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MACHADO, Felipe Viero Kolinski.

Por que ninguém nasce homem, mas se torna, e por que


os gays não são homens. In: Homens que se veem: masculinidades nas revistas Junior e
Men’s Health Portugal. Ouro Preto: Editora UFOP, 2018.

““Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino” (BEAUVOIR, 1967, p.
09). Ao ensinar que ninguém nasce mulher, mas sim se torna, Simone de Beauvoir (1967)
empreende uma desnaturalização feminista do gênero.” p.24

“Na voz de Preciado (2014), o feminismo empreendido por Beauvoir teria fracassado ao não
avançar sobre as masculinidades, não as percebendo também como construções sociais e
tecnológicas, e a afirmação de Wittig teria levado mais de vinte anos para se voltar,
igualmente, aos gays. É indo em uma direção semelhante que Arnaud Baubérot (2013, p. 189)
dirá que ninguém nasce viril, mas se torna viril e, subvertendo Beauvoir (1967), reformulará
sua máxima.
Nenhum destino biológico, psíquico, econômico é capaz de definir a forma
que assume dentro da sociedade o macho humano; é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o homem e o super-
homem que chamamos de viril.”
p. 24-25

“Ao recuperar a obra de Austin, Butler (2012, p. 168) sugere que se perceba na nomeação do
sexo “um ato de dominação e de coerção, um ato performativo institucionalizado que cria e
legisla a realidade social pela exigência de uma construção discursiva/perceptiva dos corpos
segundo os princípios da diferença sexual”.” p. 26

“Ao se debruçar sobre a literatura médica, mais especificamente, Thomas Laqueur (2001)
constata que, ao passo que na antiguidade clássica haveria uma noção unissexuada do corpo, a
partir do século XVIII, esse passa a ser visto como bissexuado tal qual o conhecemos hoje. A
mudança radical que então cabe ser compreendida, de ordem epistêmica, diz respeito àquilo
que Laqueur (2001) concebe como uma economia corporal genérica de fluidos e órgãos que,
em um primeiro momento, toma o corpo feminino como sendo uma versão inferior do
masculino e que, posteriormente, dá lugar a uma biologia completamente distinta.” p. 27

“Não se trata, aí, de compreender que, em um primeiro momento, não haveria distinções entre
os sexos, mas sim de notar que essas diferenças não eram tomadas como sendo causas da
biologia (em uma lógica causa/efeito).” p. 27

“(...) as diferenças entre homens e mulheres seriam dadas desde o nascimento, via
enquadramento de sujeitos em duas categorias completamente distintas e estáveis, baseadas
então em fatos físicos que seriam inquestionáveis, os quais delimitariam os espaços
permitidos (e interditados) aos corpos.” p. 28
“Macho/Fêmea e Masculino/Feminino seriam, pois, categorias que dissimulariam o fato de
que as diferenças sociais implicariam uma ordem econômica, política e ideológica (WITTIG,
2010). Preciado (2014) sugerirá que o sexo seja pensado como uma tecnologia de dominação
heterossexual, a qual agiria ao reduzir o corpo a determinadas e convenientes zonas erógenas
tendo sempre em vista uma assimetria de poder entre os gêneros masculino e feminino. Wittig
(2010), além disso, constatará que a categoria de sexo corresponde a “um produto da
sociedade heterossexual que impõe às mulheres a obrigação absoluta de reproduzir a espécie,
quer dizer, reproduzir a sociedade heterossexual” (WITTIG, 2010, p. 26) (tradução livre) e
que o sexo, em si, não existiria, haja vista que ele seria um produto da opressão, somente se
materializando nas presenças de um opressor e de um oprimido.” p. 28

“O sistema sexo/gênero poderia ser descrito, ainda, como “uma tecnologia social que assegura
a subordinação das mulheres aos homens, sua constituição como elementos passivos no
intercâmbio dos grupos sociais, assim como a exploração de seu trabalho” (GARCÍA, 2005,
p. 35) (tradução livre).” p. 30

“O termo gênero teria suas raízes na reunião de duas importantes ideias do pensamento
ocidental moderno: a primeira a de que existiria, inegavelmente, uma base material da
identidade e, a segunda, a de que o caráter humano também é socialmente construído. Nesse
sentido, voltando-se contra ao essencialismo do termo sexo, que parecia reduzir tudo a uma
questão biológica, o feminismo dos anos sessenta do século XX buscou no gênero uma saída
(NICHOLSON, 2000, p. 21).” p. 30

“(...) Judith Butler, em 1990, ao publicar Gender Trouble, parte do pressuposto de que, tal
qual o gênero, o sexo também é uma construção cultural. Butler não se limitou então a
radicalizar uma perspectiva antiessencialista, mas, mais do que isso, partindo de uma
reconsideração sobre a oposição entre natureza e cultura, ela teria recusado a habitual
transposição disso para o sistema sexo/gênero.” p. 32

“Sendo a verdade interna do gênero uma fabricação, e, por conseguinte, sendo o gênero uma
fantasia que é replicada nos corpos, ele não pode ser nem verdadeiro e nem falso, mas sim
produzido como um “efeito de verdade de um discurso sobre a identidade primária e estável”
(BUTLER, 2012, p. 195).” p. 34

