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Economista
Mestre e Doutor em Administração
Pós-Doutor em Relações de Trabalho
ECONOMIA POLÍTICA
DO PODER
Fundamentos
Volume 1
Curitiba
Juruá Editora
2004
CONSELHO EDITORIAL: COMISSÃO EDITORIAL:
Geraldo Peçanha E. lan Robinson
Mestre em Letras pela UFPR - Professor Professor PhD da University of Michigan
da UFPR Sérgio Bulgacov
Marcos Kahtalian Professor da UFPR - Doutor em Administra
Mestre em Marketing pela UNICAMP - Pro ção de Empresas (FGV-SP)
fessor da FAE Luiz Carlos Osório
Sady Ivo Pezzi Júnior M.D. Psicanalista (Grupos)
MBA em Marketing pela FAE - Professor da
OPET
ISBN: 85-362-0802-3
e-mails: editora@jurua.com.br
marketing@jurua.com.br
LISTA DE QUADROS
É certo que a produção social na qual os sujeitos estão inseridos (i) estabe
lecem relações definidas, que são ao mesmo tempo indispensáveis e independentes
destes sujeitos, (ii) que tais relações correspondem a estágios do desenvolvimento
das forças materiais de produção e (iii) que o co'njunto destas relações de produção
se constitui na base econômica material sobre a qual se assenta a superestrutura jurí-
dico-político-ideológica à qual correspondem formas de consciência social. É certo
que o modo de produção das condições materiais dc existência interage com o cará
ter geral da vida social, política e psicossocial dos sujeitos, de forma que a consciên
cia da transformação, pelo sujeito individual, encontra-se relacionada ã consciência
social, na medida cm que não c a consciência dos homens que determino sua exis
tência, mas, ao contrário, é sua existência social que determina sua consciência
(Marx, 1904, p. 165). Mas, é igualmente certo que a compreensão dos sujeitos não
pode ser definida c sequer determinada apenas pela consciência decorrente da sua
existência social, pois por mais importante que esta seja, como de fato é, não é a
única forma dc existência.
O conjunto dos processos inconscientes e subjetivos e das relações sociais é
que forma a totalidade da existência do sujeito e é esta totalidade que constrói sua
consciência. Mais do que isto, tal construção encontra-se carregada de contradições e
conflitos presentes tanto em cada um dos processos (inconscientes e sociais), como
entre os mesmos. Para os propósitos do presente estudo, isto significa que se está
diante de um quadro complexo de relações de poder no qual tanto elementos objeti
vos quanto subjetivos aparecem amalgamados nos processos dc exercício da domi-,
nação. E é porque há uma percepção deste amálgama que o capital investe cada vez
mais no desenvolvimento de mecanismos sofisticados de controle sobre o processo e
as relações de trabalho.
Assim, a problemática que se desenvolve aqui se concentra nas especifici
dades ou nas peculiaridades sócio-históricns e estruturais da produção de mecanis
mos de controle, pelo capital, sobre o processo e as relações de trabalho nas unida
des produtivas sob o seu comando, produção esta que se define em sistemas de con
trole no âmbito das relações de poder. Trata-se, portanto, de investigar este comple
xo problema cuja formulação está sempre cm movimento e cm um re-arranjo em
uma reestruturação histórica, que se dá ao mesmo tempo em que se desenvolvem as
forças produtivas no capitalismo, a partir dc uma perspectiva crítica ou de uma Eco
nomia Política do Poder. Tal problemática não poderia surgir no acaso. Conto afirma
Marx (1904, p. 165), o problema apenas surge quando as condições materiais neces
sárias à sua solução já existem ou estão cm processo de formação
18 José Henrique de Faria
' Capital no sentido de um sistema de capital, conforme definido por Mészáros (2002). É preciso esclare
cer porquanto "por vezes fala-se do capital coino um deus ex-inachina, um ente abstrato que de repente
instala-se na trama do processo civiliatório para dominar e manipular, levando ns pessoas a escotonúzar
que por Idb *> capital estão os que o detém e exploram - gente como a gente, ainda que diferindo no
perfil ético'* (Osório, 200J-
Economia Política do Poder - Vol. 1 19
2 "Isso ocone porque há uma tendência inata ligada á condição humana dc fazer-se 'amo' e tomar o outro
'servo'. Inata porque já se evidencia na tirania que o bebê exerce sobre a mãe ou sobre os que o cuidam”
(Osório, 2003).
2 "A psicologia social estuda o que aconiece nos macrogrupos humanos. O comportamento humano é
diferente nesses e nos micro ou pequenos gnipos. Compare-se o que se observa na massa de torcedores
em um campo de futebol com o comportamento de uma parcela desses mesmos torcedores quando numa
sata de reuniões da empresa a qual pertencem ou em uma negociação salarial com seus patrões c/ou em
pregados” (Osório. 2003).
Economia Política do Poder - Vol. 1 21
tradicional não tem sc debruçado suficientcinente. Ainda que possa, esta agregação,
ainda gerar estranheza etn certos círculos, a mesma é absolutamenlc necessária para
alcançar os objetivos pretendidos e será perseguida como uma contribuição que, se
não é inteiramente original, tampouco é ortodoxa ou dogmática. Ao contrário, segue
a própria sugestão de Marx, para quem seus esforços de pesquisa somente poderiam
se desenvolver se aqueles que o continuassem fossem suficientemente autônomos
para ampliá-lo, a partir da primazia do real.
