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MUNIC1PIO - CRIAÇÃO - NATUREZA JUR1DICA - LIMITES'


DO PODER DO ESTADO FEDERADO - DIREITO AO TER-
RITÓRIO
- A realização das condições de fato, previstas na lei,
não confere à povoação de um território o direito de ser
Município, não dá nascimento a um direito subjetivo pú-
blico, correlato à obrigação do Estado de proferir o ato
solene de declaração da autonomia municipal.
- Embora a criação de um Município tenha caráter
constitutivo, pressupondo a realização de determinadas con-
dições sócio-econômicas, nem por isso, ou por isso mesmo,
deixa de estar subordinada a certos limites.
PARECER
CONSULTA da Lei estadual n.O 1. de 18 de setembro
1. Segundo me é relatado pelos dig- de 1947, com a redação da Lei n.O 2.081.
nos representantes do Município de Gli- de 27 de dezembro de 1952.
cério, um de seus antigos distritos, o de Isto exposto, perguntam-me:
Braúna, pleiteou a sua elevação à cate- a) Se a alteração das divisas. pro-
goria de Município, de modo a abranger, cessada ilegalmente, atentou contra um
em seu território, também o de Luisiânia. direito fundamental do Município, com
Em virtude dos resultados dos plebis- desrespeito de sua autonomia.
citos realizados nos limites da circuns- b) Quais os remédios legais de que
cricáo do distrito de Braúna, foi a pre- pode lançar mão a Municipalidade de
tensão desta comunidade acolhida pela G1icério na defesa de seus direitos.
Lei n.O 2.456, de 30 de dezembro de 1955,
a qual, nas "Notas" do Anexo n.O I, item
100, assim dispõe: PARECER
"0 MunIcípio de Braúna é criado com 1
sede na vila do mesmo nome e com o
território do respectivo distrito." 2. A resposta à Consulta supra im-
Isto não obstante, o Anexo n.O 2 da plica na necessidade de determinar-se,
mesma lei velo surpreender a população com o possível rigor, a natureza jurídica
de Glicério pela fixação de novas divisas do ato pelo qual o Estado dá nascimento
entrf" ~ste Município e o de Braúna, de a uma nova entidade municipal.
manelrfl a transferir a êste uma imensa 3. A criação de um município, ou se-
e rica região, de vital interêsse para a ja, o aparecimento de uma nova pessoa
municipalidade matrIz. jurídica de direito públiCO de base ter-
O motivo dessa mutilação indevida do ritorial na ordenação de um Estado, não
territórIo de Glicério prende-se, segun- constitui problema puramente jurídico.
do se alega, a exigências de ordem geo- Trata-se de questão eminentemente "po-
gráfica, mas, na realidade, nenhum aci- lítica", tomado êste têrmo na sua acep-
dente geográfico permanente e fàcil- ção genérica, pois se a Política ou Ciên-
mente identificável autorizou tão pro- cia do Estado não abrange e integra em
funda ofensa aos direitos de um MunI- síntese todos os elementos sociais e eco-
cípio à integridade de seu territórIo. nômicos, históricos e éticos, jurídicos,
O que é maIs grave, consoante a expo- geográficos, demográficos ou étnIcos de
sição oral que me foi feita e resulta do qualquer esfera de realidade humana,
Memorial já oferecido ao exame do Go- não pode deixar de levá-los em conta,
vêrno do Estado, a transferência para como dados essenciais ao alcance de seu
Braúna de uma parte Imensa de Gl1cé- objetivo prec1puo, que é o bem comum
rio importou no deslocamento da linha da sociedade.
divisória, fixada em 1948, para muito Quer isto dizer que, no ato do reco-
mais de 200 metros, contrarIando, aSSlm, nhecimento das condições de fato, in-
o disposto no art. 2. 0 , parágrafo únIco dispenSáveis para se conferir a uma co-
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'munhão de homens a dignidade de mu- ou outorgando, discricionàriamente, a


nicípio, a decisão do estadista depende dignidade da autonomIa municipal às
de um sistema de múltiplos elementos comunidades que nêles se formam.
