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1. Introdução
*
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Associada do
Departamento de Direito da PUC-Rio.
1
WARREN, Samuel D. e BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. In: Harvard Law Review,
vol. IV, n. 5, 1890. Segundo Stefano Rodotà: “Già a metà dell'Ottocento uno scrittore, Robert
Kerr, descriveva la società dell'Inghilterra vittoriana parlando di un ‘diritto ad essere lasciato
solo’, quarant'anni prima del saggio famoso di Warren e Brandeis; e analizzava il significato
della privacy, individuando la sua caratteristica essenziale nel ‘rispetto reciproco e l'intimità’”.
(A vida na sociedade de vigilância. Privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, no prelo).
2
Assim BEIGNER, Bernard. Les droits de la personnalité. Paris: PUF, 1992, p. 58, com base nos
relatos de Arthur Young. No mesmo sentido, ELIAS, Norbert. O processo civilizador. vol. I,
passim. Manifesta outra opinião SENNETT, Richard. O declínio do homem público. As tiranias da
intimidade. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
3
Segundo LEITE DE CAMPOS, Diogo. Nós. Estudos sobre o direito das pessoas. Coimbra:
Almedina, 2004, p. 115 e ss.: “O direito à privacidade (cada cidadão – um castelo), que está na
base dos direitos da personalidade, seria o mais impensável dos direitos (p. 117).
2
4
A elaboração partiu de FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I. A vontade de saber. Rio
de Janeiro: Graal, 1993 e foi recentemente retomada por AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O
poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2004. Foucault situa a ‘biopolítica’ no
quadro de uma ação mais ampla que denomina de ‘biopoder’: “Sua tese fundamental supõe que,
no regime da soberania, o súdito deve sua vida e sua morte à vontade do soberano: ‘é porque o
soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida’, (p. 287). Nestas condições o poder é
um mecanismo de retirada e de extorsão, ou seja, um poder negativo sobre a vida. Diferentemente,
na época clássica, o poder deixou de basear-se predominantemente na retirada e na apropriação,
para funcionar na base da incitação e da vigilância. Ele começou a produzir, intensificar e ordenar
forças mais do que limitá-las ou destruí-las. Esse é o ponto no qual se pode situar a clássica
passagem do poder ao biopoder tal como proposta por Foucault: “de fazer morrer e deixar viver
[soberania]” o poder passa “a fazer viver e deixar morrer [biopoder/biopolítica]”. (ARÁN, Márcia e
PEIXOTO JÚNIOR, Carlos Augusto. Vulnerabilidade e vida nua: bioética e biopolítica na atualidade.
In: Revista de Saúde Pública, vol. 41, n. 5, São Paulo, out. 2007)
5
Para a definição do termo, v. MARTINS-COSTA, Judith. Bioética e dignidade da pessoa humana:
rumo à construção de um biodireito. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n. 3, 2000, p. 64.
3
6
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. Privacidade hoje. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, no prelo.
7
WESTIN, Alan F. Privacy and Freedom. New York: Atheneum Publishers, 1967
8
Dados sensíveis são os dados pessoais que dizem respeito à saúde, opiniões políticas ou
religiosas, hábitos sexuais etc. aptos a gerar situações de discriminação e desigualdade.
4
Federal e coordenadas pelo Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr.. Assim, na I Jornada,
realizada em 2002, foi aprovado o Enunciado n. 4: “O exercício dos direitos da
personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente
nem geral”. Em 2004, na III Jornada, acentuou-se a distância em relação à
interpretação literal do dispositivo, com a aprovação do Enunciado n. 139: “Os
direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente
previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular,
contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes”.9
9
Os enunciados aprovados nas diversas Jornadas de Direito Civil estão reunidos na internet,
disponíveis em www.jf.gov.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296, acesso em
20.11.2007.
10
Com o objetivo de constarem de Anteprojeto de Código Civil, em seguida revisto por Comissão
que incluiu, além do autor, Caio Mário da Silva Pereira e Orosimbo Nonato (Revisão de
Anteprojeto, 1964). Ambos os documentos, tanto o anteprojeto como sua revisão, compõem o vol.
