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Winfried Nö th (Kassel & Sã o Paulo)

Resumo: O conceito de forma tem dois significados que vão em direções opostas. De
um lado, “forma” é forma qualitativa pura sem significado; por outro lado, é a forma das
idéias, a estrutura do significado. Na teoria semiótica, os dois tipos de forma vêm sendo
investigados. Na semiótica glossemática de Hjelmslev, elas se distinguem como forma da
expressão e forma do conteúdo. Na semiótica de Peirce, entretanto, encontramos de um lado a
distinção entre a forma do representamen e, por outro lado, a forma como tipo de idéia geral
“comunicada pelo objeto através do signo ao interpretante”.
A idéia de forma qualitativa pura sem significado leva a um paradoxo semiótico: um
fenômeno sem significado pode ainda ser considerado um signo? Numa tentativa de resolver
este paradoxo, a tradição mais recente da semiótica visual desenvolveu uma teoria da natureza
do signo de ambos os tipos de forma. A distinção entre signos plásticos e abstratos, e
figurativos e icônicos foi estabelecida para explicar a diferença semiótica entre esses dois
tipos de forma. No entanto, os significados associados aos dois tipos de forma requerem
maiores considerações semióticas. Este artigo argumenta que a diferença entre os dois tipos
de significado pode ser melhor explicada em termos de referência e auto-referência. Mostrar-
se-á que a noção de Peirce do “ícone puro” é pertinente para a solução do paradoxo semiótico
em questão. Este “ícone puro” não se aplica a formas (referenciais) que servem para
representar objetos, mas sim a fenômenos sígnicos (auto-referenciais) que evidenciam a forma
qualitativa sem terem significado no sentido lingüístico.

O conceito de forma tem muitos significados. Na filosofia antiga e medieval, era


discutido no contexto da tríade ontológica e epistemológica da forma, matéria e substância
(Bormann et al. 1972). Na estética, o conceito foi fundamental na tradicional dicotomia da
forma vs. conteúdo. Esta dicotomia pode também ser encontrada na tradição dos estudos da
língua, na qual a forma das palavras frequentemente se opõe ao seu significado.
Na semiótica, preocupamo-nos com a forma dos signos. O que é forma neste
contexto? A resposta depende muito de como o conceito de signo é definido. Nossa estrutura
de referência será o conceito de signo triádico mais amplo, segundo o qual três correlatos têm
de ser considerados no estudo do signo, (1) o significante, veículo do signo, ou signo no
sentido mais estrito, que Peirce chama de representamen, (2) o objeto ao qual o signo se
refere ou que representa e (3) seu significado ou conteúdo, a idéia que o signo evoca, que
Peirce define como interpretante.
A dicotomia tradicional da forma vs. conteúdo sugere que a forma seja apenas o lado
do significante em oposição ao seu significado. No entanto, ao examinarmos mais de perto
como a forma é definida na semiótica moderna, veremos que a forma não está restrita à
descrição do veículo do signo, mas também é atribuída ao significado e até ao objeto do
signo. Distinguir estas dimensões da forma semiótica é o objetivo deste artigo. Nosso foco
estará em dois clássicos, Louis Hjelmslev e Charles Sanders Peirce, mas antes examinaremos
a noção de forma quando usada em oposição a conteúdo em alguns contextos de estética
menos explicitamente semióticos.

