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PETER SINGER
Nos diversos ‘Prefácios’ de Libertação animal – incluindo o usei a expressão ‘libertação animal’ em uma publica-
da edição do 40º aniversário –, nota-se que o senhor não ção, e isso rendeu cartas positivas dos leitores, incluin-
estava envolvido com animais até o período de sua pós- do uma de um editor de uma editora importante, su
-graduação em Oxford e seu contato com colegas de lá. gerindo que valeria a pena fazer uma monografia sobre
Quando e por que o senhor começou a se importar com os o tema. Isso levou ao meu livro Libertação animal.
animais não humanos? Sim, isso está correto. Claro que,
como qualquer pessoa decente, eu era contra a extrema O senhor acha que o movimento de libertação animal foi, de
crueldade com os animais, mas eu sempre tinha comido algum modo, influenciado pelo ‘espírito da época’ do final
carne e não via nisso nada de errado. Eu pensava que da década de 1960 e começo da seguinte, como a luta pelos
os animais que comia tinham vidas boas e eram mortos direitos civis, movimento hippie, psicodelia, bem como cul-
sem sofrimento. Mas um encontro por acaso com Ri- tura e filosofia orientais? A luta pelos direitos civis cer-
chard Keshen, estudante canadense de pós-graduação tamente desempenhou um papel. O movimento de li-
que então já era vegetariano, fez-me entender que esse bertação animal é uma extensão do movimento negro
não era o caso – milhões de animais eram manti- e do movimento feminista daquele período. Mas não
dos enclausurados ao longo da vida, tendo vidas mi acho que esteja associado à psicodelia ou à cultura e
seráveis e sendo tratados como se fossem máquinas filosofia orientais. O movimento é bem mais rigoroso
para transformar grãos ou outro tipo de comida barata do que o termo sugere – e isso porque está funda
em produtos caros, como carne, ovos e leite. Foi essa mentado no tipo de filosofia que se desenvolveu em
descoberta que deu início à minha investigação sobre países falantes da língua inglesa, denominado filoso-
as nossas atitudes em relação aos animais e sobre a éti- fia analítica.
ca de como nós deveríamos tratá-los.
No ‘Prefácio’ da edição do 40º aniversário de Libertação
Por que o senhor decidiu escrever a resenha do livro Ani- animal, o senhor escreveu que não esperava duas coisas
mals, men and morals (Animais, humanos e moral) [publica- sobre o livro: as várias edições até hoje e a versão eletrô-
da em The New York Review of Books em 05/04/73]? Como nica dele. No entanto, olhando para o passado, o que aque-
essa resenha abriu caminho para a publicação de Liberta- le jovem filósofo de 29 anos realmente esperava com essa
ção animal, dois anos mais tarde? O livro Animais, huma publicação? Eu não sabia o que esperar. Em meus sonhos
nos e moral era uma coleção de ensaios editados por mais alucinados, pensava que todos os que lessem o li-
amigos meus que eu havia conhecido por meio de Ri- vro iriam parar de comer carne e, então, eu o empres-
chard Keshen. Eles tinham esperança de que o livro iria taria aos meus amigos, que iriam fazer o mesmo...
levar a uma mudança em nosso pensamento em rela- E assim por diante. Mas, em meus momentos mais te-
ção aos animais, mas, quando a obra foi publicada, na nebrosos, achava que o livro poderia simplesmente
Inglaterra, ela passou despercebida – sem resenhas em desaparecer, sem menção, como o que ocorreu, na In-
jornais ou revistas. Foi como se o livro não existisse. Isso glaterra, com Animais, humanos e moral, porque os ani-
ocorreu porque, à época, ninguém levava a sério ques- mais não eram ainda levados a sério como uma
tões sobre como deveríamos tratar os animais. Mas, questão ética ou política.
