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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

Curso de Filosofia

José Eduardo Ribeiro Balera

A autonomia da política em “O príncipe”

Atividade avaliativa do 2º Bimestre da disciplina


FIL 6019 – Filosofia Política II, ministrada pelo
professor Dr. Denilson Luis Werle

Florianópolis
2021
Segue a questão sobre o primeiro bloco temático – A autonomia da política em “O príncipe”
de Maquiavel.
No cap. XV – "As coisas pelas quais os homens e particularmente os príncipes são louvados ou
vituperados" – Maquiavel afirma “que sua intenção foi escrever coisa que seja útil a quem a
escutar’ e que assim pareceu-lhe “mais conveniente ir atrás da verdade efetiva da coisa do que
da sua imaginação”. Considerando essa passagem e outras que aparecem no decorrer dos
capítulos do livro disserte sobre como pode ser entendido o “realismo político” de Maquiavel,
que é expresso em um conjunto de preceitos, máximas úteis, sugestões práticas, reflexões
dispersas e paralelos históricos, ou inclusive em supostas regularidades gerais válidas para
qualquer domínio político. Se agir politicamente significa seguir a verdade efetiva da coisa, o
que devemos entender por isso? O que diferencia as regras práticas da política dos preceitos
e mandamentos morais?

Inquestionavelmente, o pensamento de Maquiavel, especialmente com a obra O


Príncipe, marca uma nova forma de compreender a política, o exercício do poder e sua relação
com a moralidade. Seu “realismo político” supera concepções teóricas anteriores e traça uma
metodologia particularizada, fundada em elementos históricos, capaz que modificar a própria
forma de olhar a conjuntura vigente. De todo modo, antes de examinar as bases trazidas por
Maquiavel no dimensionamento do agir político e, principalmente, de sua autonomia em relação
aos preceitos morais, é imprescindível reconhecer os traços distintos de sua teorização,
inclusive, para a delimitação de máximas úteis a qualquer domínio do exercício do poder.
Enquanto no pensamento precedente, como na filosofia platônica, aristotélica e
medieval, a política era teorizada a partir de pressupostos normativos, uma vez que prescreviam
a atividade política a partir de uma concepção filosófica bem-ordenada do que viria a ser um
governo ideal, inclusive, com reflexos na estruturação do estado e no robustecer de formas
ideais comparados a modelos degenerados, Maquiavel se distancia de sistematizações abstratas
e utópicas acerca do governante e do cidadão ideal e passa a observar, nas palavras de Aranha
(2006, p. 42), “como os governantes e súditos agem de fato”. Isso se dá, em grande medida,
pela especificidade de seu trabalho ao extrair de sua experiência e, principalmente, a partir de
paralelos históricos, ensinamentos válidos a qualquer época.
Em outros termos, seu pensamento é caracterizado por uma atividade indutiva acerca
da política, logo, mais realista, para ponderar a forma mais apropriada ao tratamento de questões
governamentais, ou seja, uma teoria do comportamento político com diretrizes estáveis a
conquista e manutenção do poder (e quem sabe, como destaca Pinzani, criação de um novo
estado). Para tanto, Maquiavel considera o cenário italiano que vivenciava, mas também
experiências anteriores decorrentes da atividade diplomática. Como explica Aranha (2006), a
partir da leitura de Gramsci, Maquiavel não está preocupado com o “príncipe ideal” de
concepções clássicas, mas atento ao que cabe à política em ação, isto é, a criar uma nova relação
de equilíbrio da força para uma realidade efetiva e concreta. Com O Príncipe, “fazer política é
compreender o sistema de forças existentes e calcular a alteração de equilíbrio provada pela
interferência de sua própria ação nesse sistema” (ARANHA, 2006, p. 43).
Como enfatiza Pinzani (2004), os compêndios de Maquiavel são marcados por
conselhos, ensinamentos práticos e instruções que não visam a construção de uma teoria, mas
ao atendimento do propósito de influir a realidade. A partir do uso da história e da experiência,
ele retira, por um viés indutivo, exemplos que permitem identificar uma regularidade na
política, em vez de instituir qualquer regra para as relações de poder, aproximando-se da
realidade concreta, ou melhor, a verdade efetiva das coisas. A teoria, em seu pensamento, não
pode ser desassociada da práxis, afinal, seu ideal é um estado independente sujeito a um
príncipe com habilidade suficiente para lhe garantir estabilidade. O homem não seria aquele
animal político em sentido aristotélico, mas caracterizado pela insaciedade e insatisfação, por
isso, devendo ser controlado.
Para indivíduo de Maquiavel, alerta Pinzani (2004, p. 20), “os outros são obstáculos
ou instrumentos para a obtenção de seus fins”, por consequência, deve-se buscar o controle para
não se sujeitar ao mando e manipulações dos demais. Por este viés, torna possível reconhecer
na política um constante conflito e a necessidade de formulação de uma concepção própria de
ordem adequada a tal realidade. Complementa Aranha (2006, p. 45), o real não é uma coisa
estática e que se apresenta, externamente, a constatação humana, pois está envolto pela “trama
das possibilidades sempre abertas à interferência do agir humano”. Em função disso, Maquiavel
constitui uma “política militante” para que o governante saiba o que tem a sua volta e possa
transformar tal realidade. A política passa a ser entendida a partir de suas necessidades e
dinamicamente. Em suma, o agir politicamente a partir da verdade efetiva das coisas é
distanciada de uma percepção do dever ser, mas consciente da dinamicidade do governo dos
Estados e, principalmente, das transformações contínuas, historicamente repetidas, que refletem
na transitoriedade dos governos.
Alicerçada nessa realidade efetiva, a política é conformada de maneira autônoma,
inclusive, relativamente à ordem moral. Maquiavel não está vinculado a uma concepção moral
medieval cristã, assinalada por verdades reveladas e valores transcendentes, derivados da esfera
divina, para nortear o agir humano, inclusive, na política1. Seu pensamento é fundado na moral