1. Forma e Conteúdo
Há essencialmente três modos segundo os quais a forma é tradicionalmente definida
em sua relação com o conteúdo. De acordo com o primeiro, os dois conceitos são opostos
complementares. Forma, na sua terminologia, designa o significante, e conteúdo, o
significado de um signo. Estes dois termos são complementares por serem ambos necessários
para constituir o signo. Nada é um signo a menos que tenha forma e conteúdo.
Conforme a segunda definição, os dois conceitos são também opostos, mas um não
pressupõe a presença do outro no mesmo fenômeno. Nesta definição, a forma é autônoma em
relação ao conteúdo, uma vez que pode existir sem ele, como forma pura, a forma que
significa nada. Esta é a forma do formato de uma mancha de tinta, de um triângulo, da
seqüência de sons de uma peça musical, ou da seqüência de sons vocais sem sentido. O
sentido que tal forma pode expressar, se há algum, diz-se ocasionalmente que pressupõe uma
forma que o expresse; em outras palavras, a forma pode existir sem o conteúdo, mas o
conteúdo requer a forma. Contudo, há também algumas opiniões idealistas sobre o conteúdo,
segundo as quais conteúdos puros são possíveis sem uma forma que os expresse. Tais
sentidos independentes de uma forma que os expresse são concebidos como “idéias puras”.
Não podemos avançar em detalhes a esta altura, uma vez que nosso foco é apenas na forma
(mas veja, por exemplo, Nöth 2000: 32, sobre as opiniões de Bolzano acerca de conteúdo).
A primeira e a segunda definição têm dois critérios em comum: forma se opõe a
significado, e refere-se a algo perceptível no espaço e no tempo. Vamos chamar este tipo de
forma de forma qualitativa.
De acordo com a terceira definição, forma não mais se opõe a conteúdo, mas é um
termo mais geral também aplicável ao conteúdo. Segundo esta definição, conteúdo também
tem forma. Uma forma com conteúdo nos “in-forma”, dando estrutura a um domínio de
conteúdo. É a forma conceitual que estabelece as fronteiras entre as categorias cognitivas,
discerne o pertinente do não-pertinente, e combina idéias simples em outras mais complexas.
A forma do conteúdo é a estrutura dos nossos conceitos. Vamos chamar este tipo de forma de
forma semântica.

1.1. Forma qualitativa sem conteúdo


A forma qualitativa refere-se às características meramente materiais de um fenômeno,
suas estruturas fisiológicas, visuais, acústicas ou, de outro modo, as estruturas perceptíveis no
espaço e no tempo. Neste sentido, a forma não apenas se opõe ao sentido, mas também ao
caos, que significa ausência de qualquer forma. “Matéria sem forma é caos”, observa Peirce,
que ilustra esta percepção através do episódio de “um cavalheiro na Inglaterra que
demonstrou por meio de pesquisa brilhante que tudo lhe aparece verde. O verde, entretanto,”
conclui Peirce, “não é uma cor revigorante para ele, pois é indiscernível” (W 1: 50). Este
homem, que tudo percebe como verde, é incapaz de fazer distinções entre as formas
qualitativas, mais precisamente entre as qualidades cromáticas dos objetos em seu ambiente.
A forma acústica da música é essencialmente restrita à forma qualitativa.
Concentrando-se na arte tonal sob essa perspectiva, Eduard Hanslick cunhou a famosa
definição de música como “formas sonoras em movimento” [“tönend bewegte Formen”].
Uma linguagem cujos significados não entendemos tem, contudo, uma forma
qualitativa que percebemos. O ramo da lingüística restrito à forma meramente qualitativa dos
signos verbais é a fonética. O estudo dos sons da fala interessa-se pelos elementos que têm
forma qualitativa apenas, mas não o conteúdo. Outros ramos da lingüística que enfocam mais
a forma qualitativa do que o conteúdo são a morfologia e a sintaxe. Observe-se que,
etimologicamente, morfologia significa “estudo das formas”.
Qualquer fenômeno visual ou acústico distinguível exibe formas qualitativas mesmo
se nenhum sentido ou referência puderem ser a ele associados. Figuras abstratas têm apenas
forma qualitativa, mas nenhum conteúdo. O quadro de Mondrian Composição com vermelho,
preto, azul, amarelo e cinza, de 1920 (figura 1), tem uma forma qualitativa que consiste numa
série de quadrados e retângulos coloridos com linhas negras de demarcação entre eles.

FIGURA 1 – PIET MONDRIAN, COMPOSIÇÃO COM VERMELHO, PRETO,


AZUL, AMARELO E CINZA, 1920, AMSTERDÃ, MUSEU MUNICIPAL.

1.2. Forma qualitativa com conteúdo


A forma qualitativa, como dissemos, pode ter ou não conteúdo. Considere o “smiley”
a seguir, representação simplificada de um rosto humano sorrindo:

