
da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
87
Quando falamos em Ensino Remoto, Educação a distância e, mais especificamente, em Edu-
cação Online, compreendemos que as tecnologias e artefatos tecnoculturais presentes nos pro-

100
e níveis de acesso à informação, aos equipamentos, ao saberfazer com as
tecnologias reinantes em nosso tempo (um tempo que também não é o
mesmo para todo mundo)88.
Para onde estamos indo? Com que meios de locomoção? O que justifica,
no plano político, institucional e mercadológico – esse tripé cada vez mais
integrado – o desejo de continuidade de um tipo específico de formação
– a educação formal, realizada nas escolas e nas universidades? E mais:
quais as implicações das práticas de ensino não presenciais que, por não
atenderem às especificidades da modalidade a distância e, tampouco, se
encaixar nos princípios de uma educação online, são chamadas, sem maio-
res explicações, de “ensino remoto”?89

cessos formativos, devem ser variados e condizentes com as vivências e saberes dos sujeitos
envolvidos. Muitas tecnologias e procedimentos poderão compor as experiências de EAD, não
apenas celulares, computadores e tablets, como usualmente se pensa. Televisão, rádio, materiais
impressos, CD, DVD, jornais, revistas, jogos e uma infinidade de outros artefatos pedagogicamente
usados (CERTEAU, 1994) poderão ser incluídos nas invenções curriculares de cada professor
que, visto em ato, sempre cria autorias em meio aos encontros com as suas turmas. Professores
e professoras não são apenas usuários das tecnologias, mas também seus inventores.
88
O trabalho na modalidade home office, multiplicado por conta do isolamento social imposto
pelo novo coronavírus, precisa ser compreendido na variedade das condições de existência que
marcam o funcionamento das desigualdades no sistema capitalista. Há de se considerar que,
homens e mulheres, em suas experiências de pais, mães, cuidadores de pessoas com algum
tipo de vulnerabilidade, inseridos em classes sociais díspares, habitantes de moradias mais ou
menos adequadas à concentração, ao silêncio, à paz necessária ao exercício laboral não são
possuidores das mesmas condições de executar o trabalho remoto. Por isso, o estabelecimento
de metas, a exigência de produtividade, a imposição de um calendário são violências simbólicas
que aprofundam às desigualdades sociais. Para Bourdieu (1996, p. 16) “A violência simbólica
é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e também,
frequentemente, daqueles que a exercem na medida em que uns e outros são inconscientes de
a exercer ou a sofrer”.
89
Faremos uma síntese comparativa entre esses três conceitos a partir dos quais nosso livro se
estrutura, dialogando com uma autora de referência na área. Edméa Santos, em narrativa auto-
biográfica publicada na Revista Docência e Cibercultura (2020), visita os conceitos de Educação a
distância, Educação Online e Ensino Remoto. Para ela, a Educação a Distância (EAD) é composta
por “desenhos didáticos mais instrucionais, em que docentes orientam estudos, leituras, tiram
dúvidas de conteúdos e administram a agenda do sistema. Cada aluno faz suas tarefas, prestando
conta das atividades quase sempre individualizadas”. A Educação Online, por sua vez, deve ser
compreendida como um fenômeno da cibercultura, marcada pela comunicação todos-todos. “Sem
a presença dos alunos e docentes em processos de comunicação interativa, habitando a sala
de aula cotidianamente, não temos educação online”. É necessário que todos estejam no AVE,
“produzindo currículo online cotidianamente, juntas, criando e disputando sentidos, produzindo
conteúdos e processos de subjetivação em rede”. Na educação online, continua Santos, “forma é
conteúdo”, por isso é importante explorar as possibilidades hipermidiáticas do digital em rede, sem
cair na armadilha do instrucionismo que, há muito, marca também as salas de aula presenciais.
Já o ensino remoto, que vem ganhando força durante a pandemia, “não é EAD e muito menos
Educação Online”. Pratica uma comunicação com hora e dia marcados, em agendas que aco-
plam inúmeras disciplinas que, como é de se esperar, levam os alunos ao tédio. Santos salienta
que, embora o ensino remoto permita que “encontros afetuosos e boas dinâmicas curriculares”
aconteçam e garantam o encontro de professores e estudantes durante o isolamento social, por
outro lado, as práticas remotas “repetem modelos massivos e subutilizam os potenciais da ciber-

101
– Os gestores decidiram que essa oferta de aulas não será presencial,
mas também não pode ser educação online, nem ensino híbrido,
nem EAD. É ensino remoto. Mas o que é ensino remoto? Quais são
os princípios? Onde já existiu? Quais são as experiências de acúmulo?

Tais práticas de ensino, mediadas por tecnologias digitais da informa-


ção e da comunicação, têm sido apontadas como soluções aligeiradas a
garantir a “continuidade” dos ritos escolares e acadêmicos no decorrer da
pandemia, quase sempre ignorando a necessidade de se compreender
a heterogeneidade dos acessos e das formações imprescindíveis para o
bom funcionamento dessas “soluções”. Para muitos gestores de escolas,
secretarias e universidades, enquanto durar o isolamento físico, devería-
mos seguir os ritos oficiais da formação, de maneira remota, através de
gestos de mediação tecnológica – expressão muito utilizada ultimamente
por pessoas que não dizem, exatamente, do que se trata essa mediação.
Como mediar? O que mediar? Com quais tecnologias? Baseados em que
princípios? Para qual público? Para todos? Para alguns? Enquanto todo
mundo espera a cura do mal90?.

– O Ensino está cada vez mais remoto. Sou professor da rede estadual
do Rio de Janeiro e da rede municipal de Duque de Caxias. Quando
penso em Ensino Remoto só uma palavra me vem à cabeça: fraude.
Você sabe por que pararam de chamar as “aulas virtuais” de “Ensino
a Distância” (EaD) e passaram a chamar de “Ensino Remoto”? Porque
a EaD, por mais problemas que tenha, é uma modalidade de ensino
com regras próprias de funcionamento, planejamento e avaliação. Já
ensino remoto não é nada. É uma invenção de última hora, uma gam-
biarra. Uma definição razoável de Ensino Remoto seria “faz qualquer
coisa pela internet e chama de aula”. Tivemos que aprender a trocar
a roda do carro com ele andando. Não aprendemos. Nós professores
estamos tendo o dobro, o triplo de trabalho para preparar as aulas,
mas os resultados são próximos de zero. Muitos estudantes denun-
ciam que não estão aprendendo nada com as atividades virtuais.
Outros já jogaram a toalha e nem comentam mais. Alguns sequer têm
acesso à internet e, por consequência, às atividades. Tudo está fora
do lugar: rotinas alteradas, rendas familiares diminuídas ou zeradas,
a morte pela pandemia batendo na porta. Enquanto isso, os governos
insistem que temos que tocar violino como se nada estivesse aconte-

cultura na educação, causando tédio, desânimo e muita exaustão física e mental de professores
e alunos”. Disponível em: encurtador.com.br/buCHI. Acesso em: 27/06/2020.
90
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.

