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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

ARTIGO CIENTÍFICO

FABIULA APARECIDA BORTOLOZZO FERREIRA

OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO, O DOCUMENTO DE


DAMASCO E A VIDA COMUNITÁRIA DOS ESSÊNIOS

CURITIBA/PR

2020
FABIULA APARECIDA BORTOLOZZO FERREIRA

OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO, O DOCUMENTO DE


DAMASCO E A VIDA COMUNITÁRIA DOS ESSÊNIOS

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Universidade Estácio de Sá como exigência parcial

para obtenção do grau de licenciado em História.

CURITIBA/PR

2020
FABIULA APARECIDA BORTOLOZZO FEREIRA

OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO, O DOCUMENTO DE


DAMASCO E A VIDA COMUNITÁRIA DOS ESSÊNIOS

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Universidade Estácio de Sá como exigência parcial

para obtenção do grau de licenciado em História.

Aprovado em: __/__/__


RESUMO

A comunidade essênia foi uma seita judaica que viveu em Israel no período
compreendido entre os anos 150 a.C. e 68 d.C. Com as descobertas
arqueológicas do Documento de Damasco, no Cairo em 1896, e dos
Manuscritos do Mar Morto, em Israel no ano de 1947, abriu-se um leque de
perspectivas para os estudiosos dessa seita e do período. O objetivo desse
artigo é fazer uma comparação do modo de vida, social e econômico, entre as
duas vertentes do essenismo, a laica e a monástica, para tanto usou-se como
metodologia uma revisão bibliográfica sobre o assunto. Ao final, concluiu-se
que entre os autores consultados há muita discordância e que se faz
necessário um estudo mais aprofundado sobre o tema.

Palavras-chave: essênios, História Antiga, Manuscristos do Mar Morto,


sociedades pré-cristãs, judaísmo, História das religiões, socialismo primitivo.
INTRODUÇÃO

Os essênios, junto com os saduceus e os fariseus, compunham as


principais seitas judaicas, tanto em número de membros quanto em
importância doutrinária do período pré-cristão.

Os essênios faziam parte de uma seita que existiu de 150 a.C. a 68 d.C.
Eles viviam em comunidades isoladas no deserto da Galileia, porém seus
membros se espalhavam, também, por toda a região vivendo em vilas e
cidades, misturados ao povo local, em uma espécie de existência que poderia
se chamar de laica. A estes eram permitidos o matrimônio, a posse de bens e
tudo o mais que fazia parte da vida cotidiana da época. Em contraposição, os
essênios que viviam em monastérios estavam isolados em comunidades
situadas à beira do Mar Morto, sendo Quram a principal delas.

Em 1896, foram descobertos no Cairo manuscritos escritos em copta –


uma língua usada no período pré-cristão – que passaram a ser chamados de
Documento de Damasco, tais manuscritos tratavam de diversos assuntos
relacionados a uma seita judaica que se acredita serem os essênios, entre os
temas abordados estão um conjunto de regras dirigidas aos membros dessa
seita que determinavam questões como matrimônio, bens privados, doações
aos necessitados, posse de escravos, etc.

No ano de 1947, em cavernas localizadas perto do Mar Morto, em Israel,


foram encontrados uma série de manuscritos relacionados, também, com a
seita dos essênios. Esses documentos receberam o nome de Manuscritos do
Mar Morto e foram considerados uma das maiores descoberta arqueológica do
século XX.

Entre os documentos pertencentes aos Manuscritos do Mar Morto, a


Regra da Comunidade constitui a principal fonte de conhecimento com respeito
à organização da comunidade essênica de Quram (TYLOCH, 1990). Nela,
encontram-se desde as provas para a entrada de um novo membro na
comunidade até a forma como os bens comuns eram administrados; os

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motivos para a ausência de mulheres em Quram, assim como a ordem que
devia ser mantida durante as refeições comunais.

Portanto, as duas descobertas – a do Documento de Damasco e a dos


Manuscritos do Mar Morto – proporcionam uma luz sobre como viviam e se
relacionavam os essênios que moravam isolados e os membros da seita dos
essênios que, levando uma vida mundana, habitavam as vilas e cidades. A
principal diferença entre estes dois grupos, como veremos, é em relação à
posse de propriedade privada e o matrimônio.

