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Aqueles que Odeiam o Destino

Odiar intensamente e sem fim tudo aquilo que nos aflige; posicionar uma única
coisa ou ser como a causa fundamental de todos os nossos problemas e o nosso
amaldiçoado destino: isto chamamos de ressentimento. O filósofo alemão Friedrich
Nietzsche primeiro formulou esta patologia em seu tratado histórico Sobre a
Genealogia da Moral (1887) como sendo conectado à origem do que ele chama de
“moralidade escrava”, este sendo um nome para a moralidade judeo-cristã que no seu
tempo e a um certo nível hoje governa a cultura ocidental. Sua brilhante análise expõe
as mais fascinantes origens dos nossos pensamentos. Porém, em tempos recentes, certos
indivíduos, por melhor ou pior, inspiraram-se na análise de Nietzsche, e, junto de outras
fontes, retomaram de novo a questão do ressentimento. Um desses indivíduos seria a
psicanalista Maria Rita Kehl, em seu artigo de 2021 O ressentido e sua estética. Aqui,
temos uma dica interessante a ser aplicada ao estudo do ressentimento, que é a análise
da ficção (filmes cinemáticos, no caso deste artigo).

Mas, a formulação de Maria Rita Kehl também é problemática por de várias


formas prejudicar o que já era de alto valor; Maria Rita Kehl usa a análise crítica à
moralidade escrava que Nietzsche formulou de uma forma que emacia esta crítica e a dá
uma roupagem conservadora, ignorante do destino e abusiva da linguagem metafórica
através da psicanálise e do feminismo. E por outro lado a obra de 1887 de Nietzsche,
por mais importante que seja em seu uso da genealogia como demonstrado por Michel
Foucault, também é mostrada como insuficiente no contexto contemporâneo em que a
genealogia acaba absorvida no mundo dos simulacros e da virtualidade, dos
computadores e ficções. Um mundo em que o que antes era considerado histórico e
verdadeiro é mostrado como falso, redundante e ilusório, como diz o filósofo francês
Jean Baudrillard da cultura ocidental simulacral no fim do século XX (Baudrillard,
1995). Ou, alternativamente, o que antes era considerado histórico e verdadeiro é
subvertido e visto de outra forma mais interessante, esta forma sendo a visão do
simulacro do filósofo Gilles Deleuze (Deleuze, 1983). O simulacro de Deleuze então
distorce e recria uma realidade ideal antes tida como inegável. Portanto, divergindo de
Nietzsche na genealogia e Rita Kehl em seu artigo, analisaremos o ressentimento em
uma obra de uma mídia que está hoje fundamentalmente enraizada no simulacro e a
virtualidade como Deleuze compreende: a animação japonesa.
A série de mangá Magi: O Labirinto Mágico, adaptada para uma série animada
de 2012 a 2014, tem em sua primeira temporada um personagem, Kassim, que de
muitas formas é exemplar do ressentimento como retratado por Nietzsche e Rita Kehl,
em particular em relação ao seu desenvolvimento histórico, aqui retratado de forma
simulacral. Para Nietzsche, o ressentimento envolve dizer um “não” absoluto a tudo
externo a si: “Enquanto toda moralidade aristocrática vem de uma afirmação triunfante
de suas demandas, a moralidade escrava diz ‘não’ desde o início a o que é ‘externo a si’,
‘diferente de si’ e ‘não si’, e este ‘não’ é seu ato criativo.” (Nietzsche, 1913) Para Rita
Kehl, o ressentimento consiste em sua origem na “renúncia, a servidão voluntária: o
sujeito cedeu ao outro, recalcou as representações do desejo — para depois passar a
vida reclamando contra “o que fizeram comigo”, aprisionado por uma necessidade de
vingança contra os supostos agentes de sua infelicidade.” (Rita Kehl, 2021) Porém,
neste caso ambos Nietzsche e Kassim já são contrariados, pois a questão aqui não seria
a servidão “voluntária”, mas sim “involuntária” na origem desta emoção: “Que curioso,
como as paixões da vingança e do ódio suprimidos e secretamente borbulhantes
exploram para a sua vantagem uma crença, e nenhuma outra crença com um entusiasmo
mais firme que este: “que o forte tem a opção de ser fraco, e a besta predadora de ser um
cordeiro.” (Nietzsche, 1913) Aqui, Rita Kehl mostra-se imponente por criticar um
ressentido pela virtude do ressentido já que sua crítica, apelando à responsabilidade
pessoal e a caracterização da servidão como voluntária, é a mais ressentida de todas,
como Nietzsche mostra. E isto tudo será muito importante para entender o que veremos
com a história de Kassim daqui em frente. Kassim é de várias formas o ápice do
ressentimento, com sua negação absoluta de seu objeto, os detalhes do qual ainda
veremos. Porém, antes disso falaremos do contexto em que Kassim situa-se na história
de Magi e ainda antes disso um pouco do contexto do mundo da mesma história.

