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CORBIN, Alain. Bastidores. In: PERROT, Michelle (Org.).

História da vida
privada: da revolução Francesa à primeira guerra). São Paulo: Companhia das Letras, 1992,
pp. 413-465.

O SEGREDO DO INDIVÍDUO

O INDIVÍDUO E SUA MARCA (pp. 419-436)

Durante o século XIX, o sentimento e a ideia de identidade individual são bem


difundidos, com a extinção de prenomes (sobrenomes de famílias) de modo a haver uma
aceleração, especialmente na moda, com o intuito de individualizar, de adaptar-se à tendência,
com, definitivamente, impulsionamento das classes dominantes. Com isso, a moda dos ricos
passa aos mais pobres, da cidade, ao campo. Isso faz com que o individualismo se exalte, pois
não há mais uma crença na existência de um patrimônio familiar. Em certas regiões, o
prenome dá lugar ao apelido, embora o sobrenome ainda faz a ligação à ideia de casa paterna.
Entretanto, com o passar do tempo, o apelido é vinculado a grupos marginais.
Todavia, o desejo de individualizar não é a causa de toda a diversificação, há ainda os
homônimos (nomes iguais) que estimulam a originalidade à medida que a alfabetização e a
escolarização retornam aos sobrenomes e prenomes, bordados e estilizados em materiais
escolares. Com os correios, a disseminação de símbolos próprios torna-se banal, com uma
acumulação de eus de outrem e de si mesmos exacerbada.
O espelho, antes somente em uso por barbeiros e de classes ricas que entendiam a
contemplação de si como um privilégio, torna-se agora objeto trivial em quase todo ambiente,
vendidos por comerciantes. O espelho, assim, contribui para a afirmação da individualidade,
principalmente pela interpretação de novos valores, como o narcisismo. Nas classes ricas, o
código de boas condutas de jovens proibi-las-á de se admirarem nuas em espelhos. No final
do século XIX, a difusão do espelho nas cidade permite a “organização de uma nova
identidade cultural” (p. 423), guiando a uma nova estética do esbelto e uma nova abordagem
do nutricionismo.
Outra forma de individualidade para uma nova identidade do indivíduo será o retrato,
capaz de “demonstrar sua existência e registrar sua lembrança” (p. 423). Um aparato
reservado à burguesia e à aristocracia, o retrato se difunde e pode, com tempo, se tornar algo
tão corriqueiro quanto o é hoje. Com a fotografia, o retrato se democratiza, de modo que “as
poses e o consumo em série de sua própria imagem estão ao alcance do homem do povo”
(p.425). Ademais, tal situação social modifica alguns sentimentos do indivíduo, ou seja,
instiga-lhe o sentimento de autoestima, o qual democratiza o desejo de atestado social, isto é,
de pertencimento a um ambiente, a uma sociedade. Ao mesmo tempo, o retrato deixará banal
formas de comportamentos sociais distintos, em que a pose do pensador e a “arte de ser avô”
se tornam uma encenação boba. Já os álbuns de família fazem renascer a coesão do grupo,
“ameaçada pela evolução econômica” (p. 426), enquanto adquire a ideia de sentimento de
tempo, pois ao olhar tais retratos, sente-se a força do desaparecimento de si mesmo e a da
nostalgia.
O autor atenta-se também para a individualidade dentro do cemitério, em formas de
tumbas individuais e epitáfios, um “apelo à permanência da lembrança” (CORBIN, 1992, p.
427). O túmulo individual é criticado pela igreja, em que essa entende como inútil a
lembrança individualizada de um simples cristão. Há com isso, segundo o autor, certo
reconhecimento do indivíduo no espaço público, passando do “anonimato a relações de
interconhecimento”. Ademias, essa identidade criada para cada indivíduo faz com que haja
um controle e um conhecimento do Estado de cada cidadão, seja através dos recenseamentos,
das listas eleitorais e das novas formas de contratação da mão-de-obra. Até os imigrantes
ficaram conhecidos visual e pessoalmente, abordando-os com certo laxismo, segundo Corbin.
Há, nesse processo, o conhecimento de um tempo pessoal, principalmente pela idade, que faz
construir uma história individual.
Serão nas instituições policiais, diz o autor, que a identidade individual será explorada
de forma laboriosa, seja para um caso de desaparecimento de alguma pessoa, seja para
determinar quem é o cadáver em investigação, de modo que falseamento de informações e a
metamorfose do indivíduo seja ultrapassada pelas técnicas policiais de reconhecimento do
indivíduo. Esse reconhecimento faz surgir as primeiras carteiras de identidade,
completamente deixando a par do Estado elementos privados do indivíduo. Essas técnicas,
que levam em conta até medidas ósseas, serão utilizadas por antropólogos até o início do
século XX.
Essas técnicas, diz o autor, serão contestadas por teóricos e pela população, a qual tem
a sua vida privada organizada e apreendida pelos agentes estatais. Com o tempo, até os padres
deixaram de disseminar em seus discursos um valor moral de uma vida pessoal do indivíduo,
obrigados a reconhecer a vida privada de seus ouvintes. É com isso, até mesmo com o avanço
da ciência, que a individualização teve grande êxito na virada do século. Ao mesmo tempo, e
por outro lado, há certa curiosidade e preocupação com eu do outro, com a vida íntima de
outrem, de forma a contribuir com o anonimato e com a figura do detetive em busca de pistas,
transformando a ação policial no reconhecimento do disfarce do indivíduo, não na sua própria
identidade.