2 de publicação do Senado Federal intitulada Código Civil. Anteprojetos, Brasília: Senado Federal,
1989. De 1963 em diante, em relação ao capítulo dos direitos da personalidade, a única
modificação significativa foi a inclusão do atual art. 21 do CCb, acrescido em 1983 ao Projeto da
Câmara dos Deputados 634/75, enviado em 15.06.1984 ao Senado Federal (SF-Projeto de Lei da
Câmara n. 118/1984). O Senado manteve a redação aprovada pela Câmara.
11
Para a crítica, v. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao direito civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 153 e ss.
12
Assim, PERLINGIERI, Pietro. Perfis, cit., p. 155.
5
extrapatrimoniais, onde não existe dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos
representam a pessoa humana.13 Esta problemática transposição vem ocorrendo
mediante a atribuição de uma série de características excepcionais aos direitos
subjetivos comuns – necessariedade, vitaliciedade, extrapatrimonialidade,
inalienabilidade, indisponibilidade, inexpropriabilidade, intransmissibilidade,
irrenunciabilidade, impenhorabilidade, imprescritibilidade –, mas que, mesmo
assim, não estão aptas a garantir uma valoração apropriada do merecimento de
tutela dos interesses em jogo, especialmente por continuarem a revestir, no âmbito
civilista, uma ótica de proteção essencialmente repressivo-ressarcitória.14
Limitando-se a este perfil, estão contidas no disposto no art. 12 do Código
de 2002 as medidas judiciais previstas no CPC, nos arts. 287, 273 e 796,
respectivamente obrigação de fazer, antecipação de tutela e medidas cautelares
tais como busca e apreensão. No entanto, graças à legislação especial pós-88, é
possível reconhecer, aqui e ali, a intervenção do legislador em sua tarefa de
atuação promocional, e a expressa abertura ao juiz para exercer o papel de dar
eficácia ao acesso à justiça, através de instrumentos diferenciados e mais
eficientes. Assim, por exemplo, ocorre no Estatuto da Criança e do Adolescente,
na averiguação oficiosa da paternidade, no Estatuto do Idoso, na lei Maria da
Penha etc.
A propósito dos direitos da personalidade, um de seus aspectos mais
interessantes, e problemáticos, consiste no fato de que se evidenciam sempre
novas instâncias concernentes à personalidade do sujeito, não previstas nem
previsíveis pelo legislador, de modo que estes interesses precisam ser tidos como
uma categoria aberta. De fato, à uma identificação taxativa dos direitos da
personalidade opõe-se a consideração de que a pessoa humana – e, portanto, sua
personalidade – configura-se como um valor unitário, daí decorrendo o
reconhecimento pelo ordenamento jurídico de uma cláusula geral a consagrar a
proteção integral da sua personalidade, isto é, a pessoa globalmente considerada.
O conceito é, então, elástico, abrangendo um número ilimitado de hipóteses; e
somente encontra os limites postos na tutela do interesse de outras personalidades.
Nessa medida, bem fez o legislador civil português ao optar pela cláusula geral de
tutela, reconhecendo que a proteção dos direitos da personalidade, para ser eficaz,
deve ser a mais ampla possível. O art. 70º, 1, do Código Civil português de 1966
declara: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de
ofensa à sua personalidade física ou moral”.
No direito brasileiro, a previsão do inciso III do art. 1º da Constituição, ao
considerar a dignidade humana como valor sobre o qual se funda a República,
representa uma verdadeira cláusula geral de tutela de todos os direitos que da
personalidade irradiam. Assim, em nosso ordenamento, o princípio da dignidade
da pessoa humana atua como uma cláusula geral de tutela e promoção da
13
PERLINGIERI, Pietro. Perfis, cit., p. 155.
14
Como explica TEPEDINO, Gustavo: “A tutela da pessoa humana, além de superar a perspectiva
setorial (direito público e direito privado), não se satisfaz com as técnicas ressarcitória e repressiva
(binômio lesão-sanção), exigindo, ao reverso, instrumentos de proteção do homem” (A tutela da
personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: Temas de Direito Civil. 3. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 48-49).
6
personalidade em suas mais diversas manifestações que, portanto, não pode ser
limitada em sua aplicação pelo legislador ordinário.15
A concepção revela seu proveito de forma ainda mais incisiva quando se
tem que enfrentar os difíceis conflitos nos quais há a colisão de interesses
relativos à proteção da personalidade. Não parece possível solucionar em termos
de titularidade ou não de direitos subjetivos os recorrentes conflitos envolvendo a
proteção da personalidade, especialmente quando, do outro lado, é também uma
expressão da dignidade de outra pessoa que está em jogo.
