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José Henrique de Faria

Economista
Mestre e Doutor em Administração
Pós-Doutor em Relações de Trabalho

ECONOMIA POLÍTICA
DO PODER

Fundamentos

Volume 1

Curitiba
Juruá Editora
2004
CONSELHO EDITORIAL: COMISSÃO EDITORIAL:
Geraldo Peçanha E. lan Robinson
Mestre em Letras pela UFPR - Professor Professor PhD da University of Michigan
da UFPR Sérgio Bulgacov
Marcos Kahtalian Professor da UFPR - Doutor em Administra­
Mestre em Marketing pela UNICAMP - Pro­ ção de Empresas (FGV-SP)
fessor da FAE Luiz Carlos Osório
Sady Ivo Pezzi Júnior M.D. Psicanalista (Grupos)
MBA em Marketing pela FAE - Professor da
OPET

ISBN: 85-362-0802-3

Matriz/ Curitiba: Av. Munhoz da Rocha. 143 -Juvevê


CEP: 80.035-000 - Fone: (0--41)352-3900- Fax: 252-1311

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Arte da capa: José Alexandre Vargas de Faria

Editor: José Ernani de Carvalho Pacheco

Faria, José Henrique de.


F224 Economia política do poder./ José Henrique de Faria./
Curitiba: Juruá, 2004.
202p. - v. 1

1. Economia política; 2. Poder. 1. Título,

CDD 339.5 (22.ed.)


CDU 339.97

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16 José Henrique de Faria

Capítulo 4 - PODER E RELAÇÕES DE PODER: OS FUNDAMENTOS NUCLEA­


RES DA ECONOMIA POLÍTICA DO PODER..................... 105
1 Uma Breve Análise Conceituai..................................................................................107
2 Uma Análise Crítica................. .............................................................................. 129
3 Relações de Poder nas Organizações......................................................................... 135
4 Considerações Adicionais.._.... . ................................................. :.... ....................... 149
Capítulo 5 - ÉTICA, CONTROLE E PODER: OS PARADOXOS DA PRÁXIS E DOS
DISCURSOS NAS ORGANIZAÇÕES.................................. 151
1 Ética, Moral e Democracia: uma Definição................................. .•................;............ 153
2 Ética e Democracia: o Arcabouço de Que se Fala............................................... .....157
3 Democracia c Responsabilidade................................. -.................. ......................... 159
4 Princípios e Compromissos................................................. 160
5 A Ética Corporativa e a Legitimação do Poder e do Controle: o Novo Discurso do
Capital.................................... ........................................ 163
6 Ética, Democracia e Poder: o Controle e os Paradoxos da Práxií Organizacional..... 164
7 Encaminhamento Reflexivo................................. 170
CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS AO VOLUME 1............ 173
REFERÊNCIAS............................................................................................ :................... 175
ÍNDICE ALFABÉTICO............................................................. -......... 195

LISTA DE QUADROS

Quadro 01.1: Tipos e Formas de Organização Social.................................... 36


Quadro 02.1: Modelo Básico de Tipos de Gestão............................................................38
Quadro 03.1: Esquema da Divisão do Trabalho..............................................................40
Quadro 04.1: Tecnologias de Processo............................................................................ 57
Quadro 01.3: Composição das Atividades Econômicas de Acordo com a Reestrutura­
ção Produtiva.......'........................................................... 98
QuadroOJ.4. Inadequações Conceituais de Poder........................................................ 135
Quadro 02.4: Características c Frágil idades dos Conceitos de Liderança....................... 140
Quadro 03.4: Categorias do Exercício do Poder............. .............................................. 144
Quadro 04.4: As Bases das Relações dc Poder................ . ........................................... 147
Quadro01.5: Ética, Moral c Democracia: Posturas Indicadas........................................158
Quadro 02.5: Paradoxo do Autoritarismo e Preconceito...................................... 166
Quadro 03.5: Paradoxo da Injustiça e Autopreservação........................................... 167
Quadro 04.5: Paradoxo da Subordinação Ética e Competitividade..................................168
Quadro 05.5: Paradoxo do Conformismo ......... 169
Quadro 06.5: Paradoxo da Desvalorização Humana c Aulodepreciação......................... 169
INTRODUÇÃO

É certo que a produção social na qual os sujeitos estão inseridos (i) estabe­
lecem relações definidas, que são ao mesmo tempo indispensáveis e independentes
destes sujeitos, (ii) que tais relações correspondem a estágios do desenvolvimento
das forças materiais de produção e (iii) que o co'njunto destas relações de produção
se constitui na base econômica material sobre a qual se assenta a superestrutura jurí-
dico-político-ideológica à qual correspondem formas de consciência social. É certo
que o modo de produção das condições materiais dc existência interage com o cará­
ter geral da vida social, política e psicossocial dos sujeitos, de forma que a consciên­
cia da transformação, pelo sujeito individual, encontra-se relacionada ã consciência
social, na medida cm que não c a consciência dos homens que determino sua exis­
tência, mas, ao contrário, é sua existência social que determina sua consciência
(Marx, 1904, p. 165). Mas, é igualmente certo que a compreensão dos sujeitos não
pode ser definida c sequer determinada apenas pela consciência decorrente da sua
existência social, pois por mais importante que esta seja, como de fato é, não é a
única forma dc existência.
O conjunto dos processos inconscientes e subjetivos e das relações sociais é
que forma a totalidade da existência do sujeito e é esta totalidade que constrói sua
consciência. Mais do que isto, tal construção encontra-se carregada de contradições e
conflitos presentes tanto em cada um dos processos (inconscientes e sociais), como
entre os mesmos. Para os propósitos do presente estudo, isto significa que se está
diante de um quadro complexo de relações de poder no qual tanto elementos objeti­
vos quanto subjetivos aparecem amalgamados nos processos dc exercício da domi-,
nação. E é porque há uma percepção deste amálgama que o capital investe cada vez
mais no desenvolvimento de mecanismos sofisticados de controle sobre o processo e
as relações de trabalho.
Assim, a problemática que se desenvolve aqui se concentra nas especifici­
dades ou nas peculiaridades sócio-históricns e estruturais da produção de mecanis­
mos de controle, pelo capital, sobre o processo e as relações de trabalho nas unida­
des produtivas sob o seu comando, produção esta que se define em sistemas de con­
trole no âmbito das relações de poder. Trata-se, portanto, de investigar este comple­
xo problema cuja formulação está sempre cm movimento e cm um re-arranjo em
uma reestruturação histórica, que se dá ao mesmo tempo em que se desenvolvem as
forças produtivas no capitalismo, a partir dc uma perspectiva crítica ou de uma Eco­
nomia Política do Poder. Tal problemática não poderia surgir no acaso. Conto afirma
Marx (1904, p. 165), o problema apenas surge quando as condições materiais neces­
sárias à sua solução já existem ou estão cm processo de formação
18 José Henrique de Faria

Este estudo pretende apresentai os mecanismos c sistemas de controle nas


organizações produtivas sob o contando do capital1, em suas dimensões objetivas e
subjetivas, a partir de uma perspectiva econômica, político-ideológica, sócio-
histórica e psicossoctal, lendo por base um conjunto de pesquisas empíricas c de
uma elaboração teórica consistente, entendendo que as condições de enfrentamento c
de resistência deste processo encontram-se cm parte dadas e em pane em constiução.
De fato, as organizações visam controlar para assegurar sua produção,
mas ao se constituírem em instâncias de mediação também são convidadas a traba­
lhar interesses e desejos contraditórios, objetivos e subjetivos. Desta maneira, ao
mesmo tempo em que sc constituem cm formas de dominação c controle, as organi­
zações são a única alternativa eficiente de resistência e luta; ao mesmo tempo em
que exercem controle, propiciam movimentos coletivos de oposição. Assim, sc as
organizações burocráticas ou as que sc estruturam sob o comando do capital neces­
sitam afirmar um imperioso sistema de controle pelos dirigentes, as organizações
colclivistas autogeridas desenvolvem sistemas democráticos de avaliação e decisão.
Neste sentido, o que as diferencia, além dos objetivos para os quais foram constituí­
das e das estruturas que lhes correspondem, é a forma como o sistema de controle
funciona, ou seja, qual sua finalidade e como e por quetn é definido c realizado; sc
para desenvolver a produção capitalista de mercadorias e para viabilizar a acumula­
ção simples e ampliada do capital: se para garantir o governo oligárquico das buro­
cracias; ou se, por outro lado, para desenvolver ações políticas da sociedade c dos
trabalhadores ou ainda para organizar a produção colctivista (ou solidária) dc tra­
balho. Todos os tipos dc organização possuem sistemas de controle, medidas de
disciplina e mecanismos dc sanções, pois estes estão fundamentais para sua manu­
tenção. O que importa analisar é o quanto estes sistemas, medidas e mecanismos são
absolutamente claros ou não para seus membros ou o quanto os mesmos resultam
ou não de amplos e democráticos processos dc decisão.
Assume-se, aqui, que a cada fase do capitalismo e suas respectivas for­
mas dominantes de controle correspondem formas de resistência dos trabalhadores.
Cada fase pode ser identificada pela relação que tem com as crises de acumulação-
da forma simples de organização do trabalho para o taylorismo-fordismo; do taylo-
rismo-fordismo para o toyolisino ou produção enxuta/flexívcl (neo-tàyiorismo-
fordismo). Mas, ao mesmo tempo, o esgotamento dc cada fase não corresponde
apenas ao processo de acumulação, mas, igualmente, ao desenvolvimento de formas
eficazes dc resistência operária no que sc refere aos mecanismos dc controle. Este
estudo reconhece a importância das formas de resistência, mas não tratará das mes­
mas, concentrando-sc apenas da evolução do processo de controle pelo capital sobre
o trabalho.
Este trabalho, que sc encontra dividido em três Volumes, tem como
campo empírico as organizações produtivas sob o comando do capital e, portanto,
vai sc debruçar na análise dos sistemas de controle que estas foram construindo c

' Capital no sentido de um sistema de capital, conforme definido por Mészáros (2002). É preciso esclare­
cer porquanto "por vezes fala-se do capital coino um deus ex-inachina, um ente abstrato que de repente
instala-se na trama do processo civiliatório para dominar e manipular, levando ns pessoas a escotonúzar
que por Idb *> capital estão os que o detém e exploram - gente como a gente, ainda que diferindo no
perfil ético'* (Osório, 200J-
Economia Política do Poder - Vol. 1 19

aperfeiçoando, de forma a tomá-los cada vez menos visíveis e mais eficientes. As


formas dc controle em outros tipos de organizações e de gestão, que já foi objeto
de outra pesquisa (Faria, 1987), não serão tratadas aqui. O que interessa, no pre­
sente estudo, é identificar. teórica e empiricamente, os níveis, as formas, os pro­
cessos c os mecanismos dc controle desenvolvidos e utilizados pelas organizações
capitalistas em um determinado contexto sócio-histórico, bem como seus signifi­
cados e consequências objetivas e subjetivas, para os sujeitos que nelas trabalham.
O controle e', deste modo, uma manifestação ou uma expressão do poder. Desven­
dar os mecanismos quê dão sustentação às relações de poder e aos processos de
controle é o primeiro passo para conhecer seus movimentos, estratégias, discursos
e símbolos.
A base cpistemológica e teórica que sustenta este estudo, denominada dc
Economia Política do Poder, busca essencialmente investigar, desde uma perspecti­
va crítica dc natureza objetiva e subjetiva, as contradições existentes em organiza­
ções sob o comando do capita]. Mais especificamente, interessa analisar a produção,
a distribuição e n utilização política do poder, enquanto expresso em sistemas, ní­
veis, formas- c processos de controle cm organizações produtivas capitalistas. Tal
base, que é relativa a uma Teoria Crítica, está largamente exposta em estudos dc
fundamentação marxista, aos quais agrega uma psicossociologia e mna psicologia
social, dc maneira a tratar de unia problemática que sc localiza em um lugar especí­
fico das condições materiais de produção da existência humana: as organizações
produtivas. Tal agregação faz-se necessária à medida que o marxismo, a despeito dc
fornecer os suportes teóricos para n compreensão da luta de classes e do modo de
produção capitalista, pouco avançou em colocar no cotidiano das organizações pro­
dutivas sob o comando do capital os sujeitos desta luta. Sujeitos que pertencem à
classe trabalhadora, mas que se encontram aprisionados nas relações específicas que
se processam nos locais de trabalho, nas quais o sujeito do capital se impõe sobre o
sujeito do trabalho. É exatamente nesta instância particular dc um processo que ca­
racteriza o modo de produção capitalista que se pode desvendar os mecanismos de
poder do capital, os quais refletem a piática de classes em presença. É, portanto,
uma teoria crítica das formas de controle nos locais de trabalho sob o comando do
capital que se encontra elaborada aqui.
Este estudo sobre como os mecanismos de controle partem de uma ori­
gem na qual a ênfase estava na repressão e na hierarquia e, sem abandonar esta ori­
gem, investem atualmente c dc forma sutil sobre a psique humana, cumpre um rotei
ro que poderia ser qualificado de episteirtologia genética do controle nas organiza­
ções sob o comando do capital, ou seja, o que se busca aqui é a gênese das formas
de controle c sua manifestação no capitalismo contemporâneo. Neste sentido, este é
uin texto polêmico, seja porque busca ultrapassar as bases teóricas em que se sus­
tenta, seja porque se propõe a um enfrentamento com a literatura acerca dos estudos
nas organizações Mas esta não é uma casualidade, senão uma intencionalidade. A
ideologia da gestão capitalista, também chamada dc teoria gerencialista, constitui-se
no fundamento do sistema de idéias que, ao mesmo tempo, reproduz a lógica de
dominação do capital sobre o trabalho e oferece suporte “científico” para legitimar
as ações decorrentes de tal lógica. Desta forma, é relativamente fácil compreender
como, no que sc refere às formas de controle nas unidades produtivas sob o coman­
do do capital, os mecanismos de controle vão se aperfeiçoando conforme se desen­
20 José Henrique de Faria

volve o capitalismo. Aperfeiçoamento este que significa, dcfinitivamente, que os


mecanismos presentes na Organização Científica do Trabalho (laylorismo-
fordismo) não foram abandonados ou substituídos. Em alguns casos foram incre­
mentados. Além disto, sobre os mesmos foram ainda agregados novos mecanismos.
A sofisticação destes mecanismos antigos e novos c tal que a percepção de sua prá­
tica, inclusive no âmbito dos sujeitos diretamente a eles submetidos, c inversamente
proporcional à sua efetividade. E para isto muito contribuem as pesquisas desenvol­
vidas principalmentc nas escolas de business, psicologia, educação e ciências sociais,
sobre comportamento humano, liderança, motivação, conflitos, cognição, aprendi­
zagem, integração c comprometimento.
Os trabalhadores que não foram apanhados na armadilha dá idealização
da empresa em que trabalham, que não “vestiram a camisa” da empresa, que não
adotaram seu discurso, que não se deixaram ser submetidos inclusive ou principal­
mentc em sua vida pessoal, organizam-se para viabilizar sua resistência e o fazem
em associações tais como partidos políticos e sindicatos. Tais associações operárias,
contudo, inseridas em um ambiente byrocralizado e em uma sociedade baseada no
princípio da separação entre dirigentes e dirigidos, corre o risco de reproduzir em
seu interior os mesmos procedimentos adotados nas unidades produtivas sobre o
comando do capital, não sendo raros os casos em que estas associações adotam pro­
gramas de gestão com o mesmo fundamento dos adotados nas empresas".
Desta maneira, os trabalhadores sc defrontam com uina lula que possui
duas fronteiras e que, portanto, se opera em duas direções: a que se realiza contra
um sistema econômico, sua política, suas leis c sua ideologia; a que se realiza em
sua própria trincheira, nas organizações políticas criadas para sua defesa, resistên­
cia, enfrentamenlo e transformação. Enquanto no primeiro caso os trabalhadores se
defrontam com o poder do capital e suas formas dc controle sobre o processo de
trabalho, no segundo se defrontam contra a formação de autênticas oligarquias polí­
ticas em suas próprias organizações. Se a simples existência dc uma organização
política dos trabalhadores fosse suficiente para realizar uma transformação seria de
se esperar que a mesma já houvesse ocorrido. Sem apreender o funcionamento das
relações de poder nas organizações produtivas capitalistas e nas organizações políti­
cas do trabalho, dificilmente se poderão estabelecer mecanismos dc emancipação,
pois são muitas as artimanhas do poder e quem não está apto a reconhecê-las será
quase sempre uma vítima de seu exercício. Desvendar os mecanismos do poder c
fundamental não apenas para estabelecer as estratégias de enfrentamento, como
também é fundamental a capacitação do sujeito trabalhador para “identificar os fe­
nômenos gnipais e a maneira peculiar com que se expressam as relações interpessoais
nos microgrupos humanos, campo dc estudo da psicologia grupai, o qual se dife­
rencia tanto da psicologia social como da individual’' (Osório, 2003)3.*
2