1 Nas palavras de Aranha (2006, p. 66): “A lei natural – aquela que caracteriza a natureza humana universal – é
anterior a qualquer lei positiva (lei feita pelos homens) e se acha acima de qualquer autoridade do Estado”.
flexível, mundana e baseado, unicamente, no critério do êxito, conquanto a política não seja a
esfera do julgamento das ações como justas ou injustas. Bem alerta Pinzani (2004, p. 44), em
Maquiavel “as qualidades morais tornam-se simples instrumentos na luta pelo poder e o sucesso
político”, afinal, além de tê-las, é ainda mais importante parecer que as possui2.
Nessa direção, o governante não estaria sujeito a nenhuma diretriz normativa, seja ela
ética ou religiosa, por consequência, sendo capaz de nortear seu agir na necessidade demandada
pela política, inclusive, vislumbrando os resultados decorrentes de suas escolhas. A avaliação
de um bom governante não se baseia nas condutas morais consagradas ou tidas como de
excelência, mas na compreensão da dinâmica do arranjo político que, como já destacado, não
se confunde com a moral convencional. Por isso, a violência e a mentira serão consideradas
morais ou imorais a depender do contexto, segundo as especificidades da própria política e para
a consecução do bem comum. Esclarece Aranha (2006, p. 67): “Na moral individual, o critério
não depende do resultado da ação (faze o que deves, aconteça o que acontecer). Na política, o
critério é o resultado (faze o que deves, a fim de que alcança o que desejas), poque a perspectiva
da política é a sobrevivência do grupo, e não apenas do indivíduo”. A definição daquilo que
seja bom ou justo não é antecedente, mas considera o alcance do resultado. Entretanto, isso não
significa que Maquiavel seja um imoralista e que qualquer meio será justificado para o
atingimento de determinada finalidade, afinal, as ponderações do autor demonstram que as
decisões são tomadas de acordo com as circunstâncias e por sua utilidade, especificamente, para
a garantia da estabilidade governamental e dos efeitos benéficos à coletividade.
A conservação de valores morais, selecionados antecipadamente, não garantiria um
agir político suficientemente estável. Serão consideradas morais, salienta Aranha (2006, p. 68),
“as ações úteis à comunidade, e imorais aquelas que prejudicam e visam os interesses
particulares, ou que não atingem os fins desejados. Maquiavel não visa qualquer fim
indiscriminadamente”3. Para o pensador, a ética política não se confunde com a moral comum
e nem com a conservação dos autointeresses a qualquer custo, logo, também não se reduz a
imoralismo desenfreado. Cabe ao bom governando ajustar aquilo que deveria ser feito com