Este desenho mostra como a combinação de quatro formas puramente qualitativas,
dois pequenos pontos, um arco e um círculo, resultam numa forma com sentido.
Isoladamente, os pontos, o arco e o círculo são meras formas qualitativas sem sentido, mas
nesta ordenação particular, as formas qualitativas adquirem sentido: os pontos significam
‘olhos’, o arco, ‘boca sorridente’, e o círculo, ‘face’. Portanto, temos um signo com forma
qualitativa e com significado. O quadro de Paul Cézanne Paisagem Rochosa em Provence, de
1886 (figura 3), é outro exemplo de como formas qualitativas podem vir a representar
significado. Há, por exemplo, triângulos vermelhos que representam telhados, quadrados
amarelos que representam paredes de igreja, paralelogramos que representam milharais, etc.
Numa representação pictórica com os dois tipos de forma, o foco pode estar no
conteúdo, na forma qualitativa, ou em ambos. A forma qualitativa é secundária numa
mensagem informativa, já que o mesmo conteúdo pode ser representado em diferentes formas
qualitativas. Forma qualitativa e sentido são de igual importância numa pintura como A Morte
da Virgem, de Hugo van der Goes, de aproximadamente 1480 (figura 2), onde não apenas
cada pessoa, gesto e objeto tem sentido, mas também cada cor e formato é relevante para a
composição pictórica.

FIGURA 2 HUGO VAN DER GOES – A MORTE DA VIRGEM, PINTURA EM


ALTAR, c1480, MUSEU DE BRUGES

Na história da pintura moderna desde Cézanne, a forma qualitativa das figuras tornou-
se mais e mais importante em detrimento de seu conteúdo: o conteúdo pictórico não mais tem
importância estética, mas a maneira como um objeto é representado e percebido. Os
formalistas na arte e estética declararam que a forma qualitativa de uma pintura é a primária,
ao passo que a semântica é a secundária. Seu mote, segundo Maurice Denis, era: «Se rappeler
qu’un tableau – avant d’être un cheval de bataille, une femme nue, ou quelconque anecdote –
est essentiellement une surface plane recouverte de couleurs en un certain ordre assemblées»1
(in Mechelen 1993: 27).

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1.3. A forma do sentido
A forma semântica é a forma na qual nosso universo mental de idéias é estruturado.
Na verdade, os conceitos de idéia e forma estão intimamente relacionados em sua etimologia.
Os vocábulos gregos eídos e idéa derivam ambos da raiz indo-européia *vid, cujo significado
é “ver”, e no grego antigo estas palavras significavam ‘forma’ no sentido de ‘configuração
visual’. O estudo da forma semântica, na medida em que se relaciona com o modo como o
sentido é “formado” ou estruturado, preocupa-se com a estrutura de conceitos ou categorias,
com a maneira pela qual unidades semânticas elementares são relacionadas num sistema
coerente e como elas se combinam em estruturas mais complexas. Neste sentido, a forma
semântica é um sinônimo de estrutura semântica; ela também tem sido chamada de
ideacional, figurativa ou forma conceitual. A lógica formal e a semântica estrutural são
estudos clássicos da forma semântica.

2. A forma na teoria semiótica


Na teoria semiótica, o conceito de forma tem sido usado de várias maneiras diferentes.
Nos itens a seguir, vamos enfocar apenas dois clássicos da semiótica moderna, Louis
Hjelmslev e Charles Sanders Peirce, que diferem grandemente em suas definições de forma,
mas concordam no ponto em que não restringem o conceito de forma à forma qualitativa.

2.1. A teoria da forma de Hjelmslev como estrutura de signos


A semiótica estruturalista de Hjelmslev distingue dois níveis da forma de um signo,
forma de expressão e forma de conteúdo. Em ambos, o conceito de forma pode ser
considerado sinônimo de “estrutura”. Forma de conteúdo é a estrutura semântica de um signo.
Forma de expressão é forma qualitativa estruturada sem sentido. Em ambos os níveis, a forma
é concebida como estrutura abstrata, como apenas aquilo que é estruturalmente pertinente do
ponto de vista do sistema semiótico. A forma, assim concebida, é estrutura pura sem
substância.
De acordo com este modelo (cf. Nöth 2000: 81-85), um sistema semiótico estrutura e,
portanto, impõe a forma tanto na materialidade do signo como nas idéias por ele
representadas. Por exemplo, o sistema de uma língua individual impõe forma sobre a maneira
como seus falantes articulam sons da fala e o modo como eles estruturam suas idéias. A forma
da expressão de um signo verbal consiste em seus fonemas, determinados pelo sistema
particular de sons desta língua. Sua forma de conteúdo consiste em elementos de sentido
chamados semas, que derivam das categorias semânticas e gramaticais do sistema da língua.
Tanto no domínio da articulação da fala como no das idéias, tudo permanece meramente
como matéria desestruturada contanto que não haja forma que a língua imponha sobre ela. É a
forma que estrutura a matéria da expressão e do conteúdo. Tanto a matéria da expressão como
do conteúdo são meros contínuos amorfos, que comportam o potencial daquilo que podemos
articular e significar, até que uma forma de expressão imponha regras de articulação e uma
forma de conteúdo imponha sua estrutura semântica para tornar a comunicação de idéias
possível.