que se conjugam e se completam, sendo 4. A realização das condições de fato,
impossível fixar, em normas genéricas de previstas 11a lei, não confere à povoaçll.o
·caráter absoluto, o seu número, influên- de um território o direito de ser munt-
cia e natureza. Em última análise, o que cípio, ou seja, não dá nascimento a um
'prevalece é sempre o critério de oportu- direito subjetivo público. correlato à obri-
nidade ou conveniência político-social, gação do Estado de proferir o ato solene
que se afirma perante cada hipótese em de declaração da almejada autonomia
-exame, em função das circunstância pe- municipal. Daí a afirmação categórica
.culiares aos diferentes casos concretos. de Pontes de Miranda, que sob êste pris-
A formação de um novo município ma se nos afigura procedente: "O mu-
pressupõe uma realidade complexa e mul- nicípio de hoje existe porque a lei quer"
tiforme, insuscetível de enquadramento <Comentários á Constttuição de 1946, vo-
nas estruturas genéricas das normas de lume I, pág. 478).
Direito. A experiência social, com o seu No Direito brasileiro. o poder de crIar
ineditismo permanente, jamais poderia "municípios" como entidades jurídicas•
.ajustar-se a moldes gerais necessària- antes cabia às províncias e passou, com
mente abstratos e uniformes, máxIme no a República, para os Estados federados.
Brasil, onde as cidades se multipl1cam ]j; uma faculdade discricionária de agtr
dia a dia, estacionando-se uma, em pro- que não pode ser exercida desprezando
gresso vertiginoso ou em impressionante condições legalmente estabelecidas. Não
regresso outras, por fõrça das mais im- lhe corresponde, pois, um ato exigível
previstas e desconcertantes conjunturas. por qualquer porção do território esta-
Dai a especIal natureza dos preceitos dual, a não ser que a constituição mes-
legais concernentes à matéria da "cria- ma do Estado o estabeleça expressa-
-ção dos municípios", estabelecendo ape- mente, o que seria êrro imperdoável.
nas condições mínimas. sem as quaIs a Tratando desta matéria, o ilustre Len-
personalidade jurídica municipal não po- tini observa:
<le surgir; mas condições que por si sós, "Le modificazioni delle circoscrizionl
pelo simples fato de sua verificação, não territoriali di cui ci siano occupati, an-
determinam imperativamente o ato so- che quando eventualmente v1 concorra-
lene do reconhecimento do Estado, com no manifestazioni di volontá degli enti
-o qual se completa e se configura a en- interessati, non sI verificano se 110n In
tidade autõnoma. forza di manifestazlone di volontá dello
A "pessoa jurídica" é uma crIação do Stato che ha carattere discrezionale e
Direito e não uma situação de fato. A costitutivo" (lstituzione di Diritto Am-
nota de "juridicidade" é .algo que se acres- ministrativo", 1939, voI. I, pág. 376).
centa à realidade social, dando-lhe uma Como observa ainda o mesmo autor,
dimensão eflpecífica. Vézes há em que ao as condições ou limites mínimos vin-
Poder Público não é lícito contestar ou culam a ação do Estado no sentido de
negar a qualidade de pessoa a certos que o Poder Público não pode preSCIn-
entes ou entidades <todo homem, por dir dêles ("requisiti essenziali vincolatl-
exemplo, é, hoje em dia, sujeito de di- vi") ao passo que a atividade estatal é
reitos e obrigações pelo simples fato do discricionária em se tratando de "reqUl-
nascimento com vida) mas, outras vêzes, siti essenziali di opportunitá". Mesmo
os órgãos estatais exigem a satisfação de aquêles vínculos, porém. são meramente
determinados requisitos, e, outras ainda, negativos, porque não asseguram ao ter-
reservam-se prudentemente a faculdade ritório a faculdade de exigir que a cria-
de conferir, ou recusar personalidade, ção do muniCípio se positive.
não obstante situações de fato plena- No mesmo sentido é a lição de Zano-
mente configuradas. bini, o mest.re de Direito Administrativo
Dentre êsses atos de discricionarleda- da Universidade de Roma:
de destaca-se, pela sua Importância e "Mentre le cause (de formação de mu-
conseqüência, o que os Estados da Fe- nicípios) sono puramente di fatto, le
deração brasileira exercem, recusando trasformazioni non possono verificarsi se
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non in forza di atti di volontá dello Sta- a teoria oposta que considera o municí-
to, i quali hanno sempre carattere dis- pio uma simples entidade política, "cria-
crezionale e costitutivo" (v. Corso di Di- da" pelo Estado, podemos colocar uma.