“Ao ponderar que se faria necessário o desenvolvimento de um modelo para a estrutura de


gênero que levasse em conta as relações de poder, de produção e vínculos emocionais,
Connell (2003) ressalta que não se pode pensar o gênero como algo isolado, de modo que não
haveria apenas uma masculinidade, mas múltiplas, atravessadas por questões como etnia,
classe social e orientação sexual.” p. 36

“A masculinidade hegemônica, pois, será definida como a configuração de prática de gênero


que incorpora a resposta aceita no que se refere à legitimação do patriarcado, garantindo aí a
subordinação das mulheres aos homens, bem como de determinados tipos de homens a outros
(CONNELL, 2003). Vale ressaltar, ainda, que a masculinidade hegemônica não se configura
como normal em um sentido estatístico, uma vez que apenas um pequeno grupo consegue
“realizá-la”. Apesar disso, ela é normativa na medida em que “exige que todos os outros
homens se posicionem em relação a ela” (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245).”
p. 37

“Para Mosse (2000), apesar de ser difícil assinalar um momento preciso para o nascimento de
um ideal de masculinidade moderna, ele teria ocorrido entre finais do século XVIII e
princípios do século XIX. Por mais que estivessem relacionados ao fortalecimento de uma
classe burguesa, muitos dos ideais aristocráticos acerca da virilidade seguiram fortes,
manifestando-se em forma de práticas e de rituais, tais como a cavalaria e os duelos, os quais
diziam o tipo de homem que se deveria almejar ser. “A honra, segundo a tradição da
cavalaria, ia unida ao próprio indivíduo, à sua reputação, categoria e dignidade. Mas o
conceito de honra também implicava um ideal de virilidade – ser chamado covarde era o pior
insulto” (MOSSE, 2000, p. 24) (tradução livre).” p. 38-39

“[Miguel Vale de Almeida] Constata, então, que, por um lado, para seus sujeitos,
masculinidade e feminilidade seriam conceitos de caráter essencialista, os quais teriam no
corpo uma manifestação clara da divisão do mundo em dois grupos de sujeitos, homens e
mulheres, marcados por características como a atividade e a passividade.
Tal divisão, ainda, seria refletida no espaço doméstico, tido como feminino, e no espaço
público, tido como masculino. No café, por exemplo, lugar de socialização masculina, Vale
de Almeida (1995a) ressalta o trabalho e a vida sexual como importantes fios condutores das
conversas e nas festas, locais de encontro entre homens e mulheres, as posturas diferenciadas
mediante os gêneros: das mulheres seria esperado o recato e dos homens a iniciativa.” p. 39-
40

“Igualmente, contudo, destaca que a masculinidade consiste em um processo construído e


vigiado e, também, que corresponde a uma metáfora de poder e capacidade de ação. Indo ao
encontro daquilo que propõe Connell (2003), ressalta o caráter móvel da relação entre os
homens, bem como o conflito entre masculinidades hegemônicas e subordinadas, que teria
seu cerne na submissão das mulheres e na aversão à homossexualidade.” p. 40

“É com a base na proliferação dos discursos sobre o sexo, a partir do século XVII, que
Foucault (2011) alicerçará suas reflexões. A Contra Reforma e a relevância que passa a
adquirir para a Igreja o rito da confissão servem como exemplo privilegiado para observar o
que será tomado por Foucault (2011), posteriormente, como scientia sexualis, ou seja, um
procedimento que, opondo-se a ars erotica, a qual buscaria a verdade sobre o sexo a partir do
prazer, visaria a extraí-la pelas vias do discurso. Seria assim que o sujeito do ocidente teria se
convertido em um animal confidente.” p. 43

“Até o final do século XVIII, três grandes códigos explícitos regeriam as práticas sexuais: o
direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil, cabendo a eles delimitar as fronteiras entre o
lícito e o ilícito, tendo invariavelmente como base as relações matrimoniais. Aquilo que disso
fosse um desvio seria, claro, marcado por uma abominação particular, mas seria percebido
“apenas como uma forma extrema do contra-a-lei” (FOUCAULT, 2011, p. 45).” p. 44

“Adrienne Rich (2010), em 1980, (...) define a heterossexualidade como sendo uma
instituição política que retiraria o poder das mulheres. Ao se fazer compulsória, ela relegaria a
experiência lésbica ou ao espaço do desviante ou ao espaço do invisível. Nesse sentido, Rich
(2010) defende a emergência de um continuum lésbico, o qual, sob seu ponto de vista, não
ficando restrito às experiências lésbicas femininas, mas incluindo-as, reuniria ainda uma
grande variedade de experiências de identificação entre mulheres, servindo, logo, como forma
de empoderamento.” p. 48

“Gayle Rubin (2003, p. 13) ressalta que o sexo, nesse cenário, sempre é visto sob suspeita,
sendo previamente culpado, até que se prove o contrário. “Virtualmente todos os
comportamentos eróticos são considerados maus a menos que uma razão específica para
isentá-los tenha sido estabelecida. As mais aceitas desculpas são o casamento, a reprodução e
o amor”.” p.48