2.2. Os conceitos de forma de Peirce


Anteriormente, mencionamos o relato de Peirce sobre um inglês para quem tudo
parecia verde, a fim de ilustrar a tese de que a forma qualitativa é estrutura e, como tal, oposta
ao caos. A tese semiótica desenvolvida neste contexto é mais complexa. Peirce continua sua
argumentação, dizendo que a forma qualitativa, em contraste com a matéria sem forma, não
apenas estrutura a cognição, mas também comunica sentido. Em resposta à pergunta “Qual a
condição necessária para que a matéria transmita uma noção?” ele escreve: “Ela deve
obviamente possuir uma forma, uma vez que matéria sem forma é caos, – é matéria não
afetada pela mente. Ela deve ser sensível para ser algo para nós, e deve ser distinta e
distinguível para que seja uma forma para nós. [...] Portanto, é a forma de uma coisa que
carrega seu significado” (W 1: 50). A forma sensível conseqüentemente tem significado e é
estruturada, e é por este motivo que Peirce parece ridicularizar o cavalheiro inglês pois, se
este homem era incapaz de notar o verde como uma forma cromática distinta das demais, ele
deve também ter sido incapaz de reconhecer que a noção desta forma qualitativa era ‘verde’;
em outras palavras, ele era incapaz de concluir que o mundo era verde, e não cinza.
Peirce atribui forma a dois componentes do signo, seu veículo ou representamen e seu
objeto. Ao definir o signo como “qualquer coisa [...] capaz de ter uma forma sensível” (MS
654.7; citado em Parmentier 1985: 26), ele se refere ao representamen como uma forma
qualitativa. Num outro sentido, ele também introduz o termo “forma” em sua definição do
representamen como um tipo em oposição a uma réplica. (Um signo é um tipo na medida em
que funciona como uma regra geral e é interpretável da mesma maneira em várias situações,
ao passo que um sinal é uma mera ocorrência singular desse signo.) Como um tipo, Peirce
define o signo como uma “forma significante”. Sendo assim, “ele não existe; apenas
determina que as coisas existam” (CP 4.537). Portanto, neste contexto, forma não é forma
qualitativa, mas sim uma característica mais abstrata do representamen, a saber, seu poder de
determinar nossa cognição para interpretar, em várias circunstâncias, um sinal singular de um
signo como uma réplica de um tipo de signo geral (cf. também CP 5.429).
Contrariamente a Hjelmslev, Peirce não está preocupado com a forma semântica ou a
forma do interpretante. Quando ele afirma que “é a forma de algo que carrega seu
significado” (W 1: 50), refere-se à forma do objeto do signo, que Peirce ainda chamava de
“algo” nesse texto incipiente de 1861. Além disso, de acordo com Peirce, signos não
pressupõem e não estão restritos a um sistema de signos, mas estão onipresentes na cognição.
Forma não é, portanto, uma estrutura determinada pelo sistema, mas as características do
objeto que determinam sua representação. Estas condições de semiose são claramente
expressas na citação a seguir, de 1865: “Nosso mundo inteiro [...] é um mundo de
representações. [...] Todo pensamento é uma representação. [...] A coisa é aquilo para o qual
uma representação poderia estar, independente de tudo que constituiria uma relação com
qualquer representação. A forma é o aspecto em que uma representação pode estar no lugar de
algo, independente tanto desse algo quanto da representação” (W1: 257).
A forma de um objeto, em outras palavras, é uma abstração do objeto, uma seleção de
suas características semioticamente pertinentes. Sua estrutura consiste naquelas características
pertinentes à sua representação em um signo e, neste ponto, há uma afinidade entre o conceito
de forma de Peirce e de Hjelmslev, cujo sentido é também restrito à característica
estruturalmente pertinente de um signo, contrastando com sua matéria e substância não-
pertinentes.
Sob este prisma, Peirce mais tarde substituiu o conceito de forma pelo termo
fundamento. Ambos os termos descrevem a maneira como um signo representa seu objeto.
Ele não pode estar para o objeto em todos os aspectos, caso contrário, não seria um signo, mas
o signo representa o objeto “em referência a uma idéia, que às vezes chamei de fundamento
da representação”, escreve Peirce em 1897 (CP 2.228). Observe-se a semelhança desta
definição de “fundamento” com a definição supracitada de “forma” como “a relação na qual
uma representação pode estar para algo”.
A teoria de que a forma do objeto não é apenas representada pelo signo, mas exerce
uma influência dinâmica na determinação do signo à sua representação no processo de
semiose, tornou-se mais e mais primordial nos textos semióticos posteriores de Peirce. Em
1905 e 1906, ele redefine o signo como “um meio para a comunicação de uma forma”, e
especifica: “aquilo que é comunicado pelo Objeto através do Signo para o Interpretante é a
Forma; isto quer dizer que não é algo existente, mas sim um poder, o fato de que algo possa
acontecer sob determinadas condições. Esta Forma está realmente incorporada no objeto [...].
Ela está incorporada no signo apenas num sentido representativo” (MS 793: 1-3, citado em
Parmentier 1985: 43; cf. EP 2: 477 e 544). Em suma, a semiose é o processo de tradução da
forma de um objeto de sua fonte, pela via do medium de um signo, para seu interpretante, isto
é, outro signo resultante deste processo.

