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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

CENTRO DE LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO


FACULDADE DE ARTES VISUAIS

VIDEOCOLAGEM: GIF DE ANIMAÇÃO


COMO OPERADOR POÉTICO

BEATRIZ MASSARELLI

Monografia de Trabalho de Conclusão


de Curso apresentada à Faculdade de
Artes Visuais do Centro de Linguagem e
Comunicação da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas, como requisito
parcial para obtenção do grau de Bacha-
relado em Artes Visuais.

Orientadora: Prof.ª. Dr.ª. Luisa Angélica


Paraguai Donati.

CAMPINAS
2021
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CENTRO DE LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO
FACULDADE DE ARTES VISUAIS
BEATRIZ MASSARELLI

VIDEOCOLAGEM: GIF DE ANIMAÇÃO


COMO OPERADOR POÉTICO

Trabalho de conclusão de curso defendido e


aprovado em 6 de dezembro de 2021 pela co-
missão examinadora:

Prof.ª. Dr.ª. Luisa Angélica Paraguai Donati


Orientadora e presidente da comissão exami-
nadora.
Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Ficha catalográfica elaborada por Renata dos Santos Moreira CRB 8/6549
Sistema de Bibliotecas e Informação - SBI - PUC-Campinas Prof.ª. Me. Ellen de Medeiros Nunes
Massarelli, Beatriz
Universidade de São Paulo

Videocolagem: GIF de animação como operador poético / Beatriz Massarelli. -


Campinas: PUC-Campinas, 2021.

57 f.: il.

Orientador: Prof. Dra. Luisa Angélica Paraguai Donati. Prof.ª. Me. Andréia Cristina Dulianel
TCC (Bacharelado em Artes Visuais) - Faculdade de Artes Visuais , Centro de
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Linguagem e Comunicação, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas,
2021.
Inclui bibliografia.

1. Arte e tecnologia. 2. Videocolagem. 3. GIF afecção. I. Donati, Prof. Dra. Luisa


Angélica Paraguai. II. Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Centro de
Linguagem e Comunicação. Faculdade de Artes Visuais . III. Título. CAMPINAS
2021
AGRADECIMENTOS

À Bea, Leticia e Luíza, grandes amigas que me acompanham sempre


e me ensinaram muito ao longo dessa jornada.
RESUMO
Esta pesquisa percorre as intersecções da videocolagem nas reali-
zações prático-experimentais vejo você (2019), retrair (2020), transbor-
dar (2020) e mente.onusta (2021), que germinam da apropriação (DUBOIS,
2019), manipulação (FATORELLI, 2013) e aglutinação de GIFs de anima-
ção em seus âmbitos compositórios. Investigações acerca do movimento
(DELEUZE, 1985) efetuado pelas imagens, o processo de montagem (EISENS-
TEIN, 1994) e o uso do loop, objetivam revelar como as técnicas inerentes
à essa linguagem artística possibilitam que múltiplas criações narrativas
sejam despertadas no domínio afectivo (BERGSON, 1990) do espectador
ao situar-se no espaço expositivo VR mutatis mutandis (2021) efetivado
neste projeto.
Palavras-chave: arte e tecnologia, videocolagem, gif, afecção.

ABSTRACT
This research covers the intersections of videocollage in the practical-
experimental realizations see you (2019), retract (2020), overflow (2020) and
heavy.mind (2021), that germinate from the appropriation (DUBOIS, 2019),
manipulation (FATORELLI, 2013) and agglutination of GIF animations in their
compositional scopes. Investigations about the movement (DELEUZE, 1985)
performed by images, the assembly process (EISENSTEIN, 1994) and the use
of loop, aim to reveal how techniques inherent to this artistic language
allow multiple narrative creations to be awakened in the affective domain
(BERGSON, 1990) of the spectator when situated in the VR exhibition space
mutatis mutandis (2021) effectuated in this project.
Keywords: art and technology, videocollage, gif, affection.
SUMÁRIO

Introdução 11
1. Extremidades 13
2. Videocolagem 27
Considerações Finais 53
Referências Bibliográficas 55
INTRODUÇÃO

A presente pesquisa busca elucidar as possibilidades plásticas da


videocolagem no meio digital. Para teorizar acerca dos fundamentos que
a constituem, inicio esta investigação percorrendo os movimentos impro-
váveis (DUBOIS, 2019) efetuados por linguagens artísticas distintas, que se
ramificam e aglutinam, em constância, no campo da arte contemporânea.
Os atravessamentos entre conceituações advindas de linguagens artísticas
pré, já fundamentadas na história da arte, aos novos procedimentos ope-
ratórios pós, compreendem a produção imagética atual. Neste encontro de
extremidades (MELLO, 2004), busco desvendar as intercessões estabeleci-
das entre vídeo e colagem.
Evocando a condição de intermídia de Higgins (1966), enfoco a insta-
lação interativa Ondas: um dia de nuvens listradas vindas do mar (2006-
2014) da artista-pesquisadora Katia Maciel para abordar as interligações
entre vídeo, colagem e loop, que viabilizam o repensar da passagem entre
imagens (FATORELLI, 2013). Discorro então, a respeito das questões mecâ-
nicas de montagem (CARVALHO, 1999) que engendram a colagem e se
fazem presentes no trabalho da artista.
Sob a estética do “reúso” (DUBOIS, 2019, p.23), abordo a apropriação
imagética para fins de reinvenção artística na colagem am I overexisting
(2020) de biarritzzz. Investigo a aglutinação de imagens-movimento (DE-
LEUZE, 1985) GIF em sua composição e percorro, por fim, as características
intrínsecas a estas imagens (duração e movimento) a partir de registros pro-
cessuais da minha pesquisa prática.
A segunda parte desta pesquisa visa apresentar o processo de cria-
ção da série mutatis mutandis (2021), constituída por videocolagens que
se apropriam de GIFs de animação - como instrumentos simbólicos – para
conceber a poética da série. Disserto sobre o processo de montagem (EI-
SENSTEIN, 1994) das composições, assim como sua instauração (REY, 2002)
no espaço expositivo, exaltando a importância destes para a construção
narrativa da série. Percorro, por fim, como mutatis mutandis (2021), que
realiza uma abordagem acerca do olhar e das afetações humanas, pretende
ferir (BARTHES, 1984) o espectador através do movimento e do conflito en-
tre as imagens, desencadeando em seu domínio afectivo (BERGSON, 1990)
percepções e multiplicações narrativas conjugadas à sua memória.