102
cendo. E lá vou eu fingir que dou aula sobre Primeira República, afinal,
“o ensino não pode parar”. Não pode? Mas parou. E agora? Os alunos
não estão aprendendo. Voltar às aulas presenciais agora é impensá-
vel. Portanto, eu só vejo uma saída para quem leva a educação a sério:
interromper o ano letivo e só voltar quando for possível uma aula
de verdade. Obviamente, Enem, outros vestibulares e etc também
deveriam ser adiados até o fim do ano letivo. “Ah, mas eu conheço
um enquanto
estudantes aluno quegrupo,
aprendeu
não uma coisa”.
é aula. “Ah,Ótimo. Tem gente
mas e quem precisaaprendendo
ou quer
o tempo todo em todos os lugares. Viva o aprendizado.
se formar no fim do ano?”. Olha, se é só uma questão de diploma, Masfaznão
o é
documento e entrega online. Não precisa enganar ninguém, vamos e
assim para os estudantes enquanto grupo, não é aula. “Ah, mas
quem
publicizar precisa ou
o fracasso. querquem
E para se formar no fim
preferir um do ano?”.ano
terceiro Olha,
dese é só uma
verdade,
questão de diploma, faz o documento e entrega online.
o governo deveria garantir que os estudantes pudessem fazê-lo assim Não precisa
enganar ninguém, vamos publicizar o fracasso. E para
que for possível. Ainda sonho que os estudantes, hoje frustrados, quem preferir
um terceiro
desanimados, ano de
possam verdade, oum
esperançar governo
futuro.deveria
Para garantir
estarmosquejuntos
os estu-
esperançando com eles, não podemos fingir que está tudo bem. Não que
dantes pudessem fazê-lo assim que for possível. Ainda sonho está.os
(Trechoestudantes,
cartografado.hojePostado
frustrados, desanimados,
em junho de 2020,possam esperançar
no perfil pessoal deum
futuro. no
um professor, Para estarmos juntos esperançando com eles, não podemos
Facebook).
fingir que está tudo bem. Não está. (Trecho cartografado. Postado
em junho de 2020, no perfil pessoal de um professor, no Facebook).
o dissemos no capítulo anterior, a Educação a Distância não se baseia, simplesmente,
nsposição deComo
modosdissemos
de aprenderensinar do presencial
no capítulo anterior, ao remoto,
a Educação mas em
a Distância traduções
não se baseia,
simplesmente, na transposição de modos de aprenderensinar do presencial
emandam conhecimentos, técnicas, reflexões teóricas advindas de uma formação
ao remoto, mas em traduções que demandam conhecimentos, técnicas,
ífica para umreflexões
novo modoteóricas advindas
de trabalhar deestudar.
e de uma formação
Trata-seespecífica para
de apostar, um novo
quando se
modo de trabalhar e
a EAD a partir dos princípios
de estudar. da
Trata-se
ação Online,de
emapostar, quando
uma nova se
cultura
pensa a EAD a partir
os permita reconstituir os laços,
dos princípios que
da Edu-
caçãocaminhos
presente outros Online, em uma
para o
nova cultura que nos
mento de permita
pertencimento,
reconstituirque
os
laços, que nos apre-
figure posições problematizando as
sente outros caminhos
quias, que nos
paraofereça opções de
o sentimento de
pertencimento,
as, de consumo, que
de fruição diante da
reconfigure posições
produzida problematizando
em movimentos de
as
hierarquias,
artilhamentos, que nos
de curtidas, de
ofereça opções de auto-
agens, de trânsitos hipertextuais,
rias, de consumo, de de
fruição
ssos outros de diante da
subjetivação vida
que não se alinham à instrução, à transmissão e à
ção tradicionais dos conhecimentos – procedimentos muito valorizados por
103 Por isso, o debate atual sobre
pções mais conservadoras da educação presencial.
produzida em movimentos de compartilhamentos, de curtidas, de remi-
xagens, de trânsitos hipertextuais, de processos outros de subjetivação
que não se alinham à instrução, à transmissão e à avaliação tradicionais
dos conhecimentos – procedimentos muito valorizados por concepções
mais conservadoras da educação presencial. Por isso, o debate atual sobre
soluções pedagógicas para a continuidade ou retorno das aulas em tempos
de pandemia, deve estar atento a esses movimentos da cibercultura, que
não são novos, mas que têm se intensificado nos últimos anos e, sobretudo,
nos últimos meses.
Movimentos que questionam os modos de fazer tradicionais da escola-
rização formal, que rompem com a comunicação um-todos, apostando
na polifonia e na liberdade das interações que são efeitos das dinâmicas
próprias da vida online. As pesquisas nos/dos/com os cotidianos com-
preendem que somos todos docentesdiscentes (ALVES, 2015) e, portanto,
a palavra deve circular entre nós, sem hierarquias, sem postos fixos de
locutor e audiência. Essa concepção já deveria ser praticada nas salas de
aula presenciais, constituídas por sujeitos que operam no tempo presente,
mas se intensifica na ambiência online que oportuniza a formação remota.
Decerto, ao falarmos da vida na cibercultura (e das práticas educativas
ciberculturais – institucionalizadas ou não) não estamos acusando a incapa-
cidade dos professores e dos estudantes de transitarem por esses artefatos
tecnoculturais baseados no digital em rede91, mas é razoável pensar que
tais ambiências demandam, entre outras coisas, poder aquisitivo, tempo
de cultivo, saberes técnicos específicos que, é sabido, estão longe de serem
universalmente acessíveis. Então, quando se fala em práticas de ensino
não presenciais (e no contexto em tela isso parece querer dizer Educação a
Distância, ainda que não assumida e, muito menos, seguindo os princípios
desta modalidade), fala-se também (ainda que nas entrelinhas) em edu-
cação excludente, em práticas de seletividade, de privilégios e, sobretudo,

91
Partimos, nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos escolares, da ideia de que professores
e estudantes são capazes de mobilizar variados artefatos tecnoculturais em suas práticas de
ensinoaprendizagem (ALVES, 2000). E essa capacidade está ligada aos usos que fazemos, coti-
dianamente, destes artefatos nos demais espaçostempos em que atuamos. A apropriação dessas
tecnologias em contextos de escolarização formal, todavia, não é feita da noite para o dia, mas em
processos, mais ou menos longos, de negociação, de bricolagens, de tentativas que, às vezes,
dão certo, outras vezes não. Nossa preocupação é com a imposição de modelos fechados de
ambientes virtuais, softwares, procedimentos padronizados que seguem a lógica, muito em voga
nas políticas educacionais dos últimos anos no Brasil, de uma base nacional comum curricular
que, entre inúmeros problemas, desconsidera as especificidades locais, a liberdade do professor
para elaborar suas aulas e toda a gama de conhecimentossignificações produzidos nos cotidianos
das escolas, sem que tenham sido registrados nos documentos oficiais.

104
de negação ao direito à Educação e à aprendizagem92. E a loucura finge
que isso tudo é normal93.
A cibercultura compõe, de fato, a cultura do tempo presente (SANTOS,
2011). Mas cultura é conceito vasto, não linear, possui muitas camadas que
acoplam espaços e tempos distintos, indo e voltando, seguindo e parando,
adotando
distintos, indo eou negando
voltando, este
seguindo ou aquele
e parando, adotandomovimento,
ou negando este sempre
ou aquele produzindo o
novo, em negociação. Nem tudo é assimilado, nem tudo
movimento, sempre produzindo o novo, em negociação. Nem tudo é assimilado, nem é integrado ainda
queé exista
tudo integradouma
aindaforte pressão
que exista do pressão
uma forte mercado, do Estado
do mercado, e das
do Estado instituições para
e das
que todos componham a vida digitalizada.
instituições para que todos componham a vida digitalizada.

Há existências sem computadores,


Há existências sem computadores, sem
sem celulares, sem tablets e outros
celulares, sem tablets e outros disposi-
dispositivos de conexão. Há pessoas
tivos
sem @,de sem conexão. Há
seguidores, sem pessoas sem @,
diários
sem
éxtimosseguidores,
25 sem
(SIBILIA, 2008), sem diários éxtimos94
(SIBILIA,
conexão 2008), com sem a conexão
internet. com a inter-
net. Representantes
Representantes da ligação perdida,
da ligação perdida,
da
da rede ocupada,
rede ocupada, das vidas
das vidas que que sequer
conheceram
sequer conheceram aainternet
internet
discada,discada, para
quem
para quem a aficha ainda
ficha ainda não não
caiu (Ecaiu (E precisa?
precisa? Será obrigatório?).
Será obrigatório?). É razoável É exigir ou
razoável exigir ou supor que no meio
supor que no meio da tragédia, da vida
da tragédia, da vida ceifada, dos leitos hospitalares em falta, do luto, da luta por
ceifada, dos leitos hospitalares em falta,
sobrevivência, do auxílio emergencial26 eternamente em análise que deixa muitos sem
assistência, as pessoas digital e ciberculturalmente excluídas 27 sejam conduzidas à
imposição, sem as devidas precauções, da formação remota?
92
Precisamos reconhecer que algumas instituições de ensino têm se preocupado em encontrar
caminhos mais democráticos de acesso às novas ambiências digitais de formação. Contudo, tal
preocupação
Não descartamosnão ou encontrará uma solução
somos contrários simples
a essa opção, e em curto prazo.
tecnologicamente mediada, Pode-se
de garantir acesso
aos meios digitais ao maior número de pessoas possível, mas não se alcançará todo mundo, por
retomada ou de continuidade da vida escolar e universitária, mas acreditamos ser
razões que são estruturais e que se arrastam por séculos de desigualdades sociais. Há quem
imperativo
defenda, ponderar sobre o modo
perversamente, comoassimetrias
que tais isso tem se dado e se dará
já existem noenquanto estivermos que a experiência
ensino presencial,
sob a pedagogia do vírus. O alerta de Boaventura de Sousa Santos (2020) é sobreem
de muitos estudantes de escolas e universidades tem sido desigual mesmo a situações de ‘nor-
malidade’. É preciso sublinhar que essa normalização funciona como estratégia para perpetuar as
necessidade
desigualdades,de revermos
apelandoas nossas
para prioridades de consumo,
a ideia inconfessa nossos modos
de seleção de produção
natural como definidora do público
merecedor de estar nos bancos escolares e acadêmicos. É imperativo,
e, sobretudo, de questionar a arrogância dos países do Norte em lidar com o vírus a partir contudo, assumir que a
exclusão digital e, principalmente, a exclusão cibercultural ampliam absurdamente o abismo já
25
existente entre estabelecidos e outsiders (ELIAS; SCOTSON, 2000) no que tange aos processos
São práticas de escritas de si marcadas pela exposição da “própria intimidade nas vitrines globais da
de escolarização.
rede”. Em fala recente, o atual Ministro da Educação, Milton Ribeiro, argumentou que
(SIBILIA, 2008, p.13).
26a “universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade”,
Referência ao auxílio emergencial de R$ 600,00, previsto na Lei nº 13.982, de 02/04/2020, regulamentada
reforçando
pelo a ideia
Decreto 10.316, de que seria
de 07/04/2020. “normal” termos uma
Cf. <https://bit.ly/2VTkLkz>. Acessoparte considerável
em: 27/06/2020. da osociedade apartada
Em 2021
governo retomou os pagamentos de 7 parcelas de auxílio emergencial, com valores que variam de R$ 150
dos processos de formação escolar e acadêmica. Disponível em:
a R$ 375, dependendo da família. Disponível em: encurtador.com.br/hALOX. Acesso em 12/09/2021.
<encurtador.com.br/rsxL3>.
Acesso em 12/09/2021.
OsVerso
2793
dadacanção
excluídos “Paciência”,
cibercultura de vivência
são aqueles cuja Lenine. na rede não existe ou, quando existe, limita-se a
gestos
94 simples,
São sem maiores
práticas produções de
de escritas autorais ou itinerânciaspela
si marcadas autônomas pelo ciberespaço.
exposição da “própria intimidade nas vitrines
globais da rede”. (SIBILIA, 2008, p.13).