Nos casos de colisão – como entre os direitos à informação, de um lado, e
à imagem, honra ou privacidade, de outro – o melhor caminho é reconhecer nos
chamados direitos da personalidade expressões da irrestrita proteção jurídica à
pessoa humana e, portanto, atribuir-lhes a natureza de princípios de inspiração
constitucional. Assim, tais litígios deverão ser examinados através do já
amplamente aceito mecanismo da ponderação 16 com o objetivo de verificar, no
caso concreto, onde se realiza mais plenamente a dignidade da pessoa humana,
conforme a determinação constitucional.
Como consequência, qualquer reflexão acerca dos direitos da
personalidade deve ter como ponto de partida o fato de que: “Os direitos da
personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são
expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc.
III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de
colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a
técnica da ponderação”.17
15
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade, cit., p. 50.
16
Alexy define os princípios como “normas que ordenam a realização de algo na maior medida
possível, relativamente às possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte,
mandados de otimização que se caracterizam por poder ser cumpridos em diversos graus”, por
meio de uma ponderação, a qual corresponde à seguinte medida de proporcionalidade: “Quanto
mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, tanto maior deverá ser a importância do
outro” (ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y razón. In: Doxa, n. 5, 1988, p. 143-
147).
17
Este é o teor do Enunciado n. 274, aprovado na IV Jornada de Direito Civil (2006).
7
de um “corpo eletrônico” que vem se tornando, a passos cada vez mais largos, a
senha, imprescindível nas relações eletrônicas: impressões digitais, DNA,
geometria da mão, da orelha, da íris, da retina, dos traços faciais, voz, assinatura,
uso do teclado, e até mesmo o modo de andar marcam a individualidade de cada
um, podendo, portanto, servir à sua identificação.18
Realmente, as principais perplexidades em torno do tema dizem respeito
ao extraordinário desenvolvimento da biotecnologia e a suas consequências sobre
a esfera psicofísica do ser humano, em especial a proteção ao material genético e
reprodutivo.19 De fato, as hipóteses em que a proteção da liberdade da pessoa
entra em confronto com a sua integridade psicofísica têm se avolumado. A partir
dos tão debatidos casos de transfusão de sangue a pacientes testemunhas de Jeová
e de alimentação forçada de sujeitos em greve de fome, novas demandas, ainda
mais desconcertantes, se juntaram a estas, colocando em discussão os termos da
tutela ao direito ao próprio corpo.
A situação mais extrema, dentre essas hipóteses, parece ser a dos que
sofrem de apotemnofilia (BIID para body integrity identity disorder), vulgarmente
conhecidos como “amputados por escolha” (amputees by choice ou wannabes),
pessoas que, embora não estejam fisicamente doentes, desejam, às vezes
ferozmente, ter um de seus membros amputado. 20 Esta condição tornou-se visível
a partir de sua divulgação na internet e hoje há diversas listas de discussão, uma
delas intitulada justamente amputees-by-choice, a qual tem se preocupado em
oferecer, segundo se diz, algum alívio aos portadores desta disfunção, os quais
passam a se sentir menos solitários e menos excepcionais.21
O Código Civil indica, no art. 13, três critérios para regular os atos de
disposição do próprio corpo: a diminuição permanente à integridade física, os
bons costumes e, a autorizar o ato, a exigência médica ou finalidade terapêutica.22
18
Assim, RODOTÀ, Stefano. Transformações do corpo. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n.
19, jul.-set. de 2004, p. 93).
19
V., por todos, os diversos artigos reunidos na obra editada por KOLB, Robert W. The Ethics of
Genetic Commerce. Oxford: Blackwell Pub., 2007.