2 "Isso ocone porque há uma tendência inata ligada á condição humana dc fazer-se 'amo' e tomar o outro
'servo'. Inata porque já se evidencia na tirania que o bebê exerce sobre a mãe ou sobre os que o cuidam”
(Osório, 2003).
2 "A psicologia social estuda o que aconiece nos macrogrupos humanos. O comportamento humano é
diferente nesses e nos micro ou pequenos gnipos. Compare-se o que se observa na massa de torcedores
em um campo de futebol com o comportamento de uma parcela desses mesmos torcedores quando numa
sata de reuniões da empresa a qual pertencem ou em uma negociação salarial com seus patrões c/ou em­
pregados” (Osório. 2003).
Economia Política do Poder - Vol. 1 21

Embora o núcleo da teoria do processo de trabalho trate da natureza da


desqualificação, da habilidade dos trabalhadores e do controle gerencial sobre tal
processo nas organizações capitalistas de trabalho, Devinatz (s/d) sugere que as
pesquisas nesta «área têm falhado no propósito de chegar a uma conclusão consis­
tente no sentido de que as gerências sejam efetivamente capazes de controlar o tra­
balho no processo de produção. Para Devinatz, as teorias não têm sido efetivas por­
que não existe uma mesma concepção acerca do que seja habilidade e do que se
constitui em inabilidade ou desqualificação no processo de trabalho, o que o leva a
sugerir uma clarificaçâo e um refinamento destes conceitos. Para exemplificar, basta
notar as diferentes concepções adotadas por Braverman (1977), para quem habilida­
de significa conhecimento de ofício, Kusterer (1978), para quem habilidade signifi­
ca conhecimento do trabalho propriamente dito (know-how) c Manwaring e Wood
(1984; 1985), para quem habilidade significa competência tácita. Partindo de con­
cepções diferentes, cada um trata do controle gerencial de uma perspectiva também
diferente. Desta maneira, enquanto Braverman afirma que o controle gerencia] é
intenso c determinante do processo de trabalho e que a gerencia procura apropriar-
se do saber de ofício, Kusterer, Manwaring e Wood são mais “otimistas”, entenden­
do que os trabalhadores possuem uma subjetividade c uma autonomia que não estão
sob o controle da gerência.
Entende-se, aqui, que habilidade e qualificação do trabalhador são condi­
ções adquiridas ou apreendidas pelo mesmo, formal c/ou informalmente, nas rela­
ções sociais que estes estabelecem no curso de sua vida, sendo, portanto, constituti­
vas de seu saber de ofício e instrumental. Ao trabalhar, o sujeito trabalhador coloca
em prática não apenas seus saberes de ofício c instrumental, mas igualmente sua
subjetividade, suas relações afetivas, seus desejos, sonhos e fantasias, o que signifi­
ca que não se pode estudar as relações de trabalho e os sistemas dc controle que o
capital impõe apenas analisando as habilidacfcs operacionais do trabalhador, por
mais amplo que seja o conceito de habilidade adotado. Como se verá ao longo deste
estudo, a própria gestão capitalista do trabalho vai aperfeiçoando seus mecanismos
de controle, de forma a atuar sobre as habilidades e qualificações tanto quanto sobre
as subjetividades, pois a mesma não se contenta somente com o controle do proces­
so dc trabalho, razão pela qual investe no controle sobre as relações de trabalho e
sobre o trabalhador.
Este trabalho está dividido em três partes, as quais aparecem cm três
Volumes. No Volume 1 encontram-se os fundamentos ou as bases conceituais e
cpistemologicas da Economia Política do Poder; no Volume 2, encontra-se uma
análise crítica da Teoria Geral da Administração a partir de seus principais fornrula-
dores, de Taylor c Ford ate à chamada Teoria Z; no Volume 3, lendo por base o ex­
posto tanto nos dois primeiros volumes, como em pesquisas e estudos de caso, em
especial em uma análise das experiências da assim chamada gestão flexível, apre­
sentam-se as práticas do controle nas organizações e propõe-se uma Teoria Crítica
do Controle. Os três Volumes, ainda que possam ser consultados de forma indepen­
dente, são complementares, dc tal forma que o Volume 3 é o resultado do desenvol­
vimento teórico apresentado nos Volumes 1 c 2.
Este estudo fundamenta-se em uma análise marxista, incluindo-se a Teo­
ria Crítica, à qual agrega uma interpretação oriunda da psicossociologia e da psico­
logia social, pois pretende dar conta de um corte analítico sobre o qual o marxismo
22 José Henrique de Faria

tradicional não tem sc debruçado suficientcinente. Ainda que possa, esta agregação,
ainda gerar estranheza etn certos círculos, a mesma é absolutamenlc necessária para
alcançar os objetivos pretendidos e será perseguida como uma contribuição que, se
não é inteiramente original, tampouco é ortodoxa ou dogmática. Ao contrário, segue
a própria sugestão de Marx, para quem seus esforços de pesquisa somente poderiam
se desenvolver se aqueles que o continuassem fossem suficientemente autônomos
para ampliá-lo, a partir da primazia do real.
Este estudo não é um exercício de neoniarxisnio, de marxismo revisio­
nista e tampouco sc filia a qualquer qualificação deste ou de outro gênero. É um
estudo marxista. Primeiro, porque o mesmo considera o capitalismo como um modo
particular dc produção baseado na exploração do trabalho não pago; segundo, por­
que considera que o capitalismo não é o último e definitivo sistema de produção
social na história; terceiro, porque entende que a superação do sistema do capital
não se realizará apenas com a superação do capitalismo; quarto, porque acredita na
possibilidade real dc um outro sistema superior de produção, dê-se a ele o nome que
desejar, no qual homens e mulheres, crianças, jovens e idosos, independentemente
de raça, credo, etnia ou outra classificação qualquer, poderão viver sem escassez,
sem discriminação, com justiça social e em uma coletividade democrática na qual
todos possam decidir o que, corno e quando deve ser produzido e para quem, como
c quando deve ser distribuído. A inserção da psicossociologia e da psicologia social
neste estudo é uni recurso fundamental para entender a microfísica do poder no
mundo do capital, bem ali onde ele diariamente sc produz e reproduz
Todo o trabalho inovador, que questiona dogmas e crenças, está sujeito a
críticas vindas de todos os lados. Mas, apenas quem ousa avançar poderá usufruir os
benefícios do pensamento autônomo e das responsabilidades dos coiTcspondentes
equívocos, como manda a unidade dos contrários. Neste sentido, partilho da obser­
vação de Marx, citando Dantc em “A Divina Comédia’’: segue teu curso c deixa a
gente falar!
Volume 1

ECONOMIA POLÍTICA
DO PODER

Fundamentos
Capítulo 1

A TEORIA CRÍTICA E O ESTUDO DAS


ORGANIZAÇÕES: OS FUNDAMENTOS
EPISTEMOLÓGICOS E TEÓRICOS DA
ECONOMIA POLÍTICA DO PODER

A concepção da Teoria Crítica tem sido relacionada diretamente à Escola


dc Frankfurt (BOTTOMORE, 1983; 1984), enquanto compreensão totalizantc e
dialética, capaz de fazer emergir as contradições da sociedade capitalista. Entre­
tanto, a Teoria Crítica não é uma unidade na Escola: o gnipo que se organiza em
torno do Instituto dc Pesquisa Social (Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamim '
Fromm, Pollock), adota fundamentos diferentes dos seguidos por Habermas, cujos
textos no início seguem as linhas definidas pelo grupo, mas reformula a noção de
Teoria Crítica tomando outro rumo e abandonando os fundamentos marxistas que
caracterizam a Escola de Frankfurt. Mesmo no primeiro grupo existem diferenças,
que podem ser resumidas em dois textos: Tradizionclle und Kritische Theorie, pu­
blicado em 1937 por Horkheimer e Philosophie und Kritische Theorie, publicado
no mesmo ano por Marcuse como resposta a Horkheimer.
A Teoria Crítica pretendia-denunciaría repressão c o controle social a partir
da constatação de que uma sociedade séfnexploração c a única alternativa para que se
estabeleçam os fundamentos da. justiça, da liberdade e da democracia. Neste sentido,
os teóricos da Escola dc Frankfurt investiram tanto contra o nazismo, dc que foram

4 No encerramento <lo XXVI ENANPAD (cm 2002), um dos participantes do encontro afirmou que a
teoria crítica tem um papel importante na produção acadêmica, mas que seria necessário recusai o "de-
nuncismo". Esta avaliação, equivocada e preconceituosa, sobre a força da denúncia da teoria social (tão
bem expressa pela Escola de Frankfurt com relação aos totalitarisinos). está fundamentada cm uma opção
pelo "sugestionisnio pragmatisla”. para o qual toda a pesquisa que denuncia deve apresentar uma solução,
a qual, nautralnienlc. não poderia decorrer da ação dos sujeitos e das relações que estes são capazes de
estabelecer, já que se encontra brotada na mente iluminada do pesquisador c cm unia certa arrogância
elitista que pressupõe que o conhecimento é suficiente para a ação. Uma pesquisa pode sugerir ações,
sempre c onde couber, mas não pode pretender que as mesmas sejam soluções definitivas c inapclãveis e
tampouco pode supor qne, tuna vez indicadas, as sugestões não serão trabalhadas pelas novas relações que
inevitavelmente se estabelecerão. Ao final, o pragmatismo parece pretender que as organizações recebam
um conjunto de soluções prontas, nascidas da concepção de um aristocrático esquadrão de intelectuais
orgânicos □ serviço da ideologia do sistema de capital.
26 José Henrique de Faria

vítimas, quanto contra o totalitarismo que se introduziu na União Soviética, sob Stalin.
Assim, ao mesmo tempo cm que se vinculam ao pensamento marxista, esses teóricos
não abdicam da critica a determinados marxisnios (os mecanicistas, os naturalistas, as
versões fisicalislas da história elaborada pelos leninisias, entre outros), retomando a
dialética hegeliana ent sua versão materialista e dialogando com Fieud, Weber e outros
pensadores não marxistas. Tais diálogos abriram espaços para a ampliação das análises
de fundamento marxista, entre outras, nas áreas da estética, da cultura, do conheci­
mento, da lingüística, da psicologia social e das organizações. A Teoria Critica oferece
não apenas um modo de interpretação de como a produção humana relacíona-sc com
os desejos, conflitos e potenciais, mas também uma forma de desenvolver habilidades
para pensar lógica e criativamçnte, afastando-se do pensamento canonizado.
O Instituto dc Pesquisa Social (Institui filr Sozialforschttng) foi fundado56
no interior desse confronto entre as diversas disciplinas, os dogmas cm que se toma­
ram algumas teorias e as diferentes análises dc uma teoria, cada qual avocando paia si
a primazia da verdadeira interpretação. O marxismo, que detinha uma cena unidade e
uma identidade, passava a conviver com a fragmentação. O objetivo inicial dos fun­
dadores do Instituto e dc toda a primeira geração era apresentar um modelo marxista
como alternativa às concepções que dividiam o marxismo. Tratava-se, neste mo­
mento, de resolver o problema da crise c da fragmentação, dc retomar a tradição do
marxismo para restabelecer sua identidade . Um dos pontos cruciais na crise do mar­
xismo residia cm uma discordância quanto ao caminho e aos meios para se chegar ao
poder: pela via das reformas ou da revolução. Tal divergência relacionava-se às análi­
ses que estavam na base dos diagnósticos e prognósticos. É nesse contexto que surge
o programa de Horkhcimer de um materialismo inlerdisciplinar.
Para ç,oinpreenc|çr o jnundo, Horkheimer (1972; 1974; 1990) julgava,
como Lukács (1974; 1974b; 1981), que se deveria partir do marxismo, porém re-
fundindo-o com a incorporação de outros saberes. Esse movimento, iniciado com
Luckács c Korsch, denominado por Wiggershaus de “marxismo ocidental”, tem um
dos seus eixos na abertura para saberes, teorias científicas ou filosóficas, não diretn-
ntente marxistas. Neste sentido, uma das novidades do materialismo intcrdisciplinar
proposto por Ilorkheinter foi a tentativa dc compatibilizar Marx c Frcud, questão que
veio a se tomar extremamente relevante nos anos 30 (MUSSE, 1999) e que, atual­
mente, no campo dos estudos organizacionais, adquire um lugar de destaque.
Embora pareça, à primeira vista, um tanto estranho, no campo dos estudos
organizacionais a Teoria Critica' tetn sido, às vezes, identificada como critica teórica

s A Escola de Frankfurt leve sua origem no Instiiulo dc Pcsquisn Soeinl fundado em Frankfurt em 1923.
com um legado de Félix Klein. O primeiro diretor do Instituto foi Karl Gríinbeig. marxista austríaco,
historiador da classe operária. Succdcti-o inicialmente Friedrich Polloch c mais tarde, em 1931, Mnx
Horkhcimer. Foi piecisamcntc com a nomeação de Horkheimer a diretor que o Instituto passou a adquirir
importância sempre maior, assumindo a condição de Escola, tanto do ponto de vista fomnl, como do
pomo de vista de tuna corrente de pensamento, com um programa que passou para a história das idéias
com o nome dc "teoria crítica da sociedade" (ASSOUN, 1991).
6 É impoitaiuc ressaltar que nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do século XX havia uma
crença generalizada no desenvolvimento humano c social: aciedilavn-sc que a humanidade estava se
encaminhando pata níveis dc vida cada vez mais superiores. Essa crença na evolução e essa fé noprogies-
so sc assentavam, como hoje, no incessante desenvolvimento cientifico e tecnológico. O que se esperava,
principalmentc na Alemanha, era um fututoenda vez mais radiante (MUSSE. 1999),
Toda teoria, por princípio, é íalsificável, ou seja, tem uma validade transitória. Quanto mais consistentes
seus pressupostos, maior alcance a mesma terá. Assim, toda a teoria que não sc presta n reprodução tem
Economia Política do Poder-Vot. 1 27