Como um exemplo dessa afirmação podemos citar Tyloch (1990)


que afirma que a ordem dos essênios de Quram praticava um tipo de
“socialismo religioso”, pois todos os bens eram comuns e não havia
propriedade privada nem escravos, entretanto nos acampamentos essênios
fora de Quram haviam escravos, como aponta o Documento de Damasco, o
que coloca em dúvida se, de fato, era praticado algo parecido com o sistema
socialista pelos membros da comunidade.

O objetivo deste artigo é demonstrar, por meio da metodologia de


revisão bibliográfica, as diferenças nas relações sociais e econômicas entre os
essênios de Quram e os membros da comunidade essênia que viviam em vilas
e cidades. Para tanto foi feita uma busca na literatura disponível sobre o
assunto. A quantidade de material sobre o tema é, tanto artigos quanto livros,
muito restrita, o que dificultou um pouco a seleção do que seria utlizado na
revisão bibliográfica, portanto, optou-se pelos livros mais conceituados e os
que continham explicações que atendessem à questão norteadora desse
artigo, ou seja: os essênios praticavam, de fato, um regime social e econômico
que poderia ser próximo a um regime socialista?

Como se trata de um assunto novo em termos históricos, pois os


manuscritos principais – os do Mar Morto – foram descobertos somente há
pouco mais de 50 anos, e no Brasil pouco se estuda este tema, acredita-se que
esse artigo possa vir a contribuir de forma relevante para que mais
acadêmicos se interessem em explorá-lo.

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1. A comunidade de Quram e a Regra da Comunidade

Em seus livros Antiguidades Judaicas, A guerra dos judeus e A História


dos Hebreus, o historiador judeu, e cidadão romano, Flávio Josefo se ocupa
muito mais da seita judaica dos essênios do que de qualquer outra da época
(WILSON, 1993). É por meio do testemunho desse autor que sabemos que a
comunidade essênica vivia no deserto, afastada dos ‘impuros’ e dedicada a
seguir as Leis, renunciando ao prazer e exercitando o autocontrole.

Até meados do século XX, eram as informações de Flávio Josefo que


nos forneciam o cenário em que viviam e se movimentavam os essênios,
porém, com a descoberta de documentos que vieram a ser chamados de
Manuscritos do Mar Morto, em 1947, no deserto de Israel, em um local
conhecido como Quram, a visão do modo de vida, tanto social quanto religioso
e econômico, dessa comunidade se abriu ao mundo acadêmico.

Entre os muitos manuscritos encontrados em Quram, um se destaca


pelo seu caráter laico, é a Regra da Comunidade, o qual descreve as regras
para admissão de novos membros na seita, fala sobre a divisão de trabalho, o
caráter comunitário dos bens e a ausência de propriedade privada.

De acordo com Tyloch (1990), a Regra da Comunidade, em seu ínicio,


apresenta obrigações de ordem social que deveriam ser observadas pelos
membros da comunidade e que os levariam a colaborar com o coletivismo
pregado pelos essênios. Todos os membros deveriam aceitar e seguir os
mesmo ideais, bem como colocar os bens à disposição do grupo e a submeter-
se à disciplina do trabalho e a cumprir o seu dever dentro da comunidade.

Ginsburg (1992) reafirma que ao serem aceitos pela comunidade, após


um período de dois anos de noviciado, o novo membro deveria depositar no
tesouro comum do grupo o que quer que possuísse.

Um outro trecho da Regra da Comunidade diz que além de seus bens,


os novos membros deveriam colocar seu trabalho a favor do grupo. O que é
confimado por um outro documento também encontrado em Quram e intitulado

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Regra para Toda a Comunidade, o qual diz que “cada membro, na medida de
sua sabedoria, assim como na perfeição de sua conduta, fortalecerá seus
músculos no posto, a fim de executar o seu trabalho.” (SHANKS, 1993).

Tais citações evidenciam que cada membro assumia um trabalho


manual de acordo com seu saber, alguns eram carpinteiros, outros agricultores,
outros lidavam com abelhas, outros eram escribas. Como era proibido aos
essênios a troca comercial com os “impuros”, ou seja, com pessoas que não
faziam parte da seita e do judaísmo, assume-se que eles eram
autossuficientes, produzindo tudo o que consumiam, incluindo roupas e
sapatos.