20
Ilustrativa desta rara condição é a história de Karl, um químico americano, que após estudos
aprofundados de termodinâmica, foi capaz de avaliar as condições ideais para que suas pernas,
mergulhadas em gelo seco por seis horas, não tivessem mais salvação: v. What Drives People to
Want to Be Amputees? no site ABC News, disponível em http://abcnews.go.com/Primetime/
Health/ story?id=1806125, acesso em 20.10.2007. Atualmente, o fenômeno está sendo estudado
especialmente pelo Dr. Michel B. First, um dos editores da DSM-IV e da DSM-IV-TR, que
cunhou o termo BIID e dele agora começa a diferenciar hipóteses: AID – “Amputee Identity
Disorder”seria apenas um dos casos de BIID. O Dr. First considera, ao menos conceitualmente,
BIID/AID como uma condição análoga ao transexualismo (GID/Gender Identity Disorder).
21
ELLIOT, Carl. A new way to be mad. In: The Atlantic Monthly, dez. 2000, disponível na
internet em The Atlantic.com (ora em http://www.theatlantic.com/doc/prem/200012/madness),
acesso em 20.10.2007. Para tentar entender o ponto de vista do doente, v. http://www.amputee-
online.com/amputee/ wannabee.html. No Brasil, v. o pioneiro artigo de KONDER, Carlos Nelson. O
consentimento no biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes. In: Revista Trimestral de
Direito Civil, n. 15, jul.-set. de 2003, pp. 41-72.
22
Código Civil, art. 13: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio
corpo quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons
costumes”. Já na I Jornada de Direito Civil (2002) o Enunciado n. 6 explicitava: “A expressão
‘exigência médica’ contida no art. 13 refere-se tanto ao bem-estar físico quanto ao bem-estar
psíquico do disponente”.
8
23
Recentemente, porém, BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity
Disorder and the Ethics of Amputation. In: Journal of Applied Philosophy, vol. 22; n. 1, 2005,
pp. 75-86, tendo em vista o grau normal de autonomia e racionalidade que apresentam os doentes,
sustentam que, do ponto de vista ético, enquanto não houver outra possibilidade de cura, a cirurgia
deve ser autorizada.
24
Inicialmente pela Resolução 1472/1997, atualmente pela Resolução 1652/2002, ambas do CFM.
25
Mas, cf. o Enunciado n. 276, aprovado na IV Jornada de Direito Civil (2006) que se refere
expressamente à alteração do sexo: “O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio
corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os
procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a conseqüente alteração do
prenome e do sexo no Registro Civil”.
26
STJ, 3ª T., REsp. 678.933, Rel. Min. Carlos Alberto M. Direito, julg. 22.03.2007, publ.
21.05.2007 em cuja ementa se lê: “Mudança de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido
quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua
opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a
alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode comparar com qualquer
outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de
ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse
adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para
o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria
preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu
caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido
e provido”.
27
RODOTA, Stefano. Présentation générale des problèmes liés au transsexualisme. In:
Transsexualisme, médicine et droit, XXIII Coloque de Droit Européen, Pays Bas, Vrije
Universiteit, 1993, p. 20.
9
28
“Investigação de paternidade. Exame DNA. Condução do réu ‘debaixo de vara’. Discrepa, a
mais não poder, das garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade
humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução
específica da obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de
paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, “debaixo de
vara”, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano
jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao
deslinde das questões ligadas à prova dos fatos” (STF, Tribunal Pleno, HC 71.373-4, Rel. p/ o
acórdão: Min. Marco Aurélio Mello, julg. 10.11.1994 – v.m.).
29
BODIN DE MORAES, M. C. Recusa à realização do exame de DNA na investigação da
paternidade e direitos da personalidade. In: Revista Forense, n. 343, jul.-set. de 1998, p. 168.
30
Art. 4º da L. 9.434/97, com a redação dada pela L. 10.211/01: “A retirada de tecidos, órgãos e
partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica dependerá da
autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral,
até o segundo grau, inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à
verificação da morte”.
31
Neste sentido o Enunciado n. 277, aprovado na IV Jornada de Direito Civil (2006): “O art. 14 do
Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo
científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador
de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4º da Lei
n. 9.434/97 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador”.
10
32
Assim, por exemplo: “Já o artigo 15 dispõe acerca de tratamento médico compulsório, salvo em
situações que a intervenção gere risco de vida para o paciente. Esse artigo resta de todo autoritário
e completamente anacrônico, em relação às teorias da Bioética, em especial no que tange o
Consentimento Informado”. (STANCIOLI, Brunello Souza. Os direitos da personalidade no novo
Código Civil brasileiro. In: Videtur, n. 27, disponível em http://www.hottopos.com/videtur27/
index.htm, acesso em 27.11.2007).