Este estudo não é um exercício de neoniarxisnio, de marxismo revisio
nista e tampouco sc filia a qualquer qualificação deste ou de outro gênero. É um
estudo marxista. Primeiro, porque o mesmo considera o capitalismo como um modo
particular dc produção baseado na exploração do trabalho não pago; segundo, por
que considera que o capitalismo não é o último e definitivo sistema de produção
social na história; terceiro, porque entende que a superação do sistema do capital
não se realizará apenas com a superação do capitalismo; quarto, porque acredita na
possibilidade real dc um outro sistema superior de produção, dê-se a ele o nome que
desejar, no qual homens e mulheres, crianças, jovens e idosos, independentemente
de raça, credo, etnia ou outra classificação qualquer, poderão viver sem escassez,
sem discriminação, com justiça social e em uma coletividade democrática na qual
todos possam decidir o que, corno e quando deve ser produzido e para quem, como
c quando deve ser distribuído. A inserção da psicossociologia e da psicologia social
neste estudo é uni recurso fundamental para entender a microfísica do poder no
mundo do capital, bem ali onde ele diariamente sc produz e reproduz
Todo o trabalho inovador, que questiona dogmas e crenças, está sujeito a
críticas vindas de todos os lados. Mas, apenas quem ousa avançar poderá usufruir os
benefícios do pensamento autônomo e das responsabilidades dos coiTcspondentes
equívocos, como manda a unidade dos contrários. Neste sentido, partilho da obser
vação de Marx, citando Dantc em “A Divina Comédia’’: segue teu curso c deixa a
gente falar!
Volume 1
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Fundamentos
Capítulo 1
4 No encerramento <lo XXVI ENANPAD (cm 2002), um dos participantes do encontro afirmou que a
teoria crítica tem um papel importante na produção acadêmica, mas que seria necessário recusai o "de-
nuncismo". Esta avaliação, equivocada e preconceituosa, sobre a força da denúncia da teoria social (tão
bem expressa pela Escola de Frankfurt com relação aos totalitarisinos). está fundamentada cm uma opção
pelo "sugestionisnio pragmatisla”. para o qual toda a pesquisa que denuncia deve apresentar uma solução,
a qual, nautralnienlc. não poderia decorrer da ação dos sujeitos e das relações que estes são capazes de
estabelecer, já que se encontra brotada na mente iluminada do pesquisador c cm unia certa arrogância
elitista que pressupõe que o conhecimento é suficiente para a ação. Uma pesquisa pode sugerir ações,
sempre c onde couber, mas não pode pretender que as mesmas sejam soluções definitivas c inapclãveis e
tampouco pode supor qne, tuna vez indicadas, as sugestões não serão trabalhadas pelas novas relações que
inevitavelmente se estabelecerão. Ao final, o pragmatismo parece pretender que as organizações recebam
um conjunto de soluções prontas, nascidas da concepção de um aristocrático esquadrão de intelectuais
orgânicos □ serviço da ideologia do sistema de capital.
26 José Henrique de Faria
vítimas, quanto contra o totalitarismo que se introduziu na União Soviética, sob Stalin.
Assim, ao mesmo tempo cm que se vinculam ao pensamento marxista, esses teóricos
não abdicam da critica a determinados marxisnios (os mecanicistas, os naturalistas, as
versões fisicalislas da história elaborada pelos leninisias, entre outros), retomando a
dialética hegeliana ent sua versão materialista e dialogando com Fieud, Weber e outros
pensadores não marxistas. Tais diálogos abriram espaços para a ampliação das análises
de fundamento marxista, entre outras, nas áreas da estética, da cultura, do conheci
mento, da lingüística, da psicologia social e das organizações. A Teoria Critica oferece
não apenas um modo de interpretação de como a produção humana relacíona-sc com
os desejos, conflitos e potenciais, mas também uma forma de desenvolver habilidades
para pensar lógica e criativamçnte, afastando-se do pensamento canonizado.
O Instituto dc Pesquisa Social (Institui filr Sozialforschttng) foi fundado56
no interior desse confronto entre as diversas disciplinas, os dogmas cm que se toma
ram algumas teorias e as diferentes análises dc uma teoria, cada qual avocando paia si
a primazia da verdadeira interpretação. O marxismo, que detinha uma cena unidade e
uma identidade, passava a conviver com a fragmentação. O objetivo inicial dos fun
dadores do Instituto e dc toda a primeira geração era apresentar um modelo marxista
como alternativa às concepções que dividiam o marxismo. Tratava-se, neste mo
mento, de resolver o problema da crise c da fragmentação, dc retomar a tradição do
marxismo para restabelecer sua identidade . Um dos pontos cruciais na crise do mar
xismo residia cm uma discordância quanto ao caminho e aos meios para se chegar ao
poder: pela via das reformas ou da revolução. Tal divergência relacionava-se às análi
ses que estavam na base dos diagnósticos e prognósticos. É nesse contexto que surge
o programa de Horkhcimer de um materialismo inlerdisciplinar.
Para ç,oinpreenc|çr o jnundo, Horkheimer (1972; 1974; 1990) julgava,
como Lukács (1974; 1974b; 1981), que se deveria partir do marxismo, porém re-
fundindo-o com a incorporação de outros saberes. Esse movimento, iniciado com
Luckács c Korsch, denominado por Wiggershaus de “marxismo ocidental”, tem um
dos seus eixos na abertura para saberes, teorias científicas ou filosóficas, não diretn-
ntente marxistas. Neste sentido, uma das novidades do materialismo intcrdisciplinar
proposto por Ilorkheinter foi a tentativa dc compatibilizar Marx c Frcud, questão que
veio a se tomar extremamente relevante nos anos 30 (MUSSE, 1999) e que, atual
mente, no campo dos estudos organizacionais, adquire um lugar de destaque.
Embora pareça, à primeira vista, um tanto estranho, no campo dos estudos
organizacionais a Teoria Critica' tetn sido, às vezes, identificada como critica teórica
s A Escola de Frankfurt leve sua origem no Instiiulo dc Pcsquisn Soeinl fundado em Frankfurt em 1923.
com um legado de Félix Klein. O primeiro diretor do Instituto foi Karl Gríinbeig. marxista austríaco,
historiador da classe operária. Succdcti-o inicialmente Friedrich Polloch c mais tarde, em 1931, Mnx
Horkhcimer. Foi piecisamcntc com a nomeação de Horkheimer a diretor que o Instituto passou a adquirir
importância sempre maior, assumindo a condição de Escola, tanto do ponto de vista fomnl, como do
pomo de vista de tuna corrente de pensamento, com um programa que passou para a história das idéias
com o nome dc "teoria crítica da sociedade" (ASSOUN, 1991).