ritto Ammtnistrativo, 1946, voI. IlI, pá- corrente intermediária, segundo a qual a
gina 215, cir., também, Francesco D'Ales- comuna é uma criação do Direito que
sio, Dtrifto Amministrattvo, voI. I, pá- pressupõe uma formaç!!.o natural, sendo
ginas 404 e segs.). derivado o pOder político por ela exer-
Quem, porém, a nosso ver, com gran- cido.
de penetração cuidou dos aspectos legais Alguns preferem dizer que o Estado
da formação dos municípios, e especial- "reconhece", mas não "cria" o município:
mente da natureza jurídica do ato esta- "Não é criado pela lei, diz Mário Ma-
tal de reconhecimento da autonomia mu- sagão, muito embora as leis de vários
nicipal, foi o Professor Luigi Raggl, que Estados pretendam criar municípios e
dedica o 2.0 volume de seu Diritto Ammt- usem da palavra criaç!!.o a propósito do
nistrativo às autarquias territoriais, que reconhecimento da existência dessas en-
tais se consideram os municípios no di- tidades. O Município nasce e surge em
reito italiano. consequencia de elementos puramente
Aponta o ilustre mestre da Universi- objetivos, a saber, de circunstâncias de
dade de Gênova o equIvoco daqueles que população, de desenvolvimento econômi-
sustentam que o Município representa co, de situação topogrâfica. sob a. In-
uma "formação natural", de sorte que fluência do clima e de outros fatores na-
o ato do Estado, atribuindo foros de au- turais resultantes da fixação de um n11-
tonomia a um território seria mera- cleo de população sôbre um determinado
mente declarativo, ou de pura verifica- ponto do território. Somente depois que
ção de condições objetivas corresponden- essas condições naturais, êsses elementos
tes às hipóteses legais. objetivos da existência do municlplo se
Sustenta êle o ponto de vista por nOs manifestam, depois que êsses elementos
adotado e que concorda com a praxe estão perfeitamente caracterizados, a lei
administrativa brasileira, de que, do Estado o que faz é reconhecer a exis-
quando o Estado estabelece limites ou tência do município" (Preleções de Di-
condições para a criação de municípios, reito Administrativo, 1937, pág. 128).
não faz senão fixar a "latitude de sua Na mesma ordem de idéias, Gustavo
discricionariedade". O Estado, em suma, Ingrosso declara:
não se restringe a certificar simples- "Dire che gli enti autarchici terrlto-
mente a existêncía das condições previs- ria li sono organi costituzionali significa
tas, porque lhe cabe apreciar e avaliar accogUere con forte limitazione la dottrl-
tais condições, reconhecendo-as ou não na giuridica per la quale lo Stato crea
segundo um critêrio superior de oportu- quegli organi. Che il loro ordinamento
nidade politlca: o ato de reconhecimento e la loro attivitá siano regolati deI ãi-
da personalidade das entidades autâr- ritto obbietivo é un presupposto che non
quicas territoriais é, pois, discricionário include l'altro presupposto che essi trag-
e constitutivo (v. Raggi, 00. cit., voI. lI, gano la ragion della 101'0 esistenza dalla
Parte lI, pág. 105 e segs.). legge. Questa trova la istituzioni locall
Dentro de tais pressupostos, o Estado originarie e le rlconosce. non le crea".
poderá até mesmo considerar inoportu- (Cfr. La posizione costituzionale degli
na a revisão do quadro territorial e ad- cnti autarchici territoriali, 1920, pág 12).
ministrativo em uma dada época. ainda ~ste modo de ver, diga-se de passa-
que prefixada em lei. gem, sustentando a prévia existência na-
~sse poder discricionário não exclui, tural de um Município, ao depois apenas
entretanto, a existência de condições ob- reconhecida pela ordem jurídica, pren-
jetivas. Quando, em verdade, dizemos de-se, de certa forma, a uma concepção
que o Estado "cria" o município, refe- de Upo jusnaturalista, na sagaz observa-
rimo-nos à "entidade jurldica", ou seJa, ção de Hans Kelsen. O antigo mestre
fazemos uma afirmação do ponto de da "Reinechtslehre" observa, com efeito.