De acordo com Tyloch (1990), entre os essênios de Quram, ou seja, os


que levavam uma vida monástica, não havia escravos. O valor atribuído ao
trabalho e a crença na igualdade entre os homens, tornava proibitiva a
escravidão. O que difere das práticas e visão de mundo da sociedade da
época.

Segundo Wilson (1993), baseando-se em Fílon de Alexandria, existiam


por volta de 4 mil essênios acomodados em Quram, onde levavam uma vida
monástica e um regime social muito assemelhado ao socialismo, e em
“acampamentos”, que eram as aldeias em que se agrupavam os essênios que
não levavam uma vida reclusa. É a respeito das regras aplicadas a estes que
trataremos a seguir.

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2. Os “acampamentos” essênicos e o Documento de Damasco

A comunidade dos essênios dividia-se em grupos monásticos, como o


de Quram, e grupos que viviam dispersos em cidades e vilas, nos chamados
“acampamentos”. Entre esses dois agrupamentos, relações sociais e
econômicas adquiriam caráter diferenciado.

Assim como as Regras da Comunidade regulavam as relações sociais e


econômicas da comunidade monástica, como visto anteriormente, o
Documento de Damasco regulava as relações da comunidade de essênios que
não abraçavam a vida monástica.

De acordo com Licht (1965), a maioria dos adeptos do movimento


essênico não praticava o isolamento total em uma região desértica como os
que viviam em Quram, no entanto procuravam adaptar as práticas e ideologia
essênica à vida cotidiana.

Segundo Tyloch (1990), os dois grupos representavam duas formas de


vida social dos partidários de uma mesma ideologia. Existiam em formas
diferentes a fim de que um maior número de membros pudesse praticar as
mesmas normas e conseguissem ter uma maior capilaridade em todas as
camadas da sociedade judaica. Os chamados “acampamentos” eram
compostos de células que iam de dez até mil pessoas.

Tyloch (1990) afirma, ainda, que para essa comunidade “externa” os


membros podiam contrair matrimônio e bens particulares.

Segundo Josefo (2002), os “acampamentos” essênicos eram dirigidos


por uma pessoa que administrava os fundos comuns do grupo, os quais eram
fruto de donativos dos adeptos e destinados a suprir os necessitados. Tal
afirmação está de acordo com o que foi encontrado no Documento de
Damasco.

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O Documento de Damasco contém as normas que regulavam a vida dos
membros dos diversos “acampamentos” essênicos. Por meio dessas normas,
pode-se constatar a existência de bens privados e autonomia econômica
individual. Os membros dos “acampamentos” possuíam propriedades e
moravam em casas próprias, cultivavam a própria terra. Porém aos que não
seguiam o judaísmo, não podiam vender nada. Possuíam escravos e criados.
Tyloch (1990), afirma, como Josefo (2002), que nos “acampamentos”, os bens,
assim como os rendimentos dos adeptos, estavam sujeitos ao controle de um
administrador, este avaliava os bens de cada um que ingressava na
comunidade, mas não os anexava ao fundo comum. Tal avaliação era tão
somente para determinar a quantia adequada a ser recolhida para as
necessidades comuns. O que, em geral, equivalia ao trabalho de dois dias do
mês.

Shanks (1993), assinala, também, que o Documento de Damasco fala


em depositar os ganhos de pelo menos dois dias do mês nas mãos do
administrador do “acampamento” para serem repartidos em obras caritativas. O
Documento de Damasco mostra, ainda, uma sociedade composta de
agricultores e trabalhadores empregados, o que evidencia uma divisão de
classe.

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3. Conclusão

O objetivo deste artigo foi demonstrar, por meio de uma revisão


bibliográfica, as diferenças sociais e, principalmente, econômicas dentro do
movimento essênico.

O movimento essênico surgiu em 150 a.C. e desapareceu em 68 d.C.,


sobrevivendo por mais de dois séculos a várias intervenções estrangeiras na
Palestina. Era um movimento de caráter religioso-apocalíptico que tinha na
região de Quram seu principal ponto de convergência, mas que possuía,
também, comunidades de adeptos espalhadas por todas as regiões da
Palestina e em alguns locais no Egito, onde eram conhecidos como
“terapeutas”.

