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5.

ACESSO A CULTURA NA PERIFERIA

Quando falamos de democratização cultural, será que apenas o acesso aos equipamentos
culturais existentes é suficiente? Se trata de levar a periferia para o centro ou o centro
para a periferia? Trabalhar a formação de público nas regiões que normalmente não
frequentam espaços culturais funciona? Basta levar um equipamento cultural para a
periferia que as pessoas passarão a frequentar?

Essas questões, assim como tantas outras que surgem quando abordamos essa temática,
são cruciais para discutir o acesso à cultura (qual “cultura”?) e criar políticas públicas que
realmente abarquem a população da periferia e suas demandas.

A prática cultural nos contextos urbanos reflete a espacialidade construída e exclusão


causada por ela, portanto o lugar da cultura nesse contexto é o de ser, mais que uma forma
de lazer, uma ferramenta de transformação. Ademais, a falta de acesso à cultura nas
periferias dos centros urbanos tira inúmeras possibilidades de desenvolvimento, barrando
as possíveis potencialidade das pessoas deste território. Com efeito, a reorganização do
campo social da cultura e a intervenção urbana visa garantir direitos culturais não só às
populações periféricas, mas à sociedade como um todo.

Os dados sobre o acesso a atividades culturais pela população brasileira trazem números
preocupantes: “A maior parte dos brasileiros nunca foi ao cinema, jamais assistiu a uma
peça de teatro ou frequentou um show de música ou um museu”1. Segundo a matéria da
Revista Veja, citando dados divulgados pelo IPEA em 2010, “54% dos brasileiros nunca
foram ao cinema e 26% raramente assistem a filmes na telona (...) 59,2 % dos brasileiros
jamais viram peças de teatro” e, ainda, “67,9% dos brasileiros nunca pisaram em um
[museu]”. Acessando o documento citado na matéria (Sistema de Indicadores de
Percepção Social (SIPS)-2010), nos deparamos com os índices sobre a percepção da

1
MAIORIA dos brasileiros nunca frequentou cinema e teatro nem foi a shows de música. Revista Veja,
2010.

Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/maioria-dos-brasileiros-nunca-frequentou-cinema-e-


teatro-nem-foi-a-shows-de-musica/ Acessado em 19/03/2021.
população sobre a localização de espaços para práticas culturais e sociais2. Na linha do
item “equipamentos culturais” os resultados foram os seguintes:

Figura 8 – percepção a respeito da localização de espaços para práticas culturais e sociais. SPIS – INEA,
2010
Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/101117_sips_cultura.pdf
Acessado em 19/03/2022.

Como vemos na figura 8, a porcentagem de pessoas que consideram os equipamentos


culturais mal situados chega a 51% do total, o maio índice entre os itens da pesquisa. Se
somar com os que responderam que não tem equipamento cultural algum, chega a 52,5.
O índice de opinião negativa sobre a localização dos equipamentos esportivos também é
alto, mas ainda fica dez pontos abaixo do valor dos equipamentos culturais. No entanto,
esses dados refletem a falta de investimentos em cultura e esportes no país, mesmo que
as duas áreas sejam cruciais para o desenvolvimento da sociedade, principalmente os
jovens.

2
BRASIL. SIPS 2010 - Sistema de Indicadores de Percepção Social – Cultura, 2010. Disponível em
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=24426&catid=12
0&Itemid=2 Acessado em 19/03/2021.
Figura 9 – percepção de “mal situado” (...) nas grandes regiões brasileiras. SPIS – INEA, 2010
Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/101117_sips_cultura.pdf
Acessado em 27/03/2022.

Já o gráfico presente na figura 9 representa como a “percepção de ‘mal situado’” em


relação ao lugar onde moram se demonstra nas regiões brasileiras. Como podemos ver,
no Sudeste, o índice dos equipamentos culturais chega 53,8, ainda maior que a média
nacional.