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EXTREMIDADES
1. Extremidades

As extremidades do vídeo são as circunstâncias limítrofes de


ação do vídeo que evidenciam suas transformações e suas
contribuições. Essas extremidades tangenciam a descentrali-
zação das linguagens e problematizam o vídeo em suas rela-
ções como um campo expressivo interligado a outros campos
(MELLO, 2004, p. 17).

Nestes encontros de extremidades contextualiza-se a produção ima-


gética de hoje, imersa na união de conceitos advindos de unidades artís-
ticas pré - como o cinema e a fotografia, já fundamentadas na história da
arte; a novos procedimentos operatórios que constituem o pós. O fenôme-
no das pós-imagens integra uma rede de trajetórias transversais constituída
por uma singular volatilidade que permite aproximações e mutações antes
impensáveis, entre entidades artísticas distintas, que outrora, se reencon-
tram novamente nas proposições visuais.
Identidades artísticas já instituídas são operadas, no campo da arte
contemporânea, sobre procedimentos que permitem as suas ramificações
e aglutinações em atravessamentos que engendram uma grande rede de
micélios 1, cujas extremidades permitem o fluir de interconexões midiáticas
em um processo de movimentos improváveis (DUBOIS, 2003).
Considerando as configurações contemporâneas da imagem, Dubois
(2019) ressalta:

Uma historicidade construída não sobre a linearidade contínua


(antes/depois), mas sobre as circunvoluções, a disseminação e
as trajetórias transversais. [...] É uma história ferida, que por
vezes se olha, observa e recicla, uma história em ziguezague e
de avanços e recuos, uma história onde o futuro pode reencon-
trar, cruzar ou reunir-se ao passado (DUBOIS, 2019, p. 22).

Estes encontros e transmutações percorridos pelas linguagens artísti-


cas evocam a condição da intermídia, definida por Higgins (1966) como um
conceito que compreende a aglutinação de pluralidades midiáticas em uma
obra de arte como unidade, na qual se firmam interdependentes e indivi-
síveis seus componentes técnicos e materiais (MARZLIAK, 2021). Para além
disso, o transpassar de linguagens distintas permite a ampliação dos pro-
cessos de construção de sentido na composição, permitindo que qualidades
intrínsecas à essas manifestações artísticas sejam agregadas na construção
de um novo produto midiático. A união do vídeo à colagem, operada nesta

1 Micélio trata-se do estágio primário do ciclo de vida do cogumelo, que consiste


em uma rede de filamentos intrincados que se expandem e estabelecem conexões a
outros micélios que compartilham a mesma rede. Disponível em: <https://hostdefense.
com/blogs/host-defense-blog/mycelium-explained>. Acesso em out 2021.

15
pesquisa, apropria-se das suas inerentes características plásticas e técnicas
(quadro videográfico, loop 2, manipulação e apropriação imagética) para a
criação das videocolagens componentes da série mutatis mutandis (2021).
O vídeo se firma como uma plataforma/instrumento/procedimento
contemporâneo volátil, o que lhe permite a expansão e contaminação às
outras manifestações artísticas já instauradas. Assim como apontado por
Mello (2004):

Compreendido em sua descentralização, o meio videográfico


é pontuado pelas marcas móveis de suas redes de conexões e
extremidades. Por essa lógica, o vídeo não é analisado como
uma totalidade, mas está inserido no conjunto de relações que
opera, compartilhando múltiplas formas de interferência nas
proposições artísticas e interconectando diversos elementos
sensíveis sem, necessariamente, problematizar a imagem ele-
trônica e suas especificidades (MELLO, 2004, p. 21).

Operando como um canal, o vídeo promove interligações midiáticas


que viabilizam o repensar da passagem entre imagens. Manifestações como
a videoinstalação e a videocolagem, resultantes do encontro de extremida-
des (MELLO, 2004), propõem experiências que alteram a percepção visual na
relação tempo e espaço. Aproximando-se deste pensamento, em Ondas: um
dia de nuvens listradas vindas do mar (2006-2014) (Figura 1), Katia Maciel cria
uma instalação interativa onde utiliza o vídeo como dispositivo de imersão.
A artista desenvolveu um espaço composto por duas projeções: uma posta
em frente ao espectador e outra situada no chão, sob seus pés. A tela frontal
transmite o registro de ondas do mar, enquanto que a inferior projeta a areia
presente na praia.
A interatividade ocorre através de um dispositivo composto por senso-
res que convertem as projeções do ambiente quando acionados pela apro-
ximação do espectador. Em um processo de acúmulo, diversas imagens de
ondas são superpostas na tela em um processo de verticalização (MACIEL,
2006), e simultaneamente, a areia é percorrida pelo sutil movimento das
ondas, no piso.

Figura 1: Ondas: um dia de nuvens listradas vindas do mar. Maciel, Katia.


Instalação interativa. 2006-2014. Fonte: <https://katiamaciel.net/ondas-um-
dia-de-nuvens-listradas-vindas-do-mar>. Acesso em set 2021.

2 Palavra derivada da língua inglesa que se traduz em laço, circuito ou sequência.


Utilizada na linguagem da programação para a repetição de tarefas em um programa
de computador. Compreendemos neste estudo o loop como instrumento técnico que
implanta mecanicamente, repetições cíclicas no transcorrer das imagens. Disponível em:
<https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/loop> Acesso em set 2021.