105
do luto, da luta por sobrevivência, do auxílio emergencial95 eternamente
em análise que deixa muitos sem assistência, as pessoas digital e ciber-
culturalmente excluídas96 sejam conduzidas à imposição, sem as devidas
precauções, da formação remota?
Não descartamos ou somos contrários a essa opção, tecnologicamente
mediada, de retomada ou de continuidade da vida escolar e universitária,
mas acreditamos ser imperativo ponderar sobre o modo como isso tem
se dado e se dará enquanto estivermos sob a pedagogia do vírus. O alerta
de Boaventura de Sousa Santos (2020) é sobre a necessidade de revermos
as nossas prioridades de consumo, nossos modos de produção e, sobre-
tudo, de questionar a arrogância dos países do Norte em lidar com o vírus
a partir da metáfora da guerra. O vírus, para Santos, não é um inimigo
que deve ser abatido, pois necessário à natureza e aos animais. Se o novo
coronavírus chegou aos humanos foi pelo desequilíbrio que nós mesmos
causamos aos ciclos vitais da natureza. Então, se matarmos este vírus e
nada aprendermos com ele, outros vírus aparecerão como consequências
da nossa ambição, da crença no capitalismo como invencível e inesgotável.
O novo coronavírus coloca-nos, a todos, perante a falibilidade do dinheiro
e do poder da natureza. Muitos brasileiros, incluindo os integrantes do
atual governo federal, partilham dessa arrogância dos países que se con-
sideram centro e, por isso, as preocupações de Santos (2020) parecem-nos
pertinentes para pensarmos o cenário nacional.
Quando apostamos em soluções globais, fetichizando as tecnologias digi-
tais, atribuindo a elas o peso de um novo idioma universal, a responsa-
bilidade de dar conta da operacionalização do trabalho, seja ele qual for,
estamos, mais uma vez, subestimando as nossas ignorâncias diante das
complexidades do tempo presente e das culturas não redutíveis a um
modelo único.
Soluções didáticas impostas de cima para baixo, mediadas ou não pelas
tecnologias digitais da informação e da comunicação, desconsideram a

95
Referência ao auxílio emergencial de R$ 600,00, previsto na Lei nº 13.982, de 02/04/2020,
regulamentada pelo Decreto 10.316, de 07/04/2020. Cf. <https://bit.ly/2VTkLkz>. Acesso em:
27/06/2020. Em 2021 o governo retomou os pagamentos de 7 parcelas de auxílio emergencial,
com valores que variam de R$ 150 a R$ 375, dependendo da família. Disponível em: encurtador.
com.br/hALOX. Acesso em 12/09/2021.
96
Os excluídos da cibercultura são aqueles cuja vivência na rede não existe ou, quando existe,
limita-se a gestos simples, sem maiores produções autorais ou itinerâncias autônomas pelo
ciberespaço.

106
portunidade de se praticar uma ecologia dos saberes97, aprendendo a ouvir,
ver, sentir o que já praticam os professores em suas aulas, a despeito das/
em meio às adversidades, como estas que hoje enfrentamos.

- As grandes empresas
de tecnologias já estão
tentando produzir
– As grandes empresas de tecno-
certificações
logias já estão tentando produzir
destinadas a docentes
certificações
que queiram ser a docen-
destinadas
tes que queiramdaquela
embaixadores ser embaixadores
daquela marca. É o magistério tra-
marca. É o magistério
tado como mercadoria exposta nas
tratado como
plataformas educacionais, gerencia-
mercadoria exposta
das pelo Google, pela Apple e por
nas plataformas
outros grandes conglomerados do
educacionais,
Vale do Silício.
gerenciadas pelo
Google, pela Apple e
por outros grandes
conglomerados do
Vale do Silício.
– Eu não gosto da ideia de um professor influencer, do magistério prati-
- Eu não gosto da ideia de um professor influencer, do magistério
cado como uma performance de rede social. Há muitos influenciadores
praticado como uma performance de rede social. Há muitos
digitais que se acham mais competentes que os professores na hora de
influenciadores digitais que se acham mais competentes que os
ensinar alguma coisa – seja uma receita de bolo ou um ponto de vista
professores na hora de ensinar alguma coisa – seja uma receita de bolo
sobre determinado tema político que esteja na pauta do dia.
ou um ponto de vista sobre determinado tema político que esteja na
pauta do dia.
O princípio de uma aula é menos o meio que o encontro. Encontros podem
existir na presença física ou na presença que se cria na virtualidade do
digital em rede. Há presença quando há deslocamento. Deslocar-se é efeito
o de uma aula é menos o meio que o encontro. Encontros podem existir na
do que não se prevê, do acontecimento98. A docência, quando considerada
sica ou na presença queimprevisibilidade,
em sua se cria na virtualidade do digital
oportuniza em rede.deHá
momentos presença de rup-
perturbação,
tura, desarruma o que pensamos saber sobre as coisas, sobre 29 o mundo,
deslocamento. Deslocar-se é efeito do que não se prevê, do acontecimento .
a, quando considerada em sua imprevisibilidade, oportuniza momentos de
97
A ecologia dos saberes, em Santos (2006), diz da valorização da diversidade de práticas e de
o, de ruptura, desarruma o que
conhecimentos pensamos
produzidos saber
fora dos sobre as coisas,
autoproclamados sobre
centros de o mundo,
produção do saber. Ele aponta
a urgência de pensarmos uma epistemologia do Sul enquanto resistência à globalização neoli-
mesmos. É uma beral.
espécie de esvaziamento
Trata-se parahegemonia
de produzir uma contra preenchimentos outros.
do conhecimento, Por isso, a existência
reconhecendo
e a legitimidade dos saberesfazeres não restritos à ciência, produzidos localmente a partir de
batemos ensinoexperiências
remoto, não podemosporesquecer
não capturáveis a dimensão
modelos e protocolos dos corpos que,
do Norte.
98
“O acontecimento é sempre produzido por corpos que se entrechocam, se cortam ou se penetram, a
parados por umacarne
telae aou outros
espada; masdispositivos, mantém
tal efeito não é da ordem a capacidade
dos corpos, do choque,
batalha impassível, incorporal, impenetrá-
vel, que domina sua própria realização e domina sua efetuação”. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 53).
o, do match30.

107
s, ao pensar nessas saídas de mediação tecnológica, não devem desconsiderar
sobre nós mesmos. É uma espécie de esvaziamento para preenchimentos
outros. Por isso, quando debatemos ensino remoto, não podemos esque-
cer a dimensão dos corpos que, mesmo separados por uma tela ou outros
dispositivos, mantém a capacidade do choque, da conexão, do match99.
Os gestores, ao pensar nessas saídas de mediação tecnológica, não devem
desconsiderar que professores, professoras e estudantes já são usuários e
criadores de tecnologias que não coincidirão, necessariamente, com aque-
las eleitas pelo mercado como sendo as indicadas, as melhores, as que
devem ser utilizadas em contextos de salas de aula não presenciais. Será
crucial compreender como a vida se organiza na multiplicidade das classes
presenciais. Será crucial compreender como a vida se organiza na multiplicidade das
sociais, das crenças, das existências, dos cotidianos que não reconhecem
classes sociais, das crenças, das existências, dos cotidianos que não reconhecem
padronização e que não se dobram sem resistências e sem inventar solu-
padronização e que não se dobram sem resistências e sem inventar soluções próprias,
ções próprias, bricolando experiências e produzindo diferença. O mundo
bricolando experiências e produzindo diferença. O 100
vai girando cada vez mais veloz mundo . vai girando cada vez mais
veloz31.
- A minha maior
dificuldade está sendo
–conciliar
A minha maior
os textos comdificuldade
os está sendo
conciliar
cuidados que ospreciso
textostercom os cuidados que
com o meu filho, porque é
preciso
complicadoter ler com o meu filho, porque é
algo com
complicado
uma criança de ler algo com uma criança
3 anos
correndo, gritando e
de 3 anos correndo, gritando e pulando
pulando em cima de você.
em cimasou
Eu também demãe você.
de petEu também sou mãe
e é pet
de quase
e écerteza
quasequecerteza que durante
durante as aulas síncronas
as
elesaulas
apareçam.síncronas
Daí vocês eles apareçam. Daí
irão me escutar
vocês irão me separando
escutar separando bri-
briguinhas ou pedindo pra
guinhas
algum deles ou sair pedindo
de cima pra algum deles
sair de cimaMas
do computador. do meus
computador. Mas meus
gatos são uns fofos. Juro!
gatos são uns fofos. Juro!