ou como abordagem critica, ou seja, como formulação que articula uma crítica à
teoria das organizações, embora permaneça prisioneira dos fundamentos epistêmicos
desta. Esta inadequação tem permitido classificar como sendo Teoria Crítica textos
que não se enquadram cm seus pressupostos epistemológicos e metodológicos, o que
sugere ser necessário demarcar o alcance desta teoria nos estudos organizacionais,
desvinculando-a da simples crítica teórica. Para Horkheimer (1990) trata-se de enco­
rajar uma teoria da sociedade em sua totalidade, queisejã precisamente crítica g dia­
lética de forma a fazer emergir as contradições da sociedade çapitalista. Cabe à Tei>
fia Crítica, como sugere Adorno (1993; 1994), investir contra as imagens deforma­
das da realidade que desenvolvem a função dc servir ao poder, não dando voz à rea­
lidade desordenada do capitalismo. * •
Ao denunciar o eclipse da razão, Horkheimer (1976) afirma que, por de­
trás da pura lei econômica, da lei do mercado e do lucro, encontra-se a pura lei do
poder dc uma minoria, baseada na posse dos instrumentos materiais dc produção, de
forma que a tendência ao lucro acaba sendo o que sempre foi, ou seja, a tendência ao
poder social. No âmbito do Capitalismo de Estado, o lucro foi substituído pelo pla-
no, mas as pessoas continuam sendo objeto de uma administração centralizada e
burocrática: tanto os controles sobre o lucro como os controles sobre o plano gera­
ram formas cada vez mais agudas de repressão. A Teoria Crítica, desta maneira,
constitui-se em uma teoria não apenas da economia, mas do poder: uma Economia
Política do Poder.
Neste sentido, os estudos atuais sobre a vida nas organizações vêm sugerir
que é preciso investigar mais do que as racionalidades instrumentais, que as estraté­
gias, que as instituições, que os comportamentos e que as políticas. A análise das
organizações necessita desvendar o mundo do poder c as formas de controle que o
mesmo impetra para se‘sentir autorizada a compreender essas organizações e suas
finalidades. É isto que pode conferir qualidade'à teoria, criar condições dc análise e
promover intervenções políticas em ambientes de trabalho preenchidos de competi­
tividade de toda a ordem.
A intenção primeira deste trabalho c o de apresentar os fundamentos da
Economia Política do Poder no estudo das organizações, sob a ótica da Teoria Crítica,
com a finalidade dc indicar que a compreensão da vida nas mesmas e sua dinâmica
exigem um c.squematcórico-metodológico crítico e dialético, que seja capaz de res­
ponder às questões que afetam a vida cotidiana dos sujeitos das mais variadas formas
e que valorizem o sujeito coletivo mais do que as organizações em que trabalham,
pois de um modo ou de outro, se todos vivem cm função de organizações ou delas
dependem, como sugere Etzioni (1974), todos vivem originnlmcnte em sociedade. As
organizações são, dc fato, construções sociais e históricas que adquirem autonomia
relativa em relação aos sujeitos que a constituíram e que se consolidam como instân­
cias dc mediação entre os interesses dos sujeitos a ela vinculados e os objetivos para
os quais foram criadas. As organizações não são entes abstratos, sujeitos absolutos,
entidades plcnamente autônomas, unidades totalizadoras e independentes, mas cons­
truções sociais complexas, dinâmicas c contraditórias, nas quais convivem estruturas
formais e culturais, manifestas c ocultas, concretas e imaginárias.

como orientação a crítica às teorias existentes, estabelecendo o processo de renovação do conhecimento.


Deste modo, a expressão “teoria crítica” poderia ser caracterizada como tim pleonasmo. n3o fosse esta a
denominação de uma Escola do pensamento.
23 José Henrique de Faria

O problema central de uma Economia Política do Poder, portanto, con­


siste em esclarecer em que medida as instâncias (i) ptultas, que se operam nos basti­
dores organizacionais, nas relações subjetivas e‘W inconsciente individual, e (ii)
manifestas, inclusive e espccialmente as referentes ao regramenio e às estruturas,
"dão conteúdo às configurações do poder e do controle nas organizações. Dito de
outro modo, é preciso revelar em que medida as organizações definem seus meca­
nismos de poder e de controle, incorporando o que não pode ser dito e o que se re­
produz em seus porões, ao que é possível falar, ao que pode ser manifesto às claras,
de maneira a criar um mundo ao mesmo tempo de racionalidades (dc regras, objeti­
vos, políticas, processos produtivos, planos, estratégias etc.) e de (in-
tcr)subjetividades (símbolos, ritos, imaginários e mitos), com seus paradoxos e con­
tradições.
O objetivo principal da Economia Política do Poder, ao mostrar as formas
como as organizações definem e implementam seus mecanismos dc controle a partir
da interação de instâncias oculfas~é manifestas que se operam cm seu interior, é
responder a dois propósitos que constituem sua práxis: o primeiro é de natureza
teórico-métodológica; o segundo, é de natureza prática, porquanto deve permitir
desvendar c expor os mecanismos de poder em organizações com o intuito de sub­
sidiar os sujeitos em suas ações políticas de resistência e de enfrentamento.
Para tanto, é necessário delimitar a abrangência de um tal projeto e fun­
damentar sua abordagem, o que deve ser feito em termos de definição do conteúdo
epistemológico dos estudos, do objeto a ser estudado, do ambiente social em que o
mesmo se encontra inserido, do seu contexto e do seu foco.

1 OS FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS


NO ESTUDO DAS ORGANIZAÇÕES

As formas de organização do mundo contemporâneo só podem ser com­


preendidas como resultados de um processo histórico, em todas as suas instâncias.
Muitos podem ser os enfoques e variadas as abordagens analíticas a que podem re­
correr os pesquisadores no sentido de investigar de que maneira estas formas de or­
ganização ocorrem nas diversas sociedades e quais seus reflexos na vida social e
organizacional, em diferentes aspectos. Economia Política do Poder c um esquema
que se propõe a dar suporte teórico-metodológico ao estudo de organizações a partir
da perspectiva das relações sociais de produção, do desenvolvimento das forças pro­
dutivas e das relações entre sujeitos e~ grupos sociais com o objetivo dé analisar sua
anatomia. Resumidamente, Economia Política do Poder é uma concepção interdisci-
pliriar que procura englobar concepções oriundas da ciência econômica, da ciência
política, das ciências sociais,, da história e da psicossociologia com a finalidade dc
estudar as relações de poder rias organizações do ponto de vista da Teoria Crítica. O
procedimento adotado é interdiscipiinar na medida em que consiste na interação dos
diversos campos do saber no estudo de um fenômeno de tal forma que as disciplinas
operam conjuntamente, ao mesmo tempo, em uma direção convergente. Os resulta­
dos deste procedimento serão mais adequados quanto mais coerente for o quadro
metodológico e epistemológico que agrega e integra as teorias e as disciplinas, razão
pela qual esta interação se faz no plano proposto. Este procedimento, ainda que re­
conheça sua aplicabilidade, difere do multidisciplinar, que consiste em utilizar-se de
Economia Política do Poder - Vol. 1 29

vários campos do conhecimento (disciplinas) no estudo de um fenômeno, cada


campo oferecendo sua contribuição teórica específica em uma forma de justaposição
teórica, cujos resultados serão melhor qualificados quanto mais complementaridade
as disciplinas tiverem sobre o tema. Também difere da transdisciplinaridade ou desta
concepção alhures denominada de pós-modema, que pretende ser a superação do
conhecimento produzido através de disciplinas, opondo-lhe uma forma holística. um
saber transcendental. Neste último caso, não apenas difere mas considera que tal
projeto de natureza metafísica é epistemologicamente inconsistente.
A definição da Economia Política do Poder como um esquema teórico-
metodqlógico remete a uma construção epislêmica e não a uma metodologia pro­
priamente dita, pois se trata dc uma estruturação analítica que procura recobrir os
diversos campos em que se fundamenta a vida organizacional e não uma forma de
vê-la, o que significa que, pelo menos, duas instâncias não excludentes devem ser
alentamente observadas: a do conhecimento e a teórico-metodológica.
Do ponto de vista do conhecí mento, a Economia Política do Poder é uma
concepção dialética sustentada na interação entre sujeito e objeto na produção do sa­
ber, a qual não abdica dos fundamentos metodológicos da ciência. De fato, o processo
dc elaboração teórica exige a observância dos rigores metodológicos. Neste sentido,
entende-se, aqui, que a metodologia a ser adotada em uma investigação científica é
dada não só pelas teorias disponíveis e pelas próprias condições do sujeito pesquisa­
dor, como também pela natureza do objeto de pesquisa, ou seja, não existe uma me-
todologia-pacüão que se aplicaria a qualquer objeto em quaisquer circunstâncias. A
concepção de que a dialética não é compatível com pesquisas quantitativas é aqui to­
tal mente recusada, pois o que determina a forma dialética dc se apropriar do real é
antes o movimento e as relações contraditórias do objeto, do que o tipo de base em­
pírica de que se utiliza. Para a Economia Política do Poder, quanto mais amplo o
acesso aos dados empíricos e quanto mais diversificadas as formas de obtê-lo, mais
precisa será a análise. Assim, para que o momento da apreensão teórica seja apro­
priado, convém fazer uma rápida formulação das condições presentes neste processo.
Todo o sujeito possui estruturas cognitivas c estruturas afetivas, as quais
são constituídas de esquemas cognitivos e esquemas emocionais (conscientes e in­
conscientes). De acordo com Piaget (1975; 1976), esquemas são modos de reação
passíveis de serem generalizados de uma ação a outra e constituem a principal fonte
dos conceitos. Os esquemas possibilitam a adaptação do sujeito ao meio, a qual sc dá
através de seus mecanismos constituintes: a assimilação (ação do sujeito sobre o
objeto) e a acomodação (ação do objeto sobre o sujeito). Desde o início, as estruturas
mentais alicerçam tanto a formação quanto o funcionamento dos esquemas. Assim,
as estruturas são modificadas pelos novos esquemas, ou seja, se reestruturam, em um
movimento permanente, dinâmico e dialético, no qual contradições e paradoxos
ocupam seus lugares, pois não se trata de um percurso linear.
Desde seu nascimento, o sujeito possui uma forma de funcionar, dada por
sua condição humana. Em seu início, na constituição do indivíduo, este padrão de
funcionamento, descrito pela Neurobiologia dos Processos Mentais e do Comporta­
mento como sistemas neurais organizados (BUSS, 1999; DAMÁSIO, 1999), obedece
a princípios gerais e a estruturas próprias do mapa genético, constituindo os primeiros
atributos e capacidades individuais. Esta forma, portanto, determinará o ponto de par­
tida da constituição das estruturas por um processo organizado de adaptação, de sorte
que o sujeito, ao longo de seu próprio desenvolvimento, assimila o que lhe é fomeci-
30 José Henrique de Faria

do pele ambiente (age sobre o objeto), acomoda este conhecimento (ajeita a ação do
objeto sobre suas estruturas), toma a assimilar e acomodar em um movimento contínuo,
o qual forma c renova os esquemas, estabelece relações entre os mesmos, ampliando e
aprimorando cada vez mais as estruturas da inteligência. Assim, as estruturas, cons­
tantemente renovadas, ao mesmo tempo em que formulam e geram informações, con­
cepções e conceitos, processam, controlam e compartilham informações fornecidas
pelo real, pelo simbólico e pelo imaginário, constituindo desta maneira o fundamento
do comportamento exibido e da sua compreensão. Gradativa, dinâmica c contraditoria-
mente, o desenvolvimento do sujeito depende de sua condição de internalizar e sc
apropriar em suas estruturas cognitivas e afetivas das interações que c capaz de for­
mular conscientemente ou que lhes são inscritas inconscientemente; dito de outro
modo, as possibilidades de adaptação (assimilação e acomodação) são geradas por
interações processadas no interior das esuuturas mentais.
O desenvolvimento das estruturas cognitivas e afetivas sc dá sempre em
um processo no qual estas sc ampliam e sc flexibilizam. A formação das estruturas
está condicionada à maturação orgânica do sujeito (nervosa, endócrina), à transmis­
são social (convenções, valores, códigos, afetos, costumes), à experiência (física e
lógico-matemática) e à equilibração (dinâmica c dialética). Estes compostos das es­
truturas não são elementos presentes apenas no aparato consciente-racional, perma­
necendo escondidos no inconsciente. Paia Piaget (1973:33-46), não existem dois
domínios, o do consciente e do inconsciente, separados por uma fronteira, mas um
único, do qual, mesmo nos estados inais lúcidos, só se percebe uma pequena parte, a
qual escapa quase que totnlmenic quando já não se a controla de perto. Isto torna a
análise do conhecimento, que o sujeito possui e que expressa, c das experiências,
que acumula, uma tarefa que exige extremas cautelas.
De acordo com Piaget (BATTRO, 1978), existem dois tipos básicos de
experiência. A experiência física refere-se à interação do sujeito com o real a partir
das propriedades deste. Interação na medida etn que o sujeito só pode sc relacionar
com o real enquanto uma ação própria que tem por suponc os esquemas constituin­
tes da estrutura. Aqui, com seus esquemas, o sujeito realiza uma abstração do real dc
acordo com as propriedades deste e com os esquemas de apreensão daquele. A expe­
riência lógico-matemática rcfcrc-se a uma abstração decorrente da ação do sujeito
sobre o real, ou seja, decorrente das propriedades da ação do sujeito. Em ambos os
casos, o sujeito é sempre e necessariamente ativo na relação com o real, de forma
que não é o real que determina a percepção do sujeito e sua interpretação (o que se­
ria uma concepção cartesiana c positivista), e tampouco a percepção do sujeito que
determina a forma do real (cotno supõem a metafísica kantiana, o idealismo hegelia­
no, a fenontenologia husserliana e heideggeriana e seus derivados, tais como a com­
preensão e os tipos ideais) como sugere o chamado esquema interpretativo que en­
tende que o sujeito interpreta o real e age sobre o mesmo, mas a relação do sujeito
com o real: ação e pensamento (a práxis) constituem a percepção inteligente.
As estruturas do sujeito c o real não são estáticos. Ambos estão em cons­
tante movimento, de forma que a percepção do sujeito sobre o real varia conforme sc
desenvolvem suas estruturas e seus esquemas e conforme sc processa a dinâmica do
real. Do ponto de vista científico, a percepção do objeto, a elaboração intelectual
sobre o mesmo, com suas classificações, ordenamentos é concepções, não se trata
ainda de teoria, mas de conhecimento. Conhecer é agir sobre a realidade ou sobre
dados abstratos e integrá-los às próprias estruturas, enquanto a teoria exige outros
Economia Política do Poder — Vol. 1 31

requisitos. A relação primeira que o sujeito tem com o objeto de seu conhecimento é
apenas uma aproximação precária, sem que se processe uma relação de elaboração
sobre o mesmo e sobre o próprio pensar. O objeto precariamente percebido, o será,
mesmo assim, a partir da ação do sujeito, còm as estruturas que o mesmo possui. Da
aproximação precária para a construção de um objeto elaborado, o sujeito necessita­
rá refletir sobre sua percepção tanto quanto sobre o seu pensar. Assim, esta aproxi­
mação precária fornecerá os primeiros elementos de uma investigação, cabendo ao
sujeito investigador ordenar estas primeiras informações e classificá-las, de forma a
poder retomar ao real com seu esquema aprimorado. Para elaborar teoria o sujeito
necessita seguir procedimentos reconhecidos pela ciência, mas para produzir conhe­
cimento não. A ciência é uma organizadora do conhecimento produzido, mas é na
produção do conhecimento que se pode permitir toda a criatividade e a espontanei­
dade do livre pensar que, segundo Millôr Fernandes, é só pensar.
De fato, um primeiro contato do sujeito com o objeto, esta aproximação-
precária, se dá pela ação do sujeito (com suas estruturas) sobre o objeto, o qual,
contudo, neste nível da relação, aparecerá para o sujeito apenas com sua aparência
mais imediata: a informação que o sujeito retira está na forma manifesta do objeto.
Nesta fase ocorre a percepção primária, na qual sujeito c objeto estabelecem uma
relação frágil, em que a ação intelectual, a inteligência, é pouco exigida. Se toda a
relação se encerrasse aí, o sujeito teria apenas tido informações acerca do objeto
(objeto em si), mas não consciência do mesmo e de sua ação sobre ele (objeto pnrn
si), já que a tomnda dc consciência é uma reconstrução e, deste modo, uma constru­
ção original que se superpõe à construção devida à ação.
Se o sujeito reflete sobre o objeto e sobre sua ação relacionada ao mesmo,
se há uma ação e uma reflexão (se há uma práxis), o objeto não se dá a conhecer mais ■
ao sujeito em sua aparência imediata, pois que se trata, agora, de um objeto elaborado
e, como tal, resultante da atividade do sujeito. Nesta fase ocorre a percepção secundá­
ria. O sujeito, neste sentido, pode conceituar, descrever, organizar, classificar, enfim,
pensar sobre o objeto e sobre sua ação, elaborar seu conhecimento, o que afetará seus
esquemas e as relações entre eles e que constituem as estruturas, as quais também afe­
tarão a percepção do objeto, em um processo dinâmico. Esta dinâmica é tanto mais
intensa quanto mais o objeto for outro sujeito, que observa, percebe e pensa.
Para que o objeto elaborado ou apreendido possa se transformar cm ob­
jeto teórico, em objeto construído segundo as regras da ciência, há um percurso que
é necessário seguir c ao qual o sujeito deve submeter sua ação, seu fazer. Isto não
significa, entretanto, a submissão do pensamento ao método, sob pena de reduzir a
teoria a uma simples reprodução condicionada externamente. O método guia o su­
jeito em sua relação com o objeto, mas não pode lhe limitar os movimentos. Deste
modo, partindo das relações do sujeito com o objeto e do avanço proporcionado
pela própria ciência no domínio conceituai, vai sendo possível elaborar abstrações
cada vez mais sutis, as quais suscitarão a definição dc categorias analíticas. Como já
observara Marx (1977:38-39),
o concreto ê concteto já que constitui a síntese de numerosas determinações, ou
seja, a unidade da diversidodes. Para o pensamento constitui um processo de síntese