Outro ponto levantado pela pesquisa do IPEA é a percepção a partir da situação


econômica do entrevistado, que se torna mais positiva à medida em que o entrevistado se
encontra em uma classe social mais alta, como podemos observar:
Figura 10 – Percepção dos espaços para práticas culturais e sociais por classes de renda. SPIS – INEA,
2010
Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/101117_sips_cultura.pdf
Acessado em 27/03/2022.

O contraste entre as percepções de acordo com a renda demonstra a desigualdade presente


em muitos setores sociais do Brasil. Segundo o estudo do IPEA, “Essa característica se
deve à coincidência entre maior renda e acesso a equipamentos urbanos” (p.6), porém, o
próprio estudo não acredita que se trate de uma “coincidência”, e sim de que “quanto
maior rendimento, maior proximidade e acesso a equipamentos urbanos de cultura e
lazer” (idem). Entretanto, apesar de os índices não apresentarem tanta discrepância entre
a faixa de entrevistados que ganha até dois salários mínimos (52,7) e a faixa que ganha
acima de cinco salários mínimos (47,8), demonstrando que a má localização dos
equipamentos culturais pode ser percebida também pela classe média, o fato das camadas
mais baixas terem essa percepção em maior quantidade indica que há uma exclusão maior
para as pessoas dessa condição econômica.

A pesquisa considera também a escolaridade dos entrevistados, e apresenta resultados


diferentes das questões anteriores. Segundo a pesquisa, os índices são muito semelhantes
entre as diferentes faixas de escolaridade, e a maioria concorda que os equipamentos
culturais estão mal localizados no que concerne o seu local de habitação, como veremos
a seguir:
Figura 11 – - Percepção a respeito dos espaços para práticas culturais e sociais por escolaridade. SPIS –
INEA, 2010
Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/101117_sips_cultura.pdf
Acessado em 27/03/2022.

Ainda na mesma pesquisa, houve um questionário a respeito das percepções dos


entrevistados acerca dos obstáculos existentes para o acesso à oferta cultural. Segundo
esse bloco da pesquisa, “a grande maioria dos entrevistados afirmou que os preços altos
são obstáculos ao acesso à oferta cultural” (p. 9), com 71% dos questionados concordando
que “esse ponto é um importante empecilho à fruição de bens culturais” (idem).
Figura 12 –Percepção a respeito dos obstáculos ao acesso a oferta cultural. SPIS – INEA, 2010
Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/101117_sips_cultura.pdf
Acessado em 03/04/2022.

Uma das outras razões apontadas como empecilho para a população frequentar espaços
culturais foi a barreira invisível da não-adequação ao perfil de público que
tradicionalmente frequenta esses lugares. O fato de a entrada ser gratuita ou possuir preço
popular, ou ainda, estar localizado em um bairro periférico, não garante acessibilidade da
população da periferia, pois existem vários fatores de exclusão, e nem todos eles são
materiais. Como vemos na imagem acima, 10,4% dos entrevistados concordam
plenamente e 45,5% concordam com a afirmação de que o público frequentado dos
espaços culturais é elitista. Isso implica diretamente nas políticas de democratização da
cultura, que debateremos no capítulo seguinte, em que, na verdade, são as classes altas
que passam a frequentar os espaços culturais mais vezes, ao contrário de atrair as classes
populares. Conforme diz Garcia (1987, p. 49) no trabalho Políticas culturales y crisis
de desarrollo: un balance latino-americano, o consumo cultural não se dá apenas com
campanhas publicitárias e distribuição de ingressos, pois a apropriação da cultura vem da
formação de hábito, que é construído com mais facilidade nas camadas mais abastadas da
população, e uma mudança significativa nessa situação só possível com políticas que
intercedam nos cerne da questão: a desigualdade social.

Em outra pesquisa, realizada em 2018 pela JLeiva Cultura & Esporte, revelou que
escolaridade é fator ainda mais determinante no acesso à cultura do que a renda. O estudo,
que comparou o acesso à cultura em 12 capitais brasileiras, demonstrou que, apesar de
ambos os fatores estarem relacionados, o número de pessoas que possuem o Ensino
Superior e frequentam atividades culturais é dobro da quantidade de entrevistados que
concluíram o Ensino Fundamental (p.53). Além disso, os entrevistados de Ensino
Superior têm acesso há um leque mais variados de opções culturais (Idem).