– Exemplo de inserção de material na plataforma Google Classromm:


- Exemplo
Pessoal, semde inserção
estresse,de material
estamos na plataforma
em meio Google
a uma Classromm:
pandemia que pode ceifar
Pessoal, sem estresse, estamos em meio a uma pandemia que pode
muitos de nós
ceifar muitos e de
de nós nossos
e de alunos.
nossos alunos. VamosVamos tentar
tentar nos nos mantermos calmos
mantermos
e sãos
calmosemocionalmente.
e sãos emocionalmente. Vamos Vamos simplificar?
simplificar? Pega o currículo mínimo,
Pega o currículo
mínimo, pesquisa na internet um link referente ao assunto no Youtube,
pesquisa na einternet
por exemplo, um link
coloca disponível parareferente ao assunto
os alunos. Podemos elaborar no
um Youtube, por exem-
plo, e coloca
estudo dirigido:disponível
umas perguntasparasobre os
o quealunos. Podemos
eles assistiram, a fim deelaborar um estudo
servir como reflexão acerca do assunto. Não precisamos "gravar"
dirigido: umas perguntas sobre o que eles assistiram, a fim de servir como
video-aulas, mas podemos. O que tenho percebido aqui no grupo é uma
reflexão acerca do
grande preocupação comassunto. Não
isso, os colegas precisamos
talvez pensando que"gravar"
teremos video-aulas, mas
de estar online
podemos. em nossa
O que tenhocasa, percebido
com uma webcam, aquiao vivo, enquantoéosuma grande preocu-
no grupo
alunos estarão em casa assistindo. Não funciona assim... É
disponibilizar materiais. Eu, por exemplo, tenho e uso muito o
aplicativo ScanScanner no celular. Eu já usava em sala com os alunos
a tecnologia porque sou de Língua Portuguesa, em geral não tem livro
99
Nome dado aoparaato
todos.
de Então, colocar te
curtir quem o texto no no
curtiu quadro
Tinderé simplesmente
(aplicativoinviável.
de relacionamentos – ou tec-
Então, eu escaneava o material que iria utilizar e disponibilizava a eles
nologia de encontro).
por Bluetooth. Eles liam o texto no celular e respondiam no caderno.
100
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.
Super deu certo. Quanto às atividades para alimentar a plataforma,
posso escrever as mesmas à mão, escanear e disponibilizar na
108
plataforma. Enfim, sem consumação na alma. Vamos manter a
serotonina em alta porque estresse produz cortisol , que faz baixar a

31
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.
pação com isso, os colegas talvez pensando que teremos de estar online
em nossa casa, com uma webcam, ao vivo, enquanto os alunos estarão
em casa assistindo. Não funciona assim... É disponibilizar materiais. Eu,
por exemplo, tenho e uso muito o aplicativo ScanScanner no celular.
Eu já usava em sala com os alunos a tecnologia porque sou de Língua
Portuguesa, em geral não tem livro para todos. Então, colocar o texto
no quadro é simplesmente inviável. Então, eu escaneava o material que
iria utilizar e disponibilizava a eles por Bluetooth. Eles liam o texto no
celular e respondiam no caderno. Super deu certo. Quanto às atividades
para alimentar a plataforma, posso escrever as mesmas à mão, esca-
near e disponibilizar na plataforma. Enfim, sem consumação na alma.
Vamos manter a serotonina em alta porque estresse produz cortisol , que
faz baixar a imunidade (tudo o que não precisamos nesse momento)...
Minha tia está isolada em casa há 15 dias nos EUA, em uma cidade cuja
metade da população está infectada, no estado de Connecticut, e lá tb
estão usando essa plataforma com os alunos. Segundo ela, cada aluno
recebeu um chromebook para levar para casa.... (bem diferente daqui)
e os professores verificam as atividades realizadas pelos discentes às
sextas-feiras. (Trecho cartografado. Postado em 29 de março de 2020,
em grupo do Facebook).

Ainda na primeira semana da quarentena no Brasil, enquanto o mundo


parecia não acreditar no que estava acontecendo, iniciou-se no Estado do
Rio de Janeiro um debate a respeito das formas possíveis de continuidade
da oferta de ensino formal público enquanto perdurasse o isolamento
físico. Porque a vida pode ser, de repente, interrompida, mas o calendário
escolar, não. A gente espera do mundo e o mundo espera de nós um pouco
mais de paciência101.
O objetivo central dessas discussões – restritas aos gestores, sem con-
sulta à comunidade escolar, precisamos sublinhar – seria a manutenção
do calendário acadêmico a despeito do avanço do novo coronavírus e do
crescente número de óbitos. As soluções aventadas, nascidas da pressa e
da falta de planejamento (mas alinhadas a interesses outros que discuti-
remos adiante) giravam em torno da formação de parcerias com setores
da iniciativa privada que, de repente, sem o necessário debate público,
assumiriam a condução técnica (e, em alguns casos, didática102) da oferta
educacional no Estado.

Verso da canção “Paciência”, de Lenine.


101

A iniciativa privada, que neste caso tem na empresa Google seu principal expoente, tem
102

apresentado propostas de meios técnicos para as aulas remotas, mas também de pacotes de

109
Foi assim que a Seeduc, sob o comando do secretário Pedro Fernandes103,
formalizou parceria com a Google que, do dia pra noite, incluiu milhares
de estudantes das escolas públicas do Estado nos ambientes virtuais do
“Google Sala de Aula”. Tal movimento não foi precedido por processos de
formação específica dos docentes e discentes compulsoriamente envolvi-
dos na tal “solução”. Não se discutiu com os sujeitos dos processos edu-
cativos elementos cruciais como: desenho didático, formas de avaliação,
seleção e produção de conteúdos etc. Será que é tempo que lhe falta pra
perceber?104
Em resposta a essa decisão unilateral e intempestiva, em abril de 2020,
o Ministério Público Estadual (MP-RJ) entrou com uma ação civil pública
solicitando ao governador105 a não contabilização das aulas virtuais em
termos de carga horária necessária ao cumprimento formal do ano letivo.
A alegação do MP-RJ valeu-se de dados da própria Seeduc que atestam
que, pelo menos, 20% da rede (cerca de 150 mil estudantes) estariam em
situação de exclusão digital. Além disso, de acordo com a ação impetrada,
caberia ao Conselho Estadual de Educação (CEE) – e não ao secretário –
regulamentar as ações que dizem respeito à educação pública. Na solução
apresentada e implementada pela Seeduc o CEE teria sido ignorado.

conteúdos educacionais.
103
O então secretário foi preso, acusado de fraudar contratos. Hoje, encontra-se em liberdade.
104
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.
105
O Ex-Governador Wilson Witzel sofreu processo de impeachment na Assembleia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro por crime de responsabilidade a partir de cinco suspeitas: “Sus-
peita de superfaturamento na compra de respiradores para o combate ao coronavírus; Licitações
investigadas para a construção dos hospitais de campanha; Suposto vínculo do governador com
o empresário Mário Peixoto, preso em uma etapa da operação Lava Jato no Rio de Janeiro em
maio de 2020; Parecer do TCE sugeriu a rejeição das contas de 2019 do governo do Rio; Ato do
governo revogou a desqualificação da Organização Social (OS) Unir Saúde, supostamente ligada
a Mário Peixoto, que havia sido proibida de prestar serviços ao poder público em outubro de 2019,
em investigação do MPF, e era responsável pela administração de UPAs no estado.” O Governador
já havia sido afastado anteriormente por decisão do STJ, porém a ALERJ confirmou, por unani-
midade, o afastamento como etapa do processo de julgamento do impeachment. O governador
ficou afastado por 180 dias até a conclusão do processo, quando foi votada por um Tribunal Misto
entre juízes do Tribunal de Justiça e Deputados Estaduais, a decisão definitiva pelo Impeachment,
no dia 30 de abril de 2021. Disponível em: <encurtador.com.br/styP3>. Acesso em 12/09/2021.