’ Aqui entendida no sentido dialético, e não no sentido ctiniolõgico de dualidade e sua conseqüentc con
cepção maniqueista.
32 José Henrique de Faria

e um resultado, não um ponto de partida. É para nós o ponto de partida da realida­


de e, portanto, da percepção e da representação. No primeiro caso, a concepção
plena dissolve-se em noções abstratas. No segundo, as noções abstratas pennítein
reproduzir o concreto pela via do pensamento. (...) o método que consiste em elevar-
se do abstraio ao concreto ê para o pensamento a forma de se apropriar do con­
creto. ou seja, o modo de o reproduzir sob a forma de concreto pensado.
Estas considerações indicam precisamente que a proposta teórico-
metodológica apresentada fundamenta-se cm uma condição cm que tanto o pesqui­
sador quanto o objeto pesquisado estão em movimento e, portanto, em uma condi­
ção em que ambos se constróem durante a trajetória da investigação. A percepção
do sujeito pesquisador e sua condição de interpretação do real move-se à medida
que investiga; ao mesmo tempo, move-se o real, que não apenas fornece ao investi­
gador novos elementos como revela a essência dialética dos seus elementos consti­
tutivos: sujeito e objeto não se constituem em uma unidade, mas interagem dinâmi­
ca e conlraditoriamente. A realidade, seja a histórica, seja a distante, independe do
sujeito pesquisador específico, mas não é externa a cie, ainda que com ele não se
venha a confundir. Se o sujeito e o objeto fossem uma unidade, uma única c mesma
coisa, tanto o sujeito seria redutível ao objeto como este ao sujeito e, assim, toda a
realidade seria plenamente cogr.oscível em quaisquer circunstâncias. A realidade
existe conscientemente para o sujeito pesquisador quando o mesmo interage com
ela e esta interação se dá por um processo no qual o pesquisador percebe o real se­
gundo um esquema de assimilação e acomodação que lhe c próprio, construído ao
longo de seu desenvolvimento cognitivo e de suas relações sociais. Ao mesmo tem­
po em que se dá esta percepção, desencadeia-se uma reelaboração da leitura do real,
pois quanto mais se aprofunda a interação dialética sujeito-objeto, mais este é dado
a conhecer àquele, de forma que o sujeito pode cada vez mais dominar o objeto,
mesmo sabendo que este domínio esteja indicando o quanto o objeto é ainda desco­
nhecido para o sujeito. Deste modo, há um ponto em que o sujeito pesquisador en­
tende ter alcançado o limite possível, objetivo c subjetivo, da sua investigação, ope­
rando um corte cm suas dúvidas, corte sempre necessariamente arbitrário, embora
justificado teórica e metodologicamcnle, e jamais definitivo.
Cabe aqui ainda uma observação importante sobre a relação do sujeito
com o real e com suas expressões. Tratando-se de uma proposta que também se de­
bruça sobre o imaginário e sobre as ideologias, não há como deixar de observar que,
como já notara Marx e Engels em sua famosa crítica à ideologia alemã e Castoriadis
em seu clássico estudo sobre a instituição imaginária da sociedade, a ideologia pro­
duz seu próprio esquema de interpretação, de dissimulação, de justificação, de divul­
gação e de renovação. Assim, para se conferir um sentido aceitável ao par ciência-
ideologia, é necessário observar, com Ricouer (1990:92-5), que: (i) “todo o saber
objetivante" sobre a “posição na sociedade, numa classe social, numa tradição cul­
tural, numa história, é precedido por uma relação de pertença que jamais podere­
mos refletir inlciratnente"; (ii) se o “saber objetivante é sempre segundo relativa­
mente à relação de pertença, não obstante pode constituir-se numa relativa autono­
mia", pois o “momento crítico que o constitui é fundamentalmente possível, em vir­
tude do fator de distanciamento que pertence à relação de historicidade"', (iii) a crí­
tica das ideologias, fundadas por interesses específicos, “jamais rompe com seus vín­
culos com o fundo de pertença que a funda. Esquecer esse vínculo inicial é cair na
ilusão de tinta teoria crítica elevada ao nível do saber absoluto"; (iv) se o saber pode
Economia Política do Poder - Vol. 1 33

se distanciar da ideologia, esta é sempre um código de interpretação, pois não existem


“intelectuais sem amarras e sem çonto de apoio”. Nada é mais necessário, atual­
mente, que a renúncia à arrogância9 para que se possa empreender “com paciência, o
trabalho incessantemente retomado do distanciamento e do assumir de nossa condi­
ção histórica”. Cabe, portanto, ao sujeito pesquisador compreender que o distancia­
mento possível de sua vinculaçào ideológica jamais irá lhe conferir neutralidade axio-
lógica e que o saber que se pode produzir carrega consigo os vínculos iniciais.
Com este sentido, para a Economia Política do Poder o real é o que de fato
existe, mesmo que esta existência se opere apenas no plano das idéias ou das emo­
ções e não represente o concreto compartilhado. As fantasias, as ilusões, os mitos, o
imaginário, as sensações, ainda que não encontrem correspondência no concreto,
existem para o sujeito como sua realidade (ainda que dela não tenha plena consciên­
cia) e, como tal, são reais, ou seja, embora seus conteúdos possam ser abstratos, me­
tafísicos ou dogmáticos, o plano das idéias e dos sentimentos tem utna existência
real. Nem sempre um real objetivado ou passível de compartilhamento, mas não me­
nos importante na definição,da ação concreta dos sujeitos. Uma parte desta realidade,
pelo fato de não poder ser compartilhada ou por não ser referenciada a uma inteligi­
bilidade, tem sido considerada como não pertencente ao plano do real. Entretanto, a
psicossociologia e a psicanálise já demonstram que o que não pode ser compartilha­
do e o que existe no inconsciente intervém na ação c no pensamento. E por conside­
rar que as fantasias, os mitos, as emoções, não têm significado real, que a razão ins­
trumental só pode tomar o real como significação pensada do concreto e, ao fazê-lo,
minimiza ou nega a importância da intersubjelividade na ação do sujeito. Uma das
mais insistentes objeções à Teoria Crítica refere-se à sua pretensão de juntar Marx e
Freud em um mesmo plano epistemológico. Entretanto, do ponto de vista da Econo­
mia Política do Poder, para a teoria a questão central não c o quanto o pensamento
real corresponde ao concreto visível ou compartilhado, mas o quanto corresponde à
ação do sujeito, pois, se as relações que o sujeito é capaz de elaborar incluem ele­
mentos que representam tanto o concreto quanto o imaginário, tanto a razão como o
afeto, tanto o consciente como o inconsciente, isto deve significar que todas estas
inclusões estejam presentes em sua ação e em seus conceitos. Neste sentido, igual­
mente, não é suficiente deduzir a natureza do sujeito pelo seu comportamento mani­
festo e tampouco pretender entendê-lo a partir apenas de estímulos.
Existe uma concepção que, embora equivocada, não é tão incomum
quanto se pensa, segundo a qual a “verdadeira" ciência seria aquela praticada em
“laboratórios", de maneira que as ciências humanas e sociais não preencheríam tal
requisito. Este equívoco dccoire de uma leitura epistemológica reducionista que con­
sidera a pesquisa apenas em sua versão empirista ou positivista, de inspiração carte-
siana, na qual se enfatizam testes, repetição de experimentos c relações causa-efeito.
Por conta desta concepção, alguns cientistas sociais buscam, igualmente, desenvol­
ver modelos mensuráveis da realidade capazes de conferir uma neutralidade
axiológica em suas investigações. No campo dos estudos comportamenlais, tais
modelos sustentam-se em uma relação estímulo-resposta, de tal forma que, contro­
lando a variável estímulo, pode-se medir seus efeitos sobre a variável dependente

’ “Equivalente adulto da onipotência original do bebê. que. em soa concepção compensatória de sna
extrema fragilidade pela condição larvária em que chega ao mundo, fantasia (hipótese) e age (constata’
çâo fática) como se o mundo (ntàe) estivesse aí só para lhe scivid' (OSÓRIO. 2003).
34 José Henrique de Faria

resposta. Segundo esta concepção, todo tipo de pesquisa que uão siga estes cânones
seria considerada ou não confiável ou, simplesmente, não científica. É necessário,
neste sentido, defender a tese de que é necessário deixar o objeto de pesquisa falar
para definir a metodologia adequada à sua apreensão, sob pena de se impor ao objeto
o modelo de sua interpretação antes mesmo que este se dê a conhecer.
Como afirma Adcmo (1995), uma explicação, por mais simples, coerente e
matematicamente elegante que seja, c inadequada quando o objeto que investiga não é,
ele mesmo, coerente, simples e neutro, que possa ser apreendido ou por uma estrutura
categorial aprioristica, ou por uma descrição acrílica. O objeto é, ao mesmo tempo,
determinável e contraditório, sistemático e irregular, natural e mediado pela consciên­
cia, de maneira que o zelo purista que investe contra a contradição acaba por afirmar
uma contradição entre a estrutura do método e a estrutura do objeto. O método não é
indiferente ao objeto e tampouco depende do ideal metodológico e sim, da coisa que e'
investigada. Isto não significa que o objeto e que os fatos sejam a realidade última, na
qual se encontraria o fundamento do conhecimento, pois os fatos são, eles mesmos,
mediados tanto pola sociedade quanto pelo sujeito investigador. Os fatos não existem a
partir da idéia, e tampouco a idéia a partir dos fatos, mas, da interação dialc'tica entre
ambos, do que decorre que toda metodologia e teoria que se apresentam diante dos
fatos antes mesmo de conhecê-los, apenas os interpretarão segundo esquemas previa­
mente definidos e independentes da natureza dos fatos; do mesmo modo, toda a teoria
que só é formulada exclusivamente a partir dos fatos, sem que um primeiro esquema
de apreensão seja definido, apenas os descreverão c o farão de tal modo que, ao final, o
que pretendia ser uma investigação objetiva dos fatos resulta cm uma apreciação mar­
cada pela subjetividade do pesquisador. Em ambos os casos, o que realmente importa
não c a teoria, mas sua funcionalidade instrumental e sua beleza estética.
Para a Economia. Política do Poder, qualquer investigação científica pos­
sui quatro limites não excludentes:
(i) o sujeito pesquisador: refere-sc à falta de sensibilidade, de conheci­
mento ou de condições internas do sujeito cm sua relação com o ob­
jeto investigado, dc maneira que o sujeito nem sempre percebe o que
o objeto fala, seja por uma questão dc estrutura do pensamento, seja
por uma limitação funcional, seja por uma dificuldade emociona). A
experiência pode conferir melhores condições dc análise, maior, ca­
pacidade dc leitura do real c de estabelecimento de relações, mas não
existe uma correlação exata entre experiência e percepção. Todos os
sujeitos pesquisadores, em diferentes graus, possuem este limite, que
é próprio da condição humana;
(ii) a realidade investigada: rcfcrc-se ao falo de que a realidade não se
revela totalmente no pesquisador. Marx já observava que, se a
aparência dos fenômenos fosse igual à sua essência, não haveria
ciência. As inúmeras relações que constituem o real não são visíveis
todo o tempo, de forma que por mais profunda e exaustiva que seja
uma análise, ainda assim existirão elementos que a constituem que
não são percebidos. Ta] limite pode ser acentuado ou reduzido pela
superação dos demais limites mencionados;
(iii) a base teórica e metodológica: refere-se às restrições do acúmulo
teórico disponível e das metodologias para a apreensão do real. Toda
Economia Política do Poder - Vol. 1 35

a teoria e' uma redução da realidade investigada ao plano abstrato, ao


processo de pensamento. Como sugeria Spinoza, o conceito do cão
não p o cão, ou seja, a realidade não pode ser inteiramente transposta
para o plano do pensamento e menos ainda para o plano teórico, de
modo que a teoria c mesmo uma redução interpretada do real. Para
favorecer teorias e metodologias que mais se aproximem da reali­
dade investigada é necessário que o objeto da investigação possa
falar e não simplesmente ser falado, ou seja, que haja uma interação
entre o sujeito e o objeto;
(iv) o instrumental; refere-se à interposição, entre o sujeito pesquisador e
o objeto investigado, de mecanismos de leitura da realidade, par­
ticularmente aos instrumentos físicos que permitem ao pesquisador
observar o que naturalmente não conseguiría (telescópio, mi­
croscópio, aparelhos de medição, simuladores etc.) e aos instrumen--
tos funcionais (linguagem, estrutura comunicativa), que impedem a
expressão das relações existentes. No primeiro caso, o desenvol­
vimento tecnológico tem facilitado de forma extraordinária a pes­
quisa que depende de instrumentos físicos, mas ainda não consegue
dar conta de todas as necessidades. Enquanto, por exemplo, a mode­
lagem matemática sugere a existência de outros sistemas solares, o
mais avançado telescópio disponível apenas recentemente identificou
um único caso que guarda semelhança ao Sistema Solar. No segundo
caso, apesar da dinâmica da linguagem, determinadas abstrações não
encontram expressões adequadas para apreendê-las, e, do mesmo
modo, nem sempre os sujeitos conseguem expressar na linguagem
formal suas percepções, conhecimentos e emoções.
Destes limites decorre outra questão:’a*da razão objetiva capaz de organi­
zar, sistematizar e comunicar o conhecimento. A razão refere-se ao domínio do pen­
samento, n condição de elaboração, de estabelecimento de relações, de apreensão
lógica das estruturas e do funcionamento formal. A forma de constituição da razão
objetiva c sua expressão resultam não apenas do consciente compartilhado, mas
igualmente do inconsciente, do intersubjetivo. Mesmo que a razão desconheça suas
motivações, não se pode deduzir, daí, que as mesmas não existam c que não inter­
ferem no alo de investigar e na elaboração do pensamento objetivo.
Como sugere Engcls (I979), se cada circunstância, de fato, pudesse
reivindicar uma verdade axiologicamcnte neutra, nenhum código seria produzido,
nenhutna sociedade seria organizada c nada seria instituído. Isto não significa que,
uma vez definidas, as verdades teóricas, assim como os princípios de conduta, se
tomem imutáveis. De falo, em sua crítica ao senhor Diiring, Engcls afirma que,
re o produto do exercício do pensamento pudesse reivindicar a validez soberana
das verdades, a sociedade alcançaria uni nível tal que se teria esgotado a infini­
dade do mundo intelectual. Se tudo já estivesse pronto, nada mais haveria a pro­
duzir. Se tudo já se soubesse, nada mais havería a investigar.
As formas de olhar a realidade dependem do esquema epistemológico,
teórico e metodológico da investigação. Não existem esquemas melhores ou piores,
apenas diferentes. A escolha de um esquema determina necessariamente os limites e
as possibilidades da investigação. Entretanto, é interessante verificar que mesmo em
36 José Henrique de Faria