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Maciel remodela a projeção imagética por meio de uma colagem que trução e recombinação dos elementos constituintes da obra a inserem nas
empilha progressivamente as ondas do mar em um transcurso imerso no ato sensibilidades contemporâneas da prática do “reúso” (DUBOIS, 2019, p.23).
da repetição. O deslocamento efetuado pelo visitante, ao adentrar o espaço
Entre os exemplos recorrentes e abundantes dessa forma de
instalativo, permite que os sensores de presença sejam acionados e dispa- fazer viva uma historicidade anacrônica e atecnológica estão as
rem novas ondas que se acumulam consecutivamente na projeção. O uso inumeráveis variações do pós que procedem do que se chama o
do procedimento técnico de loop permite que a sobreposição das imagens “reúso” (sob todas as formas) e que constituem hoje um imen-
transborde no processo cíclico de apresentação (MACIEL, 2006). so movimento nas artes e na literatura, desde o sampling nas
práticas musicais até as práticas fílmicas ditas de found footage
Pensamos a presença do espectador como agente formador no pós-cinema. Essas práticas de reutilização cruzam a proble-
da conexão entre as ondas que se acumulam na tela frontal mática da (re)apropriação, da reprodutibilidade, da revitali-
com a tela sobre um piso em que as ondas vêm e vão. O efeito zação, da reciclagem, do desvio do arquivo, do documento,
que sentimos é o de transbordamento de uma imagem sobre a da criação, da remontagem etc., e abrem a desafios estéticos
outra. Desta maneira, operamos com o fim do limite entre um consideráveis (DUBOIS, 2019, p. 23).
plano e outro, entre uma tela e outra (MACIEL, 2006, p. 74).
A revitalização imagética (DUBOIS, 2019) para fins de reinvenção
A artista opera a sobreposição dos registros videográficos por meio de artística, encontra-se imersa nas possibilidades plásticas da pós-produção
janelas eletrônicas (DUBOIS, 2004) que permitem: conceitualizada por Bourriaud (2009):
uma divisão da imagem autorizando francas justaposições de “Pós-produção”: termo técnico usado no mundo da televisão, do
fragmentos de planos distintos no seio do mesmo quadro. [...] cinema e do vídeo. Designa o conjunto de tratamentos dados
as janelas operam mais por recortes e por fragmentos (sempre a um material registrado: a montagem, o acréscimo de outras
de porções de imagens) e por confrontações ou agregados fontes visuais ou sonoras, as legendas, as vozes off, os efeitos
“geométricos” destes segmentos (DUBOIS, 2004, p. 80). especiais. Como conjunto de atividades ligadas ao mundo dos
serviços e da reciclagem, a pós-produção faz parte do setor
A ação da colagem na proposta de Maciel ultrapassa as questões técni- terciário em oposição ao setor industrial ou agrícola, que lida
cas de cortar e colar a imagem videográfica. A condensação dessa lingua- com a produção das matérias primas (BOURRIAUD, 2009, p. 7).
gem artística à operação do loop permite que o processo de verticalização
das ondas (MACIEL, 2006) configure uma imagem que afeta o espectador, ao As construções das videocolagens componentes desta pesquisa par-
alterar a percepção visual no ato de sua repetição. tem da apropriação e reutilização (DUBOIS, 2019) de GIFs de animação como
operadores poéticos que potencializam as ações, expressões e significações
Oriunda de uma confluência intermidiática (HIGGINS, 1966), a videoco-
humanas, através da passagem das imagens. Decorrente de encontros entre
lagem, revela-se então, como uma linguagem capaz de alterar a percepção e
a fotografia e o vídeo, o GIF executa problematizações ao tempo através da
o trânsito das imagens ao manipular a temporalidade dos elementos que a
aceleração, retardo e/ou o congelamento (FATORELLI, 2013) do movimento
compõem.
contido em sua imagem (DELEUZE, 1985).
A colagem, manifestação artística que carrega consigo a potência
Produzido a partir de uma série de quadros sequenciais, quando posto
da criação de sentido por intermédio da apropriação (DUBOIS, 2019) e da
em loop, o GIF revela a ação contida na composição criada. Em um ato de
montagem, tem como ação processual a conjugação e reconfiguração de
decupagem, nota-se que para cada quadro componente da imagem GIF é
elementos e fragmentos, previamente oriundos de outros contextos, em um
imposta uma fração de segundo que representa a transição de um quadro
novo suporte (CARVALHO, 1999). A associação destes componentes distin-
ao outro. Quando em união e o play iniciado, o conjunto de imagens, antes
tos permite a atribuição de novos significados às imagens projetadas, o que
estático em cada quadro, engendra uma imagem-movimento (DELEUZE,
as desloca de suas conjunturas originais. As operações de seleção, descons-
1985) constituída por uma ação única que se repete ciclicamente.

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A imagem em GIF se derrama sobre o tempo: manipula-o com o pro-
longamento de suas transições em busca do movimento (DELEUZE, 1985)
e da alteração visual da ação inerente. Trata-se de uma imagem que está à
margem (FATORELLI, 2013):

Situadas nesse lugar intermediário, essas imagens limiares


solicitam uma experiência inaugural por parte do observa-
dor, frequentemente solicitado a expandir as suas habilidades
perceptivas e cognitivas. Impuras, miscigenadas, elas provo-
cam um estado de hesitação no observador, uma vez manifesta
a sua incapacidade para decidir de antemão a que sistema de
mídia pertencem (FATORELLI, 2013, p. 87).

A situação criada pelo loop quebra a narrativa linear de percepção


visual e impõe ao observador um outro relacionamento com a obra. O movi-
mento contido no GIF é agora submetido ao tempo, o que torna a aceleração
ou retardo da ação da imagem dependentes do prolongar ou condensar a
transição de quadros (MARZLIAK, 2021).
Valendo-se do “reúso” (DUBOIS, 2019, p.23) de elementos GIF, em am
I overexisting (2020) (Figura 2) biarritzzz percorre a existência humana em
uma composição que incorpora múltiplas imagens fixas e imagens-movi-
mento (DELEUZE, 1985) em sobreposições espaciais. A construção visual
da obra decorre da apropriação (DUBOIS, 2019) e aglutinação de conteú-
dos imagéticos diversos que, em contraposição espacial, abordam o uso
das novas tecnologias (dispositivos de realidade virtual e smartphones) e
apresentam registros de memes 3 de cachorros e danças grupais que vira-
lizaram na Internet. Anexos a essas imagens, os conteúdos gráficos “sad
& brazilian” e “am i overexisting?” reforçam o caos estabelecido entre os
instrumentos tecnológicos e as figuras humanas. As imagens componen-
tes são interdependentes e constituem coletivamente o sentido poéti-
co da colagem de provocar reflexões acerca da existência humana e da
dependência tecnológica para o desenvolvimento de relações interpes-
soais no mundo contemporâneo.
Cada imagem-movimento (DELEUZE, 1985) componente da obra é
composta por uma temporalidade particular ditada pela passagem entre
seus quadros e pelo ato da repetição. Na ação de montagem (CARVALHO,
1999) da colagem, a união dos elementos no espaço permite a superposição
Figura 2: am I overexisting. Biarritzzz. Colagem movimento. 2020.
das janelas eletrônicas (DUBOIS, 2004) e de suas respectivas temporalida-
Fonte: <https://vimeo.com/430577143>. Acesso em set 2021.
des que, em união, definem a duração da composição.