O mundo de Magi é baseado nos contos clássicos das 1001 Noites de


Scheherazade, tendo como personagens figuras clássicas como Alibaba ou Sinbad.
Elementos de outras fontes também são misturados, como muitos valores
contemporâneos japoneses, mas como um todo a natureza múltipla dos contos é
enfatizada através da absorção de vários de seus elementos de diferentes de seus contos
de forma distorcida, criando um simulacro como Deleuze o propôs. Baseando-se então
em um contexto histórico imaginário da antiguidade, muitos dos conceitos discutidos
por Nietzsche em relação às moralidades mestre e escravo, o ressentimento, as
aristocracias, castas são bastantes relevantes, mesmo que não perfeitamente. De
qualquer forma, um dos elementos muito relacionados à questão do ressentimento é o
fenômeno dos Rukh, seres mágicos que permeiam todos os lugares do cosmos e efetuam
fluxos que criam o que se chama o destino, que é o fluxo natural dos eventos do mundo.
Esses fluxos dos Rukh são contrapostos pelos fluxos dos Rukh negros, que representam
o fluxo reverso do destino, e o desejo de fazê-lo fluir na direção oposta. Os Rukh negros
surgem de um ódio e uma maldição do destino, e aqueles que completam o seu caminho
da reversão do destino através dos Rukh negros são chamados de “daten”
(originalmente no japonês, o termo equivalente sendo “cair”, uma “queda”, ou uma
“queda na depravação”).

O mundo de Magi é baseado no conflito entre estas duas forças, e os


personagens principais – Alibaba, Aladdin e Morgiana, o primeiro do qual é mais
importante para nossa análise – pelo menos mais importantemente na parte da história
que nos preocupa situam-se no lado que é a favor do curso natural do destino. O início
da história nos mostra Alibaba em suas aventuras com Aladdin, depois das quais eles se
separam para se encontrarem na terra natal de Alibaba, Balbadd. Esta é uma cidade-
estado monárquica portuária conhecida por sua economia comercial marítima, mas que
neste momento está enfrentando certas crises severas. Alibaba cresceu lá originalmente
na região empobrecida, junto de seu melhor amigo Kassim, sua mãe, e a irmã de
Kassim, Mariam, mas um dia foi levado de lá ao palácio real pelo rei de Balbadd, que
revelou a Alibaba ser seu filho ilegítimo. Porém, isto não aconteceu antes de ter um
encontro tenso com Kassim, o qual Alibaba esperava o detê-lo de ir, mas de fato
somente friamente e neutralmente o indicou a ir e sarcasticamente comentou na natureza
obviamente aparente da origem de seu amigo. Aqui vemos uma das primeiras instâncias
do ressentimento como Nietzsche o compreende, este sendo um ódio das classes
superiores baseado em uma sensação de inferioridade em relação a si. Nesse momento,
Kassim, sendo de uma classe muito mais baixa da sociedade de Balbadd (morando nas
favelas), sentiu exatamente isso em relação à Alibaba, que sentiu ser o seu superior, e
ter tudo que não tinha.