6 É impoitaiuc ressaltar que nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do século XX havia uma
crença generalizada no desenvolvimento humano c social: aciedilavn-sc que a humanidade estava se
encaminhando pata níveis dc vida cada vez mais superiores. Essa crença na evolução e essa fé noprogies-
so sc assentavam, como hoje, no incessante desenvolvimento cientifico e tecnológico. O que se esperava,
principalmentc na Alemanha, era um fututoenda vez mais radiante (MUSSE. 1999),
Toda teoria, por princípio, é íalsificável, ou seja, tem uma validade transitória. Quanto mais consistentes
seus pressupostos, maior alcance a mesma terá. Assim, toda a teoria que não sc presta n reprodução tem
Economia Política do Poder-Vot. 1 27
ou como abordagem critica, ou seja, como formulação que articula uma crítica à
teoria das organizações, embora permaneça prisioneira dos fundamentos epistêmicos
desta. Esta inadequação tem permitido classificar como sendo Teoria Crítica textos
que não se enquadram cm seus pressupostos epistemológicos e metodológicos, o que
sugere ser necessário demarcar o alcance desta teoria nos estudos organizacionais,
desvinculando-a da simples crítica teórica. Para Horkheimer (1990) trata-se de enco
rajar uma teoria da sociedade em sua totalidade, queisejã precisamente crítica g dia
lética de forma a fazer emergir as contradições da sociedade çapitalista. Cabe à Tei>
fia Crítica, como sugere Adorno (1993; 1994), investir contra as imagens deforma
das da realidade que desenvolvem a função dc servir ao poder, não dando voz à rea
lidade desordenada do capitalismo. * •
Ao denunciar o eclipse da razão, Horkheimer (1976) afirma que, por de
trás da pura lei econômica, da lei do mercado e do lucro, encontra-se a pura lei do
poder dc uma minoria, baseada na posse dos instrumentos materiais dc produção, de
forma que a tendência ao lucro acaba sendo o que sempre foi, ou seja, a tendência ao
poder social. No âmbito do Capitalismo de Estado, o lucro foi substituído pelo pla-
no, mas as pessoas continuam sendo objeto de uma administração centralizada e
burocrática: tanto os controles sobre o lucro como os controles sobre o plano gera
ram formas cada vez mais agudas de repressão. A Teoria Crítica, desta maneira,
constitui-se em uma teoria não apenas da economia, mas do poder: uma Economia
Política do Poder.
Neste sentido, os estudos atuais sobre a vida nas organizações vêm sugerir
que é preciso investigar mais do que as racionalidades instrumentais, que as estraté
gias, que as instituições, que os comportamentos e que as políticas. A análise das
organizações necessita desvendar o mundo do poder c as formas de controle que o
mesmo impetra para se‘sentir autorizada a compreender essas organizações e suas
finalidades. É isto que pode conferir qualidade'à teoria, criar condições dc análise e
promover intervenções políticas em ambientes de trabalho preenchidos de competi
tividade de toda a ordem.
A intenção primeira deste trabalho c o de apresentar os fundamentos da
Economia Política do Poder no estudo das organizações, sob a ótica da Teoria Crítica,
com a finalidade dc indicar que a compreensão da vida nas mesmas e sua dinâmica
exigem um c.squematcórico-metodológico crítico e dialético, que seja capaz de res
ponder às questões que afetam a vida cotidiana dos sujeitos das mais variadas formas
e que valorizem o sujeito coletivo mais do que as organizações em que trabalham,
pois de um modo ou de outro, se todos vivem cm função de organizações ou delas
dependem, como sugere Etzioni (1974), todos vivem originnlmcnte em sociedade. As
organizações são, dc fato, construções sociais e históricas que adquirem autonomia
relativa em relação aos sujeitos que a constituíram e que se consolidam como instân
cias dc mediação entre os interesses dos sujeitos a ela vinculados e os objetivos para
os quais foram criadas. As organizações não são entes abstratos, sujeitos absolutos,
entidades plcnamente autônomas, unidades totalizadoras e independentes, mas cons
truções sociais complexas, dinâmicas c contraditórias, nas quais convivem estruturas
formais e culturais, manifestas c ocultas, concretas e imaginárias.
do pele ambiente (age sobre o objeto), acomoda este conhecimento (ajeita a ação do
objeto sobre suas estruturas), toma a assimilar e acomodar em um movimento contínuo,
o qual forma c renova os esquemas, estabelece relações entre os mesmos, ampliando e
aprimorando cada vez mais as estruturas da inteligência. Assim, as estruturas, cons
tantemente renovadas, ao mesmo tempo em que formulam e geram informações, con
cepções e conceitos, processam, controlam e compartilham informações fornecidas
pelo real, pelo simbólico e pelo imaginário, constituindo desta maneira o fundamento
do comportamento exibido e da sua compreensão. Gradativa, dinâmica c contraditoria-
mente, o desenvolvimento do sujeito depende de sua condição de internalizar e sc
apropriar em suas estruturas cognitivas e afetivas das interações que c capaz de for
mular conscientemente ou que lhes são inscritas inconscientemente; dito de outro
modo, as possibilidades de adaptação (assimilação e acomodação) são geradas por
interações processadas no interior das esuuturas mentais.
O desenvolvimento das estruturas cognitivas e afetivas sc dá sempre em
um processo no qual estas sc ampliam e sc flexibilizam. A formação das estruturas
está condicionada à maturação orgânica do sujeito (nervosa, endócrina), à transmis
são social (convenções, valores, códigos, afetos, costumes), à experiência (física e
lógico-matemática) e à equilibração (dinâmica c dialética). Estes compostos das es
truturas não são elementos presentes apenas no aparato consciente-racional, perma
necendo escondidos no inconsciente. Paia Piaget (1973:33-46), não existem dois
domínios, o do consciente e do inconsciente, separados por uma fronteira, mas um
único, do qual, mesmo nos estados inais lúcidos, só se percebe uma pequena parte, a
qual escapa quase que totnlmenic quando já não se a controla de perto. Isto torna a
análise do conhecimento, que o sujeito possui e que expressa, c das experiências,
que acumula, uma tarefa que exige extremas cautelas.