110
Em resposta à ação do MP-RJ, a Seeduc
argumentou que a formação neces-
sária dos professores para atuarem
neste ambiente virtual – unilateral-
mente escolhido – estava acontecendo
via YouTube. Nessa resposta repousa
o cinismo ou a ignorância dos agentes
do Estado que desconsideram que o
acesso a qualquer ambiência compu-
tacional demanda posse de dispositivo,
de conexão e, não menos importante,
de vivência cibercultural que, vale res-
saltar, não pode se limitar à alfabeti-
zação digital, mas deve ser produzida
em meio a processos de letramentos
cibertécnicos.

– Eu sou totalmente leiga em aulas online, não sei nem por onde começar,
deveria ter uma capacitação antes para preparar quem tem dificuldades.
(Trecho cartografado. Postado em 20 de março de 2020, em grupo do
Facebook).

– Não sou de postar neste grupo. Mas, estes dias estou bad (como a gíria
diz). A primeira coisa para se trabalhar com a Educação à distância é o
professor ter a capacitação e os instrumentos para poder exercer. Muitos
professores não tem sequer um computador. Smartphones não dispõem
de todos os recursos que um computador têm. Muitos não tem acesso
à rede wi-fi. Tem colega de profissão que ainda vai em Lan house para
fazer prova, pasmem! Para um aluno cursar a EAD ele responde a um
questionário para saber se ele tem o domínio e as ferramentas (notebook,
computador, internet, etc). Porque se ele disser que sim, e no meio do
caminho dizer que ficou sem internet, sem notebook, o professsor não
irá querer saber, ele estará reprovado. Existe uma preparação ANTES do
processo pedagógico e não no caminho como a SEEDUC está fazendo.
Não sou contra a EAD. Fiz alguns cursos assim. Sou contra a forma que
a secretaria está fazendo. Ela não conhece a realidade dos professores
e seus alunos. Metade dos alunos do ensino fundamental não entraram.
Mães entram em contato comigo via menseger, instagram pedindo ajuda.
Alunos de ensino médio também.Tive que gravar um vídeo para uma
aluna ensinando como entrar na plataforma. Alunos do Ensino Médio
que não dominam as ferramentas básicas do word. E que também alguns

111
não conseguem entrar. O que serão desses que não tiveram acessibi-
lidade? As escolas estão fechadas. Como receberão este material em
suas residências? Não vão receber. Ajudo pela empatia. Não julgo quem
gosta ou não da EAD, quem está na plataforma ou não. Comparar com
uma escola particular? Sem possibilidade! Não vou entrar nesse mérito.
Ensinar exige formação, metodologia e didática e isso deve ser ANTES
de entrar em uma sala de aula quer seja presencial ou virtual. (Trecho
cartografado. Postado em 16 de abril de 2020, em grupo do Facebook).

Em outras palavras, não basta ao professor a ser formado para atuar com
as tecnologias de encontro o acesso aos meios106, mas é fundamental que
ele tenha oportunidade e tempo de aprender e praticar uma nova língua,
com
Cabe todas
frisar ainda, naas complexidades
apreciação que
dessa iniciativa um tanto um novo
apressada idioma
da Seeduc, que oapresenta enquanto o
estamos
Sindicato conhecendo.
Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe-Rio) alega que
a rede de profissionais não foi sequer ouvida no processo de escolha do “Google Sala de
Cabe frisar ainda, na apreciação dessa iniciativa um tanto apressada da
Aula”. O Sepe concorda com o posicionamento do MP-RJ no que diz respeito a não
Seeduc, que o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de
contabilização das aulas online para a composição do calendário acadêmico. Será que
Janeiro (Sepe-Rio) alega que a rede de pro-
temos esse tempo a perder?38 A quem
fissionais não foi sequer ouvida no processo
cabe decidir sobre o tempo e sobre
de escolha
aquilo que cabe nele doou“Google
o que dele Sala de Aula”. O Sepe
concorda
transborda? comAoomercado?
Ao Estado? posicionamento do MP-RJ
noinstituições
Às que diz respeito a não contabilização das
de ensino?
aulas online para a composição do calendá-
rio acadêmico. Será que temos esse tempo a
- Entrei na plataforma da EAD do
perder?
governo, A quem cabe decidir sobre o tempo
107 Classroom, só para ter
o Google
o que fazer e justificar meu magro salário,
e sobre
porque sei queaquilo que
essa merda não cabe
vai nele ou o que dele
funcionar. Nem todo mundo tem banda
transborda?
larga em casa, nem todo Aomundo
Estado? tem Ao mercado? Às ins-
sossego para estudar em casa. Então vou
tituições
lá, de ensino?
posto umas historias em quadrinho da
Turma da Mônica para o sexto ano do fundamental, poemas e contos
para os alunos do primeiro ano do Ensino Médio, sugiro filmes do
Youtube, sem esperança que sequer um terço dos alunos veja isso. Disse
–agora
Entrei nanoplataforma
há pouco grupo de whatsappdado EAD doque
CIEP xxx governo,
o secretário o Google Classroom, só
Pedro Fernandes é apenas um idiota fascinado por uma tecnologia
para terpara
inacessível o que fazer
a maioria e justificar
da população. meu magro
O incompetente acha que salário, porque sei que
moramos na Suíça. (Trecho cartografado. Postado em 6 de abril de
essa merda não vai
2020, em grupo do Facebook).
funcionar. Nem todo mundo tem banda larga em
casa, nem todo mundo tem sossego para estudar em casa. Então vou
lá, posto
A insistência em dar seguimento umas historias
ao calendário emdequadrinho
escolar por meio daoTurma
aulas remotas, sem da Mônica para o
sexto ano
debate e o preparo necessários, do fundamental,
buscando pacotes de soluções poemas
vendidos no emercado,
contos para os alunos do pri-
meiro
ignorando as obviedades ano– do
estatísticas sejamEnsino Médio,sobre
as que informam sugiro filmes
o avanço do Youtube, sem esperança
da Covid-
19 no país, sejam as que sequer um terço dos alunos veja camadas
que lançam luz à exclusão digital e cibercultural das isso. Disse agora há pouco no
populares – encontragrupo
eco em de doiswhatsapp do CIEP xxxdeque
movimentos complementares: um o secretário
lado, o Pedro Fernandes
é apenas um idiota fascinado por uma tecnologia inacessível para a
negacionismo da ciência e de todo conhecimento que conteste visões de mundo
comprovadamente absurdas, mas úteis aos grupos que ascenderam ao poder no Brasil,
como a defesa da Terra plana, para citar apenas um exemplo 39 ; de outro, a ânsia do

38
A Seeduc comprometeu-se com a distribuição, para professores e demais profissionais da rede,
106
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.
de
39 700 mil
Na confusão chips de
da pandemia, dados
enquanto uns gratuitos para
lutam pela vida acesso
e outros duvidam à
da Internet.
presença ameaçadora da
morte,Verso da canção “Paciência”, de Lenine.
107 emergem discursos tresloucados que colocam em dúvida a letalidade do vírus e exigem que a vida
em sociedade siga uma normalidade produzida por idas ao shopping, ao salão de beleza e à escola. Os
apelos da ciência e dos profissionais de saúde para que fiquemos em casa, cumprindo à risca o isolamento

112
maioria da população. O incompetente acha que moramos na Suíça.
(Trecho cartografado. Postado em 6 de abril de 2020, em grupo do
Facebook).

A insistência em dar seguimento ao calendário escolar por meio de aulas


remotas, sem o debate e o preparo necessários, buscando pacotes de solu-
ções vendidos no mercado, ignorando as obviedades estatísticas – sejam as
que informam sobre o avanço da Covid-19 no país, sejam as que lançam luz
à exclusão digital e cibercultural das camadas populares – encontra eco em
dois movimentos complementares: de um lado, o negacionismo da ciência
e de todo conhecimento que conteste visões de mundo comprovadamente
absurdas, mas úteis aos grupos que ascenderam ao poder no Brasil, como
a defesa da Terra plana, para citar apenas um exemplo108; de outro, a ânsia
do mercado por lucros patrocinados pelo erário e as insistentes recomen-
dações do Banco Mundial para a transição gradual do ensino presencial à
Educação a distância109.

– A EAD como ferramenta complementar já deveria estar implemen-


tada na rede pública há anos como está na rede privada, mas até então
não houve o menor interesse institucional nesse sentido. Na minha opi-
nião humilde, o funcionamento da educação pública neste momento
está longe de ser uma prioridade. A saúde da população pobre, nossa
clientela, está desprovida dos recursos mínimos de proteção e manu-
tenção contra esta doença. Não se leciona para mortos. E nesse con-
texto, a implantação improvisada e precipitada de um sistema de
EAD ao meu ver se apresenta como uma perda de tempo, energia e
dinheiro com fins eleitoreiros, e ainda usando como "cabo eleitoral"
a classe docente: ingênua, em parte obtusa, já desgastada de anos de
desprestígio, fragilizada pelos fatos atuais e agora ainda pressionada

108
Na confusão da pandemia, enquanto uns lutam pela vida e outros duvidam da presença amea-
çadora da morte, emergem discursos tresloucados que colocam em dúvida a letalidade do vírus e
exigem que a vida em sociedade siga uma normalidade produzida por idas ao shopping, ao salão
de beleza e à escola. Os apelos da ciência e dos profissionais de saúde para que fiquemos em
casa, cumprindo à risca o isolamento físico, não convencem à horda de fanáticos que, não por
acaso, vem há tempos propagando uma ideia de escola voltada à instrução dogmática, contrária
ao conhecimento científico que conteste as certezas do campo moral e/ou religioso. Para muitas
famílias o ensino remoto pode ser uma opção mais viável de controle, uma vez que já pleiteavam
a possibilidade da educação domiciliar, enquanto hasteavam a bandeira do Escola “sem” Partido.
109
O Banco Mundial, em relatório de 2002, sugere que os estados não aumentem o investimento
público nas universidades, reduzindo o custo por estudante e substituindo, gradativamente, o
ensino público pelo ensino privado (SANTOS, 2005). O mercado privado universitário, para Santos
(2005), tem apresentado desafios complexos para pensar a educação, sobretudo ao incorporar
as tecnologias da informação e da comunicação como ferramentas para a diminuição de custos.