3 O termo meme refere-se a uma imagem ou vídeo detentor de caráter humorístico


que viraliza rapidamente no âmbito digital e atinge uma quantia exacerbada de usuários.

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Exemplifico neste registro processual 4 (Figura 3) a ação da monta-
gem na videocolagem vazio (2021), parte integrante da prática artística
desenvolvida nesta pesquisa. As imagens componentes da obra são consti-
tuídas por durações singulares: algumas deslancham em plano relâmpago
(0,2 segundo) enquanto que, outras se desenvolvem percorrendo segundos
completos (4 segundos).
Para a instauração de um produto final detentor de uma específica
temporalidade, faz-se necessário que os elementos sejam montados em
repetição - em uma ação de ctrl c + ctrl v - até que compreendam todos, a
mesma duração. A temporalidade final da obra vazio (2021) é de 4 segun-
dos, por exemplo, o que implica que os elementos cujas ações são efetua-
das em 0,2 segundo tiveram que ser mecanicamente repetidos 6 vezes na
linha de montagem do quadro videográfico para que assim, preenchessem
o tempo de duração da composição. Indispensável, a operação permite
que todas as partes se façam presentes visualmente na composição. Se
essa ação não é executada, por outra via, lacunas visuais insurgem na com-
posição, tornando o espaço que outrora seria preenchido pelas imagens,
uma área vazia.
No formato GIF, a duração e o movimento são propriedades que se
encontram aglutinadas. Ao agregar diversas imagens-movimento (DELEU-
ZE, 1985) em uma composição, é necessário que a exportação da mesma
deixe de ser imagem fixa e passe a ser vídeo para que as características
constituídas do movimento e da duração no tempo, sejam preservadas. Do
contrário, durante o ato de processamento, ter-se-ia como produto final
uma colagem fixa.
A renderização da videocolagem, portanto, gera como produto final
uma construção videográfica de temporalidade única que engloba as dura-
ções particulares de todas as imagens-movimento (DELEUZE, 1985) da com-
posição. Quando posto em loop, esse conjunto compacto permite a criação
de um fluxo contínuo que mantém todos os elementos em ação.
O ato da repetição permite que a imagem-tempo (DELEUZE, 2006)
Figura 3: vazio. Massarelli, Beatriz. Registro processual. 2021. Acervo pessoal. evidencie o conflito estabelecido entre as imagens, decorrente da justa-
posição e/ou sobreposição mecânica dos signos visuais. Com a leitura do
espectador, desencadeiam-se percepções; multiplicam-se narrativas em
um processo que exalta a volatilidade:

4 Na imagem (Figura 3) são exibidas as distintas temporalidades inerentes aos ele-


mentos GIFs, integrados à videocolagem manipulada no software Vegas Pro.

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Eles são os porta-signos. E é o mais importante: da sensibi-
lidade à imaginação, da imaginação à memória, da memória
ao pensamento – quando cada faculdade disjunta comunica
à outra a violência que a leva a seu limite próprio –, é a cada
vez uma livre figura da diferença que desperta a faculdade, e
a desperta como o diferente desta diferença. Tem-se, assim, a
diferença na intensidade, a disparidade no fantasma, a desse-
melhança na forma do tempo, o diferencial no pensamento
(DELEUZE, 2006, apud MARZLIAK, 2021, p. 255).

A partir disso, a construção interpretativa dos elementos sígnicos


articulados visualmente possibilita evocar demandas internas, vivências e
particularidades do espectador na imagem (FATORELLI, 2013).

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VIDEOCOLAGEM
2. Videocolagem
Derramo-me nesta pesquisa sobre um conjunto de realizações práti-
co-experimentais que germinaram da manipulação e aglutinação de ima-
gens fixas e imagens-movimento (DELEUZE, 1985) em videocolagens. Valen-
do-me da apropriação (DUBOIS, 2019) de elementos em formato GIF, opero
o distendimento temporal por meio da repetição para despertar no domí-
nio afectivo (BERGSON, 1990) do espectador uma multiplicidade de criações
narrativas concebidas na rememoração de suas experiências intrapessoais.
A série mutatis mutandis (2021) operacionaliza elementos para abor-
dar as afetações do olhar nas constituições da autoimagem do indivíduo.
Em latim, mutatis mutandis refere-se à “mudando o que tem de ser muda-
do”. Ao instigar o espectador a revisitar seus estados de vulnerabilidade,
em uma abordagem acerca das relações humanas e das indagações que
percorrem a mente, a série instalada na plataforma de realidade virtual ( VR)
Hubs 5, objetiva exprimir a importância da reconstituição do olhar para o
outro e para si mesmo.
Mutatis mutandis (2021) (Figura 4), institui-se dentro de um túnel 6,
cujas paredes pretas são continuamente transpassadas por feixes de luzes
coloridas. A ação da montagem efetiva o espaço expositivo em uma zona
circular, onde são anexadas as videocolagens: vejo você (2019) (Figura
7), retrair (2020) (Figura 8) e transbordar (2020) (Figura 9), em estruturas
tridimensionais que operam como pilares. Adjacente a essa área é confi-
gurada a videoinstalação mente.onusta (2021) (Figura 10), incorporada em
uma estrutura constituída por parede ovaladas.

5 Mallmann, Lima e Puhl (2017, p.6), definem a realidade virtual como “uma tecno-
logia de interação profunda entre um sistema operacional e um usuário” que explora
os sentidos do ser humano em uma interface computacional. Hubs, desenvolvida pela
Mozilla, trata-se de uma plataforma online de elaboração de espaços imersivos 3D
que permitem a conexão remota entre usuários. Disponível em: <https://hubs.mozilla.
com/docs/welcome.html>. Acesso em nov 2021.

6 O modelo do espaço 3D intitulado Trippy Tunnel v2, desenvolvido por J-conrad


da equipe Hubs, foi apropriado nesta pesquisa para a criação do espaço expositivo de
mutatis mutandis (2021). Disponível em: <https://skfb.ly/6CuIO> Acesso em nov 2021.