3. O paradoxo semiótico da “forma pura” e a semantização da forma qualitativa


Retomemos, por um instante, o conceito de “forma pura” sem conteúdo, a forma de
uma pintura abstrata ou de uma obra musical. Nem Hjelmslev, para quem esta forma “pura”
sem sentido é matéria informe, nem Peirce, para quem toda forma comunica algum
significado, usa o conceito de forma neste sentido, comum na tradição da estética.
Para os semioticistas, que estendem seu escopo de estudo da linguagem para a cultura
em geral, a idéia de forma pura sem conteúdo cria um paradoxo semiótico. Ou uma forma tida
como pura não tem conteúdo e, portanto, não é um signo; ou é um signo, que então deve ter
um conteúdo e, portanto, não é apenas uma forma pura. Pode-se estudar uma obra musical ou
uma pintura abstrata como um signo ou a perspectiva semiótica deve excluir estes fenômenos
de seu horizonte? Formas puras criaram um paradoxo não somente na semiótica, mas também
na teoria da arte. O paradoxo estético apresenta-se como segue: se arte é um objeto de valor
estético e, portanto, provido de conteúdo, uma pintura sem conteúdo pode realmente ser uma
obra de arte?
As soluções propostas para resolver o paradoxo da forma pura vão em duas direções
opostas: a radicalização da idéia de forma pura e a semantização da forma qualitativa. A
radicalização da idéia de forma pura é inerente à estética da “arte pela arte” e, na abordagem
dos formalistas, ao estudo da arte: a forma significa nada além de si mesma. A semantização
da forma pura é a abordagem daqueles que atribuem sentido à forma qualitativa e,
conseqüentemente, rejeitam completamente a idéia de forma pura. Podemos enfocar apenas a
segunda abordagem, pois devemos nos restringir aos conteúdos atribuídos à arte abstrata na
estética e semiótica da pintura.

3.1. Semantização da forma qualitativa na estética


A semantização da forma qualitativa pictórica tem uma longa tradição no estudo das
artes visuais. C. G. Jung, por exemplo, atribuiu sentidos “arquetípicos” a formas geométricas
puras. Erwin Panofsky objetou contra a possibilidade de estudos meramente formais da
pintura. Argumentando que tal abordagem reduz o valor de uma obra de arte a uma peça de
decoração meramente formal, ele postulou camadas mais profundas de conteúdo na arte,
chamando-as de sentido iconográfico e sentido iconológico (cf. Mechelen 1993: 77 e 92; Nöth
2000: 439). Em nosso contexto, não conseguiremos investigar este método em detalhe. Basta
dizer que ele exemplifica vários métodos de se atribuir sentidos culturais e simbólicos à forma
qualitativa.
Rudolf Arnheim (1957: 374-77) também postulou significados “simbólicos” tanto na
arte figurativa como na abstrata. Sua tese era a de que “toda arte é simbólica”: até a arte
abstrata tem significado. “Ela não é ‘forma pura’, pois até a linha mais simples expressa
significado visível e é, portanto, simbólica.”
Arnheim (1969: 26-27) define formas visuais como “conceitos” na verdade – mas sua
formação foi em psicologia da gestalt, precursora da psicologia cognitiva moderna – e por
“conceitos” ele também entendia formas visuais (Gestalten) como formas cognitivas que
tornam compreensíveis as formas qualitativas. “Formas são conceitos,” são suas palavras, —
e Arnheim teceu a seguinte consideração sobre a relação entre forma qualitativa e conteúdo na
percepção visual: “Na percepção da forma repousam os primórdios da formação de conceito.
[...] A percepção consiste em encaixar o material de estímulo em padrões de forma
relativamente simples, os quais chamo de conceitos visuais ou categorias visuais.” —
“Categorias visuais”, neste contexto, não são apenas sentidos simbólicos e figurativos de
objetos retratados numa obra de arte, mas também conceitos somente associados a formas
qualitativas, como “triângulo”, “quadrado”, ou “círculo”. A diferença entre esses dois tipos de
sentido, figurativo e simbólico de um lado e qualitativo do outro, será examinada a seguir.