33
“Os inquisidores que impunham caridosamente a salvação da alma foram substituídos por outros
inquisidores que zelam pela saúde pública dos corpos, sobretudo quando sua reparação representa
um custo para a previdência. A cruzada contra o cigarro, causa dos piores atentados contra a
liberdade pessoal, é um exemplo deste puritanismo em nome da vida – entendida esta como
duração produtiva” (SAVATER, Fernando. El valor de eligir. Barcelona: Ariel, 2003, p. 107).
11
34
Sobre o tema, remete-se a BODIN DE MORAES, M. C. A tutela do nome da pessoa humana. In:
Revista Forense, n. 364, nov./dez. de 2002, pp. 217-228.
35
O Enunciado n. 278 da IV Jornada de Direito Civil (2006) interpreta extensivamente o
dispositivo: “A publicidade que divulgar, sem autorização, qualidades inerentes a determinada
pessoa, ainda que sem mencionar seu nome, mas sendo capaz de identificá- la, constitui violação a
direito da personalidade.”
36
Assim, Harry WESTERMANN. Código Civil Alemão. Parte geral. Porto Alegre: Sergio Fabris
Editor, 1991, p. 37.
37
Assim, por exemplo, na adoção (ECA, art. 47, § 5º); na naturalização dos estrangeiros, para
aportuguesá-lo (art. 115 da L. 6.815/90); para a inclusão de apelidos notórios (LRP, art. 58,
alterado pela L. 9.708/98); para a proteção de testemunhas (LRP, art. 58, parágrafo único, inserido
pela L. 9.807/99).
38
V., para diversos exemplos, BODIN DE MORAES, M. C. A tutela do nome da pessoa humana, cit.,
pp. 224-227.
39
Sobre o tema, v. PEREIRA DE SOUZA, C. A. Contornos atuais do direito à imagem. In: Revista
Forense, n. 367, mai.-jun. de 2003, pp. 45-68.
40
O exemplo é inspirado em LORENZETTI, Riccardo L. Fundamentos do Direito Privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 485.
12
51
STJ, 4ª T., Resp. 595.600, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julg. 18.03.2004, publ. RDR 31/442,
em cuja ementa se lê: “Direito civil. Direito de imagem. Topless praticado em cenário público.
Não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma
protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente a sua
imagem. Se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua
reprodução pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria
exposição realizada. Recurso especial não conhecido”. (Grifou-se). Como se o público da pequena
praia onde uma então ilustre desconhecida tomava sol devesse (ou pudesse) ser comparado ao
contingente alcançado pelo jornal de maior circulação do estado que estampou, no dia seguinte,
sem a sua autorização, uma fotografia de média dimensão, sob a alegação de tratar-se de “notícia”.
52
LEWICKI, Bruno. A privacidade da pessoa humana no ambiente de trabalho. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 9.
53
É a do chamado homo non clausus. O sociólogo alemão Norbert Elias foi um dos maiores
defensores dessa última corrente, a qual o concebe o indivíduo como fundamentalmente em
relação com um mundo que não é ele mesmo ou ela mesma, com outros objetos e em particular
com outros homens.” (ELIAS, Norbert. Norbert Elias por ele mesmo (1990). Rio de Janeiro:
Zahar, 2001, p. 97 e ss.).
54
Artífices desta tese são, entre outros, Georg Simmel e Norbert Elias. Cf. L. WAIZBORT (org.).
Dossiê Norbert Elias. São Paulo: Edusp, 1999, p. 104: “Para eles, indivíduo e sociedade são
conceitos complementares não apenas logicamente, mas também em sua realização. A pluralidade
dos indivíduos produz, através de suas relações mútuas, o que se denomina unidade do todo, isto é,
a sociedade; mas aquela pluralidade não seria imaginável sem esta unidade”.