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Ao permitir que o observador navegue pela exposição através de um
avatar que pode percorrer as dimensões do ambiente virtual em desloca-
mentos espaciais e em rotações em 360°, a plataforma possibilita que ele
estabeleça o seu próprio quadro imagético (MALLMANN et al., 2017, p. 7):
“A passagem de um ponto de vista (enquadramento) para multipontos (360
graus) auxilia na percepção de ambiente real, amplificada pelo comando
do ponto de vista que o próprio usuário escolhe”.
As possibilidades de percepção das obras são ampliadas na realida-
de virtual, dada a orientação do espectador no espaço: ao contrário de
um quadro bidimensional, cujo enquadramento frontal é pré-definido,
o espaço em multipontos (MALLMANN et al., 2017) permite que, ao situ-
ar-se em diferentes instâncias espaciais, o espectador possa observar a
Figura 4: mutatis mutandis. Massarelli, Beatriz. Registro do espaço expositivo.
composição em ângulos diversos, o que pode lhe afetar (BERGSON, 1990)
2021. Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021. de maneiras distintas.
A constituição das obras no espaço expositivo demanda do relacio-
namento estabelecido entre elas: operando as afetações do olhar em uma
narrativa sequencial, as videocolagens são incorporadas por elementos
simbólicos que retratam os estágios do processo afectivo (BERGSON, 1990)
aqui abordado. Vejo você (2019), disposta em contraposição espacial à
retrair (2020) e transbordar (2020), alude a transmissão dos olhares conti-
dos na primeira, às figuras centrais das obras posteriores (Figura 5). A
videoinstalação mente.onusta (2021), por fim, realiza uma abordagem
acerca da autoimagem afetada por estes olhares.

Figura 5: mutatis mutandis. Massarelli, Beatriz. Registro da disposição das obras em contraposição
no espaço expositivo. 2021. Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.

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As investigações das obras componentes da série têm gênese em
um procedimento de anexação de múltiplas imagens GIF no suporte
vertical da ferramenta Stories da plataforma Instagram. Essas construções
foram posteriormente deslocadas para o software de edição Vegas Pro,
que permitiu a ampliação das possibilidades de manipulação e estrutura-
ção das obras.
O processo de criação das proposições consiste em uma ação mecâ-
nica de montagem (CARVALHO, 1999) das imagens-movimento (DELEUZE,
1985), configurada em uma organização espacial de janelas eletrônicas
(DUBOIS, 2004) em superposição. Nesta realização, os elementos GIF
são hierarquizados em faixas videográficas distintas que atuam como
as camadas da composição (Figura 6) 7. Os procedimentos de manipu-
lação imagética - redimensionar (ampliar e reduzir) e deslocar elemen-
tos espacialmente no quadro videográfico - permitem que os produtos
visuais situados nas faixas superpostas gerem cortes visuais nas imagens
distribuídas em faixas inferiores, causando o efeito de fragmentação por
sobreposição (DUBOIS, 2004).
Em retrair (2020) (Figura 8), dada a aglutinação de múltiplos ele-
mentos na composição, o efeito fragmental (DUBOIS, 2004) opera como
seletor das partes visíveis das imagens. A sobreposição e organização dos
GIFs em camadas no espaço videográfico (Figura 6) geram cortes visu-
ais que interceptam as imagens, em uma execução que se assemelha ao
efeito de Máscara 8. A sequência de elementos ao fundo da composição
trata-se de três figuras azuis, constituídas por cabeças e braços, que tor-
nam a chorar compulsivamente. O efeito de sobreposição da sacola plás-
tica gera nas mesmas um corte horizontal que permite que unicamente
os braços em movimento permaneçam visíveis. As outras constituições
dessas imagens (cabeça e lágrimas), por outra via, são ocultadas pelo GIF
superposto em uma janela eletrônica (DUBOIS, 2004).

Figura 6: retrair. Massarelli, Beatriz. Registro processual. 2021. Acervo pessoal.


7 A Figura 6 em destaque, apresenta um registro processual da construção da
videocolagem retrair (2020) no software de edição Vegas Pro. As faixas horizontais
enumeradas de 2 a 11 hierarquizam os elementos: imagens localizadas ao fundo da
composição preenchem as faixas videográficas de numerações maiores, enquanto que,
as imagens que as sobrepõem, situadas a fronte na composição, são inseridas nas ca-
madas de numerações menores.

8 O efeito Máscara contido no software Vegas Pro permite que o editor manipule
e selecione partes constituintes da imagem com uma ferramenta de recorte em veto-
res. O resultado de sua operação gera um produto constituído visualmente apenas
pela parte demarcada, enquanto que a descartada é isolada em transparência no qua-
dro videográfico.

32 33
A ação da montagem, segundo Eisenstein (1994):

Portanto, montagem é conflito. Como a base de toda arte é


conflito (uma transformação imagista do princípio dialético).
O plano surge como a célula da montagem e, daí, deve ser
também considerado através do ponto de vista do conflito. O
conflito dentro do plano e a montagem em potencial, no desen-
volver de sua intensidade, fragmentando a gaiola quadriláte-
ra do mesmo plano e fazendo eclodir seu conflito através de
impulsos da montagem entre as partes da montagem. (Eisens-
tein, 1994, apud CARVALHO, 1999, p. 57).

As janelas eletrônicas (DUBOIS, 2004) no princípio da montagem ei-


sensteiniana amplificam as possibilidades de construções narrativas por
meio da interferência e do conflito entre elementos superpostos situados
em quadros distintos. Sob a estética do “reúso” (DUBOIS, 2019, p.23), ao
operarem coletivamente, as imagens apropriadas nesta pesquisa constro-
em as abordagens das videocolagens componentes da série.
Em vejo você (2019) (Figura 7), percorro a afetação do outro na
construção da autoimagem de cada indivíduo. A composição aborda o
olhar por meio de elementos simbólicos operados em aglutinação. Du-
rante o ato da montagem (EISENSTEIN, 1994), em uma ação de repetição
mecânica, o quadro videográfico foi preenchido por anexações paralelas
de GIFs de olhos diversos. O movimento contido nas imagens permite
que os diversos olhares percorram horizontalmente as dimensões da tela
enquanto superfície. Superposta a ela, uma sequência de globos ocula-
res azuis desloca-se em um movimento em espiral que viabiliza a expan-
são das figuras no quadro. Através do redimensionamento progressivo
da imagem, a sensação de aproximação frontal dos olhos é provocada
no observador. Em ação conjunta, no decorrer de seus deslocamentos
horizontais e frontais nas extensões da composição, estes elementos se
direcionam ao extracampo imagético e atingem o observador, evocando
a sensação de ser observado por múltiplos olhares.
A obra realiza uma abordagem acerca das relações e afetações huma-
nas e salienta o impacto de um olhar que repreende e estabelece normas
que corroem as percepções de si. O golfinho entornado em constância pela
face estática ao centro da composição retrata simbolicamente o transbor-
dar das palavras adjacentes a este olhar.