Assim, de acordo com a pesquisa, o percentual da população que frequenta teatros e


museus, por exemplo, cresce conforme aumentam os anos de estudo, mesmo nas classes
A e B, onde, teoricamente, a renda proporcionaria mais acesso às atividades culturais.
Dessa forma, a pesquisa conclui que “quem é da classe C e tem ensino superior lê mais e
vai mais a cinemas, museus e teatros do que pessoas das classes A/B com ensino
fundamental ou médio” (Ibidem).
A seguir, compararemos os resultados da pesquisa da JLeiva entre as populações com
Ensino Fundamental, Médio e Superior que frequentam museus na Cidade do Rio de
Janeiro:

Figura 13 – Acesso à cultura entre pessoas com Ensino Fundamental. Cultura nas Capitais, 2018
Disponível em https: //www.culturanascapitais.com.br/
Acessado em 10/04/2022.
Figura 14 – Acesso à cultura entre pessoas com Ensino Médio. Cultura nas Capitais, 2018
Disponível em https: //www.culturanascapitais.com.br/
Acessado em 10/04/2022.

Figura 15 – Acesso à cultura entre pessoas com Ensino Superior. Cultura nas Capitais, 2018
Disponível em https: //www.culturanascapitais.com.br/
Acessado em 10/04/2022.
Nas imagens, retiradas da plataforma interativa divulgada junto com a pesquisa,
observamos que, no exemplo da frequência de museus, a diferença entre a população com
Ensino Superior, comparada e de Ensino Fundamental, é bastante expressiva,
demonstrando que “o efeito da educação é, em média, duas vezes maior do que o da
renda” (p.54). Isso não significa que a renda não seja um fator importante, pois, quando
não se observa o nível de renda, o índice de pessoas com mais anos de estudo que
frequentam museus no Rio de Janeiro fica em 64%, como vemos acima, porém, quando
inserimos o fator renda, entre os entrevistados com nível superior a porcentagem vai para
79% na classe A, enquanto que, na classe C, fica a 58%, como podemos analisar a seguir:

Figura 16 – Acesso à cultura entre pessoas da classe A com Ensino Superior. Cultura nas Capitais, 2018
Disponível em https: //www.culturanascapitais.com.br/
Acessado em 10/04/2022.
Figura 17 – Acesso à cultura entre pessoas da classe C com Ensino Superior. Cultura nas Capitais, 2018
Disponível em https: //www.culturanascapitais.com.br/
Acessado em 10/04/2022.
No mesmo relatório, os piores índices de exclusão ficam entre quem possui apenas o
Ensino Fundamental e pertence às classes D/E, e possui mais de 45 anos3. A cor da pele
também é um fator de exclusão, com números maiores entre pretos de pessoas que nunca
frequentaram as atividades culturais mencionadas na pesquisa do que brancos, como
podemos comparar a seguir:

Figura 18 – Pessoas pretas que nunca frequentaram atividades culturais. Cultura nas Capitais, 2018
Disponível em https: //www.culturanascapitais.com.br/

3
https://www.culturanascapitais.com.br/exclusao/
Acessado em 10/04/2022.

Figura 17 – Pessoas brancas que nunca frequentaram atividades culturais. Cultura nas Capitais, 2018
Disponível em https: //www.culturanascapitais.com.br/
Acessado em 10/04/2022.

Ainda no mesmo gráfico, notamos que a linguagem artística com menor acesso é a música
clássica, em que 69% das pessoas pretas e 60% de pessoas brancas nunca assistiram a um
concerto, enquanto que o cinema é a atividade cultural mais popular, apresentando uma
porcentagem de exclusão de apenas 11% entre pessoas pretas e uma taxa menor ainda
entre pessoas brancas, de 6%.