situações que se caracterizam pela renovada produção intelectual c pela permanente


investigação também acabem emergindo axiomas, definitivos e inapeláveis, dos
quais se extraem as deduções da existência humana, do poder-ser e do devcr-ser. É
juslamenle aí é que alguns pesquisadores asseguram, em suas exposições, que só □
sua concepção é aceitável, que somente seu esquema de interpretação é verdadeiro,
que apenas sua teoria c coerente e que tudo o mais c equívoco c, tal qual observa
Engels (1979), como profetas rcccm-saídos do forno, trazem em sua mochila, pronta
para ser posta em circulação, a única verdade e a eterna justiça.
Por fim, é necessário observar, também, que o teor específico sobre o qual
se encontra fundamentado a Economia Política do Poder, ou seja, o campo empírico
em que se encontram seus objetos de análise, são as organizações formais ou
estáveis e as de pertença, cm suas múltiplas interações e em suas formas recentes de
estruturação no mundo contemporâneo. O objetivo dos estudos nessa linha, apontado
no início, sugere que se deve analisar estas organizações nos limites da sociedade
contemporânea de modernidade tardia, marcadas pelo globalismo. Ainda que se re­
conheça que este esquema proposto possa ser utilizado para análises organizacionais
em ambientes não afetados pelo globalismo, é neste ambiente que este tipo de estudo
pretende se concentrar, pois é nele que estão mais evidentes as contradições.

2 TIPOS E FORMAS DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL: O CAMPO


EMPÍRICO E O OBJETO DE ESTUDO

Considera-se que existem dois tipos básicos de organização social dos


sujeitos, conforme esquematizado no Quadro 01.1: (i) os que são predominantemente
estruturados por normas, regulamentos e divisão do trabalho, os quais circunscrevem a
garantia da unidade formal ou estável; (ii) os que são predominantemente estrutura­
dos por códigos, símbolos, valores e crenças, os quais circunscrevem a garantia dos
vínculos. Isto não significa que os primeiros tipos não sejam atravessados por ele­
mentos do segundo (códigos, símbolos), que não o componham ou identifiquem,
mas que não são estes os que fundamentalmente o definem.

Quadro 01.1: Tipos e Formas de Organização Social


TIPOS RASE FORMAS
Hctciogastão
ORGANIZAÇÃO Baseada em normas, Gestão Participativa
FORMAL OU regulamentos e divisão DE GESTÃO Gestão Cooperativa
ESTÁVEL do trabalho Co-gestão
Autogestão
Grupos Básicos: natu­
rais e associativos (in­
tencionais c circunstan­
Bascaca em vínculos c ciais)
ORGANIZAÇÃO DE cm elementos porta­ DÉ
dores de um projeio Grtipos Sociais c Cate­
PERTENÇA CONSTITUIÇÃO
gorias Sociais
comum
Classes Sociais (fra­
ções, frações autôno­
mas e camadas)
Economia Política do Poder - Vol. 1 37

No primeiro caso, encontram-se todas as organizações formais ou


estáveis, baseadas na lógica da dominação, de estruturas mais simples às mais com­
plexas e com diferentes sistemas de relações de poder, os quais comportam diferen­
tes formas de gestão (FARIA, 1985; 1987), e de organização diferenciadas: empre­
sas públicas e privadas, clubes, sindicatos, partidos políticos, órgãos de govemo,
entre outras. No segundo caso, encontram-se as organizações de pertença, consti­
tuídas de grupos e classes sociais, com suas naturezas e subdivisões. As primeiras
são chamadas de organizações formais, de acordo com a clássica definição de Blau e
Scott (1979), ou estáveis, de acordo com a definição de Enriquez (1997), c são vistas
como espaços políticos nos quais se desenvolvem sistemas culturais, simbólicos e
imaginários (ENRIQUEZ, 1997). As-segundas, chamadas aqui de organizações de
pertença, definem-se por vínculos não normativos formais, porém não possuem o
mesmo significado e o mesmo estatuto teórico e analítico que o de organizações
informais c organizações sociais10, embora aproximem-se mais deste último. As or­
ganizações de pertença são baseadas em relações interativas, nas quais os objetivos
ou os projetos são compartilhados, consciente ou inconscientemente, pelos seus
membros, constituindo assim o núcleo do vínculo ou da pertença. Deste modo, as
organizações de pertença podem ser transitórias ou duradouras e espon-
tâneas/circunstanciais/casuais ou intencionais/planejadas, de onde se tem as seguin­
tes possibilidades:
(i) organizações de pertença espontâneas transitórias: agrupamentos
que se constituem ao acaso e que se dissolvem assim que o motivo
de sua constituição cessa, como, por exemplo, grupos de ajuda cm
casos de acidentes;
(ii) organizações de pertença planejadas transitórias: agrupamentos que
se constituem com uma finalidade definida e com passageiro prazo
de funcionamento, como, por exemplo, certos grupos de estudos ou
de determinado lipo de terapia, grupos ocasionais de solução de
problemas, também conhecidos como grupos de trabalho;
(iii) organizações de pertença objetivas duradouras: agrupamentos que
se vinculam pelo lugar que ocupam no processo de produção das
condições materiais de existência a partir dos efeitos da estrutura
global no domínio das relações sociais, assim entendidos os grupos
sociais, as categorias sociais e as classes sociais e suas subdivisões
(frações, frações autônomas e camadas);
(iv) organizações de pertença planejados duradouras: agrupamentos
constituídos a partir de finalidades compartilhadas, sem prazos de
esgotamento c não atreladas a tarefas mas a concepções, idéias, ne­
cessidades c interesses, como, por exemplo, as famílias, certos tipos
de “gmpoterapia”, de organizações político-ideológicas ou de desen­
volvimento científico, artístico ou tecnológico.
O que é necessário observar, no sentido exposto, é que os agrupamentos
que se constituem para viabilizar determinados interesses e necessidades de seus

10 O conce ito de organizações sociais aqui referido é o de organização autônoma da sociedade, conforme a
clássica proposição das ciências sociais, não devendo ser confundido co:n o uso que dele foi feiio pelo
Governo Fernando Henrique Cardoso, especialmcnic pelo seu Ministro Bresser Pereira.
38 José Henrique de Faria

membros e cujo alcance está limitado por estes interesses/necessidíides (família,


“grupoterapia”, grupos de reflexão), independentemente da combinação referida
anteriormente, não possuem, em sua origem, os mesmos vínculos que aqueles cujo
alcance não se limita aos intcresscs/necessidades de seus membros, já que pretendem
ampliar suas bases c suas relações de poder (grupos, categorias e classes sociais). Do
ponto de vista da natureza c, portanto, da constituição e do alcance de suas finalida­
des, estes dois agrupamentos podem ser denominados, os primeiros, de grupos bási­
cos naturais e associativos casuais/esponiâncos/circunstanciais, e os segundos, de
grupos sociais ou grupos básicos associativos objetivos ou planejados/intcncionais.
Este esquema primeiro serve neste momento apenas para delimitar o
campo empírico de estudo da Economia Política do Poder. Em primeiro lugar, os
sublipos específicos de organização de pertença relativos aos grupos básicos naturais
(família, clãs etc.) e associativos circunstanciais transitórios, embora importantes,
não são incluídos no âmbito dn análise orgamzacional proposta Em segundo lugar, é
dada ênfase às maneiras como as organizações de pertença se articulam no interior
das organizações formais. Em terceiro lugar, o ambiente constitutivo das relações
interativas das organizações e que circunscrevem este tipo de estudo deve ser, como
já indicado, o referente ao globulismo ou à fase recente do processo de globalização.
O objeto de estudo, como já referido eu passant, são as relações de poder
e de controle que se desenvolvem nestes tipos dc organização, em seus aspectos
manifestos c ocultos. Assim, para os efeitos da Economia Política do Poder, o objeto
de estudo deve ser estudado no campo empírico das organizações, mais espccifica-
menle nas unidades produtivas sob o comando do capital, embora seja possível es­
tudá-lo em outros campos c dc outras maneiras.
As organizações que constituem o campo de observação empírico podem
apresentar diferentes formas de gestão, como indicado anteriormente. Para tomar
mais precisos os tipos de gestão possíveis de serem encontrados em tais organiza­
ções, pode-se recorrer á sugestão de Bobbio (1994) no que se refere à sua questão
quem e como governa para projetá-la a administração, conforme sugere o Quadro
02.1, a seguir. Neste sentido, da presente análise excluem-se apenas os modelos dc
gestão cooperativa ou associativa e dc atttogestão ou gestão democrática ou
solidária, por se considerar que estes tipos t eferem-se mais apropriadamente a gestão
dc unidades produtivas sob o comando do trabalho.

Quadro 02.1: Modelo Básico de Tipos de Gestão


p— ------------------------ __ _______ COMO ADMINISTRA
ISOLADAMENTE em grupo COLET1VAMEN-
TE
Heterogcslão Gestão Gestão
UM Absoluta/ Participativa Participativa/
Monárquica Consultiva Representativa
lletcrogcstão Gestão Gestão
QUEM Relativa/
POUCOS Participativa Cooperativa/
Oligáiquica Grupai Associativa
ADMINISTRA
Gestão Anárquico- Autogcstão;
MUITOS Indi vidu.ilista/ Co-gestão Gestão
Oclocráticti Democrática/
Solidária
Economia Polílica do Poder - Vol. 1 39

3 AS INSTÂNCIAS DE ANÁLISE

Uma organização, enquanto uma totalidade complexa, não pode ser estu­
dada como uma unidade monolítica. Existem diversos fatores e processos que com­
põem a realidade da organização c que devem ser considerados em sua análise. Para
o que se pretende neste estudo, pode-se tomar emprestado as instâncias de análise
das organizações sugeridas por Enriquez (1997), que são:
(i) mítica: diz respeito à ordem legitimadora da origem e do funciona­
mento da organização, □ unificação dos pensamentos e comporta­
mentos, à mobilização, às expressões das projeções, à tradução dos
desejos e à adesão;
(ii) social-histórica: refere-se à construção social da organização, à sua
trajetória, às suas transformações e evoluções e ao seu projeto de de­
senvolvimento;
(iii) institucional: é onde se expressam os fenômenos do poder e seus
corolários, as normas explícitas e implícitas, cuja função ê a de orien­
tação e do modo de regulação social com o objetivo de manter a or­
ganização e de assegurar sua duração e transmissão;
(iv) organizacional: c a modalidade específica c transitória de estru­
turação da instituição, na inedida cm que lhe dá sentido concreto,
através da divisão do trabalho, da autoridade, das relações de força
cotidianas, das tarefas, das metodologias, da tecnologia, dos pro­
cedimentos;
(v) grupai: é o lugar privilegiado para a compreensão dos fenômenos
coletivos, onde se expressam os sentimentos, as ambivalências, as
relações afetivas, os sistemas de valores, os desejos, sendo assim um
lugar da ação e ao mesmo tempo um lugar dos refúgios, um sítio
protetor contra os perigos;
(vi) individual: refere-se à ação do indivíduo na construção social, à suas
condutas, aos papéis que ocupa ou desempenha, ao comportamentos
dos indivíduos capazes da ação, às posições normais e patológicas
(paranóia, manipulação, megalomania, perversidade, sedução, histe­
ria);
(vii) puisional: refere-se ao processo dinâmico, cuja dualidade é que faz a
organização tender para seu objetivo (pulsão de vida) ou afastar-se
dele (pulsão de morte). Aqui pode-se perceber como as organizações
explicitam seu compromisso com a pulsão de vida (eficiência, dina­
mismo, mudança, coesão e harmonia), mas adotam procedimentos
que favorecem a pulsão dc morte (repetição, manutenção, inércia,
impedimentos à crítica, exclusão).
Estas instâncias permitem estudar as organizações a partir de diferentes
perspectivas, levando em.consideração os mencionados fatores e processos, especial-
tnente os referentes às relações de poder e de controle, que interessam mais particu-
iarmente aqui. Cada instância indica uma forma de abordar a realidade complexa
estudada de maneira a recobrir o campo empírico e o objeto. As relações de poder e
40 José Henrique de Faria

controle, nas organizações, são expressões da lei c da ordem, são recalcanles, repres­
sivos, racionais c reguladores, que atingem os sujeitos não apenas objetivamente,
mas igualmente em sua subjetividade. Do ponto de vista das organizações produtivas
do modo de produção capitalista e da organização capitalista do trabalho, as relações
de poder e de controle possuem algumas características fundamentais, cujas bases
cncontrani-sc primeiramente na organização e na divisão do trabalho, na exploração
do trabalho e no processo de acumulação do capital.

4 ORGANIZAÇÃO E DIVISÃO DO TRABALHO: A BASE TÉCNICA


DO CONTROLE

Quanto mais complexo o processo dc produção, tanto mais se evidencia


a divisão do trabalho em suas formas mais diversas c tanto mais se modifica a
natureza da cooperação. Começando das formas mais simples de trabalho até as
formas mais complexas, pode-se perceber igualmente as formas de divisão do tra­
balho em suas variadas fases. Há duas formas elementares e uma atual dc divisão
de trabalho11: a primeira, pode-se chamar de divisão social do trabalho, a qual,
aparentemente, é inerente ao trabalho humano assim que este se converte em tra­
balho social, ou seja, trabalho não isolado, mas executado na e através da so­
ciedade: a segunda, é a divisão técnica do trabalho, que implica o parcelamento
dos processos inerentes à fabricação de produtos cm diversas operações, executa­
dos por diversos indivíduos (agentes), a qual se subdivide em parcelamento das
operações e parcelamento do trabalho, este ultimo, por sua vez, desdobra-se cm
uma divisão entre trabalho manual e trabalho mental; a terceira, refere-se à divisão
internacional do trabalho, a qual incorpora elementos das anteriores mas efetiva-
os em lermos globais, destinando a cada região um tipo ou um conjunto de ativi­
dades parcelares que, ao final, compõem o processo globalizado de produção. A
divisão social do trabalho difere, em grau e espécie, da divisão técnica do trabalho,
o que não implica sejam excludentes. O Quadro 03.1, a seguir, mostra o esquema
da divisão do trabalho.