Com as descobertas dos manuscritos denominados de Documento de


Damasco em 1896, no Cairo, e mais recentemente, em 1947, dos documentos
conhecidos como Manuscritos do Mar Morto, foi possível aos acadêmicos
dedicados ao assunto estabelecer alguns paralelos entre a vida das
comunidades essênicas monásticas e as comunidades essênicas que viviam
nos chamados “acampamentos”, ou seja, adeptos do movimento que levavam
uma vida fora do isolamento autoimposto.

É um pouco senso comum acreditar que os essênios viviam em uma


comunidade que se assemelhava ao ideal socialista, como de fato viveram as
primeiras comunidades do cristianismo primitivo e outras, como os cataros no
sul da França. Entretanto, se o foco é determinar, ou se aproximar, de como os
membros do movimento essênico viviam, faz-se necessário dividi-los em dois
grupos: o monástico e os adeptos do essenismo.

Como foi visto ao longo desse artigo, a comunidade de Quram vivia


isolada no deserto e eram conhecidos como “o povo do deserto”
(SCHONFIELD, 1993). Quando um novo membro entrava para a seita, depois
de dois anos de noviciado, ele deveria se desfazer de todos os bens que
possuísse, inclusive roupas e sapatos, tudo seria incorporado pela comunidade
e colocado para uso comum. A divisão de trabalho era feita de acordo com a

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aptidão de cada um, e o resultado do trabalho era todo convertido para a
comunidade, seja em forma de alimento e/ou benfeitorias. Não existiam
escravos, pois os essênios acreditavam na igualdade dos homens.

Essas regras sociais e econômicas evidenciam uma adaptação da


comunidade ao estilo de vida que mais tarde seria conhecido como socialista,
com ausência de propriedade privada. Para os essênios do deserto a vida
comunitária era uma questão de sobrevivência, pois o ambiente era hostil e um
dos propósitos da seita era o de se manter isolada.

Os adeptos viviam uma outra realidade, como afirmam alguns autores


apoiados pelo Documento de Damasco. Além da dilatação das regras sociais,
como a permissão para constituir família, as condições econômicas eram
diversas.

Havia uma divisão de classes entre os adeptos que os distanciava


enormemente dos essênios de Quram. Enquanto estes acreditavam na
igualdade dos homens, aqueles possuíam escravos e criados, conforme a
sociedade judaica da época preconizava. Além disso, a propriedade privada
era algo corriqueiro entre os adeptos mais abastados.

O que se nota é que essa divisão, apesar de contradizer as condutas


essênicas, era benéfica para o movimento, pois com os adeptos espalhados
pela Palestina e até mesmo além desta, a seita se expandia e passava a ter,
ao lado dos fariseus e saduceus, uma certa influência na sociedade da época.

Devido a esta divisão entre o movimento, seria prematuro concluir que


os essênios tinham uma sociedade que poderia se encaixar no socialismo
praticado pelas comunidades do cristianismo primitivo. Tal questão demandaria
uma pesquisa mais aprofundada e uma conexão com autores que tratam
especificamente deste assunto, como Rosa Luxemburgo e Vladimir Ilyich
Ulianov.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GINSBURG, Christian. D. Os essênios – sua história e doutrinas. São Paulo:


Ed. Pensamento, 1992.

JOSEFO, Flávio. A Guerra dos Judeus. Livro I. Tradução: A.C.Godoy.


Curitiba: Ed. Juruá, 2002.

LICHT, Josiah. The rule scrooll. A scroll from the Wilderness of Judaea.
Jerusalém, (s.n.) 1965.

SHANK, Hershel (Org.). Para compreender os Manuscritos do Mar Morto. 2a


ed. Rio de Janeiro, Imgo, 1993.

SCHONFIELD, Hugh. A odisseia dos essênios – o povo do deserto, cristãos


antes de Cristo. São Paulo: Mercuryo, 1993.

TYLOCH, W.J. O socialismo religioso dos essênios. Coleção Debates. São


Paulo: Ed. Perspectiva, 1990.

WILSON, Edmund. Os Manuscritos do Mar Morto. São Paulo: Companhia das


Letras, 1993.

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