113
e moralmente assediada pelo poder público. Paz e bem. (Trecho car-
tografado. Postado em 4 de abril de 2020, em grupo do Facebook).

– Na pandemia, muito dinheiro sem licitação estará jorrando para


as empresas, muito mais, do que para as pessoas físicas, que movi-
mentam a economia real. O uso da EAD sem transparência, sem
discussão com a comunidade escolar, sem saber se vai alcançar os
alunos, muitos sem recursos, assim como os professores é um desses
casos. Acredito na EAD, apenas para lugares ou situações onde não
há acesso presencial de professores. É o caso da pandemia, talvez,
mas esse aspecto emergencial não prescinde de uma ampla discussão
com os profissionais de educação e as entidades que os representam,
para evitar o risco de oportunismos e não atingir a quem realmente
interessa que são os alunos. (Trecho cartografado. Postado em março
de 2020, em grupo do Facebook).

A pandemia criou o cenário oportuno para o alcance de objetivos postos há


muito tempo: a intensificação de um modelo de sociedade comprometido
com a redução do Estado e o estabelecimento de práticas educativas mais
afeitas ao controle, menos dispendiosas e comprometidas, em teoria, com
uma formação técnica voltada ao mercado de trabalho. A oferta educa-
cional mediada por dispositivos e softwares que armazenam dados, que
deixam rastros e que podem ser acessados por gestores e forças políticas
que, nos últimos tempos, têm se dedicado a maldizer as escolas e os pro-
fessores, tentando emplacar um modelo educacional pautado na mordaça
e na vigilância, cai feito uma luva para os anseios de controle e de difusão
de certa visão distorcida do mundo.
Se o projeto Escola “sem” Partido já era uma ameaça ao ensino presencial
laico, comprometido com a diferença e ancorado na autonomia docente,
imaginemos o que poderá acontecer com a oficialização da substituição
– esperamos que temporária – do ensino presencial para as práticas edu-
cativas mediadas exclusivamente por tecnologias de encontro. Nas últimas
eleições presidenciais a questão da EAD para a Educação Básica estava na
pauta do programa que saiu vitorioso. A proposição do então candidato
Jair Bolsonaro alegava redução de custos, mas também maior autonomia
dos pais na educação dos filhos, sem a participação – por ele considerada
nociva – da escola e dos professores.

– Conversei muito sobre o ensino a distância. Me disseram que ajuda


a combater o marxismo. Você pode fazer ensino a distância, você
ajuda a baratear. E nesse dia talvez seja integral. (...) No fundamental,

114
médio, até o universitário. Todos podem ser a distância, depende da
disciplina. Fisicamente em época de prova ou aula prática.110

– Existe um movimento crescendo por aqui, principalmente no dis-


curso dos políticos, que é a implantação da escola cívico-militar. E
pra isso acontecer eles precisam precarizar, deteriorar, fragilizar a
imagem da escola. Eles querem mostrar pras famílias a imagem de
uma escola que maltrata os estudantes, que não sabe ensinar, que
não dá segurança. Eles querem dominar as famílias, controlar todo
mundo. E não é de uma hora pra outra. Isso tá vindo no rastro do
Escola “sem” partido e, por mais absurdo que pareça, eles têm a
adesão de uma grande parte da população.

– E outro caminho que eles estão apontando também é o do homes-


chooling – a escola em casa. Só que isso na classe média tem pouca
adesão porque os pais precisam trabalhar, querem sair pra fazer suas
coisas e não dão conta de estudar com os filhos em casa.

Ainda que não esteja em nosso recorte geográfico, consideramos opor-


tuno citar brevemente um movimento de parceria público-privada firmada,
na pandemia, entre São Paulo, Paraná, Amazonas e Pará com uma das
empresas atuantes da campanha de Jair Bolsonaro111. O objetivo dessa
parceria seria viabilizar o ensino remoto nesses Estados para 7,7 milhões
de alunos e professores. O conjunto de aplicativos oferecidos pela empresa,
contudo, tem gerado uma série de reclamações dos usuários: não funciona
em celulares mais antigos, apresenta deficiências de som e imagem e ainda
armazena os dados dos usuários, tornando-os potencialmente acessíveis
e disponíveis às transações ilegais. Além disso, um dos apps disponíveis
na IP.TV – a TV Bolsonaro – coloca os estudantes à mercê de mentiras e
teorias da conspiração bolsonaristas.

– Quem frequenta o canal encontra um cardápio ininterrupto de pro-


gramas com discursos, propagandas do governo e depoimentos de

110
Fala do então candidato Jair Bolsonaro publicada na reportagem de O Globo, sob o título:
“Bolsonaro defende educação a distancia desde o ensino fundamental”. Disponível em: <https://
glo.bo/38CS40C>. Acesso em: 27/06/2020.
111
Trata-se da IP.TV que, de acordo com reportagem do portal The Intercept, foi a idealizadora
do “Mano, um aplicativo de streaming de vídeos criado em 2018 para que a campanha de Jair
Bolsonaro a presidente pudesse driblar os vetos de redes sociais a notícias falsas”. Disponível
em: <https://bit.ly/2O3Jrmr>. Acesso em: 17/06/2020.

115
usuários que reproduzem notícias falsas e fazem apologia ao uso de
armas e à ditadura militar. [...] A TV
Bolsonaro está no menu oferecido a
estudantes do Amazonas e do Pará
que têm entre quatro e 17 anos de
idade, ao lado de vídeos das aulas da
rede de ensino público. Para terem
acesso ao conteúdo didático, eles
precisam baixar e usar o aplicativo
da IP.TV, em que são bombardeados
pelos conteúdos bolsonaristas.112

O exemplo da IP.TV serve de alerta para que nos mantenhamos atentos


frente às decisões emergenciais de gestores e políticos que, nos tempos
que correm, assumem para si a tarefa de decidir a forma como daremos
as nossas aulas. Sabemos que tais tentativas de controle, de interferência
nos currículos113, o desejo de pautar conteúdos e procedimentos não são
novidades inventadas pela mediação tecnológica, mas por meio desses
artefatos poderão ser potencializados e rastreados com vistas a punições
e perseguições aos professores e também aos estudantes.
Por outro lado, reconhecemos a capacidade de invenção, de produção de
outros possíveis que marcam as vivências dos docentesdiscentes que, como
diz Certeau (1994), operam com táticas, golpe a golpe, como convém ao
fraco que aguarda, vigilante, as brechas do poder proprietário para, então,
caçar, criando surpresas ali, onde ninguém as espera. Como um vírus que
contamina corpos e mentes, suspende o ar e, de repente, muda tudo, vira
o mundo do avesso, desinventa a calmaria mesmo quando tudo pede um
pouco mais de calma114.

– Eu nunca tinha pensado em fazer faculdade, muito menos uma facul-


dade pública. Porém, no começo da pandemia, acabei sendo demitida

112
Disponível em: <https://bit.ly/2O3Jrmr>. Acesso em: 17/06/2020.
113
Currículos, conforme compreendemos nas pesquisas nos/com os cotidianos, são espaçostem-
pos de encontros entre diferenças, de reconhecimento e estranhamento, de escrituras sobrepostas,
práticas negociadas, bricoladas e abertas à invenção, às contingências e às oportunidades. São
atos coletivos, criados cotidianamente nas escolas, mesmo que em sua origem encontremos arbi-
trariedades políticas e teóricas e tentativas de controle. Currículos são declarações de intenções
institucionais, produtos de políticas públicas e decisões administrativas. Mas são ainda derivações
de corpos, mimeses de gestos, produção de desejos, inventividades e resistências daqueles
que habitam os temposespaços escolares, com suas presenças – físicas e virtuais -, ausências,
temporalidades, astúcias, confrontos, enfim, com aquilo que não tem governo, nem nunca terá.
114
Verso da canção “Paciência”, de Lenine.