De acordo com Piaget (BATTRO, 1978), existem dois tipos básicos de
experiência. A experiência física refere-se à interação do sujeito com o real a partir
das propriedades deste. Interação na medida etn que o sujeito só pode sc relacionar
com o real enquanto uma ação própria que tem por suponc os esquemas constituin
tes da estrutura. Aqui, com seus esquemas, o sujeito realiza uma abstração do real dc
acordo com as propriedades deste e com os esquemas de apreensão daquele. A expe
riência lógico-matemática rcfcrc-se a uma abstração decorrente da ação do sujeito
sobre o real, ou seja, decorrente das propriedades da ação do sujeito. Em ambos os
casos, o sujeito é sempre e necessariamente ativo na relação com o real, de forma
que não é o real que determina a percepção do sujeito e sua interpretação (o que se
ria uma concepção cartesiana c positivista), e tampouco a percepção do sujeito que
determina a forma do real (cotno supõem a metafísica kantiana, o idealismo hegelia
no, a fenontenologia husserliana e heideggeriana e seus derivados, tais como a com
preensão e os tipos ideais) como sugere o chamado esquema interpretativo que en
tende que o sujeito interpreta o real e age sobre o mesmo, mas a relação do sujeito
com o real: ação e pensamento (a práxis) constituem a percepção inteligente.
As estruturas do sujeito c o real não são estáticos. Ambos estão em cons
tante movimento, de forma que a percepção do sujeito sobre o real varia conforme sc
desenvolvem suas estruturas e seus esquemas e conforme sc processa a dinâmica do
real. Do ponto de vista científico, a percepção do objeto, a elaboração intelectual
sobre o mesmo, com suas classificações, ordenamentos é concepções, não se trata
ainda de teoria, mas de conhecimento. Conhecer é agir sobre a realidade ou sobre
dados abstratos e integrá-los às próprias estruturas, enquanto a teoria exige outros
Economia Política do Poder — Vol. 1 31
requisitos. A relação primeira que o sujeito tem com o objeto de seu conhecimento é
apenas uma aproximação precária, sem que se processe uma relação de elaboração
sobre o mesmo e sobre o próprio pensar. O objeto precariamente percebido, o será,
mesmo assim, a partir da ação do sujeito, còm as estruturas que o mesmo possui. Da
aproximação precária para a construção de um objeto elaborado, o sujeito necessita
rá refletir sobre sua percepção tanto quanto sobre o seu pensar. Assim, esta aproxi
mação precária fornecerá os primeiros elementos de uma investigação, cabendo ao
sujeito investigador ordenar estas primeiras informações e classificá-las, de forma a
poder retomar ao real com seu esquema aprimorado. Para elaborar teoria o sujeito
necessita seguir procedimentos reconhecidos pela ciência, mas para produzir conhe
cimento não. A ciência é uma organizadora do conhecimento produzido, mas é na
produção do conhecimento que se pode permitir toda a criatividade e a espontanei
dade do livre pensar que, segundo Millôr Fernandes, é só pensar.
De fato, um primeiro contato do sujeito com o objeto, esta aproximação-
precária, se dá pela ação do sujeito (com suas estruturas) sobre o objeto, o qual,
contudo, neste nível da relação, aparecerá para o sujeito apenas com sua aparência
mais imediata: a informação que o sujeito retira está na forma manifesta do objeto.
Nesta fase ocorre a percepção primária, na qual sujeito c objeto estabelecem uma
relação frágil, em que a ação intelectual, a inteligência, é pouco exigida. Se toda a
relação se encerrasse aí, o sujeito teria apenas tido informações acerca do objeto
(objeto em si), mas não consciência do mesmo e de sua ação sobre ele (objeto pnrn
si), já que a tomnda dc consciência é uma reconstrução e, deste modo, uma constru
ção original que se superpõe à construção devida à ação.
Se o sujeito reflete sobre o objeto e sobre sua ação relacionada ao mesmo,
se há uma ação e uma reflexão (se há uma práxis), o objeto não se dá a conhecer mais ■
ao sujeito em sua aparência imediata, pois que se trata, agora, de um objeto elaborado
e, como tal, resultante da atividade do sujeito. Nesta fase ocorre a percepção secundá
ria. O sujeito, neste sentido, pode conceituar, descrever, organizar, classificar, enfim,
pensar sobre o objeto e sobre sua ação, elaborar seu conhecimento, o que afetará seus
esquemas e as relações entre eles e que constituem as estruturas, as quais também afe
tarão a percepção do objeto, em um processo dinâmico. Esta dinâmica é tanto mais
intensa quanto mais o objeto for outro sujeito, que observa, percebe e pensa.
Para que o objeto elaborado ou apreendido possa se transformar cm ob
jeto teórico, em objeto construído segundo as regras da ciência, há um percurso que
é necessário seguir c ao qual o sujeito deve submeter sua ação, seu fazer. Isto não
significa, entretanto, a submissão do pensamento ao método, sob pena de reduzir a
teoria a uma simples reprodução condicionada externamente. O método guia o su
jeito em sua relação com o objeto, mas não pode lhe limitar os movimentos. Deste
modo, partindo das relações do sujeito com o objeto e do avanço proporcionado
pela própria ciência no domínio conceituai, vai sendo possível elaborar abstrações
cada vez mais sutis, as quais suscitarão a definição dc categorias analíticas. Como já
observara Marx (1977:38-39),
o concreto ê concteto já que constitui a síntese de numerosas determinações, ou
seja, a unidade da diversidodes. Para o pensamento constitui um processo de síntese
’ Aqui entendida no sentido dialético, e não no sentido ctiniolõgico de dualidade e sua conseqüentc con
cepção maniqueista.
32 José Henrique de Faria
’ “Equivalente adulto da onipotência original do bebê. que. em soa concepção compensatória de sna
extrema fragilidade pela condição larvária em que chega ao mundo, fantasia (hipótese) e age (constata’
çâo fática) como se o mundo (ntàe) estivesse aí só para lhe scivid' (OSÓRIO. 2003).
34 José Henrique de Faria
resposta. Segundo esta concepção, todo tipo de pesquisa que uão siga estes cânones
seria considerada ou não confiável ou, simplesmente, não científica. É necessário,
neste sentido, defender a tese de que é necessário deixar o objeto de pesquisa falar
para definir a metodologia adequada à sua apreensão, sob pena de se impor ao objeto
o modelo de sua interpretação antes mesmo que este se dê a conhecer.