AS AMEAÇAS DO CORPO (pp. 436-440).

Nesse capítulo, o autor começa a discorrer acerca de uma dicotomia da vida privada: a
alma e o corpo, as quais geraram as atitudes dessa vida íntima. O autor as diferencia conforme
a extração social, o nível cultural e o grau de influência religiosa. Porém, segundo o autor, há
certa dispersão de crenças em cada indivíduo e influências comportamentais em cada
substrato social que confundem as análises possíveis.
O autor cita etnólogos que discorreram a respeito do corpo na sociedade tradicional, a
qual esquece da dicotomia proposta por Corbin. O autor cita uma espécie de ética de respeito
a natureza e aos elementos naturais, uma ética que nasce do campesinato laborioso, que
entende uma aproximação entre o corpo próprio e a ordem cósmica. Para ele, são crenças
arcaicas que “admitem o bom desempenho das funções orgânicas”, como o arroto, o peido,
etc.
No outro lado, há a moral cristã que põe a separação de corpo e alma em evidência,
isto é, o corpo compromete a alma com os instintos e os desejos propriamente humanos. Com
isso, surgem sacrifícios cotidianos com o corpo e com a renúncia a si mesmo, criando uma
mentalidade ascética Até mesmo, segundo Corbin, os discursos acadêmicos atestaram para a
supremacia da alma sobre o corpo, de modo a reprimir o corpo e suas vontades para o bem da
alma, dirigindo-se às mulheres e ao corpo feminino, como se tal corpo fosse modelado pela
alma a um espírito feminino, o qual prepara a maternidade, como vocação metafísica, à
colaboração com a natureza. Entretanto, no século XIX, essa noção de alma como soberana ao
corpo cairá em desuso, fazendo com que haja maior atenção à vida orgânica, à vida social e à
atividade mental. Desse modo, o termo cenestesia é retomado para designar o uma certa
percepção interior do corpo, ou ainda o conjunto das sensações orgânicas que traduz em
instintos. a inconsciência, por sua vez, também será de grande importância para os teóricos do
século XIX, com demasiada importância dos estudos de Freud, o qual centrou a inconsciência
humana dentro da psique humana, e não exterior ao indivíduo. Ainda assim, diz Corbin, havia
a relutância em atribuir situações corporais e emocionais do seres humanos a elementos
exteriores a ele. No século XX, tais preocupações humanos agora se voltam a à vida cotidiana
dos indivíduos, de modo que os problemas de saúde são, neste momento, reflexos de uma
agitada pelo trabalho, pela poluição, por diversos elementos da vida urbana.
A INDIVIDUALIDADE NA HIGIENE (pp. 440-446).

