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Língua Portuguesa
Veraluce Lima dos Santos
Veraluce Lima dos Santos
Contextualização da crise
Não é de hoje que o ensino de Língua Portuguesa está vivendo uma
crise. Devido aos estudos realizados no campo da linguística, os quais
possibilitaram uma nova visão de ensino da língua, “explodiu uma reação
ao que se convencionou chamar pejorativamente tradicionalismo, e a mu-
dança – que se fazia necessária em vários pontos – acabou por produzir
resultados desastrosos” (BECHARA, 1993, p. 9).
superiores. Com isso, essa língua oficial era imposta às nações que iam consti-
tuindo o Império Romano. O ensino da língua baseado na pedagogia do certo/
errado continuou até a Idade Média, tendo como modelo as gramáticas de Dio-
nísio e Prisciano.
Como o português ainda não era uma língua nacional, as primeiras gramá-
ticas de Língua Portuguesa apareceram no século XVI, tomando como modelo
os padrões da gramática latina, preocupada, sobretudo, com a segmentação do
discurso em categorias gramaticais. Embora o espírito científico do Renascimen-
to favorecesse a valorização das línguas nacionais, a força dos gramáticos consi-
derados clássicos ainda se fazia sentir tão fortemente, que podemos encontrar,
por exemplo, declinações de nomes, com especificações de seus casos (nomina-
tivo, genitivo, acusativo, dativo, ablativo e vocativo), nos compêndios e manuais
de Língua Portuguesa da época.
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vivo, submetido a certas leis evolucionistas e supunha-se que uma língua antiga
dava origem a uma ou várias línguas novas” (SUASSUNA, 1995, p. 24).
Em muitas escolas, havia professores que ainda destinavam a maior parte das
suas aulas de Língua Portuguesa ao aprendizado e utilização da metalinguagem,
com repetição dos mesmos tópicos gramaticais: classificação e flexão de pala-
vras, análise sintática de períodos simples e compostos, noções de processos
de formação de palavras, regras de regência, concordância, acentuação gráfica,
pontuação, dentre outros tópicos. De fato, estava instalada a crise.
Os contornos do problema
O ensino de Língua Portuguesa constitui em si um empreendimento com-
plexo, com muitas contradições. Senão vejamos: quando a criança ingressa na
escola, já possui um conhecimento substancial da língua materna, adquirido no
meio natural, pois
conhece os sons da língua e respectivas regras de combinação, os paradigmas flexionais
regulares, as regras produtivas de formação de palavras, a generalidade dos padrões de
formação de frases simples [...] (MARTINS apud AMOR, 1999, p. 12)
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Ensino de Língua Portuguesa
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A crise no ensino de Língua Portuguesa
Essa alienação não ocorre por acaso: quanto mais o conhecimento linguístico
é dado ao aluno como um discurso acabado, menos ele participa de sua cons-
trução e menos se apropria dos recursos linguísticos que lhe permitam usar a
língua em situações reais de comunicação. Isso dificulta ou impede que o aluno
realize transferência e recorrência de conhecimentos e metodologias, bem como
detecção de semelhanças, diferenças, complementaridades, paralelismos e ho-
mologias, passíveis de serem estabelecidos entre os conhecimentos adquiridos
e a reflexão linguística e as demais áreas do saber elaborado. Assim, mesmo que
o professor não promova, nas demais áreas do conhecimento, de forma cons-
ciente, a aprendizagem da língua materna, em todas elas são possibilitadas situ-
ações de aprendizagem, quer o professor queira, quer não, pois em todas elas é
avaliada a competência linguística do aluno.
Para que o professor de língua materna, no espaço da sala de aula, pelo menos
amenize as contradições encontradas em sua prática, é necessário que a língua
seja tomada como objeto de ensino, não apenas como código e/ou sistema, mas
também e, principalmente, como práxis.
A ordem no caos
Afirmamos, no início desta aula, que não é de hoje que o ensino de Língua
Portuguesa está a vivenciar uma crise, mas isso não significa que tudo está per-
dido. Contudo nos perguntamos: O que fazer para que essa crise seja superada?
Como o professor deve proceder, para superá-la? Será que a crise não está no
próprio aluno, que não lê, conforme reclamações de muitos professores? O que
fazer com um usuário da língua que concluiu o Ensino Médio e revela como de-
sempenho de sua competência textual a seguinte produção:
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Aqui estou, adulto muito arependido das coisas que eu fiz que conserteza
nunca mais vou praticar, e lisdigo: aproveite muito as coisas que você tem e
nunca abra mão delas.
Diante do texto produzido por um aluno que concluiu o Ensino Médio, po-
demos afirmar que, de fato, a crise no ensino da língua ainda existe, apesar dos
avanços proporcionados pelas pesquisas na área da linguagem e de ensino. Isso
não significa que o aluno não conseguiu se comunicar por meio do texto escrito,
mas essa comunicação não está a contento, considerando a situação interlocuti-
va para a qual o texto foi produzido: atender à proposta de redação para ingres-
so em uma universidade federal.