vista jurídico-formal. Entre a velha con- que, na apontada doutrina, "a ordem es-
cepção de um "direito natural" das co- tat.al, a ordenação do Direito Positivo é
)T'unas, anterior ao Direito do Estado, e contraposta a uma ordem local dela dis-
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tinta, derivada da natureza das coisas. jurídica conferida às entidades autôno-


Assim como o Direito Natural - de acõr- mas. Uma primeira e velha corrente,
do com a sua orientação fundamental- apegada a subentendidos pressupostos
mente individualista - aceita uma sub- jusnaturalistas, concebe tais entidades
jetividade juridica fundada na existen- como extra-estatais ou pré-estatais, de
eia natural do homem psico-fisico, dis- sorte que se abre, como observa Kelsen,
tinta, portanto, da ordem jurídica posi- "um dualismo teoreticamente inadmissi-
tiva, do mesmo modo afirma hoje uma vel de dois sistemas normativos, atrás do
administração local independente da or- qual se oculta a antítese entre os prin-
dem juridica estatal, fundada em um da- cípios de organização autocrática e de-
do natural sociológiCO, cujo conteúdo é mocrática" (cf. Kelsen, Teoria General
aceito integralmente pela legislação po- del Estado, pâg. 460).
sitiva, que se limita a reproduzi-lo" Uma segunda corrente, no extremo
(Teoria General del Estado, 1934, pa.- oposto, dando à qualidade de pessoa ju-
gina 245). ridica mero valor técnico e pragmático,
Entende Kelsen, ao contrário, que o a serviço de exigências da descentrali-
Município não é senão uma expressão da zação administrativa, vê os municípios
ordem jurídica estatal, válida e autôno- apenas como órgãos derivados do Esta-
ma como elo de um sistema unitário de do, ou melhor, como graus periféricos da
normas. unidade estatal, incompatível com qual-
A essa concepção podem aproxImar-se quer formação interna dotada de outra
outras, menos densas de conteúdo teO- autonomia, que não seja reflexo ou ou-
rico, IIlas não menos radicais em subor- torga do poder constitutivo.
dinar a criação e alteração da entidade
municipal ao poder do Estado. ,Nesse Uma terceira corrente, sem contrapor
sentido, por exemplo, assim se express~ os corpos autônomos ao Estado, mas
Zink: também sem os integrar na disciplina
"As in the case of countrIes, cities are hierárquica da Administração, reconhe-
the legal creations of states. Rence theIr ce, de outro lado, que a personalidade
very existence in the first place as well jurídica do município expressa uma in-
as their governamental structure and dividuação, um conjunto coerente e uni-
powers depend upon the will of the state tário de normas de direito consagrado-
in wich they are located" (Zink, Govern- ras de uma unidade histàricamente cons-
ment and Palites in the United States, tituída, e, de outro, que, apesar de com-
1947, pág. 934). petir-lhe uma esfera de ação como sua.
A divergência talvez seja mais apa- e própria, o critério mesmo da persona-
rente do que real. Quando o Estado re- lidade jurídica pressupõe o conceito ge-
conhece a existência de condições obje- ral de Estado: a validade da personali-
tivas de ordem social, econômica, demo- dade jurídica municipal explica-se em
gráfica, etc. cria a personalidade jurídica função de sua inserção no sistema juri-
municipal. Não há que confundir o as- dico superior do Estado a que pertence,
pecto social com o aspecto jurídico da m:1S com ordenamentos juridicos autô-
questão, poIs todo fenõmeno jurídico é nomos e coexistentes.
tridimenclonal, pressupondo uma ordem 6. Do exposto resulta que, embora a
de fatos integrada normativamente se- criação de um município tenha caráter
gundo valores a realizar. Se à faculdade constitutivo, pressupondo a realização de
estatal de reconhecer a autonomia não determinadas condições sócio-econômicas,
corresponde, por parte da convivência nem por isso, ou por isso mesmo, deixa
humana que a pretende, uma faculdade de estar subordinada a certos limites.
de exigi-la, por mais que sejam perfeitas Desnecessário se toma apontar a dife-
as condições objetivas, é sinal que o ato rença essencial entre ato discricionário e
de reconhedmento implica em uma cria- ato arbitrário, caracterizado êste como
cão no plano normativo: dessarte, o ato sendo o ato que, no dizer preciso de Ru-
de reconhecimento não é declaratório, dolf Stammler, é "norma de si mesmo",
mas constitutivo. ou seja, não está sujeito senão à impre-
5. Três são, pois, as atitudes possíveis, vista e imprevisível vontade de quem o
nesta matéria, em face da personalidade pratica, sem normas delimitadoras dessa
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opção ou preferência (cf. Lehrbuck der qualquer território, sem a preVla deter-
Rechtsphilosphie, § 48). minação de suas linhas divisórias?