Quadro 03.1: Esquema da Divisão do Trabalho


Divisão Social rio Trabalho
Parcelamento das Operações
Divisão do
Divisão
Técnica do Trabalho Manual
Trabalho
Trabalho Parcelamento do Trabalho
Trabalho Mental
Divisão Internacional do Trabalho

A divisão técnica, como mencionado, pode ser desdobrada, para fins


analíticos, em dois processos: parcelamento das operações e parcelamento do tra­

11 Não sc reportará, aqui, à divisão por gênero (certos tipos dc trabalho reservados a homens e outros a
mulheres), idade (anciões, jovens e crianças) e hereditariedade (comum ás castas) etc. Deseja-se enfatizar,
contudo, que estas foram e permanecem sendo uma questão importante sobro a qual muitas pesquisas têm
sido produzidas revelando processos de identidade, preconceito, discriminação e marginalização. Esta
questão não será examinaria porque foge ao objetivo imediato deste estudo.
Economia Política do Poder — Vol. 1 41

balho. No primeiro caso, as operações são divididas em função do volume de mer­


cadorias a serem produzidas, no intuito de facilitar a execução dc diferentes opera­
ções. Suponha-se, a título de exemplo, a produção de um vestido por uma única
produtora (costureira). A produção do vestido compreende várias operações como:
desenhar o modelo, riscar o molde, cortar o tecido, costurar as paites, fazer os ar­
remates (pregas, bainha, botões etc.). Se esta mesma produtora for levada a fazer
não um mas dez vestidos iguais, ela tenderá a fazer cada uma das operações
separadamente, ou seja, cortará o tecido para os dez vestidos c não para cada um
apenas, costurará as partes separadamente, montará a peça e fará os arremates fi­
nais de todos os vestidos. Em síntese, a costureira não produzirá vestido por ves­
tido, iniciando o mesmo processo dez vezes seguidas, mas procurará facilitar ao
máximo sua tarefa separando as diversas operações. Quando a confecção de vesti­
dos é feita em escala, no interior da fábrica, ocorre uma nova forma de divisão
técnica do trabalho. Já não são apenas as operações que se acham divididas, mas o
trabalho é parcelado. Cada operação é feita por um indivíduo diferente, cria-se
uma linha cie montagem dos vestidos e, além disto, os trabalhadores são divididos
em parcelas. Mais precisamente, se dá a separação do trabalho manual do trabalho
mental, a qual

reduz a certa altura da produção, a necessidade de trabalhadores diretamente


na produção, desde que cia os despoja de funções mentais que consomem tempo
e atribui a outrem essas funções A consequência Inexorável da separação
dc concepção e execução é que o processo dc trabalho ê agora dividido entre
lugares distintos e distintos grupos de trabalhadores. Num local, são executa­
dos os processos físicos de produção; mim outro estão concentrados o projeto,
planejamento, cálculo e arquivo (...). O resultado c que o processo de produção
c reproduzido em papel antes e depois que adquire forma concreta. Desse
modo, como o trabalho humano exige qnf seu processo ocorra no cérebro e na
atividade física do trabalhador, do mesmo modo agora a imagem do processo
tirada da produção para um lugar separado c um grupo distinto, controla o
próprio processo Assim, ao estabelecer relações antagônicas de trabalho
alienado, mão c cérebro tomam-se não apenas separados, mas divididos e
hostis (BRAVERMAN, 1977, p. 112-3).

A coordenação fica a cargo de uma supervisão, a tarefa de concepção do


vestido e' entregue a um tipo especial de profissional (figurinista) e na confecção das
mercadorias alguns cuidam do corte, outros da costura, outros dos arremates, e assim
por diante, em uma linha de produção em massa. Que implicações decorrem da di­
visão do trabalho sob o capitalismo? Por que tal divisão é essencial no esquema de.
produção capitalista? Que categorias profissionais surgem no bojo da divisão no
capitalismo primitivo, como necessárias ao processo de acumulação? Estas pergun­
tas levam, na realidade, a um mesmo ponto: as necessidades objetivas do capital em
perpetuar seu sistema dc controle s-obre o processo dc trabalho. Como sugere Gorz
(1980, p. II).

a divisão e o parcelamento das tarefas, a cisão entre trabalho intelectual e


manual, a monopoiização da ciência pelas elites, o gigantismo das instalações e a
centralização dos poderes que daí decorre — nada disso é necessário para uma
produção eficaz- Ein compensação, isso é necessário para que o capital possa
perpetuar sua dominação.
42 José Henrique de Faria

5 A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO: O OBJETIVO DO


CONTROLE

Não foi Marx quem descobriu a existência da mais-valia (mais valor, tra­
balho excedente), mas foi ele. sem dúvida, quem a definiu de forma a que, através
dela, fosse possível explicar as causas da exploração capitalista. Pata chegar à defi­
nição de mais-valia, Marx (1946) examina o intercâmbio, cm que o produtor vende o
que produz no mercado e com isto compra outros produtos de que necessita para
viver. Os produtos, assim, constituem-se em valores de uso para outros, através do
mercado. Marx chama estes produtos de mercadorias. A economia baseada no inter­
câmbio não é uma característica do regime capitalista de produção, mas é neste re­
gime que o produtor da mcrcadotia não a possui e nem tem o direito de dispor dela,
pois a mercadoria pertence aos proprietários dos meios de produção. Neste sentido, o
preço da mercadoria, no mercado, não é mais regulado pela necessidade do produtor
em adquirir outras mercadorias, mas de forma que possibilite no capitalista obter
ainda mais dinheiro do que ele empregou no início do processo de produção. Que
mercadoria é esta que pode scr comprada pelo capitalista e que, em função de seu
uso, possa vir a produzir valor? Sendo a origem do valor o trabalho humano, esta
mercadoria não pode ser senão a força de trabalho, pois esta é a única mercadoria
capaz de criar mais valor que seu próprio valor. O valor da mercadoria força de tra­
balho depende, por seu turno, do tempo de trabalho socialmente necessário para
produzi-la, ou seja, tal mercadoria não é um caso privilegiado de mcrcadotia, mas
recebe o mesmo tratamento que qualquer mercadoria tangível.
Com efeito, quando o capitalista c o operário encontram-se no mercado
de trabalho, este oferece sua força de trabalho como mercadoria e aquele a compra
por determinada quantia de dinheiro para usá-lá durante um certo período de tempo.
O trabalhador adianta ao capitalista a quantia tratada, pois só a recebe após haver
trabalhado. Tendo comprado a força de trabalho, 0 capitalista dela dispõe, como
valor dc uso, fazendo-a trabalhar. Como a força de trabalho produz mais trabalho do
que o necessário para produzi-la, o comprador desta força dc trabalho vai usá-la
mais do que por ela pagou, on seja, vai usá-la não pelo tempo de trabalho pago, no
qual o trabalhador reproduz sua força de trabalho, mas pelo tempo de trabalho não
pago (extra), no qual o operário cria mais-valia para o capitalista A mais-valia c,
assim, o valor que o operário cria além daquele valor correspondente à sua força dc
trabalho c constitui, portanto, a fonte do lucro capitalista.
Existem, contudo, duns maneiras pelas quais o capitalista obtem mais-
valia: intensificando o trabalho ou diminuindo o tempo dc trabalho necessário. Com
efeito, Marx chama estas duas maneiras de mais-valia absoluta e mais-valia relativa.
Chama-se mais-valia absoluta a "produzida pelo alargamento da jomada de trabalho
e, pelo contrário, mais-valia relativo a resultante do encurtamento do tempo de tra­
balho necessário e a correspondente variação da magnitude proporcional de ambas
as partes constituintes da jomada" (MARX, 1946, p. 227). Para melhor explicar es­
tas duas maneiras, c conveniente recorrer a um exemplo. Suponha-se que o tempo de
trabalho necessário para produzir uma mercadoria (um sapato, por exemplo) seja de
quatro horas. Nessas quatio horas, o operário reproduz a força dc trabalho pela qual
foi pago (por exemplo, 10 unidades monetárias - u.m). Assim, o capitalista com­
prou, por 10 u.m., a força de trabalho do operário, o qual "paga" este valor, produ­
zindo um sapato em ,im tempo de trabalho necessário, medido em quatro horas.
Economia Política do Poder - Vol. 1 43

Ocorre, porém, que o capitalista, que compra a força de trabalho, dispõe do valor de
uso desta força de trabalho fazendo o operário trabalhar e o faz não por quatro horas
(tempo no qual a força de trabalho, que o operário vendeu, cria um valor igual ao seu
próprio) mas por um tempo bem maior (por exemplo, oito horas). Assim, nas quatro
íioras seguintes (na qual o operário produziu mais um sapato) a força de trabalho
criou um valor maior que o seu próprio (no caso, 20 u.m.). Este excedente de valor
(IO u.m.) que o operário criou para além do valor de sua própria força de trabalho é
chamado por Marx de mais-valor (Mehnvert), ou mais-valia, a qual é a origem do
lucro capitalista. A mais-valia é criada em um processo de produção, ou seja, unindo
à força de trabalho os instrumentos e os meios de produção.
O capitalista, no entanto, pode aumentar ainda mais a extração de mais-
valia e o faz das duas maneiras descritas por Marx: prolongando a jornada de traba­
lho e aumentando a produtividade do trabalho. Obviamente, a primeira forma é a
mais vantajosa, pois a superexploração da jornada de trabalho não envolve custos
adicionais significativos. No exemplo dado, o operário poderia trabalhar mais quatro
horas diárias, perfazendo doze e gerando um valor correspondente a três vezes o seu
próprio valor. Quanto mais o capitalismo torna-se desenvolvido, menos significativa
é a mais-valia absoluta no total da mais-valia criada, quer porque os movimentos
operários impõem, aos capitalistas, a redução na jomada de trabalho, quer porque o
prolongamento da jomada tem limites físicos. A mais-valia relativa, por seu turno,
aumenta o rendimento do trabalho encurtando o tempo de trabalho necessário tanto
na primeira parte constituinte da jomada (as primeiras quatro horas, no exemplo),
como na segunda pane (as outras quatro horas). Isto é feito pelo desenvolvimento
das forças produtivas.
O capitalista pode encurtar o tempo de trabalho necessário através da utili­
zação de tecnologia de gestão, quando altera os métodos de trabalho, ou de tecnologia
física aplicada à produção, quando incorpora ao processo produtivo novas e mais efi­
cientes máquinas e equipamentos: cm ambos os casos, o que se tem é a incorporação
de tecnologia, criada pelo próprio capitalismo, em seu benefício. No exemplo dado, o
operário, através de novos métodos de trabalho desenvolvidos pela administração ou
de novas máquinas e equipamentos, passa a produzir não mais um sapato a cada quatro
horas, mas, gradualmente, dois, seis, dez, cm uma progressão indefinida. Assim, se
cada sapato (no exemplo), representa o valor da força de trabalho, quanto mais sapatos
o operário produz em menor tempo, maior é o valor adicional criado para o capitalista.
É claro que o valor relativo da mercadoria (sapato) também diminui, quer porque o
capitalista introduziu no processo de produção mais capital constante, quer porque é
menor o valor que a força do trabalho agrega ao produto, quer porque o sapato não
poderia ser adquirido, inclusive, pelos próprios operários. Em síntese,
o prolongamento da jomada de trabalho além do ponto em que o trabalhador te­
ria produzido apenas um equivalente pelo valor de sua força de trabalho1', e a
apropriação desse inais-trabalho pelo capital, isso é a produção de mais-valia
absoluta, constituía hase geral do sistema capitalista e o ponto de partida para a
produção de mais-valia relativa. Com esta, a jornada de trabalho estã desde o
princípio dividida em duas partes: trabalho necessário e mais-trabnlho. Pata

11 Se o tempo de trabalho necessário em uma jornada de 8 horas foi reduzido de 4 horas para I hora (novo
tempo de trabalho necessáno para o trabalhador produzir o valor equivalente de sua força de trabalho), q
tempo suplementar atinicniou na razão inversa de 4 horas para 7 horas.
44 José Henrique de Faria

prolongai' o mais trabalho reduz-se o trabalho necessário por meio de métodos


pelos quais o equivalente do salário ê produzido em menos tempo, zl produção da
mais-valia absoluta gira apenas cm torno da duração da jornada de trabalho; a
produção da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os processos técnicos
do trabalho e os agrupamentos sociais. (MARX, 1946, p. 370)
A mais-valia, extraída na produção, no entanto, somente c realizada, ou
seja, somente se transforma em valor de troca ou simplesmente em valor, quando o
capitalista vende o produto (sapato), trocando-o por dinheiro, pois é neste ponto que
se dá o processo de circulação do capital (D-M-D’)1 .

6 OS PROCESSOS DE TRABALHO E DE VALORIZAÇÃO: A


NATUREZA DA SUBSUNÇÃO E DO CONTROLE

Chama-se de processo de trabalho o conjunto das operações realizadas


pelos sujeitos trabalhadores, individual ou colelivamente, de forma organizada, cotn
a finalidade de produção de mercadorias. Chama-se organização do trabalho a forma
pela qual o processo de trabalho encontra-se estruturado. Chatnam-sc relações de
trabalho as interações objetivas e subjetivas que os sujeitos estabelecem entre si du­
rante o processo de trabalho. O processo de trabalho é tipicamente capitalista quando
a finalidade da produção é a geração e apropriação de valor excedente (trabalho não
pago) pelo capital, que o aliena do trabalhador. A organização capitalista de trabalho
refere-se à forma como o capital estrutura o processo de trabalho, através cie sua
divisão técnica e social, do estabelecimento de uma hierarquia gerencial e dc um
sistema disciplinar específico. As relações de trabalho sob o comando do capital
referem-se aos contratos, ao assalariamento, às relações sindicais c às interações
entre as estratégias gerenciais e as atividades objetivas e subjetivas que os sujeitos
trabalhadores estabelecem no processo de trabalho.
Assim, o processo de trabalho, de início, deve ser considerado independen­
temente de qualquer forma social determinada, pois se trata de um processo que ocorre
entre o homem e a natureza, no qual este regula e controla seu metabolismo. Quando o
trabalhador emprega sua força de trabalho, ele o faz para produzir valor de uso.
A utilização da força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da foiça de
trabalho a consome ao fazer trabalhar o vendedor dela. O último torna-se, deste
modo, dc fato, força de trabalho realmente ativa, o que antes era apenas cm po­
tencial. Para representar seu trabalho em mercadorias, ele tent dc representá-lo,
sobretudo, em valores de uso. cm coisas que sirvam para satisfazer a necessidade
de alguma espécie. É, portanto, um valor de uso particular, em artigo determi­
nado, que o capitalista faz o trabalhador produzir. (MARX, 1983, p. 149)
Ao ser inserido no processo de trabalho, ou seja, ao pôr em movimento
sua força de trabalho, o trabalhador defronta-se com objetos de trabalho, preexisten­
tes por natureza ou filtrados por meio de trabalho anterior (matéria-prima) e com
meios dc trabalho: ambos, como meios de produção*14. Se com o que se defronta