Mas voltando ao presente, Alibaba chega em Balbadd antes de Aladdin e


Morgiana e encontra sua terra em um estado crítico, empobrecido. O rei anterior, seu
pai, havia morrido há alguns anos e um de seus filhos herdeiros havia assumido o trono,
e este acabou trazendo, através de certas circunstâncias, o país a esta condição séria. O
rei Ahbmad, muito menos habilidoso governante que seu pai, teve dificuldades e acabou
dependendo de um banqueiro enviado pelo com conexões e motivações duvidosas,
levando o país a sua crise. Ele fez isto tornando a economia de Balbadd dependente de
uma moeda do Império Kou, um império expansionista ascendente, que troca todos os
produtos da cidade por qualquer outra coisa. Porém, o banqueiro de fato era
secretamente afiliado com uma organização chamada Al-Tharmen, que tem como
objetivo trazer uma queda total do mundo na depravação (assim estando do lado reverso
do destino, e portanto do ressentimento). Al-Tharmen no momento em questão da
história tem como objetivo alimentar as camadas ressentidas de Balbadd, provocar sua
queda total na depravação e assim trazer o seu plano à frente mais um passo. Sua
principal maneira de fazer isto neste caso seria manipular ambos o palácio (Ahbmad) e
aqueles opostos ao palácio (o povo). Isto ocorreria através do banqueiro levando
Ahbmad a procurar vender os direitos civis dos cidadãos de Balbadd ao Império Kou e
assim escraviza-los. Como resultado, as massas ressentidas de Balbadd, liderados por
Kassim, se revoltariam e matariam a realeza, tomando o poder para si e invertendo as
posições (aqui um outro paralelo ao ressentimento é demonstrado). Kassim também era
líder da Tropa da Névoa, que já havia perturbando Ahbmad. Eventualmente, porém, a
“resposta ressentida” de Kassim entraria em conflito com a “resposta superadora” de
Alibaba e assim os conflitos aqui de muitas formas equivalentes à moralidade mestre e
escrava, ressentimento e amor, afirmação e negação são introduzidos.

Veremos então o ressentimento de Kassim, começando pelo seu passado.


Kassim havia afastado Alibaba pois ele sabia que ambos os dois tinham destinos
radicalmente diferentes, um aristocrático e um ralé. O fazendo, ele ressentiu Alibaba,
por considerar si mesmo inferior na sua existência comparada à de Alibaba. Ele,
Kassim, por se ver de forma inferior a Alibaba, o odiava, então assim fazendo isto por
virtude de odiar o que é superior a ele, por odiar aqueles com poder, status, sucesso: os
aristocratas, os felizes, aqueles que amam os seus inimigos. Esta é de fato a essência do
ressentimento como Nietzsche o entende. Maria Rita Kehl, porém, possui uma visão
diferente. Ela diz que o ressentimento “abre para sempre no sujeito esta possibilidade de
confundir os momentos em que nega reconhecer a si mesmo — “eu não sou este/ eu não
fiz isto” — e aqueles em que responsabiliza o outro por seus atos ou desejos (“foi ele
quem fez/ eu fiz porque ele quis”, etc.).” (Rita Kehl, 2021) Neste sentido, também há
um pouco de verdade, mas há também problemas. Kassim de fato "responsabilizou"
Alibaba, porém, ela diverge de nós por no processo responsabilizar Kassim por este ato,
enquanto no ressentimento para Nietzsche não se há responsabilidade; o fraco (os
judeus) na Genealogia e no Anticristo é até elogiado por Nietzsche por criar uma visão
de mundo que o ajuda em sua situação sociopolítica. No caso de Kassim, o dá uma
forma de confrontar as suas circunstâncias de forma prática. Kassim é portanto um caso
de um ser “ativo” e “reativo” ao mesmo tempo, assim como os judeus na Genealogia.
Exploraremos o aspecto ativo/reativo de Kassim mais quando chegarmos perto do fim.

Quando Alibaba voltou a Balbadd antes de Aladdin e Morgiana ele se encontrou


com Kassim, que junto da Tropa da Névoa, realizando sua justiça Robin Hood, buscava
confrontar a situação do país. Kassim, desesperadamente, o fez uma proposição: tornar-
se o líder da Tropa da Névoa. Assim o fazendo, Kassim tinha como objetivo trazer
legitimidade a seu movimento, dado que a população o desconfiava por estar cometendo
crimes, mas respeitava Alibaba por ver ele como representativo dos ideais do velho rei
do qual ele era filho. Neste caso, o ressentimento de acordo com Nietzsche nos está
muito claro: a população desconfia daquele que é doente e com ideais violentos, mas
respeita aquele que é de nobres origens e valores saudáveis. Eventualmente, porém, o
rei Sinbad, amigo recente de Aladdin e do pai de Alibaba, derrota os dois e põe a Tropa
da Névoa sobre seu comando. Kassim não aprova deste arranjo, porém, e desaparece da
vista pública, ao mesmo tempo que Alibaba continua sendo uma fonte de esperança para
o povo de Balbadd dado a sua associação com o rei de Balbadd e os velhos tempos.