15
55
Sobre o tema, v. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância. Privacidade hoje, cit, no
prelo. A hipótese é explicada por Danilo Doneda: “Nesta mudança, a proteção da dignidade
acompanha a consolidação da própria teoria dos direitos da personalidade e, em seus mais recentes
desenvolvimentos, contribui para afastar uma leitura pela qual sua utilização em nome de um
individualismo exacerbado alimentou o medo de que eles se tornassem o ‘direito dos egoísmos
privados’. Algo paradoxal, a proteção da privacidade na sociedade da informação, tomada na sua
forma de proteção de dados pessoais, avança sobre terrenos outrora não proponíveis e induz a
pensá-la como um elemento que, antes de garantir o isolamento ou a tranquilidade, proporcione ao
indivíduo os meios necessários para a construção e consolidação de uma esfera privada própria”
(Danilo DONEDA. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
pp. 23-24.
56
RODOTÀ, Stefano. Nessuna censura sulla privacy. In: La Repubblica, 13.04.1997.
57
RODOTÀ, Stefano. L’organizzazione del nuovo mondo. Disponível em http://magazine.enel.it/
boiler/arretrati/arretrati/boiler67/html/articoli/Focus-Rodota.asp, acesso em 20.10.2007.
16
aquela pessoa que tem algo a esconder” explicou. 58 Cria-se assim o princípio
antagonista ao da presunção de inocência e consolida-se a política “do cidadão
transparente”: tudo o que é seu pode ser vasculhado.
A estratégia americana da luta contra o terrorismo levada a cabo pelo
governo Bush fez com que aquele país passasse a considerar indispensável exercer
formas de controle total sobre os cidadãos, através da coleta de suas comunicações
eletrônicas e de seus deslocamentos, em particular das viagens aéreas. O governo
reagiu aos atentados de 11 de setembro de 2001 instituindo um projeto que
denominou Total Information Awareness, posteriormente renomeado como
Terrorism Information Awareness (TIA),59 não deixando margem a dúvidas
acerca de seus objetivos: os Estados Unidos desejam exercer uma vigilância total
sobre os dados de todos os cidadãos do mundo.
O problema não é exclusivo do continente americano. Na França, o
Conselho Nacional da Informática e das Liberdades (CNIL) revelou que há mais
de 30 mil câmeras só em Paris. O caso francês, que causou protestos por parte do
CNIL, não se compara com a situação da sociedade britânica – onde há uma
câmera para cada 14 pessoas (4,2 milhões no total) –, a mais vigiada no mundo.
Não obstante esta realidade, Stefano RODOTÀ não crê que a única reação
possível seja a da aceitação acrítica, quase uma rendição, em direção a uma
sociedade inevitavelmente transparente. 60 Muitos princípios em matéria de
proteção de dados pessoais já estão consolidados na Europa. Além do princípio da
dignidade humana, aplicam-se à proteção dos dados pessoais os princípios da
finalidade, pertinência, proporcionalidade, simplificação, harmonização e
necessidade. Uma trama tão urdida de princípios para a proteção dos dados
pessoais atende à realidade de uma matéria que, por sua amplitude e por sua
tendência à aplicação em todo tipo de relação humana, não pode ser confiada
unicamente às formas disciplinares casuísticas. E a legislação por princípios, para
que possa atingir seus propósitos, deve servir para a definição de um quadro geral,
no interior do qual, a seguir, deverão ser postas e interpretadas as disposições
específicas.
Assim é que em Roma, na Itália, a Comissão de Proteção dos Dados
Pessoais tomou uma série de decisões limitativas da ação das câmeras ao
promulgar, em 2004, uma normativa geral relativa à videosorveglianza.61 Dentre
as regras para a instalação desses aparelhos, consta que devem ser ativados
somente quando outras medidas tenham se revelado insuficientes ou impossíveis
(sistemas de alarme, outros controles físicos ou logísticos, medidas de limitação a
entradas etc.). Além disso, a eventual conservação das imagens deve ser limitada
no tempo, não podendo ultrapassar vinte e quatro horas, e os cidadãos devem
58
New York Times, 07.01.2005.
59
O congresso norte-americano cortou as verbas deste projeto em setembro de 2003. Sua menção,
no entanto, continua relevante, visto que outros projetos de controle através do data mining
permanecem em curso, patrocinados por agências governamentais do setor de inteligência e
segurança. Sobre o tema, v. http://www.epic.org/privacy/profiling/tia, acesso em 10.08.2007.
60
RODOTÀ, Stefano. Il secolo del Grande Fratello. In: La Repubblica, 20.01.1999.