Sobre os fatores que impedem o acesso a atividades de fruição cultural, os motivos variam
conforme cada modalidade cultural: no caso das apresentações de música, 31% dos
entrevistados afirmam que as questões econômicas impedem o acesso, seguindo por 29%
de pessoas que não gostam dessa atividade e falta de tempo em terceiro lugar, com 23%
(p. 121). Morar longe dos locais onde são realizados os shows é motivo para 4% deixarem
de frequentar, e mobilidade é fator importante para 1% (Idem).

Já no caso dos museus e exposições, o motivo principal é a falta de tempo, com 33%,
seguido de “não gosto”, com 29%, e “motivos econômicos”, com 22%. Morar longe
aparece como a quarta opção mais mencionada, com 6% e mobilidade com 1% (p. 131).
O motivo “não me sinto bem” soma 1% das razões para não frequentar museus e
exposições (Idem).

E, por fim, na área das artes cênicas (teatro, dança, circo), 30% alegam que não gostam,
28% que falta tempo, 28% motivos econômicos, 6% “por ser longe”, 1% mobilidade e
1% “não me sinto bem” (p.143). Apresentamos somente os dados sobre os motivos que
fazem sentido para esta dissertação, mas no relatório da J Leiva aparecem outros motivos
em cada modalidade, como “falta companhia”, “não tenho costume”, “falta informação”,
“falta segurança”, entre outras.

No artigo Espaço, lazer e política: desigualdades na distribuição de equipamentos


culturais na cidade do Rio de Janeiro , de Victor Andrade de Melo e Fabio de Faria Peres
(2006), os autores listam três dimensões do acesso os bens culturais da cidade, como o
“aspecto físico”, ou seja, se há algum equipamento municipal na região; o “aspecto
financeiro”, que significa se há a cobrança de ingresso, e se o valor é acessível à
população; e o “aspecto relacionado à formação” de público, em outros termos, se a
população tem estímulos para visitar o local, como mediação cultural e/ou pedagógica,
monitoria, divulgação, etc (p.11). O texto prossegue explicando que, neste contexto, a
espacialidade é entendida como uma dimensão de acesso aos bens culturais para além do
seu sentido geográfico, sendo também “um conceito que engloba o imaginário, as
linguagens, o cotidiano e tantos outros aspectos da vida social” (p.12). Por certo, uma
reclamação constante dos promotores culturais da periferia é a de que muitos espaços
institucionais culturais não são convidativos para determinados públicos, principalmente
quando são “colocados” no território sem um diálogo com a população local. Sendo
assim, além de implementar novos equipamentos públicos no subúrbio, é necessário que
a criação seja feita em conjunto com os moradores do território, e que exista ações
permanentes de formação de público e políticas para que as pessoas se sintam bem-vindas
e sejam estimuladas a frequentar. Basta lembrar que nos estudos mencionados
anteriormente, o público majoritariamente elitista e o sentimento de não pertencimento
ao ambiente também são fatores de exclusão.

A Constituição Brasileira, em seu artigo 215, nos diz que “o Estado garantirá a todos o
pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais4”, enquanto a Emenda
Constitucional nº 48, de 2005, inclui o item IV: “democratização do acesso aos bens de
cultura”5. Mas o que isso quer dizer? A democratização cultural de fato se concretizou?
E para quem?

4
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988. p. 126
5
Idem.
Como disse Marcio Black, cientista político e produtor cultural, “os dados mostram que
o acesso à cultura tem CEP, tem classe e tem cor”6.

1
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988. p. 126
1
Idem.
1
https://www.nossasaopaulo.org.br/2018/04/10/o-acesso-a-cultura-tem-cep-tem-classe-e-
tem-cor/ Acessado em 10/04/2022.

6
https://www.nossasaopaulo.org.br/2018/04/10/o-acesso-a-cultura-tem-cep-tem-classe-e-tem-cor/
Acessado em 10/04/2022.

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