“Como lembra Didier Eribon (2008), a injúria é mais do que uma fala que descreve. Para
além de anunciar aquilo que sou (ou que supostamente pensam que sou), ela não visa a
informar algo sobre mim, para mim mesmo. O objetivo da sentença é expor uma posição de
poder subordinada, é dizer que aquele que fala tem o poder de desferir suas palavras sobre
mim porque ele me é superior.” p. 49-50

“Tal qual ressalta Stuart Hall (2000), ao filiar-se a uma perspectiva discursiva e culturalista, a
identificação nunca é algo fechado ou concluído, mas, ao invés disso, é o resultado de um
contínuo e constante processo. É por não ser determinada, sendo uma construção, que sempre
é possível “ganhá- la” ou “perdê-la”, em um sentido de manutenção dessa ou então de seu
abandono. “A identidade é um significado cultural e socialmente atribuído” (SILVA, 2000, p.
89).” p. 50

“Os corpos à margem, as vidas que ocupariam espaços incômodos, seriam aqueles que, não
gerando empatia e ultrapassando as fronteiras do que poderia ser dito “tolerável”, geram o
asco. “Assim, não é falta de limpeza ou de saúde que causa a abjeção, mas aquilo que
perturba a identidade, o sistema, a ordem. O que não respeita fronteiras, posições, regras. O
entre lugar, o ambíguo, o múltiplo” (KRISTEVA, 1982, p. 04) (tradução livre). A abjeção,
pois, referir-se-ia ao imoral, ao sinistro e ao sombrio.” p. 52

“Em consonância com aquilo que diz Eribon (2008, p. 111), é possível constatar que a
homossexualidade é contínua e historicamente referida como algo que escapa à normalidade,
constituindo-se na sexualidade e/ou afetividade em que falta algo: “é uma “perversão”, uma
“parada” num estágio infantil no desenvolvimento normal do indivíduo e de seus desejos,
uma “incapacidade” de reconhecer o outro. A partir de um discurso heterocentrado, baseado
em uma mitologia científica, a identidade homossexual é, portanto, desde a sua gênese,
negativa.” p. 55
“Eribon (2008, p. 78) constata, nesse mesmo sentido, que a subjetividade gay é inferiorizada
justamente por ser produzida por uma sociedade heteronormativa. Não haveria uma
subjetividade primeira que então seria deformada. “A subjetividade e essa marca social são
apenas um”. O sujeito se constitui pela interpelação como tal, e a identidade se constrói nesse
processo, de modo que ambos são frutos das estruturas sociais que oprimiriam os
homossexuais.” p. 55-56

“Proposto por Michael Warner, em 1991, o conceito de heteronormatividade corresponderia


“àquelas instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas que não apenas fazem
com que a heterossexualidade pareça coerente – ou seja, organizada como sexualidade – mas
também que seja privilegiada” (BERLANT; WARNER, 2002, p. 230). A
heteronormatividade, ao definir a heterossexualidade como natural e ao seccionar os sujeitos
entre heterossexuais e não heterossexuais, diz quem é normal e quem não é. A fronteira que se
estabelece aí, conforme já visto, separa as vidas que pesam daquelas que geram apenas o asco
(BUTLER, 1993; 2000).” p. 56

“No que se refere ao contexto de seu desenvolvimento, pode-se dizer que as origens do que se
concebe como teoria queer estariam ligadas à segunda onda feminista, ao movimento negro
do sul dos Estados Unidos e, mais especificamente, à postura da população em geral frente
aos homossexuais que, em um cenário de epidemia de AIDS e pelo medo da contaminação,
eram percebidos como grupo abjeto cuja repulsa era recomendada e estimulada (queer
nation). De um ponto de vista teórico e metodológico, ainda, ela seria herdeira do encontro
dos estudos culturais norte-americanos com o pós-estruturalismo francês, tendo como aspecto
importante a desconstrução das noções clássicas de sujeito e de identidade (MISKOLCI,
2007; 2012).
Queer, que em inglês remete a uma ofensa, a um xingamento, comumente dirigido àqueles
que rompem com padrões de gênero/sexualidade (seria algo como estranho, esquisito), é
então recuperado e ressignificado por aqueles que o recebiam na forma de injúria. Conforme
lembra García (2005), a palavra queer traz em sua enunciação imbricada a carga de violência
e de discriminação exercida pela sociedade heterossexista contra os sujeitos “desviantes”.”
p. 59

“Tomada como perspectiva teórica e política, a teoria queer consolida-se ao estabelecer sua
crítica tendo em vista um modelo de hegemonia heteronormativa e os binarismos
(hétero/homo; homem/mulher; integrado/ excluído) que o chancelam. Conforme lembra
García (2005), ao considerar a sexualidade como um campo aberto de relações de poder e
como uma dispersão de pontos de dominação e de resistência, a teoria queer propõe que a
resistência se dê em múltiplos espaços articulados e políticos. Tal qual diz Preciado (2009)
trata-se de um espaço de empoderamento e de mobilização revolucionária.” p. 60

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