Figura 7: vejo você. Massarelli, Beatriz. Videocolagem. 720px1184p. 2019.


Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.

34
Valendo-me do recurso de loop, permito que as ações das imagens
(DELEUZE, 1985) sejam efetuadas ininterruptamente nas dimensões da é algo que fascina o corpo; é o campo do indizível da imagem:
aquilo que cala na alma do observador porque o olhar não é
obra. Ao submeter o movimento da imagem ao tempo (MARZLIAK, 2021),
capaz de capturar. Ele somente patina sobre essa superfí-
por meio da repetição, evoco o olhar prolongado (FATORELLI, 2013) do
cie, pois o punctum se apresenta no campo cego da imagem
espectador ao domínio afectivo (BERGSON, 1990) da videocolagem. (FONTANARI, 2015, p. 67).
Durante o estado contemplativo, os desencadeamentos visuais
da obra ferem (BARTHES, 1984) o espectador e o instigam a rememorar Operando por meio de uma ação associativa, o corpo em estado
experiências pessoais que lhe geraram grande impacto. Aglutinadas às afectivo (BERGSON, 1990) resgata imagens fixadas na memória e as relacio-
reflexões: na às imagens constituintes da composição. A ação pungente (BARTHES,
1984) da imagem-afecção (BERGSON, 1990) de “mobilizar a memória
As sobreposições das formas visuais e os intervalos entre as
pura na criação de uma nova entidade” (FATORELLI, 2012, p. 50) provoca
imagens proporcionam o surgimento de modos de encadea-
ampliação das possibilidades interpretativas determinadas pela absorção
mento, de paradas, de suspensões ou de acelerações, alteran-
do significativamente as margens de indeterminação do sujeito do conteúdo da obra e sua aglutinação às indagações e experiências do
e expandindo o seu domínio afectivo. Esse trabalho entre a espectador (FATORELLI, 2013), evocando suas reflexões acerca do olhar.
imagem fixa e a imagem movimento, se realiza sob o signo
Diferentemente da percepção, que mede o poder refletor do
do estranhamento, desestabilizando as convicções tradicio-
corpo, a afecção mede seu poder absorvente, aponta para o
nalmente associadas aos meios, sempre de modo a acrescen-
interior do corpo, para o que esse corpo acrescenta aos corpos
tar uma interrogação e uma suspeita por parte do observador
exteriores. Portanto, mais do que prolongar estímulos exter-
(FATORELLI, 2013, p. 87).
nos em ações consecutivas, além de reagir de modo previsível
em concordância com o hábito e com as demandas imedia-
No decorrer de sua interpretação, o espectador assume um olhar tas, o centro de indeterminação pode produzir uma experiên-
sensível (FONTANARI, 2015) que amplia a condição perceptiva e permite cia singular, criar novos hábitos, despertar novas disposições
que ele seja tomado por uma experiência afectiva (BERGSON, 1990). (FATORELLI, 2012, p. 49).
O processo de afecção (BERGSON, 1990), singular a cada observador,
Decorrente do atravessamento de vejo você (2019), operam em con-
situa-se em um território de construções narrativas expandido, nomeado
junto as obras retrair (2020) e transbordar (2020). O ferimento causado
centro de indeterminação (BERGSON, 1990). Este, aponta as imagens
pelo olhar, abordado em vejo você (2019), concebe nas obras conseguin-
como “preexistentes à consciência” (FATORELLI, 2012, p. 49).
tes o desencadear de recepções afectivas que reverberam em seus ele-
Certos detalhes da imagem destacam-se durante a contemplação da
mentos centrais.
videocolagem e atingem o observador em ações pungentes que o ferem
(BARTHES, 1984) e despertam indagações na mente. O punctum (BARTHES,
1984), sendo um “detalhe que parte da cena, e vem me transpassar”
(BARTHES, 2002, apud FONTANARI, 2015, p. 67):

36 37
“Retrair” (2020) (Figura 8) amplifica as afetações do olhar contido
em “vejo você” (2019) por intermédio da montagem, cuja ação promove a
condensação dos elementos em janelas eletrônicas superpostas (DUBOIS,
2004) que circundam a figura central da composição. Essa organização
permite que as imagens-movimento (DELEUZE, 1985) incitem o conflito
ao coletivamente operarem provocações à face em desapontamento. A
agressividade do olhar, abordada na obra, é transmitida pelas ações colé-
ricas executadas pelas imagens (mãos, chamas e bananas), que se des-
locam e explodem em movimentos acelerados que atingem o elemento
central da composição e provocam o seu retraimento, exprimido visual-
mente por uma compressão facial que o desfigura. O rosto em defor-
mação reflete o incômodo de ser incessantemente ferido por ações que
objetivam reforçar a incapacidade do sujeito e lhe induzem o sentimento
de não pertencimento.
A videocolagem objetiva induzir o espectador a estabelecer o para-
lelo entre sua vivência e o conteúdo da obra através das relações estabe-
lecidas entre os elementos da composição. O uso do loop permite que os
distintos movimentos das imagens (DELEUZE, 1985) reajam ininterrupta-
mente uns sobre os outros no quadro videográfico. Os conflitos gerados
pela repetição ferem (BARTHES, 1984) e estimulam o observador a projetar
suas aflições nos atritos exprimidos na obra.

[...] uma vez desencadeados os processos afectivos, abrindo


um hiato entre a percepção e a ação, o corpo expande a sua
margem de indeterminação deixando entrever o seu papel
produtivo. Estabelece-se, nesse momento, uma relação singu-
lar com o virtual, com as outras imagens mentais e materiais,
que vai marcar o conjunto dos elementos envolvidos nesse
circuito (FATORELLI, 2012, p. 50).