Como afirma Adcmo (1995), uma explicação, por mais simples, coerente e
matematicamente elegante que seja, c inadequada quando o objeto que investiga não é,
ele mesmo, coerente, simples e neutro, que possa ser apreendido ou por uma estrutura
categorial aprioristica, ou por uma descrição acrílica. O objeto é, ao mesmo tempo,
determinável e contraditório, sistemático e irregular, natural e mediado pela consciên
cia, de maneira que o zelo purista que investe contra a contradição acaba por afirmar
uma contradição entre a estrutura do método e a estrutura do objeto. O método não é
indiferente ao objeto e tampouco depende do ideal metodológico e sim, da coisa que e'
investigada. Isto não significa que o objeto e que os fatos sejam a realidade última, na
qual se encontraria o fundamento do conhecimento, pois os fatos são, eles mesmos,
mediados tanto pola sociedade quanto pelo sujeito investigador. Os fatos não existem a
partir da idéia, e tampouco a idéia a partir dos fatos, mas, da interação dialc'tica entre
ambos, do que decorre que toda metodologia e teoria que se apresentam diante dos
fatos antes mesmo de conhecê-los, apenas os interpretarão segundo esquemas previa
mente definidos e independentes da natureza dos fatos; do mesmo modo, toda a teoria
que só é formulada exclusivamente a partir dos fatos, sem que um primeiro esquema
de apreensão seja definido, apenas os descreverão c o farão de tal modo que, ao final, o
que pretendia ser uma investigação objetiva dos fatos resulta cm uma apreciação mar
cada pela subjetividade do pesquisador. Em ambos os casos, o que realmente importa
não c a teoria, mas sua funcionalidade instrumental e sua beleza estética.
Para a Economia. Política do Poder, qualquer investigação científica pos
sui quatro limites não excludentes:
(i) o sujeito pesquisador: refere-sc à falta de sensibilidade, de conheci
mento ou de condições internas do sujeito cm sua relação com o ob
jeto investigado, dc maneira que o sujeito nem sempre percebe o que
o objeto fala, seja por uma questão dc estrutura do pensamento, seja
por uma limitação funcional, seja por uma dificuldade emociona). A
experiência pode conferir melhores condições dc análise, maior, ca
pacidade dc leitura do real c de estabelecimento de relações, mas não
existe uma correlação exata entre experiência e percepção. Todos os
sujeitos pesquisadores, em diferentes graus, possuem este limite, que
é próprio da condição humana;
(ii) a realidade investigada: rcfcrc-se ao falo de que a realidade não se
revela totalmente no pesquisador. Marx já observava que, se a
aparência dos fenômenos fosse igual à sua essência, não haveria
ciência. As inúmeras relações que constituem o real não são visíveis
todo o tempo, de forma que por mais profunda e exaustiva que seja
uma análise, ainda assim existirão elementos que a constituem que
não são percebidos. Ta] limite pode ser acentuado ou reduzido pela
superação dos demais limites mencionados;
(iii) a base teórica e metodológica: refere-se às restrições do acúmulo
teórico disponível e das metodologias para a apreensão do real. Toda
Economia Política do Poder - Vol. 1 35
10 O conce ito de organizações sociais aqui referido é o de organização autônoma da sociedade, conforme a
clássica proposição das ciências sociais, não devendo ser confundido co:n o uso que dele foi feiio pelo
Governo Fernando Henrique Cardoso, especialmcnic pelo seu Ministro Bresser Pereira.
38 José Henrique de Faria
3 AS INSTÂNCIAS DE ANÁLISE
Uma organização, enquanto uma totalidade complexa, não pode ser estu
dada como uma unidade monolítica. Existem diversos fatores e processos que com
põem a realidade da organização c que devem ser considerados em sua análise. Para
o que se pretende neste estudo, pode-se tomar emprestado as instâncias de análise
das organizações sugeridas por Enriquez (1997), que são:
(i) mítica: diz respeito à ordem legitimadora da origem e do funciona
mento da organização, □ unificação dos pensamentos e comporta
mentos, à mobilização, às expressões das projeções, à tradução dos
desejos e à adesão;
(ii) social-histórica: refere-se à construção social da organização, à sua
trajetória, às suas transformações e evoluções e ao seu projeto de de
senvolvimento;
(iii) institucional: é onde se expressam os fenômenos do poder e seus
corolários, as normas explícitas e implícitas, cuja função ê a de orien
tação e do modo de regulação social com o objetivo de manter a or
ganização e de assegurar sua duração e transmissão;
(iv) organizacional: c a modalidade específica c transitória de estru
turação da instituição, na inedida cm que lhe dá sentido concreto,
através da divisão do trabalho, da autoridade, das relações de força
cotidianas, das tarefas, das metodologias, da tecnologia, dos pro
cedimentos;
(v) grupai: é o lugar privilegiado para a compreensão dos fenômenos
coletivos, onde se expressam os sentimentos, as ambivalências, as
relações afetivas, os sistemas de valores, os desejos, sendo assim um
lugar da ação e ao mesmo tempo um lugar dos refúgios, um sítio
protetor contra os perigos;
(vi) individual: refere-se à ação do indivíduo na construção social, à suas
condutas, aos papéis que ocupa ou desempenha, ao comportamentos
dos indivíduos capazes da ação, às posições normais e patológicas
(paranóia, manipulação, megalomania, perversidade, sedução, histe
ria);
(vii) puisional: refere-se ao processo dinâmico, cuja dualidade é que faz a
organização tender para seu objetivo (pulsão de vida) ou afastar-se
dele (pulsão de morte). Aqui pode-se perceber como as organizações
explicitam seu compromisso com a pulsão de vida (eficiência, dina
mismo, mudança, coesão e harmonia), mas adotam procedimentos
que favorecem a pulsão dc morte (repetição, manutenção, inércia,
impedimentos à crítica, exclusão).