116
e, pouco depois, me separei. Com isso, acabei voltando para a casa dos
meus pais e meu irmão – que se formou aqui na Uerj, em pedagogia –
acabou me inscrevendo no vestibular. Vocês não têm noção da alegria
e da emoção que eu sinto ao falar que consegui entrar para a Uerj. Eu
terminei o meu ensino médio com 30 anos, precisando conciliar família,
filhos pequenos, trabalho, estudos. Não vou fácil, mas conseguimos. Digo
conseguimos, no plural, por-
que entrei para a faculdade
junto com a minha filha. A
alegria aqui em casa foi em
dose dupla: ela também vai
cursar Pedagogia na Uerj.
Imaginem como o coração
dessa mãe coruja ficou!
Quase explodiu de tanta
felicidade.

Narrar a pandemia, apesar da profusão de vozes que agonizam súplicas


inaudíveis, estilhaça a máscara do silêncio115. Sensibilizar a escuta, organizar
as ideias deixando-se contagiar (DELEUZE; PARNET, 1998) pelas histórias
do outro, amplia o nosso repertório de ciências, pois toda arte de fazer a
vida – apesar do que a vida tem feito da gente – é também uma arte de
pensar a vida, de produzir conhecimentossignificações no miudinho dos
cotidianos, no comezinho das existências. “Se a própria arte de dizer é uma
arte de fazer e uma arte de pensar, pode ser ao mesmo tempo prática e
teoria dessa arte”. (CERTEAU, 2012, p. 140). Narrar a pandemia estilhaça
a máscara do silêncio.
Contar o vivido (ou anunciar o imaginado) é um gesto firmado contra o
risco de uma história única (ADICHIE, 2018). Se a gente não conta a vida da
gente, vem outro autor e conta o que deixamos no canto de algum silêncio
dorminhoco. Por isso, para não deixar a palavra dormir, nosso livro ras-
cunha histórias que ouvimos e lemos e vivemos e sentimos na pandemia,
na pluralidade das telas do Ensino Remoto Emergencial, em salas de aula
online praticadas por estudantes da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Narrar a pandemia estilhaça a máscara do silêncio.
A costura do livro foi feita por meio da metodologia dos praticantespen-
santes alegóricos (NOLASCO-SILVA, 2019) – uma reunião de falas, de his-
tórias, pertencentes a pessoas diversas (interlocutoras do nosso campo de

115
Referência à conhecida frase de Conceição Evaristo.

117
pesquisa), mixadas na ilha de edição dos pesquisadores que se aceitam
sujeitos do campo pesquisado116. Aqui, quem falou importa menos do que
aquilo que foi falado. As narrativas emendadas exerceram uma função
informante, deram vida à personagens conceituais (ALVES, 2010) que habi-
tam textos para fazer dançar os pensamentos. Narrar a pandemia estilhaça
a máscara do silêncio.
Existimos em rede (ALVES, 2015), nos educamos em ininterruptos processos
de subjetivação (NOLASCO-SILVA, 2019), em palcos diversos, em conversas
que nunca terminam e que marcam a provisoriedade das nossas ideias.
Afinal, a conversa é “O lugar onde os sujeitos que se assumem como narra-
dores compartilham experiências”. É onde encontramos “A necessidade de
nos tornarmos senhoras de nossa palavra, de nos enunciarmos e anunciar-
mos, de nos tornarmos sujeitos na pronúncia do mundo, do nosso mundo”.
Porque as “[...] Conversas são feitas de fragmentos de pensamento, de
sentimentos, ideias ainda não tão bem-acabadas, impressões, memórias,
dúvidas. Assumir a conversa como metodologia é assumir que podemos
aprender com as nossas frases inconclusas, com os milhares de fragmentos
que nos constituem e atravessam nossas práticas” (SERPA, 2010)117. Narrar
a pandemia estilhaça a máscara do silêncio.
Nos quadradinhos das interfaces de vídeo conferência, nos textos, áudios e
imagens dos mensageiros instantâneos, nos fóruns e nos chats dos Ambien-
tes Virtuais de ‘Ensinoaprendizagem’ (AVE), nos e-mails ou nas mensagens
diretas de uma rede social, tivemos encontros de intensidades diversas,
conversas que viraram música118, uma vez que a arte existe porque a vida
não basta119. Narrar a pandemia estilhaça a máscara do silêncio.

A criança me disse: – Tia, eu tô com medo. – Medo de quê?, perguntei. –


Medo que a minha mãe morra de Covid. Eu queria chorar, mas segurei.
Disse pra ela que tudo ia ficar bem de novo, que vai melhorar, que é
só um tempo ruim120. Ela disse que não conseguia mais dormir, que a
casa estava toda bagunçada, que ela sentia dor. Eu perguntei: – Você
tá sentindo dor aonde? – Dor de sofrimento. Eu tô sofrendo de amor pela
minha mãe, tia. Ela tosse muito e não sente o gosto da comida. Ela tosse

116
Pesquisar com os cotidianos é produzir histórias numa ilha de edição (NOLASCO-SILVA; REIS, 2021).
117
Disponível em: https://url.gratis/KNULFn. Acesso em: 04/08/21.
118
As canções, compostas a partir de narrativas de praticantespensantes alegóricos, são de autoria
de Leonardo Nolasco-Silva, Juliana Soh e Renato Badeco.
119
Referência à frase de Ferreira Gullar
120
O hiperlink fará o mesmo caminho do QR Code.

118
mais na hora de dormir e ninguém mais dorme por causa do barulho.
O que se faz numa situação dessa? Como que eu vou dizer praquela
criança dormir se eu mesma não durmo? Vou falar pra ela mandar a
tristeza embora quando a tristeza também tá aqui comigo?

A morte tem sido tema recorrente nas aulas remotas. A percepção da fini-
tude que a pandemia nos oferece produz relatos que vão compondo uma
espécie de coro. As vozes se somam, as histórias se cruzam. Cada estudante
e professor têm histórias pessoais de morte para contar. E todas as his-
tórias parecem ser a mesma. O luto da pandemia é uma dor de multidão.

Eu perdi o meu filho pra Covid, professor. Tá muito difícil continuar,


mas ele queria tanto que eu fizesse uma faculdade [...]. Parece que
eu tô sonhando, que nada disso pode ser verdade. Eu espanto de
madrugada e acho que é ele chegando em casa121. Eu escuto a porta
abrir, levanto, vou até o quarto dele, cheiro o travesseiro dele. O
cheiro dele tá lá ainda, parece que ele acabou de sair de casa. Eu
fico rindo achando que ele voltou de uma viagem, sei lá, que vai me
contar como era lá, do outro lado, se tava chovendo, se tava calor.
Aí ele reclama do cansaço, diz que tá com falta de ar e eu mando ele
deitar pra dormir um pouco, pra descansar. Eu faço a cama dele todo
dia, estico bem o lençol do jeito que ele gosta. Deixo uma coberta
dobrada em cima da cadeira, porque ele sente frio de madrugada.
A casa tá uma bagunça, mas o quarto dele tá sempre arrumado. O
resto não importa, eu não tenho mais gosto. Desculpa, professor, eu
me perdi no que queria falar. [...] Ah, eu ia dizer que sonhei com o
meu filho essa noite e contei pra ele das aulas. Ele ficou me olhando,
parecia feliz. Mas eu fui abraçar e ele sumiu. Entrou uma luz bonita
pela janela, de alvorada. Eu fui atrás dele, quase encostei nele, pro-
fessor. Deitei na cama dele, falei pra ele vir deitar comigo que eu não
ia sair dali, pra ele não ficar com medo.

Nas aulas de Tecnologias e Educação122 os estudantes são convidados a


narrar, por meio de alguma mídia – digital ou não – os seus cotidianos no
Ensino Remoto. Produzem, portanto, ao longo do curso, um diário das
aprendizagens, das leituras, das conversas, dos encontros e de tudo aquilo

O hiperlink fará o mesmo caminho do QR Code.


121

122
Disciplina ministrada por Leonardo Nolasco-Silva, para turmas de primeiro período do curso
de Pedagogia da Uerj, campus Maracanã. A partir desse momento, peço licença ao meu coautor
para assumir, temporariamente, a primeira pessoa na escrita deste livro.

119
que compõe a sua vida na interface com as tecnologias usadas na formação
universitária. Esses diários podem ser compartilhados com os colegas ou
não, já que algumas pessoas não se sentem à vontade para publicizar suas
produções. De vez em quando, eu recebo no meu WhatsApp narrativas
como a dessa estudante, cujo rosto eu nunca vi, pois ela não tem foto no
perfil do mensageiro e nem no AVE do curso. A narrativa sobre o filho
morto, entretanto, me fez duvidar da minha capacidade de gerenciar esse
tipo de atividade, pois demorei alguns dias para retornar a mensagem dela.
Todas as vezes que tentei escrever ou gravar um áudio, chorei e desisti. Eu
queria ajudá-la de algum modo, mas estava tão fragilizado que tive medo
de piorar a situação. Fiz uma música, em parceria com Renato Badeco123,
e mandei pra ela quando ficou pronta.