3.2. Semantização da forma qualitativa na semiótica estrutural da pintura


Na mais semiótica da arte estruturalista, a semantização da forma qualitativa tem sido
um método adotado no quadro de duas escolas diferentes de semiótica estrutural. Uma é a
semiótica visual de Groupe µ, a outra é a semiótica visual da escola de Greimas e sua teoria
de sistemas semi-simbólicos (veja Nöth 2000: 442-43 e 473-74).
O ponto de partida é a distinção entre dois tipos de signos em pinturas, um derivado da
semântica, o outro da forma qualitativa. Convenções terminológicas diferentes foram
adotadas para designar estes dois tipos de signo em representação visual. O primeiro tipo de
signo pictórico tem sentido na medida em que representa objetos com os quais estamos
familiarizados a partir de nosso universo de conhecimento, e que podem ser designados por
palavras simples que os representam. Quadros representando um rosto, um sapato, uma
cadeira, ou um cenário rochoso em Provence (figura 3) são exemplos desses signos. Termos
para designar elementos pictóricos deste tipo são signos figurativos ou icônicos. Interpretar
um quadro desta maneira está em muita consonância com as observações de um quadro
enquanto signo com uma superfície de expressão feita de elementos gráficos e cromáticos e
uma superfície de conteúdo feita de significados traduzíveis na forma de palavras.

FIGURA 3 – PAUL CÉZANNE, PAISAGEM ROCHOSA EM PROVENCE, c 1886,


LONDRES, NATIONAL GALLERY

A novidade desta abordagem em semiótica visual é a distinção de um segundo tipo de


signo visual em quadros, que deriva de sua forma meramente qualitativa. Ele é chamado de
signo plástico ou abstrato. Contrariamente ao que dissemos no início, sobre a falta de
significado na forma qualitativa, a teoria de signos plásticos ou abstratos atribui significado a
formas puras, mas a semântica destes signos visuais é de um tipo diferente. Signos abstratos
não se referem a objetos. Thürlemann (1982, 1990), por exemplo, distingue três tipos de
categorias semânticas neste nível da forma qualitativa: categorias cromáticas, que se referem
a cores, categorias eidéticas, que referem a formas visuais, como círculos, quadrados ou
triângulos, e categorias topológicas, referentes ao lugar do elemento visual no contexto
pictórico. Exemplo de significados que um signo abstrato pode ter, como resultado de tais
categorias, seria ‘um elemento convexo verde, sobrepondo-se ao elemento côncavo vermelho,
logo acima’. Quadros abstratos têm, obviamente, signos com sentidos neste senso descritivo,
mas quadros figurativos têm ambos os tipos de signo, signos que se referem a objetos e os que
se referem a formas visuais.
A duplicidade resultante deste tipo de semântica visual mais uma vez pode ser
ilustrada por nossos exemplos anteriores. Os quadrados e retângulos coloridos da Composição
com vermelho, preto, azul, amarelo e cinza de Mondrian são abstratos, mas não signos
figurativos. Quando identificamos elementos da Paisagem rochosa em Provence, de Cézanne,
como triângulos vermelhos ou retângulos amarelos, interpretamos estes elementos como
signos abstratos. Quando dizemos que estes triângulos vermelhos representam telhados, ao
passo que os quadrados amarelos representam paredes de igreja ou milharais, identificamos
signos figurativos.