Estas instâncias permitem estudar as organizações a partir de diferentes
perspectivas, levando em.consideração os mencionados fatores e processos, especial-
tnente os referentes às relações de poder e de controle, que interessam mais particu-
iarmente aqui. Cada instância indica uma forma de abordar a realidade complexa
estudada de maneira a recobrir o campo empírico e o objeto. As relações de poder e
40 José Henrique de Faria
controle, nas organizações, são expressões da lei c da ordem, são recalcanles, repres
sivos, racionais c reguladores, que atingem os sujeitos não apenas objetivamente,
mas igualmente em sua subjetividade. Do ponto de vista das organizações produtivas
do modo de produção capitalista e da organização capitalista do trabalho, as relações
de poder e de controle possuem algumas características fundamentais, cujas bases
cncontrani-sc primeiramente na organização e na divisão do trabalho, na exploração
do trabalho e no processo de acumulação do capital.
11 Não sc reportará, aqui, à divisão por gênero (certos tipos dc trabalho reservados a homens e outros a
mulheres), idade (anciões, jovens e crianças) e hereditariedade (comum ás castas) etc. Deseja-se enfatizar,
contudo, que estas foram e permanecem sendo uma questão importante sobro a qual muitas pesquisas têm
sido produzidas revelando processos de identidade, preconceito, discriminação e marginalização. Esta
questão não será examinaria porque foge ao objetivo imediato deste estudo.
Economia Política do Poder — Vol. 1 41
Não foi Marx quem descobriu a existência da mais-valia (mais valor, tra
balho excedente), mas foi ele. sem dúvida, quem a definiu de forma a que, através
dela, fosse possível explicar as causas da exploração capitalista. Pata chegar à defi
nição de mais-valia, Marx (1946) examina o intercâmbio, cm que o produtor vende o
que produz no mercado e com isto compra outros produtos de que necessita para
viver. Os produtos, assim, constituem-se em valores de uso para outros, através do
mercado. Marx chama estes produtos de mercadorias. A economia baseada no inter
câmbio não é uma característica do regime capitalista de produção, mas é neste re
gime que o produtor da mcrcadotia não a possui e nem tem o direito de dispor dela,
pois a mercadoria pertence aos proprietários dos meios de produção. Neste sentido, o
preço da mercadoria, no mercado, não é mais regulado pela necessidade do produtor
em adquirir outras mercadorias, mas de forma que possibilite no capitalista obter
ainda mais dinheiro do que ele empregou no início do processo de produção. Que
mercadoria é esta que pode scr comprada pelo capitalista e que, em função de seu
uso, possa vir a produzir valor? Sendo a origem do valor o trabalho humano, esta
mercadoria não pode ser senão a força de trabalho, pois esta é a única mercadoria
capaz de criar mais valor que seu próprio valor. O valor da mercadoria força de tra
balho depende, por seu turno, do tempo de trabalho socialmente necessário para
produzi-la, ou seja, tal mercadoria não é um caso privilegiado de mcrcadotia, mas
recebe o mesmo tratamento que qualquer mercadoria tangível.
Com efeito, quando o capitalista c o operário encontram-se no mercado
de trabalho, este oferece sua força de trabalho como mercadoria e aquele a compra
por determinada quantia de dinheiro para usá-lá durante um certo período de tempo.
O trabalhador adianta ao capitalista a quantia tratada, pois só a recebe após haver
trabalhado. Tendo comprado a força de trabalho, 0 capitalista dela dispõe, como
valor dc uso, fazendo-a trabalhar. Como a força de trabalho produz mais trabalho do
que o necessário para produzi-la, o comprador desta força dc trabalho vai usá-la
mais do que por ela pagou, on seja, vai usá-la não pelo tempo de trabalho pago, no
qual o trabalhador reproduz sua força de trabalho, mas pelo tempo de trabalho não
pago (extra), no qual o operário cria mais-valia para o capitalista A mais-valia c,
assim, o valor que o operário cria além daquele valor correspondente à sua força dc
trabalho c constitui, portanto, a fonte do lucro capitalista.
Existem, contudo, duns maneiras pelas quais o capitalista obtem mais-
valia: intensificando o trabalho ou diminuindo o tempo dc trabalho necessário. Com
efeito, Marx chama estas duas maneiras de mais-valia absoluta e mais-valia relativa.
Chama-se mais-valia absoluta a "produzida pelo alargamento da jomada de trabalho
e, pelo contrário, mais-valia relativo a resultante do encurtamento do tempo de tra
balho necessário e a correspondente variação da magnitude proporcional de ambas
as partes constituintes da jomada" (MARX, 1946, p. 227). Para melhor explicar es
tas duas maneiras, c conveniente recorrer a um exemplo. Suponha-se que o tempo de
trabalho necessário para produzir uma mercadoria (um sapato, por exemplo) seja de
quatro horas. Nessas quatio horas, o operário reproduz a força dc trabalho pela qual
foi pago (por exemplo, 10 unidades monetárias - u.m). Assim, o capitalista com
prou, por 10 u.m., a força de trabalho do operário, o qual "paga" este valor, produ
zindo um sapato em ,im tempo de trabalho necessário, medido em quatro horas.
Economia Política do Poder - Vol. 1 43
Ocorre, porém, que o capitalista, que compra a força de trabalho, dispõe do valor de
uso desta força de trabalho fazendo o operário trabalhar e o faz não por quatro horas
(tempo no qual a força de trabalho, que o operário vendeu, cria um valor igual ao seu
próprio) mas por um tempo bem maior (por exemplo, oito horas). Assim, nas quatro
íioras seguintes (na qual o operário produziu mais um sapato) a força de trabalho
criou um valor maior que o seu próprio (no caso, 20 u.m.). Este excedente de valor
(IO u.m.) que o operário criou para além do valor de sua própria força de trabalho é
chamado por Marx de mais-valor (Mehnvert), ou mais-valia, a qual é a origem do
lucro capitalista. A mais-valia é criada em um processo de produção, ou seja, unindo
à força de trabalho os instrumentos e os meios de produção.