Eu já ouvi umas dez vezes, professor. E não paro de chorar. É a minha


vida que tá nessa música linda, que homenagem linda o senhor fez
pro meu filho, professor. Sua mãe deve ser muito orgulhosa de ter
um filho assim, tão sensível e tão talentoso. Dê muito amor pra ela
porque mãe sofre demais quando o filho tá longe. Vocês saem de
casa, crescem, vão construir a vida longe da gente, mas a ferida, pra
quem fica, não cicatriza nunca. Quebra uma coisa dentro da gente que
não dá pra consertar124. Filho não tinha que sair de perto da mãe, não
tinha que ficar vagando pelo mundo, perdido por aí, sem um norte.
Quem fica é que sente, que se afunda na lama da saudade. Quem vai
embora não quer olhar pra trás, pra não se arrepender de ter ido. O
senhor saiu de casa com quantos anos?

Não consegui responder à pergunta da estudante sem antes fazer outra


música. Eu saí de casa muito cedo, mudei de cidade e a última vez que vi
a minha família completa foi no Natal de 2019. Na pandemia, para a segu-
rança deles e minha, optei por não viajar ao encontro deles. Já são quase

123
Meus parceiros nessas canções não sabiam das narrativas de praticantespensantes alegóri-
cos. Eles não são do meio acadêmico e achei que abrir o jogo, sem saber muito bem o que eu
mesmo queria com isso, poderia tornar o processo de composição muito confuso. Como estava,
naquele momento, produzindo uma websérie sobre a vida na pandemia mediada pelas tecnolo-
gias de encontro (também escrita a partir de relatos de praticantespensantes alegóricos), usei o
pretexto da demanda por uma trilha sonora para propor as canções. Houve situações em que as
letras partiram deles, inspirados pelo roteiro da websérie. Quando chegavam até mim, eu abria
meu diário de campo e selecionava frases que tinham potencial para virar versos. Mais tarde,
no semestre seguinte, com uma nova turma, esses relatos que se tornaram cenas ficcionais e
músicas, serviram de recursos didáticos para disparar os temas da disciplina.
124
O hiperlink fará o mesmo caminho do QR Code.

120
dois anos sem abraçá-los, sem sentir o cheiro deles, sem almoçar ou jantar
com eles. O trabalho, às vezes, me distrai e eu não penso na saudade que
sinto de casa. Mas em outras, como nessa troca de mensagens, eu per-
cebo o quanto a pandemia tem minado as minhas forças. Entre uma aula
e outra eu choro. E lembro que minha mãe faleceu em 2010 (sem nunca
ter superado a minha mudança pro Rio de Janeiro), que meu pai fez 70
anos em 2020 e eu não estava lá, que eu passei meu último aniversário
sozinho, dando aula síncrona, sem que ninguém na sala remota soubesse e
que passarei o aniversário deste ano sozinho também, talvez trabalhando,
esperando que todos tomem a segunda dose da vacina para, quem sabe,
no Natal, a gente poder se abraçar de novo. Enquanto isso, narrar a pan-
demia estilhaça a máscara do silêncio.

Porque o silêncio é difícil demais


para quem perdeu alguém na
pandemia125. Valter Francesco
Lo Bianco (1958 – 2021) tinha
o dom de fazer amigos, contar
histórias e encantar as pessoas.
Um pai, marido e amigo que
era gentil, trabalhador e dono
de um coração de ouro. Val-
ter tinha sempre uma palavra
de amor e de esperança para
compartilhar e, além de con-
versador, gostava de cozinhar
e comer uma boa massa, de
cuidar dos seus bichos de estimação e de ajudar o próximo. Era tricolor
carioca e curtia assistir os jogos de futebol do seu Fluminense, sobretudo no
estádio. Aos finais de semana, quando não estava passeando com a famí-
lia, costumava jogar uma pelada. Comerciante boa-praça, estava sempre
conversando e alegrando os demais. Dedicou a vida ao trabalho e, durante
a pandemia, retomou seu amor por filmes, séries, músicas e noticiários.
Sempre foi antenado com a situação do país, do mundo... E sonhava com
uma realidade melhor para todos. Assim como a Itália, de onde vieram suas

125
Agora sou eu, Vittorio Lo Bianco, quem assume a primeira pessoa.

121
raízes, Valter amava o Brasil, em especial o Rio de Janeiro, onde nasceu
e viveu. Ele era bastante popular no Largo da Carioca e no centro do Rio.
Ele estará para sempre nos corações de quem o conheceu. Meu pai, que
o senhor esteja com Deus e que olhe por nós. Jamais iremos esquecê-lo.
Valter nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu em Duque de Caxias (RJ), aos
62 anos, vítima do novo coronavírus126.

E nós, que começamos a escrever esse livro no início do pesadelo, sem


imaginarmos o tanto de perdas e de dores que estavam por vir, chegamos
ao fim dessa escrita preenchidos de vazios e de saudade, mas também de
coragem e de vontade de recomeçar a vida – essa coisa tão frágil que nos
escapa todo dia e que também nos enlaça nalgum sentido de comunhão,
de coletividade, de bem comum. Esperamos que as vozes aqui reunidas,
costuradas, contagiadas por nossas redes sejam ‘lidasouvidassentidas’.
Esperamos que esses pensamentos e esses afetos circulem e falem da
ciência praticada na dor, na esperança, dentro de uma universidade pública
arquitetonicamente fechada, mas aberta em gestos cotidianos de inventar
salas de aula, de conversar via tecnologias de encontro e de esperançar
em meio ao luto tornado luta. Que Chico Buarque esteja certo mais uma
vez: “Apesar de você/amanhã há de ser outro dia/você vai ter que ver/a
manhã renascer/e esbanjar poesia”127.

126
Texto publicado em forma de tributo em um site dedicado a contar histórias de quem morreu na
pandemia. Disponível em: https://inumeraveis.com.br/valter-francesco-lo-bianco/. Acesso: 13/09/21.
127
Versos de “Apesar de você”, de Chico Buarque.

122
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125
SOBRE OS AUTORES

Leonardo Nolasco-Silva
leonolascosilva@gmail.com
@leonolascosilva
Professor Associado da Faculdade de Educação e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da Uerj. Ator e rotei-
rista. Líder do grupo de pesquisa Cibercultura, Educação e
Narrativas Audiovisuais (Cena/Uerj/ProPEd). Bacharel em
Ciências Sociais. Mestre em Políticas Sociais. Doutor em
Literatura Comparada. Doutor e pós doutor em Educação.

Vittorio Lo Bianco
vlobianco26@gmail.com
@vitlobianco
Servidor da Fundação Cecierj. Membro dos grupos de pes-
quisa Cibercultura, Educação e Narrativas Audiovisuais (Cena/
Uerj/ProPEd) e Docência e Cibercultura (GPDOC/UFRRJ).
Bacharel em Relações Internacionais. Mestre em Políticas
Públicas, Estratégias e Desenvolvimento. Doutor e Pós-dou-
torando em Educação.

Maria Eduarda Pavão (Ilustradora)


@marys.illustrart
Estudante de design na Escola Superior de Desenho Indus-
trial – Esdi/Uerj. Bolsista no Grupo de Pesquisa Cibercultura,
Educação e Narrativas Audiovisuais (Cena- Faculdade de Edu-
cação/ Uerj) e membro do Laboratório de Design e Educação
(DesEduca Lab). Apaixonada por todas as artes e exploradora
de como o design pode transformar o mundo.

126
E ste livro é um processo-produto de uma pesquisa que
acontece em nosso tempo, durante a pandemia da Covid-
19, nos anos de 2020 e 2021. Uma obra que circulará em rede
e aberta, fazendo valer a política e a ética da abertura dos
contextos na Cibercultura. Convergir e Bricolar são levados
muito a sério neste livro. Seus autores dialogam com suas
memórias, autorias e narrativas digitais históricas – anterio-
res a pandemia – e com suas memórias, autorias e narrativas
de pesquisa e docência durante a pandemia da Covid-19. O
livro apresenta uma escrita criativa inspiradora. Os autores
narram a vida e literaturizam o saber científico produzido
em contexto. Personagens conceituais se materializam
em histórias, memórias, imagens e sons. As narrativas são
multimodais e algumas podem ser acessadas via QR Code.
O milagre de viver e sobreviver à revelia da pandemia, no
contexto de uma tragédia política desgovernada e negacio-
nista, motivou os autores deste livro a fazer e a aproveitar
diferentes e plurais expressões educacionais e artísticas,
mediadas por tecnologias digitais em rede, principalmente
aquelas estruturadas por interfaces síncronas e assíncro-
nas. Leonardo Nolasco-Silva e Vittorio Lo Bianco nos pre-
senteiam com suas conversas e com conversas críticas
e inventivas, por eles mediadas em atos de currículos, na
Cibercultura. Este livro é um contradito a precarização das
práticas docentes e de pesquisas em tempos de pandemia.

Edméa Santos
Professora-titular livre da UFRRJ

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