61
Provvedimento generale sulla videosorveglianza, datado de 29.04.2004. Disponível em
http://www.garanteprivacy.it/garante/navig/jsp/index.jsp, acesso em 15.07.2007.
17
sempre ser advertidos por escrito – com uma placa – quando uma área estiver
posta sob televigilância.
No Brasil, a ausência qualquer de regulamentação em defesa dos dados
pessoais gera a real possibilidade de criação de um banco de dados centralizado,
gigantesco, mantendo todos sob controle e vigilância; isso, aliás, é o que está em
curso nos Estados Unidos, por determinação do Patriotic Act, com vistas à
necessidade de prevenção contra o terrorismo. No entanto, espera-se que o
respeito à dignidade humana, consagrado no art. 1º, III, de nossa Constituição,
bem como a tradição civilista que nosso sistema encerra, aliados à chamada
globalização através dos direitos, permita a nossa aproximação ao modelo
europeu, através de uma legislação por princípios. 62
As primeiras notícias, porém, não são alvissareiras. O temor advém da
iminente instauração do “Sistema de Identificação Automática de Veículos”
(SINIAV) 63 prevista na Resolução n. 212 de 2006 do Conselho Nacional de
Trânsito que determina que todos os automóveis brasileiros deverão, em breve
termo, portar uma “placa eletrônica” que os identificará, automaticamente, em
todas as vias e rodovias de circulação do país. O sistema, também denominado de
“Placa Eletrônica”, vem sendo apresentado como um instrumento fundamental de
apoio à fiscalização e repressão ao furto e roubo de veículos e cargas, voltado para
elaborar políticas de melhoria da gestão de tráfego e de outras ações direcionadas
ao aumento da segurança pública. Nenhuma palavra sobre a tutela dos dados
coletados ou sobre a proteção da privacidade dos proprietários.
Como adverte a doutrina mais atenta, um sistema poderoso como o este
somente pode ser cogitado se levados em conta os riscos potenciais ao cidadão
pelo uso abusivo ou indevido de suas informações pessoais.64 Tal sistema,
portanto, deveria vir acompanhado de previsões específicas sobre a utilização e
segurança dos dados pessoais coletados, sob pena de representar uma concreta
ameaça à privacidade e às garantias fundamentais dos cidadãos – chegando a
suscitar dúvidas quanto à sua constitucionalidade, justamente no que tange à
privacidade de todos: proprietários, condutores e passageiros.65
6. Conclusão
62
Sobre a distinção entre os modelos, europeu e americano, v. DONEDA, Danilo. Da privacidade à
proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 221-322.
63
Disponível em: http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/RESOLUCAO_212.rtf,
acesso em 21.09.2007.
64
DONEDA, Danilo. A “placa eletrônica” e o monitoramento de automóveis na Sociedade da
Vigilância. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n.32, out-dez. de 2007, no prelo.
65
DONEDA, Danilo. A “placa eletrônica”, cit.
18
66
Metaforicamente, do mesmo modo que uma norma, para ser jurídica, não pode existir sozinha,
porque o que a torna jurídica é, exatamente, o fato de pertencer a um ordenamento jurídico e não o
contrário, como demonstrou Kelsen. Para uma explicação da obra de Hans Kelsen, especialmente
deste aspecto da teoria positivista v. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. São
Paulo-Brasília: UNB-Polis, 1989.
67
Assim, por exemplo, em sentidos diferenciados, manifestaram-se Hannah Arendt, Michel
Foucault, Paul Ricoeur, Jürgen Habermas, Agnes Heller, entre outros.
68
PERLINGIERI, Pietro. Entrevista. In: Revista Trimestral de Direito Civil, n. 6, abr.-jun. 2001, p.
294.
19
privada” não como a tímida tutela do microcosmo da casa, mas como o espaço
(inviolável) da liberdade de escolhas existenciais. Ou nas palavras sempre
inspiradoras de Stefano Rodotà: “Do nexo cada vez mais intenso entre vida e
liberdade decorre para a vida um sentido mais profundo e o direito encontra uma
medida mais discreta. Coloca-se a serviço do mestiere di vivere, e assim pode ser
instrumento de apreensão, lugar do homem e não do poder, instrumento humilde e
disponível e não imposição insustentável”.74
74
La vita e le regole, cit., p. 72.