15 Dinheiro (D)- Mercadoria (M)~ Mais Dinheiro (D’).


14 Convém precisar; (i) objeto de trabolho preexistente por natureza, on matéria bruta. é tudo o que o
trabalho desprende de sua conexão direta com o conjunto da terra (madeira, minérios etc.); (ii) matéria-
prima ê um objeto de trabalho filtrado por meio de trabalho anterior que experimentou uma modificação
Economia Política do Poder - Vol. 1 45

pciicnce ao trabalhador, pertence a um conjunto de trabalhadores ou pertence a um


proprietário que o põe a trabalhar, isto cin nada afeta a essência do processo de tra­
balho: indica, isto sim, diferentes relações de produção. No processo de trabalho,
mediante o meio de trabalho, o indivíduo efetua unia transformação, desde o início
pretendida, do objeto de trabalho. O produto desta transformação é um valor de uso,
é uma adaptação da matéria natural às necessidades humanas pela modificação de
sua forma. Em seus elementos simples e abstratos, o processo de trabalho
é uma atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do
natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabo­
lismo entre o homem e a natureza, condição natural e eterna da vida humana e,
portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente
comum a todas as suas formas sociais. (MARX, 1983, p. 153)
Em seu decurso enquanto consumo da força de trabalho pelo capitalista,-
no entanto, o processo de trabalho apresenta dois fenômenos peculiares:
(i) o trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, que é o pro­
prietário de seu trabalho pelo tempo contratado. Sob a vigilância do
capitalista, o trabalho realiza-se cm ordem e os meios dc produção
são empregados de acordo com seus fins. Não há desperdício de
matéria-prima e os meios de trabalho são preservados. Só c destruído
o que é exigido pelo uso no trabalho;
(ii) o produto do processo de trabalho não pertence ao produtor direto,
ao trabalhador, mas ao capitalista. O capitalista, ao comprar a força de
trabalho, incorpora o próprio trabalho aos elementos que constituem o
produto, o qual lhe pertence. A força de trabalho é consumida como
mercadoria que o capitalista comprou quando este a coloca cm
movimento, acrescentando-lhe fneios dc produção.
Para o capitalista é necessário produzir um valor de uso que tenha valor
de troca, uma mercadoria que possa vender. Além disto, o capitalista deseja pro­
duzir uma mercadoria cujo valor seja maior que a soma dos valores das mercado­
rias que entraram em sua produção (objetos de trabalho e meios de trabalho) e da
força de trabalho. O que ele deseja c produzir mais valor. O processo de trabalho
constitui-se em uma atividade orientada para um fim específico: por exemplo,
transformar o couro cm sapato. Assim, quanto mais adequado o trabalho destinado
a esse fim, tanto melhores os meios de produção. Mas, quando se acrescenta ao
processo dc trabalho o processo dc valorização, já não se trata mais dc qualidade,
de conteúdo ou de natureza do trabalho, mas somente dc sua quantidade. Isto ocor­
re porque, ao trabalhar, o trabalhador objetiva sua força de trabalho, a qual incor-'
pora-se ao produto. Os meios de trabalho £• OS objetos dc trabalho, contenham estes
ou não trabalho já objetivado, já são dados. Assim, o que importa, agora, durante a
transformação, é que somente o tempo de trabalho socialmente necessário seja
consumido, importa a quantidade.

mediada por irabalho (tábua, lingote dc ferro, cal. cimento etc.); (iii) meio de trabalho é tuna coisa ou mn
complexo de coisas que o trabalhador coloca entre si mesmo e o objeto dc seu trabalho c que lhe serve
como condutor dc sua atividade sobre este objeto. Na medida em que o processo dc trabalho se desenvol­
ve, os meios de trabalho são trabalhados (martelo, formão. serrote, com os quais o trabalhador alua sobre
a matéria-prima para transformá-la em mesas, cadeiras etc ). Do ponto de vista do produto, mero e objeto
dc trabalho aparecem, ambos, como meios dc produção.
46 José Henrique de Faria

Mas. sc o va]or do produto é igual ao valor nele incorporado, então o valor


que o capitalista adianta não sc valoriza, não produz mais valor. O dinheiro não se
transforma, pois, cm capital. O capitalista, no entanto, deseja produzir mais valor que n
soma dos valores que entram na produção da mercadoria. Como já foi visto anterior-
menle, quando o capitalista adquire a mercadoria força de trabalho, ele o faz dc forma
a usá-la durante uma determinada jornada de trabalho. O valor de uma jornada da força
de trabalho importa uma certa quantia de dinheiro, que corresponde aos meios de sub­
sistência necessários à produção da força dc trabalho. Esta quantia paga pelo capitalista
não corresponde, no entanto, à jornada inteira, mas, à parte da jornada, na qual está
objetivado o valor de uma jornada inteira da força de trabalho. Õ capitalista, portanto,
compra a foiça de trabalho por um dia e a usa, fazendo-a trabalhar, por um dia. Assim,
o uabalho que ela pode prestar determina seu valor de uso.
Ao realizar seu valor de troca, o trabalhador aliena o valor dc uso de sua
força de trabalho, pois não pode trocá-la sem dela sc desfazer. O valor de uso da força
dc trabalho não pertence mais ao seu vendedor quando este a vende. Se o possuidor do
dinheiro comprou a força de trabalho por um dia, esta lhe penencc, e ele a utilizará du­
rante um dia, independenlementc do fato de que sua manutenção custe apenas meio-dia
e crie o dobro dc seu próprio valor. Para o processo de valorização não importa se o
trabalho apropriado pelo capitalista é simples, medio ou superior (mais complexo). O
trabalho vale como exteriorização da força de trabalho. Se for superior, ou seja, se o
valor da força de tr abalho é superior, devido ao custo dc sua formação, exlerioriza-se
em trabalho superior, objetiva-sc cm valores mais altos. A diferença, porém, qualquer
que seja, não se distingue qualitalivamente da porção adicional de trabalho, geradora de
mais valor, pois esta resulta de um excedente quantitativo de trabalho, dc um sobreira-
balho. Assim, "como unidade de processo de trabalho e processo de formação de valor,
o processo de produção é processo de produção de mercadorias: como unidade do
processo de trabalho e processo de valorização, cie é processo dc produção capitalista,
forma capitalista de produção de mercadorias". (MARX, 1983, p. 163)
O processo dc trabalho, visto em seu aspecto qualitativo, aparece agora
em seu aspecto quantitativo, medido pelo tempo de trabalho necessário à produção
de uma mercadoria. Mais do que isto, a força de trabalho, que criava valor, aparece
agora como criando mais valor do que o que tem. O processo dc produção que era
apenas processo de produção de mercadorias, enquanto unidade dos processos de
trabalho c de formação de valor, aparece agora enquanto unidade dos processos de
trabalho de produção capitalista.
Deste modo, como o que o capitalista deseja é produzir mais valor, o
mesmo exerce um controle, uma vigilância sobre a força dc trabalho e sobre os
meios de produção. Mas, isto não significa senão que, em termos de gestão capi­
talista do processo de produção, o problema está apenas parcialmente colocado.
Como já foi indicado, o processo de trabalho transforma-se em instrumento do
processo dc autovnlorização do capital, ou seja, dc produção dc mais valor. Nesta
medida, o processo dc trabalho encontra-se subsumido (submetido, subordinado) ao
capital, sendo que o capitalista enquadra-se neste processo como dirigente, pois tal
processo é, para cie, tatnbém um processo de exploração do trabalho alheio.
A subsunção do processo de trabalho ao capital sc opera sobre um proces­
so de trabalho que c anterior a esta subsunção, baseado em diferentes processos e
outras condições de produção preexistentes. A intensificação do trabalho, o prolon­
gamento da jornada, nâo altera o caráter do modo real do trabalho: é uma ntodalida-
Economia Política do Poder-Vol. 1 47

de, relativa ao modo capitalista de produção, que corresponde à produção de mais-


valia absoluta, contrastante com o modo especificamente capitalista dc produção,
que, ao revolucionar as relações entre os agentes dc produção, a índole do trabalho e
a modalidade real do processo de trabalho total, corresponde à produção de mais-
valia relativa. Neste sentido, para Marx existem duas formas de subsunção do tra­
balho ao capital: (i) a formal, relativa ao modo capitalista de produção, à produção
de mais-valia absoluta, e (ii) a real, relativa ao modo de produção especifica mente
capitalista, à produção de mais-valia relativa.
Com efeito, a relação capitalista, como relação coercitiva com o fim de
extrair trabalho excedente, mediante o prolongamento da jornada dc trabalho - rela­
ção coercitiva que não se baseia ein relações pessoais dc dominação e dependência,
mas nasce simplesmente dc diferentes funções econômicas c comum a ambas as
modalidades: à modalidade dc trabalho já desenvolvida antes que surgisse a relação
capitalista e à que resulta do surgimento da relação capitalista.
Mas o modo de produção especificamente capitalista conhece, entretanto, outras
maneiras de explorar a mais-valia. Ao contrário de um modo de trabalho preexis­
tente, ou seja, dc determinado desenvolvimento da força produtiva dc trabalho e
da modalidade de trabalho correspondente a essas forças produtivas, só se pode
produzir mais-valia através do prolongamento do tempo de trabalho, isto é. sob a
forma dc mais-valia absoluta, A essa modalidade, como forma tínica de produção
dc mais-valia, corresponde, pois, a subsunção formal do trabalho ao capital.
(M/\RX, 1978a, p. 53)
A subsunção formal é, portanto, a que se funda no sobrevalor absoluto,
dado que apenas formalmentc se diferencia dos modos anteriores de produção sobre
cuja base surge diretamente, ou porque o produtor atua como seu próprio emprega­
dor ou porque proporciona trabalho excedente a outros. O essencial da subsunção
formal e:
(i) a relação puramente monetária entre o que sc apropria do trabalho
excedente e o que o fornece (trabalho assalariado);
(ii) inerente à primeira relação, que as condições objetivas de trabalho
(meios de produção) c condições subjetivas de trabalho (meios dc
subsistência) se defrontam com o trabalhador como capital e são
monopolizadas pelo comprador dc sua força de trabalho.
Quanto mais o trabalhador se defronta com essas condições de trabalho
conto propriedade alheia, tanto mais forma) é a relação entre o capital e o trabalho
assalariado. A subsunção formal c. assim, condição e premissa da subsunção real do
trabalho ao capital, a qual só surge quando capitais de uma certa magnitude apode­
ram-se da produção (MARX, 1978a. p. 57). A subsunção real do trabalho ao capital
sc dá quando o modo especificamente capitalista de produção entra etn cena. Dito de
outro modo, a subsunção real se desenvolve cm todas as formas que produzem mais-
valia relativa c com ela há uma revolução total que prossegue e se repete continua-
mente no próprio modo de produção, na produtividade do trabalho e na relação entre
o capitalista e o operário. Na subsunção real desenvolvem-sc as forças produtivas
sociais do trabalho c, por força do trabalho em grande escala, chega-se à aplicação
da ciência c da maquinaria à produção imediata (MARX, 1978a, p. 66).
Mas nem todó o trabalho assalariado produz valor excedente, posto que
nem todo o trabalho assalariado é também trabalho produtivo. Com efeito, partindo da
48 José Henrique de Faria

noção simples do processo de trabalho em geral, trabalho produtivo é o que se realiza


em um produto, em mercadoria. Partindo, no entanto, da noção de processo capitalista
de produção, trabalho produtivo é o que valoriza diretamente o capital, o que produz
mais-valia, o que serve ao capital como instrumento de sua autovalorização. Desta
forma, "só é produtivo aquele trabalho - e só é trabalhador produtivo aquele que em­
prega a força de trabalho - que diretamente produza mais-valia: portanto, só o tra­
balho que seja consumido diretamente no processo de produção com vistas à valori­
zação do capital". (MARX, 1978a, p. 70). Com o desenvolvimento da subsunção real
do trabalho ao capital não é o operário individual, mas uma crescente capacidade de
trabalho socialmente combinada que se converte no agente real do processo de tra­
balho total. E como as diversas capacidades de trabalho que cooperam e formam a
máquina produtiva total participam de maneira muito diferente no processo imediato
da formação de mercadorias, mais e mais funções e capacidade de trabalho se incluem
no conceito de trabalhadores produtivos, diretamente empregados pelo capital e subor­
dinados em geral ao seu processo de valorização e de produção.
O trabalhador produtivo, portanto, não é apenas o trabalhador manual, o
produtor direto. É também produtivo o trabalhador mental, aquele que trabalha no
nível da hierarquia supervisora e da concepção do processo produtivo como trabalhador
qualificado. A questão não é o quão próximo ou distante esteja o trabalhador do tra­
balho direto, mas o fato de o trabalhador produzir mais-valia que faz do seu trabalho
um trabalho produtivo. Trabalhadores direto e indireto que produzem mais-valia
podem ser, então, entendidos como agentes da valorização do capital.
Se a maquinaria é o meio de produção de valor excedente e se é o tra­
balhador produtivo que, ao empregar sua força de trabalho, cria este valor, como, na
produção capitalista, dissociar estes elementos? Isto é impossível, pois ambos fazem
parte de um mesmo processo. A força de trabalho é empregada segundo uma orienta­
ção centrada em um esquema de ordem gerencial. Não é outra a orientação do em­
prego da maquinaria no processo produtivo. A forma de gestão da força e do processo
de trabalho e o emprego de maquinaria ou outros equipamentos encontram-se subordi­
nados, portanto, à mesma lógica de produção. Neste sentido, maquinaria e gestão
constituem-se cm meios de produção de valor excedente, pois ambos, embora atuando
em instâncias diferentes de um mesmo processo produtivo, são utilizados segundo um
idêntico objetivo e cumprem uma idêntica função neste seu emprego: a acumulação.
O desenvolvimento do capitalismo, no entanto, com o aperfeiçoamento do
processo de produção e com o emprego de novas tecnologias de gestão, sugere que a
medida do valor, que em Marx aparece em sua forma quantitativa, objetivada pelo valor
de troca da foiça de trabalho e das mercadorias e pela jornada de trabalho, precisa levar
em conta também aspectos subjetivos da exploração. Deste modo, além da subsunção
formal e da real, é necessário considerar um terceiro tipo, que aqui se propõe chamai
de subsunção real subjetiva. Assim, tem-se que há três formas de subsunção:
(i) subsunção formal: quando se dá uma relação puramente monetária
entre o capital e o trabalho, de forma que as condições objetivas e
subjetivas de trabalho se defrontam com o trabalhador como capital e
são monopolizadas pelo capitalista. É relativa ao modo capitalista de
produção;
(ii) subsunção real: quando sc dá uma revolução total no próprio modo
de produção, na produtividade do trabalho e na relação entre o capi­
talista e o operário, de maneira que as foiças produtivas sociais do
Economia Política do Poder- Vol. 1 49

trabalho se desenvolvem c chega-se à aplicação da ciência e da ma­


quinaria à produção imediata, de forma que não é o operário indivi­
dual, mas uma crescente capacidade de trabalho socialmente combi­
nada que se converte no agente real do processo de trabalho total. É
relativa ao modo especificamentc capitalista de produção;
(iii) subsunção real de natureza subjetiva: quando, a partir das condições da
subsunção real, ocorre uma relação político-ideológica e psicossocial
entre o capital e o trabalho, de forma que aquele se apropria, através de
mecanismos sutis, da consciência deste pelo sequestro de sua subjetivi­
dade. A ciência do comportamento, em sua forma de tecnologia de
gestão, é intensamente aplicada sobre a capacidade de trabalho. E rela­
tiva ao modo contemporâneo especificamente capitalista de produção.
Na subsunção real de natureza subjetiva, o conjunto da sociedade e não
apenas a classe trabalhadora se encontra totalmente submetida ao processo de acu
mulação, o que não significa uma não centralidade da contradição vinculada ao tra­
balho produtivo. A subsunção real de natureza subjetiva, portanto, precisa ser pro­
curada no terreno da exploração do trabalho produtivo economicamente determinado
e executado cm novas condições políticas15: reestruturação produtiva; precarização
do trabalho; controle político-ideológico e psicossocial do trabalho: A forma de
valor, como se sabe, é a representação material da organização do trabalho coletivo,
que sempre resulta de relações de troca. Dado que tais relações são determinadas
pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelo nível de solução dos antagonis­
mos, pode-se dizer que a forma de valor é uma função dos antagonismos e um pro­
duto de sua solução (NEGRI, 1996). Tais relações de troca, contudo, devem ser
avaliadas objetiva c subjetivamente.
Para Marx (1946), a forma de valor aparece como (i) forma de equivalência
e, neste sentido, uma forma de relação a qual é em parte historicamente determinada;
(ii) dinâmica das relações dc troca que se move em direção a uma máxima abstração,
movimento este que expõe o valor como equivalência, a qual oculta o caráter an­
tagônico da relação, dc sua forma e do correspondente modo de produção. Embora
Marx tenha definido a forma de valor de maneira sincrônica [conforme expresso em
(i)], é o discurso diacrônico que será adotado em suas argumentações (NEGRI, 1996).
Deste modo, Marx vai tratar da forma dc valor cm uma perspectiva exclusivamente
baseada na medida objetiva. No entanto, ainda que o trabalho continue sendo a base do
valor, a nova configuração do capitalismo contemporâneo e suas estratégias dc ação
sugerem que as interações entre os sujeitos trabalhadores e o capital são relativamente
não mensuráveis a partir do momento em que este sequestra a subjetividade daquele,
engendrando formas cada vez mais sutis e sofisticadas, ou ainda, mais sofisticada
mente sutis de controle do processo e das relações de trabalho.
Do ponto de vista das organizações produtivas capitalistas, o sequestro da
subjetividade do sujeito trabalhador e os mecanismos sutis de controle têm, para o
capital, uma dupla função: aumentar a produtividade do trabalho; ampliar o poder ou
o domínio político e ideológico sobre os trabalhadores. A primeira função, de

15 "Exploitation is the production of political lines of lhe overdetermination of social production. This is
not to say that the economic aspects of exploitation can be negated: on the contrary, exploitation is precisely
the seizure, tie centralization, and the expropriation of theform and the product of social cooperation
: therefore il is an economic determination in a very meaningful way - but its forms is political".
(NEGRI. 1996, p. 153)
50 José Henrique de Faria

natureza econômica, encontra-se sujeita a unia medida objetiva, que se pode encon­
trar nos resultados proporcionados pelo aumento na taxa de valor excedente e na
taxa de produtividade. A segunda função somente pode ser avaliada qualitativamente
e por mais sofisticados que possam ser os instrumentos de medida, não se pode de­
terminar exatamente as relações entre os mecanismos sofisticados de controle sub­
jetivo e os resultados objetivos da produção. Embora haja uma relação diretamente
proporcional entre os mecanismos de controle e a produtividade (ou os graus dc
exploração), é necessário admitir que a mesma apenas parcialmente pode ser ob
jetivamente mensurável16. Do mesmo modo, é preciso considerar que a captura da
consciência do trabalhador pelo capital tem uma relevância importantíssima nas
formas de resistência deste e nas formas de dominação daquele, porque quanto
mais o trabalhador é envolvido na ideologia do capital e muito mais subjeti
vamente subsumido a este, menor será sua capacidade dc luta.