Os anseios do corpo são figurados, agora, e o sujeito, por sua vez, se encontra com o
corpo, de modo a desprezar os elementos orgânicos e instintivos. Nesse mesmo processo, a
individualidade apresenta-se cada vez mais requerida, como em leitos individuais, conforme
exemplificação do autor, que fazem nascer desejos individuais e introspecções com o
indivíduo dentro de si mesmo.
Segue-se o autor com a individualidade típica de finais do século XIX e começo do
século XX, em que a higiene íntima se faz presente na vida privada. Através das novas teorias
de higiene e infecção por diversos meios do corpo, os mecanismo de limpeza e purificação
são intensificados cada vez mais, valorizados pela ideia de influência do físico sobre a moral.
Com isso, os dejetos do corpo são vistos gradualmente como objetos que remetem à morte, ao
pecado, “impulsionando as práticas higiênicas” (CORBIN, 1992, p. 442). Por outro lado,
surgem normas de banho e de limpeza, relacionados à idade, ao sexo, à profissão, etc., de
forma a evitar o prazer consigo mesmo, como a masturbação.
Essas noção de higiene e de limpeza, diz o autor, são aprofundadas de forma lenta em
cada classe social, iniciando-se pela alta burguesia e transpondo-se para as camadas mais
pobres e simples. Nas classes mais pobres, os banhos de rio são, aos poucos, transformados
em banhos por baldes, por torneiras e por “tinas”, formas essas de higiene que são conhecidas
pela população marginal somente após a Primeira Guerra Mundial. Na classe operária, é
motivo de greve a troca de roupa e a luta por uma higiene ampla, de modo que a aplicação de
uma lei de higiene tem obstáculos para a sua concretização. Com isso, a noção de higiene da
burguesia, diz o autor, transformar-se-á numa noção de aparência, em que o tintureiro era
conhecido como “tira-manchas” das roupas já manchadas, desembocando, inclusive, na
atitude de se perfumar com água de colônia.
Segundo o autor, é no século XX que uma certa mudança ameaça a tradição da
higiene, a nova administração pública com a higiene, as duchas nos esportes, a utilização de
hotéis turísticos e de bordéis de luxo fazem difundir a bacia e o jarro d’água. Nos anos 50, no
entanto, a banalização das duchas e dos banheiros ocorre, de modo a aprofundar a “revolução
higiênica”.

A AMEAÇA DO DESEJO (pp. 446-455).


Com a privacidade, o indivíduo prepara-se para intimidar os demais, de modo a
ensaiar sua apresentação. Junto a isso, certas especificidades do ambiente privado ficam
restritas à vida íntima, de modo que o uso do roupão em público carrega, nesse momento, um
erotismo, juntos a outros elementos femininos e masculinos que representam essa intimidade,
de forma que o corpo feminino foi demasiado escondido no início do século XX. Com isso, o
erotismo foi crescendo de forma absoluta. Com a introdução de lingeries e de corpetes, a
sensualidade é irrigada por desejos tanto masculinos quanto femininos, porém com o intuito
ambíguo de representar a conservação do corpo, com tantos apetrechos cuidadosamente
preparados. É nesse momento que o fetichismo sexual surge de forma expansiva. Adjunto a
esses aparatos, surge a toalete, o espaço de preparação corporal e sexual para a diferenciação
dos gêneros sexuais.
Essas características urbanas, diz Corbin, espalhar-se-ão ao campo e à vida rural com
grande profundidade, de modo a sua população abandonar traços culturais e a investir em
acessórios que chegam das cidades.
É no século XIX, diz o autor, que o pudor rege os comportamentos sociais, de forma
que se expressa por dois lados: um por ver o corpo próprio se exprimir, o outro por medo de
ter a intimidade violada. O primeiro tipo de pudor pode ser expresso pela “doença verde”,
exemplificado por Corbin, em que as mulheres se constipavam para evitar o peido em
ambientes públicos. O segundo tipo, por sua vez, pode ser visto com o medo de uma consulta
ginecológica, em que seus instrumentos eram retratados pela forma de uma “estupro médico”.
Resoluções a essas questões eram dadas pela pedagogia infantil feminina, a qual pregava uma
quebra a impulsos humanos a fim de evitar situações vergonhosas. Conventos, congregações e
quaisquer outras entidades impõem a meninas jovens a repreensão de seus desejos, de seus
corpos, de sua puberdade, de tudo o que adolescente e primordial ao cunho de imoral.
O autor, ademais, reforça as características da individualidade para a criação de
práticas de prazer solitário, em que diversas mudanças nas instituições socias e físicas, como a
elevação da idade do casamento e o internamento de meninos, contribuíram para semelhante
formas de prazer. Não somente masculino, mas também feminino, como o desejo da mulher
casada e enfadonha com um relacionamento, a qual rejeita certos problemas com amantes em
favor de prazeres solitários. É nesse momento que discursos severos e críticos ao prazer
solitário surgem das mãos e das bocas de moralistas, argumentando para a decadência
resultante por meio de tais prazeres, de forma que livros e precauções médicas incitam a
vigilância doméstica dos indivíduos sozinhos.
O corpo, conclui o autor, torna-se a obsessão constante na vida privada; desde a ideia
de cenestesia às repressões do desejo onanista, o corpo humano é retratado sob pontos de
vistas morais e religiosos ao ponto que se abre rumo ao progresso de um corpo livre de
idealizações dogmáticas.
INTERPRETAÇÃO E CONTROLE DE SI (pp. 455-

