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O Desporto nem sempre

educa...

Todos aprendemos que o Desporto é sempre ciência, comunicação, lazer,


educação, aptidão, saúde, generosidade, solidariedade, tolerância,
coragem. Desde a Escola Primária isso nos foi repetido, como se de um
dogma se tratasse. Eu mesmo me convenci de que o Desporto só trazia
benefícios incontáveis, quando escutava tanta gente responsável a
repetir esta «lenga-lenga».

No entanto, o desporto sofre hoje uma ameaça terrível, que se dirige à


sua própria essência. E essa ameaça vem não só da «sociedade do
espectáculo», que é a nossa e que origina a «civilização do homem
sentado», mas também dos poderes que o submetem ao lucro selvagem e
globalizado, ou então o toleram vigiado, instrumentalizado. Uma
interpretação unicamente higiénica e biologizante do desporto,
sustentada por certas vulgatas pretensamente científicas (como se o
positivismo ainda fosse mensagem para o nosso tempo), que afirmam
convictamente reduzir-se a prática desportiva principalmente à
promoção e manutenção da saúde – enfileira também numa visão
reducionista do desporto, acoimado de prática preventiva ou reeducativa
e... pouco mais! Aliás, quanto mais «físico» for o Desporto, mais acéfalo
e apolítico ele será.

Ora, uma profissão de fé no Desporto e na tarefa que lhe cabe como


processo libertador, exige que dele sejam definitivamente erradicadas
todas as formas de elitismo e mandarinato dos que pretendem
assenhorear-se do desporto, para mais facilmente imporem as suas
ideias e os seus interesses, onde se confundem o lucro e um desporto
apolítico, o biologismo e a ausência de qualquer atitude crítica e
subversiva do «status quo», o moralismo e a competição anti-ética e
anti-moral. Vale a pena ler a «Dialética do Esclarecimento» de Max
Horkheimer e Theodor Adorno: «Não é o bem, mas o mal, o objecto da
teoria (...). Só existe uma expressão para a verdade: a ideia que nega a
injustiça». É bem de ver que à teoria assim conceptualizada corresponde
a emancipação (a democratização) como práxis., ou seja, não pode haver
crítica sem práxis, porque é a práxis o lugar da construção da História.
Calcorrear por trilhos já andados, mesmo que pelos antigos mais
prestigiados, é amputar em nós mesmos a liberdade. Tempos houve em
que o poder político, estruturado na forma de burocracia, foi a
consequência lógica de colocar, sem sofismas, a ditadura como princípio
organizativo e dinâmico, no lugar da sociedade livre, democraticamente
estruturada. O dirigismo desportivo, de há cinquenta e sessenta anos
atrás, não poderia, por isso, produzir qualquer discurso emancipador e
democratizante, nem assumir uma práxis que abalasse a solidez do
aparelho ditatorial. O dirigente desportivo, quando criticava, denunciava
o transitório e aparente, não o fundamental, o essencial. Era então
impossível um regime de separação Estado-Desporto, mantendo cada
um, na sua ordem, a própria independência e competência. O
descomprometimento do desporto, em relação aos métodos da
governação totalitária, era de difícil concretização.

Mas pode perguntar-se se ainda hoje, numa sociedade que diz ter já
interiorizado a democracia, não são visíveis, no desporto, estas facetas:
quando o lucro é quase tudo, tudo o resto é quase nada; uma
competição-hostil, no lugar de uma competição-solidariedade; uma
conceção objectiva e funcional do ser humano e da natureza, que produz
especialistas, gera campeões, está na base de um declarado progresso
tecnológico, mas não é mensagem de vida. Quero eu dizer: mesmo nos
atuais regimes democráticos, o desporto tem de repensar-se, de
reexaminar-se, de recriar-se. E como? Salvo melhor opinião, começando
pelos pequenos clubes, pelas pequenas agremiações locais. Leonardo
Boff, um dos pais da teologia da libertação, propõe um conceito de
revolução molecular: «Certamente necessitamos de revoluções, para
provocar as mudanças necessárias; mas os caminhos para tais mudanças
são hoje diferentes. Mudanças estruturais já não bastam; também os
promotores das mudanças (sejam pessoais ou colectivas) precisam
modificar-se. Acreditamos em revoluções moleculares. Como a molécula,
a menor massa de matéria viva garante sua sobrevivência por sua relação
e articulação com outras moléculas e com o meio ambiente, do mesmo
modo precisam as revoluções realizar-se em grupos e comunidades,
interessados em mudanças(...). A partir daí podem outros setores da
sociedade começar a modificar-se» (conferência realizada com o teólogo
alemão Eugen Drewermann, em Junho de l993, em Dortmund).

A criação de um desporto novo passa por um maior apoio e respeito aos


pequenos clubes – que não tentem ser o reflexo do que se passa, nos
grandes clubes! Todo o Desporto deveria ser, necessariamente, uma
pedagogia e uma política. Se a prática desportiva é uma atividade
humana, ela é uma escolha e, como tal, um ato político. Ora, é
normalmente nos pequenos clubes que o Desporto pode ser pedagogia e
política. Os «clubes grandes» estão na mão dos grandes interesses e é
muito difícil «democratizar a democracia» (Anthony Giddens) que neles
se encontra. Restam-nos os pequenos clubes, para tentar fazer o novo! O
Desporto pode educar, mas precisa de transformar-se no reflexo e no
projecto de uma cultura nova. O desporto tem necessidade de valores em
que possa acreditar, de modelos que possa seguir. Sem eles, é o caos
moral. Precisamente onde se encontram alguns dos grandes clubes! De
facto, o desporto nem sempre educa, nem sempre é uma prática
saudável, nem sempre ensina a denunciar a sociedade injusta. Isto, o que
me ocorre escrever na véspera de 2014.

Não, não sou contra o espetáculo desportivo. Bem ao invés: é o meu


espetáculo favorito! Mas, assim como no neocapitalismo dominante os
pobres são cada vez mais pobres e os ricos são cada vez mais ricos,
também no mundo do desporto há clubes que podem comprar jogadores,
por um preço de milhões e milhões de euros, e outros que, embora de
uma honestidade inatacável e com um admirável currículo desportivo, se
aproximam a passos largos da miséria. Por isso eu venho acentuando, ao
longo de grande parte da minha vida, que já não é curta, que o desporto
atual reproduz e multiplica as taras da sociedade capitalista. E deveria
ser contra-poder ao poder das taras dominantes. Repito: não condeno o
espetáculo desportivo. Mas gostaria de vê-lo ao lado de todos aqueles
que lutam por um mundo novo!Feliz 2014!

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