7 PROCESSO DE ACUMULAÇÃO E TAXA DE LUCRO: OS


RESULTADOS PRETENDIDOS PELO CONTROLE

Examinada a questão dos processos de trabalho e valorização que se en­


contram na base do processo de acumulação, convém considerar o duplo sentido da
composição do capital. Como se sabe, o capital compõe-se de uma parte constante,
investida em meios de produção, e uma parte variável, investida em força dc trabalho
Do ponto dc vista da materialidade física, a proporção existente entre os fatores de
produção, ou seja, a relação que existe entre a massa de meios de produção emprega­
dos e a quantidade de foiça viva de trabalho requerida para colocar esses meios em
movimento é chamada por Marx de composição técnico. Do ponto de vista do valor, a
composição do capital é determinada pela proporção cm que este se divide como valor
dos meios de produção c da força dc trabalho. Entre a composição de valor e a compo­
sição técnica há uma estreita relação (MARX, 1983). Para expressar esta relação, é
chamada dc composição orgânica do capital a sua composição de valor, que é vista
como forma de composição técnica que reflete as modificações desta. O crescimento
do capital implica o crescimento dc sua parte variável. O emprego crescente do
número dc trabalhadores, se não se varia a composição orgânica e se se mantiverem
inalteradas outras circunstâncias, chega a um ponto cm que é superado pela oferta de
força de trabalho, ou seja, as necessidades de acumulação superam a oferta ordinária
dc trabalho. Isto gera um aumento dos salários até o ponto em que a mais-valia obtida
não produza o lucro mínimo que o capital está disposto a aceitar pelo capital investido.
Mas, no capitalismo, a partir do ponto em que o capital investido deixa de
ser economicamente rentável, resultam: (i) transferência do capital para outra ativi­
dade17; (ii) aumento da produtividade do trabalho. Sendo a acumulação um processo
de ampliação da composição orgânica do capital, essencialmente de sua porção

Sc esta relação não existisse e não fosse comprovada, ainda que sem exatidão, o capital não investiría
tanto no desenvolvimento de novas tecnologias de gestão. A introdução das novas tecnologias de gestão
com seus mecanismos mais sutis de controle e dominação pode ser parcialmente medida de forma objeti­
va quando a mesma é relacionada ao desempenho da empresa, à sua produtividade. Entretanto, seus efei­
tos não se produzem imediatamente para todos os sujeitos e tampouco na mesma proporção
7 Do pomo de vista do sistema capitalista, esta transferência em nada modifica a massa de capital e de
1
lucro, pois n mesma diz respeito somente ao capitalista particular ou à análise dos movimentos do capital
na dinâmica capitalista.
Economia Política do Poder - Vol. 1 51

variável, que é a que se reproduz, o desenvolvimento do capitalismo relaciona-se com


o crescimento constante da produtividade do trabalho, o qual se reflete no volume
dos meios de produção com que trabalha o operário em um período de tempo, transformando-o
em novos produtos. O volume dos meios de produção cresce, por
operário, à medida que a produtividade do trabalho aumenta.
Na história do capitalismo, o incremento da produtividade está relacionado
com a utilização de instrumentos de trabalho mais modernos e com o emprego de
técnicas específicas de gestão do processo de trabalho. O aumento da produtividade do
trabalho tem como consequência o barateamento dos elementos materiais do capital
constante. Com isto, a composição técnica cresce mais rapidamente que a composição
do valor do capital. “O crescimento da massa de meios de produção em relação à
quantidade de força de trabalho necessária para a sua manipulação e transformação
em novos produtos, é mais rápido que o crescimento da parte constante do capital em
relação à sua parte variável". (GONZÁLEZ, 1977, v. 2. p. 21) Esta dinâmica é sim­
ples de ser compreendida: há um ponto cm que a necessidade de acumulação supera a
oferta ordinária dc trabalho. Quando isto se dá o valor excedente gerado, pelo au­
mento dos salários, cai em níveis tais que a remuneração do capital investido deixa de
ser interessante para o capitalista. A superação deste processo se dá pelo incremento da
produtividade, ou seja, pelo encurtamento do tempo de trabalho socialmente ne­
cessário, medida esta que recoloca o processo original em causa De outro modo,
a partir do momento em que se postula que só a fração variável do capital repro­
duz o valor e o acresce (lei do valor na sua determinação) e que este processo se
constitui por uma concorrência na produção tendo em vista o aumento da produ­
tividade (segunda determinação da lei do valor), deduz-se claramente que, a
medio prazo esse aumento da produtividade só pode resultar da introdução de
nova maquinaria e que, portanto, a parte relativa da força de trabalho na pro­
dução decresce, ou seja, que diminui a fração do capital capaz de reproduzir o
valor. (BERNARDO, 1977. v. 2, p. 133)
O lucro diminui. A queda na taxa de lucro chega a um limite, a partir do
qual ocorre um salto quantitativo na esfera de acumulação.
Convém examinar mais de perto esta questão, dada sua polêmica. O que se
discute, neste caso, é a lei da baixa tendencial da taxa de lucro, formulada por Marx,
questionada em sua validade, basicamente, pela observação empírica18. Marx não for­
mulou a lei da baixa tendencial da taxa de lucro como resultando em uma seqüência
precisa. Não é sem razão que a denominou de baixa tendencial e não de definitiva. O
que Marx sugere é que há uma tendência a que a taxa de lucro caia e. neste sentido,
“articulou esta lei geral, em cada um dos aspectos de sua vigência, com tendências
contraditórias, dc forma que esta lei só exerce sua ação mediante a articulação com
outras tendências que se lhe opõem" (BERNARDO, 1977, v. 2, p. 135). Não é, por­
tanto. uma lei que define cada etapa do desenvolvimento do capitalismo como uma
expressão prevista e espontânea de uma taxa de lucro cada vez mais decrescente. Trata-
se, no contrário, da definição de todas as formas de realização do capitalismo como ex­
pressão de um movimento geral e tendencial A lei da baixa tendencial da taxa de lucro

15 Alguns biógrafos e estudiosos afirmam que Marx costumava trabalhar exaustivamente cada assunto que
abordava e que especificamente com rotação à lei tendencial da queda da taxa de lucro, o que se encontra
em seus manuscritos são menções inacabadas. Neste sentido, atribuem a Engels. quando de seu trabalho
dc revisão c edição dos textos de Marx, a inclusão desta questão.
52 José Henrique de Faria

é lei de uma tendência e não de cada uma das formas de realização em que tal tendência
se processa (MEEK, 1974).
Duas grandes críticas são formuladas à lei de baixa tendencial da taxa de
lucro. A primeira, a de Joan Robinson (1949) - parcialmente referenciada por C.
Castoriadis — sugere que, se o aumento da produtividade representa, por um lado, um
acréscimo de maquinaria utilizada na produção em comparação à força de trabalho,
de outro lado implica uma redução do valor da força de trabalho, pois diminui o
valor, nela incorporado, dos produtos. Assim, a queda da taxa de lucro resultante do
aumento relativo da maquinaria é compensada por uma queda dos salários reais. Um
dos equívocos de Robinson é tomar uma formulação geral de longo prazo por um
modelo microeconômico de curto prazo. Marx admite que existem, casos em que a
queda nos salários reais compensa o que, sem esta queda, seria uma redução na taxa
de lucro. No entanto, Marx não aceita que, no longo prazo, este incremento de mais-
valia possa compensar a diminuição da taxa de lucro, pois, quanto menor for o
número de operários empregados, ainda que a taxa de exploração aumente, a massa
de mais-valia proporcionalmente ao capital total cai.
O caráter tendencial da lei significa precisamente que ela exerce sua vigência
mediante formas de realização contraditórias. Se a taxa de lucro não tendesse a
baixar, os capitalistas não se veríam pressionados a incrementar desse modo a
taxa de exploração: e se o aumento da taxa de exploração pode compensar a di­
minuição da taxa de lucro, este efeito último exerce-se, pois, nos limites de um
corpo fundamentalmente determinado pela baixa da taxa de lucro enquanto lei
tendencial. (BERNARDO, 1977, v. 2,p. 137)
A segunda linha crítica, que atinge o processo central da taxa de lucro, está
reunida em um reading (HOROWITZ, 1968). Sugere esta linha de crítica que, sendo
o aumento da maquinaria a expressão do aumento da produtividade e sua causa, as
novas máquinas sempre vão ser produzidas a valores inferiores, de onde decorre que
o aumento físico da maquinaria não significa um aumento de valor: a composição
técnica aumenta sem que aumente a composição orgânica. O primeiro equívoco desta
crítica é semelhante ao anterior, que é tomar um caso cm particular para contrapô-lo
a um caso geral, ou seja, é possível que este fenômeno ocorra em alguma unidade
produtiva capitalista, mas não ocorre no movimento geral do capital. O segundo
problema que pode ser apontado é que as estatísticas que os críticos utilizam para
fundamentar a crítica não correspondem ao conceito de valor que criticam, seja por­
que não se contabiliza o imposto como componente da mais-valia ou porque o lucro
realizado não é o valor produzido, seja porque, quanto ao capital global, não exami­
nam adequadamente o papel do Estado na reprodução do capital, especialmente nos
investimentos que este faz em grandes meios de produção (infra-estrutura).
Esta crítica é rebatida por Yaffe (1973) quando este questiona a con­
cepção de que a inovação tecnológica poupa capital, ou seja, de que o aumento da
produtividade diminui o valor dos produtos do Setor I. Neste sentido, Yaffe rela­
ciona quatro pontos: (i) toda inovação tecnológica que poupa capital, na verdade é
uma inovação que poupa trabalho; (ii) as inovações não têm lugar se a composição
orgânica do capital já não tiver aumentado; (iii) quanto maior a composição orgânica
do capital, menor o efeito das inovações; (iv) as inovações que poupam capital afe­
tam o campo de trabalho, reforçando as necessidades de gestão e aumentando o
número de gestores.
Economia Política do Poder - Vol. 1 53

O que deve ficar claro é que, quando a queda da taxa de lucro chega a
um limite, há um salto de qualidade na esfera de acumulação. Este fenômeno pode
explicar como, em certos períodos, o capital, tendo aumentado sua taxa de mais-
valia em proporções elevadas, pode diminuir o preço de seus produtos c, no
mesmo tempo, aumentar o salários dos trabalhadores. A alta taxa de lucro confere
ao capital maior flexibilidade cm sua política de preço das mercadorias que pro­
duz, com a finalidade de realizar o valor empregado no processo de produção. Ao
mesmo tempo, para realizar o valor (vender a mercadoria produzida), o capita) se
verá frente a outros capitais que atuam em seu mesmo campo, o que estabelece
uma competição pelo mercado e, em consequência, uma tendência a que se
reduzam ainda mais os preços das mercadorias. A redução destes preços, deste
modo, acaba implicando uma redução da taxa de lucro no processo de realização
do valor. Dependendo do nível desta redução, observa-se uma crise de acumula­
ção, com suas inevitáveis consequências: desemprego, falências, concordatas,
fusões, incorporações etc.
A resposta à crise ou mesmo à diminuição do lucro, exige do capital um in­
cremento na produtividade do trabalho, o que se dará pela diminuição do número de
trabalhadores envolvidos nos processos de produção e pelo emprego de novas tecnolo­
gias físicas ou de gestão, ou seja, a contratendência à queda da taxa de lucro se dá pela
política de aumento do valor excedente. Esta relação entre a crise dc acumulação e o
desemprego é relativamente imediata, mas entre a crise e os investimentos em tecnolo­
gias físicas e de gestão é mais complexa, pois o capital produtivo, em momentos de
crise, encontra-se contido cm suas inversões financeiras, de forma que as respostas
sobre os investimentos e seus resultados demoram a aparecer19. Esta política decorre
não apenas das decisões dos capitalistas no gerenciamento de suas empresas, mas
igualmente da ação do Estado Capitalista Contemporâneo. Após uma onda, longa ou
curta, de crise de acumulação, inicia-se um novo período de expansão do capital, um
salto quantitativo, que impõe novos padrões de produtividade e competitividade. As
novas tecnologias, neste sentido, estão fundamentalmente assentadas em relações so­
ciais e no processo de trabalho e não em uma relação entre máquina e produto mate­
rializado ou mesmo decorrente de pura inventividade humana.

8 TECNOLOGIAS FÍSICAS E DE GESTÃO: A INTEGRAÇÃO


EXIGIDA PARA O EXERCÍCIO DO CONTROLE

O termo tecnologia tem sido usado para identificar máquinas ou utilização


de novas máquinas no processo produtivo. Quando Marx refere-se ao emprego da
ciência e da maquinaria como duas das características do modo especificamente
capitalista de produção, refere-se à então concepção dominante que separava a ciên­
cia da filosofia e, mais do que isto, que atribuía à filosofia as elaborações referentes
ao pensamento, aos sentimentos, ao comportamento subjetivo. Mas esta concepção
atualmente é evidentemente restrita, o que acaba prejudicando a interpretação e as
análises dos problemas relativos aos efeitos da tecnologia sobre o processo de tra-

19 Não é intenção discorrer aqui sobre o capital financeiro e o capital especulativo em períodos de crise de
acumulação. Entretanto. convém lembrar que nestes momentos o capital financeiro e especulativo pode
circular com certa desenvoltura, tendo efeitos consideráveis não apenas sobre o capital produtivo, como
sobre as contas públicas c os agregados macroeconômicos.

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