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Direção e Não-Ação / Roberto Mallet

Uma obra teatral é composta fundamentalmente de três estratos: 1. a fábula,


entendida como a tessitura das ações e demais elementos do universo ficcional; 2. as
ações concretas dos artistas que realizam a obra; 3. a organização de tudo isso em um
todo. Esses estratos estão essencialmente relacionados aos papéis do autor, dos atores
(e os outros artistas envolvidos na criação material da obra, como um cenógrafo, um
figurinista, um músico...) e do diretor.
Numa montagem esses papéis podem ser cumpridos por quaisquer dos artistas
envolvidos, e também por mais de um deles, mas as três funções permanecem sempre
distintas: temos sempre uma ação ficcional, uma ação poética concreta (que veicula a
ficcional) e a definição do lugar e do momento dessa ação poética na obra (direção).
A direção organiza a escritura cênica e por conseguinte determina em que direção a
obra deve ser lida. É ela quem orquestra as inúmeras ações dos artistas na composição
poética.
Para que essa orquestração seja possível, é necessário que haja uma concepção que lhe
sirva de estrela guia. Essa concepção não é necessariamente uma criação da direção, mas
deverá ser assumida por ela. Seu papel é justamente permitir que a idéia da obra
germine e desenvolva-se em cada um dos artistas envolvidos, escolher caminhos
poéticos que propiciem esse florescimento sem tolher nem atropelar os processos
criativos desses artistas, ao contrário, propiciando sua instauração.
O grande risco para o diretor é atropelar os processos, é querer realizar suas idéias
sobre a montagem cedo demais, de maneira exterior e despótica, sem atenção e escuta
para todos os elementos que compõem a obra – desde os artistas que com ele
colaboram até o tema ou texto abordado.
A ação do diretor tem certa analogia com o conceito chinês de wu-wei, “não-ação”, ou
“ação pela presença”. Uma ação poética que visa estabelecer as condições em que outras
ações poéticas sejam possíveis e possam dialogar entre si. Isto é feito positivamente
(sugerindo caminhos e procedimentos) e negativamente (retirando obstáculos,
colocando os artistas em situações críticas).
Caso não seja assim, o resultado é um espetáculo que pode até ser magistralmente
orquestrado mas sem vida própria, assemelhando-se mais a um ensaio teórico, ou a um
manifesto, do que a uma peça artística.
Em uma conferência proferida em 1920, Jacques Copeau sintetizou tudo isto ao
afirmar que o diretor, diante de uma obra dramática (em nossos termos, diante do
estrato ficcional, seja ele um texto, um tema, um roteiro...), não deve se perguntar: “O
que farei dessa obra?”, porém: “O que ela vai fazer comigo?...

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