O capitalista, no entanto, pode aumentar ainda mais a extração de mais-
valia e o faz das duas maneiras descritas por Marx: prolongando a jornada de traba
lho e aumentando a produtividade do trabalho. Obviamente, a primeira forma é a
mais vantajosa, pois a superexploração da jornada de trabalho não envolve custos
adicionais significativos. No exemplo dado, o operário poderia trabalhar mais quatro
horas diárias, perfazendo doze e gerando um valor correspondente a três vezes o seu
próprio valor. Quanto mais o capitalismo torna-se desenvolvido, menos significativa
é a mais-valia absoluta no total da mais-valia criada, quer porque os movimentos
operários impõem, aos capitalistas, a redução na jomada de trabalho, quer porque o
prolongamento da jomada tem limites físicos. A mais-valia relativa, por seu turno,
aumenta o rendimento do trabalho encurtando o tempo de trabalho necessário tanto
na primeira parte constituinte da jomada (as primeiras quatro horas, no exemplo),
como na segunda pane (as outras quatro horas). Isto é feito pelo desenvolvimento
das forças produtivas.
O capitalista pode encurtar o tempo de trabalho necessário através da utili
zação de tecnologia de gestão, quando altera os métodos de trabalho, ou de tecnologia
física aplicada à produção, quando incorpora ao processo produtivo novas e mais efi
cientes máquinas e equipamentos: cm ambos os casos, o que se tem é a incorporação
de tecnologia, criada pelo próprio capitalismo, em seu benefício. No exemplo dado, o
operário, através de novos métodos de trabalho desenvolvidos pela administração ou
de novas máquinas e equipamentos, passa a produzir não mais um sapato a cada quatro
horas, mas, gradualmente, dois, seis, dez, cm uma progressão indefinida. Assim, se
cada sapato (no exemplo), representa o valor da força de trabalho, quanto mais sapatos
o operário produz em menor tempo, maior é o valor adicional criado para o capitalista.
É claro que o valor relativo da mercadoria (sapato) também diminui, quer porque o
capitalista introduziu no processo de produção mais capital constante, quer porque é
menor o valor que a força do trabalho agrega ao produto, quer porque o sapato não
poderia ser adquirido, inclusive, pelos próprios operários. Em síntese,
o prolongamento da jomada de trabalho além do ponto em que o trabalhador te
ria produzido apenas um equivalente pelo valor de sua força de trabalho1', e a
apropriação desse inais-trabalho pelo capital, isso é a produção de mais-valia
absoluta, constituía hase geral do sistema capitalista e o ponto de partida para a
produção de mais-valia relativa. Com esta, a jornada de trabalho estã desde o
princípio dividida em duas partes: trabalho necessário e mais-trabnlho. Pata
11 Se o tempo de trabalho necessário em uma jornada de 8 horas foi reduzido de 4 horas para I hora (novo
tempo de trabalho necessáno para o trabalhador produzir o valor equivalente de sua força de trabalho), q
tempo suplementar atinicniou na razão inversa de 4 horas para 7 horas.
44 José Henrique de Faria
mediada por irabalho (tábua, lingote dc ferro, cal. cimento etc.); (iii) meio de trabalho é tuna coisa ou mn
complexo de coisas que o trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto dc seu trabalho c que lhe serve
como condutor dc sua atividade sobre este objeto. Na medida em que o processo dc trabalho se desenvol
ve, os meios de trabalho são trabalhados (martelo, formão. serrote, com os quais o trabalhador alua sobre
a matéria-prima para transformá-la em mesas, cadeiras etc ). Do ponto de vista do produto, mero e objeto
dc trabalho aparecem, ambos, como meios dc produção.
46 José Henrique de Faria
15 "Exploitation is the production of political lines of lhe overdetermination of social production. This is
not to say that the economic aspects of exploitation can be negated: on the contrary, exploitation is precisely
the seizure, tie centralization, and the expropriation of theform and the product of social cooperation
: therefore il is an economic determination in a very meaningful way - but its forms is political".
(NEGRI. 1996, p. 153)
50 José Henrique de Faria
natureza econômica, encontra-se sujeita a unia medida objetiva, que se pode encon
trar nos resultados proporcionados pelo aumento na taxa de valor excedente e na
taxa de produtividade. A segunda função somente pode ser avaliada qualitativamente
e por mais sofisticados que possam ser os instrumentos de medida, não se pode de
terminar exatamente as relações entre os mecanismos sofisticados de controle sub
jetivo e os resultados objetivos da produção. Embora haja uma relação diretamente
proporcional entre os mecanismos de controle e a produtividade (ou os graus dc
exploração), é necessário admitir que a mesma apenas parcialmente pode ser ob
jetivamente mensurável16. Do mesmo modo, é preciso considerar que a captura da
consciência do trabalhador pelo capital tem uma relevância importantíssima nas
formas de resistência deste e nas formas de dominação daquele, porque quanto
mais o trabalhador é envolvido na ideologia do capital e muito mais subjeti
vamente subsumido a este, menor será sua capacidade dc luta.
Sc esta relação não existisse e não fosse comprovada, ainda que sem exatidão, o capital não investiría
tanto no desenvolvimento de novas tecnologias de gestão. A introdução das novas tecnologias de gestão
com seus mecanismos mais sutis de controle e dominação pode ser parcialmente medida de forma objeti
va quando a mesma é relacionada ao desempenho da empresa, à sua produtividade. Entretanto, seus efei
tos não se produzem imediatamente para todos os sujeitos e tampouco na mesma proporção
7 Do pomo de vista do sistema capitalista, esta transferência em nada modifica a massa de capital e de
1
lucro, pois n mesma diz respeito somente ao capitalista particular ou à análise dos movimentos do capital
na dinâmica capitalista.
Economia Política do Poder - Vol. 1 51
15 Alguns biógrafos e estudiosos afirmam que Marx costumava trabalhar exaustivamente cada assunto que
abordava e que especificamente com rotação à lei tendencial da queda da taxa de lucro, o que se encontra
em seus manuscritos são menções inacabadas. Neste sentido, atribuem a Engels. quando de seu trabalho
dc revisão c edição dos textos de Marx, a inclusão desta questão.
52 José Henrique de Faria
é lei de uma tendência e não de cada uma das formas de realização em que tal tendência
se processa (MEEK, 1974).
Duas grandes críticas são formuladas à lei de baixa tendencial da taxa de
lucro. A primeira, a de Joan Robinson (1949) - parcialmente referenciada por C.