Nos atos discricionctrios, o que fica à Daí a oportuna reforma da Lei Orgâ-
discrição da autoridade é a escolha desta nica, pela Lei n.o 2.081, de 27 de dezem-
ou daquela outra vIa, que se abram no bro de 1952, estabelecendo que apenas
âmbito das possibilidades legais, ficando distritos ou subdistritos podem ser ele-
a decisão subordinada a razões de con- vados à categorias de município (art. 1.0).
veniência, de necessidade ou de oportu- Com essa providência, ficou em vigor
nidade, em função do bem público, sem a regra segundo a qual se processa uma
ser dado a outros Poderes ou a parti- ascenção gradual na escala da emanci-
culares, em princípio, contestar o acêrto pação política e administrativa, que vaI
da eleição feita, salvo, é claro, o caso de de uma região não circunscrita até ao
abuso de poder. município, passando pelo seu prévio re-
Ora, no que tange à criação dos muni- conhecimento como "circunscrição" sub-
cípios, - se é certo que a unidade fe- distrital ou distrital.
derada, no exercicio de suas atribuições 7. Por conseguinte, desde 1952 é o DIs-
institucionais, pode acolher ou não a trito que se converte em Município,
pretensão dos moradores no sentido de mantidas, em princípio, as suas linhas
sua emancipação político-administrativa, divisórias anteriores. ll: o que decorre dos
não é menos certo que tal decisão se expressos têrmos do art. 2.0 da Lei Orgâ-
subordina, necessàriamente, a determi- nica, conforme sua nova redação, e no-
nadas condições, como sejam, a popula- tadamente do parágrafo único, assim re-
ção mmlma de 5.000 habitantes; renda digidO:
não inferior a Cr$ 300.000,00 mensais; "Deslocar-se-á a linha divisória até
distância de mais de 12 quilômetros da 200 metros para mais ou para menos,
cidade-sede do município desmembran- entre o novo município e aquêle de onde
do; pronunciamento favorável da popu- se desmembrou, sempre que seja possível
lação interessada, mediante plebiscito; e, aproveitar acidentes geográficos perma-
"last no least", que o território em ques- nentes".
tão já tenha antes assurgido à categoria Pela leitura dêsse texto desde logo se
de subdistrito ou de distrIto. verifica que a variação de 200 metros,
Esta última exigência é a que apre- para mais ou para menos, representa
senta mais direto lnterêsse para o ob- uma garantia de estabilidade de divisas
jeto da Consulta, merecendo uma espe- entre o novo e o antigo município, res-
cial atenção. peitados assim, os perimetros dos dis-
Quando da promulgação da Lei Orgâ- tritos.
nica dos Municípios de São Paulo, em Não é possível, pois, a pretexto de con-
18 de setembro de 1947, entendeu o le- veniências técnico-geográficas, desprezar
gislador de possibilitar a transformação aquêle limite legal: qualquer alteração
de "qualquer território" em entidade mu- para mais ou para menos, que a lei con-
nicipal. Essa faculdade esbarrou, desde sagre, representa ofensa iniludível ao pa-
logo, com óbices no plano jurídico e prá- trimônio geoeconômico do município, en-
tico. volvendo violação da autonomia muni-
Em primeiro lugar, com tôda proce- cipal.
dência se argüiu a inconstitucionalidade 8. Irrecusável se nos afigura o direito
da Lei Orgânica, visto como, nos têrmos do município ao próprio território: é um
do art. 73 da Constituição do Estado, se direito da essência mesma de sua estru-
impunha que, mediante plebiscito de con- tura política, constituindo, no dizer pa-
sulta, houvesse a anuência das "popu- cífico dos autores, um de seus elementos
lações da circunscrição cuja situação se constitutivos.
pretenda alterar", de modo que não po- ll: com apoio no elemento territorial
dia a lei ordinária referir-se, indiscri- que se desenvolve a distinção entre as
minadamente, a "qualquer território". duas grandes categorias de autarquias:
Por outro lado, se sàmente os distritos as territoriais e as institucionais, as prt~
e subdistritos possuem área e divisas cer- meiras abrangendo especialmente as en-
tas, como realizar-se um plebiscito em tidades comunais ou municipais.