No meio de tudo isto, o povo vai ficando progressivamente mais agitado e


insatisfeito com as políticas destrutivas do rei Ahbmad. Eventualmente chega-se ao
ponto de massas do povo cercarem o palácio em protesto. Antes disto, porém, Sinbad
segue assegurando e guiando o povo e Alibaba segue sem rumo em relação a o que ele
poderia fazer para resolver a situação do país, dado que o povo tem expectativas altas
dele, mas ele sente-se inseguro e vê Sinbad como mais capaz que ele. Neste período
climático, Alibaba encontra-se de novo com Kassim e a Tropa da Névoa, e tem uma
conversa tensa, além de descobrir que a Tropa da Névoa está sendo financiada pela
organização Al-Tharmen. Nesta conversa, Alibaba e Kassim expõem suas diferentes
visões do futuro de Balbadd. Kassim propõe começar uma “guerra” e violentamente
derrubar a monarquia do país. Alibaba, porém, em resposta ao amigo, não dá um
caminho claro, mas rejeita a proposição de Kassim. Isto leva a uma rixa entre eles que
irá culminar na parte final da arca de Balbadd e os dois caminhos possíveis para o seu
fim que ela apresenta: um o caminho de Kassim de derrubar o governo, este
simbolizando o ressentimento, e o outro o futuro caminho a ser revelado de Alibaba,
que porém veremos que irá pelo contrário, afirmar o destino em todo a sua alegria e
sofrimento – amor fati, nos termos de Nietzsche.
No dia após este encontro temos o momento decisivo; Alibaba invade o palácio
de Balbadd, derrota os inimigos enviados por Al-Tharmen para detê-lo, e consegue
chegar até o rei. Neste momento, ele consegue trazer os soldados do rei ao seu lado e
também diplomaticamente difundir as tensões com os emissários do Império Kou
enviados ao palácio para ratificar a transação de vender os cidadãos de Balbadd à
escravidão. Assim, Alibaba declara que Balbadd dali em diante virará uma democracia
republicana e é com isto tudo que a população fora do palácio clama por conhecimento
do que acontece dentro dele. Neste momento, Alibaba faz a sua proclamação do novo
governo para o povo, e é recebido gloriosamente. É também neste momento que
Alibaba traz Balbadd e seu povo ao ponto que o seu destino é afirmado e superado,
assim todos os sentimentos de ressentimento, de ódio e inferioridade, sendo removidos.
Com Alibaba, o povo de Balbadd, liderado por ele mesmo que indiretamente, consegue
chegar a amor fati.
Porém, isto não dura muito, já que Kassim está observando os acontecimentos, e
apesar de sentir bem por seu amigo por ter conquistado algo tão grande, não irá deixa-lo
ter o que quer. É aqui que iramos entender o duplo aspecto ativo-reativo de Kassim e
como ele afeta a história de Magi e também como ele pode ser entendido junto das
análises de Nietzsche e Rita Kehl. Kassim neste momento glorioso então grita para as
massas fora do palácio neste momento a incitar o seu ódio pela monarquia e todo o dano
feito a população por ela; ele incita o seu ressentimento, dizendo que uma fala de que o
povo e a monarquia seriam “iguais” em uma democracia republicana é impossível e os
motiva a invadir o palácio, matar a monarquia, tomar seu lugar e reverter os papéis.
Aqui temos o aspecto interessantemente niilista de Kassim – pois o ressentimento é
niilista – que é a negação do que lhe é superior e do resto do mundo que cria esta
condição. Desta forma, Kassim é o que Nietzsche chama de niilismo negativo e também
o “reativo”, dado que ele não só nega o mundo mas também tenta introduzir significado
a ele e falha. E também não acaba aí; Kassim também faz isto de forma destrutiva, ele
não se importa se o mundo ao seu redor é destruído no processo. Então também temos o
aspecto “ativo” do niilismo aqui também. Nietzsche fala destes conceitos em seu livro
póstumo “A Vontade da Potência”, onde trata do ativo, negativo, reativo, passivo e do
niilismo como um todo. (Nietzsche, 1968, 17-18). Rita Kehl também trata brevemente
do “ativo” e devemos discordar dela aqui também, apesar de desta vez não nos estar
claro se Nietzsche diverge totalmente. Ela diz: “Há uma passividade no ressentimento,
que não se confunde com uma imobilidade; o ressentido parece ativo, mas suas ações
são, de fato, reações.” (Rita Kehl, 2021) De uma certa forma Kassim aqui também é
reativo, mas interessantemente não à exclusão do ativo, mas pelo contrário junto de sua