Castoriadis — sugere que, se o aumento da produtividade representa, por um lado, um
acréscimo de maquinaria utilizada na produção em comparação à força de trabalho,
de outro lado implica uma redução do valor da força de trabalho, pois diminui o
valor, nela incorporado, dos produtos. Assim, a queda da taxa de lucro resultante do
aumento relativo da maquinaria é compensada por uma queda dos salários reais. Um
dos equívocos de Robinson é tomar uma formulação geral de longo prazo por um
modelo microeconômico de curto prazo. Marx admite que existem, casos em que a
queda nos salários reais compensa o que, sem esta queda, seria uma redução na taxa
de lucro. No entanto, Marx não aceita que, no longo prazo, este incremento de mais-
valia possa compensar a diminuição da taxa de lucro, pois, quanto menor for o
número de operários empregados, ainda que a taxa de exploração aumente, a massa
de mais-valia proporcionalmente ao capital total cai.
O caráter tendencial da lei significa precisamente que ela exerce sua vigência
mediante formas de realização contraditórias. Se a taxa de lucro não tendesse a
baixar, os capitalistas não se veríam pressionados a incrementar desse modo a
taxa de exploração: e se o aumento da taxa de exploração pode compensar a di
minuição da taxa de lucro, este efeito último exerce-se, pois, nos limites de um
corpo fundamentalmente determinado pela baixa da taxa de lucro enquanto lei
tendencial. (BERNARDO, 1977, v. 2,p. 137)
A segunda linha crítica, que atinge o processo central da taxa de lucro, está
reunida em um reading (HOROWITZ, 1968). Sugere esta linha de crítica que, sendo
o aumento da maquinaria a expressão do aumento da produtividade e sua causa, as
novas máquinas sempre vão ser produzidas a valores inferiores, de onde decorre que
o aumento físico da maquinaria não significa um aumento de valor: a composição
técnica aumenta sem que aumente a composição orgânica. O primeiro equívoco desta
crítica é semelhante ao anterior, que é tomar um caso cm particular para contrapô-lo
a um caso geral, ou seja, é possível que este fenômeno ocorra em alguma unidade
produtiva capitalista, mas não ocorre no movimento geral do capital. O segundo
problema que pode ser apontado é que as estatísticas que os críticos utilizam para
fundamentar a crítica não correspondem ao conceito de valor que criticam, seja por
que não se contabiliza o imposto como componente da mais-valia ou porque o lucro
realizado não é o valor produzido, seja porque, quanto ao capital global, não exami
nam adequadamente o papel do Estado na reprodução do capital, especialmente nos
investimentos que este faz em grandes meios de produção (infra-estrutura).
Esta crítica é rebatida por Yaffe (1973) quando este questiona a con
cepção de que a inovação tecnológica poupa capital, ou seja, de que o aumento da
produtividade diminui o valor dos produtos do Setor I. Neste sentido, Yaffe rela
ciona quatro pontos: (i) toda inovação tecnológica que poupa capital, na verdade é
uma inovação que poupa trabalho; (ii) as inovações não têm lugar se a composição
orgânica do capital já não tiver aumentado; (iii) quanto maior a composição orgânica
do capital, menor o efeito das inovações; (iv) as inovações que poupam capital afe
tam o campo de trabalho, reforçando as necessidades de gestão e aumentando o
número de gestores.
Economia Política do Poder - Vol. 1 53
O que deve ficar claro é que, quando a queda da taxa de lucro chega a
um limite, há um salto de qualidade na esfera de acumulação. Este fenômeno pode
explicar como, em certos períodos, o capital, tendo aumentado sua taxa de mais-
valia em proporções elevadas, pode diminuir o preço de seus produtos c, no
mesmo tempo, aumentar o salários dos trabalhadores. A alta taxa de lucro confere
ao capital maior flexibilidade cm sua política de preço das mercadorias que pro
duz, com a finalidade de realizar o valor empregado no processo de produção. Ao
mesmo tempo, para realizar o valor (vender a mercadoria produzida), o capita) se
verá frente a outros capitais que atuam em seu mesmo campo, o que estabelece
uma competição pelo mercado e, em consequência, uma tendência a que se
reduzam ainda mais os preços das mercadorias. A redução destes preços, deste
modo, acaba implicando uma redução da taxa de lucro no processo de realização
do valor. Dependendo do nível desta redução, observa-se uma crise de acumula
ção, com suas inevitáveis consequências: desemprego, falências, concordatas,
fusões, incorporações etc.
A resposta à crise ou mesmo à diminuição do lucro, exige do capital um in
cremento na produtividade do trabalho, o que se dará pela diminuição do número de
trabalhadores envolvidos nos processos de produção e pelo emprego de novas tecnolo
gias físicas ou de gestão, ou seja, a contratendência à queda da taxa de lucro se dá pela
política de aumento do valor excedente. Esta relação entre a crise dc acumulação e o
desemprego é relativamente imediata, mas entre a crise e os investimentos em tecnolo
gias físicas e de gestão é mais complexa, pois o capital produtivo, em momentos de
crise, encontra-se contido cm suas inversões financeiras, de forma que as respostas
sobre os investimentos e seus resultados demoram a aparecer19. Esta política decorre
não apenas das decisões dos capitalistas no gerenciamento de suas empresas, mas
igualmente da ação do Estado Capitalista Contemporâneo. Após uma onda, longa ou
curta, de crise de acumulação, inicia-se um novo período de expansão do capital, um
salto quantitativo, que impõe novos padrões de produtividade e competitividade. As
novas tecnologias, neste sentido, estão fundamentalmente assentadas em relações so
ciais e no processo de trabalho e não em uma relação entre máquina e produto mate
rializado ou mesmo decorrente de pura inventividade humana.
19 Não é intenção discorrer aqui sobre o capital financeiro e o capital especulativo em períodos de crise de
acumulação. Entretanto. convém lembrar que nestes momentos o capital financeiro e especulativo pode
circular com certa desenvoltura, tendo efeitos consideráveis não apenas sobre o capital produtivo, como
sobre as contas públicas c os agregados macroeconômicos.