2
Afirma Maquiavel (2017, p. 87): “A um príncipe, portanto, não é necessário ter de fato todas as qualidades
supracitadas, mas é bastante necessário parecer tê-las. Aliás, ousarei dizer que, se as tiver e observar sempre,
serão danosas, enquanto se parecer tê-las, serão úteis”.
3
Complementa Aranha (2006, p. 68): “é preciso compreender que chegamos ao ponto crucial do pensamento
maquiaveliano, ou seja, aquele que coloca a ação política numa encruzilhada: - se aceitar os valores morais a
partir de uma concepção abstrata de bem, o político estará condenado à imobilidade e ao insucesso; - se
considerar na política os mesmos valores da prática individual, poderá incorrem enganos danosos para o grupo;
e – se concluir que a política não precisa de nenhum critério moral, na busca do poder a qualquer custo, tendo
em vista interesses egoístas, poderá ser acusado de cinismo e oportunismo”.
aquilo faticamente possível, afinal, embora mentir seja considerado errado, em certas
circunstâncias evita males piores.
Nesse aspecto Maquiavel parece traçar uma diferenciação entre ética política e a
moralidade geral seguida no âmbito privado4, sendo aquela mensurada por um pragmatismo
político na conversação de benefícios ao povo, em especial, a segurança e a estabilidade. Por
isso, a virtù, referenciada por Maquiavel, não se confunde com o agir virtuoso do pensamento
cristão e clássico. O termo não é uma qualificação moral, mas pode ser interpretado como um
agir com excelência, todavia, visando a realização de fins políticos, de perspectiva pragmática
e útil. Bem sintetiza Pinzani (2004, p. 42): “Consiste muito mais numa mescla de qualidades
diversas e, em parte, opostas, cujo valor só pode ser julgado a respeito de sua aplicabilidade na
práxis política: coragem, valentia militar, magnanimidade, resistência, prudência e sobretudo a
capacidade de reagir da maneira melhor em cada situação”. Mesmo aquele governante visto
como impiedoso poderia gozar desse atributo político desde que soubesse avaliar as
circunstâncias, fortalecer seu poder e manter-se governando, afinal, “o homem virtuoso sabe
adaptar-se às diferentes ocasiões” (PINZANI, 2004, p. 42), ora sendo astuto como uma raposa
e, em outros momentos, feroz igual a um leão5. Diante disso, fica evidente que as práticas
políticas não seguem a lógica dos preceitos morais, especialmente, quando se considera a
conservação da segurança e estabilidade de um povo em Maquiavel.

Referências
ARANHA, Maria Lúcia de A. Maquiavel: a força da lógica. 2 ed. São Paulo: Moderna, 2006.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins
Fontes, 2017.

PINZANI, Alessandro. Maquiavel & O Príncipe. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004

4
Explica Pinzani (2004, p. 44): “Cada qualidade humana que a tradição considerava uma virtude (humanidade,
generosidade etc.) ou como um vício (crueldade, avareza etc.) deve ser julgado exclusivamente com respeito aos
seus efeitos na práxis política. Se uma certa qualidade humana serve para a obtenção do fim estabelecido, então
ela é boa — em sentido não-moral —; senão é nociva — mas não “má” em sentido moral”.
5
Maquiavel (2017, p. 86): “Visto que um príncipe, se necessário, precisa saber usar bem a natureza animal, deve
escolher a raposa e o leão porque o leão não tem defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos”.

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