4. Auto-referência e iconicidade genuína dos “signos abstratos”


A diferença entre os dois tipos de significado associados a signos abstratos e
figurativos requer uma análise semiótica mais completa. Se tanto os elementos abstratos como
figurativos de um quadro são signos com significados, por que somos intuitivamente
inclinados, apesar disso, a chamar de figuras abstratas formas puras sem sentido? Afinal de
contas, o mesmo termo “abstrato” significa precisamente “abstraído de conteúdo e
referência”.
Gostaria de argumentar que a diferença entre os signos comumente chamados de
figurativos e abstratos nas representações pictóricas podem ser melhor explanados através da
distinção semiótica mais fundamental entre referência e auto-referência, ou mais precisamente
entre alo-referência e auto-referência.
Um signo que contém referência e refere-se a uma outra coisa é um signo alo-
referencial (cf. Nöth 2007). O prefixo grego allo- significa ‘outro’, alo-referência significa
portanto referência a outra coisa. O retrato de um rosto não é o próprio rosto, é uma outra
coisa, quer dizer, um pedaço de papel ou tela com linhas desenhadas sobre sua superfície.
Neste sentido, pinturas figurativas são, por definição, signos alo-referenciais. Por exemplo, a
Paisagem rochosa em Provence, de Cézanne, não é uma paisagem, é um quadro numa
moldura dourada. Na verdade, de acordo com a semiótica clássica, ser um signo significa
estar por outra coisa e não por si mesmo: aliquid stat pro aliquo, era a definição medieval.
Portanto, alo-referência é a função que geralmente esperamos que uma imagem concretize.
Entretanto, os signos comumente denominados abstratos não são alo-, mas sim signos
auto-referenciais. Se dissermos que um elemento da Composição com vermelho, preto, azul,
amarelo e cinza de Mondrian é um signo abstrato cujo significado é ‘quadrado vermelho’,
afirmamos que este elemento é um significante cujo significado, ‘quadrado vermelho’, é
também verdade deste mesmo significante, o segmento deste quadro. Contrariamente ao signo
verbal “quadrado vermelho”, que não é vermelho nem quadrado, o elemento pictórico
“quadrado vermelho” é tanto ‘vermelho’ como ‘quadrado’. Como signo cujo significado se
aplica a seu próprio significante, o signo abstrato é um signo auto-referencial.
5. Signos icônicos e “abstratos”
Uma chave para a solução do paradoxo semiótico da forma pura que nada significa é a
teoria da iconicidade de Peirce. Iconicidade, na tradição recente da semiótica visual, opõe-se à
noção da forma pura que nada representa. Icônico, nesta estrutura, significa ‘figurativo’ e
refere-se a signos que representam seu objeto por similaridade.

5.1. Teoria da iconicidade pura de Peirce


Apesar disso, esta definição de iconicidade é apenas parcialmente aquela cunhada por
Peirce. Ele estabeleceu a distinção entre a iconicidade de um ícone puro e uma outra
iconicidade de um signo que ele chama de hipo-ícone; segundo esta distinção, apenas um
hipo-ícone é um signo que representa por similaridade (CP 2.276). Na verdade, similaridade
não é o critério central da iconicidade de que fala Peirce. O caso limite da iconicidade total e
simultaneamente intangível é o ícone puro, ao passo que os signos icônicos por similaridade,
que Peirce chama de hipo-ícones, são definidos como íconos misturados, isto é,
imperfeitamente icônicos. Em oposição ao ícone puro, o hipo-ícone é apenas similar ao seu
objeto. Há uma escala de iconicidade da hipo-iconicidade à pura iconicidade, abrangendo
desde hipo-ícones que compartilham apenas algumas características com seus objetos a até
ícones puros, que não mais são diferentes de seus objetos, e no final desta escala, o ícone puro
é uma mera abstração.
O ícone puro é mais que meramente similar ao seu objeto. Ele concretiza sua função
semiótica “em virtude de um caráter que possui em si mesmo”, para que este ícone “não faça
distinção alguma entre si e seu objeto”, como diz Peirce (CP 5.73-74), e conclui: o ícone puro
“é uma questão de mera talidade”. Signo e objeto fundem-se em um (Santaella 1995: 143), e o
ícone puro vem a ser seu próprio objeto, referindo-se a nada além de si mesmo (cf. CP 2.230).
Somos então confrontados com um signo auto-referencial ou auto-representante (Ransdell
1979: 57). Peirce resume estas características da iconicidade pura quando afirma que o ícone
puro é um signo “em virtude uma imagem imediata, quer dizer, em virtude dos aspectos que a
ele pertencem em si como um objeto sensível, e que ele possuiria do mesmo modo se não
houvesse objeto algum na natureza ao qual se assemelhasse” (CP 4.447).
No contexto de sua definição de ícone puro, Peirce mais uma vez introduz seu
conceito de forma ao afirmar que “a forma do ícone [...] é também seu objeto” (CP 4.531), e
mais especificamente: “Ícones não podem representar nada além de formas e sentimentos. [...]
Nenhum ícone puro representa algo além de formas; nenhuma forma pura é representada por
algo além de ícones.”