A sacola plástica em união às faces que se derramam em incessan-


tes lágrimas indiciam vestígios dos efeitos causados pelas perturbações da
composição. Essa afetação é transpassada em transbordar (2020) (Figura
9), cujo resultado visual incorpora uma nuvem de lágrimas que se entor-
nam prolongadamente na composição.

Figura 8: retrair. Massarelli, Beatriz. Videocolagem. 720px1184p. 2020.


Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.

38
Transbordar (2020) (Figura 9) aborda a exteriorização dos sentimen-
tos do indivíduo. A figura humana, em união à nuvem e as gotas de chuva,
retrata o extravasar das angústias acumuladas que permeiam a mente.
No ato de manipulação das imagens-movimento (DELEUZE, 1985) o gote-
jamento da nuvem foi retardado (FATORELLI, 2013), para que pela desace-
leração da imagem, a melancolia fosse instaurada na cena.
A afetação dos elementos anteriormente abordados em retrair (2020)
é resgatada em perturbações visuais executadas por mãos no espectro da
obra. Configuradas como vestígios do olhar, as imagens instrumentalizam
interferências que rememoram o sujeito de sua incompletude. A amorfi-
dade situada sobre a mente da figura, representativa da autoimagem des-
se ser, é continuamente atingida e desfigurada pela mão, em uma ação que
espelha o corromper dos pensamentos.
A manipulação dos elementos durante a montagem (EISENSTEIN,
1994) opera o conflito entre as imagens a partir da contraposição de seus
movimentos (DELEUZE, 1985): as provocações executadas pelas mãos são
aceleradas, enquanto o percorrer das lágrimas no quadro é retardado, o
que permite a sugestão visual do ferimento. A figura humana atingida
exprime o seu desalento no transbordar das gotas que percorrem o âmbi-
to compositório.
As proposições poéticas “vejo você” (2019), “retrair” (2020) e “trans-
bordar” (2020), conectadas sequencialmente, colocam em pauta a potên-
cia da afetação do outro na constituição de problemáticas que permeiam
a mente. Com o uso técnico do loop, as videocolagens assumem a postura
de instrumentos de reflexão que, a partir da repetição, ferem (BARTHES,
1984) o observador e lhe proporcionam “a oportunidade de projetar na
imagem as suas demandas internas” (FATORELLI, 2013, p. 90). As obras
instigam o repensar das relações humanas, evidenciando ações nocivas
que acarretam traumas e posteriores inseguranças e que constituem as
sensibilidades dos sujeitos.

Figura 9: transbordar. Massarelli, Beatriz. Videocolagem. 720px1184p. 2020.


Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.

40
A videoinstalação “mente.onusta” (2021) (Figura 10), última obra
da série, verbaliza sobre a ação do ferimento nas sensibilidades que ins-
tanciam o sujeito. Instalado na plataforma de realidade virtual Hubs, da
Mozilla, o espaço configura-se em uma estrutura ovalada constituída por
superfícies escuras, cujo interior é preenchido pelas videocolagens “vazio”
(2021) e “cheio” (2021) (Figura 11), que operam percepções antônimas
(sentir-se vazio/sobrecarregado, mentalmente). A integração das obras
no espaço é realizada em uma montagem que as estrutura em repetições
intercaladas, e, a partir do conflito, constituem um ambiente que retrata
a sobrecarga mental e a fragilidade dos atravessamentos da mente.
“Mente.onusta” (2021) opera o antagonismo das composições para
abordar a decorrência da autoimagem sobre os pensamentos e insegu-
ranças que percorrem a mente. Contrapondo espacialmente as videocola-
gens “vazio” (2021) e “cheio” (2021), a videoinstalação cerca o observador
pelas obras em loop e objetiva atingi-lo (BARTHES, 1984) através do
movimento das imagens (DELEUZE, 1985) para despertar reflexões acerca
do olhar sobre si mesmo.

Figura 10: mente.onusta. Massarelli, Beatriz. Registro da


vista externa da videoinstalação construída no Hubs. 2021.
Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.

42 43
Figura 11: mente.onusta. Massarelli, Beatriz. Registro
do interior da videoinstalação construída no Hubs. 2021.
Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.

44
“Vazio” (2021) (Figura 12) aborda o sentimento de incompletude
que permeia a mente através de uma série de pontos de luz aderidos às
dimensões do espaço imagético. Evocando uma representação visual do
interior da mente, a composição constitui um espaço cuja escuridão do
fundo permite realçar os pensamentos fragmentados, representados por
elementos luminosos que percorrem a tela. As partículas em reverbera-
ção dissipam-se pela superfície da obra em movimentos (DELEUZE, 1985)
verticais e transversais que exprimem simbolicamente, através da repeti-
ção, o dispersar progressivo dos pensamentos, que ora transpassam a face
humana situada na parte superior da composição. Enlaçadas ao questio-
namento “who really knows what’s happening ever” 9, essas constituições
operam, em seus deslocamentos, o fragmentar das percepções de si,
decorrente da autoimagem do indivíduo.
Superpondo as configurações luminosas, a estrutura amorfa ao cen-
tro da composição aglutina em sua janela eletrônica (DUBOIS, 2004) o inal-
cançável sentimento de completude que permeia o sujeito. Os elementos,
em união, buscam afetar (BERGSON, 1990) e instigar o espectador a refletir
acerca da ausência em si mesmo, consecutiva das angústias que insurgem
nas relações humanas e incutem na mente inseguranças que ferem (BAR-
THES, 1984) o olhar a si mesmo e induzem a um vazio mental.

9 Quem realmente sabe o que sempre está acontecendo (Nossa tradução).

Figura 12: vazio. Massarelli, Beatriz. Videocolagem. 720px1184p. 2021.


Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.