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Apreciando a natureza dos municípios o território (cf. Revista Forense, voI. 147,
como "entidades autárquicas territoriais", pág. 20).
Rafael Bielsa pondera que estas não se 9. Ora, essa vinculação essencial en-
caracterizam só por desenvolverem a sua tre o município e o seu território, acen-
atividade em um dado território (o que tuada até mesmo em países onde o mu-
poderia ocorrer também com alguns ti- nicipio não representa senão um fenô-
pos de autarquias institucionais), mas meno de descentralização administrativa,
sim pelo papel que o território nelas re- cresce de ponto no Brasil, onde o Muni-
presenta: "el territorio es siempre ele- cípio desempenha também funções polí-
mento integrancial de la personalidade ticas. como entidade autônoma mais do
de la entidade autárquica territorial; que autárquica. Para empregarmos ex-
dentro deI territorio ella tiene verda- pressões de Pontes de Miranda, diremos
dera jurisdiscion administrativa general" que em nosso paIs "o município é enti-
(Bielsa, Derecho Administrativo, 4." ed., dade intra-estatal rígida como o Estado-
t. lI, pág. 12). Membro" (Comentários à Constituição
Também Luigi Raggi acentua a essen- de 1946, voI. I, pág. 486).
cialidade do território como elemento In- Assim sendo, se o município, no dizer
tegrante da personalidade jurídica mu- preciSO de V. E. Orlando, possui um di-
nicipal: reito sôbre o próprio território, da essên-
"Ma nel Comune (come nello stato) cia mesma de SUa personalidade jurídica,
certamente há anche importanza l'ele- que restaria de sua autonomia, tão sole-
mento territoriale e la caratteristlca per- nemente proclamada na Carta Maior, se
sona giuridica territoriale. fôsse lícito considerar letra morta as leis
disciplinadoras das alterações no elemen-
Che questo elemento sla essenzlale da to territorial?
un punto di vista oggettivo cl vlen di- O território de uma entidade política
mostrato daI fatto che una mutazlone autônoma, com as garantias constitucio-
territoriale produce il cambiamento d1 nais que cercam a sua existência, só po-
nn Comune. C'é invero una relaztone de sofrer diminuição em virtude de lei
tale tra associazione comunale e terri- própria, que atenda, desde a sua origem,
torio, che dá aI Comune caratteristiche a tôdas as exigências consagradas pela
proprie come le dá allo Stato, slcché Constituição do Estado e por suas leis
non pare errata la opinione di coloro complementares, entre as quais sobres-
che affermano doversi tali enti ascrlve- sai a "Lei Orgânica dos Municípios".
re a una categoria a sé: quella degli Se o poder de criar municípios é dis-
enti territoriali; persone giuridiche difi-
cricionário, pois o Estado decide livre-
nibili come associazioni che perseguono mente sôbre a conveniência ou não da
publici scopi; ma che hanno col terrt- medida solicitada pelos habitantes de um
torio una adereza specifica" (cf. Raggl,
Distrito, não é menos certo que não esta-
Dtritto Amrninistrativo, voI. lI, Il Co-
mos diante de um poder arbitrário que
mune, 3." ed., pág. 75 e seg.' . trace a si próprio as suas leis, a seu ca-
Igualmente, o insigne V. E. Orlando pricho e talante.
acentua que as autarquias territoriais, 10. Não é, aliás, apenas em São Paulo
como os municípios, exercem "un diritto que se exige a anuência expressa das
sul territorio proprio, il quale serve anche populações. Nos Estados Unidos da Amé-
a delimitare la estensione dei poteri e rica do Norte, onde a autonomta mun1-
degli obblighi e costituisce un elemento cipal não tem as galas de "principio
inseparabile dalla essenza della perso- constitucional", mas é imperativo histó-
nalitá giuridica dell'ente" (Principii di rico de convivência poUtica, não se alte-
diritto amministrativo, 5." ed., n.O 230, ram as divisas das entidades adminis-
pág. 148). trativas locais, desde as "countries" até
Em artigo recente sôbre a estrutura po- aos "villages and borroughs" sem o voto
lítica do município brasileiro, Orlando popular:
M. Carvalho considera-o expressivamente 1) "New countries may not be establi-
"um terceiro grau de circunscrição terri- shed 01' the boundaries of existing coun-
torial", pondo em realce a correlação ne- tries changed without the consent of the
cessária entre a sua estrutura jurídica e voters concerne" ( ...... ).