Nesse momento do texto, Corbin aponta as práticas de entendimento do indivíduo


através de si mesmo, principalmente por meio de práticas espirituais. Os católicos mais pobres
têm, agora, acesso a procedimentos da então elite, como missões e retiros. Adjunto a estes,
exames de consciência são pregados por congregacionistas, de modo a possibilitar o processo
na vida privada. É com isso, diz o autor, que o processo de interpretação do indivíduo se torna
cada vez mais laico, a elaborar soluções sem um confessionário. nesse processo, surge o
diário, forma de escrever e registrar as pulsações da vida e de transparecer as impregnações da
moral e da saúde; nesse instrumento de autorreflexão de si e reflexão do outro sobre o
primeiro, a ideia de contabilidade da vida e da separação metódica do afazeres cotidianos são
escritos com rigor.
Por outro lado, essa interiorização do indivíduo também é descrita conforme a
mobilidade social que se apresenta à sociedade, de modo que o escritor se põe a pensar em
que condição social se está inserido. Adiante, o autor entende que o diário é muito mais que
uma discrição do indivíduo em sua vida privada, pois nos diários o escritor colocará fatos e
colagens de sua vida a fim de mostrar aos familiares e visitantes da casa, de modo que o diário
se tornará uma lembrança guardada para fins de nostalgia da juventude em sua vida adulta,
como os álbuns de família.
É no diário, diz Corbin, que o indivíduo prescreve suas ambições de maneira
contundente. O autor capta certas preferências nas ambições, como os cargos de serviço
público em detrimento da iniciativa privada, que são resultados de uma ambição intelectual e
de um prestígio social, preconizados pela burguesia. No operariado, entretanto, as ambições
correspondem ao orgulho de uma competência atribuída ao funcionário. A influência
burguesa é nítida entre a classe trabalhadora, de modo que os operários se sentem compelidos
a leituras difíceis e complicadas, a escritas diárias e a cursos noturnos para propagação do
letramento burguês.
Um resultado dessa reprodução ambiciosa para as demais classes é a distensão de
laços familiares nos vínculos afetivos, de modo a repulsar o contato entre pais e filhos. O
autor propõe formas de ambição características existentes nos jovens do campo que alçam a
uma vida boa, isto é, uma existência de mais oportunidades e deleites garantidos. Uma
ambição é a vontade de ser o proprietário, de ter a posse de muitas terras; outra ambição seria
a conquista de trabalhos de transição, isto é, como moleiros e taverneiros, que poderiam
resultar numa ascensão social; a última seria a emigração efetiva para as cidades,
representando o desprendimento total das relações familiares caso não volte. Outra
oportunidade é a vocação religiosa, com grande aumento do clero camponês. A vocação pode
ser, ainda, laicizada, a qual se figura em políticos burgueses e apóstolos populistas.

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