46
Em confrontação a “vazio” (2021) (Figura 12), a videocolagem “cheio”
(2021) (Figura 13) enfoca a aglutinação ensurdecedora de pensamentos
decorrentes do olhar que o indivíduo tem de si. Como operadores deste
ferimento (BARTHES, 1984), os olhos são integrados à composição reme-
morando o olhar contido em “vejo você” (2019) (Figura 7), de modo a
abordar a consequência da afetação (BERGSON, 1990) do outro na cons-
tituição de um olhar para si mesmo. A ação da montagem (EISENSTEIN,
1994) dispõe repetidamente estes elementos nas extensões da compo-
sição. Em movimentações (DELEUZE, 1985) cíclicas, os diversos olhares
percorrem as dimensões da superfície do quadro em direção às figuras
que os sobrepõem.
O resultado do olhar, que pressupõe inverdades e suscita inseguran-
ças que preenchem e sobrecarregam a mente, repercute no afligimento
humano. A representação deste acúmulo mental é projetada na figura de
um torso que se movimenta inquietamente. A quebra dos estilhaços que se
expandem atrás da mesma evoca, em união ao “game over” 10, a sensação
de se estar a borda de algo que não se tem controle. As figuras foram mani-
puladas (FATORELLI, 2013) na ferramenta Time-stretch 11 para que, a partir
da compressão duracional, as ações sejam executadas de forma acelera-
da e permitam que os movimentos contidos nas imagens (DELEUZE, 1985)
transpassem a aflição do ser.
A face coberta por projeções circulares evidencia o situar-se em um
estado de transe, resultado da angustiante sobrecarga mental de refle-
xões que a corroem. O olhar para si provoca o reverberar de sentimentos
e pensamentos múltiplos, incontroláveis.
A videoinstalação “mente.onusta” (2021), então, opera a represen-
tação da mente que mesmo sobrecarregada por pensamentos e insegu-
ranças, sente ausência em si mesma. As obras que constituem o espaço
realizam abordagens acerca de estados de identificação distintos (vazio/
sobrecarregado) que germinam comumente no olhar. A contraposição das
videocolagens no espaço instalativo permite que o conflito (EISENSTEIN,
1994) entre as obras fira (BARTHES, 1984) o espectador e lhe desperte um
estado reflexivo (BERGSON, 1990) que se apodera do resgate memorial
para incitar a compreensão das percepções do indivíduo sobre si mesmo.

10 Fim de jogo (Nossa Tradução).

11 A ferramenta contida no software de edição Vegas Pro permite que o tempo


contido nas faixas videográficas seja manipulado em ações de compressão ou disten-
dimento que provocam a aceleração ou retardo da imagem videográfica.

Figura 13: cheio. Massarelli, Beatriz. Videocolagem. 720px1184p. 2021.


Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.

48
A abertura do espaço expositivo “mutatis mutandis” (2021) 12 conso-
lidou o processo de instauração 13 (REY, 2002) da série, onde, a partir do
contato com as proposições poéticas na realidade virtual ( VR), o público
é ferido (BARTHES, 1984) pelos elementos GIF que induzem o estado de
reflexão (BERGSON, 1990) acerca das relações humanas. O local instaura-
tivo (REY, 2002) se faz essencial para a instituição do processo afectivo
(BERGSON, 1990) nos espectadores, dado que, a especificidade da inter-
face virtual permite que as operações de repetição promovidas nas obras
sejam executadas de forma ininterrupta no ambiente Hubs.

A obra como produto final acontece na aisthésis. Ela, acabada,


se torna um elemento ativo na produção de significados, mui-
tas vezes extrapolando as intenções do artista. O processo de
significação da obra mobiliza a maneira como esta atualiza seu
significado e mobiliza, também, as diferentes dimensões que
ela assume no decorrer do tempo, influenciando (ou não) a pro-
dução subsequente, tornando-se, em muitos casos, paradigma
para determinado movimento ou tendência (REY, 2002, p. 129).

12 Disponível em: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em nov 2021.

13 Rey (2002, p.26) identifica instauração como “a obra em processo de formação”,


subdivida em três dimensões: a primeira processa-se no nível do pensamento e das
anotações, engendrando a formação de ideias; a segunda preenche a dimensão da
prática, onde os procedimentos e as operações técnicas são executados pelo artista; a Figura 14: mutatis mutandis. Massarelli, Beatriz. Cartaz de abertura da exposição.
terceira dimensão, por fim, trata-se da formação de conceitos e da obra como produto 2021. Fonte: <https://hub.link/NMycC98>. Acesso em out 2021.
final, em contato com o espectador.

50 51
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mutatis mutandis (2021) exprime para nós, sujeitos, a importância


de se repensar e reconstituir o olhar para o outro e o olhar para si mes-
mo. Ao evocar a memória, a afecção (BERGSON, 1990) das imagens expõe
de qual maneira os olhares afetam as percepções, as inseguranças que
percorrem a mente e a imagem que temos de nós mesmos. Para além
disso, nos fazem refletir como nosso olhar afeta o outro. Estas jornadas
intrapessoais efetivam a intenção desta pesquisa de incitar a mudança, a
reinterpretação de si e a forma como nos direcionamos ao outro.
O uso da plataforma Hubs foi essencial para a instauração (REY,
2002) da série, visto que, ao inserir no espaço VR elementos arquitetôni-
cos (paredes e pilares) que replicam a estrutura de espaços expositivos
físicos, induz-se ao espectador um percurso no qual a construção
narrativa discorre na sequencialidade e na contraposição das obras
no ambiente virtual. As especificidades inerentes ao espaço expositivo
– visualização em multipontos (360 graus), disposição de elementos
videográficos em loop e o transpassar dos feixes de luzes coloridas
nas paredes – conferindo ampliação das percepções dos espectado-
res e de suas jornadas interpretativas, permitem que eles interajam e
se desloquem pelo ambiente, gerando novos relacionamentos entre
indivíduos e produções plásticas, o que efetiva a intenção reflexiva e
afetiva desta pesquisa.
Considerando as possibilidades de simulação e interação, anexas
a este ambiente, busco repensar e expandir o uso da realidade virtual,
operando-a como um suporte a videocolagem e aos procedimentos afec-
tivos (BERGSON, 1990) inerentes a mesma. As problematizações levanta-
das na experimentação aqui desenvolvida, são amplificadas pelo desejo
de explorar a inserção da multisensorialidade no ambiente imersivo VR.
Em “mutatis mutandis” (2021), percorro a visão e o olhar enquanto poética.
A integração de múltiplos componentes estimuladores em um ambiente
comum, que exploram todos os sentidos humanos e objetivam amplificar
a experiência afectiva (BERGSON, 1990) do espectador e lhe provocar a
sensação de pertencimento momentâneo à realidade induzida, integram
as problemáticas conseguintes a este estudo.

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