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2) "The usual course is for the inha- Assim sendo, a via legal mais pronta
bitants to present a petition to some de- que se oferece a Glicério para a defesa
signated officier, who submits the ques- de seus interêsses consiste em uma Re-
tion of incorporation to a vote of the presentação ao egrégiO Procurador Geral
people, and if they decide affirmatively, da República, nos têrmos e para os fins
the petition is garanted. The region i8 do parágrafo único do art. 8.0 da Carta
thereupon incorporated as village, bor- Magna.
rough town or city, as the case may be" 12. Além da mencionada Representa-
(Mun;O, The Government of the Uni- ção, se o Município de Braúna começar
ted States, 5.B ed., págs. 800 e 816) . a intimar os moradores da região con-
l1. As considerações acima desenvol- testada, a fim de recolherem quaisquer
vidas demonstram que houve manifesta tributos municipais, como seja os im-
violação da autonomia do município de !lostos de Indústrias e Profissões ou a
Glicério, quando, pelo Anexo n.o 2 da Lei Taxa de Conservação de Estradas de Ro-
estadual n. O 2.456, de 30 de dezembro de dagem, caberá à municipalidade de GIl-
1955, foram alteradas as linhas divisórlas cério impetrar mandado de segurança
do Distrito-sede, à inteira. revelia da po- contra aquela exigênCia.
pulação local.
Assim sendo, o primeiro remédio legal Em princípio, não cabe mandado de
que se impõe é o previsto na Constitui- segurança contra "lei em tese", mas, no
ção federal. arts. 7.0, 8.0 e 13.0 • caso da Consulta, o mandado de segu-
rança seria requerido contra o ato me-
Desde 1946, com efeito, cabe ao Pro-
diante o qual o Municfpio de Braúna da-
curador Geral da República submeter ao
exame do venerando Supremo Tribunal ria execução a uma lei eivada de incons-
titucionalidade.
Federal todo e qualquer ato, legislativo
ou não, praticado por qualquer dos po- Pela mesma razão, por caber mandado
deres do Estado, desde que importe na de segurança contra o ato que concretiza
violação dos princípios constitucionais o disposto em determinada lei, o prazo
claramente discriminados no art. 7.0 da de 120 dias concedido para o emprêgo
Lei Magna, impondo-se a intervenção daquele remédio heróico começará a fluir
federal, no caso de ser reconhecida a In- a partir da efetivação do ato, isto é, des-
constitucionalidade argüida. de quando se verificar a pretensão de
Conforme estatui o art. 13, o Congres- arrecadar tributos no território ilicita-
so Nacional, à vista do pronunciamento mente desmembrado.
do Supremo Tribunal, se limitará a sus- Neste passo evidencia-se, como se vê,
pender a execução do ato argüido de in- a íntima conexão entre a intangibilidade
constitucionalidade, se essa medida bas- do território e a autonomia tributária
tar para o restabelecimento da normali- que a Constituição federal, em seu ar-
dade no Estado. tigo 29, confere solenemente aos muni-
Ora, na hipótese da Consulta a vio- cípios.
lação do principio da autonomi~ muni-
É claro que o uso das duas vias legais
cipal (art. 7.0 , VII, letra e, da Const.)
operou-se tão-somente no Anexo n.o 2 acima apontadas não exclui a proposi-
da Lei n.o 2.456, acima citada, e não no tura de ação ordinária destinada a plei-
Anexo n. O 1, o qual se limitou a crlar o tear-se a declaração de nulidade de ple-
Município de Braúna, "com o território no direito da alteração de divisas pro-
do respectivo distrito". Dêsse modo, de- cedida no Anexo n.o 2 da Lei no 2.456,
clarado inconstitucional o disposto no restabelecendo-se as antigas linhas .que
Anexo n. o 2, na parte em que fixou as separavam o Distrito-sede do antigo Dis-
novas divisas entre os municípios de Gl1- trito de Braúna.
cério e Braúna, em nada ficaria afetada. É o meu parecer, salvo melhor juízo.
a legítima criação dêste último municí- São Paulo, 7 de agôsto de 1955. - Mi-
pio, com ressalva dos inegáveis direitos guel Reale, Prof. na Faculdade de Di-
do primeiro. reito de São Paulo.

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