então, meus amigos ficaram sabendo que o livro deles
havia sido publicado nos Estados Unidos. Tive a ideia Hoje, nas mídias sociais, muitas organizações e um imenso
de escrever para o editor do The New York Review of número (talvez, milhões) de pessoas defendem os direitos
Books para chamar a atenção dele para aquele livro e a libertação dos animais não humanos. Mas esse movi-
importante e me oferecer para resenhar a obra. Por sor- mento parece profundamente fragmentado. O senhor acre-
te, ele percebeu que valia levar a sério o tema e me con dita em uma unificação desse movimento? Não, não acre-
vidou para fazer uma resenha. Foi a primeira vez que dito. O movimento é amplo e é saudável que tenha um >>>
Muitos dos experimentos que descrevi à época no livro não seriam realizados
com animais. Do mesmo modo como nas fazendas industriais, há ainda um longo
espectro de visões diferentes. O mesmo pode ser dito forma para animais não humanos? Suponho que a princi-
de vários outros movimentos, nos quais há discordân- pal razão é que a maioria de seus seguidores comam
cias. Seria bem desafortunado ver diferentes setores carne, e os líderes dessas religiões não querem perdê-los
desse movimento desperdiçando mais tempo e energia ao apoiar a igualdade de direito com os animais. Mas,
atacando uns aos outros do que atacando um inimigo curiosamente, o catecismo [exposição da fé e da doutri-
comum, isto é, aqueles que exploram os animais. Não na] da Igreja Católica Apostólica Romana diz: “É
vejo isso acontecendo; pelo menos, não em uma escala contrário à dignidade humana fazer os animais sofrerem
suficientemente grande para me causar preocupação. ou morrerem desnecessariamente”. O papa Francisco
repetiu isso em sua encíclica recente, Laudato Si, e che-
Em relação à causa do movimento de libertação animal, qual gou até a ‘tuitar’ isso. Mas o fato é que não precisamos
avanço mais o impressionou nestas últimas quatro décadas? comer os animais; então, se os católicos levassem isso a
As reformas mais impressionantes vieram da Europa. sério, eles deveriam ser vegetarianos.
A Comunidade Europeia inteira – todas as 28 nações,
da Grécia à Finlândia e de Portugal à Polônia – livra Um tópico que suscita discussão é se o utilitarismo admiti-
ram-se das gaiolas em bateria para as galinhas bota- ria a experimentação com animais em vista da maximização
rem ovos, do estábulo de gestação para as porcas grá de benefícios – por exemplo, testar uma vacina em 10 cães
vidas, bem como de estábulos individuais. Como con para salvar milhares de crianças. Haveria uma hipótese na
sequência, centenas de milhões de animais estão so qual a instrumentalização dos animais seria eticamente
frendo menos. Eles ainda estão enclausurados, em fa- aceitável? Faço objeção ao termo ‘instrumentalização’
zendas industriais, o que não é bom, mas as reformas aqui, mas é verdade que, dados certos fatos, o utilita-
foram um progresso real. E, agora, reformas similares rismo aceitará o uso de animais em alguns tipos de ex-
estão ocorrendo na Califórnia e se espalhando por to- perimentos, se isso for o único modo de salvar um nú-
dos os Estados Unidos. mero muito maior de outros [seres] de um mal equiva-
lente. De modo similar, se assumirmos alguns fatos
Como o senhor vê o papel da ciência em relação à expe hipotéticos, o utilitarismo irá, em algumas situações,
rimentação animal desde que seu livro foi publicado? Cien- aceitar o uso de humanos em determinados experimen-
tistas, agora, levam o bem-estar dos animais mais a tos. Devo enfatizar que não estou dizendo que nenhum
sério do que o faziam em 1975. Muitos dos experimen- desses dois conjuntos de fatos realmente tem vínculos
tos que descrevi à época no livro não seriam realiza- com a realidade. Estou apenas discutindo – como vocês
dos hoje, porque não seriam aprovados pelos comi- disseram – uma hipótese, isto é, um conjunto de fatos
tês de ética em experimentação com animais. Do mes- hipotéticos.
mo modo como nas fazendas industriais, há ainda um
longo caminho a percorrer, mas os avanços têm sido Alguns autores defendem que o movimento de libertação
significativos. animal levaria a humanidade a um tipo de Novo Éden, no
qual humanos e não humanos viveriam em harmonia. Isso
Ao longo da história, as três grandes religiões monoteístas soa, de certo modo, como a mesma promessa das chamadas
(cristianismo, judaísmo e islamismo) têm pregado a não Grandes Utopias (nazismo, comunismo e globalização). O
violência, condenado a tortura e crueldade e apoiado a senhor acredita que um movimento político em torno do
igualdade de direitos. Por que essas religiões – e até as movimento de libertação dos animais poderia nos levar a
filosofias orientais – têm resistido em estender essa plata- essa ‘Nova Era’? Eu não acredito nisso.