5.2. Signos abstratos e formas puras como aproximações de ícones puros


O ícone puro então não é, na verdade, um signo figurativo, mas auto-referencial, e o
signo abstrato, como definido na semiótica visual, aproxima-se do ícone puro peirceano.
Apenas aproxima-se, e não pode ser realmente um ícone puro, pois um ícone puro sem
qualquer referência a outra coisa pode existir somente por aproximação. A razão pela qual,
por exemplo, até a percepção de uma figura geométrica abstrata envolve apenas
aproximadamente a percepção de um ícone puro, é que um ícone puro “não pode comunicar
informação positiva ou factual alguma” (CP 4.446), e não deve transmitir qualquer idéia de
generalidade, ambas as quais ocorrem se nos referimos a tais formas, por exemplo, como
“círculos amarelos” ou “quadrados azuis”. Peirce explica este último critério:
Ícones são completamente substituídos por seus objetos de tal maneira que
quase não se distinguem deles. O mesmo se observa nos diagramas de geometria.
Efetivamente, um diagrama, na medida em que tem uma significação geral, não é um
ícone puro; mas na metade de nosso raciocínio nos esquecemos da abstração em
larga medida, e o diagrama se torna a própria coisa para nós. Assim, na
contemplação de uma pintura, há um momento em que perdemos a consciência de que
ela não é a coisa, a distinção entre o real e a cópia desaparece, e por um momento é
um sonho puro — não alguma existência particular, e ainda assim não geral. (CP
3.362)
Por “existência particular,” Peirce entende uma característica dos signos indexicais;
por “generalidade,” entende uma característica dos signos simbólicos. Pinturas abstratas,
embora se aproximem a ícones puros, ainda assim evidenciam também simbolicidade e
indexicalidade (cf. também Santaella & Nöth 1998). Além da idéia de generalidade, que
desempenha um papel quando a forma pura é interpretada em termos de sua cor e forma, há
também um elemento de convencionalidade, que é uma outra característica da simbolicidade
(CP 2.276): uma pintura abstrata é convencional uma vez que pertence a uma tradição ou
escola na história da pintura, é emoldurada como outras pinturas e, como em outras pinturas,
tintas a óleo são usadas sobre a tela, etc. Portanto, à medida que figuras abstratas comunicam
idéias gerais e convencionais, também são signos simbólicos. Além disso, elas também
podem comunicar informação factual, o que as torna signos indexicais; por exemplo,
comunicam informação sobre a obra de seu pintor, seu valor, origem, etc. Apesar disso,
iconicidade é uma questão de grau, e ao longo da escala que vai do ícone puro aos hipo-ícones
imperfeitamente icônicos, o elemento de auto-referencialidade nas formas abstratas está no
pólo da iconicidade pura.
Tradução: Ricardo Chachá

Referências
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Nota Biográfica

Winfried Nöth é professor de Linguística e Semió tica e diretor do Centro


Interdisciplinar de Estudos Culturais da Universidade de Kassel, professor visitante na
PUC de Sã o Paulo e membro honorá rio da Associaçã o Internacional de Semió tica Visual.
Livros em português: Panorama da semiótica de Platão a Peirce (1995), A semiótica no
século XX (1996), Semiótica: Bibliografia comentada (1999, com Lucia Santaella),
Imagem: Cognição, semiótica, mídia (4ª ed. 2005, com Lucia Santaella), Semiótica e
comunicação (2004, com L. Santaella) e Manual da Semiótica (no prelo, [EDUSP])
<http://www.uni-kassel.de/~noeth>.

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