forte presença.
Após incitar as massas no palácio e o invadir, Kassim, seus companheiros e a
população são subjugados. Chega-se ao ponto então que seus colegas são rendidos e
Kassim está encurralado por Alibaba e os guardas do palácio. É neste momento que sua
atividade e destrutividade nos vem a luz. Kassim havia recebido uma arma especial do
emissário de Al-Tharmen que, com muita dor e custo, o daria muito poder. Com isto,
apesar do pleito de Alibaba para seu rendimento e reconciliação, Kassim se esfaqueia
com a espada, a qual cria várias lâminas que o esfaqueiam também por trás e o faz
violentamente transformar-se em um “Djinn negro”, uma criatura monstruosa que
consome e destrói tudo ao seu redor. Aqui, é completado o que havia sido mencionado
anteriormente como sendo “a Queda à depravidade”, e podemos dizer então que o
ressentimento de Kassim aqui chega a sua lógica conclusão, que é aqui justamente o
duplo aspecto que discutimos da atividade e reatividade.
Porém, este não é o fim para Kassim. A situação na história para Alibaba e seus
amigos neste momento é difícil; porém, seu amigo Aladdin, que antes estava em um
coma, desperta, e surge no palácio para ajuda-lo, trazendo com si a “sabedoria de
Salomão”, que seria o poder das forças afirmadoras do destino de contra-atacar as forças
que o nega. Com isto, Aladdin ajuda Alibaba a lutar contra Kassim, usando a sabedoria
de Salomão para fazer Alibaba entrar no corpo de Kassim e tentar cura-lo de seu ódio de
uma vez por todas. Com isto Alibaba engaja Kassim em um confronto de valores e
emoções que irá englobar toda a história e memória de suas vidas.
A conversa começa tensa, com Kassim dispensando as tentativas de Alibaba de
o convencer. Kassim diz a Alibaba que ele sempre o odiou no fundo, pois Kassim
sempre notou que Alibaba era de uma herança vastamente superior à da dele, uma
herança aristocrática, brilhante e linda que ele de nenhuma forma tinha, o pai dele sendo
um alcoólatra que batia na mulher e nos filhos, e Kassim sentindo fortemente seu
sangue em suas veias. Aqui temos o entendimento fundamental que examinamos antes;
a negação do superior por ser inferior, e seguindo, Kassim enfatiza que ele e Alibaba
são fundamentalmente diferentes (aqui remetendo ao “pathos da distância” de Nietzsche
da Genealogia). Alibaba, porém, não aceita, e ainda tenta defender a ideia de que ele e
Kassim são os “mesmos”. Isto, porém, só irrita Kassim, e Alibaba acaba retirando tal
frase. E então, é neste momento glorioso que ocorre a Alibaba uma epifania. Ele
percebe que ele próprio também não havia entendido Kassim; ele esperava em algum
lugar profundo dentro dele que os dois pudessem ser iguais, que eles poderiam
compartilhar no mesmo destino. Ele não havia aceito ainda, como agora, que ele e
Kassim seriam necessariamente diferentes, com destinos distintos, mas que mesmo
assim os dois poderiam ser amigos e respeitar um ao outro e serem felizes com estes
destinos. Alibaba então cai em lágrimas e tudo isso ele explica a Kassim, que junto dele
também cai em lágrimas, apercebendo, junto dele os fios conectados de suas vidas que
agora se juntaram. Desta forma, o ressentimento de Kassim é superado, além de toda
sua atividade e reatividade e destrutividade, e nele se encontra o amor fati de Nietzsche.
Porém, infelizmente Kassim neste momento já viveu tudo que poderia viver, e assim,
apesar do pleito de Alibaba, aceita a morte e volta aos Ruhk do qual ele veio. Estando
nos Ruhk, ele também permanece imanente e assistindo a Alibaba conforme a
oportunidade o aparece. E assim, o homem ressentido se auto-supera como Nietzsche e
até Maria Rita Kehl descreve, e atinge a êxtase do devir.

Fontes:

Nietzsche, Friedrich. 1913. The Genealogy of Morals. Translated by Samuel,

Horace B.

Rita Kehl, Maria. 30 de Julho, 2021. O ressentido e sua estética.

Deleuze, Gilles. 1983. Plato and the Simulacrum. Translated by Rosalind

Krauss. October 27 (Winter): 45–56.

Baudrillard, Jean. 1995. Simulacra and Simulation. Translated by Sheila Glaser.

Ann Arbor: University of Michigan Press.


Nietzsche, Friedrich. 1968. The Will to Power. New York: Vintage Books.

Translated by Walter Kaufmann & Reginald Hollingdale.

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