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Segundo Bakhtin (1987, p. 297) “as pessoas não trocam orações, assim como
não trocam palavras (em uma acepção rigorosamente linguística) ou combina-
ções de palavras, trocam enunciados constituídos com ajuda de unidades da
língua”. Os elementos linguísticos só possuem sentido no interior de um enun-
ciado, de uma situação de comunicação.
Cada língua possui sua própria gramática. No caso da língua portuguesa, por
exemplo, não é preciso o falante ir à escola para construir frases como: A casa de
minha mãe fica perto da escola.
As restrições de ordem extrínseca são impostas de fora para dentro pela co-
munidade linguística ou, pelo menos, por parte dela. Se um falante da língua
constrói um enunciado do tipo A gente vamos sair agora, ele não está ferindo as
regras intrínsecas da língua. Contudo, o enunciado produzido não é aceito por
parte dos falantes, por estar em desacordo com as regras extrínsecas, ou seja,
regras que a própria comunidade impôs para regulamentar o uso da língua.
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Tomando como referência o texto “Os sonhos que deixei para trás”, perce-
bemos que os maiores problemas evidenciados nele dizem respeito às res-
trições de ordem extrínseca. O aluno não atendeu às regras de bom uso da
língua, principalmente, no que se refere à ortografia. As palavras deichei, trais,
saldade, hulmano, arependido, conserteza e lisdigo causam estranheza por
estarem escritas; se elas fossem simplesmente faladas, nenhum usuário da
língua as rejeitariam por considerá-las “erradas”. Contudo, elas servem para de-
monstrar que o aluno ainda não domina o emprego dos sinais linguísticos, os
quais devem ser de acordo com as normas que os regem; o aluno ainda não
apreendeu que os modos de registro da fala e da escrita apresentam caracte-
rísticas próprias: na fala, o aluno esculpe sua vivência, sua experiência humana;
na escrita, há uma elaboração mais apurada do dizer, que requer um cuidado
maior do usuário, por ser, geralmente, mais precisa e menos alusiva do que a
língua falada.
Ao contrário do que muita gente pensa, aprender a língua materna não cons-
titui um processo difícil, pois já nascemos com uma capacidade para adquirir a
linguagem. Assim, para superar a crise no ensino da língua materna, o professor,
no espaço da sala de aula, deve procurar desenvolver uma prática pedagógica
que se baseie na língua em uso, possibilitando que o aluno se aproprie tanto das
regras intrínsecas quanto das regras extrínsecas da língua e passe a reconhecer
os lugares da interlocução como espaços existenciais.
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Como o homem está sempre engajado no processo educativo, uma vez que
se insere em uma sociedade constituída de costumes, de linguagens, de corpo
de conhecimentos, de cultura, é nesse espaço que ele assume sua própria exis-
tência, através da língua. Daí a necessidade do ensino da língua materna colocar
não só o aluno, mas também o professor “como um viajante constantemente
desafiado, com interesse voltado para a descoberta de novos caminhos” (MAR-
TINS, 1992, p. 75).
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Texto complementar
Analisando e propondo
É relativamente grande o número de estudos que vêm se preocupando
com a natureza do ensino de Língua Portuguesa que as escolas oferecem.
Um dos pontos especialmente em foco é o tratamento da gramática, e o tom
das avaliações daquilo que se tem proposto e se tem conseguido é geral-
mente de crítica e de desolação.
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Uma discussão inicial pode ser a que toca as competências. Como tenho
apontado em outros trabalhos e também indico no decorrer deste livro, cabe
especialmente aos docentes de graduação em Letras, que são os formado-
res de professores de língua materna, preparar as bases de um tratamento
escolar cientificamente embasado – e operacionalizável – da gramática do
português para falantes nativos, o que representaria dar aquele passo tão
reclamado entre o conhecimento das teorias linguísticas e a sua aplicação
na prática.
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Todos sabemos que a criança tem uma consciência muito forte da sua
língua e reflete sobre ela, mas, como aponta Slama-Cazacu (1979, p. 82), pelo
modo de tratamento que tradicionalmente tem direcionado o trabalho es-
colar com a linguagem, desde a pré-escola a criança é instada a “desapren-
der” o pensar sobre a língua. Pouco a pouco uma sistematização mecânica e
alheia ao próprio funcionamento linguístico é oferecida como o universo a
que se resume a gramática da língua, de tal modo que a gramática vai pas-
sando a ser vista como um corpo estranho, divorciado do uso da linguagem,
e as aulas de língua materna só passam a fazer sentido se a gramática for
eliminada. Na verdade, é com razão que muitos estudiosos defendem que
se exclua a gramática do tratamento escolar da língua, já que o que se tem
visto é que ele se vem reduzindo à taxonomia e à nomenclatura em si e por
si, e é bem sabido que nenhuma “competência” e nenhuma “ciência” advirão
da atividade de reter termos, e, mesmo, de decorar definições.
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Dica de estudo
POSSENTI, Sírio. Por Que (não) Ensinar Gramática na Escola. Campinas: ALB:
Mercado das Letras, 1997.
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